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A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO
Pedro da Silva Barbosa
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de doutor em Letras Clássicas. Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira.
Universidade Federal do Rio de Janeiro Outubro de 2017
A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO
Pedro da Silva Barbosa
Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas. Aprovada por:
________________________________________________________________ Presidente: Prof. Doutor. Auto Lyra Teixeira – UFRJ
______________________________________________________________________ Profª. Doutora. Dulcileide Virginio do Nascimento Braga - UERJ ______________________________________________________________________ Prof. Doutor Fábio Frohwein de Salles Moniz - UFRJ ______________________________________________________________________ Profª. Doutora Fernanda Lemos de Lima - UERJ ______________________________________________________________________ Prof. Doutor Ricardo de Souza Nogueira - UFRJ ______________________________________________________________________ Prof. Doutor Rainer Guggenberger - UFRJ, Suplente ______________________________________________________________________ Profª. Doutora Simone de Oliveira Gonçalves Bondarczuck - UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro 2017
A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO
Pedro da Silva Barbosa Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.
O presente trabalho realiza um estudo intertextual de duas obras inseridas no
Corpus Platonicum: o Axíoco, um diálogo apócrifo tardio (possivelmente do século I
a.C.) e o Fédon, um diálogo considerado autêntico (de meados do século IV a.C.). O
Axíoco, um diálogo do gênero consolatio, cujo tema é a preparação para a morte,
apresenta inegável influência do Fédon. De fato, o Fédon já pode ser considerado uma
espécie de “diálogo de consolação”, antecipando esse gênero literário que viria a
firmar-se depois. O enfoque adotado na tese é pragmático, centrado na análise do
discurso e na pragmática literária. Parte-se do pressuposto (a hipótese) de que o autor do
Axíoco, mesmo inserido num contexto histórico bem posterior ao do Fédon, buscou
inspiração neste diálogo de Platão, aí identificando as características básicas do
consolatio. Tanto no Fédon quanto no Axíoco, Sócrates aparece como o consolador por
excelência: no Fédon, nos momentos que antecedem a sua morte, ele consola os
amigos; no Axíoco, Sócrates consola Axíoco, que está prestes a morrer. Em ambos os
textos, são marcantes a preparação para a morte, a relação entre alma e corpo, a
preocupação com a imortalidade da alma, a dedicação à filosofia e o interesse pelo
destino das almas após a morte. Tais evidências levam o pesquisador a confirmar o
pressuposto de que o autor do Axíoco inspirou-se efetivamente no Fédon, tomando-o
como modelo para a consecução de seu diálogo de consolação.
Antecede o estudo intertextual do Axíoco e do Fédon, a abordagem de
determinados temas, imprescindíveis para o entendimento de outras influências que se
fazem presentes no diálogo apócrifo - morte e pós-morte antes de Platão: a visão de
Homero, os órficos, os pitagóricos; a morte de Sócrates; a preparação para a morte em
Platão; a concepção epicurista: a alma e a morte.
Palavras-chave: Axíoco; Fédon; Platão; Psykhé; Homero; Orfismo. Pitagorismo. Sócrates; Epicurismo.
Rio de Janeiro 2017
THE PREPARATION FOR DEATH: AN INTERTEXTUAL READING OF THE AXIOCHUS
Pedro da Silva Barbosa Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira
Abstract Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro
The present work is an intertextual study of two works included in the Corpus
Platonicum: the Axiochus, a late apocryphal dialogue (possibly from the first century
BC) and the Phaedo, a dialogue considered to be authentic (from the middle of the
fourth century BC). The Axiochus, a dialogue of the genre consolatio, whose theme is
the preparation for death, is undeniable influenced by Phaedo. In fact, the Phaedo can
already be considered a kind of "dialogue of consolation", anticipating this literary
genre which will be established later on. The approach adopted in the thesis is
pragmatic, centered on discourse analysis and literary pragmatic. The hypothesis is that
the author of the Axiochus, although emerged in a later historical context compared to
the Phaedo, sought inspiration in this dialogue of Plato, finding there the basic
characteristics of the consolatio. In both, the Phaedo and the Axiochus, Socrates appears
as the comforter par excellence: in the Phaedo, in the moments before his own death, he
comforts his friends; in the Axiochus, Socrates consoles Axiochus, who is about to die.
In both texts, the preparation for death, the relationship between soul and body,
preoccupation with the immortality of the soul, dedication to philosophy and interest in
the fate of souls after death are striking. Such evidence supports the assumption that the
author of the Axiochus was effectively inspired by the Phaedo, taking it as model for the
execution of his dialogue of consolation.
Before taking care of the intertextual study of the Axiochus and the Phaedo,
certain themes, essential for the understanding of influences present in the apocryphal
dialogue are outlined: death and post-death before Plato: the vision of Homer, the
Orphics, the Pythagoreans ; the death of Socrates; the preparation for death in Plato; the
epicurean conception of soul and death.
Keywords: Axiochus; Phaedo; Plato; Psykhé; Homer; Orphism; Pythagoreanism;
Socrates; Epicureanism.
Rio de Janeiro 2017
A Joice Cabral e Pedro W. Barbosa, dedico este trabalho.
Agradecimentos:
Ao grande mestre, amigo, orientador incansável, guerreiro
inspirador, poeta cujos passos seguirei enquanto me for
permitido, Auto;
Ao também mestre, amigo, inúmeras vezes orientador,
companheiro de muitas conversas, sem as quais eu não teria
alcançado tal resultado, Ricardo;
À Banca examinadora - Profª. Doutora. Dulcileide Virgílio do
Nascimento, Prof. Doutor Fábio Frohwein de Salles Moniz,
Profª. Doutora Fernanda Lemos de Lima, Prof. Doutor Ricardo
de Souza Nogueira;
Aos amigos de sempre Alexandre, Rainer, Simone, Anderson,
Fábio e Cinthya;
Às professoras e amigas Marinete, Shirley e Tania, “Mãe
Tania”;
Aos colegas e professores da UFRJ, especialmente aos do
Departamento de Letras Clássicas;
Aos meus queridos pais;
À maravilhosa Joice e ao tão querido Pedrinho;
A Deus, por todas as conquistas,
Agradeço!
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO.........................................................................................................09
2- UM ENFOQUE PRAGMÁTICO............................................................................16
3- MORTE E PÓS-MORTE ANTES DE PLATÃO..................................................19
3.1 Homero..........................................................................................................19
3.2 Os órficos.......................................................................................................31
3.3 Os pitagóricos ...............................................................................................44
4. A MORTE DE SÓCRATES ....................................................................................50
5- PSYKHÉ E SÔMA: A PREPARAÇÃO PARA A MORTE EM PLATÃO..........57
5.1 Alma e imortalidade ......................................................................................57
5.2 Psykhé e sôma................................................................................................76
6. EPICURO: A ALMA E A MORTE ........................................................................86
7. O AXÍOCO: UM ESTUDO INTERTEXTUAL......................................................93
7.1 O Axíoco........................................................................................................93
7.2 Axíoco e Fédon: uma leitura intertextual.....................................................105
8- CONCLUSÃO.........................................................................................................123
9- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................126
10. ANEXO: TRADUÇÃO E TEXTO GREGO DO AXÍOCO...............................133
9
1. INTRODUÇÃO
A filosofia é um fenômeno ímpar na história dos homens. O estudo das
civilizações, desde o passado mais remoto, evidencia, de uma maneira ou de outra, a
universalidade das ideias filosóficas. Diante da natureza, o homem se maravilha, e esse
maravilhar-se enseja questionamentos decisivos nos multivariados contextos sociais1.
A questão crucial na jornada dos homens é a relação com a morte. O homem, em
algum momento da caminhada, passou a ter a certeza de que vai morrer. Como ressalta
Dastur:
O homem sabe que deve morrer, e concordamos, habitualmente, em ver nesse ‘saber’ uma das características básicas da humanidade, ao lado da linguagem, do pensamento e do riso. Contudo, não é tão certo que o animal não pressinta, de alguma maneira, sua morte, e que tudo o que vive não tenha, num certo modo desconhecido por nós, uma relação essencial com seu próprio fim. O que é, em todo caso, certo, é que esse fim, que é a própria morte, apresente-se, desde que há pensamento, isto é, representação, como um tema privilegiado, a tal ponto que podemos afirmar que a humanidade não alcança a consciência de si mesma a não ser através do enfrentamento da morte. (DASTUR, 2002, p. 13).
A perda de um integrante do grupo intensificava a afetividade e a solidariedade
dos companheiros, evidenciando a necessidade de apoio mútuo. Os ritos e monumentos
funerários testemunham, de forma eloquente, desde tempos imemoriais, a preocupação
com o sepultamento e o cuidado com os entes queridos, voltados para a posteridade. A
inquietação, diante da morte, constitui, inegavelmente, uma ideia filosófica articulada
em sistemas de pensamento, onde quer que se apresente. Como observa ainda Dastur:
[...] Talvez fosse necessário, primeiramente, definir o homem a partir dessas condutas externas de luto, mais do que a partir de um se saber mortal que permanece completamente interior. Essas condutas de luto devem, por outro lado, ser encaradas de um ângulo vasto, e seria necessário incluir nelas não somente os ritos funerários variados que encontramos nas diferentes culturas – sepultamento, mumificação, inumação, cremação e até mesmo exposição
1 “Se voltamos os olhos para o passado e contemplamos a totalidade da existência humana, o surgimento da filosofia e de filósofos parece um fenômeno realmente bastante estranho, uma secreção etérea que não pode ser explicada em termos de fisiologia ou de necessidade física. Talvez essa atividade notoriamente ‘inútil’ fosse um subproduto de nossos cérebros avantajados, o resultado de pensamentos que ultrapassam as rotinas cotidianas e olham pra além de si. A filosofia representou, sem dúvida, uma complicação a mais em nosso uso crescente da linguagem, à medida que um vocabulário rico em conceitos abstratos e subjetivos substituiu nossos grunhidos e rosnados utilitários e expressivos. Mas ideias filosóficas, de alguma forma, ideias sobre a natureza, suas forças e questões, sobre a morada na vida após a morte, por exemplo -, são praticamente universais, e podemos encontrar as suas origens há dezenas de milhares de anos, na pré-história.” (SOLOMON, 2001, p. 21, grifo nosso).
10
dos mortos, já que esta tem lugar segundo um ritual extremamente refinado -, mas também, outras condutas culturais e, em particular, todas aquelas que têm por função a constituição de uma memória coletiva. (DASTUR, 2002, p. 15-16).
No contexto neolítico, os restos arqueológicos apontam para o culto de uma
Grande Mãe2, alicerçado na terra e no ciclo da vegetação – vida, morte e regeneração.
Posteriormente, o avanço dos indo-europeus, com a sua visão centrada na tríade
sacerdotes, guerreiros e camponeses, se sobrepõe às culturas focadas na Grande Mãe e
impõe o patriarcado3.
Karl Jaspers, com a teoria da “Era axial”, chama a atenção para acontecimentos
marcantes ocorridos, do século VIII ao VI a. C.4, ao longo de uma vastíssima região que
se estende da China atual ao leste europeu. Com efeito, destacam-se nesse amplo
contexto, o confucionismo, o taoismo, o budismo, o jainismo, o zoroastrismo, os
profetas hebreus e os filósofos gregos.
Na bacia do Egeu oriental, o mais famoso dos aedos compusera o núcleo comum
daquelas que viriam a ser as duas maiores epopeias do Ocidente: Ilíada e Odisseia. A
Ilíada tem como tema a ira de Aquiles e suas consequências, em meio aos pesarosos
acontecimentos da guerra de Troia. A Odisseia, por sua vez, narra as vicissitudes do
herói Odisseu em sua longa viagem de volta ao lar, em Ítaca. No universo poético de
Homero, onde os heróis almejam a glória nos campos de batalha, os homens interagem
com os deuses imortais, estando sujeitos aos seus caprichos, característicos de
personagens marcadas pela ambiguidade, além do bem e do mal. Nesse sentido, o 2 Trata-se de uma potência divina, associada muitas vezes à Mãe Terra, e, por conseguinte, ao ventre feminino, à fertilidade, à agricultura e à criação. Particularmente no que interessa a este estudo, numerosas estatuetas encontradas em sítios arqueológicos, no Egito, na Mesopotâmia, na Ásia Menor, na antiga Hélade e no contexto da cultura romana, sugerem, inegavelmente, o culto da Grande Mãe, com as variadas faces do sagrado feminino, por parte de diferentes civilizações. 3 Provavelmente originários de uma região situada ao norte do Mar Negro, os indo-europeus migraram de muitas maneiras, tanto na direção leste, alcançando o Irã e a Índia, quanto na direção do oeste, chegando a variadas regiões. Na Península Balcânica, eles teriam chegado por volta de 1900 a. C., espalhando-se em levas. Tal expansão, alicerçada na submissão ou assimilação dos povos autóctones da península, culminará com a emergência, a partir de uma espécie de “grego comum”, dos quatro dialetos do futuro idioma helênico: o ático-jônico, o eólio, o dórico e o árcade-cipriota. Mais uma vez, no que toca particularmente à tese em questão, a vida nômade, em movimento constante, acompanhando os rebanhos, não deixaria de contribuir para a submissão da mulher, na medida em que esta se torna um bem móvel, procriadora de filhos, equivalente a algumas cabeças de gado. O ventre feminino teria perdido assim a sua face divina, passando a mero reprodutor de filhos legítimos para os chefes de clãs e famílias centrados no patriarcado. 4 De acordo com a teoria da Era Axial, nas regiões da China, India, Irã, Ásia Menor, Síria, Palestina e Hélade, nesse período, basicamente, a mesma linha de pensamento teria emergido, sem que, em princípio, nenhuma dessas regiões tenha entrado em contato entre si. Foi como se uma série de questionamentos viessem a integrar as perspectivas da humanidade ao mesmo tempo, suscitando o despertar de uma consciência de sua existência, natureza e limitações e, consequentemente, um despertar filosófico, religioso e científico sem precedentes.
11
destino dos mortais não deixa de ser influenciado pelas divindades, caracterizando-se os
enganos dos homens, não raro, por uma intervenção divina que lhes obscurece o
entendimento. Num mundo em constante mudança, é vital buscar o equilíbrio nesse
movimento, destacando-se a medida (o métron), como um componente decisivo do
comportamento e das decisões humanas nas mais arriscadas circunstâncias. Essa
procura do equilíbrio na medida sugere a possibilidade da escolha humana em meio às
limitações da moîra (o quinhão que nos cabe e determina as nossas decisões) 5.
No período que viria a ser chamado de Idade Arcaica da Hélade – sécs. VII e VI
a. C., ocorreram grandes transformações na bacia do Mediterrâneo oriental: a primazia
do debate (agón) e da argumentação (lógos) nas póleis emergentes enseja novas
perspectivas para o pensamento; a revolução nas técnicas de agricultura favorece o
crescimento demográfico; o desenvolvimento do artesanato e do comércio, aliado à
introdução da moeda e ao progresso das técnicas de navegação, possibilita a ascensão de
novos grupos sociais (frações do dêmos) e a odisseia da colonização em busca de lares
distantes; o triunfo da tecnologia do ferro, com a consequente mudança nas táticas de
combate e o aperfeiçoamento da infantaria, estimula o individualismo crescente no
âmbito da pólis; a crise no regime agrário, acentuada pela concentração da grande
propriedade, acirra o conflito social (a stásis), a demanda de uma reforma agrária e de
direitos de cidadania da parte de grupos até então excluídos da tomada de decisões no
destino da comunidade; todas essas transformações realçam o poder da palavra (lógos),
na contestação ao domínio aristocrata ou na reação dos nobres aos emergentes sociais. É
a época dos tiranos e dos sete sábios da Grécia; da fecunda relação entre oralidade e
escrita (a literacia); da poesia lírica em todas as suas manifestações – elegia, iambo,
mélos monódico e coral; das fábulas atribuídas a Esopo; da reflexão hipocrática; e dos
chamados filósofos pré-socráticos.
O que diferencia esses filósofos dos helenos que os antecederam, num contexto
caracterizado pela relação entre mythos e lógos6, destacando-se este último como
5 No canto XVI da Ilíada, constata-se um exemplo notável de ultrapassagem do métron e das consequências advindas dessa desmedida (hýbris): Aquiles, ao emprestar as armas a Pátroclo, para que este lute em seu lugar, liderando os mirmídones contra os troianos, aconselha o companheiro a afastar os inimigos das naus gregas, mas a não se aproximar demasiado das imponentes muralhas de Troia, chamando assim a atenção para a necessidade de não se ultrapassar o limite (o métron). No entanto, Pátroclo, movido pelo clamor da batalha, acaba não levando em consideração as advertências do filho de Peleu, e termina enfrentando Heitor, num combate singular; esse excesso (hýbris) acaba lhe sendo fatal, e o amigo de Aquiles morre nas mãos do príncipe troiano. 6 Originalmente, palavras mais ou menos sinônimas, significando uma “fala”, um “discurso”, uma “narrativa”, mito e lógos foram adquirindo significados diferentes. O mito apresenta-se como um relato não confirmado por testemunhos, e, como tal, associado ao “imaginário”; o lógos, por sua vez, passa a ser
12
argumentação, é que Tales e seus contemporâneos apontam um dos elementos do
próprio brotar das coisas (phýsis) como uma espécie de “matéria básica” (água, ápeiron,
ar ou fogo), um fundamento naturalístico da generalidade do ser, portanto, que explique
a constituição e o funcionamento do cosmo.
Desde Homero, a preocupação com a psykhé, seus caminhos e seu destino, já se
fazia presente entre os gregos. Na poesia épica, a psykhé é como um “sopro” que
abandona o corpo - “sôma”, no momento do trespasse. O cadáver do guerreiro no
campo de batalha é designado no contexto homérico pela palavra sôma, equivalente ao
corpo privado do movimento associado à vida. Após os imprescindíveis ritos fúnebres,
a psykhé do morto passa a habitar o Hades como uma sombra (eídolon), afigurando-se
toda a sua existência sem qualquer significação moral.
No período arcaico, no entanto, crenças e cultos, à margem da devoção oficial
aos deuses homéricos, destacam-se no âmbito da pólis, acolhendo o indivíduo, carente
de aprofundamento religioso. Destacam-se então os cultos de mistérios: o santuário de
Elêusis, as doutrinas e práticas órficas e as comunidades (os thíasos) dionisíacos. Toda
essa inquietação espiritual toca o coração da filosofia recém-chegada. Os pitagóricos7,
por exemplo, inspirados nas crenças e práticas órficas, destacam a metempsicose, ou
seja, a transmigração das almas, de origem divina, em variados corpos, e a necessidade
de libertar-se do ciclo dos renascimentos, mediante a ascese purificadora.
A cosmovisão órfico-pitagórica enseja, assim, entre os antigos helenos, o desejo
de se preparar adequadamente para a morte, perpassando os períodos clássico,
helenístico e helenístico-romano da antiga Hélade8. E a busca dessa preparação está,
sobretudo, presente no âmbito do corpus platonicum9.
considerado um relato confirmado por testemunhos confiáveis, associado, por consequência, à comprovação e à demonstração do seu conteúdo. O mito, como narrativa, desenvolve o sentido original de uma história, mas não uma história qualquer, e sim uma história especial, associada, basicamente, às origens dos seres. Já o logos, desde o começo relacionado com o ato de contar, associa-se cada vez mais à enumeração, numa narrativa, e à contagem – ao cálculo, à reflexão, à discussão e à argumentação. De qualquer modo, chama a atenção o âmbito semântico original dos vocábulos em questão (mythos e lógos), alicerçado, sem sobra de dúvida, na oralidade característica das sociedades ágrafas. 7 Quanto à etimologia da palavra metempsicose (metempsýkhosis), ela é formada, basicamente, pelo radical da palavra psykhé (alma), acrescentado dos prefixos metá- (transmitindo a ideia de deslocamento) e en- (transmitindo a ideia de interioridade), e do sufixo –sis (transmitindo a ideia de um processo). Metempsicose, portanto, quer dizer “transmigração da alma” (em variados corpos). 8 Uma periodização da história da antiga Hélade não deixa de apresentar certa arbitrariedade, servindo as datas e os eventos, basicamente, como uma espécie de baliza, visando a orientar o interessado, facilitando-lhe o estudo. Assim sendo, não deixando, evidentemente, de considerar outras formas de periodização, propõe-se aqui dividir a história da antiga Hélade nos seguintes períodos: Idade Épica (séc. IX – VIII a. C.); Idade Arcaica (séc. VII – VI a. C.); Período Clássico ou Ático (séc. V – IV a. C.) e Período Helenístico (323 a. C. – 525 d. C.), dividido em Alexandrino (323 a.C. – 31 a. C.) e Romano (31 a. C. – 525 d. C.).
13
Considerando o exposto, o objetivo do presente trabalho é realizar um estudo
intertextual do Axíoco (um diálogo apócrifo tardio) com o Fédon (diálogo de
autenticidade não contestada), pois em ambos se percebe a presença de um tipo de
preparação para a morte e sua aceitação. O Axíoco é um diálogo que se insere no genêro
literário consolatio. As origens desse tipo de gênero são percebidas, no âmbito da
literatura grega, desde Homero, pois a preocupação com a morte, tanto por parte dos
que estão prestes a morrer quanto por parte dos que perdem os entes queridos, existe
desde que o homem se tornou capaz de pensar a própria existência. Contudo, embora se
perceba a presença frequente, em obras literárias da antiga Hélade, de manifestações,
sejam elas religiosas ou não, em torno do momento que precede ou sucede o trespasse
(com cantos, hinos, homenagens diversas etc), só se pode falar de Consolações como
gênero literário a partir do perì pénthous de Crantor,10 obra que se tornou um marco
muito importante no contexto de sua produção e que é fundamental para o presente
trabalho. Essa importância se dá pelo fato de a obra de Crantor ser posterior a Platão e
anterior ao Axíoco.
Parte-se então do pressuposto (a hipótese) de que o autor do Axíoco, mesmo
fazendo parte de um contexto histórico e de enunciação bem posterior ao Fédon de
Platão, buscou inspiração nessa obra e construiu a sua obra literária baseada nesse
diálogo, pois ele identificou no Fédon características intrínsecas do genênero literário
Consolatio, embora esse gênero ainda não tivesse sido inaugurado no tempo de Platão.
Este trabalho tem como objetivo o estudo intertextual entre Fédon e Axíoco,
pois, embora outras obras tenham influenciado o autor do Axíoco, a influência do Fédon
parece ter sido decisiva na composição do diálogo apócrifo. Com efeito, no Fédon,
temos evidências inegáveis de um tipo de preparação para a morte, alicerçada na
filosofia, recomendada pela personagem Sócrates11, em seus últimos momentos de vida;
e no Axíoco, Sócrates procura tranquilizar Axíoco, que está para morrer, preparando-o
para a passagem.
Além disso, cabe ressaltar que as ferramentas de análise do discurso se mostram
eficazes para viabilizar o referido estudo intertextual, pois, para a análise dos vários 9 Uma abordagem da divisão, organização e cronologia do Corpus Platonicum faz parte da dissertação de mestrado: Da Virtude e Mênon: um estudo intertextual, defendida em 2010 pelo mesmo autor deste trabalho. 10 Cf. nota 94 e página 96. 11 O uso da palavra personagem baseia-se no entendimento a seguir: “...o diálogo como gênero literário pode ser considerado uma obra dramática, onde o leitor-ouvinte desempenharia uma importante função. O teatro platônico põe em cena personagens discutindo sobre algum problema moral (o que é a coragem, o que é a piedade, o que é o belo etc.)” (BARBOSA, 2010, pg. 10).
14
contextos: históricos, de enunciações, literários etc., a pragmática tem se mostrado
indispensável, possibilitando o teste da hipótese aqui proposta. Nesse sentido, as etapas
da pesquisa são as seguintes: (1) introdução; (2) caracterizar o enfoque pragmático
adotado no presente trabalho; (3) traçar o percurso, com base na bibliografia
selecionada, dos termos psykhé e sôma, buscando apreender seus vários significados,
desde a épica de Homero, incluindo o orfismo e o pitagorismo; (4) trazer uma visão
sobre a morte de Sócrates, pois no Fédon essa personagem está prestes a morrer; (5)
analisar a visão de sôma e psykhé, no pensamento platônico; (6) fazer um estudo sobre
como os epicuristas lidam com a morte, visto que há claras influências de visões
epicuristas no Axíoco; (7) verificação da hipótese acima mencionada, com abordagem
intertextual dos textos gregos do Fédon e do Axíoco.
Para a tradução do Axioco, utilizou-se o texto grego incluído em SOUILHÉ,
Joseph. Platon: oeuvres completes. Paris: Les Belles Lettres, 1930. No que diz respeito
a essa tradução e à de alguns dos excertos de outras obras selecionados para este
trabalho, optou-se por uma tradução fluente e mais livre, sem descaracterizar, no
entanto, o significado básico dos textos originais, com a intenção de acentuar aspectos
importantes para a exposição do tema escolhido para estudo. Com essa proposta de
tradução, o autor da tese espera ter dado conta do desafio de forma satisfatória e sem
excessos, desempenhando a contento a odisseia característica de toda tradução, ou seja,
da língua de partida (no caso, o grego antigo) à língua de chegada (no caso, o
português).
Por fim, cabem algumas considerações sobre a atualidade, a pertinência e a
importância do tema em questão - a preparação para a morte. Nos dias de hoje,
malgrado o crescente desconforto com a morte em geral, muitos de nós, seja qual for a
concepção de cada um, movidos por um sentimento demasiadamente humano, nos
voltamos para o próximo vivendo os últimos dias. Essa aproximação demonstra não
apenas uma preocupação com a morte, posto que se busca preparar o doente para o
trespasse, cercando-o de muita atenção e carinho, mas também, sobretudo com a vida,
com um cuidado de si, pois vida e morte se apresentam inexoravelmente associadas na
jornada humana. A reflexão sobre a vida e a morte nos convida a pensar, com
serenidade e alegria de viver, - sem deixarmos de lado as preocupações com a família, o
bem-estar material e a comunidade em geral -, o ser humano como um ser em aberto, de
variadas faces, de múltiplas possibilidades. E nesse sentido, com toda certeza, o estudo
intertextual do Axíoco, baseado na tradução do diálogo, a partir do texto original grego,
15
de inegável importância acadêmica, não deixa de ser também oportuno, nestes tempos
de perplexidade pós-moderna, em meio às assimetrias de sempre.
16
2. UM ENFOQUE PRAGMÁTICO
Um estudo da linha pragmática de análise do discurso se dá pelo entendimento
da linguagem como uma ação, um ato, ocorrendo em determinado contexto, que deve
ser delimitado e definido de acordo com a produção do conteúdo discursivo a ser
analisado. No caso, sobretudo, do estudo de obras da Antiguidade, em que o
conhecimento atual dos estudiosos se distancia muito do vivo cotidiano de produção do
discurso do homem antigo, o contexto literário das obras supérstites, mesmo que
modificado por copistas posteriores12, é um material de estudo concreto, aberto para ser
investigado em toda a sua significância, beleza estética e problemas textuais. Entende-
se, então, contexto literário13 como o contexto interno da obra literária, que é onde as
personagens atuam e interagem em um mundo fictício, produzindo, elas mesmas, seus
próprios discursos, graças à lógica estabelecida na existência estética desse ambiente.
Contudo, esse contexto literário, mesmo que filtrado pela estética da arte, que o
modifica de acordo com o gênero em que se insere, reflete de alguma maneira um
contexto pertencente a um âmbito específico do homem antigo, que legitima e justifica a
própria existência de certo fenômeno literário em meio à ebulição de ideias que emanam
de seu cotidiano. A esse ambiente externo, composto por homens reais que interagem
nas conversas do dia a dia, produzindo discursos em seus turnos dialógicos, dá-se o
nome de contexto de enunciação, uma vez que ele é responsável por todos os
enunciados produzidos por um enunciador. Tais enunciados se inserem numa ampla
gama de manifestações, desde a simples expressão de dor, por meio de uma interjeição,
e que faz parte da própria natureza humana, independentemente do modo como a língua
a expressa ou do tempo em que é produzida (o homem gritava de dor no passado assim
como alguém grita hoje), a uma complexa construção frasal, dependente de um contexto
de enunciação repleto de significados e ideias que escapam ao estudioso moderno. Esse
último aspecto é muito difícil de compreender no tocante à Antiguidade, porque, como
foi ressaltado, tal contexto de enunciação não sobrevive nos dias atuais, sendo apenas
refletido em obras deixadas para a humanidade, particularmente no caso dos estudos
literários.
12 Não há textos autógrafos de autores que compuseram obras na Antiguidade Clássica. A maioria dos códices, de onde se extrai as edições críticas, feitas pelos estudiosos, pertence à Idade Média. 13 A semiótica prefere a denominação “realidade ficcional”.
17
O enunciado produzido por um indivíduo depende de um contexto (o de
enunciação ou literário, onde atuam as personagens). Dessa maneira, fica assentado,
então, que tal homem é um enunciador, e, tendo tal função, ele precisa de um receptor
para o seu discurso. Na pragmática, esse receptor é entendido como um coenunciador,
terminologia condizente com a participação mútua dos agentes. Se o enunciado do
enunciador é destinado a um receptor, que assume o papel de coenunciador, isso
significa dizer que o receptor de certo discurso (enunciação, ato de fala ou linguagem) é
também autor do conteúdo que lhe foi transmitido, uma vez que o discurso construído
só é composto com o objetivo de ser compreendido por outrem.
Na vida real, os falantes interagem, cooperando num processo de alternância de
turnos conversacionais, assumindo os papéis de enunciador e coenunciador, dependendo
do andamento da produção do discurso e da função de cada um deles no contexto em
que estão inseridos14. Na obra literária, mais precisamente no contexto literário
estabelecido, o autor, de maneira lógica, cria personagens que vivem, em um mundo
fictício, as relações entre enunciadores e coenunciadores atuando no mundo real.
Contudo, fora do contexto literário, inserida no contexto de enunciação, a obra literária,
em suas partes constitutivas, e mesmo como um todo, é um tipo de discurso, de
enunciado, que tem como destinatário um receptor específico, um coenunciador,
também ele autor, de certa maneira, do texto em questão. Ao ler ou ouvir uma obra
literária, o receptor (coenunciador) se sentirá contemplado ali, vendo surgir no texto as
respostas aos seus anseios. A própria língua utilizada, o gênero literário empregado, a
estrutura das frases construídas, as ideias elaboradas, tudo isso se apresenta em função
da necessidade de se estabelecer um canal de comunicação entre a obra construída e o
seu receptor. Entendida como um todo discursivo, a totalidade da obra, com sua
mensagem aos destinatários, se apresenta como um mega ato de linguagem, ou seja, um
conjunto de ações que tem por fim expressar uma só mensagem, que, pelo seu valor
14 Nesse sentido, o autor da tese considera perfeitamente viável a associação entre análise do discurso e análise conversacional, posto que associadas à luz da Pragmática. Com efeito, considerando que a interação verbal entre os coagentes se dá por turnos dialógicos, a análise conversacional pode se mostrar um recurso bastante útil para o estudo, tanto do contexto da obra literária, quanto do seu ambiente externo. Como exemplos bem sucedidos de associação entre análise do discurso e análise conversacional, na área dos estudos clássicos, podem-se citar aqui duas teses recentes: Uma conversa com as fábulas de Fedro, de Luciana Antônia Ferreira Marinho (2016), e Um estudo das partículas gregas na tessitura argumentativa do diálogo Filebo, de Simone de Oliveira Gonçalves Bondarczuk (2017), orientadas, respectivamente, pelos Professores Doutores Ana Thereza Basílio Vieira e Auto Lyra Teixeira, integrantes do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
18
indelével, garante, sobretudo, o seu lugar, se for o caso, entre as obras imortais da
humanidade.
Tais são os conceitos da pragmática que se espera encontrar nesse estudo. Mas
como isso será feito? Primeiramente, deve-se dizer que a investigação a ser processada
nos próximos capítulos se colocará diante de contextos literários específicos que, como
foi salientado, refletem, em sua estética própria, determinados contextos de enunciação
hipotéticos, trazidos à luz graças às próprias obras literárias e a determinadas ciências,
tais como a história, a arqueologia, a sociologia, a antropologia etc. O estudo a ser
realizado no próximo capítulo, por exemplo, se utiliza do contexto literário dos poemas
abordados para elucidar a maneira como o homem homérico pensava no tempo de sua
criação, levando em consideração os diferentes contextos de sua enunciação.
O estudo intertextual do Axíoco, focado na preparação para a morte, como ela
aparece em cada um dos textos abordados, abraça, por consequência, o enfoque
pragmático, privilegiando a relação entre as obras em seus diversos contextos literários.
Com esse objetivo, o estudo seleciona determinados excertos-chave, essenciais para a
leitura, a compreensão e a interpretação do Axíoco, inserido no corpus platonicum, e os
textos a ele aqui associados.
19
3. MORTE E PÓS-MORTE ANTES DE PLATÃO 3.1 Homero
A preparação para a morte é um tema recorrente na filosofia platônica. A
abordagem dessa temática requer a compreensão de como, ao longo de sua história, os
antigos helenos entendiam a vida, a morte e o pós-morte. Buscando um fio de Ariadne
que facilite esse entendimento, deve-se atentar para os caminhos percorridos pela
palavra psykhé, considerada por estudiosos da cultura helênica como um termo
fundamental, desde os poemas de Homero, para a compreensão dos estágios (início,
meio e fim) da vida, como o homem grego a concebia. Assim sendo, no caso deste
trabalho, especificamente, tem-se de trilhar, ainda que brevemente, alguns percursos da
ideia de alma em Homero, e da própria psykhé, assim como as relações da psykhé com o
corpo (sôma), pois a compreensão de tais conceitos é o ponto de partida para se
entender a visão platônica da vida e do pós-morte.
De acordo com Snell (2009, p. 8), a psykhé, em Homero, só é a alma enquanto
anima15 o homem, enquanto o mantém vivo, ou seja, ela é a vida, o sopro16 de vida que
deixa o corpo do homem no momento de sua morte. Quando um homem morre, na
visão de Homero, a psykhé vai para o Hades, o mundo dos mortos na cultura grega; e
seu corpo (sôma) jaz inerte, por estar desprovido desse elemento vital. Homero limita-se
a usar a palavra psykhé somente nas passagens em que ela está para deixar o corpo, não
nos dando, dessa forma, nenhum dado sobre o comportamento da mesma no corpo
vivente; desse modo, não se pode relacioná-la indiscutivelmente a alguma função
intelectual ou emocional, e, sendo ela impessoal (apenas o sopro de vida), não possui
ainda os valores pessoais de caracterização individual de cada homem, apesar de cada
herói homérico ter sua própria psykhé, a qual, após a morte, vaga no Hades,
aparentemente desprovida de consciência. Nesse sentido, não há ainda em Homero o
significado de psykhé como alma, a parte mais nobre e importante do ser humano, e
muito menos a presença da definição platônica da alma como sede do conhecimento.
Buscar isso em Homero seria incorrer em anacronismos. Mesmo que se tente e que se
possa perceber, em algumas passagens da Ilíada e da Odisseia, uma espécie de
consciência para as psykhaí que se encontram no Hades, ou seja, fora do corpo, e por
isso, desprovidas de sua função específica nesse corpo, elas, pelo próprio fato da
15 A anima do latim. 16 É importante frisar que a palavra ψυχή se apresenta como onomatopaica, indicando o próprio sopro pelo som “ps” da letra ψ.
20
polêmica surgida entre os estudiosos, são sem dúvida muito menos que um traço
individualizante, apresentando-se, na verdade, como um eídolon (imagem, aparição,
simulacro) de caráter um tanto selvagem, e não propriamente como o elemento que
representa a continuidade de um ser após a morte e a permanência de sua identidade em
um plano além. É como se a pyskhé, ao se desprender do corpo, perdesse a sua função
fisiológica, portando-se, em outro plano existencial e sobrenatural, como mero espectro
da imagem do homem em vida.
Dessa forma, o sentido de alma frequentemente atribuído ao termo psykhé nos
dias de hoje e que passou a vigorar já desde o período Clássico não poderia jamais ser
atribuído à psykhé homérica. Não é possível encontrar em Homero uma só palavra que
nos reporte à noção intelectual de alma vigente nos dias de hoje, visto que o
entendimento que se tinha de vida, morte e pós-morte, naquele tempo, não compreendia
a multiplicidade de elementos que a palavra psykhé pôde comportar posteriormente.
É importante salientar que Homero é de um tempo anterior ao nascimento do
pensamento filosófico e científico, que surgiu na parte oriental da Grécia apenas no
século VI a. C., na Jônia, mais precisamente na cidade de Mileto. Isso significa dizer
que a construção de seu pensamento se faz na idealização de um discurso que se baseia
no pensamento mítico, e, assim sendo, os termos gregos que utiliza se encontram
esvaziados em seus campos semânticos dos significados possíveis apenas a partir do
nascimento da filosofia. Isso explica o fato de a palavra psykhé em Homero não
expressar ainda os sentidos que, posteriormente, irá agregar na ampliação de seu campo
semântico.
Para se compreender a evolução do campo semântico da palavra psykhé em sua
pluralidade de significados, é importante ressaltar que, paralelamente a cada significado,
encontra-se um contexto de enunciação específico, registrado em contexto literário; esse
contexto de enunciação justifica, no tempo e no espaço, um dado conceito por meio de
verdadeiros atos de linguagem, compreendidos pelo receptor simplesmente porque
fazem parte e acontecem dentro de seu cotidiano.
Como será visto no próximo tópico, a antiga religião denominada orfismo, cujas
fontes de que se dispõe são posteriores ao estabelecimento dos poemas homéricos, vai
apresentar elementos a respeito da psykhé que serão ampliados e desenvolvidos na
filosofia dos chamados filósofos pré-socráticos e de Platão. No entanto, posto que os
registros literários dos poemas homéricos antecedem os escritos órficos disponíveis, não
21
se pode deixar de examinar, inicialmente, a visão homérica da psykhé, mais
precisamente na Ilíada, obra fundadora da literatura grega.
No dicionário de Bailly, que sempre remete o pesquisador aos sentidos
primordiais em literatura presentes nos poemas homéricos, o primeiro significado que
aparece no extenso campo semântico da palavra psykhé é sopro. Logo em seguida, tem-
se a especificação sopro de vida, como uma extensão do primeiro significado. Esse
sopro de vida se desmembra em vários significados que ocupam a maior parte do
verbete. O primeiro é alma, como princípio da vida, e os exemplos relacionados à Ilíada
e à Odisseia são variados. A partir do sentido de alma, o dicionário arrola os seguintes
significados: vida, falando de pessoas; um vivente, uma pessoa; ser querido (em um
tratamento afetivo). Apenas posteriormente, o termo psykhé apresenta os sentidos de
alma em oposição ao corpo e de alma como sede dos sentimentos, das paixões, os
quais, por ora, não serão abordados. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que a
psykhé, em seu sentido de anima, não corresponde, no contexto literário construído por
Homero, a ideias que se relacionem a uma maneira de ser ou de agir.
Para abordar a psykhé em Homero, talvez não seja suficiente, assim, se deter
apenas no termo em questão, mas sim na ideia que Homero, ou um homem de seu
tempo, poderia fazer do conceito de alma. Para tal, é necessário tentar resgatar a própria
maneira arcaica (ou mesmo pré-arcaica) de pensar, que pode ser depreendida com base
na análise das epopeias homéricas.
Pode-se perceber em Homero uma tendência analítica de percepção do mundo,
que fica bem evidenciada no modo como a própria figura do ser humano era
representada pictoricamente17. Diferentemente da representação contida nos vasos
gregos do período clássico, que trazem desenhos de homens concebidos com seus
corpos preenchidos com músculos interligados, a concepção arcaica apresenta um
homem no qual os braços, a cabeça e as pernas são como que encaixados em um tronco.
Tal evidência mostra o quanto um homem arcaico vislumbrava o ser humano
analiticamente (e não como um todo inteiriço), com cada uma de suas partes
representando uma função específica. Esse modo de pensar se mostra em construções
provenientes dos mais diferentes âmbitos desse período.
O guerreiro micênico, no contexto idealizado dos poemas homéricos, apresenta-
se extremamente individualista, lutando pelo seu nome em prol da manutenção de sua
17 Cf. Snell, 2009.
22
glória individual, o que é bem diferente da revolução bélica decorrente do surgimento
das técnicas hoplíticas. Vernant expressa de maneira bem clara tal característica:
O herói homérico, o bom condutor de carros, podia ainda sobreviver na pessoa do hippeús (o cavaleiro); ele já não tem muita coisa em comum com o hoplita, esse soldado-cidadão. O que contava para o herói homérico era a façanha individual, a proeza feita em combate singular. Na batalha, mosaico de duelos em que se enfrentam os prómakhoi [combatentes das primeiras filas], o valor militar afirmava-se sob a forma de uma aristeía [valentia], de uma superioridade toda pessoal. A audácia, que permitia ao guerreiro executar aquelas ações brilhantes, ele a encontrava numa espécie de exaltação, de furor belicoso, a lýssa, onde o lançava, como fora de si mesmo, o ménos, o ardor inspirado por um deus. O hoplita, no entanto, já não conhece o combate singular; ele deve recusar, se lhe é oferecida, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta ombro a ombro, pois ele foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, enfim, cuidar, em plena peleja, de não deixar seu posto. (VERNANT, 2000, p. 50-1).
Profundo conhecedor dos conceitos gregos associados ao contexto literário
desenvolvido nos poemas homéricos, Vernant evidencia o caráter analítico,
individualista, do guerreiro micênico, envolto em valores que enfatizam a glória
pessoal. Ao final deste tópico, voltar-se-á à figura do hoplita, para se compreender a
transição dos valores homéricos ao novo modo de pensar do homem grego em seu
horizonte arcaico.
No contexto dos poemas homéricos, chama a atenção, por exemplo, a
quantidade de verbos que expressam o ato de ver; tal variedade é compreensível, posto
que cada um desses verbos expressa uma função específica e diferenciada, como se o
autor não conseguisse conceber mais de uma função para cada maneira de ver18. Outra
característica marcante no registro literário dos cantos do aedo é a sintaxe homérica,
com a predominância da parataxe, em oposição à subordinação, independentemente de a
língua grega ser, predominantemente, sintética, o que mostra o quanto o conjunto de
ações era resolvido separadamente em cada ato. O exemplo que se segue evidencia a
utilização da coordenação, na Ilíada. Trata-se de uma passagem decisiva, assinalando o
início das ações que levaram o herói Pátroclo à morte. Em uma tradução bem literal,
evidencia-se a presença da parataxe, em meio às orações coordenadas:
στῆ δ᾽ ὄπιθεν, πλῆξεν δὲ μετάφρενον εὐρέε τ᾽ ὤμω χειρὶ καταπρηνεῖ, στρεφεδίνηθεν δέ οἱ ὄσσε. τοῦ δ᾽ ἀπὸ μὲν κρατὸς κυνέην βάλε Φοῖβος Ἀπόλλων: ἣ δὲ κυλινδομένη καναχὴν ἔχε ποσσὶν ὑφ᾽ ἵππων 795αὐλῶπις τρυφάλεια, μιάνθησαν δὲ ἔθειραι αἵματι καὶ κονίῃσι: πάρος γε μὲν οὐ θέμις ἦεν ἱππόκομον πήληκα μιαίνεσθαι κονίῃσιν,
18 Para maiores detalhes ver Snell, 2009.
23
ἀλλ᾽ ἀνδρὸς θείοιο κάρη χαρίεν τε μέτωπον ῥύετ᾽ Ἀχιλλῆος: Febo Apolo veio por trás e lhe bateu nas costas, nos ombros largos, com a palma da mão, e os olhos de Pátroclo rodopiaram. E o deus lançou longe o elmo de pele de cão; e rolou o elmo, sob os cascos, ruidosamente, e cristas de sangue e poeira o mancharam; e até então, isso não ocorrera, certamente, ao elmo de crina de cavalo coberto de pó, mas ele protegia, poderoso, a cabeça, e, com a viseira, o semblante de um homem divino, como ele só: Aquiles. (HOMERO, Ilíada, XVI, 791-9, tradução nossa).
A repetição de conjunções ou partículas coordenativas, como utilizadas na
narrativa acima, certamente seria evitada por um autor posterior, levando-se em conta as
mudanças de aspecto percebidas nos verbos empregados por Homero. Seria esperado,
pelo menos em algum momento, o uso de uma oração subordinada reduzida de
particípio, ou mesmo desenvolvida, com conjunções causais ou temporais. Não é isso o
que ocorre na passagem em pauta, desenvolvendo-se cada ato por si só, separadamente.
O exemplo acima é característico de uma maneira analítica de pensar19; essa
visão analítica também está associada, nos poemas de Homero, às ideias de alma e de
corpo; tanto isso é verdade que, simplesmente, aí não se encontra uma palavra unitária
para designar a alma e o corpo. Uma vez que as funções relativas a essas ideias são
variadas, necessita-se de diversas palavras portadoras de conceitos e funções, para se
apreender o todo.
Geralmente, traduz-se a palavra psykhé por alma, nos poemas homéricos, mas,
como se pôde perceber na argumentação desenvolvida até aqui, o termo faria referência
apenas a uma das partes daquilo que se entenderia por alma na época da composição
dos poemas. Homero se utilizava de algumas palavras para expressar, à sua maneira
pré-filosófica, conceitos ligados a sentidos motivacionais sobre o desejo do homem
grego de realizar uma ação, tais como θυμός, νοῦς, φρήν (daqui em diante, thymós, noûs
e phrén, respectivamente). Tais conceitos, juntamente com psykhé, parecem formar,
analiticamente, o sentido do que seria a alma em Homero, pois a palavra psykhé, em sua
acepção não intelectual e emocional, era utilizada apenas para designar, reitera-se, o
sopro de vida, complementando-se o conceito de alma por meio dos outros termos
supracitados. É interessante discorrer sobre tais conceitos, porque eles expressam, na
obra de Homero, certas características, mais tarde perceptíveis no termo psykhé. 19 Embora, em geral, a língua grega seja sintética, o estilo de Homero é extremamente analítico se comparado com autores de outros períodos.
24
O thymós era sempre associado às emoções; tanto era considerado o órgão físico
dos sentimentos, como o próprio sentimento em si mesmo. Sendo de dificílima tradução
em português, pelo fato de não haver uma só palavra que abarque a totalidade dos
sentidos que o termo agrega, thymós pode significar, dependendo do contexto, coração,
vida, vergonha, alma, razão, perturbação, raiva, desejo, conhecimento imediato etc. É
o fluxo de sangue quente e da força vital, e daí elemento emotivo responsável pela
excitação, pela coragem ou pelo desejo, entre outras afecções. O thymós, assim como a
psykhé, também escapa pela boca e pelo ferimento, no momento da morte de um
guerreiro, o que pode ser percebido no seguinte excerto, aparecendo o termo duas vezes,
numa narrativa destacando a morte de determinados guerreiros:
ἔνθ᾽ Ἀμαρυγκείδην Διώρεα μοῖρα πέδησε: χερμαδίῳ γὰρ βλῆτο παρὰ σφυρὸν ὀκριόεντι κνήμην δεξιτερήν: βάλε δὲ Θρῃκῶν ἀγὸς ἀνδρῶν Πείρως Ἰμβρασίδης ὃς ἄρ᾽ Αἰνόθεν εἰληλούθει. ἀμφοτέρω δὲ τένοντε καὶ ὀστέα λᾶας ἀναιδὴς ἄχρις ἀπηλοίησεν: ὃ δ᾽ ὕπτιος ἐν κονίῃσι κάππεσεν ἄμφω χεῖρε φίλοις ἑτάροισι πετάσσας θυμὸν ἀποπνείων: ὃ δ᾽ ἐπέδραμεν ὅς ῥ᾽ ἔβαλέν περ Πείροος, οὖτα δὲ δουρὶ παρ᾽ ὀμφαλόν: ἐκ δ᾽ ἄρα πᾶσαι χύντο χαμαὶ χολάδες, τὸν δὲ σκότος ὄσσε κάλυψε. τὸν δὲ Θόας Αἰτωλὸς ἀπεσσύμενον βάλε δουρὶ στέρνον ὑπὲρ μαζοῖο, πάγη δ᾽ ἐν πνεύμονι χαλκός: ἀγχίμολον δέ οἱ ἦλθε Θόας, ἐκ δ᾽ ὄβριμον ἔγχος ἐσπάσατο στέρνοιο, ἐρύσσατο δὲ ξίφος ὀξύ, τῷ ὅ γε γαστέρα τύψε μέσην, ἐκ δ᾽ αἴνυτο θυμόν. Ali, o destino, a Dioreu, filho de Amaríncio, subjugou, pois ele deixou que lhe acertassem, com uma pedra, o tornozelo da perna direita; o chefe dos trácios a atirou, Peiroo, filho de Imbraso, de Eno recém-chegado. Aos tendões e aos ossos a pedra estraçalhou e ele caiu de costas no pó, após erguer as mãos aos companheiros, exalando o thymós; e Peiroo o feriu com a lança, no lado do umbigo; e então, todo o intestino derramou-se por terra, e a Dioreu cobriram os dois olhos as trevas. Aí, Toante, da Etólia, lançou uma lança, quando Peiroo se afastava, acima do mamilo, e o bronze penetrou o pulmão; e Toante se aproximou, e retirou a lança vigorosa do peito de Peiroo, e puxou a espada, feriu o meio do estômago, e retirou-lhe o thymós. (HOMERO, Iíada, IV, vv. 517-31).
Em meio a orações coordenadas, marcadas pelo estilo analítico, pode-se notar
que, no verso 524, o termo thymós (na forma de acusativo - thymón) aparece
25
complementando o verbo apopneîn (exalar, soprar para fora, em sua forma nominativa
de particípio presente ativo), o que evidencia a relação desse conceito com a psykhé, a
qual, como mencionado anteriormente, exprime etimologicamente, e de maneira
onomatopaica, a ideia de sopro. Na segunda ocorrência, ao final do verso 531, o termo
thymós (mais uma vez, na forma de acusativo) está associado à preposição ek, em uma
timese que se evidencia por meio do verbo depoente aínymai (tomar, em sua forma de
imperfeito).
Por sua vez, Snell (2009, pg. 9) afirma que, assim como thymós, noûs significa
espírito, sendo thymós o que provoca as emoções, e noûs, o que faz surgir as imagens.
Pode-se, portanto, entender o noûs como intelecto, capacidade de pensar. No entanto,
da mesma maneira que os demais termos usados para expressar a noção de espírito, na
obra de Homero, noûs pode ser traduzido de diversas maneiras, dependendo de sua
utilização no contexto literário da narrativa épica. Mas embora o noûs e o thymós sejam
usados para expressar ações do espírito, o noûs, de acordo com Reale (2002, pg. 7),
nunca é associado ao sentimento, mas antiteticamente em relação a ele, salvo casos
excepcionais.
Já a palavra phrén pode, algumas vezes, ser entendida como um órgão físico que
está situado no peito e bem perto do coração. É assim que Homero a utiliza (no plural,
phrénes), na seguinte passagem: “Πάτροκλος: τοῦ δ' οὐχ ἅλιον βέλος ἔκφυγε χειρός,
ἀλλ' ἔβαλ' ἔνθ' ἄρα τε φρένες ἔρχαται ἀμφ' ἁδινὸν κῆρ.” / “A mão de Pátroclo não
arremessou a lança em vão, mas lançou-a onde as phrénes circundam o musculoso
coração.” (HOMERO, Ilíada, XI, vv. 480-481).
Em outras passagens, o termo phrén expressa um sentimento, mas, na maioria
das vezes, indica o que se relaciona com a mente, o entendimento, como se pode
perceber no momento em que Pátroclo se dirige a Heitor: ἄλλο δέ τοι ἐρέω, σὺ δʼ ἐνὶ
φρεσὶ βάλλεο σῇσιν· / Outra coisa, porém, quero te dizer, e tu, guarda-a bem no teu
peito (nas phrénes):....” (Ilíada XVI, 851). É importante destacar aqui uma construção
sintática, recorrente no estilo formular de Homero: a utilização da preposição ἐνὶ20
regendo a forma de dativo plural de phrén (phresí). Essa expressão, formada pela
preposição mais o dativo, desempenha a função sintática de adjunto adverbial de lugar
“onde” por excelência na língua grega, evidenciando bem o quanto o conceito de phrén
pode ser usado, no âmbito humano, para expressar uma interioridade relativa a uma
20 Forma jônica equivalente ao ático ἐν. Cf. Bailly.
26
compreensão íntima e importante para os dois participantes do contexto literário: um
conselho importante da parte de um emissor (conselheiro) e uma mensagem valiosa a
ser compreendida por um receptor (aconselhado). Tal relação é bem enfatizada no uso
da forma verbal βάλλεο (imperativo presente médio, segunda pessoa do singular do
verbo βάλλω), que determina todo o ato de linguagem, possibilitando a utilização do
adjunto adverbial na interação íntima entre os dois personagens.
Após a discussão dos termos que se relacionam ao intelecto e às emoções, é necessário acrescentar ainda algumas informações importantes sobre a palavra psykhé. A primeira ocorrência dessa palavra, em Homero, está registrada logo no começo da Ilíada:
Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος οὐλομένην, ἣ μυρί' Ἀχαιοῖς ἄλγε' ἔθηκε, πολλὰς δ' ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν A ira canta, deusa, do filho de Peleu, Aquiles, ira funesta, que dores sem conta trouxe aos Aqueus, e muitas vidas de heróis lançou no Hades, ficando, eles mesmos, atirados aos cães e às aves de rapina. (HOMERO, Ilíada, I, vv. 1-4, tradução nossa)
Gual (2004, p. 47) destaca que a palavra psykhaí, em negrito no terceiro verso,
frequentemente traduzida por almas, refere-se às vidas dos heróis, não tendo, de forma
alguma, no contexto em questão, toda a carga semântica que a palavra alma
tradicionalmente virá a ter. De fato, muitos tradutores optam por traduzir o mesmo
termo por vidas, como o autor da presente tese. Gual ressalta ainda que a palavra
psykhaí estabelece uma oposição com αὐτούς (eles mesmos), ou seja, as almas/vidas são
lançadas no Hades, e os corpos, a parte mais importante (“eles mesmos”), atirados aos
cães e às aves de rapina.
Em outras passagens, pode-se encontrar a psykhé escapando do corpo, pela
ferida ou pela boca, Homero (Ilíada, XVI, 855-858):
“A estas palavras, envolveu-o o termo da morte.
A psyché evola-se dos membros para o Hades,
Ao deixar a força da juventude, gemendo a sua sorte.”
O sentido de psykhé como vida ou sopro de vida em Homero fica evidente nas
duas passagens acima. De fato, a palavra adquiriu, ao longo da Antiguidade grega, uma
série de significados; um dos mais antigos foi o de borboleta, evidentemente associado
27
ao sopro sugerido pela enunciação do verbo psýkhein (soprar); e é voando que a psykhé
deixa o corpo pela boca ou pela ferida do guerreiro, dirigindo-se então para o Hades.
Reale (2002, p. 70-74) destaca que ali, no Hades, a psykhé passa a existir apenas
como um espectro do defunto, e, portanto, sem capacidade de sentir, de querer e de
conhecer, ou seja, desprovida de consciência. O mesmo autor ressalta ainda que, dentre
as passagens onde a psykhé retém uma consciência, apenas três podem, efetivamente,
ser consideradas significativas: Ilíada, XXIII, vv. 57-107, Odisseia, XI, vv. 90-99 e
Odisseia, XI, vv. 204-224.
No primeiro excerto, no canto XXIII da Ilíada, a psykhé de Pátroclo vem até
Aquiles enquanto este dormia na beira da praia e lhe pede para sepultar o seu corpo,
pois as psykhaí habitantes do Hades não permitem a entrada dos que na terra ainda têm
seus corpos insepultos. O próprio Pátroclo adverte a Aquiles que sua presença ali só é
possível enquanto o seu corpo não for cremado, ou seja, a sua psykhé está dotada de
consciência porque ainda não se desligou totalmente do corpo; esse desligamento só se
consumará mais adiante, com os rituais fúnebres (Ilíada, XXIII).21 No entanto, fica
evidente que apenas o espectro de Pátroclo aparece a Aquiles, pois este tenta abraçá-lo,
mas a imagem do companheiro se esvai como fumaça.
No segundo excerto (Odisseia XI, 90-99), Odisseu encontra-se no Hades,
buscando saber de Tirésias, quando enfim regressará ao lar. O adivinho pede ao senhor
de Ítaca que o deixe beber do sangue dos animais cujos corpos foram depositados pelo
herói num fosso cavado na terra, pois, ainda que os deuses tivessem concedido a ele,
Tirésias, algum conhecimento excepcional, mesmo estando ali, no Hades, só ao beber
do sangue ele efetivamente poderia proferir uma profecia.
No terceiro excerto (Odisseia, XI, 204-224), Odisseu conversa com sua mãe,
Anticleia. Após beber do sangue dos animais sacrificados, Anticleia, quando o filho
quer saber por que ela se esquiva de seus abraços, responde que a psykhé se assemelha a
uma sombra dos sonhos, pois, tão logo o thymós abandona o corpo, o fogo o consome
inexoravelmente.
Assim sendo, pode-se supor que, salvo nos casos de um corpo continuar
insepulto, como na passagem em que Pátroclo aparece a Aquiles, nos casos de a psykhé
21 Poder-se-ia afirmar que a dualidade alma/corpo se evidencia na própria homenagem feita ao herói, Pátroclo, ao longo de quase todo o canto XXIII. Primeiro, tem-se o tratamento dado ao corpo, com as homenagens associadas à cremação; depois, a realização dos jogos fúnebres, com a representação terrena da ação heroica, recuperando-se assim, como uma lembrança perene, o homem, apenas existente com a união entre corpo e alma.
28
ingerir sangue, como o fizeram Tirésias e Anticleia, e nos casos de os deuses
concederem uma consciência, a psykhé vaga a esmo no Hades, aparecendo como um
“não ser”, ou seja, um espectro sem consciência. Dessa forma, pode-se perceber que a
ideia de continuidade da vida após a morte não é algo presente no mundo homérico: a
psykhé que vai habitar no Hades não passa de um “não-ser-mais-do-eu” ou um “eu-que-
não-é-mais”, para se expressar nos termos de Reale (2002, p. 74).
Chega-se a essa conclusão, seguindo os três exemplos aqui citados, propostos
por Reale. É evidente que o assunto é extremamente complexo e amplo, de sorte que as
opiniões dos especialistas podem variar e até mesmo divergir, o que torna ainda mais
animador o estudo empreendido nesta tese, devido às várias possibilidades de leitura.
Tão difícil quanto resgatar os conceitos homéricos, em meio ao pensar ainda
analítico que emana tanto da Ilíada quanto da Odisseia, é apontar as mudanças sociais,
filosóficas, religiosas e históricas que geraram as diferenciações pós-homéricas,
frisando-se aqui que a diferença nada mais é do que uma evolução lógica desenvolvida
das maneiras anteriores de se entender o mundo. É assim que a mudança deve ser
compreendida, mesmo nos estudos a respeito das culturas da Antiguidade, nas quais,
muitas vezes, os dados não são comprovados, dispondo-se apenas de hipóteses.
Como considerado neste tópico, não havia ainda em Homero os conceitos
unitários de alma e corpo para os termos psykhé e sôma. A psykhé era entendida apenas
como uma parte da alma, juntamente com o thymós, o noûs e o phrén, não havendo,
portanto, no pensamento analítico do maior dos aedos, um termo único para designar a
alma, e nem o conceito de corpo para o ser humano vivente, uma vez que, no contexto
literário homérico, a palavra sôma, que mais tarde designará tal corpo, significava
apenas o corpo de um indivíduo morto, ou seja, um cadáver. Esse modo de pensar
analítico, perceptível até na predominância da parataxe no texto homérico, como foi
mencionado, dará lugar, conforme a sociedade grega vai se desenvolvendo, a uma nova
maneira de compreender o mundo. Desse modo, passa-se agora a apontar alguns fatores
que parecem esclarecer tais mudanças.
Já no século VIII a. C., o surgimento de uma nova classe social nas comunidades
gregas, enriquecida com as atividades mercantis decorrentes do desenvolvimento do
comércio e das técnicas marítimas, foi determinante para o próprio advento de um
alfabeto adaptado à língua grega e aos interesses do povo helênico; posteriormente, esse
alfabeto serviria a toda cultura grega dos séculos subsequentes, chegando até mesmo a
ser utilizado por autores gregos pós-clássicos pelo motivo de o idioma grego ter se
29
tornado tão importante culturalmente22. Essa nova classe social de indivíduos ricos,
inserida entre esses comerciantes marítimos responsáveis pelo alfabeto, foi determinante
para o aparecimento de uma nova literatura que atendesse aos seus anseios - a poesia
lírica do século VII a. C., voltada para o cotidiano do homem grego e não para o mundo
externo, mítico e distante no tempo, alicerçado na representação de heróis e deuses.
Soma-se a isso, no século seguinte, o surgimento da filosofia em Mileto, cidade
cosmopolita, culturalmente marcada por uma relativização dos mitos, levando o debate
daí decorrente à insatisfação com as respostas proporcionadas pelo pensamento mítico.
Dessa insatisfação, surge o pensamento filosófico e científico. É interessante perceber
que a poesia lírica, antes da filosofia, é a primeira manifestação intelectual artística dos
gregos que se direciona para a phýsis - ação de desenvolver de tudo que se encontra no
mundo observável, ao focalizar a vida cotidiana das comunidades helênicas, buscando,
assim como a filosofia,23 no mundo palpável dos homens, o seu próprio material
poético.
No contexto bélico, com a presença do hoplita, este soldado anônimo que
engrossa as fileiras dos combatentes defensores da pólis, apropriando-se da areté
homérica em proveito da terra de seus pais, e deixando para trás o guerreiro
individualista homérico ansioso pela glória nos campos de batalha, a classe social dos
novos ricos se sentiria representada, uma vez que ela mesma não se identificava com
uma aristocracia guerreira pautada pela ideia de reis divinos. De maneira bastante
pertinente, Vernant destaca essa nova virtude guerreira como fazendo parte da
sophrosýne, o bom-senso. 24
Além das características supracitadas, deve-se dizer ainda que as leis e a religião
também se desenvolvem em solo grego. Isso fica perceptível, até mesmo em uma
22 O alfabeto grego foi criado na Grécia como uma adaptação necessária ao idioma helênico a partir do alfabeto fenício, que, aparentemente, chegara à Hélade por intermédio de comerciantes oriundos da Palestina. Possivelmente, o contato entre nautas fenícios e gregos se deu, inicialmente, na ilha de Rodes, solo grego mais próximo do território palestino. Para maiores detalhes, ver HORTA, Guida Nedda Barata Parreiras. Os gregos e seu idioma. 23 Referindo-se à concepção de psykhé dos chamados filósofos naturalistas, afirma Santos (1999, p. 32) que, excetuando-se pensadores como Empédocles e Pitágoras, que adotaram ideias órficas, de modo geral, “Eles identificavam logicamente a alma com aquele princípio que dá vida e movimento ao corpo, que é parte e momento do princípio supremo do cosmo. Nesta indagação eminentemente cosmológica, tais filósofos entendiam, portanto, a psykhé como a força vital que move o mundo e move tudo o que, sem ela, seria necessariamente algo rígido e imóvel. O homem, como tal, em sua subjetividade, não é objeto ainda de uma pesquisa autônoma, mas apenas uma parte ou elemento da natureza. Assim compreende-se por que a tenham identificado com a água (Tales de Mileto), com o ar (Anaxímenes) e com o fogo (Heráclito)”. 24 Cf. Vernant (2000, p. 51).
30
comparação entre a Ilíada e a Odisseia25, comparação perfeitamente plausível, uma vez
que a maioria dos estudiosos defende a tese de que a Odisseia seria pelo menos
cinquenta anos posterior à Ilíada (alguns chegam mesmo a falar de cem anos)26. E
independentemente de o conceito de psykhé ser analítico, tanto na Ilíada quanto na
Odisseia, deve-se frisar que a segunda epopeia já reflete muito da nova classe social em
ascensão27.
O contexto literário do mundo centrado no oîkos, característico da Odisseia,
descreve um cotidiano mais organizado que o apresentado na cidade de Troia, na Ilíada.
A grande propriedade inclui simples casas rústicas à volta da casa do senhor e da
senhora, onde se desenvolvem as atividades rurais e pastoris. O homem comum (kakós,
em oposição ao agathós), tão pouco distinguido na Ilíada, já dispõe de um espaço
significativo na Odisseia. O porqueiro Eumeu e o boieiro Filétio, por exemplo, como
fiéis escravos de Odisseu, enfrentam os pretendentes ao lado do herói, portando-se
como nobres guerreiros. Assim sendo, já se antevê, nesse poema de nóstos, a ascensão
da nova classe social que se contrapõe à aristocracia. O excerto que se segue, em que
Odisseu se dirige aos dois criados, ilustra claramente esse aspecto:
εἴ χ᾽ ὑπ᾽ ἐμοί γε θεὸς δαμάσῃ μνηστῆρας ἀγαυούς, ἄξομαι ἀμφοτέροις ἀλόχους καὶ κτήματ᾽ ὀπάσσω οἰκία τ᾽ ἐγγὺς ἐμεῖο τετυγμένα: καί μοι ἔπειτα Τηλεμάχου ἑτάρω τε κασιγνήτω τε ἔσεσθον. Se, por mim, um deus matar os nobres pretendentes, levarei, para ambos, esposas, e riquezas vos darei, e uma casa, perto de mim; e, então, aqui presentes, companheiros e irmãos de Telêmaco sereis. (HOMERO, Odisseia, XXI, vv. 214-216, tradução nossa).
Esse ambiente predominantemente agrário caracteriza-se por um espaço muito
mais organizado do que na Ilíada, em termos sociais e religiosos. Diferentemente da
epopeia guerreira, a Odisseia apresenta regras mais claras, como, por exemplo, o direito
dos suplicantes; por outro lado, são mais raras as intervenções divinas na vida cotidiana
dos homens. O mundo dos deuses, na Ilíada, carece de uma justiça divina que dê conta
do todo (como é possível observar, por exemplo, em Ésquilo), pois os deuses tomam
25 A maior parte das ideias aqui apresentadas acerca dos poemas homéricos baseia-se em Romilly (2001). 26 Já na Antiguidade, mais precisamente no período helenístico, havia os corizontes, estudiosos que atribuíam autoria diferente para a Ilíada e para a Odisseia. A terminologia é formada do particípio presente do verbo khorízein (“separar”). 27 O próprio Odisseu, como um heleno astucioso, que muito aprende ao interagir com outros povos, é um bom representante desses novos tempos.
31
partido de uma ou de outra personagem, de acordo com seus caprichos ou graus de
parentesco28. Na Odisseia, por sua vez, esse quadro se altera um pouco. A relação entre
Odisseu e Atena é muito mais profunda e íntima do que na Ilíada, pois o elo que une o
homem e a deusa parece ser estabelecido por regras pré-determinadas, afigurando-se
mais respeitosa a própria devoção para com os deuses. Na Odisseia, os deuses não são
feridos pelos homens, como na Ilíada; e, no tocante às leis, este fenômeno que parece
estar estritamente associado ao desenvolvimento da religiosidade, a Odisseia apresenta
um mundo muito mais organizado; basta chamar a atenção para a já mencionada
presença comum do direito dos suplicantes.
Por consequência, o desenvolvimento de ações relacionadas com o aparecimento
da nova classe social em ascensão no solo grego já se faz perceptível no contexto
literário da Odisseia. No caso mais específico da religiosidade, tal desenvolvimento
pode ser evidenciado com as religiões de mistérios disseminadas na Grécia Antiga,
destacando-se o orfismo, por sua inegável influência. A importância da psykhé, agora
efetivamente entendida por inteiro como alma, pelos adeptos do orfismo, faz com que o
pesquisador se volte então para essa religião de mistérios, dialogando com os poucos
testemunhos disponíveis para a mínima compreensão do fenômeno.
3.2 Os órficos
Neste momento da odisseia pelos caminhos da alma, na antiga Hélade, é
importante embarcar mais uma vez na contação do mito de Orfeu, associando-o a
Dioniso e sugerindo sua influência sobre o culto de Deméter e Core e os ritos de
Elêusis, por sua vez, relacionados a antiquíssimos cultos agrários centrados na terra.
O santuário de Elêusis e seu complexo ritual estão associados às narrativas de
Deméter e Core, sua filha. Deméter, filha de Crono e de Reia, é uma deusa associada à
natureza com toda a sua fecundidade. Seu nome significa “mãe terra”, podendo ser
também considerada a “mãe doadora”. Responsável pela agricultura, ela é a deusa da
terra cultivada, que nutre os homens. Doando os cereais, particularmente o trigo, aos
mortais “comedores de pão”, ela assegura a passagem da nossa condição selvagem à
cultura e à civilização. Nesse sentido, Deméter personifica uma das multivariadas faces 28Enéias e Páris, por exemplo, são favorecidos por Afrodite, não por seus méritos, mas simplesmente pelo fato de o primeiro ser filho da deusa, e de o segundo a ter favorecido no episódio do pomo da discórdia, não mencionado na Ilíada. Isso é muito diferente do favor divino ou do castigo concedido ao chefe nas tragédias de Ésquilo, sobretudo em Persas e em Sete Contra Tebas.
32
da poderosa Mãe Terra, diferenciando-se não apenas de sua avó, Gaia, a terra
primordial, elemento cósmico fundamental na origem do mundo, mas também de sua
mãe, Reia, terra de natureza selvagem. A associação de Deméter com os cereais faz com
que, posteriormente, no contexto da sociedade romana, ela venha a ser identificada com
Ceres, divindade itálica da agricultura, vinculada à terra cultivada e às abundantes
searas em flor.
Deméter uniu-se a Zeus, seu irmão, e deu à luz Core (Moça). Hades, irmão de
Zeus e de Deméter, e, portanto, tio de Core, apaixonou-se pela jovem. Aproveitando o
instante em que ela colhia flores com as amigas num prado da Sicília, Hades emergiu
dos infernos num carro puxado por quatro cavalos negros, e arrebatou-a, carregando
com ela para o fundo da terra. Procurando pela filha adorada, Deméter buscou-a ao
longo de nove dias e nove noites, levando em cada mão um archote. Quando Hélio, o
sol de olho onisciente, conta-lhe do sequestro de Core por Hades, Deméter decide não
regressar ao Olimpo, e deixa de lado suas atividades divinas. Assumindo então as
feições de uma mulher idosa, a deusa caminha errante pelo mundo, até chegar a Elêusis,
onde é hospitaleiramente acolhida pelo rei Céleo e sua esposa. Deméter passa então a
desempenhar a função de ama do filho mais novo dos soberanos, Demofonte. Grata aos
anfitriões, ela procura imortalizar o pequenino, imergindo-o numa espécie de chama
purificadora. A rainha, no entanto, deixa-se levar pela inquietação, e surpreende a deusa
com o menino nas chamas; Deméter se enfurece e deixa a criança queimar,
abandonando em seguida o palácio, após ter ordenado aos eleusinos a construção de um
templo, dando-lhes todas as instruções para isso. Aí a terra se torna estéril: homens e
animais definham, as searas murcham, as águas secam... Zeus intervém então, e intima
Hades a devolver Core, agora chamada Perséfone (Senhora dos Mortos). Mas Hades,
ardilosamente, convencera a jovem a comer sementes de romã, fruta associada ao
casamento, prendendo-a irremediavelmente aos Infernos, pois aí abster-se de alimentos
era condição sine qua non para que os vivos pudessem deixar de vez o submundo.
Diante da recusa de Deméter em aceitar a ausência da filha, chegou-se enfim a uma
solução de compromisso: durante um terço do ano, Perséfone ficaria com o marido;
depois, poderia regressar à luz, passando com a mãe os outros dois terços do ciclo anual
das estações.
A narrativa mítica de Deméter e Core/Perséfone (identificada com a semente)
evoca o mistério da brotação, sugerindo, evidentemente, a alternância das estações e o
ciclo das plantações: na primavera, quando Perséfone está com a mãe, culmina a
33
brotação, com a subida da seiva das plantas; no verão, ainda em companhia da filha,
Deméter, irradiando felicidade, faz desabrochar os vegetais; em seguida, os grãos
voltam ao seio da terra, com Perséfone de novo com o marido, e o inverno encerra o
ciclo, acenando, porém, para um reinício das coisas. O mito também afirma a relação
entre o alimento, fonte de vida, e a morte: o grão morre e renasce, propiciando fartura e
riqueza. A germinação da semente, propiciando novos e abundantes rebentos, vem a
sugerir, com a possível influência das narrativas e práticas órficas, o renascimento do
homem, após a morte, com a alma, a psykhé, transmigrando através de variados corpos,
até a libertação do ciclo dos renascimentos. O ciclo da natureza é, por conseguinte, a
própria imagem do destino do homem, num constante processo de nascimento-vida-
crescimento-maturação-declínio-morte-regeneração. A iniciação nos mistérios da
vegetação, numa provável confluência órfico-eleusina, possibilitaria ao homem, ao levar
uma vida equilibrada, associada a determinadas práticas, abrir-se à ideia de morte e
ressurreição, vislumbrando a alma a oportunidade de fugir à roda das transmigrações e
alcançar, de vez, a felicidade e a vida eterna.
Posteriormente, a deusa passa a ser cultuada também em Atenas, acolhendo
homens e mulheres de qualquer condição social, mesmo os jovens, contanto que não
tivessem cometido algum crime de morte. Nas Tesmofórias29, as mulheres casadas,
campos férteis onde a semente (spérma) do esposo geraria filhos legítimos, futuros
cidadãos da pólis, celebram com júbilo os dons da mãe poderosa. E no século IV a. C.,
o culto de Deméter dissemina-se por todo o mundo helênico, principalmente às regiões
produtoras de trigo (como Sicília e Campânia, por exemplo). Posteriormente, Elêusis e
seus mistérios vieram a acolher até mesmo os escravos. Ainda segundo o mito, Deméter
teria ofertado a Triptólemo, um dos filhos de Céleo, um carro atrelado a serpentes
aladas e abarrotado de espigas de trigo, encarregando o jovem de difundir a cultura dos
cereais por todo o mundo habitado, universalizando assim os mistérios.
Os adeptos do culto eleusino eram unidos pelo juramento de manter segredo
sobre o processo de iniciação. O objetivo da iniciação era despertar no candidato as
emoções (páthe) apropriadas para a ocasião e apontar o caminho conduzindo à bem-
aventurança após a morte.
29 Festa celebrada pelas atenienses em honra de Deméter e Córe.
34
Os Mistérios de Elêusis30 desdobravam-se em duas etapas, caracterizando dois
ritos de passagem fundamentais: (1) os “pequenos mistérios”, celebrados no começo da
primavera, especialmente em honra de Perséfone, quando os adeptos se tornavam
mýstes31 (iniciados); (2) os “grandes mistérios”, celebrados no tempo da semeadura,
coincidindo com os meses de setembro e outubro. Um dia antes do início dos mistérios,
eram transportados os objetos sagrados (hierá) de Elêusis para Atenas. No primeiro dia,
o arconte-rei conclamava a multidão para a Stoà Poikíle, na ágora ateniense. Procedia-se
então a proclamação solene (prórresis32), onde os iniciados eram advertidos de que
deviam ter as mãos limpas e fala inteligível (a língua grega). No segundo dia,
denominado “mistes, ao mar” (álade mýstai), os iniciados se purificavam, tomando um
banho ritual. No terceiro dia, depois de terem se purificado no mar, os iniciados
sacrificavam porcos à deusa, dando início, efetivamente, à iniciação. No quarto dia,
comemorava-se Asclépio e a sua iniciação. No quinto dia, realizava-se o cortejo para
Elêusis, quando as pessoas passavam por uma ponte, trocavam gracejos e até mesmo
ditos obscenos, conhecidos por gephyrismoí (de géphyra, ponte), possivelmente tendo
em vista objetivos apotropaicos, evitando assim os malefícios. O sexto dia era dedicado
ao descanso, aos jejuns, às purificações e aos sacrifícios. Enfim, os iniciados eram
conduzidos ao Eleusinion, um templo de Atenas dedicado exclusivamente aos mistérios,
onde aconteciam as cerimônias propiciatórias do êxito da iniciação: as “coisas feitas”
(tà drómena), talvez a dramatização33 do rapto de Perséfone; as “coisas mostradas” (tà
deiknýmena), ou seja, os objetos sagrados – os hierá; as “coisas ditas” (tà legómena), no
idioma grego. Depois dessas cerimônias, os futuros iniciados tinham de observar um dia
de jejum, igualmente voltado para a purificação. No dia seguinte, eles se dirigiam em
procissão até o Telestérion, a “sala de iniciação” do santuário de Elêusis.
30 As principais fontes utilizadas pelo autor da monografia, na presente abordagem dos mistérios eleusinos, são PEREIRA (1980, P. 261-267) e CHALINE (2008). 31 A palavra grega mýstes significa “aquele que silencia”, “iniciado nos mistérios”. É formada do radical do verbo mýein (“silenciar”), acrescido do sufixo –stes, que indica o agente. 32 A palavra grega prórresis é formada por composição-derivação: à raiz do verbo eírein (“dizer”, “falar”, “anunciar”), são acrescentados o prefixo pro- (indicando anterioridade) e o sufixo –sis (indicando um processo); prórresis quer dizer, portanto, “proclamação”. Num mundo onde a oralidade pontificava, tratatava-se, efetivamente, de uma proclamação solene, num evento maior como a celebração dos mistérios de Elêusis. 33 Sendo a palavra drâma (“ação”) associada ao verbo drân (“agir”), cuja forma substantivada de particípio presente, tà drómena, se refere às “coisas feitas” na cerimônia dos Mistérios de Elêusis, é perfeitamente apropriado supor que, nas cerimônias realizadas no interior do telestérion, tivesse lugar uma dramatização do rapto de Perséfone, afinal de contas o evento central de todas as narrativas ligadas ao mito de Deméter e Córe/Perséfone.
35
Os segredos envolvendo os mistérios contribuíram para o desconhecimento
quase total a respeito dos ritos do Telestérion, realizados à luz bruxuleante das tochas.
Os sacerdotes apresentariam os objetos sagrados, recitariam fórmulas com gestos
ritualizados, culminando