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A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO Pedro da Silva Barbosa Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de doutor em Letras Clássicas. Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira. Universidade Federal do Rio de Janeiro Outubro de 2017

A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA ......A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO Pedro da Silva Barbosa Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira Tese

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  • A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO

    Pedro da Silva Barbosa

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de doutor em Letras Clássicas. Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira.

    Universidade Federal do Rio de Janeiro Outubro de 2017

  • A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO

    Pedro da Silva Barbosa

    Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a

    obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas. Aprovada por:

    ________________________________________________________________ Presidente: Prof. Doutor. Auto Lyra Teixeira – UFRJ

    ______________________________________________________________________ Profª. Doutora. Dulcileide Virginio do Nascimento Braga - UERJ ______________________________________________________________________ Prof. Doutor Fábio Frohwein de Salles Moniz - UFRJ ______________________________________________________________________ Profª. Doutora Fernanda Lemos de Lima - UERJ ______________________________________________________________________ Prof. Doutor Ricardo de Souza Nogueira - UFRJ ______________________________________________________________________ Prof. Doutor Rainer Guggenberger - UFRJ, Suplente ______________________________________________________________________ Profª. Doutora Simone de Oliveira Gonçalves Bondarczuck - UFRJ, Suplente

    Rio de Janeiro 2017

  • A PREPARAÇÃO PARA A MORTE: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO AXÍOCO

    Pedro da Silva Barbosa Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira

    Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

    O presente trabalho realiza um estudo intertextual de duas obras inseridas no

    Corpus Platonicum: o Axíoco, um diálogo apócrifo tardio (possivelmente do século I

    a.C.) e o Fédon, um diálogo considerado autêntico (de meados do século IV a.C.). O

    Axíoco, um diálogo do gênero consolatio, cujo tema é a preparação para a morte,

    apresenta inegável influência do Fédon. De fato, o Fédon já pode ser considerado uma

    espécie de “diálogo de consolação”, antecipando esse gênero literário que viria a

    firmar-se depois. O enfoque adotado na tese é pragmático, centrado na análise do

    discurso e na pragmática literária. Parte-se do pressuposto (a hipótese) de que o autor do

    Axíoco, mesmo inserido num contexto histórico bem posterior ao do Fédon, buscou

    inspiração neste diálogo de Platão, aí identificando as características básicas do

    consolatio. Tanto no Fédon quanto no Axíoco, Sócrates aparece como o consolador por

    excelência: no Fédon, nos momentos que antecedem a sua morte, ele consola os

    amigos; no Axíoco, Sócrates consola Axíoco, que está prestes a morrer. Em ambos os

    textos, são marcantes a preparação para a morte, a relação entre alma e corpo, a

    preocupação com a imortalidade da alma, a dedicação à filosofia e o interesse pelo

    destino das almas após a morte. Tais evidências levam o pesquisador a confirmar o

    pressuposto de que o autor do Axíoco inspirou-se efetivamente no Fédon, tomando-o

    como modelo para a consecução de seu diálogo de consolação.

    Antecede o estudo intertextual do Axíoco e do Fédon, a abordagem de

    determinados temas, imprescindíveis para o entendimento de outras influências que se

    fazem presentes no diálogo apócrifo - morte e pós-morte antes de Platão: a visão de

    Homero, os órficos, os pitagóricos; a morte de Sócrates; a preparação para a morte em

    Platão; a concepção epicurista: a alma e a morte.

    Palavras-chave: Axíoco; Fédon; Platão; Psykhé; Homero; Orfismo. Pitagorismo. Sócrates; Epicurismo.

    Rio de Janeiro 2017

  • THE PREPARATION FOR DEATH: AN INTERTEXTUAL READING OF THE AXIOCHUS

    Pedro da Silva Barbosa Orientador: Prof. Doutor Auto Lyra Teixeira

    Abstract Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro

    The present work is an intertextual study of two works included in the Corpus

    Platonicum: the Axiochus, a late apocryphal dialogue (possibly from the first century

    BC) and the Phaedo, a dialogue considered to be authentic (from the middle of the

    fourth century BC). The Axiochus, a dialogue of the genre consolatio, whose theme is

    the preparation for death, is undeniable influenced by Phaedo. In fact, the Phaedo can

    already be considered a kind of "dialogue of consolation", anticipating this literary

    genre which will be established later on. The approach adopted in the thesis is

    pragmatic, centered on discourse analysis and literary pragmatic. The hypothesis is that

    the author of the Axiochus, although emerged in a later historical context compared to

    the Phaedo, sought inspiration in this dialogue of Plato, finding there the basic

    characteristics of the consolatio. In both, the Phaedo and the Axiochus, Socrates appears

    as the comforter par excellence: in the Phaedo, in the moments before his own death, he

    comforts his friends; in the Axiochus, Socrates consoles Axiochus, who is about to die.

    In both texts, the preparation for death, the relationship between soul and body,

    preoccupation with the immortality of the soul, dedication to philosophy and interest in

    the fate of souls after death are striking. Such evidence supports the assumption that the

    author of the Axiochus was effectively inspired by the Phaedo, taking it as model for the

    execution of his dialogue of consolation.

    Before taking care of the intertextual study of the Axiochus and the Phaedo,

    certain themes, essential for the understanding of influences present in the apocryphal

    dialogue are outlined: death and post-death before Plato: the vision of Homer, the

    Orphics, the Pythagoreans ; the death of Socrates; the preparation for death in Plato; the

    epicurean conception of soul and death.

    Keywords: Axiochus; Phaedo; Plato; Psykhé; Homer; Orphism; Pythagoreanism;

    Socrates; Epicureanism.

    Rio de Janeiro 2017

  • A Joice Cabral e Pedro W. Barbosa, dedico este trabalho.

  • Agradecimentos:

    Ao grande mestre, amigo, orientador incansável, guerreiro

    inspirador, poeta cujos passos seguirei enquanto me for

    permitido, Auto;

    Ao também mestre, amigo, inúmeras vezes orientador,

    companheiro de muitas conversas, sem as quais eu não teria

    alcançado tal resultado, Ricardo;

    À Banca examinadora - Profª. Doutora. Dulcileide Virgílio do

    Nascimento, Prof. Doutor Fábio Frohwein de Salles Moniz,

    Profª. Doutora Fernanda Lemos de Lima, Prof. Doutor Ricardo

    de Souza Nogueira;

    Aos amigos de sempre Alexandre, Rainer, Simone, Anderson,

    Fábio e Cinthya;

    Às professoras e amigas Marinete, Shirley e Tania, “Mãe

    Tania”;

    Aos colegas e professores da UFRJ, especialmente aos do

    Departamento de Letras Clássicas;

    Aos meus queridos pais;

    À maravilhosa Joice e ao tão querido Pedrinho;

    A Deus, por todas as conquistas,

    Agradeço!

  • SUMÁRIO

    1- INTRODUÇÃO.........................................................................................................09

    2- UM ENFOQUE PRAGMÁTICO............................................................................16

    3- MORTE E PÓS-MORTE ANTES DE PLATÃO..................................................19

    3.1 Homero..........................................................................................................19

    3.2 Os órficos.......................................................................................................31

    3.3 Os pitagóricos ...............................................................................................44

    4. A MORTE DE SÓCRATES ....................................................................................50

    5- PSYKHÉ E SÔMA: A PREPARAÇÃO PARA A MORTE EM PLATÃO..........57

    5.1 Alma e imortalidade ......................................................................................57

    5.2 Psykhé e sôma................................................................................................76

    6. EPICURO: A ALMA E A MORTE ........................................................................86

    7. O AXÍOCO: UM ESTUDO INTERTEXTUAL......................................................93

    7.1 O Axíoco........................................................................................................93

    7.2 Axíoco e Fédon: uma leitura intertextual.....................................................105

    8- CONCLUSÃO.........................................................................................................123

    9- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................126

    10. ANEXO: TRADUÇÃO E TEXTO GREGO DO AXÍOCO...............................133

  • 9

    1. INTRODUÇÃO

    A filosofia é um fenômeno ímpar na história dos homens. O estudo das

    civilizações, desde o passado mais remoto, evidencia, de uma maneira ou de outra, a

    universalidade das ideias filosóficas. Diante da natureza, o homem se maravilha, e esse

    maravilhar-se enseja questionamentos decisivos nos multivariados contextos sociais1.

    A questão crucial na jornada dos homens é a relação com a morte. O homem, em

    algum momento da caminhada, passou a ter a certeza de que vai morrer. Como ressalta

    Dastur:

    O homem sabe que deve morrer, e concordamos, habitualmente, em ver nesse ‘saber’ uma das características básicas da humanidade, ao lado da linguagem, do pensamento e do riso. Contudo, não é tão certo que o animal não pressinta, de alguma maneira, sua morte, e que tudo o que vive não tenha, num certo modo desconhecido por nós, uma relação essencial com seu próprio fim. O que é, em todo caso, certo, é que esse fim, que é a própria morte, apresente-se, desde que há pensamento, isto é, representação, como um tema privilegiado, a tal ponto que podemos afirmar que a humanidade não alcança a consciência de si mesma a não ser através do enfrentamento da morte. (DASTUR, 2002, p. 13).

    A perda de um integrante do grupo intensificava a afetividade e a solidariedade

    dos companheiros, evidenciando a necessidade de apoio mútuo. Os ritos e monumentos

    funerários testemunham, de forma eloquente, desde tempos imemoriais, a preocupação

    com o sepultamento e o cuidado com os entes queridos, voltados para a posteridade. A

    inquietação, diante da morte, constitui, inegavelmente, uma ideia filosófica articulada

    em sistemas de pensamento, onde quer que se apresente. Como observa ainda Dastur:

    [...] Talvez fosse necessário, primeiramente, definir o homem a partir dessas condutas externas de luto, mais do que a partir de um se saber mortal que permanece completamente interior. Essas condutas de luto devem, por outro lado, ser encaradas de um ângulo vasto, e seria necessário incluir nelas não somente os ritos funerários variados que encontramos nas diferentes culturas – sepultamento, mumificação, inumação, cremação e até mesmo exposição

    1 “Se voltamos os olhos para o passado e contemplamos a totalidade da existência humana, o surgimento da filosofia e de filósofos parece um fenômeno realmente bastante estranho, uma secreção etérea que não pode ser explicada em termos de fisiologia ou de necessidade física. Talvez essa atividade notoriamente ‘inútil’ fosse um subproduto de nossos cérebros avantajados, o resultado de pensamentos que ultrapassam as rotinas cotidianas e olham pra além de si. A filosofia representou, sem dúvida, uma complicação a mais em nosso uso crescente da linguagem, à medida que um vocabulário rico em conceitos abstratos e subjetivos substituiu nossos grunhidos e rosnados utilitários e expressivos. Mas ideias filosóficas, de alguma forma, ideias sobre a natureza, suas forças e questões, sobre a morada na vida após a morte, por exemplo -, são praticamente universais, e podemos encontrar as suas origens há dezenas de milhares de anos, na pré-história.” (SOLOMON, 2001, p. 21, grifo nosso).

  • 10

    dos mortos, já que esta tem lugar segundo um ritual extremamente refinado -, mas também, outras condutas culturais e, em particular, todas aquelas que têm por função a constituição de uma memória coletiva. (DASTUR, 2002, p. 15-16).

    No contexto neolítico, os restos arqueológicos apontam para o culto de uma

    Grande Mãe2, alicerçado na terra e no ciclo da vegetação – vida, morte e regeneração.

    Posteriormente, o avanço dos indo-europeus, com a sua visão centrada na tríade

    sacerdotes, guerreiros e camponeses, se sobrepõe às culturas focadas na Grande Mãe e

    impõe o patriarcado3.

    Karl Jaspers, com a teoria da “Era axial”, chama a atenção para acontecimentos

    marcantes ocorridos, do século VIII ao VI a. C.4, ao longo de uma vastíssima região que

    se estende da China atual ao leste europeu. Com efeito, destacam-se nesse amplo

    contexto, o confucionismo, o taoismo, o budismo, o jainismo, o zoroastrismo, os

    profetas hebreus e os filósofos gregos.

    Na bacia do Egeu oriental, o mais famoso dos aedos compusera o núcleo comum

    daquelas que viriam a ser as duas maiores epopeias do Ocidente: Ilíada e Odisseia. A

    Ilíada tem como tema a ira de Aquiles e suas consequências, em meio aos pesarosos

    acontecimentos da guerra de Troia. A Odisseia, por sua vez, narra as vicissitudes do

    herói Odisseu em sua longa viagem de volta ao lar, em Ítaca. No universo poético de

    Homero, onde os heróis almejam a glória nos campos de batalha, os homens interagem

    com os deuses imortais, estando sujeitos aos seus caprichos, característicos de

    personagens marcadas pela ambiguidade, além do bem e do mal. Nesse sentido, o 2 Trata-se de uma potência divina, associada muitas vezes à Mãe Terra, e, por conseguinte, ao ventre feminino, à fertilidade, à agricultura e à criação. Particularmente no que interessa a este estudo, numerosas estatuetas encontradas em sítios arqueológicos, no Egito, na Mesopotâmia, na Ásia Menor, na antiga Hélade e no contexto da cultura romana, sugerem, inegavelmente, o culto da Grande Mãe, com as variadas faces do sagrado feminino, por parte de diferentes civilizações. 3 Provavelmente originários de uma região situada ao norte do Mar Negro, os indo-europeus migraram de muitas maneiras, tanto na direção leste, alcançando o Irã e a Índia, quanto na direção do oeste, chegando a variadas regiões. Na Península Balcânica, eles teriam chegado por volta de 1900 a. C., espalhando-se em levas. Tal expansão, alicerçada na submissão ou assimilação dos povos autóctones da península, culminará com a emergência, a partir de uma espécie de “grego comum”, dos quatro dialetos do futuro idioma helênico: o ático-jônico, o eólio, o dórico e o árcade-cipriota. Mais uma vez, no que toca particularmente à tese em questão, a vida nômade, em movimento constante, acompanhando os rebanhos, não deixaria de contribuir para a submissão da mulher, na medida em que esta se torna um bem móvel, procriadora de filhos, equivalente a algumas cabeças de gado. O ventre feminino teria perdido assim a sua face divina, passando a mero reprodutor de filhos legítimos para os chefes de clãs e famílias centrados no patriarcado. 4 De acordo com a teoria da Era Axial, nas regiões da China, India, Irã, Ásia Menor, Síria, Palestina e Hélade, nesse período, basicamente, a mesma linha de pensamento teria emergido, sem que, em princípio, nenhuma dessas regiões tenha entrado em contato entre si. Foi como se uma série de questionamentos viessem a integrar as perspectivas da humanidade ao mesmo tempo, suscitando o despertar de uma consciência de sua existência, natureza e limitações e, consequentemente, um despertar filosófico, religioso e científico sem precedentes.

  • 11

    destino dos mortais não deixa de ser influenciado pelas divindades, caracterizando-se os

    enganos dos homens, não raro, por uma intervenção divina que lhes obscurece o

    entendimento. Num mundo em constante mudança, é vital buscar o equilíbrio nesse

    movimento, destacando-se a medida (o métron), como um componente decisivo do

    comportamento e das decisões humanas nas mais arriscadas circunstâncias. Essa

    procura do equilíbrio na medida sugere a possibilidade da escolha humana em meio às

    limitações da moîra (o quinhão que nos cabe e determina as nossas decisões) 5.

    No período que viria a ser chamado de Idade Arcaica da Hélade – sécs. VII e VI

    a. C., ocorreram grandes transformações na bacia do Mediterrâneo oriental: a primazia

    do debate (agón) e da argumentação (lógos) nas póleis emergentes enseja novas

    perspectivas para o pensamento; a revolução nas técnicas de agricultura favorece o

    crescimento demográfico; o desenvolvimento do artesanato e do comércio, aliado à

    introdução da moeda e ao progresso das técnicas de navegação, possibilita a ascensão de

    novos grupos sociais (frações do dêmos) e a odisseia da colonização em busca de lares

    distantes; o triunfo da tecnologia do ferro, com a consequente mudança nas táticas de

    combate e o aperfeiçoamento da infantaria, estimula o individualismo crescente no

    âmbito da pólis; a crise no regime agrário, acentuada pela concentração da grande

    propriedade, acirra o conflito social (a stásis), a demanda de uma reforma agrária e de

    direitos de cidadania da parte de grupos até então excluídos da tomada de decisões no

    destino da comunidade; todas essas transformações realçam o poder da palavra (lógos),

    na contestação ao domínio aristocrata ou na reação dos nobres aos emergentes sociais. É

    a época dos tiranos e dos sete sábios da Grécia; da fecunda relação entre oralidade e

    escrita (a literacia); da poesia lírica em todas as suas manifestações – elegia, iambo,

    mélos monódico e coral; das fábulas atribuídas a Esopo; da reflexão hipocrática; e dos

    chamados filósofos pré-socráticos.

    O que diferencia esses filósofos dos helenos que os antecederam, num contexto

    caracterizado pela relação entre mythos e lógos6, destacando-se este último como

    5 No canto XVI da Ilíada, constata-se um exemplo notável de ultrapassagem do métron e das consequências advindas dessa desmedida (hýbris): Aquiles, ao emprestar as armas a Pátroclo, para que este lute em seu lugar, liderando os mirmídones contra os troianos, aconselha o companheiro a afastar os inimigos das naus gregas, mas a não se aproximar demasiado das imponentes muralhas de Troia, chamando assim a atenção para a necessidade de não se ultrapassar o limite (o métron). No entanto, Pátroclo, movido pelo clamor da batalha, acaba não levando em consideração as advertências do filho de Peleu, e termina enfrentando Heitor, num combate singular; esse excesso (hýbris) acaba lhe sendo fatal, e o amigo de Aquiles morre nas mãos do príncipe troiano. 6 Originalmente, palavras mais ou menos sinônimas, significando uma “fala”, um “discurso”, uma “narrativa”, mito e lógos foram adquirindo significados diferentes. O mito apresenta-se como um relato não confirmado por testemunhos, e, como tal, associado ao “imaginário”; o lógos, por sua vez, passa a ser

  • 12

    argumentação, é que Tales e seus contemporâneos apontam um dos elementos do

    próprio brotar das coisas (phýsis) como uma espécie de “matéria básica” (água, ápeiron,

    ar ou fogo), um fundamento naturalístico da generalidade do ser, portanto, que explique

    a constituição e o funcionamento do cosmo.

    Desde Homero, a preocupação com a psykhé, seus caminhos e seu destino, já se

    fazia presente entre os gregos. Na poesia épica, a psykhé é como um “sopro” que

    abandona o corpo - “sôma”, no momento do trespasse. O cadáver do guerreiro no

    campo de batalha é designado no contexto homérico pela palavra sôma, equivalente ao

    corpo privado do movimento associado à vida. Após os imprescindíveis ritos fúnebres,

    a psykhé do morto passa a habitar o Hades como uma sombra (eídolon), afigurando-se

    toda a sua existência sem qualquer significação moral.

    No período arcaico, no entanto, crenças e cultos, à margem da devoção oficial

    aos deuses homéricos, destacam-se no âmbito da pólis, acolhendo o indivíduo, carente

    de aprofundamento religioso. Destacam-se então os cultos de mistérios: o santuário de

    Elêusis, as doutrinas e práticas órficas e as comunidades (os thíasos) dionisíacos. Toda

    essa inquietação espiritual toca o coração da filosofia recém-chegada. Os pitagóricos7,

    por exemplo, inspirados nas crenças e práticas órficas, destacam a metempsicose, ou

    seja, a transmigração das almas, de origem divina, em variados corpos, e a necessidade

    de libertar-se do ciclo dos renascimentos, mediante a ascese purificadora.

    A cosmovisão órfico-pitagórica enseja, assim, entre os antigos helenos, o desejo

    de se preparar adequadamente para a morte, perpassando os períodos clássico,

    helenístico e helenístico-romano da antiga Hélade8. E a busca dessa preparação está,

    sobretudo, presente no âmbito do corpus platonicum9.

    considerado um relato confirmado por testemunhos confiáveis, associado, por consequência, à comprovação e à demonstração do seu conteúdo. O mito, como narrativa, desenvolve o sentido original de uma história, mas não uma história qualquer, e sim uma história especial, associada, basicamente, às origens dos seres. Já o logos, desde o começo relacionado com o ato de contar, associa-se cada vez mais à enumeração, numa narrativa, e à contagem – ao cálculo, à reflexão, à discussão e à argumentação. De qualquer modo, chama a atenção o âmbito semântico original dos vocábulos em questão (mythos e lógos), alicerçado, sem sobra de dúvida, na oralidade característica das sociedades ágrafas. 7 Quanto à etimologia da palavra metempsicose (metempsýkhosis), ela é formada, basicamente, pelo radical da palavra psykhé (alma), acrescentado dos prefixos metá- (transmitindo a ideia de deslocamento) e en- (transmitindo a ideia de interioridade), e do sufixo –sis (transmitindo a ideia de um processo). Metempsicose, portanto, quer dizer “transmigração da alma” (em variados corpos). 8 Uma periodização da história da antiga Hélade não deixa de apresentar certa arbitrariedade, servindo as datas e os eventos, basicamente, como uma espécie de baliza, visando a orientar o interessado, facilitando-lhe o estudo. Assim sendo, não deixando, evidentemente, de considerar outras formas de periodização, propõe-se aqui dividir a história da antiga Hélade nos seguintes períodos: Idade Épica (séc. IX – VIII a. C.); Idade Arcaica (séc. VII – VI a. C.); Período Clássico ou Ático (séc. V – IV a. C.) e Período Helenístico (323 a. C. – 525 d. C.), dividido em Alexandrino (323 a.C. – 31 a. C.) e Romano (31 a. C. – 525 d. C.).

  • 13

    Considerando o exposto, o objetivo do presente trabalho é realizar um estudo

    intertextual do Axíoco (um diálogo apócrifo tardio) com o Fédon (diálogo de

    autenticidade não contestada), pois em ambos se percebe a presença de um tipo de

    preparação para a morte e sua aceitação. O Axíoco é um diálogo que se insere no genêro

    literário consolatio. As origens desse tipo de gênero são percebidas, no âmbito da

    literatura grega, desde Homero, pois a preocupação com a morte, tanto por parte dos

    que estão prestes a morrer quanto por parte dos que perdem os entes queridos, existe

    desde que o homem se tornou capaz de pensar a própria existência. Contudo, embora se

    perceba a presença frequente, em obras literárias da antiga Hélade, de manifestações,

    sejam elas religiosas ou não, em torno do momento que precede ou sucede o trespasse

    (com cantos, hinos, homenagens diversas etc), só se pode falar de Consolações como

    gênero literário a partir do perì pénthous de Crantor,10 obra que se tornou um marco

    muito importante no contexto de sua produção e que é fundamental para o presente

    trabalho. Essa importância se dá pelo fato de a obra de Crantor ser posterior a Platão e

    anterior ao Axíoco.

    Parte-se então do pressuposto (a hipótese) de que o autor do Axíoco, mesmo

    fazendo parte de um contexto histórico e de enunciação bem posterior ao Fédon de

    Platão, buscou inspiração nessa obra e construiu a sua obra literária baseada nesse

    diálogo, pois ele identificou no Fédon características intrínsecas do genênero literário

    Consolatio, embora esse gênero ainda não tivesse sido inaugurado no tempo de Platão.

    Este trabalho tem como objetivo o estudo intertextual entre Fédon e Axíoco,

    pois, embora outras obras tenham influenciado o autor do Axíoco, a influência do Fédon

    parece ter sido decisiva na composição do diálogo apócrifo. Com efeito, no Fédon,

    temos evidências inegáveis de um tipo de preparação para a morte, alicerçada na

    filosofia, recomendada pela personagem Sócrates11, em seus últimos momentos de vida;

    e no Axíoco, Sócrates procura tranquilizar Axíoco, que está para morrer, preparando-o

    para a passagem.

    Além disso, cabe ressaltar que as ferramentas de análise do discurso se mostram

    eficazes para viabilizar o referido estudo intertextual, pois, para a análise dos vários 9 Uma abordagem da divisão, organização e cronologia do Corpus Platonicum faz parte da dissertação de mestrado: Da Virtude e Mênon: um estudo intertextual, defendida em 2010 pelo mesmo autor deste trabalho. 10 Cf. nota 94 e página 96. 11 O uso da palavra personagem baseia-se no entendimento a seguir: “...o diálogo como gênero literário pode ser considerado uma obra dramática, onde o leitor-ouvinte desempenharia uma importante função. O teatro platônico põe em cena personagens discutindo sobre algum problema moral (o que é a coragem, o que é a piedade, o que é o belo etc.)” (BARBOSA, 2010, pg. 10).

  • 14

    contextos: históricos, de enunciações, literários etc., a pragmática tem se mostrado

    indispensável, possibilitando o teste da hipótese aqui proposta. Nesse sentido, as etapas

    da pesquisa são as seguintes: (1) introdução; (2) caracterizar o enfoque pragmático

    adotado no presente trabalho; (3) traçar o percurso, com base na bibliografia

    selecionada, dos termos psykhé e sôma, buscando apreender seus vários significados,

    desde a épica de Homero, incluindo o orfismo e o pitagorismo; (4) trazer uma visão

    sobre a morte de Sócrates, pois no Fédon essa personagem está prestes a morrer; (5)

    analisar a visão de sôma e psykhé, no pensamento platônico; (6) fazer um estudo sobre

    como os epicuristas lidam com a morte, visto que há claras influências de visões

    epicuristas no Axíoco; (7) verificação da hipótese acima mencionada, com abordagem

    intertextual dos textos gregos do Fédon e do Axíoco.

    Para a tradução do Axioco, utilizou-se o texto grego incluído em SOUILHÉ,

    Joseph. Platon: oeuvres completes. Paris: Les Belles Lettres, 1930. No que diz respeito

    a essa tradução e à de alguns dos excertos de outras obras selecionados para este

    trabalho, optou-se por uma tradução fluente e mais livre, sem descaracterizar, no

    entanto, o significado básico dos textos originais, com a intenção de acentuar aspectos

    importantes para a exposição do tema escolhido para estudo. Com essa proposta de

    tradução, o autor da tese espera ter dado conta do desafio de forma satisfatória e sem

    excessos, desempenhando a contento a odisseia característica de toda tradução, ou seja,

    da língua de partida (no caso, o grego antigo) à língua de chegada (no caso, o

    português).

    Por fim, cabem algumas considerações sobre a atualidade, a pertinência e a

    importância do tema em questão - a preparação para a morte. Nos dias de hoje,

    malgrado o crescente desconforto com a morte em geral, muitos de nós, seja qual for a

    concepção de cada um, movidos por um sentimento demasiadamente humano, nos

    voltamos para o próximo vivendo os últimos dias. Essa aproximação demonstra não

    apenas uma preocupação com a morte, posto que se busca preparar o doente para o

    trespasse, cercando-o de muita atenção e carinho, mas também, sobretudo com a vida,

    com um cuidado de si, pois vida e morte se apresentam inexoravelmente associadas na

    jornada humana. A reflexão sobre a vida e a morte nos convida a pensar, com

    serenidade e alegria de viver, - sem deixarmos de lado as preocupações com a família, o

    bem-estar material e a comunidade em geral -, o ser humano como um ser em aberto, de

    variadas faces, de múltiplas possibilidades. E nesse sentido, com toda certeza, o estudo

    intertextual do Axíoco, baseado na tradução do diálogo, a partir do texto original grego,

  • 15

    de inegável importância acadêmica, não deixa de ser também oportuno, nestes tempos

    de perplexidade pós-moderna, em meio às assimetrias de sempre.

  • 16

    2. UM ENFOQUE PRAGMÁTICO

    Um estudo da linha pragmática de análise do discurso se dá pelo entendimento

    da linguagem como uma ação, um ato, ocorrendo em determinado contexto, que deve

    ser delimitado e definido de acordo com a produção do conteúdo discursivo a ser

    analisado. No caso, sobretudo, do estudo de obras da Antiguidade, em que o

    conhecimento atual dos estudiosos se distancia muito do vivo cotidiano de produção do

    discurso do homem antigo, o contexto literário das obras supérstites, mesmo que

    modificado por copistas posteriores12, é um material de estudo concreto, aberto para ser

    investigado em toda a sua significância, beleza estética e problemas textuais. Entende-

    se, então, contexto literário13 como o contexto interno da obra literária, que é onde as

    personagens atuam e interagem em um mundo fictício, produzindo, elas mesmas, seus

    próprios discursos, graças à lógica estabelecida na existência estética desse ambiente.

    Contudo, esse contexto literário, mesmo que filtrado pela estética da arte, que o

    modifica de acordo com o gênero em que se insere, reflete de alguma maneira um

    contexto pertencente a um âmbito específico do homem antigo, que legitima e justifica a

    própria existência de certo fenômeno literário em meio à ebulição de ideias que emanam

    de seu cotidiano. A esse ambiente externo, composto por homens reais que interagem

    nas conversas do dia a dia, produzindo discursos em seus turnos dialógicos, dá-se o

    nome de contexto de enunciação, uma vez que ele é responsável por todos os

    enunciados produzidos por um enunciador. Tais enunciados se inserem numa ampla

    gama de manifestações, desde a simples expressão de dor, por meio de uma interjeição,

    e que faz parte da própria natureza humana, independentemente do modo como a língua

    a expressa ou do tempo em que é produzida (o homem gritava de dor no passado assim

    como alguém grita hoje), a uma complexa construção frasal, dependente de um contexto

    de enunciação repleto de significados e ideias que escapam ao estudioso moderno. Esse

    último aspecto é muito difícil de compreender no tocante à Antiguidade, porque, como

    foi ressaltado, tal contexto de enunciação não sobrevive nos dias atuais, sendo apenas

    refletido em obras deixadas para a humanidade, particularmente no caso dos estudos

    literários.

    12 Não há textos autógrafos de autores que compuseram obras na Antiguidade Clássica. A maioria dos códices, de onde se extrai as edições críticas, feitas pelos estudiosos, pertence à Idade Média. 13 A semiótica prefere a denominação “realidade ficcional”.

  • 17

    O enunciado produzido por um indivíduo depende de um contexto (o de

    enunciação ou literário, onde atuam as personagens). Dessa maneira, fica assentado,

    então, que tal homem é um enunciador, e, tendo tal função, ele precisa de um receptor

    para o seu discurso. Na pragmática, esse receptor é entendido como um coenunciador,

    terminologia condizente com a participação mútua dos agentes. Se o enunciado do

    enunciador é destinado a um receptor, que assume o papel de coenunciador, isso

    significa dizer que o receptor de certo discurso (enunciação, ato de fala ou linguagem) é

    também autor do conteúdo que lhe foi transmitido, uma vez que o discurso construído

    só é composto com o objetivo de ser compreendido por outrem.

    Na vida real, os falantes interagem, cooperando num processo de alternância de

    turnos conversacionais, assumindo os papéis de enunciador e coenunciador, dependendo

    do andamento da produção do discurso e da função de cada um deles no contexto em

    que estão inseridos14. Na obra literária, mais precisamente no contexto literário

    estabelecido, o autor, de maneira lógica, cria personagens que vivem, em um mundo

    fictício, as relações entre enunciadores e coenunciadores atuando no mundo real.

    Contudo, fora do contexto literário, inserida no contexto de enunciação, a obra literária,

    em suas partes constitutivas, e mesmo como um todo, é um tipo de discurso, de

    enunciado, que tem como destinatário um receptor específico, um coenunciador,

    também ele autor, de certa maneira, do texto em questão. Ao ler ou ouvir uma obra

    literária, o receptor (coenunciador) se sentirá contemplado ali, vendo surgir no texto as

    respostas aos seus anseios. A própria língua utilizada, o gênero literário empregado, a

    estrutura das frases construídas, as ideias elaboradas, tudo isso se apresenta em função

    da necessidade de se estabelecer um canal de comunicação entre a obra construída e o

    seu receptor. Entendida como um todo discursivo, a totalidade da obra, com sua

    mensagem aos destinatários, se apresenta como um mega ato de linguagem, ou seja, um

    conjunto de ações que tem por fim expressar uma só mensagem, que, pelo seu valor

    14 Nesse sentido, o autor da tese considera perfeitamente viável a associação entre análise do discurso e análise conversacional, posto que associadas à luz da Pragmática. Com efeito, considerando que a interação verbal entre os coagentes se dá por turnos dialógicos, a análise conversacional pode se mostrar um recurso bastante útil para o estudo, tanto do contexto da obra literária, quanto do seu ambiente externo. Como exemplos bem sucedidos de associação entre análise do discurso e análise conversacional, na área dos estudos clássicos, podem-se citar aqui duas teses recentes: Uma conversa com as fábulas de Fedro, de Luciana Antônia Ferreira Marinho (2016), e Um estudo das partículas gregas na tessitura argumentativa do diálogo Filebo, de Simone de Oliveira Gonçalves Bondarczuk (2017), orientadas, respectivamente, pelos Professores Doutores Ana Thereza Basílio Vieira e Auto Lyra Teixeira, integrantes do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • 18

    indelével, garante, sobretudo, o seu lugar, se for o caso, entre as obras imortais da

    humanidade.

    Tais são os conceitos da pragmática que se espera encontrar nesse estudo. Mas

    como isso será feito? Primeiramente, deve-se dizer que a investigação a ser processada

    nos próximos capítulos se colocará diante de contextos literários específicos que, como

    foi salientado, refletem, em sua estética própria, determinados contextos de enunciação

    hipotéticos, trazidos à luz graças às próprias obras literárias e a determinadas ciências,

    tais como a história, a arqueologia, a sociologia, a antropologia etc. O estudo a ser

    realizado no próximo capítulo, por exemplo, se utiliza do contexto literário dos poemas

    abordados para elucidar a maneira como o homem homérico pensava no tempo de sua

    criação, levando em consideração os diferentes contextos de sua enunciação.

    O estudo intertextual do Axíoco, focado na preparação para a morte, como ela

    aparece em cada um dos textos abordados, abraça, por consequência, o enfoque

    pragmático, privilegiando a relação entre as obras em seus diversos contextos literários.

    Com esse objetivo, o estudo seleciona determinados excertos-chave, essenciais para a

    leitura, a compreensão e a interpretação do Axíoco, inserido no corpus platonicum, e os

    textos a ele aqui associados.

  • 19

    3. MORTE E PÓS-MORTE ANTES DE PLATÃO 3.1 Homero

    A preparação para a morte é um tema recorrente na filosofia platônica. A

    abordagem dessa temática requer a compreensão de como, ao longo de sua história, os

    antigos helenos entendiam a vida, a morte e o pós-morte. Buscando um fio de Ariadne

    que facilite esse entendimento, deve-se atentar para os caminhos percorridos pela

    palavra psykhé, considerada por estudiosos da cultura helênica como um termo

    fundamental, desde os poemas de Homero, para a compreensão dos estágios (início,

    meio e fim) da vida, como o homem grego a concebia. Assim sendo, no caso deste

    trabalho, especificamente, tem-se de trilhar, ainda que brevemente, alguns percursos da

    ideia de alma em Homero, e da própria psykhé, assim como as relações da psykhé com o

    corpo (sôma), pois a compreensão de tais conceitos é o ponto de partida para se

    entender a visão platônica da vida e do pós-morte.

    De acordo com Snell (2009, p. 8), a psykhé, em Homero, só é a alma enquanto

    anima15 o homem, enquanto o mantém vivo, ou seja, ela é a vida, o sopro16 de vida que

    deixa o corpo do homem no momento de sua morte. Quando um homem morre, na

    visão de Homero, a psykhé vai para o Hades, o mundo dos mortos na cultura grega; e

    seu corpo (sôma) jaz inerte, por estar desprovido desse elemento vital. Homero limita-se

    a usar a palavra psykhé somente nas passagens em que ela está para deixar o corpo, não

    nos dando, dessa forma, nenhum dado sobre o comportamento da mesma no corpo

    vivente; desse modo, não se pode relacioná-la indiscutivelmente a alguma função

    intelectual ou emocional, e, sendo ela impessoal (apenas o sopro de vida), não possui

    ainda os valores pessoais de caracterização individual de cada homem, apesar de cada

    herói homérico ter sua própria psykhé, a qual, após a morte, vaga no Hades,

    aparentemente desprovida de consciência. Nesse sentido, não há ainda em Homero o

    significado de psykhé como alma, a parte mais nobre e importante do ser humano, e

    muito menos a presença da definição platônica da alma como sede do conhecimento.

    Buscar isso em Homero seria incorrer em anacronismos. Mesmo que se tente e que se

    possa perceber, em algumas passagens da Ilíada e da Odisseia, uma espécie de

    consciência para as psykhaí que se encontram no Hades, ou seja, fora do corpo, e por

    isso, desprovidas de sua função específica nesse corpo, elas, pelo próprio fato da

    15 A anima do latim. 16 É importante frisar que a palavra ψυχή se apresenta como onomatopaica, indicando o próprio sopro pelo som “ps” da letra ψ.

  • 20

    polêmica surgida entre os estudiosos, são sem dúvida muito menos que um traço

    individualizante, apresentando-se, na verdade, como um eídolon (imagem, aparição,

    simulacro) de caráter um tanto selvagem, e não propriamente como o elemento que

    representa a continuidade de um ser após a morte e a permanência de sua identidade em

    um plano além. É como se a pyskhé, ao se desprender do corpo, perdesse a sua função

    fisiológica, portando-se, em outro plano existencial e sobrenatural, como mero espectro

    da imagem do homem em vida.

    Dessa forma, o sentido de alma frequentemente atribuído ao termo psykhé nos

    dias de hoje e que passou a vigorar já desde o período Clássico não poderia jamais ser

    atribuído à psykhé homérica. Não é possível encontrar em Homero uma só palavra que

    nos reporte à noção intelectual de alma vigente nos dias de hoje, visto que o

    entendimento que se tinha de vida, morte e pós-morte, naquele tempo, não compreendia

    a multiplicidade de elementos que a palavra psykhé pôde comportar posteriormente.

    É importante salientar que Homero é de um tempo anterior ao nascimento do

    pensamento filosófico e científico, que surgiu na parte oriental da Grécia apenas no

    século VI a. C., na Jônia, mais precisamente na cidade de Mileto. Isso significa dizer

    que a construção de seu pensamento se faz na idealização de um discurso que se baseia

    no pensamento mítico, e, assim sendo, os termos gregos que utiliza se encontram

    esvaziados em seus campos semânticos dos significados possíveis apenas a partir do

    nascimento da filosofia. Isso explica o fato de a palavra psykhé em Homero não

    expressar ainda os sentidos que, posteriormente, irá agregar na ampliação de seu campo

    semântico.

    Para se compreender a evolução do campo semântico da palavra psykhé em sua

    pluralidade de significados, é importante ressaltar que, paralelamente a cada significado,

    encontra-se um contexto de enunciação específico, registrado em contexto literário; esse

    contexto de enunciação justifica, no tempo e no espaço, um dado conceito por meio de

    verdadeiros atos de linguagem, compreendidos pelo receptor simplesmente porque

    fazem parte e acontecem dentro de seu cotidiano.

    Como será visto no próximo tópico, a antiga religião denominada orfismo, cujas

    fontes de que se dispõe são posteriores ao estabelecimento dos poemas homéricos, vai

    apresentar elementos a respeito da psykhé que serão ampliados e desenvolvidos na

    filosofia dos chamados filósofos pré-socráticos e de Platão. No entanto, posto que os

    registros literários dos poemas homéricos antecedem os escritos órficos disponíveis, não

  • 21

    se pode deixar de examinar, inicialmente, a visão homérica da psykhé, mais

    precisamente na Ilíada, obra fundadora da literatura grega.

    No dicionário de Bailly, que sempre remete o pesquisador aos sentidos

    primordiais em literatura presentes nos poemas homéricos, o primeiro significado que

    aparece no extenso campo semântico da palavra psykhé é sopro. Logo em seguida, tem-

    se a especificação sopro de vida, como uma extensão do primeiro significado. Esse

    sopro de vida se desmembra em vários significados que ocupam a maior parte do

    verbete. O primeiro é alma, como princípio da vida, e os exemplos relacionados à Ilíada

    e à Odisseia são variados. A partir do sentido de alma, o dicionário arrola os seguintes

    significados: vida, falando de pessoas; um vivente, uma pessoa; ser querido (em um

    tratamento afetivo). Apenas posteriormente, o termo psykhé apresenta os sentidos de

    alma em oposição ao corpo e de alma como sede dos sentimentos, das paixões, os

    quais, por ora, não serão abordados. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que a

    psykhé, em seu sentido de anima, não corresponde, no contexto literário construído por

    Homero, a ideias que se relacionem a uma maneira de ser ou de agir.

    Para abordar a psykhé em Homero, talvez não seja suficiente, assim, se deter

    apenas no termo em questão, mas sim na ideia que Homero, ou um homem de seu

    tempo, poderia fazer do conceito de alma. Para tal, é necessário tentar resgatar a própria

    maneira arcaica (ou mesmo pré-arcaica) de pensar, que pode ser depreendida com base

    na análise das epopeias homéricas.

    Pode-se perceber em Homero uma tendência analítica de percepção do mundo,

    que fica bem evidenciada no modo como a própria figura do ser humano era

    representada pictoricamente17. Diferentemente da representação contida nos vasos

    gregos do período clássico, que trazem desenhos de homens concebidos com seus

    corpos preenchidos com músculos interligados, a concepção arcaica apresenta um

    homem no qual os braços, a cabeça e as pernas são como que encaixados em um tronco.

    Tal evidência mostra o quanto um homem arcaico vislumbrava o ser humano

    analiticamente (e não como um todo inteiriço), com cada uma de suas partes

    representando uma função específica. Esse modo de pensar se mostra em construções

    provenientes dos mais diferentes âmbitos desse período.

    O guerreiro micênico, no contexto idealizado dos poemas homéricos, apresenta-

    se extremamente individualista, lutando pelo seu nome em prol da manutenção de sua

    17 Cf. Snell, 2009.

  • 22

    glória individual, o que é bem diferente da revolução bélica decorrente do surgimento

    das técnicas hoplíticas. Vernant expressa de maneira bem clara tal característica:

    O herói homérico, o bom condutor de carros, podia ainda sobreviver na pessoa do hippeús (o cavaleiro); ele já não tem muita coisa em comum com o hoplita, esse soldado-cidadão. O que contava para o herói homérico era a façanha individual, a proeza feita em combate singular. Na batalha, mosaico de duelos em que se enfrentam os prómakhoi [combatentes das primeiras filas], o valor militar afirmava-se sob a forma de uma aristeía [valentia], de uma superioridade toda pessoal. A audácia, que permitia ao guerreiro executar aquelas ações brilhantes, ele a encontrava numa espécie de exaltação, de furor belicoso, a lýssa, onde o lançava, como fora de si mesmo, o ménos, o ardor inspirado por um deus. O hoplita, no entanto, já não conhece o combate singular; ele deve recusar, se lhe é oferecida, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta ombro a ombro, pois ele foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, enfim, cuidar, em plena peleja, de não deixar seu posto. (VERNANT, 2000, p. 50-1).

    Profundo conhecedor dos conceitos gregos associados ao contexto literário

    desenvolvido nos poemas homéricos, Vernant evidencia o caráter analítico,

    individualista, do guerreiro micênico, envolto em valores que enfatizam a glória

    pessoal. Ao final deste tópico, voltar-se-á à figura do hoplita, para se compreender a

    transição dos valores homéricos ao novo modo de pensar do homem grego em seu

    horizonte arcaico.

    No contexto dos poemas homéricos, chama a atenção, por exemplo, a

    quantidade de verbos que expressam o ato de ver; tal variedade é compreensível, posto

    que cada um desses verbos expressa uma função específica e diferenciada, como se o

    autor não conseguisse conceber mais de uma função para cada maneira de ver18. Outra

    característica marcante no registro literário dos cantos do aedo é a sintaxe homérica,

    com a predominância da parataxe, em oposição à subordinação, independentemente de a

    língua grega ser, predominantemente, sintética, o que mostra o quanto o conjunto de

    ações era resolvido separadamente em cada ato. O exemplo que se segue evidencia a

    utilização da coordenação, na Ilíada. Trata-se de uma passagem decisiva, assinalando o

    início das ações que levaram o herói Pátroclo à morte. Em uma tradução bem literal,

    evidencia-se a presença da parataxe, em meio às orações coordenadas:

    στῆ δ᾽ ὄπιθεν, πλῆξεν δὲ μετάφρενον εὐρέε τ᾽ ὤμω χειρὶ καταπρηνεῖ, στρεφεδίνηθεν δέ οἱ ὄσσε. τοῦ δ᾽ ἀπὸ μὲν κρατὸς κυνέην βάλε Φοῖβος Ἀπόλλων: ἣ δὲ κυλινδομένη καναχὴν ἔχε ποσσὶν ὑφ᾽ ἵππων 795αὐλῶπις τρυφάλεια, μιάνθησαν δὲ ἔθειραι αἵματι καὶ κονίῃσι: πάρος γε μὲν οὐ θέμις ἦεν ἱππόκομον πήληκα μιαίνεσθαι κονίῃσιν,

    18 Para maiores detalhes ver Snell, 2009.

  • 23

    ἀλλ᾽ ἀνδρὸς θείοιο κάρη χαρίεν τε μέτωπον ῥύετ᾽ Ἀχιλλῆος: Febo Apolo veio por trás e lhe bateu nas costas, nos ombros largos, com a palma da mão, e os olhos de Pátroclo rodopiaram. E o deus lançou longe o elmo de pele de cão; e rolou o elmo, sob os cascos, ruidosamente, e cristas de sangue e poeira o mancharam; e até então, isso não ocorrera, certamente, ao elmo de crina de cavalo coberto de pó, mas ele protegia, poderoso, a cabeça, e, com a viseira, o semblante de um homem divino, como ele só: Aquiles. (HOMERO, Ilíada, XVI, 791-9, tradução nossa).

    A repetição de conjunções ou partículas coordenativas, como utilizadas na

    narrativa acima, certamente seria evitada por um autor posterior, levando-se em conta as

    mudanças de aspecto percebidas nos verbos empregados por Homero. Seria esperado,

    pelo menos em algum momento, o uso de uma oração subordinada reduzida de

    particípio, ou mesmo desenvolvida, com conjunções causais ou temporais. Não é isso o

    que ocorre na passagem em pauta, desenvolvendo-se cada ato por si só, separadamente.

    O exemplo acima é característico de uma maneira analítica de pensar19; essa

    visão analítica também está associada, nos poemas de Homero, às ideias de alma e de

    corpo; tanto isso é verdade que, simplesmente, aí não se encontra uma palavra unitária

    para designar a alma e o corpo. Uma vez que as funções relativas a essas ideias são

    variadas, necessita-se de diversas palavras portadoras de conceitos e funções, para se

    apreender o todo.

    Geralmente, traduz-se a palavra psykhé por alma, nos poemas homéricos, mas,

    como se pôde perceber na argumentação desenvolvida até aqui, o termo faria referência

    apenas a uma das partes daquilo que se entenderia por alma na época da composição

    dos poemas. Homero se utilizava de algumas palavras para expressar, à sua maneira

    pré-filosófica, conceitos ligados a sentidos motivacionais sobre o desejo do homem

    grego de realizar uma ação, tais como θυμός, νοῦς, φρήν (daqui em diante, thymós, noûs

    e phrén, respectivamente). Tais conceitos, juntamente com psykhé, parecem formar,

    analiticamente, o sentido do que seria a alma em Homero, pois a palavra psykhé, em sua

    acepção não intelectual e emocional, era utilizada apenas para designar, reitera-se, o

    sopro de vida, complementando-se o conceito de alma por meio dos outros termos

    supracitados. É interessante discorrer sobre tais conceitos, porque eles expressam, na

    obra de Homero, certas características, mais tarde perceptíveis no termo psykhé. 19 Embora, em geral, a língua grega seja sintética, o estilo de Homero é extremamente analítico se comparado com autores de outros períodos.

  • 24

    O thymós era sempre associado às emoções; tanto era considerado o órgão físico

    dos sentimentos, como o próprio sentimento em si mesmo. Sendo de dificílima tradução

    em português, pelo fato de não haver uma só palavra que abarque a totalidade dos

    sentidos que o termo agrega, thymós pode significar, dependendo do contexto, coração,

    vida, vergonha, alma, razão, perturbação, raiva, desejo, conhecimento imediato etc. É

    o fluxo de sangue quente e da força vital, e daí elemento emotivo responsável pela

    excitação, pela coragem ou pelo desejo, entre outras afecções. O thymós, assim como a

    psykhé, também escapa pela boca e pelo ferimento, no momento da morte de um

    guerreiro, o que pode ser percebido no seguinte excerto, aparecendo o termo duas vezes,

    numa narrativa destacando a morte de determinados guerreiros:

    ἔνθ᾽ Ἀμαρυγκείδην Διώρεα μοῖρα πέδησε: χερμαδίῳ γὰρ βλῆτο παρὰ σφυρὸν ὀκριόεντι κνήμην δεξιτερήν: βάλε δὲ Θρῃκῶν ἀγὸς ἀνδρῶν Πείρως Ἰμβρασίδης ὃς ἄρ᾽ Αἰνόθεν εἰληλούθει. ἀμφοτέρω δὲ τένοντε καὶ ὀστέα λᾶας ἀναιδὴς ἄχρις ἀπηλοίησεν: ὃ δ᾽ ὕπτιος ἐν κονίῃσι κάππεσεν ἄμφω χεῖρε φίλοις ἑτάροισι πετάσσας θυμὸν ἀποπνείων: ὃ δ᾽ ἐπέδραμεν ὅς ῥ᾽ ἔβαλέν περ Πείροος, οὖτα δὲ δουρὶ παρ᾽ ὀμφαλόν: ἐκ δ᾽ ἄρα πᾶσαι χύντο χαμαὶ χολάδες, τὸν δὲ σκότος ὄσσε κάλυψε. τὸν δὲ Θόας Αἰτωλὸς ἀπεσσύμενον βάλε δουρὶ στέρνον ὑπὲρ μαζοῖο, πάγη δ᾽ ἐν πνεύμονι χαλκός: ἀγχίμολον δέ οἱ ἦλθε Θόας, ἐκ δ᾽ ὄβριμον ἔγχος ἐσπάσατο στέρνοιο, ἐρύσσατο δὲ ξίφος ὀξύ, τῷ ὅ γε γαστέρα τύψε μέσην, ἐκ δ᾽ αἴνυτο θυμόν. Ali, o destino, a Dioreu, filho de Amaríncio, subjugou, pois ele deixou que lhe acertassem, com uma pedra, o tornozelo da perna direita; o chefe dos trácios a atirou, Peiroo, filho de Imbraso, de Eno recém-chegado. Aos tendões e aos ossos a pedra estraçalhou e ele caiu de costas no pó, após erguer as mãos aos companheiros, exalando o thymós; e Peiroo o feriu com a lança, no lado do umbigo; e então, todo o intestino derramou-se por terra, e a Dioreu cobriram os dois olhos as trevas. Aí, Toante, da Etólia, lançou uma lança, quando Peiroo se afastava, acima do mamilo, e o bronze penetrou o pulmão; e Toante se aproximou, e retirou a lança vigorosa do peito de Peiroo, e puxou a espada, feriu o meio do estômago, e retirou-lhe o thymós. (HOMERO, Iíada, IV, vv. 517-31).

    Em meio a orações coordenadas, marcadas pelo estilo analítico, pode-se notar

    que, no verso 524, o termo thymós (na forma de acusativo - thymón) aparece

  • 25

    complementando o verbo apopneîn (exalar, soprar para fora, em sua forma nominativa

    de particípio presente ativo), o que evidencia a relação desse conceito com a psykhé, a

    qual, como mencionado anteriormente, exprime etimologicamente, e de maneira

    onomatopaica, a ideia de sopro. Na segunda ocorrência, ao final do verso 531, o termo

    thymós (mais uma vez, na forma de acusativo) está associado à preposição ek, em uma

    timese que se evidencia por meio do verbo depoente aínymai (tomar, em sua forma de

    imperfeito).

    Por sua vez, Snell (2009, pg. 9) afirma que, assim como thymós, noûs significa

    espírito, sendo thymós o que provoca as emoções, e noûs, o que faz surgir as imagens.

    Pode-se, portanto, entender o noûs como intelecto, capacidade de pensar. No entanto,

    da mesma maneira que os demais termos usados para expressar a noção de espírito, na

    obra de Homero, noûs pode ser traduzido de diversas maneiras, dependendo de sua

    utilização no contexto literário da narrativa épica. Mas embora o noûs e o thymós sejam

    usados para expressar ações do espírito, o noûs, de acordo com Reale (2002, pg. 7),

    nunca é associado ao sentimento, mas antiteticamente em relação a ele, salvo casos

    excepcionais.

    Já a palavra phrén pode, algumas vezes, ser entendida como um órgão físico que

    está situado no peito e bem perto do coração. É assim que Homero a utiliza (no plural,

    phrénes), na seguinte passagem: “Πάτροκλος: τοῦ δ' οὐχ ἅλιον βέλος ἔκφυγε χειρός,

    ἀλλ' ἔβαλ' ἔνθ' ἄρα τε φρένες ἔρχαται ἀμφ' ἁδινὸν κῆρ.” / “A mão de Pátroclo não

    arremessou a lança em vão, mas lançou-a onde as phrénes circundam o musculoso

    coração.” (HOMERO, Ilíada, XI, vv. 480-481).

    Em outras passagens, o termo phrén expressa um sentimento, mas, na maioria

    das vezes, indica o que se relaciona com a mente, o entendimento, como se pode

    perceber no momento em que Pátroclo se dirige a Heitor: ἄλλο δέ τοι ἐρέω, σὺ δʼ ἐνὶ

    φρεσὶ βάλλεο σῇσιν· / Outra coisa, porém, quero te dizer, e tu, guarda-a bem no teu

    peito (nas phrénes):....” (Ilíada XVI, 851). É importante destacar aqui uma construção

    sintática, recorrente no estilo formular de Homero: a utilização da preposição ἐνὶ20

    regendo a forma de dativo plural de phrén (phresí). Essa expressão, formada pela

    preposição mais o dativo, desempenha a função sintática de adjunto adverbial de lugar

    “onde” por excelência na língua grega, evidenciando bem o quanto o conceito de phrén

    pode ser usado, no âmbito humano, para expressar uma interioridade relativa a uma

    20 Forma jônica equivalente ao ático ἐν. Cf. Bailly.

  • 26

    compreensão íntima e importante para os dois participantes do contexto literário: um

    conselho importante da parte de um emissor (conselheiro) e uma mensagem valiosa a

    ser compreendida por um receptor (aconselhado). Tal relação é bem enfatizada no uso

    da forma verbal βάλλεο (imperativo presente médio, segunda pessoa do singular do

    verbo βάλλω), que determina todo o ato de linguagem, possibilitando a utilização do

    adjunto adverbial na interação íntima entre os dois personagens.

    Após a discussão dos termos que se relacionam ao intelecto e às emoções, é necessário acrescentar ainda algumas informações importantes sobre a palavra psykhé. A primeira ocorrência dessa palavra, em Homero, está registrada logo no começo da Ilíada:

    Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος οὐλομένην, ἣ μυρί' Ἀχαιοῖς ἄλγε' ἔθηκε, πολλὰς δ' ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν A ira canta, deusa, do filho de Peleu, Aquiles, ira funesta, que dores sem conta trouxe aos Aqueus, e muitas vidas de heróis lançou no Hades, ficando, eles mesmos, atirados aos cães e às aves de rapina. (HOMERO, Ilíada, I, vv. 1-4, tradução nossa)

    Gual (2004, p. 47) destaca que a palavra psykhaí, em negrito no terceiro verso,

    frequentemente traduzida por almas, refere-se às vidas dos heróis, não tendo, de forma

    alguma, no contexto em questão, toda a carga semântica que a palavra alma

    tradicionalmente virá a ter. De fato, muitos tradutores optam por traduzir o mesmo

    termo por vidas, como o autor da presente tese. Gual ressalta ainda que a palavra

    psykhaí estabelece uma oposição com αὐτούς (eles mesmos), ou seja, as almas/vidas são

    lançadas no Hades, e os corpos, a parte mais importante (“eles mesmos”), atirados aos

    cães e às aves de rapina.

    Em outras passagens, pode-se encontrar a psykhé escapando do corpo, pela

    ferida ou pela boca, Homero (Ilíada, XVI, 855-858):

    “A estas palavras, envolveu-o o termo da morte.

    A psyché evola-se dos membros para o Hades,

    Ao deixar a força da juventude, gemendo a sua sorte.”

    O sentido de psykhé como vida ou sopro de vida em Homero fica evidente nas

    duas passagens acima. De fato, a palavra adquiriu, ao longo da Antiguidade grega, uma

    série de significados; um dos mais antigos foi o de borboleta, evidentemente associado

  • 27

    ao sopro sugerido pela enunciação do verbo psýkhein (soprar); e é voando que a psykhé

    deixa o corpo pela boca ou pela ferida do guerreiro, dirigindo-se então para o Hades.

    Reale (2002, p. 70-74) destaca que ali, no Hades, a psykhé passa a existir apenas

    como um espectro do defunto, e, portanto, sem capacidade de sentir, de querer e de

    conhecer, ou seja, desprovida de consciência. O mesmo autor ressalta ainda que, dentre

    as passagens onde a psykhé retém uma consciência, apenas três podem, efetivamente,

    ser consideradas significativas: Ilíada, XXIII, vv. 57-107, Odisseia, XI, vv. 90-99 e

    Odisseia, XI, vv. 204-224.

    No primeiro excerto, no canto XXIII da Ilíada, a psykhé de Pátroclo vem até

    Aquiles enquanto este dormia na beira da praia e lhe pede para sepultar o seu corpo,

    pois as psykhaí habitantes do Hades não permitem a entrada dos que na terra ainda têm

    seus corpos insepultos. O próprio Pátroclo adverte a Aquiles que sua presença ali só é

    possível enquanto o seu corpo não for cremado, ou seja, a sua psykhé está dotada de

    consciência porque ainda não se desligou totalmente do corpo; esse desligamento só se

    consumará mais adiante, com os rituais fúnebres (Ilíada, XXIII).21 No entanto, fica

    evidente que apenas o espectro de Pátroclo aparece a Aquiles, pois este tenta abraçá-lo,

    mas a imagem do companheiro se esvai como fumaça.

    No segundo excerto (Odisseia XI, 90-99), Odisseu encontra-se no Hades,

    buscando saber de Tirésias, quando enfim regressará ao lar. O adivinho pede ao senhor

    de Ítaca que o deixe beber do sangue dos animais cujos corpos foram depositados pelo

    herói num fosso cavado na terra, pois, ainda que os deuses tivessem concedido a ele,

    Tirésias, algum conhecimento excepcional, mesmo estando ali, no Hades, só ao beber

    do sangue ele efetivamente poderia proferir uma profecia.

    No terceiro excerto (Odisseia, XI, 204-224), Odisseu conversa com sua mãe,

    Anticleia. Após beber do sangue dos animais sacrificados, Anticleia, quando o filho

    quer saber por que ela se esquiva de seus abraços, responde que a psykhé se assemelha a

    uma sombra dos sonhos, pois, tão logo o thymós abandona o corpo, o fogo o consome

    inexoravelmente.

    Assim sendo, pode-se supor que, salvo nos casos de um corpo continuar

    insepulto, como na passagem em que Pátroclo aparece a Aquiles, nos casos de a psykhé

    21 Poder-se-ia afirmar que a dualidade alma/corpo se evidencia na própria homenagem feita ao herói, Pátroclo, ao longo de quase todo o canto XXIII. Primeiro, tem-se o tratamento dado ao corpo, com as homenagens associadas à cremação; depois, a realização dos jogos fúnebres, com a representação terrena da ação heroica, recuperando-se assim, como uma lembrança perene, o homem, apenas existente com a união entre corpo e alma.

  • 28

    ingerir sangue, como o fizeram Tirésias e Anticleia, e nos casos de os deuses

    concederem uma consciência, a psykhé vaga a esmo no Hades, aparecendo como um

    “não ser”, ou seja, um espectro sem consciência. Dessa forma, pode-se perceber que a

    ideia de continuidade da vida após a morte não é algo presente no mundo homérico: a

    psykhé que vai habitar no Hades não passa de um “não-ser-mais-do-eu” ou um “eu-que-

    não-é-mais”, para se expressar nos termos de Reale (2002, p. 74).

    Chega-se a essa conclusão, seguindo os três exemplos aqui citados, propostos

    por Reale. É evidente que o assunto é extremamente complexo e amplo, de sorte que as

    opiniões dos especialistas podem variar e até mesmo divergir, o que torna ainda mais

    animador o estudo empreendido nesta tese, devido às várias possibilidades de leitura.

    Tão difícil quanto resgatar os conceitos homéricos, em meio ao pensar ainda

    analítico que emana tanto da Ilíada quanto da Odisseia, é apontar as mudanças sociais,

    filosóficas, religiosas e históricas que geraram as diferenciações pós-homéricas,

    frisando-se aqui que a diferença nada mais é do que uma evolução lógica desenvolvida

    das maneiras anteriores de se entender o mundo. É assim que a mudança deve ser

    compreendida, mesmo nos estudos a respeito das culturas da Antiguidade, nas quais,

    muitas vezes, os dados não são comprovados, dispondo-se apenas de hipóteses.

    Como considerado neste tópico, não havia ainda em Homero os conceitos

    unitários de alma e corpo para os termos psykhé e sôma. A psykhé era entendida apenas

    como uma parte da alma, juntamente com o thymós, o noûs e o phrén, não havendo,

    portanto, no pensamento analítico do maior dos aedos, um termo único para designar a

    alma, e nem o conceito de corpo para o ser humano vivente, uma vez que, no contexto

    literário homérico, a palavra sôma, que mais tarde designará tal corpo, significava

    apenas o corpo de um indivíduo morto, ou seja, um cadáver. Esse modo de pensar

    analítico, perceptível até na predominância da parataxe no texto homérico, como foi

    mencionado, dará lugar, conforme a sociedade grega vai se desenvolvendo, a uma nova

    maneira de compreender o mundo. Desse modo, passa-se agora a apontar alguns fatores

    que parecem esclarecer tais mudanças.

    Já no século VIII a. C., o surgimento de uma nova classe social nas comunidades

    gregas, enriquecida com as atividades mercantis decorrentes do desenvolvimento do

    comércio e das técnicas marítimas, foi determinante para o próprio advento de um

    alfabeto adaptado à língua grega e aos interesses do povo helênico; posteriormente, esse

    alfabeto serviria a toda cultura grega dos séculos subsequentes, chegando até mesmo a

    ser utilizado por autores gregos pós-clássicos pelo motivo de o idioma grego ter se

  • 29

    tornado tão importante culturalmente22. Essa nova classe social de indivíduos ricos,

    inserida entre esses comerciantes marítimos responsáveis pelo alfabeto, foi determinante

    para o aparecimento de uma nova literatura que atendesse aos seus anseios - a poesia

    lírica do século VII a. C., voltada para o cotidiano do homem grego e não para o mundo

    externo, mítico e distante no tempo, alicerçado na representação de heróis e deuses.

    Soma-se a isso, no século seguinte, o surgimento da filosofia em Mileto, cidade

    cosmopolita, culturalmente marcada por uma relativização dos mitos, levando o debate

    daí decorrente à insatisfação com as respostas proporcionadas pelo pensamento mítico.

    Dessa insatisfação, surge o pensamento filosófico e científico. É interessante perceber

    que a poesia lírica, antes da filosofia, é a primeira manifestação intelectual artística dos

    gregos que se direciona para a phýsis - ação de desenvolver de tudo que se encontra no

    mundo observável, ao focalizar a vida cotidiana das comunidades helênicas, buscando,

    assim como a filosofia,23 no mundo palpável dos homens, o seu próprio material

    poético.

    No contexto bélico, com a presença do hoplita, este soldado anônimo que

    engrossa as fileiras dos combatentes defensores da pólis, apropriando-se da areté

    homérica em proveito da terra de seus pais, e deixando para trás o guerreiro

    individualista homérico ansioso pela glória nos campos de batalha, a classe social dos

    novos ricos se sentiria representada, uma vez que ela mesma não se identificava com

    uma aristocracia guerreira pautada pela ideia de reis divinos. De maneira bastante

    pertinente, Vernant destaca essa nova virtude guerreira como fazendo parte da

    sophrosýne, o bom-senso. 24

    Além das características supracitadas, deve-se dizer ainda que as leis e a religião

    também se desenvolvem em solo grego. Isso fica perceptível, até mesmo em uma

    22 O alfabeto grego foi criado na Grécia como uma adaptação necessária ao idioma helênico a partir do alfabeto fenício, que, aparentemente, chegara à Hélade por intermédio de comerciantes oriundos da Palestina. Possivelmente, o contato entre nautas fenícios e gregos se deu, inicialmente, na ilha de Rodes, solo grego mais próximo do território palestino. Para maiores detalhes, ver HORTA, Guida Nedda Barata Parreiras. Os gregos e seu idioma. 23 Referindo-se à concepção de psykhé dos chamados filósofos naturalistas, afirma Santos (1999, p. 32) que, excetuando-se pensadores como Empédocles e Pitágoras, que adotaram ideias órficas, de modo geral, “Eles identificavam logicamente a alma com aquele princípio que dá vida e movimento ao corpo, que é parte e momento do princípio supremo do cosmo. Nesta indagação eminentemente cosmológica, tais filósofos entendiam, portanto, a psykhé como a força vital que move o mundo e move tudo o que, sem ela, seria necessariamente algo rígido e imóvel. O homem, como tal, em sua subjetividade, não é objeto ainda de uma pesquisa autônoma, mas apenas uma parte ou elemento da natureza. Assim compreende-se por que a tenham identificado com a água (Tales de Mileto), com o ar (Anaxímenes) e com o fogo (Heráclito)”. 24 Cf. Vernant (2000, p. 51).

  • 30

    comparação entre a Ilíada e a Odisseia25, comparação perfeitamente plausível, uma vez

    que a maioria dos estudiosos defende a tese de que a Odisseia seria pelo menos

    cinquenta anos posterior à Ilíada (alguns chegam mesmo a falar de cem anos)26. E

    independentemente de o conceito de psykhé ser analítico, tanto na Ilíada quanto na

    Odisseia, deve-se frisar que a segunda epopeia já reflete muito da nova classe social em

    ascensão27.

    O contexto literário do mundo centrado no oîkos, característico da Odisseia,

    descreve um cotidiano mais organizado que o apresentado na cidade de Troia, na Ilíada.

    A grande propriedade inclui simples casas rústicas à volta da casa do senhor e da

    senhora, onde se desenvolvem as atividades rurais e pastoris. O homem comum (kakós,

    em oposição ao agathós), tão pouco distinguido na Ilíada, já dispõe de um espaço

    significativo na Odisseia. O porqueiro Eumeu e o boieiro Filétio, por exemplo, como

    fiéis escravos de Odisseu, enfrentam os pretendentes ao lado do herói, portando-se

    como nobres guerreiros. Assim sendo, já se antevê, nesse poema de nóstos, a ascensão

    da nova classe social que se contrapõe à aristocracia. O excerto que se segue, em que

    Odisseu se dirige aos dois criados, ilustra claramente esse aspecto:

    εἴ χ᾽ ὑπ᾽ ἐμοί γε θεὸς δαμάσῃ μνηστῆρας ἀγαυούς, ἄξομαι ἀμφοτέροις ἀλόχους καὶ κτήματ᾽ ὀπάσσω οἰκία τ᾽ ἐγγὺς ἐμεῖο τετυγμένα: καί μοι ἔπειτα Τηλεμάχου ἑτάρω τε κασιγνήτω τε ἔσεσθον. Se, por mim, um deus matar os nobres pretendentes, levarei, para ambos, esposas, e riquezas vos darei, e uma casa, perto de mim; e, então, aqui presentes, companheiros e irmãos de Telêmaco sereis. (HOMERO, Odisseia, XXI, vv. 214-216, tradução nossa).

    Esse ambiente predominantemente agrário caracteriza-se por um espaço muito

    mais organizado do que na Ilíada, em termos sociais e religiosos. Diferentemente da

    epopeia guerreira, a Odisseia apresenta regras mais claras, como, por exemplo, o direito

    dos suplicantes; por outro lado, são mais raras as intervenções divinas na vida cotidiana

    dos homens. O mundo dos deuses, na Ilíada, carece de uma justiça divina que dê conta

    do todo (como é possível observar, por exemplo, em Ésquilo), pois os deuses tomam

    25 A maior parte das ideias aqui apresentadas acerca dos poemas homéricos baseia-se em Romilly (2001). 26 Já na Antiguidade, mais precisamente no período helenístico, havia os corizontes, estudiosos que atribuíam autoria diferente para a Ilíada e para a Odisseia. A terminologia é formada do particípio presente do verbo khorízein (“separar”). 27 O próprio Odisseu, como um heleno astucioso, que muito aprende ao interagir com outros povos, é um bom representante desses novos tempos.

  • 31

    partido de uma ou de outra personagem, de acordo com seus caprichos ou graus de

    parentesco28. Na Odisseia, por sua vez, esse quadro se altera um pouco. A relação entre

    Odisseu e Atena é muito mais profunda e íntima do que na Ilíada, pois o elo que une o

    homem e a deusa parece ser estabelecido por regras pré-determinadas, afigurando-se

    mais respeitosa a própria devoção para com os deuses. Na Odisseia, os deuses não são

    feridos pelos homens, como na Ilíada; e, no tocante às leis, este fenômeno que parece

    estar estritamente associado ao desenvolvimento da religiosidade, a Odisseia apresenta

    um mundo muito mais organizado; basta chamar a atenção para a já mencionada

    presença comum do direito dos suplicantes.

    Por consequência, o desenvolvimento de ações relacionadas com o aparecimento

    da nova classe social em ascensão no solo grego já se faz perceptível no contexto

    literário da Odisseia. No caso mais específico da religiosidade, tal desenvolvimento

    pode ser evidenciado com as religiões de mistérios disseminadas na Grécia Antiga,

    destacando-se o orfismo, por sua inegável influência. A importância da psykhé, agora

    efetivamente entendida por inteiro como alma, pelos adeptos do orfismo, faz com que o

    pesquisador se volte então para essa religião de mistérios, dialogando com os poucos

    testemunhos disponíveis para a mínima compreensão do fenômeno.

    3.2 Os órficos

    Neste momento da odisseia pelos caminhos da alma, na antiga Hélade, é

    importante embarcar mais uma vez na contação do mito de Orfeu, associando-o a

    Dioniso e sugerindo sua influência sobre o culto de Deméter e Core e os ritos de

    Elêusis, por sua vez, relacionados a antiquíssimos cultos agrários centrados na terra.

    O santuário de Elêusis e seu complexo ritual estão associados às narrativas de

    Deméter e Core, sua filha. Deméter, filha de Crono e de Reia, é uma deusa associada à

    natureza com toda a sua fecundidade. Seu nome significa “mãe terra”, podendo ser

    também considerada a “mãe doadora”. Responsável pela agricultura, ela é a deusa da

    terra cultivada, que nutre os homens. Doando os cereais, particularmente o trigo, aos

    mortais “comedores de pão”, ela assegura a passagem da nossa condição selvagem à

    cultura e à civilização. Nesse sentido, Deméter personifica uma das multivariadas faces 28Enéias e Páris, por exemplo, são favorecidos por Afrodite, não por seus méritos, mas simplesmente pelo fato de o primeiro ser filho da deusa, e de o segundo a ter favorecido no episódio do pomo da discórdia, não mencionado na Ilíada. Isso é muito diferente do favor divino ou do castigo concedido ao chefe nas tragédias de Ésquilo, sobretudo em Persas e em Sete Contra Tebas.

  • 32

    da poderosa Mãe Terra, diferenciando-se não apenas de sua avó, Gaia, a terra

    primordial, elemento cósmico fundamental na origem do mundo, mas também de sua

    mãe, Reia, terra de natureza selvagem. A associação de Deméter com os cereais faz com

    que, posteriormente, no contexto da sociedade romana, ela venha a ser identificada com

    Ceres, divindade itálica da agricultura, vinculada à terra cultivada e às abundantes

    searas em flor.

    Deméter uniu-se a Zeus, seu irmão, e deu à luz Core (Moça). Hades, irmão de

    Zeus e de Deméter, e, portanto, tio de Core, apaixonou-se pela jovem. Aproveitando o

    instante em que ela colhia flores com as amigas num prado da Sicília, Hades emergiu

    dos infernos num carro puxado por quatro cavalos negros, e arrebatou-a, carregando

    com ela para o fundo da terra. Procurando pela filha adorada, Deméter buscou-a ao

    longo de nove dias e nove noites, levando em cada mão um archote. Quando Hélio, o

    sol de olho onisciente, conta-lhe do sequestro de Core por Hades, Deméter decide não

    regressar ao Olimpo, e deixa de lado suas atividades divinas. Assumindo então as

    feições de uma mulher idosa, a deusa caminha errante pelo mundo, até chegar a Elêusis,

    onde é hospitaleiramente acolhida pelo rei Céleo e sua esposa. Deméter passa então a

    desempenhar a função de ama do filho mais novo dos soberanos, Demofonte. Grata aos

    anfitriões, ela procura imortalizar o pequenino, imergindo-o numa espécie de chama

    purificadora. A rainha, no entanto, deixa-se levar pela inquietação, e surpreende a deusa

    com o menino nas chamas; Deméter se enfurece e deixa a criança queimar,

    abandonando em seguida o palácio, após ter ordenado aos eleusinos a construção de um

    templo, dando-lhes todas as instruções para isso. Aí a terra se torna estéril: homens e

    animais definham, as searas murcham, as águas secam... Zeus intervém então, e intima

    Hades a devolver Core, agora chamada Perséfone (Senhora dos Mortos). Mas Hades,

    ardilosamente, convencera a jovem a comer sementes de romã, fruta associada ao

    casamento, prendendo-a irremediavelmente aos Infernos, pois aí abster-se de alimentos

    era condição sine qua non para que os vivos pudessem deixar de vez o submundo.

    Diante da recusa de Deméter em aceitar a ausência da filha, chegou-se enfim a uma

    solução de compromisso: durante um terço do ano, Perséfone ficaria com o marido;

    depois, poderia regressar à luz, passando com a mãe os outros dois terços do ciclo anual

    das estações.

    A narrativa mítica de Deméter e Core/Perséfone (identificada com a semente)

    evoca o mistério da brotação, sugerindo, evidentemente, a alternância das estações e o

    ciclo das plantações: na primavera, quando Perséfone está com a mãe, culmina a

  • 33

    brotação, com a subida da seiva das plantas; no verão, ainda em companhia da filha,

    Deméter, irradiando felicidade, faz desabrochar os vegetais; em seguida, os grãos

    voltam ao seio da terra, com Perséfone de novo com o marido, e o inverno encerra o

    ciclo, acenando, porém, para um reinício das coisas. O mito também afirma a relação

    entre o alimento, fonte de vida, e a morte: o grão morre e renasce, propiciando fartura e

    riqueza. A germinação da semente, propiciando novos e abundantes rebentos, vem a

    sugerir, com a possível influência das narrativas e práticas órficas, o renascimento do

    homem, após a morte, com a alma, a psykhé, transmigrando através de variados corpos,

    até a libertação do ciclo dos renascimentos. O ciclo da natureza é, por conseguinte, a

    própria imagem do destino do homem, num constante processo de nascimento-vida-

    crescimento-maturação-declínio-morte-regeneração. A iniciação nos mistérios da

    vegetação, numa provável confluência órfico-eleusina, possibilitaria ao homem, ao levar

    uma vida equilibrada, associada a determinadas práticas, abrir-se à ideia de morte e

    ressurreição, vislumbrando a alma a oportunidade de fugir à roda das transmigrações e

    alcançar, de vez, a felicidade e a vida eterna.

    Posteriormente, a deusa passa a ser cultuada também em Atenas, acolhendo

    homens e mulheres de qualquer condição social, mesmo os jovens, contanto que não

    tivessem cometido algum crime de morte. Nas Tesmofórias29, as mulheres casadas,

    campos férteis onde a semente (spérma) do esposo geraria filhos legítimos, futuros

    cidadãos da pólis, celebram com júbilo os dons da mãe poderosa. E no século IV a. C.,

    o culto de Deméter dissemina-se por todo o mundo helênico, principalmente às regiões

    produtoras de trigo (como Sicília e Campânia, por exemplo). Posteriormente, Elêusis e

    seus mistérios vieram a acolher até mesmo os escravos. Ainda segundo o mito, Deméter

    teria ofertado a Triptólemo, um dos filhos de Céleo, um carro atrelado a serpentes

    aladas e abarrotado de espigas de trigo, encarregando o jovem de difundir a cultura dos

    cereais por todo o mundo habitado, universalizando assim os mistérios.

    Os adeptos do culto eleusino eram unidos pelo juramento de manter segredo

    sobre o processo de iniciação. O objetivo da iniciação era despertar no candidato as

    emoções (páthe) apropriadas para a ocasião e apontar o caminho conduzindo à bem-

    aventurança após a morte.

    29 Festa celebrada pelas atenienses em honra de Deméter e Córe.

  • 34

    Os Mistérios de Elêusis30 desdobravam-se em duas etapas, caracterizando dois

    ritos de passagem fundamentais: (1) os “pequenos mistérios”, celebrados no começo da

    primavera, especialmente em honra de Perséfone, quando os adeptos se tornavam

    mýstes31 (iniciados); (2) os “grandes mistérios”, celebrados no tempo da semeadura,

    coincidindo com os meses de setembro e outubro. Um dia antes do início dos mistérios,

    eram transportados os objetos sagrados (hierá) de Elêusis para Atenas. No primeiro dia,

    o arconte-rei conclamava a multidão para a Stoà Poikíle, na ágora ateniense. Procedia-se

    então a proclamação solene (prórresis32), onde os iniciados eram advertidos de que

    deviam ter as mãos limpas e fala inteligível (a língua grega). No segundo dia,

    denominado “mistes, ao mar” (álade mýstai), os iniciados se purificavam, tomando um

    banho ritual. No terceiro dia, depois de terem se purificado no mar, os iniciados

    sacrificavam porcos à deusa, dando início, efetivamente, à iniciação. No quarto dia,

    comemorava-se Asclépio e a sua iniciação. No quinto dia, realizava-se o cortejo para

    Elêusis, quando as pessoas passavam por uma ponte, trocavam gracejos e até mesmo

    ditos obscenos, conhecidos por gephyrismoí (de géphyra, ponte), possivelmente tendo

    em vista objetivos apotropaicos, evitando assim os malefícios. O sexto dia era dedicado

    ao descanso, aos jejuns, às purificações e aos sacrifícios. Enfim, os iniciados eram

    conduzidos ao Eleusinion, um templo de Atenas dedicado exclusivamente aos mistérios,

    onde aconteciam as cerimônias propiciatórias do êxito da iniciação: as “coisas feitas”

    (tà drómena), talvez a dramatização33 do rapto de Perséfone; as “coisas mostradas” (tà

    deiknýmena), ou seja, os objetos sagrados – os hierá; as “coisas ditas” (tà legómena), no

    idioma grego. Depois dessas cerimônias, os futuros iniciados tinham de observar um dia

    de jejum, igualmente voltado para a purificação. No dia seguinte, eles se dirigiam em

    procissão até o Telestérion, a “sala de iniciação” do santuário de Elêusis.

    30 As principais fontes utilizadas pelo autor da monografia, na presente abordagem dos mistérios eleusinos, são PEREIRA (1980, P. 261-267) e CHALINE (2008). 31 A palavra grega mýstes significa “aquele que silencia”, “iniciado nos mistérios”. É formada do radical do verbo mýein (“silenciar”), acrescido do sufixo –stes, que indica o agente. 32 A palavra grega prórresis é formada por composição-derivação: à raiz do verbo eírein (“dizer”, “falar”, “anunciar”), são acrescentados o prefixo pro- (indicando anterioridade) e o sufixo –sis (indicando um processo); prórresis quer dizer, portanto, “proclamação”. Num mundo onde a oralidade pontificava, tratatava-se, efetivamente, de uma proclamação solene, num evento maior como a celebração dos mistérios de Elêusis. 33 Sendo a palavra drâma (“ação”) associada ao verbo drân (“agir”), cuja forma substantivada de particípio presente, tà drómena, se refere às “coisas feitas” na cerimônia dos Mistérios de Elêusis, é perfeitamente apropriado supor que, nas cerimônias realizadas no interior do telestérion, tivesse lugar uma dramatização do rapto de Perséfone, afinal de contas o evento central de todas as narrativas ligadas ao mito de Deméter e Córe/Perséfone.

  • 35

    Os segredos envolvendo os mistérios contribuíram para o desconhecimento

    quase total a respeito dos ritos do Telestérion, realizados à luz bruxuleante das tochas.

    Os sacerdotes apresentariam os objetos sagrados, recitariam fórmulas com gestos

    ritualizados, culminando