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A Pré-Amazônia Mato-grossense no contexto nacional e sul-americano * Cláudio A. G. Egler – LAGET/UFRJ Introdução A Pré-Amazônia brasileira corresponde à zona de transição que margeia a grande floresta pluvial, definida – do ponto de vista ecológico, por ecótonos 1 entre a massa florestal da Amazônia e os cerrados do Brasil Central e as caatingas do Nordeste Semi- árido. Enquanto categoria territorial, a Pré-Amazônia não é exclusiva do Brasil, está também presente na Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela, marcada não apenas pela vegetação peculiar, mas também por uma população autóctone, cujos gêneros de vida são influenciados pelo habitat que entremeia floresta densa com áreas de vegetação aberta. Existe uma tendência na literatura geográfica, principalmente aquela matizada por vieses de interesses territoriais, de tratar grandes unidades ambientais como homogêneas e indiferenciadas. Isto é particularmente comum quando se refere à Amazônia e, mais recentemente, aos Cerrados no Brasil. A criação da intitulada Amazônia Legal 2 prolongou as fronteiras políticas da floresta muito além de seus limites naturais, transformando-a em bandeira de luta, tanto dos movimentos ambientais, como dos que buscavam incentivos fiscais e privilégios financeiros. Nos dias atuais, com a expansão do agronegócio nos Cerrados, observam-se posições que procuram levar os limites das savanas sul-americanas até o interior do Estado do Pará, justificando assim a expansão dos cultivos de grãos em áreas recentemente desmatadas. É necessário inverter essa tendência e procurar diferenciar e não homogeneizar as áreas. Para tanto, é necessário reconhecer, não apenas as diferenças naturais, como também aquelas que são social e institucionalmente construídas. Esse é um princípio básico da Geografia Regional que perdeu sua importância diante da banalização conceitual que resulta do discurso contemporâneo da ‘espaçologia’ indiferenciada. Harvey (1997: 6)) aponta que “as diferenças espaciais e ecológicas não são apenas constituídas por, mas constitutivas de do que se poderia chamar de processos sócio-ecológicos e político- econômicos “ (grifos do autor). Em poucas palavras, são justamente essas diferenças que nos permitem construir uma explicação consistente sobre os processos que desenham o território da área em estudo. O processo de ocupação da Pré-Amazônia brasileira pode ser dividido em duas frentes: a oriental e a meridional, a primeira tendo origem no Nordeste e a segunda no Centro-Sul. A abertura dessas frentes reflete distintos períodos da história recente, que têm em comum a presença - direta ou indireta, do estado, enquanto indutor das ondas de povoamento. * Texto preparado para o Relatório Final da Pesquisa ´ Impactos socioambientais da expansão da soja na Pré- Amazônia Matogrossense” financiada pelo PADCT/CNPq em vias de publicação pela UFMT. 1 Ecótono é uma área de contato entre dois biomas 2 Em 1953, através da Lei 1.806, de 06.01.1953,(criação da SPVEA), foram incorporados à Amazônia Brasileira, o Estado do Maranhão (oeste do meridiano 44º), o Estado de Goiás (norte do paralelo 13º de latitude sul atualmente Estado de Tocantins) e Mato Grosso ( norte do paralelo 16º latitude Sul).

A Pré-Amazônia Mato-grossense no contexto nacional e sul ... · ... do ponto de vista ... iniciando sua intervenção mais direta no ordenamento do território, segundo o ... Noroeste

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A Pré-Amazônia Mato-grossense no contexto nacional e sul-americano∗∗∗∗

Cláudio A. G. Egler – LAGET/UFRJ

Introdução A Pré-Amazônia brasileira corresponde à zona de transição que margeia a grande

floresta pluvial, definida – do ponto de vista ecológico, por ecótonos1 entre a massa florestal da Amazônia e os cerrados do Brasil Central e as caatingas do Nordeste Semi-árido. Enquanto categoria territorial, a Pré-Amazônia não é exclusiva do Brasil, está também presente na Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela, marcada não apenas pela vegetação peculiar, mas também por uma população autóctone, cujos gêneros de vida são influenciados pelo habitat que entremeia floresta densa com áreas de vegetação aberta.

Existe uma tendência na literatura geográfica, principalmente aquela matizada por vieses de interesses territoriais, de tratar grandes unidades ambientais como homogêneas e indiferenciadas. Isto é particularmente comum quando se refere à Amazônia e, mais recentemente, aos Cerrados no Brasil. A criação da intitulada Amazônia Legal2 prolongou as fronteiras políticas da floresta muito além de seus limites naturais, transformando-a em bandeira de luta, tanto dos movimentos ambientais, como dos que buscavam incentivos fiscais e privilégios financeiros. Nos dias atuais, com a expansão do agronegócio nos Cerrados, observam-se posições que procuram levar os limites das savanas sul-americanas até o interior do Estado do Pará, justificando assim a expansão dos cultivos de grãos em áreas recentemente desmatadas.

É necessário inverter essa tendência e procurar diferenciar e não homogeneizar as áreas. Para tanto, é necessário reconhecer, não apenas as diferenças naturais, como também aquelas que são social e institucionalmente construídas. Esse é um princípio básico da Geografia Regional que perdeu sua importância diante da banalização conceitual que resulta do discurso contemporâneo da ‘espaçologia’ indiferenciada. Harvey (1997: 6)) aponta que “as diferenças espaciais e ecológicas não são apenas constituídas por, mas constitutivas de do que se poderia chamar de processos sócio-ecológicos e político-

econômicos “ (grifos do autor). Em poucas palavras, são justamente essas diferenças que nos permitem construir uma explicação consistente sobre os processos que desenham o território da área em estudo.

O processo de ocupação da Pré-Amazônia brasileira pode ser dividido em duas frentes: a oriental e a meridional, a primeira tendo origem no Nordeste e a segunda no Centro-Sul. A abertura dessas frentes reflete distintos períodos da história recente, que têm em comum a presença - direta ou indireta, do estado, enquanto indutor das ondas de povoamento.

∗ Texto preparado para o Relatório Final da Pesquisa ´ Impactos socioambientais da expansão da soja na Pré-Amazônia Matogrossense” financiada pelo PADCT/CNPq em vias de publicação pela UFMT. 1 Ecótono é uma área de contato entre dois biomas 2 Em 1953, através da Lei 1.806, de 06.01.1953,(criação da SPVEA), foram incorporados à Amazônia Brasileira, o Estado do Maranhão (oeste do meridiano 44º), o Estado de Goiás (norte do paralelo 13º de latitude sul atualmente Estado de Tocantins) e Mato Grosso ( norte do paralelo 16º latitude Sul).

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A primeira fase corresponde ao final da década de 50 e início dos anos 60, quando completa-se a industrialização pesada no Brasil, e o movimento migratório ganha novo dinamismo em função da abertura de estradas, que ampliam a dimensão do mercado doméstico. A indústria pesada permite ao Estado ampliar e diversificar suas áreas de atuação, iniciando sua intervenção mais direta no ordenamento do território, segundo o projeto geopolítico do nacional-desenvolvimentismo.

A construção de Brasília e das rodovias que para ela convergiam é a peça-chave desse período, o que permitiu a expansão das frentes de povoamento em direção ao norte, pelo atual Estado de Tocantins, então parte de Goiás, ao longo da Belém-Brasília. Alem desse vetor, pode-se apontar o eixo Brasília-São Luis, através do qual se construíram as colônias organizadas pela SUDENE no Alto Turi, na Pré-Amazônia maranhense. Os projetos de colonização do Alto Turi materializam as propostas de Celso Furtado, manifestas no documento do GTDN, de transferir o excedente demográfico do Semi-árido para a Pré-Amazônia.

A segunda fase de expansão iniciou-se a partir dos anos 70 com abertura das rodovias BR-163, trecho Cuiabá-Santarém (1973), BR-364, trecho Cuiabá-Porto-Velho, e da BR-230, Transamazônica, todas integrantes do então Programa de Integração Nacional (PIN – 1970). Esta fase corresponde ao período do chamado “Milagre Brasileiro” (1968-1973), quando a expansão da economia permitiu a ampliação das redes técnicas na direção da grande fronteira de recursos amazônica, conduzida – em grande parte, pelo estado, que no período corresponde ao auge do regime militar implantado a partir de 1964.

Nessa fase intensificou-se o movimento que já havia se delineado na fase anterior, porém de forma ampliada pelos incentivos fiscais e financeiros colocados à disposição da grande empresa, que passa a ocupar terras na Amazônia, principalmente para a criação extensiva de gado. Os projetos de colonização dirigida e os deslocamentos espontâneos de população a partir das rodovias, sejam de madeireiros, pequenos agricultores ou garimpeiros, que vão traçando os contornos de um mercado de trabalho regional que, até os dias atuais, é marcado pela grande mobilidade espacial dos trabalhadores.

A terceira fase, que nos interessa mais diretamente neste trabalho, corresponde à década de 80, quando premido pelas pressões da dívida externa acumulada no período pós-milagre, o estado procura facilitar a produção de commodities destinadas ao mercado global. Nesta fase, a Pré-Amazônia é afetada diretamente pela construção da ferrovia Carajás-Itaqui (MA), para a exportação de minério de ferro do Projeto Grande Carajás, sob o comando da CVRD, e pela expansão do cultivo de grãos, especialmente soja, nos cerrados. É importante assinalar que, em conseqüência da crise econômica que se acentua a partir de 1982, o estado já havia perdido a capacidade de arcar com os custos financeiros dos grandes projetos, que caracterizaram o período anterior. Isto significa a presença crescente de investimentos privados, que passam a ter papel decisivo na expansão das atividades econômicas na Pré-Amazônia.

No caso da produção de grãos, a grande contribuição do setor estatal foi o desenvolvimento do pacote tecnológico que permitiu com que os cultivos vencessem a barreira edáfica dos cerrados, o que ocorreu – em grande parte, graças às pesquisas desenvolvidas pela Embrapa. Além do melhoramento genético das sementes e da

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adequação dos tratos culturais, especial destaque deve ser dado aos métodos de fixação biológica de nitrogênio (FBN) ao solo desenvolvidos pela Embrapa Agrobiologia3.

A construção do território do agronegócio no Brasil Central A soja no Brasil foi um cultivo que desenvolveu-se de forma secundária no Planalto

Meridional, originalmente no Rio Grande do Sul, em rotação com o trigo. Com o estabelecimento do programa oficial de incentivo à triticultura nacional, em meados dos anos 50, a cultura da soja foi igualmente incentivada, por ser, desde o ponto de vista técnico (leguminosa sucedendo gramínea), quanto econômico (melhor aproveitamento da terra, das máquinas/implementos, da infra-estrutura e da mão de obra), a melhor alternativa de verão para suceder o trigo cultivado no inverno.

A soja ganha dimensões econômicas no contexto agroindustrial brasileiro a partir de seu cultivo no Estado do Paraná. No sudoeste e oeste do Estado, a cultura desenvolveu-se com a migração de colonos vindos do RS, onde a soja já era cultivada há mais tempo, principalmente em pequenas explorações familiares para uso na alimentação de suínos e havia bom conhecimento sobre as tecnologias de sua produção. O desenvolvimento ocorreu paralelamente com as demais regiões do Estado, com início em meados dos anos 50. O crescimento da produção a partir desse período foi explosivo. A produção do Estado passou de 8 mil toneladas na média dos anos 1960 e 1961, para 150 mil na média dos anos 60, para 3,5 milhões na média dos anos 70, para 4,15 milhões na média dos anos 80.

A pesquisa com a cultura da soja no PR iniciou-se em meados dos anos 60, através da Secretaria de Agricultura do Estado, Instituto de Pesquisas IRI e Ministério da Agricultura (IPEAS/DNPEA), com ênfase para a avaliação de cultivares introduzidos, principalmente do sul dos EUA. Essa pesquisa foi apoiada financeiramente por organizações interessadas no mercado da soja, principalmente processadoras de grãos (Sambra, Cooperativa de Cotia e Instióleos). A pesquisa foi significativamente incrementada em 1974 com a criação do Instituto Agronômico do Paraná e pela Embrapa Soja, em 1975. Hoje, o Estado conta com a maior equipe de pesquisadores de soja do País e a maior do mundo tropical, responsável pelo desenvolvimento do germoplasma básico que alimenta uma extensa Rede Nacional de Melhoramento Genético de Soja.

A expansão do cultivo da soja no Paraná foi responsável por profundas alterações nas relações de trabalho no campo, liberando um grande contingente de mão-de-obra rural, transformando o estado em área de emigração a partir da década de 70. Essa migração foi decisiva para acelerar a ocupação dos cerrados do Centro-Oeste, na medida em que tanto os sojicultores, como os trabalhadores rurais, foram – em grande parte, formados no Oeste e

3 A Embrapa Agrobiologia tem sua origem intimamente relacionada à chegada da Dra. Johanna Döbereiner ao Brasil, em 1951. Na década de 60, ocorrem avanços significativos nas pesquisas sobre o cultivo da soja nos trópicos e o papel da fixação biológica de nitrogênio (FBN) associada à cultura. A Comissão Nacional de Pesquisa sobre Soja, existente na época, decide adotar a FBN como parâmetro fitotécnico para o melhoramento da espécie, ao invés da resposta aos fertilizantes nitrogenados, com base nos argumentos da Dra. Johanna Döbereiner. A soja, devido à decisão tomada pela comissão, foi selecionada e melhorada para produzir muito sem adubo nitrogenado, aproveitando a simbiose entre as bactérias e as raízes da planta. Com isso, calculando de modo muito conservador, o Brasil está economizando anualmente cerca de US$ 1 bilhão. Se a soja tivesse sido melhorada com adubo, provavelmente o Brasil jamais poderia competir no mercado internacional. Pode-se deduzir que o preço baixo da soja brasileira, hoje em dia, é função dessa escolha técnica.

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Noroeste Paranaense, como é o caso de André Maggi, um dos pioneiros do agronegócio da soja em Mato Grosso.

O processo de expansão do agronegócio de grãos e carnes não é exclusivo do Brasil, mas pode ser acompanhado na América do Sul, principalmente na Argentina, Paraguai e Bolívia. Diversos fatores explicam essa tendência, de um lado a relativa estabilidade da oferta norte-americana, que está - em grande parte, restrita a área plantada atual. De outro, a crescente demanda da China pela soja no mercado mundial, transformando-se no principal importador do grão para atender o rápido crescimento da demanda interna.

América do Sul Produção de soja 1990-2004

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ton(mil)

Essa expansão esteve associada, em grande parte a evolução dos preços internacionais da soja que apresentaram uma forte elevação a partir de 2002, em grande parte explicada pela entrada da China como compradora no mercado internacional.

Preço Médio da Soja no BrasilValor em Reais da Saca de 60 kg

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Como principal importador mundial de soja, a China está buscando, menor

dependência tanto em relação aos EUA, quanto às quatro grandes tradings mundiais. A

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ação de empresas de menor porte na América do Sul, portanto, parece corresponder às intenções chinesas. O crescimento da produção em Mato Grosso é constante desde 1993, suplantando o Paraná e o Rio Grande do Sul, como área produtora da leguminosa. Nos últimos anos, o diferencial tendeu a se acentuar, considerando as estiagens que afetaram as colheitas nos estados da Região Sul.

Brasil - Produção de Soja por UF1993-2005

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Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal, diversos anos.

Historicamente, a expansão da agropecuária no Brasil foi responsável pelas principais mudanças na cobertura e uso das terras. As frentes pioneiras, já bastante descritas na literatura científica brasileira, constituíam o principal vetor de ampliação da área de desmatamento para uso agrícola e pastoril no Brasil. Baseadas no avanço dos pequenos agricultores em busca da fertilidade natural do solo de matas desempenharam um papel fundamental durante o processo de industrialização, pois garantiram a oferta dos bens salários, principalmente alimentos, necessários a manutenção dos níveis, sempre baixos, dos salários reais dos trabalhadores urbanos.

A produção de grãos transformou-se em um dos principais vetores de expansão da agricultura brasileira no período recente. A tecnificação dos tratos culturais, com a utilização de sementes melhoradas, aplicação maciça de produtos químicos e mecanização das diversas fases do cultivo foi responsável por importantes ganhos nos rendimentos agrícolas, o que aparentemente permitiria inferir um arrefecimento na voracidade por novas terras, que foi a marca registrada da agropecuária no Brasil desde o final do século XIX. Entretanto, os indicadores da produção agrícola revelam um comportamento bastante diferenciado entre a soja, que se transformou no carro-chefe da agricultura brasileira, e o milho e o arroz, que a seguem na composição do produto do setor.

Os dados da tabela abaixo mostram claramente que, entre 1995/96 e 2004, houve um expressivo ganho na rentabilidade da produção de milho e arroz, o que explica o aumento da quantidade produzida bem acima da expansão da área colhida, o mesmo não se deu com a soja, que aumentou vigorosamente sua produção graças a uma não menos voraz incorporação de novas terras. A rigidez no coeficiente técnico do cultivo da soja pode ser

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avaliada pela manutenção praticamente inalterada do rendimento por hectare no período considerado.

Tabela 1

Brasil Indicadores Básicos da Produção de Grãos

1995/96-2004

Indicador 1995/96 2004

Variação 1995/6-2004

(1995/6=100) Área colhida (ha) Milho 10.603.646 12.404.938 117,0 Soja 9.478.823 21.534.868 227,2 Arroz 2.989.209 3.733.146 124,9 Quantidade Produzida (t) Milho 25.511.987 41.806.335 163,9 Soja 21.650.696 49.552.100 228,9 Arroz 8.076.751 13.276.841 164,4 Rendimento (t/ha) Milho 2.406 3.370 140,1 Soja 2.284 2.301 100,7 Arroz 2.702 3.556 131,6

Fonte: IBGE, Censo Agropecuário de 1995/96 e Produção Agrícola Municipal de 2004

Área Colhida com Soja 1993-2005

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Mato Grosso

Paraná

Goiás

Mato Grosso do Sul

Minas Gerais

Rio Grande do Sul

Fonte: Brasil, MDIC

A expansão acelerada da área cultivada com soja incidiu diretamente sobre a Pré-Amazônia, principalmente no Estado de Mato Grosso. Conforme aponta o Plano BR-163 Sustentável (pág 16 e 17): “a marca dos anos noventa foi a expansão do agronegócio no Cerrado, com destaque para a soja, com grandes grupos econômicos explorando em grande escala esta leguminosa. A implantação dos projetos agropecuários, a expansão do processo de colonização e a recente expansão da soja geraram uma nova configuração territorial que

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o Estado está consolidando. Rondonópolis, Sinop, Cáceres, Barra do Garças, Alta Floresta e Tangará da Serra tornaram-se cidades de segunda grandeza, comandadas pela capital Cuiabá, que rapidamente vai-se tornando uma metrópole regional.”

A Pré-Amazônia Matogrossense no contexto nacional Existem na Pré-Amazônia de dois principais sistemas de produção agropecuária bem diferenciados, patronal-monocultural e familiar-policultural. Estes sistemas de base agrária se diferenciam nas formas de tratamento do capital natural, na intensidade do uso de capital humano e social e nas proporções de uso do capital físico e do trabalho. O primeiro sistema está associado à grande propriedade, ao trabalho assalariado de baixa qualificação e à produção sucessiva, ao longo do tempo, de madeira e gado, muitas vezes seguido de abandono. Um outro sistema de produção de base agrária articula a pequena propriedade, o trabalho familiar e a produção diversificada. A atividade patronal-monocultural expande-se rapidamente. Os baixos preços das matas e as receitas provenientes da venda da madeira delas extraída reduzem o capital inicial necessário à implantação de novos pastos, permitindo rentabilidade atraente. Com o crescimento das áreas desmatadas, avança a plantação de grãos, sobretudo soja e milho. A trajetória de utilização da terra inicia-se com a madeira, prossegue com o gado e termina com pastos degradados ou com a soja.

Um outro sistema de produção de base agrária articula a pequena propriedade, o trabalho familiar e a produção diversificada. A produção familiar-policultural na região configura um amplo espectro de sistemas de produção, A base familiar dessas estruturas, que procuram atender a critérios reprodutivos de segurança alimentar e diferenciação social, lhes propicia grande diversidade, tanto no plano interno aos estabelecimentos, quanto no plano das regional. Sua evolução tem seguido trajetórias distintas nas diversas regiões. Um esforço de intensificação e diversificação dos sistemas, aos quais foram se agregando diversas culturas permanentes, iniciou-se nos anos oitenta. Na década de noventa, essa tendência se fortaleceu por duas trajetórias, uma que internaliza novas culturas exóticas como o maracujá, o coco, a acerola e o abacaxi, e outra que se baseia no adensamento e manejo de ocorrências naturais e em plantio de produtos nativos como o açaí e o cupuaçu. Ao longo da BR-163 novos centros urbanos estão se consolidando, principalmente a partir da área de maior concentração do cultivo de grãos no Estado de Mato Grosso, que corresponde aos municípios polarizados por Sorriso e Sinop, avançando até Guarantã do Norte, já nos limites com o Estado do Pará. Essa zona de transição, conhecida regionalmente como Portal da Amazônia, é palco hoje de conflitos ambientais e agrários que tendem a acentuar-se em médio prazo, considerando a valorização das terras em função da pavimentação da rodovia.

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A pecuária extensiva, dominante no Portal da Amazônia, é também um vetor de conflito, pois o sul do Pará ainda é considerado como área contaminada com febre aftosa, podendo comprometer a sanidade do rebanho do estado vizinho. Pecuaristas mato-grossenses estão comprando terras no sul do Pará e procurando estabelecer mecanismos próprio de controle para garantir a qualidade do plantel, inclusive com rastreamento informatizado do rebanho. No que diz respeito à pecuária, embora o rebanho brasileiro se coloque entre os maiores do mundo, ocupando o segundo lugar após a Índia, sua taxa de abate ainda é relativamente baixa, o que em parte revela o seu caráter semi-extensivo, ou seja, ainda é grande consumidor de terras para a sua crescimento.

Tabela 2 Rebanho e abate mundial de gado bovino. 1999.

Páises Rebanho Abate Taxa de Abate

(milhões

de cabeças

(%) (milhões de

cabeças

(%) (%)

Índia 312.572 29,32 12.750 5,99/o 4,08

Brasil1 157.887 14,81 31.622 14,85 20,03

China 133.000 12,47 20.000 9,39 15,04

Estados Unidos 96.595 9,06 37.500 17,61 38,82

União Européia 80.969 7,59 27.571 12,95 34,05

Argentina 49.342 4,63 13.100 6,15 26,55

Total 1.066.175 100,00 212.898 100,00 19,97

* Dados não disponíveis. ** Taxa de abate média mundial. Fonte: Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), apud Mualpec 2000. 1 Os números sobre o Brasil e o Paraguai são estimativas da FNP Consultoria e não obrigatoriamente iguais aos do USDA.

A expansão acelerada da pecuária bovina nas regiões Norte e Centro-Oeste foi a grande responsável pela abertura de novas terras para uso agropecuário. O Brasil, além de dispor de um grande mercado interno para carnes e derivados está aumentando rapidamente sua participação no mercado mundial.

A presença de garimpos e da extração predatória de madeiras é também um fator de tensão principalmente na Terra do Meio, uma área de cerca de 8,3 milhões de hectares entre os rios Xingu e Tapajós, no sul do Pará. A recente criação da Estação Ecológica da Terra do Meio é uma tentativa de garantir sua preservação, porém a confluência da BR-163 com a BR-230 (Transamazônica) em Itaituba (PA), porto fluvial no rio Tapajós, certamente sofrerá transformações com a pavimentação, apontando no sentido da consolidação dessa cidade como centro regional importante no sul do Pará. A questão se resume em que a Área de Influência da BR-163 está sendo o cenário onde os dois sistemas produtivos estão entrando em contato direto. É o encontro da Amazônia das Águas com a Amazônia das Terras Firmes. Entretanto, não será no meio

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rural que esse embate se dará e sim através da dinâmica espacial da rede urbana regional. O mapa a seguir é bastante ilustrativo desse movimento de peças no intricado tabuleiro de xadrez da Amazônia Legal.

A pavimentação da BR-163 deve ser vista quanto aos seus efeitos na re-estruturação

da rede urbana regional, na medida em que abre possibilidades de expansão da área de influência de Cuiabá, cujos fluxos de polarização tenderão a se intensificar em direção ao norte, confirmando uma tendência que já foi apontada em diversos estudos anteriores. A emergência de Cuiabá, enquanto centro regional é parte do fortalecimento do papel do eixo Brasília-Goiânia sobre a rede urbana nacional, projetando sua área de influência sobre o Centro-Oeste e o Norte, disputando diretamente com Belém e Manaus.

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Considerações Finais A organização do espaço na borda meridional da Amazônia, isto é na Pré-Amazônia Mato-grossense, tem implicações importantes para a redefinição das estruturas regionais do Brasil. A atual divisão do Brasil em grandes regiões, definida na década de 1960, necessita ser repensada de modo a refletir o dinamismo das novas redes que se construíram a partir da expansão do agronegócio no cerrados e da consolidação do povoamento na borda meridional da floresta amazônica. No que diz respeito à área estuda, é evidente que Mato Grosso e Rondônia estão cada vez mais integrados, tanto do ponto de vista logístico, como econômico e social. Assim, na há muito sentido em considerá-los como parte de macrorregiões distintas, pois a projeção de Cuiabá e a transformação de Porto Velho em importante terminal exportador articulado ao complexo carne-grãos em consolidação na interface Centro-Oeste/Norte nos leva a propor que essas duas unidades federativas já definem uma nova estrutura produtiva regional, que deve ser considerada para o planejamento e a gestão do território no Brasil e, quiçá, em escala sul-americana.

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