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INTRODUÇÃO (...) Será meia-noite certa: e o futuro já é passado nos vales do teu olhar.(Cecília Meireles – “5” – Metal Rosicler) A morte sempre foi um tema delicado para muitas pessoas, pois ninguém está acostumado com a idéia de que tudo se acaba, de que começamos a morrer no momento em que nascemos. É um tema que sempre assustou o ser humano na cultura ocidental. A dificuldade de aceitar a finitude das coisas leva-nos a olhar para a morte como uma inimiga, a qual devemos ignorar, combater e driblar, como se fosse possível. Quando a morte é negada, as pessoas perdem a noção da temporalidade e da sua própria transcendência. Ela é a única certeza de nossas vidas e o que há de comum para qualquer ser vivo, seja humano ou não. Um dia, o corpo se cansa, as doenças surpreendem, fatalidades acontecem e a morte chega, levando tudo. No Dicionário Larousse Cultural (1992), a definição da morte é “1. Cessação definitiva da vida, 2. Falecimento, passamento, óbito, 3. Maneira de morrer, 4. Fig. Destruição, termo, ruína, 5. Fig. Dor violenta, 6. Fig. Ausência de vivacidade, animação, imobilidade. 1 Certamente a morte é um dos componentes e objeto de estudo mais especulado por diversos discursos, seja através da religião, da filosofia, da medicina, da história e, finalmente, através da literatura. A tradição ocidental, notadamente a cultura européia, sempre buscou o entendimento sobre a morte a partir da cultura grega. Muito embora a visão do homem grego 1 LAROUSSE CULTURAL. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1992.

Cecilia Meireles e a Poéticada Morte: uma leitura hinduista

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Page 1: Cecilia Meireles e a Poéticada Morte: uma leitura hinduista

INTRODUÇÃO

(...) “Será meia-noite certa: e o futuro já é passado

nos vales do teu olhar.”

(Cecília Meireles – “5” – Metal Rosicler)

A morte sempre foi um tema delicado para muitas pessoas, pois ninguém está

acostumado com a idéia de que tudo se acaba, de que começamos a morrer no momento em que

nascemos. É um tema que sempre assustou o ser humano na cultura ocidental. A dificuldade de

aceitar a finitude das coisas leva-nos a olhar para a morte como uma inimiga, a qual devemos

ignorar, combater e driblar, como se fosse possível. Quando a morte é negada, as pessoas perdem

a noção da temporalidade e da sua própria transcendência. Ela é a única certeza de nossas vidas e

o que há de comum para qualquer ser vivo, seja humano ou não. Um dia, o corpo se cansa, as

doenças surpreendem, fatalidades acontecem e a morte chega, levando tudo.

No Dicionário Larousse Cultural (1992), a definição da morte é “1. Cessação

definitiva da vida, 2. Falecimento, passamento, óbito, 3. Maneira de morrer, 4. Fig. Destruição,

termo, ruína, 5. Fig. Dor violenta, 6. Fig. Ausência de vivacidade, animação, imobilidade.1”

Certamente a morte é um dos componentes e objeto de estudo mais especulado por diversos

discursos, seja através da religião, da filosofia, da medicina, da história e, finalmente, através da

literatura.

A tradição ocidental, notadamente a cultura européia, sempre buscou o

entendimento sobre a morte a partir da cultura grega. Muito embora a visão do homem grego

1 LAROUSSE CULTURAL. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1992.

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sobre a morte não seja popular, os pressupostos do discurso filosófico superam as demais

discussões sobre o assunto. Uma das mais destacadas e popularizadas em nossos dias é a visão de

perda e impotência nas sociedades ocidentais. Entende-se, de uma forma generalizada, que a

morte chega sem hora marcada, por isso, já que não sabemos até quando estaremos vivos na terra,

devemos aproveitar a vida, viver o instante, ou seja, CARPE DIEM2, cuja filosofia é aproveitar o

momento presente antes que ele acabe.

Entre muitos textos contemporâneos, vejamos, por exemplo, o texto fílmico

Sociedade dos poetas mortos3. A mensagem do CARPE DIEM foi a primeira lição do professor

de literatura John Keating, na Escola preparatória Welton Academy, em 1959. O filme demonstra

que a intenção do CARPE DIEM é fugir dos padrões e conceitos considerados ideais e valorizar

os sentimentos pessoais, satisfazendo-se intimamente e profissionalmente, sem seguir

planejamentos alheios, tanto familiares quanto sociais. Na verdade, isto não quer dizer viver sem

responsabilidades como muitos interpretam, no entanto, lembra-nos que nossa passagem nesta

vida é curta e devemos gozá-la da melhor maneira.

Entretanto, o CARPE DIEM é apenas um dos discursos sobre a relação entre a

morte e a vida. Na verdade, existem outros discursos que influenciam e determinam a conduta do

homem comum e seu entendimento sobre a morte. O temor da morte é mais comum entre os

ocidentais do que entre os orientais. Estudos a respeito dos primórdios da civilização ocidental

relacionam o aparecimento das primeiras angústias metafísicas do homem aos registros dos sinais

2 O termo latino, que significa “aproveite o dia”, surgiu no Arcadismo, através de Horário (68 a.C. a 8 a.C.) 3 O professor incentivava seus alunos a criarem suas próprias opiniões, contrariando os métodos rígidos e ortodoxos da escola. Ao observar os alunos inseridos num sistema autoritário, o professor estimula-os a buscarem oportunidades externas às impostas pela instituição. Dessa forma, Keating expõe novas formas de ver o mundo em que vivem e faz brotar nos jovens sentimentos de quebra das barreiras, impostas pela sociedade. O ponto culminante do filme é o suicídio de um dos alunos, Neil Perry, que ao tentar seguir a tão sonhada carreira de ator, foi impedido por seu pai, preferindo a morte a continuar acorrentado às tradições sociais da época. O professor quebrou o tradicionalismo da escola interna e ensinava a seus alunos algo além dos livros de literatura, uma das lições era buscar o que trazia felicidade, recitar poemas sob uma gruta em plena madrugada.

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de culto aos mortos. Se deixarmos de lado o temor que temos dela e passarmos a olhá-la com

mais aceitação, veremos que a morte nos fala sobre o que estamos fazendo de nossas vidas,

alertando-nos que não somos imortais, e que, portanto, não devamos abandonar nossos sonhos

nem deixar de corrermos riscos.

Segundo Rubem A. Alves (1991), “... a morte não é algo que nos espera no fim. É

companheira silenciosa que fala com voz branda, sem querer aterrorizar, dizendo sempre a

verdade e nos convidando à sabedoria de viver.4” A morte é uma companheira, não uma

adversária. Ela é a ponte para o homem atingir sua plenitude, encontrar-se consigo mesmo

através de Deus. E esse encontro só é possível através da morte, da crença na eternidade.

Portanto, a morte se apresenta como uma fronteira que não significa o fim da vida, mas o limiar

de outra realidade instigante, embora incompreensível, além de atemorizadora.

A morte daqueles que amamos e a iminência da nossa própria morte estimulam a

crença a respeito da imortalidade. De acordo com nossa crença popular, não sabemos para onde o

ente querido se reporta após a morte, mas acreditamos que sua alma se encaminha para um local

supremo, onde possa vivenciar sua eternidade. Pessoas que “foram tocadas pela morte5”, mas

sobreviveram, têm uma outra maneira de encará-la. De acordo com Frei Hugo D. Baggio (1991),

“a experiência pessoal, [...] deixa, no entanto, um rastro luminoso que ajuda o homem a viver

adiante, na sua caminhada, rumo à decifração desta tão verdadeira verdade: a sua própria

morte...6” O ser humano busca descobrir ou reencontrar sua essência, e encontrar um sentido e

valor espiritual para sua vida. Quanto mais ligados à dimensão divina, mais preparados os

homens estarão para a morte.

4 ALVES, Rubem A. A morte como conselheira. In. Da morte: estudos brasileiros. Campinas: Papirus, 1991, p. 12 5 Pessoas que sofreram acidentes gravíssimos e estiveram em coma, “à beira da morte”, na linguagem popular. 6 BAGGIO, Frei Hugo D. Minha experiência com a morte... In. Da morte: estudos brasileiros. Campinas: Papirus, 1991, p. 196

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Os antropólogos Hennezel e Leloup (1999) relacionam, metaforicamente, o

fenômeno da morte com a borboleta libertando-se do casulo da seguinte forma:

O tempo de vida, o tempo do nosso corpo físico talvez seja o casulo no qual se prepara a borboleta que somos. [...] A lagarta que somos já entende palpitar a borboleta que também somos, e acontece que nos sentimos apertados nesse corpo, sentimos a limitação das palavras, de nossas pequenas emoções, de nossos pequenos amores...7

Embora a citação seja norteada por elementos puramente subjetivos, eles destacam

a morte como um fenômeno cultural que possui basicamente três perspectivas:

1. No Ocidente, há a recusa da idéia da própria morte e uma certa dificuldade de

aceitação da morte do outro;

2. Pela sabedoria budista, a morte é aceita como parte integrante da vida;

3. Os índios da América têm a consciência de estarem de passagem nesta terra,

transportando a morte como uma ave invisível no ombro esquerdo.

As duas últimas se completam, opondo-se à primeira. De acordo com tradições

milenares, os povos nativos cercam a morte de muita atenção e cuidados especiais, de forma

ritualística pela comunidade, pois acreditam que a morte está à nossa esquerda como mestra e

conselheira. Já a cultura ocidental não nos ensina a morrer. “Tudo é feito para esconder a morte,

para incitar-nos a viver sem pensar nela. [...] Tampouco nos ensina a viver. No máximo a ter

êxito na vida, o que não é a mesma coisa.8” Buscamos a felicidade material, que mais tarde

percebemos não ser suficiente para dar sentido à nossa existência. A angústia e o sofrimento são

conseqüências de uma vida distanciada do espiritual, profunda separação das raízes e origens de

cada um. Só através da dimensão espiritual é possível encontrar o verdadeiro sentido.

7 HENNEZEL, Marie de e LELOUP, Jean-Yves. A arte de morrer: tradições religiosas e espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. Petrópolis: Vozes, 1999 apud MACIEIRA, Rita de Cássia. O sentido da vida na experiência da morte: uma visão transpessoal em psico-oncologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001, p. 47-48 8 HENNEZEL; LELOUP. ibidem. p. 17

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É importante expor a distinção que Hennezel e Leloup fizeram com relação à

espiritualidade e à religião. Segundo eles, a espiritualidade é o questionamento da existência e a

religião representa as respostas a estas questões através de práticas e crenças. A espiritualidade

existe para além da religião, pois focaliza a própria essência do homem. A religião, religare

significa ligar-se, é o esforço para encontrar sentido no sofrimento, na morte e na existência. Já a

espiritualidade, independe da experiência religiosa, pois constitui a própria essência do ser

humano. Ser espiritual é estar livre de emoções, pulsões e paixões.

Entre todos os discursos panoramicamente aqui mencionados, a morte tornou-se

um objeto constante da literatura, especialmente de poetas. Embora o Modernismo e suas

vanguardas tenham enfatizado novos elementos importantes na poesia, a temática da morte

tradicionalmente permanece como objeto temático de poetas modernistas, notadamente a corrente

espiritualista.

No Brasil, esta corrente tem Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964)

da geração de 1930 como uma das mais importantes poetisas9. A poesia de Cecília Meireles

reflete um desapego às coisas terrenas e materiais, ela é mais voltada para o aspecto místico, o

que a aproxima da proposta poética da Revista Festa10. Para os colaboradores desta revista, que

receberam influência de Rabingranath Tagore (1861-1941)11, as idéias modernistas de 1922

pouco tinham relevância, isto porque discutiam temas e técnicas. Posteriormente, a temática da

morte foi ainda mais enriquecida através de suas leituras sobre o Hinduísmo e a sua visita à Índia.

9 Cf. CAVALCANTE, Djalma. Passagem para a Índia. In: CULT 51, Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial, out. 2001, p. 54 10 A Revista Festa surgiu no Rio de Janeiro, em 1927. Ela valorizava a linha espiritualista, fundada por Tasso de Oliveira e tinha Cecília Meireles como colaboradora. 11 Rabingranath Tagore foi um poeta indiano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1913. Ele foi admirado, reverenciado e estudado por Cecília Meireles. Esta, por sua vez, recebeu o título de Doutor Honoris Causa, em 1953, pela Universidade de Nova Délhi, por sua dedicação à cultura indiana.

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Cecília Meireles teve sua vida profundamente marcada pela sucessão de mortes de

familiares12. Na grande maioria dos estudos feitos sobre sua poesia, poucos críticos enfocam a

morte como tema principal e motivador da poesia de Cecília Meireles. Nosso trabalho, portanto,

objetiva o estudo desta temática e o papel do Hinduísmo como elemento acessório na elaboração

de sua poética.

Para tanto, esta pesquisa se propõe a uma leitura dos poemas “Aceitação”,

“Êxtase”, “Distância” e “Rimance” do livro Viagem13 (1939); “Lei do Passante”, “Poeira”,

“Pedras”, “Cançãozinha para Tagore” e “Família Hindu” do livro Poemas escritos na Índia

(1953), que marcam sua viagem ao país; e três poemas do livro Metal Rosicler14 (1960), os quais

não são intitulados. Entendemos que o corpus aqui relacionado nos servirá como uma ocorrência

temática comum a toda sua poética, enfatizada por alguns críticos como veremos posteriormente.

Ao estabelecermos a correlação entre a literatura e alguns dos pressupostos

metafísicos do Hinduísmo, tencionamos sugerir um paradigma de estudo muito pouco explorado

no que se refere ao estudo de Cecília Meireles e a sua influência hinduísta.

Notamos as três obras como representativas do início, meio e fim de sua carreira

literária. Esperamos que os poemas relacionados nos permitam analisar o valor simbólico da

presença do Hinduísmo como elemento catalisador de seu fazer poético e os vários níveis de

representações imagísticas.

12 Seu pai morreu antes de ela nascer; sua mãe morreu quando tinha apenas três anos de idade. Viu, ainda, a morte de sua avó, por quem foi criada desde pequena; e o suicídio do primeiro marido. 13 O livro Viagem foi considerado por Mário de Andrade, em O empalhador de passarinhos, como a obra de maturidade de Cecília Meireles, colocando-a no rol dos melhores escritores do Brasil. Realmente, esta obra rendeu-lhe o 1º prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938, fato que valorizou a Academia segundo o próprio Mário de Andrade. 14 Os três livros fazem parte da antologia Poesias Completas de 2001, publicado em comemoração ao centenário de nascimento da autora.

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Outra questão a ser investigada é entender a relevância da própria literatura no que

se refere ao tema da morte proveniente de movimentos estéticos que antecederam o Modernismo

e influenciaram a poética ceciliana.

No presente trabalho, destacamos aspectos relacionados ao discurso literário, o

filosófico e o religioso. Para tanto, faremos uso de abordagens sobre as poesias românticas e as

simbolistas, e a filosofia de Shopenhauer sobre a morte. Finalmente, destacamos alguns aspectos

sobre o Hinduísmo como um sistema de idéias que influenciaram a obra ceciliana. Os três juntos

justificam a plurifocalidade de Cecília Meireles como poetisa comprometida com uma visão de

mundo literário e filosófico.

Do ponto de vista literário, apresentamos brevemente o tema da morte

contemplado em alguns movimentos estéticos, notadamente o Classicismo, o Romantismo e o

Simbolismo, como elementos que contribuíram para inserção de Cecília Meireles na corrente

espiritualista do Modernismo. Já o Hinduísmo, como uma visão de mundo espiritual, foi

incorporado posteriormente como subsídio para uma aceitação poética da morte e de ligação com

o Absoluto. As perspectivas sobre a morte nesses movimentos são aspectos panorâmicos, uma

vez que já foram considerados pelos críticos como importantes na poética ceciliana.

No primeiro capítulo, intitulado “A morte como uma construção filosófico-

literária” é nosso objetivo mostrar a morte representada na poesia clássica, através do livro

Eneida, de Virgílio, e no Romantismo por meio da poesia de Álvares de Azevedo, por

considerarmos, respectivamente, os dois poetas como representativos da poética clássica e da

temática da morte no Classicismo e no Romantismo brasileiro. Já a abordagem de Shopenhauer

sobre a morte encontra-se vinculada ao Simbolismo e, especialmente, à corrente espiritualista da

qual Cecília Meireles está inserida.

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No segundo capítulo, “O Hinduísmo, seus intérpretes e a morte”, estudaremos a

forma como o Hinduísmo se organiza como um sistema de idéias destacadas por Cecília Meireles

em sua poética. Serão de grande relevância os pressupostos de alguns intérpretes hinduístas como

Sri Ramakrishna, Swami Vivekananda e Mahatma Gandhi.

No terceiro capítulo, “A temática da morte na poesia ceciliana: uma revisão

crítica”, pretendemos investigar como a crítica percebeu a importância da temática da morte no

contexto da poética ceciliana e, finalmente, correlacionamos o corpus supracitado a imagens

específicas nos poemas, as quais serão consideradas como representações sobre a visão de mundo

no Hinduísmo.

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CAPÍTULO 1 A MORTE COMO UMA CONSTRUÇÃO FILOSÓFICO-LITERÁRIA

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1.1. A morte na poesia clássica

Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos,

e, para mais me espantar, os maus vi sempre nadar

em mar de contentamentos.

(Luís de Camões – “Ao desconcerto do mundo”)

A Era Clássica iniciou-se no século XVI e terminou no século XVIII, quando a

literatura foi marcada pela influência da cultura greco-latina e dos humanistas italianos, devido ao

surgimento do Renascimento na Itália. Foi um momento de grandes transformações culturais,

científicas e artísticas. Abandonou-se o homem medieval, que se preocupava com as coisas do

espírito e nascia um homem empenhado em transformar e dominar o mundo, colocando-se como

centro de todas as coisas (antropocentrismo). O Renascimento incitou o homem a criar seu

próprio universo a partir da insatisfação e busca de felicidade através da morte.

Surgia uma nova realidade mercantil, caracterizada pelas atividades comerciais.

Esse renascimento comercial criou um intercâmbio entre o Oriente e o Ocidente, sendo o

principal fator do crescimento cultural. Assim, o Cristianismo foi substituído pela mitologia

greco-latina. Nesse momento, nascia o Classicismo.

Surgiram, então, as obras líricas e épicas de Camões. Este poeta fazia reflexões

filosóficas e narrava os feitos heróicos do português. Em meio a essas reflexões, Camões se

preocupava com as injustiças e exaltava isto em seus versos: enquanto os homens bons sofriam,

os maus desfrutavam de privilégios e de alegrias. O poeta ainda considerava a ambição e a

avareza inúteis diante da vida, já que tudo acaba com a morte.15.

15 Cf. epígrafe no início do capítulo.

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Para mostrarmos a representação da morte na poesia clássica, escolhemos a

epopéia Eneida, de Virgílio, a qual descreve as aventuras heróicas de Enéias, munido de forças

sobre-humanas. A partir de um conflito pessoal e a necessidade de auto-afirmação do homem, na

poesia clássica grega, verificamos que a morte circunda as representações do mundo subterrâneo,

de monstros guardiões, de barqueiros e várias outras imagens pertencentes a esse universo

imagético.

De acordo com o Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina

(1998), Hades (G. Haídes, “O Invisível”) é o nome dado ao deus grego do mundo subterrâneo,

também conhecido como Plúton, filho de Cronos e Rea. Uma divindade sinistra, mas justa, pois

os gregos não acreditavam em Satã. Hades governava os espectros dos mortos, com sua rainha

Perséfone, por ele raptada. Este nome se aplica também a seu reino,

cuja localização variava à proporção que mudavam as noções geográficas. Na Ilíada, o Hades ficava no extremo ocidental do mundo, além do rio Oceanôs, que, segundo a concepção da época, circundava o mundo. Mais tarde, ele foi posto nas profundezas da terra, aonde se chegava por vários abismos naturais. Também variam os detalhes da configuração do reino de Hades. Havia nele a lúgubre planície de Asfodelôs, onde os espectros dos mortos levaram uma existência nebulosa e imaterial. Uns poucos mortos afortunados escapavam a esse destino e iam para o Elísion, enquanto os que em vida foram inimigos dos deuses eram levados para o Tártaro, onde sofriam punição. Geralmente o reino dos mortos era separado do mundo dos vivos por um dos rios do Hades – o Stix ou o Aquêron. Se os mortos tivessem sido devidamente sepultados, Cáron (ou Caronte) atravessava-os para o outro lado do rio em sua barca. À entrada do Hades permanecia o cão de guarda Cêrberos impedindo que houvesse chegado lá. No interior da mansão dos mortos estavam sentados os seus juízos – Minos, Radamântis e Áiacos – que designavam para o espectro de cada morto a morada condizente com seus méritos.16

Toda essa representação do Hades é encontrada no Canto VI da Eneida quando

Enéias desce ao Inferno para se encontrar com seu pai, Anquises, após consultar uma sacerdotisa

de Apolo, a Sibila, a qual lhe permite descer ao reino dos mortos. São palavras de Enéias ao

encontrar a sacerdotisa:

16 HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998, p. 259

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Não te peço senão uma coisa: visto que é aqui, diz-se, porta do rei dos Infernos e o tenebroso pântano para onde reflui o Aqueronte, que me seja lícito ir ver meu pai querido e com ele praticar; ensina-me o caminho e abre-me as portas sagradas.17

A Sibila, então, diz-lhe o quanto é difícil retornar de lá, ensinando-lhe o meio de

deixar o Hades. Enéias teria que pegar um ramo de ouro escondido num bosque sagrado e

protegido por um obscuro vale. Se a descida ao reino fizesse parte do destino de Enéias, o ramo

se destacaria facilmente, caso contrário não haveria força que o consiga arrancá-lo. Porém, antes

de ingressar no Hades, o herói teria que sepultar o corpo de um dos seus amigos, Miseno,

sacrificar ovelhas negras e conceder em oferendas no altar erguido por ele. Após Enéias cumprir

as ordens da Sibila, erguendo com árvores um altar funerário e elevando-o aos céus, duas pombas

descem do céu e indicam-lhe o caminho que terá que seguir. Na fétida lagoa do Averno, as

pombas pousam na árvore onde brilha o ramo de ouro. Enéias retira-o e o leva à morada da

profetisa Sibila. Ao entrar no Hades, Enéias, acompanhado e orientado pela profetisa, encontra

monstros que avançam contra ele, embora não passassem de sombras, almas sem corpo.

O caminho que conduz às ondas do Aqueronte do Tártaro é assim descrita na

Ilíada:

é um golfo que borbulha, vasto abismo de lodo que referve e que vomita todo seu limo no Cocito. Um barqueiro horrendo guarda estas águas, e os rios, Caronte, de terrível sujidade, cuja barba abundante, branca e mal tratada, lhe cai do queixo; seus olhos cheios de chamas são fixos; pende-lhe das espáduas o sórdido manto amarrado com um nó. Por meio de vara impele a embarcação, dirige-a com a vela e transporta os corpos na barca cor de ferrugem; já a multidão ali espalhada corria para a margem, mães e homens e corpos de magnânimos heróis, privados da vida, meninos e virgens e mancebos colocados nas fogueiras ante os olhos dos pais, tão numerosos como as folhas que giram e caem nos bosques ao primeiro frio do outono; tão numerosos como os pássaros que se agrupam, vindos do alto-mar para o continente, quando a fria estação os faz fugir através do oceano e os expulsa para as terras soalheiras. Agrupados, pediam que fossem os primeiros a passar, e estendiam as mãos na ânsia de atingir a outra margem. Mas o triste barqueiro acolhe ora estes, ora aqueles, e afasta para longe das margens aqueles que recusou.18

17 VERGÍLIO. Eneida. Trad. Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Editora Cultrix, 1998, p. 113 18 VERGÍLIO. ibidem., p. 118

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A Sibila explica a Enéias que essa multidão acumulada à beira do rio são pobres

sem sepultura, os quais o barqueiro Caronte19 não pode conduzir para o outro lado, antes que

seus ossos tenham encontrado a paz do túmulo. Só após cem anos, elas são levadas às margens

tão desejadas.

Em seguida, Enéias encontra Palinuro, o piloto que caíra no mar da Líbia. Este

contou como havia sido morto e pediu ao herói que o livrasse de todo aquele mal, sepultando seu

corpo. A Sibila então lhe assegura que terá seu tão sonhado túmulo, onde receberá honras

solenes, lugar que levará eternamente seu nome.

Para que Enéias ingresse na barca de Caronte, a sacerdotisa mostra ao barqueiro o

ramo de ouro. Depois de acomodados na barca, avistam Cérbero, a quem é lançado um bolo

soporífero que o faz dormir, permitindo que o herói transponha a entrada. A partir daí, Enéias vê

almas infantis, suicidas, os sofridos de amor, principalmente Dido, que morreu por ele, depois

que este a abandonou. Encontra outros mortos e vai falando com cada um, ouvindo a causa de

suas mortes e seus lamentos. A Sibila então o adverte:

A noite está caindo, Enéias, e nós passamos as horas a chorar. Este é o lugar onde o caminho se bifurca para ambas as partes; o caminho à direita é o que vai dar nas muralhas do grande Dite: é o caminho dos Elísios, é o nosso; mas o caminho à esquerda conduz ao Tártaro ímpio, onde os maus são punidos.20

“Elísion (G. Elýsion), também conhecido como ilha dos bem-aventurados, na

mitologia grega, é o lugar onde os escolhidos pelos deuses (na concepção mais tarde os heróis e

patriotas) gozam após a morte uma vida perfeita e agradável.21” O Tártaro é a parte do mundo

19 Cáron (G. Kháron), na mitologia grega, o barqueiro que transportava os mortos em sua barca através do Stix para o Hades, representado como um velho de aspecto esquálido. Ele recebia um óbolo de casa passageiro por seus sérvios. Para pagar esse preço sepultavam-se os mortos com uma pequena moeda na boca. [...] No folclore grego moderno, tem o caráter de Anjo da Morte que de barqueiro. (Cf. Paul Harvey, p. 101) 20 VERGÍLIO. op. cit. p. 123 21 HARVEY, Paul. op. cit. p. 185-186

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subterrâneo onde os perversos sofriam punição por suas maldades na terra. Os castigos

aplicavam-se especialmente àqueles que fizessem algum ultraje direto aos deuses.22

Antes de entrar nos Elísios, Enéias borrifa com água fresca o seu corpo e deposita

o ramo de ouro no limiar das portas, chegando assim às habitações dos bem-aventurados. Lá

encontra seu amado pai, Anquises, no fundo de um vale verdejante, contemplando as almas que

deveriam vir à luz de cima. Logo que viu Enéias, Anquises saudou-o por ter vencido as duras

viagens e ambos choraram, porém não puderam se abraçar porque a imagem do pai escapava-lhe

das mãos.

Avistaram o rio Letes23 e Anquises fez uma descrição de como seria o processo de

reencarnação das almas:

As almas, às quais são devidos pelo destino outros corpos, bebem na onda do rio Letes as águas quietas e os longos olvidos. [...] ‘Ó meu pai, é pois crível que as almas subam daqui ao ar, em direção do céu, e voltem, novamente, ao peso dos corpos? Que desejo insensato é este de luz que se apodera desses infelizes?’ ‘Na verdade, eu te direi, meu filho, não te deixarei duvidoso’, retorna Anquises, e lhe desvenda, ordenadamente, cada segredo. ‘No princípio um sopro vivifica interiormente o céu, a terra, as líquidas planícies, o globo luminoso da lua e o astro de Titã, e o espírito, espalhado pelos membros do mundo, move a massa inteira e se mistura com este grande corpo. Daí provém a raça dos homens, a dos animais e a vida das aves, e os monstros que o mar encerra sob sua superfície marmórea. Há nessas sementes de vida vigor ígneo e origem celeste, enquanto corpos nocivos não os contrariem e partes corporais e membros perecíveis não lhes tolham as funções. Daí nascem os temores e os desejos, as dores e as alegrias, e não distinguem mais as brisas do céu, fechados que estão nas suas trevas e na sua cega prisão. Além disso, logo que o dia supremo da vida deixou o corpo, os infelizes não estão de todo desembaraçados do mal e de todas as misérias corporais, e o mal que longo tempo se acumulou no fundo deles mesmos, necessariamente cresce, de maneira extraordinária. Por isso são castigadas com penas e sofrem os castigos dos antigos males: umas, suspensas ao ar, são abertas ao sopro dos ventos ligeiros; outras lavam no fundo de um golfo o crime com o qual foram manchadas, ou são depuradas pelo fogo. Cada um de nós sofre os seus Manes; a seguir somos enviados para o amplo Elísio, cujas ridentes campinas em número pequeno nós ocupamos. Finalmente, depois que um longo dia, volvido o círculo dos tempos, apagou a mancha profunda e purificou a origem celeste, faísca do sopro primitivo; quando todas essas almas viram rodar a roda durante mil anos, o deus os chama em longas filas para as bordas do rio Letes, a fim de que esqueçam o passado e tornem a ver a abóbodas do alto, e comecem a querer voltar para corpos.24

22 HARVEY, Paul. op. cit. p. 477 23 Para a mitologia greco-romana, o rio Letes (G. Lethe, esquecimento) é um rio do Hades. As almas bebiam as águas desse rio quando estavam prestes a reencarnar, e por isso esqueciam sua existência anterior. (Cf. HARVEY, op. cit. p. 304). 24 VERGÍLIO, op. cit. p. 127

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Depois de falar com seu pai e saber um pouco do que acontecerá no futuro,

reencontrar amigos mortos e proporcionar-lhes o merecido descanso, Anquises o faz sair,

acompanhado da Sibila, pela porta de marfim, brilhante, refulgente de brancura, pela qual os

Manes enviam para o céu os sonhos falsos. Assim, Enéias reúne-se novamente aos seus

companheiros junto às naves.

Percebemos, então, como a idéia de morte é encontrada na tradição clássica. Com

a morte, determina-se um espaço diferenciado entre os vivos e os não vivos: esse espaço é

expresso como uma condição de separação e alheamento caracterizada pela incapacidade de volta

ao mundo dos vivos, um lugar de expiação.

Cecília Meireles evoca o barqueiro do Hades, numa poesia intitulada “Caronte25”.

O eu lírico se transporta do plano dos vivos em direção à morada dos mortos. Com esta

transposição, visualizamos a impossibilidade de volta a um plano físico, mas de vivência num

plano espiritual, pós-morte. O eu lírico, antes separado dos seus entes queridos pela morte, agora

poderá juntar-se a eles por intermédio dela.

Ao mesmo tempo em que almeja juntar-se aos seus, o eu lírico propõe uma

parceria ao barqueiro: enquanto este rema levando as almas para o Hades, aquele canta, tentando

convencê-lo a aceitá-lo como companheiro. Vejamos:

Caronte, juntos agora remaremos: eu com música, tu com os remos. Meus pais, meus avós, meus irmãos, já também vieram, pelas tuas mãos. Mas eu sempre fui a mais marinheira: trata-me como tua companheira. (...)

25 “Caronte” faz parte do livro Mar Absoluto e outros poemas (1945) In: MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. V. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 511.

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Percebemos um eu lírico disposto a dividir com o barqueiro a função de receber os

mortos num lugar de passagem, nem se dirigindo aos Campos Elísios, nem ao Tártaro, lugares

para onde são encaminhados os mortos. Com este poema, Cecília Meireles projeta em sua poesia

a idéia de morte representada pela poesia clássica: a morte como uma linha divisória de espaços

dos vivos e dos mortos e a possibilidade de vida num outro plano que não seja o material.

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1.2. A morte no Romantismo

Deixar que eu morra só! enquanto o fogo Da última febre dentro em mim vacila, Não venham ilusões chamar-me à vida, De saudades banhar a hora tranqüila! (Álvares de Azevedo – “Tarde de verão")

Embora seja inesgotável uma abordagem romântica sobre a morte a partir de

pressupostos das correntes européias, selecionamos, em nosso trabalho, para efeito didático,

representações sobre a morte, na poesia brasileira, expressas especialmente por Álvares de

Azevedo (1831-1852), que, de acordo com a crítica renomada, reúne uma idéia de morte que

sintetiza os parâmetros, contradições e ambigüidades sobre a morte na poesia romântica, ou seja,

a perda e a morte libertina.26

Há, evidentemente, uma ênfase na morte na primeira fase do Romantismo, mas

não como prioridade essencial, ou seja, a morte, para poetas como Gonçalves Dias e José de

Alencar, está mais preocupada com a temática de uma morte épica relacionada à criação de um

herói que atendesse às exigências do nacionalismo romântico. Num segundo momento aparece a

segunda geração romântica e os problemas de cunho mais subjetivo relacionado ao Eu e seu lugar

na sociedade. Uma sociedade mais moderna e de valores sociais que não necessitava de um

passado mítico.

Poetas românticos, como Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Junqueira

Freire, desenvolveram idéias sobre a morte relacionadas à poesia clássica, devido à fuga das 26 Cf. os críticos Eugênio Gomes, Alfredo Bosi, Vera Pacheco Jordão, Antônio Soares Amora. In: ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: Anjo e Demônio do Romantismo. Rio de janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1982, p. x-xix e Cf. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989, p. 10-22.

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transformações sociais ocorridas na época: o homem romântico que se encontrou confuso e

bombardeado pelas transformações e caos sociais que a Revolução Industrial causou no Brasil e

no mundo. O Brasil se viu diante de uma nova condição econômica vinda da Europa e precisava

ajustar-se a esses padrões. Mas o homem romântico não conseguia adequar-se e fugia para a

morte. Ele tinha o desejo de reintegrar-se ao universo, buscando o elo do Eu com o mundo, que

se apresentava fragmentado diante da complexidade da Revolução Industrial.27

O momento era de contradições: o conflito travado entre o Eu e o mundo criava no

poeta romântico uma postura individualista. No entanto, o individualismo não era só fruto da

negação das transformações sociais, era um protesto contra a mecanização, a despersonalização

da vida. De acordo com Adilson Citelli (1993), a mensagem se centra no próprio sujeito,

revelando a forte presença do Eu como um aspecto substancial do Romantismo.28

Os poetas românticos morreram antes de atingir a juventude. Na tentativa de fugir

da rotina, acabaram se envolvendo completamente com a morbidez e o caráter depressivo da

existência. Seu protesto contra as crises oriundas do desenvolvimento financeiro, econômico e

social que começava a criar, levou-os ao pessimismo total.

Álvares de Azevedo foi um dos mais importantes e autênticos poetas românticos

de poesias com o tema da morte. Sua poesia era marcada pela dor de amor, pela insatisfação da

vida, pela fuga da realidade. Associava a morte ao amor, porém, como não há realização

amorosa, o eu lírico é envolvido pela dúvida e pelo prazer reprimido, encontrando alívio através

da morte. Para ele, a vida era um tédio, um longo pesadelo que apenas a morte cessaria,

ocasionando uma verdadeira fixação pela idéia da própria morte. Ela era a única capaz de retirá-

27 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 91 28 CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo: Ática,1993, p. 70

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lo do acometimento da dor, seja qual fosse sua causa. A opção pela morte era algo glorioso, um

gesto definitivo e radical.

Segundo J. Guinsburg (1993), o Romantismo foi a primeira matriz filosófica que

se moldou pelo princípio da transcendência do Eu, o qual

assegurou um primado ontológico à interioridade, à vida interior, que foi sinônimo de ‘profundeza’, ‘espiritualidade’, ‘elevação’ e liberdade’, no vocabulário do Romantismo, quando não significou também o ‘solo sagrado’ da verdadeira vida, o recesso do ideal, de onde o sentimento religioso brota, onde a perfeição moral se abriga e a arte começa.29

Os escritores da segunda fase do Romantismo no Brasil, ou a geração do mal-do-

século, tinham apego por valores decadentes, atração pela noite e pela morte, levando uma vida

desregrada, ligada ao vício, à bebida e à boêmia, por fim. A noite de Álvares de Azevedo

desvendava os mistérios que o dia escondia, era o berço de suas inspirações e descobertas.

Aliás, os poetas românticos eram noturnos, segundo Bosi (1994), “prefere-se a

noite ao dia, pois à luz crua do sol, o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as

forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação30.” Esses contrastes são representados pela

noite e pelo dia, no sentido em que a face noturna é maléfica, sustentada pelo sentimento de

abandono, de desamparo, de melancolia, que leva ao pessimismo; já a face luminosa é benéfica,

sustentada pelo sentimento de exaltação, de entusiasmo, que leva ao otimismo. Portanto, a

melancolia é associada à noite e à lua.

No Romantismo, percebemos que existe a morte em vida. Os homens desistem de

viver e se desintegram da vida interior. De acordo com Hildon Rocha (1982), Álvares de

Azevedo acreditava na transmigração, ou seja, na sobrevivência da alma, “talvez encontrando na

29 GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, p. 58 30 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 93

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metempsicose31 o caminho e a explicação da vida que para ele não era apenas um fenômeno, mas

também um problema.32” Provavelmente, isto era um problema porque ele desconhecia esta

realidade, pois era um mistério não revelado, como se comprova no trecho: “Eu creio, amigo, que

a existência inteira / É um mistério talvez33[...]” mas mesmo assim entregava-se a ele, sem medo

do desconhecido.

Fagundes Varela foi outro poeta romântico que expôs a morte em suas poesias,

associando-a à religião34, numa demonstração de preocupação espiritual ligada ao panteísmo35. A

natureza foi usada simbolicamente pelo Romantismo, pois não passou de idealização de um lugar

distante e puro, já que a vida nas cidades era considerada ofensiva para a alma humana.

O sentimento de proximidade e de união com a natureza consola o homem das

penas da existência. Para Guinsburg,

o próprio senso do infinito, o afã de integridade e de totalidade, que alentou a disposição religiosa dos românticos, levou-os, por vezes, a uma intuição da imanência, intuição do ser espiritual dinâmico, difuso, agindo nas coisas e a elas incorporado.36

A existência de um Ser supremo na natureza é atestada pelo testemunho da

imensidade de Deus através do que se revela como espetáculo ao homem de tudo o que não é

humano, como bosques, rios, sombras, luzes, etc.

Segundo Antonio Candido (2002), a religiosidade se distancia da devoção e

apresenta-se como experiência afetiva, atribuindo nobreza espiritual.37 A evolução da poesia e

das artes estava ligada à religião, no sentido em que esta mantinha a ordem instituída e a guarda

31 A definição para o termo no Dicionário Aurélio é: “Doutrina segundo a qual uma mesma alma pode animar sucessivamente corpos diversos, homens, animais ou vegetais; transmigração.” 32 ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1982, p. 78 33 AZEVEDO, Álvares apud ROCHA, Hildon op. cit, p. 78 34 A morte do filho de Varela aos três anos de idade aproximou-o da religião. 35 Crença de que Deus é a própria natureza e suas manifestações, e que tudo o que há no universo emana dele. 36 GUINSBURG, J. op. cit., p. 65. 37 CANDIDO, Antonio. O Romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas FFLCH/SP, 2002, p. 17.

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dos valores tradicionais. A interioridade se desenvolveu sobre o sentimento religioso. Na poesia

de Fagundes Varela, a religião tornou-se a redenção de seus sofrimentos que as mortes de

familiares e amigos trouxeram.

Percebemos que a poesia ceciliana está associada a alguns pontos essenciais da 2ª

geração do Romantismo, tais como: o lirismo, que chega às margens do egocentrismo; a fuga da

realidade através da morte, pois só por meio dela haveria satisfação pessoal e alívio para os

desejos mais íntimos, negando uma realidade muito dolorosa para esses poetas; a tentativa de

encontrar seu espaço no universo buscando ligar-se à natureza, como meio também de contato

com Deus.

Entendemos que a poesia de Cecília Meireles é organizada em outro sentido, em

uma corrente “menos” determinante no Modernismo, representada pela corrente espiritualista.38

Tais diferenças não chegam a comprometer a originalidade e a importância da corrente

espiritualista e seus adeptos, apenas constituem uma outra forma de conceber o mundo e as

discussões de cunho metafísico, especialmente a morte.

Nesse caso, faz-se necessário, para o nosso trabalho, tecer algumas considerações

sobre Arthur Shopenhauer que certamente tornou-se um dos principais expoentes do Hinduísmo

no Ocidente e, conseqüentemente, mentor ideológico do Simbolismo francês e a sua corrente

espiritualista na discussão sobre a morte.

38 BOSI, op. cit. p. 461

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1.3. A morte na filosofia de Shopenhauer e o Simbolismo

Arthur Shopenhauer (1788-1860), filófoso alemão, discute a morte no capítulo

“Da morte e sua relação com a indestrutibilidade do nosso ser-em-si39”, o qual faz parte da obra

Da morte. Metafísica do amor. Do sofrimento do mundo (2004). Neste capítulo, Shopenhauer

considera a razão como a principal causa do medo da morte entre os homens. Para o filósofo,

somente através da filosofia ou da religião, o homem poderá encarar o medo da morte de maneira

tranqüila. Cita, a partir disto, o bramanismo e o budismo, nos quais não há nascimento nem

perecimento.

Segundo Davies, a filosofia de Shopenhauer é uma reprodução do sistema de

Kapila40, que, para ele, é “a mais antiga tentativa de dar resposta, baseada só na razão, às

questões misteriosas sobre a origem do mundo, sobre a natureza e as relações do homem e sobre

o seu futuro destino, questões que surgem em todas as mentes pensativas.41”

A morte sempre foi um enigma para o homem. Geralmente, ela é vista como uma

aniquilação absoluta (quando tudo termina com a morte) ou como um renascimento (o recomeço

da vida em outro plano).

O homem teme a morte não apenas em relação a si mesmo, mas, também, em

relação ao outro; não pensando numa perda própria, mas por compaixão ao outro, pelo grande

mal que esta poderá causá-lo. Mais especificamente, o homem teme o mistério que a morte

39 O capítulo encontra-se no livro O mundo como vontade e representação (1819) de Shopenhauer. 40 Kapila, que viveu pouco antes do Buda, revisor deste sistema filosófico, escreveu os aforismos em que se baseia grande parte do conhecimento atual sobre esta intrincado sistema de pensamento. 41 DAVIES apud RAMACHARACA, Yogue. As doutrinas esotéricas das filosofias e religiões da Índia. Trad. Francisco Valdomiro Lorenz. São Paulo: Ed. Pensamento, p. 11

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propicia, ou seja, o silêncio, o vazio e o esquecimento. Na linguagem da natureza, segundo a

perspectiva ocidental, a morte é um grande mal e significa aniquilação.

O temor da morte não se origina do conhecimento42, já que o medo é inerente ao

ser vivo. Mesmo que este não tenha passado pela experiência da morte, a vontade de viver é

instintiva. O indivíduo nasce e o desejo de ter vida duradoura prevalece, o que torna a morte uma

inimiga. Somos ensinados a lutar pela vida. A morte, nesse aspecto, seria a derrota do desejo de

viver. Segundo o filósofo,

o conhecimento, ao contrário, bem longe de ser a causa do apego à vida, atua em sentido oposto; ele revela o pouco valor da vida, e combate, desse modo, o medo da morte. Quando prevalece o conhecimento, o homem avança ao encontro da morte com o coração firme e tranqüilo...43

A natureza é indiferente à vida e à morte do indivíduo, uma vez que a destruição

de um ente não interfere na sua essência. Ocorre assim com o nascimento e a morte de animais e

plantas, um curto intervalo de tempo, numa rápida sucessão, para dar lugar a novos seres. “Vida

e morte são indissociáveis, são dois momentos de um mesmo ciclo universal...44”

A morte, de modo geral, é vista como um grande mal, mas, por outro lado,

também é encarada como um bem, ou seja, como algo desejado, de forma que vem sanar os

sofrimentos causados em vida, como percebemos no Romantismo e na poesia de Cecília

Meireles; é refúgio pra quem sofre de doenças incuráveis ou desgostos, tornando-se, assim, o

retorno ao seio da natureza, que se dará depois de uma luta física ou moral.

Shopenhauer faz uma crítica às pessoas que pensam de maneira limitada, por

crerem na morte e terem medo dela, considerando-a destruição total do ser. De outro lado, estão 42 O conhecimento aqui é a razão, a capacidade de refletir e aprender sobre algo ao longo da vida, cuja capacidade é comprovada apenas em humanos. 43 SHOPENHAUER. Da morte. Metafísica do amor. Do sofrimento do mundo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, p. 26 44 MACIEIRA, Rita de Cássia. O sentido da vida na experiência da morte: uma visão transpessoal em psico-oncologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p. 21

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as pessoas que não temem a morte, as quais o autor chama de privilegiados. Para ele, é absurdo

pensar o nascimento do homem como um surgimento do nada e pensar a morte como sua

aniquilação absoluta. Dessa forma, a morte é necessária, pois a natureza é o círculo, é o esquema

do retorno. Tudo dura apenas um momento sobre a terra e vai em direção à morte, embora pareça

que tudo está no seu lugar, dando a impressão de ser imperecível.

É interessante como Shopenhauer compara a história ao caleidoscópio: embora

pareça nos mostrar algo novo, são os mesmos elementos que nos aparecem, mesmo que seja de

forma diferente. O nascimento e a morte são a essência verdadeira das coisas, mantendo-a ilesa e

sem fim.

Após essa discussão, Shopenhauer trata da falta de memória dos que viveram

antes e dos que viverão depois, fazendo com que a espécie mantenha-se sempre jovem, renovada,

quando o Ser tem consciência de sua imortalidade e identidade.

Por isso a espécie não envelhece, mas permanece sempre jovem: a morte é para ela o que o sono é para o indivíduo, ou que é para olho o piscar das pálpebras. (...) Do mesmo modo que, à entrada da noite, o mundo desaparece, sem, no entanto, deixar de ser em nenhum momento, assim também, com a morte, o homem e o animal desaparecem para os olhos, subsistindo indestrutível, porém, o seu ser verdadeiro.45

Se considerarmos que o homem nasce do nada, ele retorna ao nada. No entanto,

esse nada é superado no processo de procriação, ou seja, todas as qualidades dos pais estão na

criança, superando a morte, pois. No entanto, é inconcebível acreditar que a morte reduza o

indivíduo ao nada, deixando de ser durante um tempo infinito. O Hinduísmo acredita que o

termo “criação” é um erro, uma vez que é o fazer alguma coisa de nada. Para o hindu ‘nada

provém de nada’, tudo o que É, é uma manifestação de uma coisa eterna.46 Criar algo de nada,

para a mente hindu é completamente incompreensível e impensável. Nada será sempre nada. O

45 SHOPENHAUER, op. cit. p.41 46 RAMACHARACA, op. cit. p. 15

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que é imortal para sempre o será. Não é concebível que a alma surja do nada e depois torne-se

imortal.

Refletindo sobre a questão do tempo, o filósofo afirma: “Ora, a morte é o fim

temporal do fenômeno temporal; mas o tempo, uma vez suprimido, não é mais o fim, e essa

palavra perde toda significação.47” A eternidade significa uma existência destituída de tempo. O

ser-em-si “tem de se situar na eternidade, justamente porque o tempo é tão-somente a forma do

nosso conhecimento; e só por causa dele conhecemos nossa existência, e a de todas as coisas,

como transitória, finita e destinada ao aniquilamento48”.

O indivíduo tem o temor da morte; a espécie tem a vontade da vida, que se

manifesta como impulso sexual e cuidado pela descendência. Para a espécie, os indivíduos são

apenas os meios e jamais os fins. Sem a renovação da vida proporcionada pela morte,

entraríamos num tédio constante, que nos levaríamos a optar novamente retornar ao nada, para se

livrar da monotonia.

Concordamos que o temor da morte não surge da valorização da vida, mas da

vontade. De acordo com Shopenhauer, ela é “um cego desejo da vida”, ou seja, é quem nos

impulsiona a buscar o prazer, a satisfação material. Disto, aparece o medo de desapegar-se das

conquistas e posses, separar-se das pessoas com quem criamos vínculos, entre outras relações

que satisfazem o espírito humano. Para o filósofo, tanto a volúpia quanto o temor são destituídos

de conhecimento/razão. Assim, se o homem conhecesse sobre a morte, veria que ela é necessária

e não indiferente.49

47 SHOPENHAUER, op. cit. p.46 48 SHOPENHAUER, ibidem. p.47 49 SHOPENHAUER, ibidem. p.63

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Shopenhauer, então, passa a discutir a questão da metempsicose, ou seja, a

passagem da alma de um corpo para outro, também chamada de transmigração, sem referir-se à

psique, ao Ser que conhece, mas somente à vontade.

No momento da morte, a vontade humana, em si e individualmente, separa-se do intelecto (...); agora, conforme a sua natureza e as modificações que sofrem guiadas pelo curso necessário das coisas, sempre em harmonia com sua natureza, recebe agora, por um novo nascimento, um novo intelecto, com o qual seria um novo ser, que não teria qualquer recordação de uma existência anterior, pois o intelecto, único capaz de memória, é a parte mortal, ou a forma; a vontade é o elemento eterno, a substância do nosso eu: disso resulta que a palavra palingenesia é mais adequada para designar essa doutrina, que metempsicose.50

Neste ponto, ele trata da memória. A mesma memória perdida pelos mortos da

poesia clássica quando mergulhados no rio Letes. Nesse caso, concordamos que a falta de

memória isenta o espírito das recordações das vidas anteriores, sejam elas boas ou más. Dessa

forma, dá-se uma nova chance para recomeçar outra vida em outro corpo.

Segundo Rita de Cássia Macieira, a alma, liberta pela morte, não está mais sujeita

às limitações do tempo e passa a mover-se em reinos eternos, atemporais. A alma

vê o corpo como uma prisão de alma e a morte como uma libertação. De acordo com Platão, a alma vem ao corpo físico proveniente de um reino superior e divino do Ser e no momento do nascimento, esta alma nascida no corpo, regride de uma consciência maior para um estado bem menos consciente. Nesse meio tempo esquece a verdade que sabia no estado anterior, fora do corpo. Com a morte a alma desperta, e relembra esta verdade, pensa e raciocina mais facilmente, e reconhece as coisas na sua verdadeira natureza.51

Dessa forma, entendemos que a morte possibilita que a alma retorne a seu estado

primordial, voltando a um estado mais consciente, evoluído, pois se liberta de “uma

individualidade estreita e uniforme”.52 Assim, dá-se o Nirvana, ou seja, a extinção do Ser. No

50 SHOPENHAUER, op. cit. p.67-68 51 MACIEIRA. op. cit, p. 24 52 MACIEIRA. op. cit . p.74

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Sermão de Benares53, Buda explica que o Nirvana é a clara-luz, que é vista por todos no

momento da morte; é a extinção das paixões, dos apegos. A morte ensina o desapego, a aceitação

da dor, evitando mais sofrimento e ansiedade.

Percebemos que o pensamento de Shopenhauer é uma das vias de entendimento do

Simbolismo, pois abre precedentes para que possamos entender a trajetória simbolista, uma vez

que o filósofo, no que se refere à existência da alma e à vida pós-morte, influenciou os

simbolistas.

Certamente, tal afirmativa necessita de uma contextualização bastante

aprofundada sobre o assunto que não será realizada no presente trabalho, em virtude do caráter

panorâmico ao qual nos propomos, sobre uma temática cuja capacidade de discussão excede, no

momento, nosso limite. Por esta razão, nos detemos em breves considerações relacionadas ao

Simbolismo no Brasil e suas possíveis influências sobre a poética de Cecília Meireles.

O Simbolismo no Brasil iniciou-se em 1893, com Cruz e Sousa e se estendeu até a

Semana da Arte Moderna, em 1922. Semelhante ao Romantismo, a tendência era esconder-se

dentro do seu próprio mundo, negando o que não poderia entender: a rápida evolução das

máquinas sufocando a mão-de-obra humana. Enquanto o Romantismo era protesto, o Simbolismo

tinha uma feição estritamente artística, mas também exprimia o desgosto pelo mecanicismo e

pela racionalidade. Então, contra o materialismo surgem as manifestações metafísicas, pois

somente com a anulação da matéria pode-se liberar o espírito, conseguida apenas através da

morte, a qual Cecília Meireles fazia jus a essa busca plena do espírito.

Os versos de Cruz e Sousa em “Cárcere das almas” dão uma noção do sentimento

de aprisionamento: “Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, / Soluçando nas trevas, entre as

53 Benares é o centro religioso para onde seguiu Buda e onde fez o sermão. In: HENNEZEL; LELOUP. op. cit. p. 34-35

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grades / Do calabouço olhando imensidades, / Mares, estrelas, tardes, natureza.54” De acordo com

Bosi, o caos em que vive o Eu acorda no homem a necessidade de alcançar o Absoluto.

Conseqüentemente, surgem as tendências espiritualistas, valorizam-se o subconsciente e o

inconsciente.55

Segundo Lúcia Miguel-Pereira (1957), “a matéria já não era tudo, existiam

também o espírito e a beleza56”. O misticismo e o ocultismo eram o refúgio das almas, dos quais

surgiam temas fantásticos. Para Bosi (1994), os poetas simbolistas fundiram a vida cósmica à

poesia, conferindo-lhe lugar de privilégio, o que caberia à religião ou à filosofia.57

Ao nos aprofundarmos mais, encontramos relações com o pensamento oriental na

Rosa Mística de Afrânio Peixoto58, na ocasião em que o pai, Egregor, mata a filha Atma por

amor, evitando que a vida a torne impura. O pensamento se resumia na inexistência do mundo

real, com poesias de ambientes nebulosos, irreais, onde reinava a liberdade espiritual, onde o

espírito buscava valores transcendentais. Pretendiam-se a Natureza, Deus, o Absoluto.

Percebemos que os temas fantásticos advinham de um orientalismo.

As palavras tinham grande carga emotiva, com a pretensão de um projeto

metafísico. Bosi diz que o Simbolismo “fez da morte objeto de liturgia cheia de sombras e sons

lamentosos59”, na tentativa de aderir transcendentalismo à condição humana. Esse pensamento

tem raízes religiosas, mas não tem relação com a devoção católica, seus hábitos e liturgias.

54 Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/csousa19p.html. Acesso: 11.02.2007 55 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 263-264. 56 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira. V. XII n. 63. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 233 57 BOSI, op. cit, p. 263 58 PEIXOTO, Afrânio. Rosa Mística. apud MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira. V. XII n. 63. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 230. 59 BOSI, op. cit. p. 269

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Cruz e Sousa, o maior representante do Simbolismo, expressava-se em imagens

solares. As imagens são auxiliadas por sensações e impressões, típicas da estética, com a

presença de objetos luminosos ou translúcidos como o sol, as estrelas, a lua.

Segundo Bosi, o poeta simbolista está ligado à filosofia de Shopenhauer e à do

budismo60. O termo “viagem”, afirma Bosi, “ele o entrevê na liberação dos sentidos, “cárcere das

almas”, e, portanto, de toda dor: algo semelhante ao Nirvana búdico a que tendia a opção

irracionalista dos românticos alemães e de Shopenhaeur.61” A morte para Shopenhauer é o

retorno ao inorgânico e esse era o objetivo dos poetas simbolistas, como vemos nos versos de

Cruz e Sousa: “Abre-me os braços, Solidão radiante, / funda fenomenal e soluçante, / larga e

búdica Noite redentora!62” A crença na salvação do Ser permeia sua poesia existencial: “Os

abismos carnais da triste argila / ele os vence sem ânsias e sem custo... / Fica sereno, num sorriso

justo / enquanto tudo em derredor oscila.63”

De fato, concordamos que a literatura romântica e a simbolista, e os pressupostos

da filosofia de Shopenhauer, estes no que se referem à doutrina de entendimento da existência

humana, estão ligados por uma mesma linha de pensamento, quais sejam:

1. a aceitação da morte como algo natural a todo ser vivo;

2. a morte como alívio para os sofrimentos oriundos da vida material;

3. o tempo não é mais relevante depois da morte;

4. um real contato com Deus64, com o Absoluto, trazido pela morte.

60 O Budismo é oriundo do Hinduísmo. Buda inicialmente era hinduísta. 61 BOSI, op. cit. p. 277 62 SOUSA, Cruz e. Trecho do poema “Êxtase búdico” apud BOSI, op. cit. p.277. 63 Idem. Trecho do poema “Sorriso Interior”. Ibidem, p. 277. 64 O pensamento sobre Deus, nesse caso, excede ao conhecimento comumente listado pelos discursos exotéricos das religiões como prática moral. Certamente o filósofo e os simbolistas possuíam uma definição que difere dessa primeira, que devido ao limite proposto de nosso trabalho não será detalhado.

Page 30: Cecilia Meireles e a Poéticada Morte: uma leitura hinduista

30

A poesia de Cecília Meireles absorve a idéia de morte concebida pelos sistemas

filosófico e literário, especialmente oriundos das poesias clássica, romântica e simbolista. Como

vimos, a poesia clássica preocupa-se em definir espaços entre vivos e mortos, como muitas vezes

percebemos na poesia ceciliana; já o Romantismo utiliza a morte como fuga e a retrata de forma

pessimista e descrente; e a poesia simbolista deseja reintegra-se ao Absoluto, lugar de origem de

todas as formas de vida.

Para tanto, nem o Classicismo, nem o Romantismo, a julgar pelo mais famoso dos

poetas da morte no Romantismo Brasileiro, Álvares de Azevedo, podem prover um entendimento

marcante sobre a compreensão da poética de Cecília Meireles. Essas correntes nos deram

subsídios para demonstrar a evolução do tema em questão na Literatura até chegar à poetisa

modernista.

Page 31: Cecilia Meireles e a Poéticada Morte: uma leitura hinduista

31

CAPÍTULO 2 O HINDUÍSMO, SEUS INTÉRPRETES E A MORTE

Page 32: Cecilia Meireles e a Poéticada Morte: uma leitura hinduista

32

2.1. O Hinduísmo, Sri Ramakrishna e Swami Vivekananda

Para que seja possível uma discussão sobre o Hinduísmo, faz-se necessária uma

abordagem das origens da Índia, sua cultura e filosofia. Tal abordagem é importante para

entendermos de que forma nossa poetisa foi gradativamente envolvida por este país, pelo

Hinduísmo e por seus ensinamentos.

Diferentes filosofias formam seis grandes sistemas da Índia, as quais penetram em

toda forma de religião do país. São consideradas interpretações diferentes da filosofia

fundamental. A filosofia, a religião e o pensamento hindu têm a origem e a raiz comum, como

também os princípios fundamentais do Absoluto.

As religiões da Índia sofreram influência do tempo, passaram por inevitáveis

modificações e combinações umas com as outras. Mantiveram-se as bases antigas, mas as

doutrinas se modificaram.

“A religião prevalecente na Índia pode comparar-se com um grande mosaico,

composto de toda a espécie de idéia religiosa, e de todas as formas de culto que a mente humana

pode conceber.65” As diversas seitas e escolas da religião hindu são chamadas pelos próprios

habitantes da Índia de Sanatan66, conhecida pelos ocidentais como “Bramanismo” ou

“Hinduísmo”.

O Hinduísmo é uma das várias formas de religião que se desenvolveram na Índia

quando os indo-europeus avançaram pela Índia do Norte, por volta de três mil anos atrás. No

entanto, é diferente das outras religiões porque não tem fundador nem credo fixo. O termo

65 RAMACHARACA, Yogue. As doutrinas esotéricas das filosofias e religiões da Índia. Trad. Francisco Valdomiro Lorenz. São Paulo: Ed. Pensamento, s.d. p. 187 66 Segundo Ramacharaca, Sanatan significa “religião eterna” ou “religião da Índia”, p. 187

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33

“hindu” originalmente tinha um significado de território e não de crença. A palavra “hinduísta”

significa “indiano” e, aos poucos, foi sendo associada à crença pelo fato de várias religiões terem

se difundido na região. As crenças dos indianos tinham ligação com as religiões grega, romana e

germânica, por causa dos ários, antecessores dos indianos.

A raça ária chegou à Índia aproximadamente em 1.500 a.C., encontrando uma

sociedade já organizada, que tinha sua própria crença e a qual deixaram viver em paz,

respeitando-lhe a própria religião. Assimilaram o estilo de vida rural da população local e criaram

pequenas comunidades agrárias através do estado de Punjab. Eles prosperaram nas novas terras

destinadas a eles e descenderam as atuais raças árias da Índia. A parte que foi à Europa

descendeu as raças germânica, latina, celta, slava e grega. Os hindus ários e as raças descendentes

do mundo ocidental originaram-se de um mesmo trono, de modo que ambos acreditam em

reencarnação. Embora tivessem perdido alguns dos seus fundamentos culturais e religiosos

devido às imigrações, peregrinações, os ários mantiveram crenças como a reencarnação, a lei de

Causa e Efeito, a crença num Ser Absoluto e Uno e na imortalidade da alma.

À medida que cresciam em número, cresciam também as representações de Deus

criadas por eles, no entanto, acima de todos eles existia o Uno, do qual os outros procediam. Com

isso, começou a ascensão das crenças religiosas desse povo, fazendo com que manifestassem

grande interesse pela filosofia. Segundo o artigo “The Aryans and the Vedic Age”, os ários

“desenvolveram a língua sânscrita e deram significativas contribuições para a religião.67”

(tradução nossa) Esta teve sua raiz na era védica, pois compuseram os hinos dos 4 Vedas, poemas

que são a fonte do pensamento hindu. Segundo o poeta Tagore, “Os hinos são um testamento

poético da reação coletiva das pessoas para a maravilha e surgimento da existência... As pessoas

67THE ARYANS AND THE VEDIC AGE. Disponível em: < htpp://web.archive.org/web/1919022402443/www.org /culture/history> Acesso em: 16/06/2007

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34

de imaginação vigorosa e não sofisticada adquirem muitas manifestações da civilização para um

senso de mistério inexaurível onde a vida está implícita.68”

Percebemos, enfim, que o povo ário foi um dos responsáveis pelo registro gráfico

das histórias de deuses, seus mitos e lendas, os quais se tornaram a fonte da religião hindu.

Segundo Vistor Cousin, a Índia é “o berço do gênero humano, a terra natal da mais alta

filosofia.69” Acredita-se que Pitágoras recebeu instruções de mestres hindus e que, ao regressar a

sua terra natal, levou consigo filósofos hindus para que suas doutrinas fossem aproveitadas pelos

gregos.

Um dos mais notáveis intérpretes do Hinduísmo foi Sri Ramakrishna (1836-1886).

Desinteressado pelas coisas do mundo, ele tornou-se sacerdote em um templo dedicado a Divina

Mãe Kali, em Calcutá, o qual fazia parte de um conjunto de templos situados à margem do rio

Ganges. Durante anos, buscou conhecer as diversas formas de adoração de Deus, através de

práticas espirituais. Depois de enfrentar tentações para afastá-lo do caminho do bem, a monja

Bhairavi Brahmani convoca uma assembléia e anuncia que seu discípulo é um Avatar, ou seja,

uma Divina Encarnação.

Ramakrishna praticou também o Cristianismo, o Islamismo e o monismo puro, a

mística doutrina da Vedanta e pregou:

As diferentes religiões são os distintos caminhos que conduzem o homem ao único Deus, que tem mil nomes e mil formas; que é impessoal como princípio da verdade e do amor, é imanente em tudo e se manifesta em todos os seres e objetos do universo; em Seu aspecto transcendental é inefável, eterno, o Um sem segundo.70

68TAGORE, Rabindranath. In: The Aryans and the Vedic Age. Disponível em: <htpp://web.archive.org/web/ 1919022402443/www.org/culture/history> Acesso em: 16/06/2007 69 COUSIN, Vistor apud RAMACHARACA, Yogue. apud, p. 10-11 70 RAMAKRISHNA apud VIJOYANANDA, Swami. O Ensinamento Espiritual de Sri Ramakrishna. Disponível em: <http://www.vedantacuritiba.org.br/sriramakrishna.htm> Acesso em: 16/06/2007

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Para o mestre espiritual, o objetivo de todo homem é a realização divina e isso só é

possível através da religião. Mas não uma religião específica: diferentes religiões mostram o

mesmo caminho para alcançar o Absoluto.

A meditação constante de Ramakrishna o fez entender a diferença entre os dois

lados de maya: avidyamaya e vidyamaya. A primeira representa o desejo, a cobiça, a luxúria e a

crueldade, que são responsáveis por manter o homem nos círculos de nascimento e morte; a

segunda é a virtude, a bondade, a pureza, o amor, que elevam o homem a outros planos de

consciência. Através da vidyamaya, pode-se libertar-se do maya e atingir o Nirvana. Seus

ensinamentos foram: a divindade em todos os seres; a unidade de Deus e a harmonia das

religiões; e a luxúria e a cobiça, como as principais amarras na vida humana. 71

Ao final da vida, Ramakrishna compartilhou suas realizações espirituais com seus

discípulos. Um deles era Swami Vivekananda. O primeiro encontro dos dois ocorreu em 1881 e,

em 1886, Vivekananda fundou a Ordem Ramakrishna, após a morte do Mestre, peregrinando por

toda a Índia. “Seu objetivo era viver momentos de recolhimento, de total entrega a Deus,

conhecer melhor seu povo e peregrinar pelos principais lugares santos, preparando-se assim para

realizar a missão que o Mestre lhe destinara, de regenerar espiritualmente a Índia e o mundo.72”

Swami Vivekananda (1863-1902), primeiro monge hindu a vir ao Ocidente,

nascido em 1863 na Índia, divulgou ao mundo moderno os ensinamentos milenares da Vedanta

durante o Parlamento das Religiões em Chicago - USA, que teve início em 11 de setembro de

1893. O Parlamento contou com a participação de representantes de todas as religiões do mundo,

e foi importante para abranger as fronteiras espirituais das pessoas. O monge falou a mais de sete

71 RAMAKRISHNA, Sri. Ensinamentos. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ramakrishna> Acesso em: 10/07/2007 72 VIVEKANANDA. Disponível em: <http://www.vedantacuritiba.org.br/vivekananda.htm> Acesso em: 16/06/2007

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mil pessoas e foi aplaudido por vários minutos, conquistando fama nos Estados Unidos, o que o

possibilitou criar inúmeros Centros de Estudo da Vedanta no país.

Vivekananda iniciou seu discurso saudando os participantes de “Irmãs e Irmãos da

América”, como resposta às boas-vindas no Parlamento. Com isso, agradeceu a sua participação

no evento e disse sentir-se “orgulhoso por pertencer a uma nação que tem abrigado os oprimidos

e refugiados de todas as nações da Terra73” (tradução nossa). O monge hindu diz que a

intolerância e o fanatismo têm possuído o planeta e que sua filosofia ensina exatamente o inverso,

ensina ao mundo tolerância e aceitação universal.

Numa conferência feita no dia 26 de setembro de 1893, intitulada “Buddhism, the

fulfilment of Hinduism”, Vivekananda diz que

A religião dos hindus é dividida em duas partes: a cerimonial e a espiritual. A porção espiritual é especialmente estudada pelos monges. [...] Qualquer que seja a posição do filósofo, qualquer que seja a posição do metafísico, contanto que haja uma coisa como a morte no mundo, contanto que haja uma coisa como fraqueza no coração dos humanos, tão logo que haja um choro de desespero do homem proveniente de sua grande fraqueza, haverá fé em Deus74(tradução nossa).

Assim, Vivekananda afirma a importância do homem estar em permanente

comunhão com Deus, pois só Nele é possível alimentar o espírito de boas ações. Atualmente é

considerado o patrono da juventude na Índia.

A Vedanta é um sistema filosófico que ensina que existe uma só Realidade, sob as

experiências espirituais de sábios da Índia. Seus ensinamentos são universais e impessoais, por

isso podem ser experimentados por todos os aspirantes espirituais, qualquer que seja sua religião

ou crença. “A Vedanta ensina que todas as religiões e filosofias conduzem à meta final, à

73 VIVEKANANDA. Response to welcome. Disponível em: <http://www.ramakrishnavivekananda.info/vivekananda /volume_1/vol_1_ frame.htm> Acesso em 16/06/2007 74 VIVEKANANDA. Buddhism, the fulfilment of Hinduism. Disponível em:<http://www.ramakrishnavivekananda. info/vivekananda/volume_5/vol_5_frame.htm> Acesso em 16/06/2007

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37

experiência e à realização de Deus.75” A busca por Deus e sua manifestação em nossa vida

ocorrem através da Yoga (união com Deus), pois Deus é o nosso mais íntimo Ser e a religião é a

busca Dele dentro de nós. Assim, a Vedanta promove a tolerância espiritual e a harmonia entre

todas as religiões, crenças e filosofias. Isto explica Vivekananda ter se preocupado em disseminar

seus ensinamentos.

De acordo com o Dr. V. A. Gunasekara, no artigo “Hinduism in Buddhist

Perpective”, as pessoas devem buscar sua salvação independente da forma como as autoridades

são organizadas socialmente e que “a tolerância é um ingrediente essencial na busca da verdade

espiritual76”(tradução nossa). Verifica-se então que todos os mestres espirituais citados

compartilham da mesma idéia de respeito dispensado a qualquer outra crença, religião ou

princípio religioso.

O Hinduísmo, como crença, não distingue idéias de Deus como verdadeiras ou

falsas, interessando-se por vários tipos de pesquisa. Quando a consciência é fixada em Deus,

nenhuma expressão de vida é completamente errada. As manifestações de Deus na natureza,

através do seu infinito mistério são inesgotáveis. “O hindu nunca duvida da realidade de um

supremo espírito universal.77” Como vem crescendo ao longo dos séculos, o Hinduísmo

incorpora as coisas boas e descarta o que não é satisfatório ou errôneo. “Hinduísmo, portanto, não

é um credo dogmático definitivo, mas um vasto, complexo, mas sutilmente unificado, massa de

pensamento espiritual e realização.78” O método hindu é democrático, pois permite que cada

grupo obtenha a verdade através de suas tradições, disciplinando mente e costumes e, assim,

permitindo seu crescimento espiritual.

75 VEDANTA. Disponível em: <http://www.vedantacuritiba.org.br/vedanta.htm> Acesso em: 16/06/2007 76GUNASEKARA, V. A. (Dr.) Hinduism in Buddhist Perpective. Disponível em: <http://www.budhismtoday.com /english/dialogue/007-hinduism.htm> Acesso em 16/06/2007 77 RADHAKRISHNAN. A visão hindu da vida. Rio de Janeiro: Editora Mundo Musical, 1973, p. 24 78 Idem, ibidem. p. 20-21

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38

2.1.1. Mahatma Gandhi

Outro grande intérprete do Hinduísmo, o mais conhecido de todos os tempos, foi

Mohandas Mahatma Gandhi (1869-1949). Ele já dizia: “Eu busco minha paz por entre

desordens.” Assim viveu por toda a vida em meio aos conflitos entre hindus e muçulmanos e

lutas da Índia contra o domínio inglês. Suas intenções e teorias eram testadas no conflito com a

vida. Pôs em prática a resistência não-violenta, ahimsa79, como disciplina de luta social. Para ele,

era a forma de chegar a Deus, sem violência, ou seja, não fazer mal a outros seres.

A maioria dos ativistas agregou-se à política da não-violência porque sabiam que

esse seria o caminho para a independência e não por acreditarem nos princípios nos quais os

métodos se baseavam. Gandhi recusou-se em aceitar o poder político, pois limitaria as pessoas a

buscarem “experiências com a Verdade”. Buscava um método político que fosse universal em

suas aplicações.

Em 1906, Gandhi anunciou sua campanha de satyagraha, cujo objetivo era

converter e ganhar o inimigo, sem causar-lhe mal.80 Como não adotava um exclusivismo

religioso, conquistou muitos inimigos, como chauvinistas e xenófobos. Preocupava-se em libertar

os homens – liberdade religiosa e nacional. Era um universalista81. Rabindramath Tagore (1861-

1941) foi quem concedeu a Gandhi o título de Mahatma, que significa Grande Alma, no entanto,

ele não se sentia a vontade com esse tratamento.

Numa viagem por toda a Índia, Gandhi pôde constatar a pobreza, a falta de higiene

do seu povo. Ele aconselhou os indianos a se desprenderem de tudo o que assimilaram do

79 Todos os termos em hindu, destacados em itálico, estão no glossário ao final da pesquisa, p. 94 80 WOODCOCK, George. As idéias de Gandhi. Trad. James Amado. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 9 81 Idem. Ibidem, p. 15

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Ocidente em termos materiais. Não deveriam mais usar roupas industrializadas, nem o transporte

moderno. Khadi era o tecido fiado à mão pelos próprios indianos e tornou-se a marca do homem

que lutava pela independência da Índia. Gandhi mostrou habilidade política, embora não tivesse

essa pretensão. Segundo Woodcock, Gandhi queria manipular os elementos do poder para

destruir o império inglês, dizendo que não fazia nada além do seu dever religioso, o dharma.

Todos os protestos que Gandhi liderava eram respondidos com muita violência, e

o mais sangrento deles ocorreu em 13 de abril, em Amritsar, matando 379 pessoas e ferindo

milhões. Gandhi jejuou por três dias e admitiu ter errado quando estimulou pessoas

despreparadas para um protesto não-violento que exigia auto-controle. O jejum era a forma que

Gandhi encontrava para demonstrar seu descontentamento diante de algum acontecimento. A

rivalidade entre hindus e muçulmanos provocou um jejum de 21 dias. O grande Mestre queria

uma Índia em que todos os homens, de qualquer crença, pudessem conviver fraternalmente.

Em 1934 sofreu três tentativas de homicídio por hinduístas ortodoxos fanáticos. A

idéia de morrer por uma causa agradava a Gandhi: aceitar o sofrimento, a própria morte em

defesa de um princípio. Sua disposição em morrer era vista nos seus jejuns. Segundo Woodcock,

ele estava convencido que a sua morte viria pelas mãos da violência, sua velha inimiga.82

Gandhi começou a verificar que a violência se espalhava pela Índia, em

assassinatos, motins: muçulmanos matavam hindus e vice-versa. À medida que a violência se

aproximava dele, ao tentar confraternizar com as comunidades em guerra, Gandhi fazia

comentários referentes a seu fim. Em 30 de janeiro de 1948, foi morto a tiros por um confrade

hindu e morreu pronunciando o nome de Rama, considerado a sétima encarnação de Vishnu,

como havia dito a sua neta Manubehn, que assim seria mesmo um verdadeiro Mahatma. Suas

82 WOODCOCK, op. cit. p. 81

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40

cinzas foram atiradas ao mar, no ponto em que o Ganges e o Jumna se encontram. Seu assassino

foi enforcado devido a uma lei herdada dos ingleses.

Segundo Gandhi, nesta vida jamais se atinge o ideal e os que buscam realizá-lo

morrem no isolamento da frustração. Isto nos fez lembrar os poetas românticos: buscou-se o ideal

e apenas encontrou-se o pessimismo que trazia consigo a morte como única consoladora.

Enfim, Sri Ramakhrisna, Swami Vivekananda e Gandhi foram grandes intérpretes

da religião hinduísta. Eles divulgaram ao mundo os aspectos relacionados ao espírito como:

a) a lei de causa e efeito (karma);

b) a crença num Ser Absoluto e Uno e na imortalidade da alma;

c) a transmigração da alma – reencarnação;

d) harmonia religiosa;

e) crença em uma única Realidade;

f) todas as religiões levam ao mesmo Deus;

g) dever religioso de regenerar espiritualmente os povos;

h) Deus manifestado em todas as coisas – panteísmo;

i) desprendimento dos bens materiais.

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2.1.2. Conceitos básicos do Hinduísmo

Os sábios hindus chamaram a atenção para o aspecto fenomenal da Natureza e do

Universo no que concerne a não haver nada de constante, permanente, fixo e imperecível. O

termo “fenomenal”, em sânscrito, significa aquilo que podemos “ver, ouvir, saborear, cheirar,

apalpar ou sentir.83” De origem grega, a palavra significa uma aparência. Esse mundo fenomenal

é uma série de formas passageiras, mutáveis, os acontecimentos vão e vêm e nada permanece

fixo.

Nada pertencente a esse mundo pode ser chamado de realidade, já que esta

significa o que é existente, fixo, permanente e constante, portanto o mundo fenomenal é uma

ilusão (Maya), não é real, no sentido filosófico da palavra.

A palavra sânscrita “TAT”, que significa o nosso pronome demonstrativo

“AQUILO”, equivale ao hindu Brahman, termo que se refere a “O Absoluto”. Todos são

sinônimos. O Atman, segundo Dr. V. A. Gunasekara, foi identificado com o Brahman e esta

identificação “foi vista pelos monistas como ‘elevação do humano para o divino.’”84 (tradução

nossa).

Voltando ao que foi dito anteriormente, se nada não pode passar a existir por si

mesmo, então “AQUILO” (O Absoluto) sempre existiu, portanto é eterno e não pode deixar de

ser, sendo permanentemente existente. Para os pensadores hindus, o Absoluto é indefinível,

83 RAMACHARACA, Yogue. As doutrinas esotéricas das filosofias e religiões da Índia. Trad. Francisco Valdomiro Lorenz. São Paulo: Ed. Pensamento, p. 30 84GUNASEKARA, V. A. (Dr.) Hinduism in Buddhist Perpective. Disponível em: <http://www.budhismtoday.cm/ english/dialogue/007-hinduism.htm> Acesso em: 16/06/2007

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42

impensável e inexpressível, ele transcende o poder de compreensão e imaginação humana. Não

pode ser definido, mas a razão reconhece sua existência.

Os sábios aceitam três verdades evidentes:

1. Nada pode provir de nada: uma coisa que não é não pode passar a ser;

2. O que é real não pode ser dissolvido em nada: o que é sempre será, a dissolução

é apenas uma mudança de forma;

3. O efeito é a reprodução da causa.

Os sábios pensavam no infinito espaço essencial como algo que não é uma coisa,

mas também não é um nada. Era uma infinita subjetividade pura e abstrata. O pensamento hindu

“considera o universo fenomenal como um mundo ilusório, produzindo a dor e o

descontentamento que provém do fato de separatividade da fonte.85” Este mundo é o mundo da

ignorância, Ilusão e separação do Uno.

O maior intérprete do Hinduísmo foi, sem dúvida, o príncipe Siddharth Gautama

(560-480 a.C.) que posteriormente recebeu o título de Buda, ou seja, o Iluminado. Tido como um

grande instrutor espiritual, ele foi considerado um antecessor de Cristo que veio “salvar” a

humanidade com seu conhecimento.

Buda ensinou as quatro verdades concernentes à salvação:

1. Reconhecimento de que a vida é sofrimento;

2. Reconhecimento de que a vontade de viver é alimentada pelo desejo;

3. O conhecimento de que o sofrimento cessa quando se vence a vontade de viver;

4. Métodos de destruir o desejo e obter a liberdade.

85 RAMACHARACA, op. cit. p. 42

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43

“O desejo se destrói, se extirpa, evitando todos os atos egoístas, e dedicando a vida

de amor para com todos os seres vivos.86” O Nirvana se atinge ainda na vida carnal; ele não é

uma aniquilação como foi ensinado. “A alma pode deixar o corpo depois de ter atingido o

Nirvana, e pode residir em certos planos de existência, ajudando a humanidade a livrar-se dos

seus vínculos.87”

O karma leva ao Samsara, que é a causa do sofrimento. A causa da Samsara está

no desejo e o desejo depende da ignorância. Quem é forte para matar o desejo, pode escapar da

Samsara e atingir o Nirvana ou a Paz. Nirvana é o desprendimento do mundo físico, o

desligamento do mundo como ilusão, Maya. A obtenção da liberdade é chamada de Moksha, ou

seja, quando a alma se liberta do ciclo de reencarnações, a Samsara. O caminho da libertação

compreende oito pontos: a Reta Fé, o Reto Juízo, a Reta Fala, o Reto Intento, a Reta Ação, o Reto

Esforço, o Reto Pensar, a Reta Meditação.

Brahman era a fonte dos deuses e também dos homens. É a alma do Universo, o

espírito universal. Varuna, o deus do firmamento, tinha o encargo das leis naturais e vigiava a

moralidade do povo. Yama, o deus da morte, tido como o primeiro homem a morrer e assim

assumir a forma de divindade.

Brahman era considerado como a deidade criativa, o divino agente do ser

supremo, empregado para criar o universo material e o homem. Depois começou a se desenvolver

a idéia da trindade: Brahma, Vishnu e Shiva, considerados como aspectos de um só Ser Supremo.

Não são três independentes centros de consciência, como a popular teologia representada, mas

três lados de uma completa personalidade.

86 RAMACHARACA, op. cit. p. 138 87 RAMACHARACA, op. cit. p. 139

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44

As diferentes representações de Deus que prevalecem no país eram agregadas para

um ou outro desta trindade. Brahma forma com Vishnu e Shiva uma trindade. Brahma é o

criador, que faz o mundo. Vishnu é o sustentador, que protege as leis naturais e a ordem

universal e Shiva é o destruidor, quando tudo é destruído Brahma tem de criar o mundo

novamente. Shiva simboliza tanto a destruição, o mal, quanto a cura, a compaixão que salva o

homem da transmigração.

O deus SHIVA88 Fonte: <http://www.emusicbrasil.com/deus_shiva.asp>

Os deuses Vishnu, que se revela como Krishna e Rama, e Shiva são bem

conhecidos. O amor entre Krishna e sua amada Rhada, “sua separação e reconciliação são uma

metáfora para o anseio que a alma sente por Deus e por sua união final com ele.89” Esses três

personagens representam três aspectos de Deus: o criador, o sustentador e o destruidor. Os

deuses, mais uma vez, reafirmam a crença na existência como um ciclo constante e interminável.

88 Shiva, como Nataraja, é o deus destruidor (ou transformador). Ele dança dentro de um círculo de fogo, que representa a renovação. Sua dança representa o eterno movimento do universo. Em uma das mãos, segura o tambor, que marca o fluir do tempo. Na outra mão, traz uma chama que simboliza a destruição e a transformação de tudo o que é ilusório. Seus olhos permanecem parados em atitude de meditação. Shiva pisa, com o pé direito, as costas de um anão, que representa a ignorância interior. 89 GAARDE, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 47

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45

2.1.3. O Hinduísmo e a morte

Para os que adquirem a consciência de que a morte é uma ilusão, as emoções de

tristeza, luto e choro não existem. Os hinduístas acreditam que a morte é uma separação

temporária e nada se perdeu ou pereceu. Numa fábula, o filósofo hindu assemelha a lagarta à

humanidade. A lagarta acha que vai deixar de existir, mas transforma-se em borboleta.

A idéia de morte é uma ilusão nascida da ignorância. O que há são mudanças de

forma e atividade, condição de energia. Yogue Ramacharaca define que “O mundo interior é

muito mais real do que o mundo dos fenômenos exteriores.90” Concordamos que o mundo físico

é inferior na escala vibratória ao mundo astral ou mundo dos espíritos. A matéria confunde o

espírito com “futilidades” da vida terrena, ocasionando um distanciamento do plano superior,

morada de todo espírito.

Considerando que a alma tem algo a aprender neste mundo, ela só pára de

reencarnar quando aprende o que veio aprender. Desse ponto, surge o conceito de karma, ou seja,

segundo Lindermann (2005), “as circunstâncias das vidas seguintes serão efeito da conduta nas

anteriores.91” A palavra sânscrita, que significa “ato”, refere-se não só a ações físicas, mas

também a sentimentos, palavras e pensamentos. A responsabilidade por sua próxima

reencarnação é exclusivamente do indivíduo, pois o que ele semeia será colhido. Em outras

palavras, as suas ações, sejam elas boas ou ruins, refletem-se na próxima reencarnação,

reafirmando a lei de causa e efeito.

90 RAMACHARACA, Yogue. A vida depois da morte. Trad. Francisco Valdomiro Lorenz. São Paulo: Ed. Pensamento, p. 21 91 LINDERMANN, Ricardo. Vida única e Reencarnação. In: TheoSophia. Ano 94 abril/maio/junho 2005, p. 5

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O mau Karma é aquele que não exauria na presente vida, é uma dívida não paga,

produzindo efeitos que alimentam um novo Karma, e assim por diante, vinculando a alma à roda

da causa, a Samsara. Não há como fugir a essa lei.

No entanto, não é preciso que o karma seja aceito, submetendo a pessoa, pois o

livre-arbítrio permite que cada um melhore seu karma, para a encarnação atual e para as que

virão. Enquanto a alma tem sede de experiência do mundo físico, que os hindus chamam Trishná

e os budistas, Tanhá, ou seja, “vontade da alma de nutrir-se para crescer,92” ela é trazida para a

nova encarnação. Quando essa sede é saciada, a alma está livre, conquistou o Mukti ou Moksha,

atingiu a extinção das paixões, a não-ligadura, chamada Nirvana. Ao chegar nesse ponto, a alma

culmina numa perfeição humana, atingindo a plenitude de suas potencialidades divinas. Se é

verdade que a alma troca de corpo de uma encarnação para outra, é natural que a memória

cerebral se perca, havendo uma descontinuidade. Portanto, é normal o esquecimento das vidas

anteriores. Platão93, em A República, diz que a alma bebe nas águas do rio do esquecimento, o

Letes, antes de nascer.

A ignorância (Avidya) causa a Samsara. Isto explica o surgimento da concepção

de Maya. A partir disso, pelo ensino da sabedoria (Vidya), a humanidade pode romper as cadeias

do Samsara e libertar-se. Há três vias para que se atinja a salvação, escapando do ciclo de

reencarnações: a via do sacrifício, do conhecimento e da devoção.

Através do sacrifício, os indivíduos tentam obter boa saúde, riqueza e felicidade

terrena. O conhecimento liberta o hinduísta da ignorância, que o amarra ao ciclo da reencarnação.

Essa libertação é dada pelo conhecimento de que a alma humana (atman) e o mundo espiritual

(Brahman) são uma coisa só. Por fim, a devoção a Deus, a crença nele, agindo

92 LINDERMANN, Ricardo. ibidem. p. 10 93 PLATÃO. A República. apud LINDERMANN, op. cit. p. 07

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desinteressadamente, o homem será libertado da transmigração pela graça de Deus. A sabedoria e

o conhecimento não dependem do mérito, mas entram na consciência junto com o Samsara e

rompem esse ciclo.

Segundo Ramacharaca, a alma leva consigo seu céu ou inferno ao plano astral,

“produto de sua própria criação e de suas crenças prediletas, participando da correspondente

felicidade ou desventura conforme seus méritos, da qual resulta o prêmio ou castigo, não sendo

um Poder fora da alma, mas um Poder que está dentre dela – é a sua própria consciência.94” O

homem não escapa ao julgamento de sua própria consciência, recebendo por si mesmo a

recompensa ou o castigo.

Aqueles que não crêem em vida após a morte, encontram outros da mesma crença

e se imaginam que foram transportados a outro planeta e que ainda vivem em carne. Ali sofrem o

Karma, recebendo o mal que fizeram e o bem que proporcionaram a outros.

Não somos castigados ou recompensados por causa de nossas ações, mas por elas

mesmas. O desejo é a causa do nosso renascimento. As pessoas não renascem contra sua vontade.

Enquanto existir o desejo, as almas são atraídas a terra. De acordo com Ramacharaca, “O amor,

até o mais desprovido de desejo, igualmente a aspiração de mais nobre caráter é uma forma de

desejo.95”

O desejo morre com o pleno conhecimento das coisas terrestres, daí estas coisas

perdem o poder. Com o término do desejo, a alma atinge a liberdade espiritual, elevando-se a

regiões superiores da vida.

94 RAMACHARACA, Yogue. op. cit., p. 87 95 Idem, ibidem. p. 148

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CAPÍTULO 3 A TEMÁTICA DA MORTE NA POESIA CECILIANA: UMA REVISÃO CRÍTICA

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3.1. Diálogos sobre a morte

As correspondências com amigos era uma prática que muito agradava Cecília

Meireles. No artigo intitulado Cartas na mesa: Cecília Meireles escreve a Henriqueta Lisboa

(2002), de Maria Zilda Ferreira Cury, podemos constatar uma breve discussão sobre a temática

aqui discutida. As duas amigas se correspondiam por cartas, discutindo variados assuntos,

inclusive a morte em seus diversos aspectos, tanto da vida pessoal de cada uma quanto da

presença da temática nas poesias de ambas.

“Para os estudos da Crítica Genética e de Historiografia Literária a

correspondência entre escritores é um caminho que pode levar a novas leituras do texto literário e

de sua história, ajudando a recuperar sua memória.96” Dessa forma, utilizamos algumas dessas

correspondências para nos subsidiar na pesquisa sobre nossa temática.

As poetisas, além da temática da morte, tinham em comum inclusive a forma de

escrever poesia. Esse contato que Cecília Meireles gostava de manter era um desejo para além da

morte, como percebemos numa das cartas que escreve à Henriqueta Lisboa:

Uma das coisas que me deslumbraria, se houvesse mesmo Céu, era encontrar-me lá com os amigos da Terra. Mas, se houver, como é certo que vocês vão para lá, e muito incerto que eu vá, não se esqueçam de mandar de vez em quando, ao meu Purgatório (pra o Inferno também não acho possível ir...), uma cartinha, um telegrama, um recadinho qualquer. Porque isso me consolará infinitamente.97

A poetisa tinha compulsão em colecionar anotações, papéis. Ela dava importância

à forma epistolar, demonstrada na crônica intitulada “Carta a meus irmãos”, para falar de seus

irmãos mortos.

96 CURY, Maria Zilda Ferreira. Cartas na mesa: Cecília Meireles escreve a Henriqueta Lisboa. In: Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 80 97 Carta de Cecília Meireles a Henriqueta Lisboa, datada de 05/09/1947 apud CURY, ibidem. p. 79

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Falando sobre a dor à Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles diz:

Embora a Poesia prepare tanto para a dor, há dores, Henriqueta, que se nos afiguram muito maiores que a Poesia. Não nos resta mesmo senão amar a própria dor: trazê-la em nossa companhia para sempre, como sombra inseparável.98

Pela presente citação, observa-se que Cecília Meireles reconhece a familiaridade

poética com a questão da morte. Essa perspectiva é reiterada como uma aceitação incontestável,

incorporada como uma experiência interior e inevitável.

Também no que se refere à Henriqueta Lisboa, elas têm em comum não só a

ênfase sobre a temática da morte, como também a identificação com estéticas anteriores ao

Modernismo, como o Romantismo e o Simbolismo.

Ana Lúcia Maria de Souza (2000), na sua tese de doutorado intitulada A morte na

poesia de Henriqueta Lisboa: entre a dor da perda e o desejo de satisfação absoluta, percebeu o

lirismo do Romantismo e a religiosidade associada ao Simbolismo permeando toda a composição

poética de Henriqueta Lisboa, da mesma forma que acontece com a poesia de Cecília Meireles.

As duas, entre outros escritores do grupo Festa, trouxeram a ressonância do Simbolismo,

especialmente a sua tendência espiritualista, ao Modernismo.99

Tanto na poesia de Henriqueta Lisboa quanto na poesia de Cecília Meireles, a

morte é uma forma de libertação das tensões humanas, que causam sofrimento e insatisfação, por

isso há o desejo de alcançar a plenitude, o transcendente, caracterizado por um estado de total

apaziguamento. O desejo de retorno à vida inorgânica, livre dos sentidos, confirma uma procura

do que faz falta. A morte representa a libertação do Ser da precariedade da matéria orgânica e

atinge a infinitude e a imortalidade.

98 Carta de Cecília Meireles a Henriqueta Lisboa, datada de 29/10/47 apud CURY. ibidem, p. 81 99 SOUZA, Ana Lúcia Maria de. A morte na poesia de Henriqueta Lisboa: entre a dor da perda e o desejo de satisfação absoluta. UFPB: João Pessoa, 2000 (Dissertação de doutorado).

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Segundo Ana Lúcia Maria de Souza, “A reiteração de imagens relacionadas ao

reino inorgânico (pedra, água, rocha) é uma marca da obra de Henriqueta”100 assim como é

também na obra de Cecília Meireles. As semelhanças do tratamento da temática entre as duas

amigas estendem-se até a utilização dos mesmos símbolos, como a “água” e a “pedra”, que

representam a origem dos seres em diversas culturas. O morto relacionado ao inorgânico

encontra-se completo, perfeito. O desejo de morte é compreendido não como destruição, mas

como uma nova existência sem dor, eterno retorno. Tudo, no fim, acaba voltando à pureza

original.

Como no caso de Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles manteve também contato

com a renomada poetisa chilena, Gabriela Mistral. De acordo com Ana Maria Domingues de

Oliveira (1992), as duas poetisas caminham em direções distintas. Enquanto que para Cecília

Meireles a morte é uma experiência transcendental, para Gabriela Mistral, a morte não sugere o

fim dos sentimentos humanos. Ao contrário, os mortos, mesmo transformados em ossos,

“continuam agindo segundo as emoções mais humanas.101”

Nesse ponto, já podemos começar a perceber as diferenças entre as duas poetisas.

Gabriela Mistral aborda um Eu ainda preso à dureza e à materialidade da morte, com todos os

valores que lhes são atribuídos, como por exemplo, as emoções; já Cecília Meireles percebe a

perfeição da alma conquistada através da morte, a qual permite ao morto uma situação de

transcendência.

Segundo Ana Maria Domingues de Oliveira, os versos de Cecília Meireles

“mostram uma morte que não se decompõe, mas transforma e conduz a um estado de perfeição

100 Idem. Ibidem, p. 109. 101 OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. A temática da morte em Cecília Meireles e Gabriela Mistral. Revista de Letras. São Paulo. V. 32, 1992, p. 129.

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que não pode ter enquanto vivo.102” Como constatamos, tal perspectiva ceciliana pode ser

observada em inúmeros poemas, tais quais em “Êxtase103” e “Cançãozinha para Tagore104”, que

se encontram em anexo ao final do nosso trabalho.

Ainda de acordo com Ana Maria Domingues de Oliveira, a materialidade da morte

é raramente encontrada nas poesias de Cecília Meireles. Sob este aspecto, ela destaca as

expressões “dedos cruzados”, “mármore dos túmulos” e “vermes” do poema “Lamento da mãe

órfã”105. Entretanto, como vimos tentando demonstrar, a temática da morte encontra-se

representada a partir de inúmeras metáforas e contextos literários e extra-literários que

extrapolam uma simplificação denotativa como sugere a autora.

Estes diálogos com poetisas contemporâneas possibilitam uma maior desenvoltura

e fortalecimento estético da tendência espiritualista dentro do Modernismo. Frente aos demais

poetas contemporâneos, Cecília Meireles, portanto, configura um sentido de cotidianidade

sempre marcado por uma visão de mundo transcendental.

Em nosso trabalho, nossas abordagens pressupõem apenas um quadro inicial da

complexidade de como a temática da morte poderá ser estruturada em pesquisas posteriores.

102 Idem. Ibidem, p. 131 103 Cf. poema “Êxtase”, p. 95 dos anexos. 104 Cf. poema “Cançãozinha para Tagore”, p. 101 dos anexos. 105 MEIRELES, Cecília. Mar Absoluto (1945) In: ______. Poesia Completa, V. I, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.509

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3.2. A crítica na poesia ceciliana e as imagens da morte

A fortuna crítica sobre as diversas características da poética de Cecília Meireles é

muito extensa, no entanto, as abordagens sobre os poemas da Índia, sua relação com o Hinduísmo

e a morte não têm sido muito trabalhadas. Entretanto, alguns trabalhos prenunciam a proximidade

de Cecília Meireles com o Hinduísmo, a partir de sua relação com a Índia. Destes, destacam-se o

artigo Passagem para a Índia (2001) de Djalma Cavalcante; o livro Cecília Meireles: uma

poética do eterno instante (2002) de Margarida Maia Gouveia; e o mais recente deles, o livro

Oriente e Ocidente na poesia de Cecília Meireles (2006) de Ana Maria Lisboa de Mello e Francis

Utéza.

Este último livro renova o tema das pesquisas feitas sobre a poesia ceciliana. A

autora delineia o pensamento hinduísta na sua formação intelectual, através do pensamento

filosófico-religioso. Estuda a ligação da poetisa à cultura indiana, desde o contato com o grupo

Festa, marcadamente espiritualista, até a sua viagem à Índia, em 1953, país pelo qual sente uma

afinidade especial. Em entrevista a Pedro Bloch, Cecília Meireles diz: “Na Índia foi onde me

senti mais dentro do meu mundo interior.106”

Entre as afirmações sobre a sua poética, Ana Maria Lisboa de Mello, no capítulo

intitulado “A compreensão da vida na poesia de Cecília Meireles”, afirma que a identificação de

um espírito universal – o UM – que origina todas as coisas e seres, “conduz necessariamente à

idéia de que a multiplicidade de entes no plano cósmico, bem como o seu desaparecimento, é

106 BLOCH, Pedro. apud MELLO, Ana Maria Lisboa de; UTÉZA, Francis. Oriente e Ocidente na poesia de Cecília Meireles. Porto Alegre: Libretos, 2006, p. 26

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pura ilusão (mâyâ).107” Como pudemos observar, a autora generaliza a filosofia oriental como um

todo no que se refere a três conceitos básicos que identificamos no Hinduísmo, como também em

outras religiões, tais quais: a indestrutibilidade da alma; a crença de uma força imanente e a

crença nas coisas terrenas como ilusão.

Dentre todos os estudos críticos que encontramos, o que mais aproxima a poética

ceciliana das crenças hinduístas é o livro de Ana Maria Lisboa de Mello. A maioria dos estudos

enfoca a questão do tempo, da brevidade da vida, raramente mencionando, por exemplo, a crença

na imortalidade da alma e na reencarnação.

Observamos que o foco de críticas anteriores corresponde à análise do tempo, à

efemeridade das coisas e à transitoriedade da vida. Dessa forma, seria impossível para nós

expormos todas as opiniões, elogios e debates. Para tanto, fizemos um seletivo apanhado que nos

desse uma visão do que há de mais fascinante e relevante para nossa pesquisa.

De acordo com Miguel Sanches Neto108 (2001), nos primeiros livros de Cecília

Meireles, é possível encontrar muitas metáforas simbolistas, devido a seu vínculo com o grupo

Festa. A recorrência ao símbolo e ao domínio do imaterial demonstra a busca ao Absoluto. Antes

de Viagem, podemos perceber uma atitude mística representada pelo Simbolismo. Essa

orientação espiritualista aspirou à universalidade por via da tradição e do subjetivismo, o que

possibilitou uma compreensão total da vida. Segundo Margarida Maia Gouveia (2002),

a essência religiosa de Festa não lhe dava todas as respostas. Nem as crenças nacionalistas, se bem que encaradas numa perspectiva universalizante, constituíam mais do que um aspecto ou derivativo do seu humanismo, mais próximo das portas de um budismo ou da ação de um Gandhi do que de uma antropologia humanística com raízes no trágico da infra-história que o pensamento de Festa tomara como diretriz.109

107 MELLO, Ana Maria Lisboa de.; UTÉZA, Francis. op.cit., p. 31 108 NETO, Miguel Sanches. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In: MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 109 GOUVEIA, Margarida Maia. Cecília Meireles: uma poética do eterno instante. Editora Nova Fronteira, 2002, p. 96

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Assim, concordamos que sua religiosidade era cósmica e imanentista, através de

uma atitude filosófica, veiculada aos pressupostos do Hinduísmo. Ainda para Margarida Maia

Gouveia, “o insondável da existência, o sentido da vida e da morte desenvolvem-se como

denominadores comuns”110 de sua poesia. Isto é perceptível em todas as obras de Cecília

Meireles, inclusive no corpus de nossa pesquisa. Vejam-se em anexo, por exemplo, os poemas

“Poeira”111, “Aceitação”112, a partir dos quais não existe uma diferença rigorosa entre viver e

morrer, já que a morte é vista como um aspecto decorrente da própria vida, como se fosse dois

lados de uma mesma moeda.

Nos poemas por nós escolhidos, o eu lírico leva o leitor a refletir sobre a vida e a

morte e o caráter temporário da permanência do ser humano na terra. Nos versos “Onde é que dói

na minha vida / para que eu me sinta tão mal?” do poema “Rimance”113, ao se questionar sobre a

dor que lhe atormenta, o eu lírico reflete sobre o seu sofrimento e as suas angústias e os sublima

por meio da consciência da fugacidade de todas as coisas que o cercam, como veremos

posteriormente.

Tomando por base o estudo feito dos conceitos básicos do Hinduísmo, traçamos

um roteiro da morte, ao começar pelo livro Viagem (1939), passando por Poemas Escritos na

Índia (1953) e finalizando com Metal Rosicler (1960). Através desse roteiro, é possível

percebermos a evolução com que o tema da morte vai se desenvolvendo nas poesias.

Em Viagem, por exemplo, observamos que as imagens de “mar”, “oceano”, “sol”,

“lua” são mais freqüentes. Em Poemas Escritos na Índia, os símbolos mudam para “poeira”,

“pedras”, “cinzas”, “aromas”, os quais demonstram afinidade entre Cecília Meireles e a Índia,

110 GOUVEIA, Margarida Maia. Cecília Meireles e a literatura Portuguesa: abordagens e percursos. In: Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 120 111 Cf. o poema “Aceitação”, p. 95 dos anexos. 112 Cf. o poema “Poeira”, p. 99 dos anexos. 113 Cf. o poema “Rimance”, 97 dos anexos.

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pois tudo é muito nítido e “real” nos seus versos. Em Metal Rosicler, a idéia da morte e os

conceitos hinduístas aparecem mais amadurecidos no que se referem ao conhecimento sobre o

assunto. A consciência de que tudo é cíclico e que não tem início ou fim, fica mais aparente na

última obra do nosso corpus, demonstrando a aceitação de que a vida continua no plano

transcendente, livre das amarras do tempo e da matéria.

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3.2.1. A morte como “viagem”

Em 1939, Cecília Meireles reuniu 100 poemas do período de 1929 a 1937 para

compor o livro Viagem, publicado em Portugal, o que demonstrou o reconhecimento da poetisa

pelos portugueses. De acordo com Mário de Andrade (1972), a obra destoava do nacionalismo

dos outros modernistas da época, como Oswald de Andrade e o próprio Mário de Andrade, pelo

fato de Cecília Meireles abordar o tema da viagem de maneira bem particular.114

Certamente a metáfora mais enriquecedora sobre a morte é a partir do tema da

viagem. Ela não se restringe ao deslocamento no espaço, confirmado por viagens feitas pela

poetisa a países como Itália, Portugal, Jerusalém, Roma, Índia, entre outros. A viagem é também

o deslocamento do homem rumo ao distante, ao transcendente, mas ao mesmo tempo em busca

de si mesmo, numa viagem interior.

As viagens por vários países, ou seja, a viagem espacial, especialmente à Índia,

permitiu que Cecília Meireles fosse amadurecendo intimamente, cada vez mais, aspectos

universalizantes, os quais já continha, tanto no que se refere à quebra de fronteiras espaciais e

principalmente religiosas, estas últimas tão enfatizadas pelo Hinduísmo. Como assim afirma

Miguel Sanches Neto (2001), “o seu território é um não-lugar, uma fronteira imprecisa.115”

A viagem à Índia incentivou Cecília Meireles a escrever Poemas Escritos na Índia

(1953), sobre a natureza do homem indiano, sua simplicidade e a comunhão com a natureza. De

acordo com Miguel Sanches Neto (2001), no livro, “a poeta (ipsis litteris) vai anexando novas

paisagens e novos personagens à sua obra, intensificando o tom universalista de sua poesia,

114 ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinhos. São Paulo: Martins, 1972 p. 161 115 NETO, op. cit, p. xxxiv

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sempre voltada para a conjunção de tempos e espaços.116” Esse desenvolvimento pode ser melhor

verificado em Metal Rosicler (1960), onde o tema da morte é identificado de maneira mais

amadurecida, trabalhando os conceitos hinduístas de forma mais consciente, como veremos

posteriormente.

Dessa forma, a viagem aparece como a passagem do mundo terrestre, material, a

um plano superior. O viajante de Cecília Meireles se move num mundo onde os elementos são

sempre mutáveis, como “nuvens”, “onda”, “água”, revelando a rapidez de tudo, viajando rápido

em consonância com a breve existência dos seres. Encontramos essas imagens nas poesias do

livro Viagem, principalmente em “Aceitação”:

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens e sentir passar as estrelas do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.117 (...)

As nuvens, as estrelas demonstram a ligação do eu lírico com a natureza, ao

mesmo tempo em que reforçam a idéia da transitoriedade do Ser, ou seja, o Ser é passageiro e

mutável como as “nuvens” e perecível como as “estrelas”, como se durassem o tempo de uma

noite e morressem quando aparece o dia. Esta consciência de que o homem é um eterno

“viajante” é encontrada em outro verso de Cecília Meireles: “Nós somos um tênue pólen dos

mundos”.118

Enquanto a imagem predominante do viajante moderno é a imagem do explorador

de espaços geográficos, o viajante de Cecília Meireles é um explorador de sensações íntimas da

alma. Em uma de suas crônicas de viagem, Cecília Meireles afirma que

116 NETO, op. cit, p.liv. 117 Cf. poema “Aceitação”, p. 95 dos anexos. 118 Cf. poema “Êxtase”, p. 95, verso 8 dos anexos.

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o viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro – um futuro que ele nem conhecerá.119

O “viajante” de Cecília Meireles é um Ser envolvido na contemplação dos lugares

por onde passa, sempre relacionando às emoções contidas na intimidade de sua sensibilidade. Há

uma relação de afetividade entre observador e coisa observada, ou seja, uma vez que o olhar do

viajante prende-se a cada objeto, no qual busca a história que deseja conhecer. Ele “ama

loucamente cada aspecto do caminho”. Perguntamo-nos: Por que isto acontece? O que pensa esse

viajante? Estará preocupado em aproveitar um momento de contemplação porque aquilo poderá

deixar de existir, ou ele próprio é quem deixará de existir? Observemos que esta preocupação

encontra-se no final do trecho da crônica em “[...] um futuro que ele nem conhecerá”, sugerindo

que a viagem de cada Ser será sempre uma surpresa inimaginável.

As viagens vão aprimorando, no viajante, consciências de passagem, reflexões

sobre sua vida e buscas de respostas para inquietações dentro de si mesmo. Como diz Octavio

Ianni (1996), a viagem desenvolve o Eu120. Isto porque o viajante procura se reencontrar nos

lugares visitados ou busca uma paz interior perdida. Daí, depreende-se que o viajante é sempre

um estranho em terra estranha, ou seja, a terra é apenas um lugar de nossa passagem e de nossa

impermanência.

De acordo com Gínia Maria Gomes (2002),

a arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar. É ir em peregrinação, participando intensamente de coisas, de fatos, de vidas com as quais nos correspondemos desde sempre e para sempre. É estar constantemente emocionado, - e nem sempre alegre, mas, ao contrário, muitas vezes triste, de sofrimento sem fim, porque a solidariedade humana custa, a cada um de nós, algum profundo despedaçamento.121

119 MEIRELES, Cecília. Roma, turistas e viajantes. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 17.08.58. 120 IANNI, Octavio. 1996, apud MELLO, Ana Maria Lisboa de. A arte de viajar na poesia de Cecília Meireles. Organon. Vol. 17. N. 34, 2003, p. 186. 121 GOMES, Gínia Maria. Cecília Meireles na Itália. In: Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 113.

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Assim, como sugere a citação, viajar é, acima de tudo, perder-se e nada conduzir

consigo, pois nada temos, a não ser a nossa própria incapacidade de reter as coisas, as pessoas ou

os lugares. O processo de contemplação associado ao ensinamento do CARPE DIEM incita o

“viajante” a vivenciar cada coisa intensamente, não precisando necessariamente estar feliz, mas

sentindo tudo com o máximo de profundidade.

Essas reflexões sobre os sentidos da viagem são importantes para uma melhor

compreensão desta idéia associada à morte discutida por Joseane Rucker (2002). Para esta autora,

a viagem de Cecília Meireles “sugere o desapego do Ser às ilusões e sonhos do mundo

terrestre122”. Nesta perspectiva, o eu lírico navega passando de uma realidade a outra. Assim,

entendemos que a morte como viagem é o reinício de um novo ciclo, permitindo o eterno retorno

do Ser, “pois os homens não deixam de navegar, somente trocam de navio”.123 O navio

representa, portanto, o corpo que navega no mar, que representa a vida, mas o Ser continua o

mesmo, navegando por toda a eternidade.

122 RÜCKER, Joseane. O universo imaginário em Viagem. In: Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 142 123 Idem. Ibidem, p. 142.

Cuando navega la melancolia (1933), desenho de Cecília Meireles. FONTE: MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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A sua viagem a Índia a fez escrever, também, um conjunto de crônicas publicadas

em jornais do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Em uma dessas crônicas escreve:

O que mais me encanta na Índia é a ânsia do povo em realizar coisas boas, de um modo exato. A ânsia de construir. De dar um sentido à Independência, obtidas com tantas e longas lutas. A busca de uma direção. Um interesse patriótico, junto ao eterno interesse sobre-humano. Realmente, como uma ressurreição.124

Através dessa declaração, podemos perceber que Cecília Meireles admira, por

exemplo, a luta de Gandhi pela Independência da Índia e os ensinamentos dos mestres espirituais

com a intenção de despertar sentimentos e comportamentos bons no seu povo. A “busca de uma

direção”, de que ela fala, assemelha-se a um recomeço, a um ressurgir para uma nova vida

transformada após tantas lutas e sofrimentos. Notadamente, ela se refere a uma Índia do seu

tempo, omitindo os graves problemas políticos sociais, uma vez que sua preocupação era

essencialmente de caráter metafísico.

Como já afirmamos diversas vezes, Cecília Meireles era grande admiradora da

cultura hinduísta, o que justifica, em parte, o fato de ela incluir, em sua produção literária,

poemas dedicados a Gandhi e a Tagore. No auge de sua contemplação sobre a Índia, Cecília

Meireles volta-se para a imagem de um homem que representou melhor o exercício da vida

espiritual sobre sua vida social e dedicou uma das suas poesias ao Mestre, intitulada “Mahatma

Gandhi125”, a qual foi publicada no livro Poemas Escritos na Índia:

Nas grandes paredes solenes, olhando, o Mahatma. Longe no bosque, adorado entre incensos, o Mahatma. Nas escolas, entre os meninos que brincam,

124 MEIRELES, Cecília. In: Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 04/08/1954 apud MELLO; UTÉZA. Oriente e Ocidente na poesia de Cecília Meireles. Porto Alegre: Libretos, 2006, p. 27 125 O poema “Mahatma Gandhi” faz parte do livro Poemas Escritos na Índia. In: Poesia Completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 986-987

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o Mahatma. Em frente do céu, coberto de flores, o Mahatma. Na vaca, na praia, no sal, na oração, o Mahatma. De alto a baixo, de mar a mar, em mil idiomas, o Mahatma.

Construtor da esperança, mestre da liberdade, o Mahatma. Noite e dia, nos poços, nos campos, no sol e na lua, o Mahatma. No trabalho, no sonho, falando lúcido, o Mahatma. De dentro da morte falando vivo, o Mahatma. Na banheira aberta a um vento de música, o Mahatma. Cidades e aldeias escutam atentas: É o Mahatma.

No poema acima, Cecília Meireles busca representar, com simplicidade, a projeção

da figura mítica de Gandhi expressa pelas vertentes espiritual e política. Com os versos

“Construtor da esperança, mestre da liberdade” e “Cidades e aldeias escutam atentas”, Cecília

Meireles relembra uma época histórica em que Gandhi lutava pela independência da Índia. Ele

ensinou o seu povo a lutar por seus objetivos sem utilizar-se de violência, pois tinha um espírito

libertário e unificador.

Nos versos, Gandhi ressurge não apenas como um líder político, mas,

principalmente, como líder espiritual. O nome “Gandhi” é citado apenas no título do poema.

Provavelmente, foi intencional o fato da poetisa se reportar a ele como a “Grande Alma” que

representou para o povo indiano. Ele deixou os frutos dos seus ensinamentos e de sua fé

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representados nos lugares por onde passava e nas coisas que fazia, como uma forma de

onipresença.

É importante ressaltar, nesse poema, a visão que a poetisa tem da morte, trazendo-

a como uma continuadora da vida. No verso “De dentro da morte falando vivo”, ela mostra que a

morte não é um empecilho para que o grande mestre indiano continue a sua missão de libertação

sócio-política e, também, espiritual. O verso reafirma a aceitação da morte, o desprendimento

material e a busca da paz diante das aflições da vida humana, que Mahatma Gandhi tanto

pregava.

Contextualizando o tema da morte em função do título do livro Viagem, o estado

contemplativo do Eu, diante da morte, é feito através de isolamento e de meditação. Ele deseja

reencontrar-se, abandonando o seu estado físico para poder ter uma visão mais geral, como de

espectador da própria vida, contemplando a si mesmo. No poema “Êxtase”, o eu lírico se

desprende do plano material e passa para um outro mais elevado, transcendente. Ele se mostra

contemplativo, coloca-se de braços abertos como se buscasse a união com Deus ou até mesmo

colocando-se numa posição divina. Vejamos:

(...) em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos, e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.126 (...)

O eu lírico encara os paradoxos da temporalidade, pois está em constante conflito

entre os dois planos: o terreno e o transcendente. Mas esse conflito não causa indecisão, ao

contrário, quando passa a conhecer a condição do Ser, busca e almeja o plano superior para,

enfim, ser completo, pleno, integrando seu Eu interior ao Absoluto. Nos versos abaixo,

encontramos essa intermediação: 126 Cf. poema “Êxtase”, p. 95, versos 4 e 5, dos anexos.

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Deixa-te estar embalado no mar noturno Onde se apaga e acende a salvação. (...) Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.127 (...)

Juntamente com a “terra”, o “mar” é um símbolo freqüente nas poesias de Cecília

Meireles. Simbolicamente, ele é o lugar das mortes e dos renascimentos, onde a vida se renova. O

eu lírico tem consciência de que é preciso partir do mundo físico para depois retornar a ele, ou

seja, que é preciso morrer para nascer novamente. Nos versos, ele aconselha alguém a aceitar a

morte como renovação e a desprender-se da vida terrestre “sem nenhuma saudade”. O desapego,

aliás, é uma das vias de salvação pregadas pelo Hinduísmo.

Os versos revelam um eu lírico sem perspectiva do surgimento de alguém que

renove sua esperança na vida. A aceitação da ausência física desse alguém provoca um abandono

do seu Eu na infinitude do oceano. Desta forma, o eu lírico projeta sua esperança na continuidade

da vida que se renova no mar. Observemos:

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, que desejar que apareças, criando com teu simples gesto o sinal de uma eterna esperança.128

O desapego ao mundo material é perceptível na estrofe seguinte. Inicialmente, o

eu lírico cita as estrelas, que, possivelmente, sugerem o conflito entre as forças espirituais (ou de

luz) e as forças materiais (ou de trevas)129. O eu lírico desenvolve um egotismo que o motiva a

olhar para si mesmo e tentar se definir, afastando-se daquilo que possa trazer conflitos e dúvidas,

como verificamos nos versos:

127 Cf. poema “Êxtase”, p. 95, versos 1, 2 e 6 dos anexos. 128 Cf. poema “Aceitação”, p. 95, versos 4 a 7 dos anexos. 129 Veja-se, por exemplo, CHEVALIER, Jean; CHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva. [et al] 3.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1990, p. 404.

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(...) Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.130

Neste último verso, percebemos que o eu lírico não teme a morte, pois ela está

associada ao feliz canto da cigarra. A cigarra irá morrer, mas continua cantando, aproveitando a

vida, que é curta, porém intensa. O eu lírico aceita a morte, como o próprio título do poema

sugere.

Associada à imagem do mar, encontramos, também, a dialética “noite” e “dia”. Há

uma permanente oposição entre pólos distintos para enfatizar a preferência da noite sobre o

dia/sol, uma vez que o dia esconde e disfarça a essência transcendente do Ser, possivelmente

alcançada com a noite, uma outra metáfora da morte. Como exemplificam os versos do poema

“Distância”:

Quando o sol ia acabando e as águas mal se moviam, tudo que era meu chorava da mesma melancolia. Outras lágrimas nasceram com o nascimento do dia: só de noite esteve seco meu rosto sem alegria.131 (...)

Todo esse contraste entre dia e noite foi bastante explorado pelo Romantismo,

muito embora a morte em Cecília Meireles não possua o mesmo significado atribuído pelos

românticos e decadentistas, exceto a herança da melancolia romântica.

130 Cf. poema “Aceitação”, p. 95, versos 8 a 11 dos anexos. 131 Cf. poema “Distância”, p. 96, versos 1 a 8 dos anexos.

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Percebemos, ainda, que o eu lírico lamenta a distância de alguém, que é levado

pela morte. Ela causa saudade do ente querido, e, por conseguinte, a secura interior: “só de noite

esteve seco / meu rosto sem alegria”, demonstrando rendição à inevitabilidade da morte. A

“distância” é a morte da presença, retrata a perda, portanto o “sol” simboliza a destruição da vida,

momento em que surgem as “lágrimas”. A atitude ceciliana assemelha-se à representação do

“sol” encontrada na definição de Chevalier e Cheerbrant (1990), que diz:

O Sol imortal nasce toda manhã e se põe toda noite no reino dos mortos; portanto, pode levar com eles os homens e, ao se pôr, dar-lhes a morte; mas, ao mesmo tempo, pode guiar as almas pelas regiões infernais e trazê-las de volta à luz no dia seguinte. [...] A produção e a destruição cíclicas fazem dele um símbolo de Maya, mãe das formas e ilusão cósmica. De outra maneira, a alternância vida-morte-renascimento é simbolizada pelo ciclo solar.132

Portanto, a ilusão de que é possível interagir com o mundo dos mortos é

intermediada pelo sol, que nada mais é do que a representação ilusória de tudo luminoso que a

vida representa. Como a realidade transcendental não é vista em termos maniqueístas, o mesmo

sol que representa a ilusão da vida, culminada com a morte, representa também o seu

renascimento cíclico. No entanto, a distância não permite uma comunicação, ou seja, o morto está

num plano superior de onde não é possível ver ou ter contato com os vivos. Observemos nos

versos abaixo:

(...) (Talvez o sol que acabara e as águas que se perdiam transportassem minha sombra para sua companhia...) Oh! mas nem no sol nem nas águas os teus olhos a veriam... - que andam longe, irmãos da lua, muito clara e muito fria...133

132 CHEVALIER; CHEERBRANT. op. cit, p. 836. 133 Cf. poema “Distância”, p. 96, versos 9 a 17

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Para tanto, o eu lírico ainda sofre no poema “Rimance”, pois ainda não consegue

entender o sentido da morte. Dessa forma, lamenta sua dor, à espera da morte, pressentindo sua

breve chegada:

Onde é que dói na minha vida, para que eu me sinta tão mal? Quem foi que me deixou ferida de ferimento tão mortal? Eu parei diante da paisagem:134 e levava uma flor na mão. Eu parei diante da paisagem procurando um nome de imagem para dar à minha canção. Nunca existiu sonho tão puro como o da minha timidez. Nunca existiu sonho tão puro, nem também destino tão duro como o que para mim se fez. Estou caída num vale aberto, entre serras que não têm fim. Estou caída num vale aberto: nunca ninguém passará perto, nem terá notícias de mim. Eu sinto que não tarda a morte, e só há por mim esta flor; eu sinto que não tarda a morte e não sei como é que suporte tanta solidão sem pavor.135 (...)

“Rimance” significa, segundo o Dicionário Aurélio, uma “narrativa popular em

versos, ou seja, romance popular alegre em que se narram trechos de viola airada.136” A canção

popular é submetida por um processo de erudição e assume uma conotação contrária a sua versão

popular. Ao invés de representar uma canção alegre, ela representa uma canção triste. Ao longo

do poema, esse lamento é demonstrado, de forma persistente, pela repetição de alguns versos. Em

134 Grifo nosso. 135 Cf. poema “Rimance”, p. 97 dos anexos. 136 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI. Editora Nova Fronteira, 1999.

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quase todas as estrofes, exceto na primeira e na última, o primeiro verso de cada estrofe aparece

repetido no terceiro, como mostra o nosso grifo. A insatisfação e o sofrimento terreno incitam a

busca por respostas. Dessa forma, o eu lírico quer encontrar na morte, o alívio de sua dor e

conquistar a libertação do sofrimento da vida pela morte.

A utilização de termos como “flor”, “paisagem”, “vale”, “serras” e “rio” sugere a

contemplação da natureza e o desejo de integrar-se a ela, como fuga para lugares distantes e

afastados das outras pessoas. Tal afirmação é confirmada pelos versos “Estou caída num vale

aberto / nunca ninguém passará perto, / nem terá notícias de mim.137” Mais uma vez,

encontramos uma característica comum entre a poesia ceciliana e o Romantismo, expresso pela

solidão e distanciamento do mundo e seus objetos.

Nos últimos versos, o eu lírico ouve o “rio” passar ao longe e se entristece porque

não está sendo levado por ele.

(...) E sofro mais ouvindo um rio que ao longe canta pelo chão, que deve ser límpido e frio, mas sem dó nem recordação, como a voz cujo murmúrio morrerá como o meu coração...138

Podemos sugerir que é o rio do Hades, o rio da morte da literatura clássica. De

acordo com Chevalier e Cheerbrant,

O simbolismo do rio e do fluir de suas águas, é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e o da fluidez das formas, e da fertilidade, da morte e da renovação. O curso das águas é a corrente da vida e da morte. [...] A travessia é a de um obstáculo que separa dois domínios, dois estados: o mundo fenomenal e o estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de não-vinculação.139

137 Cf. poema “Rimance”, p. 97 dos anexos. 138 Cf. poema “Rimance”, p. 97, versos 25 a 30 dos anexos. 139 CHEVALIER; CHEERBRANT. op. cit. p. 696.

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O verso “mas sem dó nem recordação” sugere que o rio, à medida que leva o

morto para o outro lado do leito, vai apagando sua memória, onde possivelmente possa vivenciar

uma nova experiência. O ato de recordar é um fator importantíssimo nas poesias de Cecília

Meireles: ora a memória assume um caráter positivo, como uma lembrança que vale a pena

recordar, ou ela equivale ao esforço de esquecer-se, como uma tentativa de purgar as lembranças

indesejáveis. No poema, a memória representa, segundo a mitologia grega, o rio Letes, o rio do

esquecimento.

A importância do poema “Rimance” estabelece um elo analógico de transição do

Eu do livro Viagem e o Eu do Poemas Escritos na Índia. Ambos viajam procurando compreender

o sentido de vida e de morte, mas este último, ao contrário do primeiro, é um Eu que parece

compreender melhor que a morte e a vida são processos cíclicos, como veremos a seguir.

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3.2.2. Poemas Escritos na Índia e o Hinduísmo

Indubitavelmente, como demonstramos através de alguns de seus pressupostos

filosóficos e de relevantes ensaios críticos, o Hinduísmo é um importante instrumento acessório

na estruturação da poética de Cecília Meireles. Como uma experiência didática, tentaremos agora

estabelecer uma aproximação ideológica do Hinduísmo sobre o corpus proposto como

representação estética deste.

Após a leitura de Poemas Escritos na Índia, percebemos que a temática da morte

mudou com relação ao que acabamos de ver nos poemas de Viagem. Os Poemas Escritos na

Índia, de 1953, são mais conscientes da idéia de morte, ou seja, estão mais afinados com os

conceitos de morte como um fator que transcende a vontade humana e é comum a todos os seres.

Na Índia, Cecília Meireles encontra um povo preocupado com a disciplina da

alma, através da mansidão, paciência e trabalho, como meio para alcançar a felicidade, virtudes

essas que dão consistência à espiritualidade. Os poemas expressam uma visão mais realista do

cotidiano do país, em perfeita consonância com as idéias do Modernismo. Eles se referem à

simplicidade dos seres, enfim, a cotidianidade dos fatos, como elementos presentes na poética de

contemporâneos como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.

A poetisa assume uma postura contemplativa da manifestação da natureza e sua

interação com os homens, percebendo uma essência única em todas as formas de vida.

Verificamos, enfim, que sua poética vence a finitude das coisas ao crer na imortalidade da alma,

vencendo as barreiras do tempo e dos espaços e, por que não dizer, a memória. A morte é uma

aliada de Cecília Meireles, porque permite a continuação da vida em outro plano, mais completo

e real, longe da dor e próxima da verdadeira felicidade.

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Segundo Leila Gouvêa (2001), as influências filosóficas fazem de Cecília Meireles

“a poeta (ipsis litteris) das grandes interrogações metafísicas, que em quase todos os seus livros

praticou a arte como exercício de sondagem de uma verdade supraterrena...140”. Para Miguel

Sanches Neto (2001), “o papel da poeta (ipsis litteris) era fazer a ponte com o Elevado, opondo-

se assim ao culto de um agora restritivo141”, ou seja, dava importância ao que é eterno,

distanciando-se da inconstância e da efemeridade da matéria.

As imagens apresentadas pelos poemas variam entre espaços geográficos, pessoas

e animais, como seres anônimos. Uma outra referência preponderante do Hinduísmo estético

como imagem textualizada é representada pelo poeta Rabindranath Tagore, a quem ela dedica um

poema.

Não sabemos até que ponto a estética do poeta indiano influenciou a poetisa,

entretanto, podemos assegurar que, como ele, Cecília Meireles acreditava na imanência do divino

sobre todas as coisas. No poema “Cançãozinha para Tagore”, a voz poética chega a acreditar na

irmandade espiritual e fraternal entre os poetas, com quem ela espera reencontrar um dia.

Observemos os versos:

(...) Chegaremos de mãos dadas, Tagore, ao divino mundo em que o amor eterno mora e onde a alma é o sonho profundo da rosa dentro da aurora.142 (...)

Aqui a noção de temporalidade aparece como crença no amor eterno. Essa idéia é

representada pela ausência de advérbios de tempo e pela presença de uma ação futura, numa 140 GOUVÊIA, Leila V. B. A capitania poética de Cecília Meireles. CULT 51, Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editoral, out. 2001, p.42 141 NETO, Miguel Sanches. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In: MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. xxiii 142 Cf. poema “Cançãozinha para Tagore”, p. 101, versos 17 a 21 dos anexos.

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tentativa de geografar a transcendência como um espaço que permitirá o encontro dos amigos

mortos. Como não há distinções, ou delimitações, o passado e o futuro fazem-se presentes,

simultaneamente. Segundo Claudia Labres (2002),

O tempo é fugidio, avança e retrocede num movimento cíclico que é também estático. Mas o tempo passa e a consciência da fugacidade do tempo leva a aspectos marcantes do lirismo ceciliano: a vida vista como um sonho, a constante busca do Absoluto, a sensação do exílio terreno e o padecimento por um eu que se perdeu devido às modificações processadas pelo tempo.143

O tempo terrestre serve apenas como um “momento” necessário à contemplação

dos objetos com tranqüilidade e imergir-se neles, através de uma identidade espiritual comum

entre o Eu e as coisas.

Enquanto os poemas anteriores que destacamos referem-se à morte sujeita como

processo de causa e efeito, no poema “Cançãozinha para Tagore”, o eu lírico imagina um espaço

pós-morte concebido a partir de um ato de pura imaginação onde ele espera encontrar o poeta:

Àquele lado do tempo Onde abre a rosa da aurora, chegaremos de mãos dadas, cantando canções de roda com palavras encantadas.144 (...)

O verso “cantando canções de roda”, que aparece na primeira e na quarta estrofes,

remete à infância como um espaço primordial, idealizando um estado de pureza, onde se vivia um

estado de inocência infantilizada.

O poema expressa a necessidade de alcançar o plano superior, onde possam

encontrar a “ventura”, a felicidade plena, inclusive se esta plenitude for conquistada ao lado de

quem se te apreço, como Tagore. “Àquele lado do tempo” é o verso que dá início às duas

143 LABRES, Claudia. A poesia de Cecília Meireles: obra que se constrói em imagens. In: Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 134 144 Cf. poema “Cançãozinha para Tagore”, p.101, versos 1 a 5 dos anexos.

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primeiras estrofes, onde o tempo não é mais medido, demarcando os limites dos dois planos, o

terrestre e o astral:

(...) Para além de hoje e de outrora, veremos os Reis ocultos, senhores da Vida toda, em cuja etérea Cidade fomos lágrima e saudade por seus nomes e seus vultos.145 (...)

O verso “chegaremos de mãos dadas” é repetido em todas as estrofes, pois o eu

lírico acredita que os bons sentimentos, como amizade, carinho e admiração permanecem nas

próximas vidas e são cultivados no “divino mundo”:

(...) Àquele lado do tempo onde abre a rosa da aurora, e onde mais do que a ventura a dor é perfeita e pura, chegaremos de mãos dadas.146 (...)

A expressão “a rosa da aurora” sugere um renascimento místico, almejado pelo eu

lírico. Segundo o Dicionário de Símbolos, a aurora representa a plenitude prometida, é “a

esperança em cada um de nós147”. Dessa forma, designa uma perfeição acabada, uma realização

sem defeito. O sofrimento da vida terrestre, recorrente nos poemas anteriores, é substituído pela

esperança de ter uma vida feliz, eterna, onde será possível viver das “coisas amadas”:

(...) Chegaremos de mãos dadas cantando canções de roda. E então nossa vida toda será das coisas amadas.148

145 Cf. poema “Cançãozinha para Tagore”, p. 101, versos 6 a 11 dos anexos 146 Cf. poema “Cançãozinha para Tagore,” p. 101, versos 12 a 16 dos anexos 147 CHEVALIER; CHEERBRANT. op. cit. p. 101 148 Cf. poema “Cançãozinha para Tagore,” p. 101, versos 22 a 25 dos anexos.

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No poema “Pedras”, o símbolo de mesmo nome é usado para se referir ao homem.

Provavelmente, o Hinduísmo é uma das religiões que possui uma infinidade de imagens para

designar sua concepção do Divino. Enquanto no Cristianismo ele possui uma representação mais

objetiva, como, por exemplo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Hinduísmo representa Deus

através de uma concepção panteísta já referida no início desse estudo. Ao invés de representar

Deus como elemento distante do homem, sua concepção encontra-se inserida dentro do próprio

homem e também presente em todas as coisas da terra.

Uma das imagens primordiais da relação entre Deus, o homem e todas as coisas é

representada pela imagem da pedra. De acordo com Chevalier e Cheerbrant, “A pedra e o homem

apresentam um movimento duplo de subida e de descida. O homem nasce de Deus e retorna a

Deus. A pedra simboliza, assim como a água, a origem dos seres em diversas culturas.149”

Observemos os versos abaixo:

Eu vi as pedras nascerem, do fundo chão descobertas. Eram brancas, eram róseas – tênues, suaves pareciam, mas não eram. Eram pesadas e densas, carregadas de destino, para casas, para templos, para escadas e colunas, casas, plintos.150 (...) As pedras nascem expostas, desprotegidas e vulneráveis à ação do mundo.

Parecem suaves, mas vêm “carregadas de destino”, tornando-as “pesadas”, ou seja, voltam ao

mundo para cumprir seu karma. Nesse poema, o eu lírico considera a pedra como elemento

fundante da essência humana no processo de evolução espiritual. O Hinduísmo profetiza a crença

149 CHEVALIER; CHEERBRANT. Dicionário de Símbolos. p. 697 150 Cf. poema “Pedras”, p. 100, versos 1 a 10 dos anexos.

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de que, antes de nos tornarmos humanos, passamos por todos os reinos da criação: o mineral, o

vegetal e o animal. Essa idéia está presente no verbo “pareciam”, como destaca nosso grifo. O eu

lírico indaga-se sobre a origem sobrenatural das pedras, já que estão sozinhas e sem defesa:

(...) Dava a luz da aurora nelas, Inermes, caladas, claras, – matéria de que prodígios? – ali nascidas e ainda solitárias.151 (...)

Após cumprir o período predeterminado no mundo, as pedras, como possivelmente

as pessoas, retornam ao plano superior transmutadas em “nuvens”, ou seja, leves e mais próximas

do céu. A oposição entre pedras/nuvens sugere o espaço físico de cada uma: uma em seu estado

primordial, nascida da terra; e a outra no seu mais elevado estado espiritual, surgindo no céu,

indicando a união com o Ser Supremo, retornando à origem de todo Ser. Dessa forma, após

sucessivas evoluções espirituais (reencarnação), o Ser tornar-se-á salvo do sofrimento e do

condicionamento humano.

Retomando a idéia do viajante, o primeiro poema do livro, “Lei do Passante”,

pressupõe noções básicas do Hinduísmo como a existência do karma. A “Lei”, citada no título,

sugere ser a lei do karma, condicionada pelo ciclo do Samsara. De acordo com esta Lei, todas as

ações do homem em sua trajetória de vida sofrerão suas conseqüências, provocadas pelo próprio

homem, sejam elas positivas ou negativas. O poema tem três interrogações que se alternam nas

estrofes: “Chega?”, “Passa?”, “Volta?”. As respostas a essas perguntas dependem do

comportamento do indivíduo em vida, segundo o Hinduísmo:

Passante quase enamorado, nem livre nem prisioneiro,

151 Cf. poema “Pedras”, p. 100, versos 11 a 15 dos anexos.

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constantemente arrebatado152 (...)

O eu lírico nem se sente livre, porque possui ligações cármicas, nem é prisioneiro,

porque pode ser libertado por suas ações. Para tanto, a “lei” é retornar à vida terrestre:

(...) a escutar o chamado, o apelo do mundo inteiro, nos contrastes de cada lado...153 (...)

De um lado, há o chamado do plano terrestre para que o indivíduo cumpra seu

karma; de outro lado, há o chamado do plano transcendente para que retorne às suas origens. Os

“contrastes de cada lado” também sugerem os dois lados do rio do Hades: morte, vida ou a

cessação do ciclo de reencarnações.

Segundo Djalma Cavalcante, “a vida é uma espécie de luta entre o atman e o ‘ser’,

que deseja desfrutar os prazeres de tudo o que é mundano, enquanto o outro aspira retornar à sua

origem, isto é, à divindade154”. A ênfase na fugacidade da vida e na sobrevivência do espírito são

de tamanha importância para a produção literária com o tema da morte, já que, para os hinduístas,

o atman, “partícula manifesta do Uno e, portanto, divina”, se contrapõe ao Ser.

A viagem, então, acaba inserindo no Eu uma identidade de passagem, que se deixa

levar: “constantemente arrebatado”. O “passante” não viaja nem para fugir nem para buscar,

simplesmente cumpre os desígnios cósmicos que lhe foram atribuídos.

Nesse poema, observamos um dos mais gerais pressupostos da metafísica

hinduísta, ou seja, a crença de que a permanência do ser humano na terra é apenas uma passagem,

152 Cf. poema “Lei do Passante” p. 98, versos 1 a 3 dos anexos. 153 Cf. poema “Lei do Passante” p. 98, versos 5 a 7 dos anexos. 154 CAVALCANTE. Djalma. Passagem para a Índia. In: CULT 51, Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial, out. 2001, p. 53

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uma viagem, com a temporalidade definida. Veja-se, por exemplo, que o termo “passante” é

substituído pelo termo “viajante”. O “passante”, ao contrário do “viajante”, aceita, sem

questionar, o seu destino e a sua estadia passageira na terra. Conseqüentemente, ele se enamora

de todos os fatos da vida, sejam alegres ou tristes, pois o equilíbrio espiritual lhe proporciona

quietude.

Na segunda estrofe, o eu lírico fala sobre o fato de o indivíduo amar sem ser

correspondido. Nesse caso, não possui o mesmo sentido do amor romântico, pois, aqui,

representa o amor transcendental sobre todas as coisas, que não espera os seus frutos. O

“passante”, portanto, adquire o status simbólico de um semeador de boas ações e compreensão da

essência do amor universal, como percebemos nos versos abaixo:

(...) Passante quase enamorado, já divinamente afeito a amar sem ter de ser amado, porque o tempo é traiçoeiro e tudo lhe é tirado repentinamente do leito, malgrado seu querer, malgrado...155 (...)

Na terceira estrofe, os “campos do inverdadeiro” sugerem o mundo em que

vivemos, o mundo das sensações, das ilusões (maya), onde até o tempo é irreal:

(...) Passante quase enamorado, pelos campos do inverdadeiro, onde o futuro é já passado... – Lúcido, calmo, satisfeito, – fiel? saudoso? amante? alheio? – só de horizontes convidado...156 (...)

155 Cf. poema “Lei do Passante” p. 98, versos 9 a 15 dos anexos. 156 Cf. poema “Lei do Passante” p. 98, versos 17 a 22 dos anexos.

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O verso “-Lúcido, calmo, satisfeito” demonstra o estado em que o “passante” se

encontra no plano terrestre, ou seja, tranqüilo, aparentemente preparado para sua vida

transcendente e desprendido dos desejos terrestres. No entanto, esse estado não é tão confiável,

devido às perguntas seguintes: “fiel? saudoso? amante? alheio?”.

Como fator conclusivo, é importante ressaltar que a vida do eu lírico e a do

passante, de quem ele fala, são experiências diferentes. Enquanto o passante é um amante

enamorado das coisas, o eu lírico finaliza o poema com uma indagação, como marca de dúvida

sobre os sentidos de vida, de morte e seus caracteres cíclicos.

Um provável questionamento condicionado pela experiência e conhecimento da

metafísica cristã, que embora reconheça vida após a morte, é prenunciada pela crença no dia do

juízo final. Certamente, tal questionamento representa os limites culturais que definem a

experiência de Cecília Meireles como ocidental e com formação cristã. Tal característica é longe

de ser um defeito de uma apreensão de um Hinduísmo pleno, representa os condicionamentos

inevitáveis e inerentes de sua formação ocidental.

O tom universalista das poesias de Cecília Meireles, herdado da tolerância

religiosa adotada pelo Hinduísmo, permite uma flexibilidade na definição do que realmente

representa a essência divina, representada pelo panteísmo. Assim, entendemos que Cecília

Meireles não particulariza nenhum dogma religioso específico, propagando através dos seus

poemas uma idéia hinduísta de que Deus está presente em todas as religiões. A utilização do

vocábulo “Deus” não restringe seu significado a uma determinada crença. Ao contrário, no

sentido mais amplo da palavra, nos dá a nítida compreensão de unidade divina, de Totalidade, ou

de um Ser de onde tudo provém e para onde tudo voltará. Verifiquemos os últimos versos de

“Família Hindu”:

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79

(...) Deus consente que os homens venham a esta intimidade de amigos, somente por mostrar que se amam, que estão no mundo, que estão vivos. Depois, a música se apaga, diz-se adeus com lábios tranqüilos, deixa-se a luz, o aroma, a sala, com os serenos perfis divinos, sobe-se ao carro dos regressos, na noite, de negros caminhos...157

No presente poema, o caminho dos “homens”, que podemos associar à trajetória

simbólica do viajante, é marcadamente definido: nascemos, fazemos amigos, nos amamos, mas,

em seguida, há a despedida desse mundo terreno, do silêncio dos lábios, para ingressar no “carro

dos regressos”, ou seja, entrar no ciclo de Samsara, na “noite de negros caminhos”.

No início do poema, o eu lírico descreve suas impressões sobre o povo indiano;

suas características físicas; suas atividades cotidianas, sua forma de ser, seus hábitos alimentares

e farmacêuticos. Dentre as figuras de linguagem, encontramos sinestesias: “quando alguém fala é

tão doce”; “o claro cantar dos rios”; metonímia: “Os dedos bordam”; prosopopéia: “movimentos /

delicados e pensativos”; as quais dão ênfase a todo esse clima de mistério e encantamento que

tem o povo indiano. As funções dessas figuras sugerem, provavelmente, deslumbramento e,

acima de tudo, exotismo, algumas imagens recorrentes e estereotipadas no imaginário ocidental

sobre o Oriente.

Entretanto, tais visões adquirem plasticidade e lirismo esperados da linguagem

poética, que levam a um sentido que transcende a realidade dramática da sociedade indiana dos

anos 50. Essa perspectiva encontra particularidade a partir do próprio título “Família Hindu”,

sugerindo limites quantitativos:

157 Cf. poema “Família Hindu”, p. 102, versos 23 a 32 dos anexos.

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(...) Tudo está coberto de aroma, em cada gesto existe um rito. A alma condescende em ser corpo, abandonar seu paraíso.158 (...)

Nos versos acima, o eu lírico deixa claro que o sentido da palavra “família” refere-

se basicamente a uma comunidade espiritual e harmônica caracterizada, por exemplo, pelas

palavras “rito”, “alma”, “corpo”, e pelo verso “abandonar seu paraíso”.

O poema “Poeira159”, complementarmente a “Família Hindu”, retrata o povo

indiano de uma forma mais realista, representado por imagens de penúria. Aqui, o eu lírico é o

observador da paisagem decadente da cidade, sente o clima seco e denuncia a pobreza e a miséria

dos mendigos, como demonstram as expressões “poeira dos mendigos, em cinza e trapos”;

“jardins mortos de sede”; “bazares tristes”; “muros despidos de ornatos / saqueados num tempo

vil”; “ruas tumultuosas”; “rios extintos”; “poços vazios”; “janelas despedaçadas”; “varandas em

ruína”; “a poeira das asas dos corvos / nutridos da poeira dos mortos”. O corvo, por exemplo, é a

essência simbólica mais relacionada ao tema central do poema, ou seja, a relação cíclica entre a

vida e a morte. Segundo o Dicionário dos Símbolos, na Índia, os corvos são os mensageiros da

morte160, eles vivem da matéria findável do homem.

Estaria o eu lírico, em sua sutileza, se referindo criticamente aos conflitos

inerentes ao processo de colonização? Infelizmente, uma resposta para tal pergunta não constitui

objeto de nosso estudo, mas, certamente, podemos depreender que o eu lírico não só narra, da

perspectiva dos necessitados, como também lhes empresta um caráter de uma inquestionável

dignidade que não foi obstruída pelo processo de colonização.

158 Cf. poema “Família Hindu”, p. 102, versos 19 a 22 dos anexos. 159 Cf. poema “Poeira”, p. 99 dos anexos. 160 CHEVALIER; CHEERBRANT. op. cit. p. 293

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A imagem que é conferida ao leitor sobre essa despossessão é expressa pelo

sentido espiritual que predomina sobre o material, ou seja, “Todos vão para um lugar; todos são

pó, e todos ao pó tornarão161”, como diz a passagem bíblica, nascemos do pó e somos reduzidos a

pó quando morremos:

Por mais que sacuda os cabelos, por mais que sacuda os vestidos, a poeira dos caminhos jaz em mim.162 (...)

Este último verso também nos dá a nítida compreensão de que o espírito vem de

caminhos remotos e traz consigo as marcas de outras vidas, assim como sugere o verbo “jaz”.

Segundo o Dicionário de Símbolos, “sacudir a poeira das sandálias é uma fórmula que simboliza

o abandono total do passado, uma ruptura completa, uma negação de tudo o que representava

essa poeira: pátria, família, amizade, etc.163” Muito embora a definição do dicionário seja apenas

um instrumento acessório para a explicação do poema, não constitui, necessariamente, o sentido

definitivo expresso pelo eu lírico. No poema, a realidade da vida presente transcende uma visão

de morte como fim, apontando para um conceito cíclico de vida e morte presente no Hinduísmo.

161 Eclesiastes 3:20 In: A Bíblia Sagrada. Brasília: Sociedade bíblica do Brasil, 1969, p. 714. 162 Cf. poema “Poeira”, p. 99, versos 1 a 3 dos anexos. 163 CHEVALIER, op. cit., p. 727

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3.2.3. Metal Rosicler

A viagem à Índia e o seu retorno ao Brasil foram definitivos para uma melhor

organização estrutural sobre a temática da morte expressa em Metal Rosicler (1960). Segundo

Neto (2001), Cecília Meireles dá continuidade à idéia de infinito, concebendo o tempo

ciclicamente, reafirmando o caráter inteiriço da alma, ou seja, a imortalidade.164 Como

observamos, a poetisa não se fixou em uma única corrente estética, no entanto, utilizou-se de

características de várias delas, como o Romantismo, pela temática da morte, como já foi visto

anteriormente; e como o Simbolismo, que possibilitou a expressão de sua lírica espiritualista.

Verificamos, nos poemas selecionados, que a impressão da morte como sinônimo

de sofrimento torna-se praticamente ausente, sendo substituída por uma aceitação “menos

emocional” e distanciada do problema.

No poema número “5”, por exemplo, o eu lírico nomeia a morte como um objeto

de estudo iniciado pela expressão “estudo a morte”, demonstrando intimidade e, ao mesmo

tempo, mantendo um distanciamento quase racional. A morte, agora, é tratada com mais

familiaridade, enquanto a vida é entendida, definitivamente, como uma ilusão, uma vez que “a

vida não se vive” plenamente.

Estudo a morte, agora – que a vida não se vive, pois é simples declive para uma única hora.165 (...)

164 NETO, op. cit., p. lv 165 Cf. poema “5”, p. 103, versos 1 a 4 dos anexos.

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Na segunda e na terceira estrofes do respectivo poema, todos se encontram

homogeneizados pelo acontecimento da morte. Tal idéia é reforçada pelos substantivos

“crianças” e “adultos”, e os adjetivos “tristes”, “ignorantes” e “cultos”, que não só apenas

reiteram a inevitabilidade da morte, como também tornam comum a experiência de todos,

independentemente de idade ou cultura.

(...) E nascemos! E fomos tristes crianças e adultos ignorantes e cultos, de incoerentes assomos. E em mistério transidos, e em segredo profundo, voltamos deste mundo como recém-nascidos.166 (...)

Na segunda estrofe, o eu lírico, ao contrário dos outros, permanece consciente da

ignorância que acomete o homem. Este acredita que este mundo é real, mas, na verdade, ele não

passa de uma ilusão. Percebemos um eu lírico consciente do sofrimento que é viver, e da

ignorância que acomete o homem por acreditar na ilusão (maya) da vida.

Na terceira estrofe, ele refere-se ao mistério que acompanha o homem, fazendo-o

voltar ao mundo material, recomeçar em outro corpo e reforça a idéia na possível existência da

reencarnação expressa pelos versos “voltamos deste mundo / como recém-nascidos.”

Dentre os símbolos mais freqüentes, que denotam um constante movimento, entre

períodos de repouso e latência, de manifestação e desaparecimento, estão os dualismos: terra/céu,

sol/noite, Inferno/Paraíso, entre outros. Concordamos, neste caso, com Ana Maria Lisboa de

Mello (2006), quando diz que esses símbolos estão associados à necessidade de encontrar uma

significação existencial e uma integração com os outros entes. Segundo a própria Ana Maria,

166 Cf. poema “5” p. 103, versos 5 a 12 dos anexos.

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84

“profundamente integrada no ritmo cósmico, a autora (Cecília Meireles) afirma-se a si própria e

constrói sua obra contra a desintegração. Entregando-se ao fluir da existência, nela capta o

segredo da permanência e da intemporalidade.167” (grifo nosso)

Portanto, as antíteses do poema mostram o constante ciclo de nascimento e morte.

Os “sítios extremos” atribuem significado para as antíteses que aparecem no poema: “a vida não

se vive”; “crianças e adultos”; “vamos como viemos”; “traz e leva”; “Inferno ao Paraíso”, dando

a nítida confirmação que passamos de um estado a outro, das trevas à luz:

(...) pois vamos como viemos, sem ser por nossa escolha; e quem nos traz e leva sabe por que é preciso do Inferno ao Paraíso andar de treva em treva...168

Os versos “quem nos traz e leva / sabe por que é preciso”, demonstram que os

homens precisam reencarnar para que cumpram seu destino e busquem a felicidade plena através

do amadurecimento espiritual. Enquanto esse amadurecimento não acontece, “andar de treva em

treva”, claramente faz a alusão ao Hinduísmo, especificamente à cadeia cíclica de nascimento e

morte, denominada Samsara.

Já o poema “15” de Metal Rosicler, é um dos mais enfáticos que expressam a

personificação da morte e a sua onipresença, representada pelos “olhos”, que tudo vê e tudo sabe.

Pelos vales de teus olhos de claras águas antigas meus sonhos passando vão. Chego de tempos remotos com rebanho de cantigas felizes de solidão.

167 MELLO; UTÉZA. op. cit. p. 66. 168 Cf. poema “5”, p. 103, versos 15 a 20 dos anexos.

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Céus de estrelas vêm descendo – perdi meu nome e a lembrança, Datas de vida e de amor. Reduzo-me a pensamento, livre de toda esperança, isento de qualquer dor. Pelos vales de teus olhos, o que fomos e seremos não precisa explicação. Passamos, vivos e mortos, sozinhos, nesses extremos. Companhias – o que são?169 (...)

O eu lírico, que também é um viajante solitário, contempla com estoicismo170 sua

própria existência, nesse momento, em equilíbrio, “livre de toda esperança” e “isento de qualquer

dor”. Para ele, o plano físico tem uma temporalidade definida, para que todas as coisas cumpram

seu destino, que deve ser aceito com serenidade. A felicidade, portanto, surge dessa aceitação,

que combate as intempestivas da paixão, do desejo, o que torna mais fácil a trajetória a ser

percorrida. Apesar de vir de outras vidas, o eu lírico sabe que a falta de memória é uma das

condições para o renascimento físico, advindo da reencarnação.

O poema “48” do livro Metal Rosicler é semelhante ao poema “Poeira” de Poemas

Escritos na Índia, no que se referem à relação entre vida, morte e renascimento. Ambos falam do

pó de onde nascemos e para o qual retornamos. O poema retoma o símbolo da “poeira”, agora

como “cinza”, referindo-se ao que restou da matéria:

Cinza pisamos, cinza. Retratos conhecidos. Vozes que ainda trazemos nos ouvidos. Cinza pisamos.

169 Cf. poema “15”, p. 104 dos anexos. 170 Os estóicos aceitam os acontecimentos ruins da mesma forma que aceitam os bons. Eles não se deixam envolver pelos contrastes da vida. O lema estóico é “abstenha-se e aceite”.

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Nem as areias são indiferentes. Restos de amigos e parentes. Cinza. Parados desejos incompletos: interrompidos projetos Cinza pisamos.171 (...)

Mesmo a matéria acabada serve de vida para a terra como matéria orgânica. Em

outro sentido, nada sobrevive como aliado da morte, nem as cidades nem os seres humanos. Tudo

se transforma em “cinza”. Na Índia, é costume cremar os mortos. As cinzas de Gandhi, por

exemplo, foram jogadas ao mar, como já nos referimos anteriormente.

Dos aspectos acima relacionados, podemos entrever um fator conclusivo: um dos

temas fundantes da obra de Cecília Meireles é uma permanente interrogação sobre o sentido da

existência humana e sua relação com o mundo. Tal aspecto, indubitavelmente, reveste a sua

poética de um caráter essencialmente metafísico, expresso pela própria poetisa em sua tese “O

espírito vitorioso172” da seguinte forma:

a poesia apresenta-se como a nossa segunda realidade, como o nosso segundo corpo, escrito com palavras escolhidas, dentro de artifícios de cadência e de rimas, como um revestimento hierático de alguma coisa que se deseja exprimir sem que, no entanto, fique inteiramente manifestada. No fluir da existência, em que tudo caminha para a morte, a palavra poética permanece viva, gravada no tempo, com força para penetrar no interior humano e problematizar a existência. Tudo passa, mas o canto fica...173

Nesse caso, podemos perceber que há uma completa consonância de pensamento

entre o eu lírico e a poetisa. Juntos expressam seus conhecimentos sobre a vida, a morte, o

destino espiritual e o significado da existência humana.

171 Cf. poema “48”, p. 105 dos anexos. 172 A tese em questão foi apresentada à Escola Normal do Distrito Federal, em 1929, ao se candidatar à cátedra de Literatura. 173 MEIRELES, Cecília. “O espírito vitorioso” apud MELLO, Ana Maria Lisboa de. Construções do imaginário na obra de Cecília Meireles. In: Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 31-32

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos esta dissertação mostrando como a morte é incorporada pelos vários

discursos no contexto ocidental, entre eles o religioso, o filosófico e o literário. De uma forma

generalizada, sob a ótica ocidental, ela é o fim de todas as coisas e temida pelos homens. Há,

porém, algumas restrições a esta idéia que nos interessa particularmente: as abordagens feitas

pela filosofia e pela literatura. Optamos por discutir esse outro lado da questão para demarcar

com mais ênfase as diferenças e as semelhanças entre a visão filosófica e a literária.

Como foi possível verificarmos, a poesia de Cecília Meireles representa uma

correlação harmoniosa entre esses dois aspectos. No que se refere ao uso da filosofia, a sua obra

se caracteriza por uma espiritualidade própria da corrente metafísica, representada, por exemplo,

por Arthur Shopenhauer, inspirador da estética simbolista.

Da estética clássica, provavelmente Cecília Meireles tende a caracterizar a morte

como um divisor de espaço diferenciado entre os vivos e os mortos, e a crença na reencarnação

tematizada pela poesia greco-latina, demonstrada claramente pela poetisa através do poema

“Caronte”.

Do Romantismo, a poesia ceciliana herda a morte como um meio de fuga de uma

realidade insatisfatória. O sentimento romântico permeava poesias melancólicas e tristes,

valorizando o espírito em comunhão com a natureza, uma forma de unir-se com Deus, como

ensina o Hinduísmo através do panteísmo. A poesia de Cecília Meireles, influenciada por esse

caráter melancólico dos poetas românticos, apresenta a morte, através de alguns poemas, como a

única capaz de cessar os sofrimentos do eu lírico.

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Mediante esta afirmação, constatamos que a poesia de Cecília Meireles é muito

mais simbolista, como afirmaram críticos, como Miguel Sanches Neto e Alfredo Bosi, do que

romântica, no sentido decadentista, preservado por Álvares de Azevedo, ou por sua vertente lírica

sobre a morte.

Aliás, foi através da lírica simbolista que nossa poetisa se inspirou para escrever

sua obra com a temática da morte. A influência do caráter espiritualista do grupo Festa não foi

suficiente para que Cecília Meireles encontrasse respostas para as suas indagações existenciais.

Foi a partir do vínculo criado com a cultura oriental, mais especificamente com o Hinduísmo, que

a poetisa buscou subsídios para entender o degredo do mundo físico e a morte como passagem

para um mundo transcendente.

Como demonstramos, o conhecimento sobre o Hinduísmo é essencial no

desenvolvimento da temática, de onde os conceitos como imortalidade da alma, karma, a

passagem da alma pelo mundo físico, panteísmo, reencarnação, a intemporalidade do plano

transcendente, são constantes em seu fazer poético, muito embora ela não consiga desvencilhar-

se dos condicionamentos ocidentais, considerando a morte um fator propício à perpetuação de

sentimentos como amor eterno pelos entes queridos.

O encontro com a Índia e com o Hinduísmo foi definitivo, uma vez que a Índia é

considerada como um lugar onde a espiritualidade é profundamente enfatizada através do

Hinduísmo, o Budismo, suas várias seitas e as demais religiões. Procuramos demonstrar, no curso

desta dissertação, que a poesia de Cecília Meireles baseia a temática da morte nos princípios do

Hinduísmo, de que a morte é uma passagem da condição material e efêmera para a condição

plenamente espiritual.

Para tanto, percebemos que a idéia de morte nos três livros selecionados para a

análise adquiriu um caráter mais profundo através dos ensinamentos do Hinduísmo. Na obra

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Viagem, o eu lírico aceita a morte, porém a melancolia e o sofrimento diante do afastamento dos

entes queridos, ainda sejam perceptíveis. A partir da viagem à Índia em 1953, os livros Poemas

Escritos na Índia e Metal Rosicler demonstram que esse fator foi superado por uma aceitação

menos conflituosa sobre a realidade da morte e da condição humana.

Assim, esperamos que nosso trabalho, em vez de se tornar uma leitura definitiva

sobre a influência do Hinduísmo na poesia ceciliana, permita estabelecer novos elos de

continuidade e desenvolvimento da relação entre Cecília Meireles e a Índia.

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GLOSSÁRIO DE TERMOS HINDUS

1. Ahimsa: resistência com não-violência.

2. Atman: espírito, associado com o que é imortal.

3. Avidya: ignorância.

4. Avatar: manifestação ou encarnação de uma deidade hindu.

5. Brahman: o Absoluto, a existência Una, Deus no mais alto sentido do termo; deus criador da

vida.

6. Dharma: dever religioso, o caminho da virtude, da reta ação.

7. Karma: significa ato em sânscrito, ou seja, princípio de que toda ação tem suas conseqüências

positivas ou negativas para a vida seguinte da alma transmigrada.

8. Khadi: tecido fiado à mão pelos indianos.

9. Mahatma: Grande Alma.

10. Maya: o mundo como ilusão; aparência irreal da natureza.

11. Moksha: estado de libertação da alma, emancipação, liberdade.

12. Mukti: ausência de vontades, de paixões, o mesmo que Moksha.

13. Nirvana: não-ligadura, ou seja, o desprendimento do mundo físico, atingindo a perfeição

humana, união do indivíduo com a Entidade Suprema.

14. Rama: a sétima encarnação de Vishnu.

15. Samsara: ciclo de reencarnações; transmigração da alma.

16. Satyagraha: conversão dos inimigos em violência.

17. Satyagrahis: indianos que lutavam sem violência.

18. Shiva: deus que simboliza a destruição da vida.

19. Tanhá: termo budista do vocábulo Trishná.

20. Trishná: desejo de experiências do mundo físico.

21. Varuna: o deus do firmamento.

22. Vidya: sabedoria.

23. Vishnu: deus da sustentação da vida; protege as leis naturais.

24. Yama: o deus da morte, considerado o primeiro homem a morrer.

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ANEXOS

VIAGEM (1939) ACEITAÇÃO É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens e sentir passar as estrelas do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos. É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, que desejar que apareças, criando com teu simples gesto o sinal de uma eterna esperança. Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar. ÊXTASE Deixa-te estar embalado no mar noturno onde se apaga e acende a salvação. Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma: em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos, e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te. Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade. Deslizam os planetas, na abundância do tempo que cai. Nós somos um tênue pólen dos mundos... Deixa-te estar neste embalo de água gerando círculos. Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras ambíguas. Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo. Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno e afoga a boca da vontade e os seus pedidos...

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DISTÂNCIA Quando o sol ia acabando e as águas mal se moviam, tudo que era meu chorava da mesma melancolia. Outras lágrimas nasceram com o nascimento do dia: só de noite esteve seco meu rosto sem alegria. (Talvez o sol que acabara e as águas que se perdiam transportassem minha sombra para a sua companhia...) Oh! mas nem no sol nem nas águas os teus olhos a veriam... - que andam longe, irmãos da lua, muito clara e muito fria...

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RIMANCE Onde é que dói na minha vida, para que eu me sinta tão mal? Quem foi que me deixou ferida de ferimento tão mortal? Eu parei diante da paisagem: e levava uma flor na mão. Eu parei diante da paisagem procurando um nome de imagem para dar à minha canção. Nunca existiu sonho tão puro como o da minha timidez. Nunca existiu sonho tão puro, nem também destino tão duro como o que para mim se fez. Estou caída num vale aberto, entre serras que não têm fim. Estou caída num vale aberto: nunca ninguém passará perto, nem terá notícias de mim. Eu sinto que não tarda a morte, e só há por mim esta flor; eu sinto que não tarda a morte e não sei como é que suporte tanta solidão sem pavor. E sofro mais ouvindo um rio que ao longe canta pelo chão, que deve ser límpido e frio, mas sem dó nem recordação, como a voz cujo murmúrio morrerá com o meu coração...

MEIRELES, Cecília. Viagem. (1939) In: ______. Poesia Completa, V. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 223-323.

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POEMAS ESCRITOS NA ÍNDIA (1953) LEI DO PASSANTE Passante quase enamorado, nem livre nem prisioneiro, constantemente arrebatado, – fiel? saudoso? amante? alheio? – a escutar o chamado, a apelo do mundo inteiro, nos contrastes de cada lado... Chega? Passante quase enamorado, já divinamente afeito a amar sem ter de ser amado, porque o tempo é traiçoeiro e tudo lhe é tirado repentinamente do leito, malgrado seu querer, malgrado... Passa? Passante quase enamorado, pelos campos do inverdadeiro, onde o futuro é já passado... – Lúcido, calmo, satisfeito, – fiel? saudoso? amante? alheio? – só de horizontes convidado... Volta? OBS: Este poema é o primeiro do livro foi impresso em itálico.

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POEIRA Por mais que sacuda os cabelos, por mais que sacuda os vestidos, a poeira dos caminhos jaz em mim. A poeira dos mendigos, em cinza e trapos, dos jardins mortos de sede, dos bazares tristes, com a seda a murchar ao sol, a poeira dos mármores foscos, dos zimbórios tombados, dos muros despidos de ornatos, saqueados num tempo vil. A poeira dos mansos búfalos em redor das cabanas, das rodas dos carros, em ruas tumultuosas, do fundo dos rios extintos, de dentro dos poços vazios, das salas desabitadas, de espelhos baços, a poeira das janelas despedaçadas. das varandas em ruína, dos quintais onde os meninozinhos brincam nus entre redondas mangueiras. A poeira das asas dos corvos nutridos da poeira dos mortos, entre a poeira do céu e da terra. Corvos nutridos da poeira do mundo. Da poeira da poeira.

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PEDRAS Eu vi as pedras nascerem, do fundo chão descobertas. Eram brancas, eram róseas – tênues, suaves pareciam, mas não eram. Eram pesadas e densas, carregadas de destino, para casas, para templos, para escadas e colunas, casas, plintos. Dava a luz da aurora nelas, Inermes, caladas, claras, – matéria de que prodígios? – ali nascidas e ainda solitárias. E ali ficavam expostas ao mundo e às horas volúveis, para, submissas e dóceis, terem outra densidade: como nuvens.

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CANÇÃOZINHA PARA TAGORE Àquele lado do tempo Onde abre a rosa da aurora, chegaremos de mãos dadas, cantando canções de roda com palavras encantadas. Para além de hoje e de outrora, veremos os Reis ocultos, senhores da Vida toda, em cuja etérea Cidade fomos lágrima e saudade por seus nomes e seus vultos. Àquele lado do tempo onde abre a rosa da aurora, e onde mais do que a ventura a dor é perfeita e pura, chegaremos de mãos dadas. Chegaremos de mãos dadas, Tagore, ao divino mundo em que o amor eterno mora e onde a alma é o sonho profundo da rosa dentro da aurora. Chegaremos de mãos dadas cantando canções de roda. E então nossa vida toda será das coisas amadas.

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FAMÍLIA HINDU Os sáris de seda reluzem como curvos pavões altivos. Nas narinas fulgem diamantes Em suaves perfis aquilinos. Há longas tranças muito negras e luar e lótus entre os cílios. Há pimenta, erva-doce e cravo, crepitando um cada sorriso. Os dedos bordam movimentos delicados e pensativos, como os cisnes em cima da água e, entre as flores, os passarinhos. E quando alguém fala é tão doce como o claro cantar dos rios, numa sombra de cinamomo, açafrão, sândalo e colírio. (Mas quase não se fala nada, porque falar não é preciso.) Tudo está coberto de aroma, em cada gesto existe um rito. A alma condescende em ser corpo, abandonar seu paraíso. Deus consente que os homens venham a esta intimidade de amigos, somente por mostrar que se amam, que estão no mundo, que estão vivos. Depois, a música se apaga, diz-se adeus com lábios tranqüilos, deixa-se a luz, o aroma, a sala, com os serenos perfis divinos, sobe-se ao carro dos regressos, na noite, de negros caminhos...

MEIRELES, Cecília. Poemas Escritos na Índia. (1953) In: ______. Poesia Completa, V. II, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 971-1042.

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METAL ROSICLER (1960) 5 Estudo a morte, agora – que a vida não se vive, pois é simples declive para uma única hora. E nascemos! E fomos tristes crianças e adultos ignorantes e cultos, de incoerentes assomos. E em mistério transidos, e em segredo profundo, voltamos deste mundo como recém-nascidos. Que um sinal nos acolha nesses sítios extremos, pois vamos como viemos, sem ser por nossa escolha; e quem nos traz e leva sabe por que é preciso do Inferno ao Paraíso andar de treva em treva...

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15 Pelos vales de teus olhos de claras águas antigas meus sonhos passando vão. Chego de tempos remotos com rebanho de cantigas felizes de solidão. Céus de estrelas vêm descendo – perdi meu nome e a lembrança, Datas de vida e de amor. Reduzo-me a pensamento, livre de toda esperança, isento de qualquer dor. Pelos vales de teus olhos, o que fomos e seremos não precisa explicação. Passamos, vivos e mortos, sozinhos, nesses extremos. Companhias – o que são? Aguardo apenas a estrela na ponta do meu cajado: a pura estrela polar. Será meia-noite certa: e o futuro já é passado nos vales do teu olhar.

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48 Cinza pisamos, cinza. Retratos conhecidos. Vozes que ainda trazemos nos ouvidos. Cinza pisamos. Nem as areias são indiferentes. Restos de amigos e parentes. Cinza. Parados desejos incompletos: interrompidos projetos Cinza pisamos. Cidades, dizem, Cidades! Nomes. Vultos. Idades. Cinza. Temerosos de peso e vento, quase apenas esquivo pensamento, cinza pisamos. Cinza. Cinza.

MEIRELES, Cecília. Metal Rosicler. (1960) In: ______. Poesia Completa, V. II, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 1205-1281.