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Cecilia Meireles - Viagem

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Ceclia Meireles Viagem

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Nota do Editor

maneira dos antigos copistas, esta edio uma transcrio da primeira edio do livro que consagrou Ceclia Meireles como a grande poetisa da lngua portuguesa. No se trata, note-se bem, de uma reproduo da edio original, que s seria possvel em papel, mas de uma mera transcrio, na qual se cuidou de manter, na medida de nossos recursos e ateno, a grafia e apresentao da edio original. Os estudiosos da obra de Ceclia Meireles, tenho certeza, apreciaro esta publicao, que mantm, com as ressalvas acima, todas as grafias do original. Alm de ajud-los em seus estudos comparativos, uma prova testemunhal, acessvel a todos, de um dos motivos provveis do poema Errata. Os demais leitores talvez apreciem mais as edies posteriores, revisadas pela Autora, como o excelente e bem documentado Ceclia Meireles - Obra Potica , volume nico, editado pela Aguilar. Laureado com o primeiro prmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938, publicado no ano seguinte em Lisboa pelas Edies Ocidente, com impresso a cargo da Editorial Imprio que a finalizou em 24 de julho de 1939, a presente edio rara no apenas por se tratar da transcrio da primeira edio. At ontem, era um exemplar nico (em papel continua sendo) amarelecendo em minha estante, graas ao do tempo: o mesmo tempo que torna a poesia de C.M. cada vez melhor. Enriquecido com a colagem de uma foto de revista da poca, uma foto original, encimando autgrafo e precedendo ficha catalogrfica revista pela autora, pelo trabalho de um amante de bons livros, o Coronel Zacarias Silva, este o exemplar que, virtualmente, compartilho com o leitor. Esta edio dedicada ao Coronel Zacarias Silva, a quem devo mais do que a preservao e o enriquecimento desta primeira edio de Viagem . No o conheci pessoalmente. Mas, pelos livros de sua biblioteca que meus parcos recursos permitiram resgatar em um antigo sebo que ficava do outro lado da rua do prdio nmero 950 da Av. Brigadeiro Lus Antnio, em So Paulo, nos anos 60, gostaria de o ter conhecido.

Todos primeiras edies, autografadas, bem conservadas, com cuidadosas fichas catalogrficas datilografadas revistas pelos autores e devidamente rubricadas pelo Coronel. A venda de dois deles (primeiras edies autografadas de Jorge Amado e Graciliano Ramos, vendidas a Ricardo Ramos, graas aos bons ofcios de Lus Ea) me ajudou a fazer frente s despesas com o parto de minha primeira filha. Por tudo isso, dedico esta edio memria do Coronel Zacarias Silva, com meus agradecimentos.

A MEUS AMIGOS PORTUGUESES

Epigrama N. I

Pousa sbre sses espetculos infatigveis uma sonora ou silenciosa cano: flor do esprito, desinteressada e efmera. Por ela, os homens te conhecero: por ela, os tempos versteis sabero que o mundo ficou mais belo, ainda que intilmente, quando por le andou teu corao.

Motivo

Eu canto porque o instante existe e a minha vida est completa. No sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmo das coisas fugidias, no sinto gzo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Si desmorono ou si edifico, si permaneo ou me desfao, - no sei, no sei. No sei si fico ou passo. Sei que canto. E a cano tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada.

Noite

Hmido gsto de terra, cheiro de pedra lavada - tempo inseguro do tempo! sombra do flanco da serra, nua e fria, sem mais nada. Brilho de areias pisadas, sabor de folhas mordidas, - lbio da voz sem ventura! suspiro das madrugadas sem coisas acontecidas. A noite abria a frescura dos campos todos molhados, - szinha, com o seu perfume! preparando a flor mais pura com ares de todos os lados. Bem que a vida estava quieta. Mas passava o pensamento... - de onde vinha aquela msica? E era uma nuvem repleta, entre as estrlas e o vento.

Anunciao

Toca essa msica de sda, frouxa e trmula, que apenas embala a noite e balana as estrlas noutro mar. Do fundo da escurido nascem vagos navios de ouro, com as mos de esquecidos corpos qusi desmanchados no vento. E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas, e a gua derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde. Toca essa msica de sda, entre areias e nuvens e espumas. Os remos pararo no meio da onda, entre os os peixes suspensos: e as cordas partidas andaro pelos ares danando -ta. Cessar esta msica de sombra, que apenas indica valores de ar. No haver mais nossa vida, talvez no haja nem o p que fomos. E a memria de tudo desmanchar suas dunas desertas, e em navios novos homens eternos navegaro.

Discurso

E aqui estou, cantando. Um poeta sempre irmo do vento e da gua: deixa seu ritmo por onde passa. Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo cho os sinais do meu caminho e no vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram. Tambm procurei no cu a indicao de uma trajectria, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operrios de Babel. Pois aqui estou, cantando. Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute? Ah! se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha algum gostar de mim?

Excurso

Estou vendo aquele caminho cheiroso da madrugada: pelos muros, escorriam flores moles da orvalhada; na cr do cu, muito fina, via-se a noite acabada. Estou sentindo aqueles passos rente dos meus e do muro. As palavras que escutava eram pssaros no escuro... Passros de voz to clara, voz de desenho to puro! Estou pensando na folhagem que a chuva deixou polida: nas pedras, ainda marcadas de uma sombra humedecida. Estou pensando o que pensava nesse tempo a minha vida. Estou diante daquela porta que no sei mais se ainda existe... Estou longe e fra das horas, sem saber em que consiste nem o que vai nem o que volta... sem estar alegre nem triste, sem desejar mais palavras nem mais sonhos, nem mais vultos, olhando dentro das almas,

os longos rumos ocultos, os largos itinerrios de fantasmas insepultos... - itinerrios antigos, que nem Deus nunca mais leva. Silncio grande e szinho, todo amassado com treva, onde os nossos giram quando o ar da morte se eleva.

Retrato

Eu no tinha ste rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem stes olhos to vazios, nem o lbio amargo. Eu no tinha estas mos sem fra, to paradas e frias e mortas; eu no tinha ste corao que nem se mostra. Eu no dei por esta mudana, to simples, to certa, to fcil: - Em que esplho ficou perdida a minha face?

Msica

Noite perdida, No te lamento: embarco a vida no pensamento, busco a alvorada do sonho isento, puro e sem nada, - rosa encarnada, intacta, ao vento. Noite perdida, noite encontrada, morta, vivida, e ressuscitada... (Asa da lua qusi parada, mostra-me a sua sombra escondida, que continua a minha vida num cho profundo! - raz prendida a um outro mundo.) Rosa encarnada do sonho isento,

muda alvorada que o pensamento deixa confiada ao tempo lento.. Minha partida, minha chegada, tudo vento... Ai da alvorada! Noite perdida, noite encontrada...

Epigrama N 2

s precria e veloz, Felicidade. Custas a vir, e, quando vens, no te demoras. Fste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, e, para te medir, se inventaram as horas. Felicidade, s coisa estranha e dolorosa. Fizeste para sempre a vida ficar triste: porque um dia se v que as horas tdas passam, e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

Serenata

Repara na cano tardia que tmidamente se eleva, num arrulho de fonte fria. O orvalho treme sbre a treva e o sonho da noite procura a voz que o vento abraa e leva. Repara na cano tardia que oferece a um mundo desfeito sua flor de melancolia. to triste, mas to perfeito, o movimento em que murmura, como o do corao no peito. Repara na cano tardia que por sbre o teu nome, apenas, desenha a sua melodia. E nessas letras to pequenas o universo inteiro perdura. E o tempo suspira na altura por eternidades serenas.

A ltima cantiga

Num dia que no se adivinha, meus olhos assim estaro: e h de dizer-me: Era a expresso que ela ltimamente tinha. Sem que se mova a minha mo nem se incline a minha cabea nem a minha bca estremea, - toda serei recordao. Meus pensamentos sem tristeza de novo se debruaro entre o acabado corao e o horizonte da lngua presa. Tu, que foste a minha paixo, virs a mim, pelo meu gsto, e de muito alm do meu rosto meus olhos te percorrero. Nem por distante ou distrado escapars invocao que, de amor e de mansido, te eleva o meu sonho perdido. Mas no vers tua existncia nesse mundo sem sol nem cho, por onde se derramaro os mares da minha incoerncia. Ainda que sendo tarde e em vo, perguntarei por que motivo

tudo quanto eu quis de mais vivo tinha por cima escrito: N o. E ondas seguidas de sadade, sempre na tua direo, caminharo, caminharo, sem nenhuma finalidade.

Convivnvia

Convm que o sonho tenha margens de nuvens rpidas e os pssaros no se expliquem, e os velhos andem pelo sol, e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticdio Convm tudo isso, e muito mais, e muito mais... E por sse motivo aqui vou, como os papis abertos que caem das janelas dos sobrados, tontamente... Depois das ruas, e dos trens, e dos navios, encontrarei casualmente a sala que afinal buscava, e o meu retrato, na parede, olhar para os olhos que levo. E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria. (Os grilos da infncia estaro cantando dentro da erva...) E eu pensarei: Que bom! nem preciso respirar!...

Cano

Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mos, para o meu sonho naufragar. Minhas mos ainda esto molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cr que escorre dos meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da gua vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto fr preciso, para fazer com que o mar cresa, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desaparea. Depois, tudo estar perfeito: praia lisa, guas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mos quebradas.

Perspectiva

Tua passagem se fez por distncias antigas. O silncio dos desertos pesava-lhe nas asas e, juntamente com le, o volume das montanhas e do mar. Tua velocidade desloca mundos e almas. Por isso, quando passaste, cau sbre mim tua violncia e desde ento alguma coisa se aboliu. Guardo uma sensao de drama sombrio, com vozes de ondas lamentando-me. E a multido das estrlas avermelhadas fugindo com o cu para longe de mim. Os dias que veem so feitos de vento plcido e apagam tudo. Dispensam a sombra dos gestos sobre os cenrios. Levam dos lbios cada palavra que desponta. Gastam o contrno da minha sntese. Acumulam ausncia em minha vida... Oh! um pouco de neve matando, docemente, flha a flha... Mas a seiva l dentro continua, sufocada, nutrindo de sonho a morte.

Cano

Nunca eu tivera querido dizer palavra to louca: bateu-me o vento na bca, e depois no teu ouvido. Levou smente a palavra, deixou ficar o sentido. O sentido est guardado no rosto com que te miro, neste perdido suspiro que te segue alucinado, no meu sorriso suspenso como um beijo malogrado. Nunca ningum viu ningum que o amor pusesse to triste. Essa tristeza no viste, e eu sei que ela se v bem... S si aquele mesmo vento fechou teus olhos, tambm...

Solido

Imensas noites de inverno, com frias montanhas mudas, e o mar negro, mais eterno, mais terrvel, mais profundo. Este rugido das guas uma tristeza sem forma: sobe rochas, desce frguas, vem para o mundo, e retorna... E a nvoa desmancha os astros, e o vento gira as areias: nem pelo cho ficam rastros nem, pelo silncio, estrlas. A noite fecha seus lbios - terra e cu - guardado nome. E os seus longos sonhos sbios geram a vida dos homens. Geram os olhos incertos, por onde descem os rios que andam nos campos abertos da claridade do dia.

Aceitao

mais fcil pousar o ouvido nas nuvens e sentir passar as estrlas do que prend-lo terra e alcanar o rumor dos teus passos. mais fcil, tambm, debruar os olhos no oceano e assistir, l no fundo, ao nascimento mudo das formas, que desejar que apareas, criando com teu simples gesto o sinal de uma eterna esperana. No me interessam mais nem as estrlas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha cano: no tenho inveja s cigarras: tambm vou morrer de cantar.

Epigrama N 3

Mutilados jardins e primaveras abolidas abriram seus miraculosos ramos no cristal em que pousa a minha mo. (Prodigioso perfume!) Recompuseram-se tempos, formas, cres, vidas... Ah! mundo vegetal, ns, humanos, choramos s da incerteza da ressureio.

Murmrio

Traze-me um pouco das sombras serenas que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra, apenas, - v que nem te peo alegria. Traze-me um pouco da alvura dos luares que a noite sustenta no seu corao! A alvura, apenas, dos ares: - v que nem te peo iluso. Traze-me um pouco da tua lembrana, aroma perdido, sadade da flor! - V que nem te digo - esperana! - V que nem siquer sonho - amor!

Cano

No desequilbrio dos mares, as proas giraram szinhas... Numa das naves que afundaram que tu certamente vinhas. Eu te esperei todos os sculos, sem desespro e sem desgsto, e morri de infinitas mortes guardando sempre o mesmo rosto. Quando as ondas te carregaram, meus olhos, entre guas e areias, cegaram como os das esttuas, a tudo quanto existe alheias. Minhas mos pararam sbre o ar e endureceram junto ao vento, e perderam a cr que tinham e a lembrana do movimento. E o sorriso que eu te levava desprendeu-se e cau de mim: e s talvez le ainda viva dentro dessas guas sem fim.

Gargalhada

Homem vulgar! Homem de corao mesquinho! eu te quero ensinar a arte sublime de rir. Dobra essa orelha grosseira, e escuta o ritmo e o som da minha gargalhada: Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! No vs? preciso jogar por escadas de mrmore baixelas de ouro. Rebentar colares, partir esplhos, quebrar cristais, vergar a lmina das espadas e despedaar esttuas, destruir as lmpadas, abater cpolas, e atirar para longe os pandeiros e as liras... O riso magnfico um trecho dessa msica desvairada. Mas preciso ter baixelas de ouro, compreendes? - e colares, e esplhos, e espadas e esttuas. E as lmpadas. Deus do cu! E os pandeiros geis e as liras sonoras e trmulas... Escuta bem: Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! S de trs lugares nasceu at hoje esta msica herica: do cu que venta, do mar que dana, e de mim.

Fim

tempos de incerta esperana que assim vos desacreditastes! Cresceram nuvens sbre a lua e o vento passou pelas hastes. Vinde vr meu jardim sem flres no presente nem no futuro, e a mo das guas procurando um rumo pelo solo escuro! Vinde ouvir a histria da vida no spro da noite deserta. Caram as sombra das vozes dentro da ltima estrla aberta. Ai! tudo isto letra do horscopo... E s tu, Esttua, resistes! - Mas, embora nunca te quebres, ters sempre os olhos mais tristes.

Criana

Cabecinha boa de menino triste, de menino triste que sofre szinho, que szinho sofre, - e resiste. Cabecinha boa de menino ausente, que de sofrer tanto se fez pensativo, e no sabe mais o que sente... Cabecinha boa de menino mudo que no teve nada, que no pediu nada, pelo mdo de perder tudo. Cabecinha boa de menino santo que do alto se inclina sbre a gua do mundo para mirar seu desencanto. Para vr passar numa onda lenta e fria a estrla perdida da felicidade que soube que no possuiria.

Desamparo

Digo-te que podes ficar de olhos fechados sbre o meu peito, porque uma ondulao maternal de onda eterna te levar na exata direo do mundo humano. Mas no equilbrio do silncio, no tempo sem cr e sem nmero, pergunta a mim mesmo o lbio do meu pensamento: quem que me leva a mim, que peito nutre a durao desta presena, que msica embala a minha msica que te embala, a que oceano se prende e desprende a onda da minha vida, em que ests como rosa ou barco...?

Fio

No fio da respirao, rola a minha vida montona, rola o pso do meu corao. Tu no vs o jgo perdendo-se como as palavras de uma cano. Passas longe, entre nuvens rpidas, com tantas estrlas na mo... - para que serve o fio trmulo em que rola o meu corao?

Inverno

Choveu tanto sbre o teu peito que as flores no podem estar vivas e os passos perderam a fra de buscar estradas antigas. Em muita noite houve esperanas abrindo as asas sbre as ondas. Mas o vento era to terrvel! Mas as guas eram to longas! Pode ser que o sol se levante sbre as tuas mos sem vontade e encontres as coisas perdidas na sombra em que as abandonaste. Mas quem vir com as mos brilhantes trazendo o seu beijo e o teu nome, para que saibas que s tu mesmo, e reconheas o teu sonho? A primavera foi to clara que se viram novas estrlas, e soaram no cristal dos mares, lbios azues de outras sereias. Vieram, por ti, msicas lmpidas, tranando sons de ouro e de sda. Mas teus ouvidos noutro mundo desalteravam sua sde. Cresceram prados ondulantes e o cu desenhou novos sonhos,

e houve muitas alegorias navegando entre Deus e os homens. Mas tu estavas de olhos fechados prendendo o tempo em teu sorriso. E em tua vida a primavera no poude achar nenhum motivo...

Epigrama N 4

O chro vem perto dos olhos para que a dr transborde e caia. O chro vem quasi chorando como a onda que toca na praia. Descem dos cus ordens augustas e o mar chama a onda para o centro. O chro foge sem vestgios, mas levando nufragos dentro.

Orfandade

A menina de preto ficou morando atrs do tempo, sentada no banco, debaixo da rvore, recebendo todo o cu nos grandes olhos admirados. Algum passou de manso, com grandes nuvens no vestido, e parou diante dela, e ela, sem que ningum falasse, murmurou: A MAME MORREU. J ningum passa mais, e ela no fala mais, tambm. O olhar caiu dos seus olhos, e est no cho, com as outras pedras, escutando na terra aquele dia que no dorme com as trs palavras que ficaram por ali.

Alva

Deixei meus olhos szinhos nos degraus da sua porta. Minha bca anda cantando, mas todo o mundo est vendo que a minha vida est morta. Seu rosto nasceu das ondas e em sua bca h uma estrla. Minha mo viveu mil vidas para uma noite encontr-la e noutra noite perd-la. Caminhei tantos caminhos, tanto tempo e no sabia como era fcil a morte pela seta do silncio no sangue de uma alegria. Seus olhos andam cobertos de cres da primavera. Pelos muros de seu peito, durante inteis viglias, desenhei meus sonhos de hera. Desenho, apenas, do tempo, cada dia mais profundo, roteiro do pensamento, sadade das esperanas quando se acabar o mundo...

Cantiguinha

Meus olhos eram mesmo gua, - te juro mexendo um brilho vidrado, verde-claro, verde-escuro. Fiz barquinhos de brinquedo, - te juro fui botando todos les naquele rio to puro. ..................... Veiu vindo a ventania, - te juro as guas mudam seu brilho, quando o tempo anda inseguro. Quando as guas escurecem, - te juro todos os barcos se perdem, entre o passado e o futuro. So dois rios os meus olhos, - te juro noite e dia correm, correm, mas no acho o que procuro.

Terra

Deusa dos olhos volveis pousada na mo das ondas: em teu colo de penumbras, abri meus olhos atnitos. Surgi do meio dos tmulos, para aprender o meu nome. Mamei teus peitos de pedra constelados de prenncios. Enredei-me por florestas, entre cnticos e musgos. Soltei meus olhos no elctrico mar azul, cheio de msicas. Desci na sombra das ruas, como pelas tuas veias: meu passo - a noite nos muros casas fechadas - palmeiras cheiro de chcaras hmidas sono da existncia efmera. O vento das praias largas mergulhou no teu perfume a cinza das minhas mguas. E tudo cau de sbito, junto com o corpo dos nufragos, para os invisveis mundos. Vi tantos rstos ocultos de tantas figuras plidas! Por longas noites inmeras,

em minha assombrada cara houve grandes rios mudos como os desenhos dos mapas. Tinhas os ps sobre flres, e as mos prsas, de to puras. Em vo, suspiros e fomes cruzavam teus olhos mltiplos, despedaando-se annimos, diante da tua altitude. Fui mudando minha angstia numa fra herica de asa. Para construir cada msculo, houve universos de lgrimas. Devo-te o modlo justo: sonho, dor, vitria e graa. No rio dos teus encantos, banhei minhas amarguras. Purifiquei meus enganos, minhas paixes, minhas dvidas. Despi-me do meu desnimo fui como ningum foi nunca. Deusa dos olhos volveis, rsto de esplho to frgil, corao de tempo fundo, - por dentro das tuas mscaras, meus olhos, srios e lcidos, viram a beleza amarga. E sse foi o meu estudo para o ofcio de ter alma; para entender os soluos, depois que a vida se cala. - Quando o que era muito nico e, por ser nico, tcito.

xtase

Deixa-te estar embalado no mar noturno onde se apaga e acende a salvao. Deixa-te estar na exalao do sonho sem forma: em redor do horizonte, vigiam meus braos abertos, e por cima do cu esto pregados meus olhos, guardando-te. Deixa-te balanar entre a vida e a morte, sem nenhuma sadade. Deslisam os planetas, na abundncia do tempo que cai. Ns somos um tnue plen dos mundos... Deixa-te estar neste embalo de gua geando crculos. Nem preciso dormir, para a imaginao desmanchar-se em figuras ambguas. Nem preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo. Nem preciso querer mais, que vem de ns um beijo eterno e afoga a bca da vontade e os seus pedidos...

Som

Alma divina, por onde me andas? Noite szinha, lgrimas, tantas! Que spro imenso, alma divina, em esquecimento desmancha a vida! Deixa-me ainda pensar que voltas, alma divina, coisa remota! Tudo era tudo quando eras minha, e eu era tua, alma divina!

Guitarra

Punhal de prata j eras, punhal de prata! Nem fste tu que fizeste a minha mo insensata. Vi-te brilhar entre as pedras, punhal de prata! - no cabo, flores abertas, no gume, a medida exata, a exata, a medida certa, punhal de prata, para atravessar-me o peito com uma letra e uma data. A maior pena que eu tenho, punhal de prata, no de me ver morrendo, mas de saber quem me mata.

Distncia

Quando o sol ia acabando e as guas mal se moviam, tudo que era meu chorava da mesma melancolia. Outras lgrimas nasceram com o nascimento do dia: s de noite esteve sco meu rosto sem alegria. (Talvez o sol que acabara e as guas que se perdiam transportassem minha sombra para a sua companhia...) Oh! mas nem no sol nem nas guas os teus olhos a veriam... - que andam longe, irmos da lua, muito clara e muito fria...

Epigrama N 5

Gosto de gota d'gua que se equilibra na flha rasa, tremendo ao vento. Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra: e ela resiste, no isolamento. Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto: pronto a cair, pronto a ficar - lmpido e exato. E a flha um pequeno deserto para a imensidade do acto.

Campo

Campo da minha sadade: vai crescendo, vai subindo, de tanto jazer sem nada. Desvlo mudo e contnuo que vai revestido os montes e estendendo outros caminhos. Mergulhada em suas frondes, a tristeza uma esperana bebendo a vazia sombra. guas que vo caminhando dispersam nos mares fundos mel de beijo e sal de pranto. Levam tudo, levam tudo agasalhado em seus braos Campo imenso - com o meu vulto... E ao longe cantam os pssaros.

Rimance

Onde que di na minha vida, para que eu me sinta to mal? quem foi que me deixou ferida de ferimento to mortal? Eu parei diante da paisagem: e levava uma flor na mo. Eu parei diante da paisagem procurando um nome de imagem para dar minha cano. Nunca existiu sonho to puro como o da minha timidez. Nunca existiu sonho to puro, nem tambm destino to duro como o que para mim se fez. Estou cada num vale aberto, entre serras que no teem fim. Estou cada num vale aberto: nunca ningum passar perto, nem ter notcias de mim. Eu sinto que no tarda a morte, e s h por mim esta flor: eu sinto que no tarda a morte e no sei com que suporte tanta solido sem pavor. E sofro mais ouvindo um rio que ao longe canta pelo cho, que deve ser lmpido e frio,

mas sem d nem recordao, como a voz cujo murmrio morrer com o meu corao.

Renncia

Rama das minhas rvores mais altas, deixa ir a flor! que o tempo, ao desprend-la, roda-a no molde de noites e de albas onde gira e suspira cada estrla. Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espao, ritmo, desenho, msica absoluta, dando e recuperando o corpo esparso que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta... Falo-te, por saber o que perder-se. Conheo o corao da primavera, e o dom secreto do seu sangue verde, que num breve perfume existe e espera. Vert para infinitos desamparos tudo que tive no meu pensamento. Por onde anda? No abismo. Dada ao vento... Era a flor dos instantes mais amargos.

Pausa

Agora como depois de um entrro. Deixa-me neste leito, do tamanho do meu corpo, junto parde lisa, de onde brota um sono vazio. A noite desmancha o pobre jgo das variedades. Pousa a linha do horizonte entre as minhas pestanas, e mergulha silncio na ltima veia da esperana. Deixa tocar sse grilo invisvel - mercrio tremendo na palma da sombra deixa-o tocar a sua msica, suficiente para cortar todo arabesco da memria...

Vinho

A taa foi brilhante e rara, mas o vinho de que beb com os meus olhos postos em ti, era de total amargura. Desde essa hora antiga e preclara, insensvelmente desc, e em meu pensamento senti o desgsto de ser criatura. Eu sou de essncia etrea e clara: no entanto, desde que te vi, como que desapareci... Rondo triste, minha procura. A taa foi brilhante e rara: mas, com certeza enlouqueci. E dsse vinho que bebi se originou minha loucura.

Valsa

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos e nas tuas antigas palavras. O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos que tormei a viver contigo enquanto o vento passava. Houve uma noite que cintilou sbre o teu rosto e modelou tua voz entre as algas. Eu moro, desde ento, nas pedras frias que o cu protege e estudo apenas o ar e as guas. Coitado de quem ps sua esperana nas praias fra do mundo... - Os ares fogem, viram-se as guas, mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Grilo

Mquina de ouro a rodar na sombra, serra de cristal a serrar estrlas... Caem pedaos de sono, entre os silncios, em grandes flores, mornas e dceis, com o pso e a cr de vagas borboletas. Rostos de espuma, nomes de cinza, - a vida sobe nos caules da noite, pouco a pouco. Mquina de ouro tremendo no ar de vidro frio, cortando o brto das palavras rente bca... Demanchando nos dedos arquitecturas que iam parando, e livros de imagens que o vento compunha, ilgicamente. Ah! que dos ramos de estrlas finamente desprendidas, pela sonora lmina que ests vibrando sempre, sempre? Que das noites extensas, de ares mansos de alegrias, sem ruas, sem habitantes, sem solido, sem pensamento? Que das mos esperando o amanhecer definitivo e cadas tambm na torrente do tempo?

Descrio

H uma gua clara que cai sbre pedras escuras e que, s pelo som, deixa ver como fria. H uma noite por onde passam grandes estrlas puras. H um pensamento esperando que se forme uma alegria. H um gesto acorrentado e uma voz sem coragem, e um amor que no sabe onde que anda o seu dia. E a gua cai, refletindo estrlas, cu, folhagem... Cai para sempre! E duas mos nela mergulham com tristeza, deixando um esplendor sbre a sua passagem. (Porque existe um esplendor e uma intil beleza nessas mos que desenham dentro da gua sua viagem para fra da natureza, onde no chegar nunca esta gua imprecisa, que nasce e deslisa, que nasce e deslisa...)

Epigrama N 6

Nestas pedras caiu, certa noite, uma lgrima. O vento que a secou deve estar voando noutros pases, o luar que a estremeceu tem olhos brancos de cegueira, - esteve sbre ela, mas no viu seu esplendor. S, com a morte do tempo, os pensamento que a choraram vero, junto ao universo, como foram infelizes, que, uma lgrima foi, naquela noite a vida inteira, - tudo quanto era dar , - a tudo que era o pr .

Atitude

Minha esperana perdeu seu nome... Fechei meu sonho, para cham-la. A tristeza transfigurou-me como o luar que entra numa sala. O ltimo passo do destino parar sem forma funesta, e a noite oscilar como um dourado sino derramando flores de festa. Meus olhos estaro sbre esplhos, pensando nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes. E um campo de estrlas ir brotando atrs das lembranas ardentes.

Corpo no mar

gua densa do sonho, quem navega? Contra as auroras, contra as baas: barca imvel, estrla cega. Bate o vento na vela e no a arqueia. - No foi por mim! Partiram-se as cordas, rodaram os mastros, os remos entraram por dentro da areia... Os remos torceram-se, e tranaram razes. - Intil for-los - alastram-se, fogem na sombra secreta de eternos pases... Mudou-se a vela em nuvem clara! Choraram meus olhos, minhas mos correram... - Alto e longe! - No foi por mim... E apenas pra um corpo na barca vazia, merc das metamorfoses, olhos vertendo melancolia... O vento sopra no corao. Adeus a todos os meridianos! Deito-me como num caixo. Ah! sobrevive o mar no meu ouvido... Marinheiro! Marinheiro! (Ilhas...Pssaros...Portos... - nsse rudo, - O mar...O mar!...O mar inteiro!...)

Mas tempo perdido!

Luar

Face do muro to plana, com o sabugueiro florido. O luar parece que abana as ramagens na parede. A noite tda um zumbido e um florir de vagalumes. A bca morre de sde junto frescura dos galhos. Andam nascendo os perfumes na sda crespa dos cravos. Brota o sono dos canteiros como o cristal dos orvalhos.

Dilogo

Minhas palavras so a metade de um dilogo obscuro continuado atravs de sculos impossveis. Agora compreendo o sentido e a ressonncia que tambm trazes de to longe em tua voz. Nossas perguntas e respostas se reconhecem como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram. Conversamos dos dois extremos da noite, como de praias opostas. Mas com uma voz que no se importa... E um mar de estrlas se balana entre o meu pensamento e o teu. Mas um mar sem viagens.

Estrla

Quem viu aquele que se inclinou sbre palavras trmulas, de relvo partido e de contrno perturbado, querendo achar l dentro o rsto que dirige os sonhos, para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado? Quem foi que o viu passar com sues ms insones, buscando o polo que girava sempre no vento? - Seus olhos iam nos ps, destruindo tdas as razes lricas, e em suas mos sangrava o pensamento. E era o seu rsto, sim, que estava entre versos andrginos, prso em crculos de ar, sbre um instante de festa! Bca fechada sob flores venenosas, e uma estrla de cinza na testa. Bem que le quis chamar pelo seu nome em voz muito alta, - mas o desejo no foi alm do seu pescoo. E ficou diante de sua cabea, estruturando-se como o frio dentro de um po. E no poude contar a ningum seu fim quimrico. A ningum. Pois a lngua que fra sua estava morta, e le era um prisioneiro entre paredes transparentes, entre paredes transparentes, mas sem porta. Disto le soube. O que nunca entendeu, porm, e o que lhe amarra o corao com ardents cordas de desgsto aquela estrla de cinza - aquela estrla grande e plcida derramando sombra em seu rsto.

Desventura

Tu s como o rsto das rosas: diferente em cada ptala. Onde estava o teu perfume? Ningum soube. Teu lbio sorriu para todos os ventos e o mundo inteiro ficou feliz. Eu, s eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava, como um segrdo que cai do sonho. Depois, abri as mos, - e perdeu-se. Agora, creio que vou morrer.

Noturno

Volto a cabea para a montanha e abandono os ps para o mar. - Coitado de quem est szinho e inventa sonhos com que sonhar! Minhas tranas descem pela casa abaixo, entram nas paredes, vo te procurar. Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos. - Querido, querido, devias voltar. Meus braos caminham pelas ruas quietas: - caminho de rios, fluidez de luar... levam minhas mos por todo o seu corpo: - Querido, querido, devias voltar. Partem os meus olhos, parte a minha bca, Na noite deserta, ningum v passar, pedao a pedao, minha vida inteira, nem na tua casa me escutam chegar. Meu quarto vazio s pensa que durmo... Coitado de quem est szinho e assiste o seu prprio sonhar!

Noes

Enter mim e mim, h vastides bastantes para a navegao dos meus desejos afligidos. Descem pela gua minhas naves revestidas de espelhos. Cada lmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge. Mas, nesta aventura do sonho exposto correnteza, s recolho o gsto infinito das respostas que no se encontram. Virei-me sbre a minha prpria existncia, e contemplei-a. Minha virtude era esta errncia por mares contraditrios, e ste abandono para alm da felicidade e da beleza. Oh! meu Deus, isto a minha alma: qualquer coisa que flutua sbre ste corpo efmero e precrio, como o vento largo do oceano sbre a areia passiva e inmera...

Epigrama N 7

A tua raa de aventura quis ter a terra, o cu, o mar. Na minha, h uma delcia obscura em no querer, em no ganhar... A tua raa quer partir, guerrear, sofrer, vencer, voltar. A minha, no quer ir nem vir. A minha raa quer passar.

Realejo

Minha vida bela, Minha vida bela, nada mais adianta si no h janela para a voz que canta... Preparei um verso com a melhor medida: rsto do universo, bca da minha vida. Ah! mas nada adianta, olhos de luar, quando se planta hera no mar, nem quando se inventa um colar sem fio, ou se experimenta abraar um rio... Alucinao da cabea tonta! Tudo se desmonta em cres e vento e velocidade. Tudo: corao, olhos de luar, noites de sadade. Aprendi comigo.

Por isso, te digo, minha vida bela, nada mais adianta, si no h janela para a voz que canta...

Fadiga

Estou to cansada, to cansada, estou to cansada! Que fiz eu? Estive embalando, noite e dia, um corao que no dormia desde que o seu amor morreu. Eu lhe dizia: Deixa a morte levar teu amor! No faz mal. mais belo sse herosmo triste de amar uma coisa que existe s para morrer, afinal... Deixa a morte... No chores... dorme! Noite e dia eu cantava assim. Mas o corao no falava: chorava baixinho, chorava, mesmo como dentro de mim. Era um corao de incertezas, feito para no ser feliz; querendo sempre mais que a vida - sem termo, limite, medida, com poucas vezes se quis. O tempo era rspido e amargo. Vinha um negro vento do mar. Tudo gritava, noite e dia, - e nunca ningum ouviria aquele corao chorar. Uma noite, dentro da sombra, dentro do chro, a sua voz

disse uma coisa inesperada, que logo correu, derramada num silncio fino e veloz. Meu amor no morreu: perdeu-se. le existe. Eu no o quero mais. O chro foi levando o resto. Eu nem pude fazer um gesto, e achei as horas desiguais. E achei que o vento era mais forte, que o frio causava aflio; quis cantar, mas no foi preciso. E o ar estava muito indeciso para dar vida a uma cano. A sorte virara no tempo como um navio sbre o mar. O chro parou pela treva. E agora no sei quem me leva daqui para qualquer lugar, onde eu no escute mais nada, onde eu no saiba de ningum, onde deite a minha fadiga e onde murmure uma cantiga para ver si durmo, tambm.

Horscopo

Deviam ser Venus e Jpiter, sim, que ao menos, ao menos, olhassem por mim, gerando caminhos claros e serenos por onde passar quem vinha nutrida de secretos vinhos, perdida, perdida, de amor e pensar. Saturno, porm, Saturno, o sombrio, se precipitou. No sabe ningum que rio, que rio de luto circunda a terra profunda que piso e que sou; que noite reveste o mundo em que passo e os mundos que penso... Que longo, alto, imenso, calado cipreste sobe, ramo a ramo, entre o meu abrao e o abrao que amo!

Ressurreio

No cantes, no cantes, porque veem de longe os nufragos, veem os prsos, os tortos, os monges, os oradores, os suicidas. Veem as portas, de novo, e o frio das pedras, das escadas, e, numa roupa preta, aquelas duas mos antigas. E uma vela de mvel chama fumosa. E os livros. E os escritos. No cantes. A praa cheia torna-se escura e subterrnea. E meu nome se escuta a si mesmo, triste e falso. No cantes, no. Porque era a msica da tua voz que se ouvia. Sou morta recente, ainda com lgrimas. Algum cuspiu por distrao sobre as minhas pestanas. Por isso vi que era to tarde. E deixei nos meus ps ficar o sol e andarem mscas. E dos meus dentes escorrer uma lenta saliva. No cantes, pois trancei o meu cabelo, agora, e estou diante do esplho, e sei melhor que ando fugida.

Serenata

Permite que feche os meus olhos, pois muito longe e to tarde! Pensei que era apenas demora, e cantando pus-me a esperar-te. Permite que agora emudea: que me conforme em ser szinha. H uma doce luz no silncio e a dr de origem divina. Permite que volte o meu rsto para um cu maior que ste mundo, e aprenda a ser docil no sonho como as estrlas no seu rumo.

Praia

Nuvem, caravela branca no ar azul do meio dia: - quem te viu como eu te via? Rolaram troves escuros pela vertente dos montes. Tremeram sbitas fontes. Depois, ficou tudo triste como o nome dos defuntos: mar e cu morreram juntos. Vinha o vento do mar alto e levantava as areias, sem vr como estavam cheias de tanta coisa esquecida, pisada por tantos passos, quebrada em tantos pedaos! Por onde ficou teu corpo, - iluso de claridade quando se fez tempestade? Nuvem, caravela branca, nunca mais h meio dia? (J nem sei como te via!)

Sereia

Linda a mulher e o seu canto, ambos guardados no luar. Seus olhos doces de pranto - quem os pode enxugar devagarinho com a bca, ai! com a bca, devagarinho... Na sua voz transparente giram sonhos de cristal. Nem ar nem onda corrente passuem suspiro igual, nem os bzios nem as violas, ai! nem as violas nem os bzios... Tudo pudesse a beleza, e, de encoberto pas, viria algum, com certeza, para faz-la feliz, contemplando-lhe alma e corpo, ai! alma e corpo contemplando-lhe... Mas o mundo est dormindo em travesseiros de luar. A mulher do canto lindo ajuda o mundo a sonhar, com o canto que a vai matando, ai! E morrer de cantar.

Encontro

Desde o tempo sem nmero em que as origens se elaboram, se estendem para mim os teus braos eternos, que um estaturio de caminhos invisveis construiu com a cr e o frio e o som morto de mrmores, para que em teu abrao haja imveis invernos. Tu bem sabes que sou uma chama da terra, que ardentes razes nutrem meu crescer sem termo; adextrei-me com o vento, e a minha festa a tempestade, e a minha imagem, como jgo e pensamento, abre em flor o silncio, para enfeitar alturas e rmo. Os teus braos que veem com essa brancura incalculvel que de to ser sem cr nem se compreende como existe, - so os braos finais em que cedem os corpos, e a alma cai sem mais nada, exausta de seu prprio nome, com uma improvvel forma, um vo destino e um pso triste. Pois eu, que sinto bem sses teus braos paralelos, na atitude sem dr que o rumo e o ritmo dessa viagem, digo que no cairei com uma fadiga permitida, que no apagarei ste desenho puro e ardente com que, de fgo e sangue, foi traada a minha imagem. Eu ficarei em ti, msera, intil, mas rebelde, ltima estrla s, do campo infiel aos cus escassos. E tu mesma achars pasmos de lagos e de areias, diante da forma exgua, sustentada s de sonho mantendo chama e flor no glo dos teus braos.

Epigrama N 8

Encostei-me a ti, sabendo bem que eras smente onda. Sabendo bem que eras nvem, deps a minha vida em ti. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frgil, fiquei sem poder chorar, quando ca.

Cantiga

Ai! A manha primorosa do pensamento... Minha vida uma pobre rosa ao vento. Passam arroios de cres sbre a paisagem. Mas tu eras a flor das flres, Imagem! Vinde ver asas e ramos, na luz sonora! Ningum sabe para onde vamos agora. Os jardins tm vida e morte, noite e dia... Quem conhecesse a sua sorte, morria. E nisto que se resume o sofrimento: cai a flor, - e deixa o perfume no vento!

Cavalgada

Meu sangue corre como um rio num grande galope, num ritmo bravio, para onde acena a tua mo. Pelas suas ondas revltas, seguem desesperadamente todas as minhas estrlas soltas, com a mxima cintilao. Ouve, no tumulto sombrio, passar a torrente fantstica! E, na luta da luz com as trevas, todos os sonhos que me levas, dize, ao menos, para onde vo!

Medida da significao

I Procurei-me nesta gua da minha memria que povoa tdas as distncias da vida e onde, como nos campos, se podia semear, talvez, tanta imagem capaz de ficar florindo... Procurei minha forma entre os aspectos das ondas, para sentir, na noite, o aroma da minha durao. Compreendo que, da fronte aos ps, sou de ausncia absoluta: desapareci como aquele - no entanto, rduo - ritmo que, sbre fingidos caminhos, sustentou a minha passagem desejosa. Acabei-me como a luz fugitiva que queimou sua prpria atitude segundo a tendncia do meu pensamento transformvel. Desde agora, saberei que sou sem rastros. Esta gua da minha memria rene os sulcos feridos: as sombras efmeras afogam-se na conjuno das ondas. E aquilo que restaria eternamente to da cr destas guas, to do tamanho do tempo, to edificado de silncios que, refletido aqui, permanece inefvel.

II Voz obstinada, por que insistes chamando

por um nome que no corresponde mais a mim? No do meu propsito que fiques ao longe szinha. Nem tu sabes que espcie de sadade abrolha na noite e como o silncio tenta mover-se intilmente, quando diriges teus ms sonoros, sondando direes! No do meu propsito, voz obstinada, mas da minha condio. As aparncias dispersaram-se de mim, como pssaros: que sol se pode fixar nesta existncia, para te definir a minha aproximao? Minhas dimenses se aboliram nos limites visveis: como podes saber onde me circunscrevo, e de que modo me pode o teu desejo atingir? Eu mesma deixei de entender a minha substncia; tenho apenas o sentimento dos mistrios que em mim se equilibram. Como podes chamar por mim como s coisas concretas, e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?

III Pela experincia do teu contentamento, crio formas que vistam meus pensamentos irrevelveis, e modelo fisionomias com que te possa aparecer. Pisarei minha solido com renncia e alegria e, por entre caminhos assombrados, resoluta virei at onde te encontres, cortando as sombras que crescem como florestas. Eu mesma me sentirei alucinada e exquisita, com sse alento das nebulosas sinistras

que se desenvolvem nas febres. No saberei precisamente quando me vers, nem si compreenderei a linguagem que falas, e os nomes que teem as tuas realidades e o tempo dos outros acontecimentos... Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza que tua voz continuar chamando por mim, obstinada, embora eu no possa estar mais perto nem mais viva, e se tenha acabado o caminho que existe entre ns, e eu no possa prosseguir mais...

IV A gua da minha memria devora todos os reflexos. Desfizeram-se, por isso, tdas as minhas presenas e sempre se continuaro a desfazer. intil o meu esforo de conservar-me; todos os dias sou meu completo desmoronamento: e assisto decadncia de tudo, nestes espelhos sem reproduo. Voz obstinada que ests ao longe chamando-me, conduze-te a mim, para compreenderes minha ausncia. Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho, para veres o que dles resta depois que chegarem a stes ermos domnios onde figuras e horas se decompem. No precisaremos falar mais nem sentir: seremos s de afinidades: morrero as alegorias. E sabers distinguir as coisas que perecem desoladas, olhando para esta gua interminvel e muda, que no floriu, que no palpitou, que no produziu, de tanto ser puramente imortal...

Grilo

Estrelinha de lata, assovio de vidro, no escuro do quarto do menino doente. A febre alarga os pulsos hirtos; mas dentro dos olhos ha um sol contente. Pssaro de prata sacudindo guisos no sonho mgico do menino moribundo. Gota amarga dos olhos frios, rolando, rolando no peito do mundo...

Acontecimento

Aqui estou, junto tempestade, chorando como uma criana que viu que no eram verdade o seu sonho e a sua esperana. A chuva bate-me no rosto e em meus cabelos sopra o vento. Vo-se desfazendo em desgsto as formas do meu pensamento. Chorarei toda a noite, enquanto perpassa o tumulto nos ares, para no me veres em pranto, nem saberes, nem perguntares: Que foi feito do teu sorriso, que era to claro e to perfeito? E o meu pobre olhar indeciso no te repetir: Que foi feito...?

Epigrama N 9

O vento voa, a noite tda se atordoa, a flha cai. Haver mesmo algum pensamento sbre essa noite? sbre sse vento? sbre essa flha que se vai?

Provncia

Cidadezinha perdida no inverno denso de bruma, que dos teus morros de sombra, do teu mar de branda espuma, das tuas rvores frias subindo das ruas mortas? Que das palmas que bateram na noite das tuas portas? Pela janela baixinha, viam-se os crios acsos, e as flores se desfolhavam perto dos soluos presos. Pela curva dos caminhos, cheirava a capim e a orvalho e muito longe as harmnicas riam, depois do trabalho. Que feito da tua praa, ond a morena sorria com tanta noite nos olhos e, na bca, tanto dia? Que feito daquelas caras escondendo o seu segrdo? Dos corredores escuros com paredes s de mdo? Que feito da minha vida abandonada na tua,

do instante de pensamento deixado nalguma rua? Do perfume que me deste, que nutriu minha existncia, e hoje um tempo de sadade, sobre a minha prpria ausncia?

Cantar

Cantar de beira de rio; gua que bate na pedra, pedra que no d resposta. Noite que vem por acaso, trazendo nos lbios negros o sonho de que se gosta. Pensamento do caminho pensando o rosto da flor que pode vir, mas no vem. Passam luas - muito longe, estrlas - muito impossveis, nuvem sem nada, tambm. Cantar de beira de rio: o mundo coube nos olhos, todo cheio, mas vazio. A gua subiu pelo campo, mas o campo era to triste... Ai! Cantar de beira de rio.

Destino

Pastora de nuvens, fui posta a servio por uma campina to desamparada que no principia nem tambm termina, e onde nunca noite e nunca madrugada. (Pastores da terra, vs tendes sossgo, que olhais para o sol e encontrais direo. Sabeis quando tarde, sabeis quando cedo. Eu, no.) Pastora de nuvens, por muito que espere, no h quem me explique meu vrio rebanho. Perdida atrs dele na plancie area, no sei si o conduzo, no sei si o acompanho. (Pastores da terra, que saltais abismos, nunca entendereis a minha condio. Pensai que ha firmezas, pensais que ha limites. Eu, no.) Pastora de nuvens, cada luz colore meu canto e meu gado de tintas diversas. Por todos os lados o vento revolve os velos instveis das reses dispersas. (Pastores da terra, de certeiros olhos, como to serena a vossa ocupao! Tendes sempre o indcio da sombra que foge... Eu, no.) Pastora de nuvens, no paro nem durmo neste mvel prado, sem noite e sem dia.

Estrlas e luas que jorram, deslumbram o gado inconstante que se me extravia. (Pastores da terra, debaixo das folhas que entornam frescura num plcido cho, sabeis onde pousam ternuras e sonos. Eu, no.) Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto do dona das reses, do dono do prado. E s vezes parece que dizem meu nome, que me andam seguindo, no sei por que lado. (Pastores da terra, que vedes pessoas sem serem apenas de imaginao, podeis encontrar-vos, falar tanta coisa! Eu, no.) Pastora de nuvens, com a face deserta, sigo atrs de formas com feitios falsos, queimando viglias na plancie eterna que gira debaixo dos meus ps descalos. (Pastores da terra, tereis um salrio, e andar por bailes vosso corao. Dormireis um dia como pedras suaves. Eu, no.)

Quadras

Na cano que vai ficando j no vai ficando nada: menos do que o perfume de uma rosa desfolhada. *** Os remos batem nas guas: tm de ferir, para andar. As guas vo consentindo sse o destino do mar. *** Passarinho ambicioso fez nas nuvens o seu ninho. Quando as nuvens forem chuva, pobre de ti, passarinho. *** O vento do ms de Agosto leva as folhas pelo cho; s no toca no teu rosto que est no meu corao. *** Os ramos passam de leve na face da noite azul. assim que os ninhos aprendem que a vida tem norte e sul.

*** A cantiga que eu cantava, por ser cantada morreu. Nunca hei de dizer o nome daquilo que ha de ser meu. *** Ao lado da minha casa morre o sol e nasce o vento. O vento me traz teu nome, leva o sol meu pensamento.

Noturno

Suspiro do vento, lgrima do mar, ste tormento ainda pode acabar? De dia e de noite, meu sonho combate: veem sombras, vo sombras, no h quem o mate! Suspiro do vento, lgrima do mar, as armas que invento so aromas no ar! Mandai-me soldados de estirpe mais forte, com tdas as armas que levam morte! Suspiro do vento, lgrima do mar, meu pensamento no sabe matar! Mandai-me sse arcanjo de verde cavalo, que desa a ste campo a desbarat-lo! Suspiro do vento, lgrima do mar,

que leve sse arcanjo meu longo tormento, e tambm a mim, para o acompanhar!

Origem

O tempo gerou meu sonho na mesma roda de alfareiro que modelou Sirius e a Estrla Polar. A luz ainda no nasceu, e a forma ainda no est pronta: mas a sorte do enigma j se sente respirar. No h norte nem sul: e s os ventos sem nome giram com o nascimento - para o fazerem mais veloz. E a msica geral, que circula nas veias da sombra, prepara o mistrio alado da sua voz. Meu sonho quer apenas o tamanho da minha alma, - exato, luminoso e simples como um anel. De tudo quanto existe, cinge smente o que no morre, porque o cu que o inventou cantava sempre eternidade rodando a sua argila fiel.

Feitiaria

No tinha havido pssaro nem flores o ano inteiro. Nem guerras, nem aulas, nem missas, nem viagens e nem barca e nem marinheiro. Nem indstria ou comrcio, nem jornal nem rdio, o ano inteiro! Nem cartas, nem modas. Tudo quanto havia era o feitio de um feiticeiro que toldava o mundo e a melancolia. Chegaram agora pssaros e flores, e de novo guerras, aulas, missas, viagens, e marinheiros com remos e barcas veem saindo l do horizonte. Brotam de novo antigas imagens das colees de fotografia... - moos com roupas de Caronte e meninas iguais s Parcas. Por isso que se tem sadade do tempo da feitiaria.

Marcha

As ordens da madrugada romperam por sbre os montes: nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes. Apenas o sol redondo e alguma esmola de vento quebram as formas do sono com a idea do movimento. Vamos a passo e de longe; entre ns dois anda o mundo, com alguns vivos pela tona, com alguns mortos pelo fundo. As aves trazem mentiras de pases sem sofrimento. Por mais que alargue as pupilas, mais minha dvida aumento. Tambm no pretendo nada seno ir andando ata, como um nmero que se arma e em seguida se esbora, - e car no mesmo poo de inrcia e de esquecimento, onde o fim do tempo soma pedras, guas, pensamento. Gosto da minha palavra pelo sabor que lhe deste: mesmo quando linda, amarga como qualquer fruto agreste. Mesmo assim amarga, tudo

que tenho, entre o sol e o vento: meu vestido, minha msica, meu sonho e meu alimento. Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de sadade; tenho visto muita coisa, menos a felicidade. Soltam-se os meus dedos tristes, dos sonhos claros que invento. Nem aquilo que imagino j me d contentamento. Como tudo sempre acaba, oxal seja bem cedo! A esperana que falava tem lbios brancos de mdo. O horizonte corta a vida isento de tudo, isento... No h lgrima nem grito: apenas consentimento.

Epigrama N 10

A minha vida se resume, desconhecida e transitria, em contornar teu pensamento, sem levar dessa trajectria nem sse prmio de perfume que as flres concedem ao vento.

Onda

Quem falou de primavera sem ter visto o teu sorriso, falou sem saber o que era. .......................... Pus o meu lbio indeciso na concha verde e espumosa modelada ao vento liso: tinha frescura de rosa, aroma de viagem clara e um som de prata gloriosa. Mas desfez-se em coisa rara: prolas de sal to finas - nem a areia as igualara! Tenho no meu lbio as runas de arquiteturas de espuma com paredes cristalinas... Voltei aos campos de bruma, onde as rvores perdidas no prometem sombra alguma. As coisas acontecidas, mesmo longe, ficam perto para sempre e em muits vidas: mas quem falou do deserto sem nunca ver os meus olhos...

- falou, mas no estava certo.

Herana

Eu vim de infinitos caminhos, e os meus olho choveram lcido pranto pelo cho. Quando que frutifica, nos caminhos infinitos, essa vida, que era to viva, to fecunda, porque vinha de um corao? E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos, do pranto que cau dos meus olhos passados, que experincia, ou conslo, ou prmio alcanaro?

Histria

Eu fui a de mos ardentes que, triste de ser nascida, fui subindo altas vertentes para a vida. E perguntava, subida: mos, porque sois ardentes? gua fina que descia, flor em pedras debruada, nada ouvia ou respondia... Nada, nada. E eu ia desenganada, sorrindo, porque o sabia. E, afinal, no cu, presentes tdas as estrlas puras, pouso as mesmas mos ardentes nas alturas, - sem perguntas, sem procuras, ricas por indiferentes. Mdo, orgulho, desencanto prenderam os movimentos dessas mos que, amando tanto, sbre os ventos desfizeram seus intentos, vencendo um tcito pranto. Ai! por mais que se ande, certo: - no se encontra o bem perfeito. Vai nascendo s deserto

pelo peito. E entre o desejado e o aceito dorme um horizonte encoberto. Como esta bca sem pedidos, e esperanas to ausentes, e esta nvoa nos ouvidos complacentes, - mos, porque sois ardentes? Tudo so sonhos dormidos ou dormentes!

Assovio

Ningum abra a sua porta para ver que aconteceu: samos de brao dado, a noite escura mais eu. Ela no sabe o meu rumo, eu no lhe pergunto o seu: no posso perder mais nada, si o que houve j se perdeu. Vou pelo brao da noite, levando tudo que meu: - a dr que os homens me deram, e a cano que Deus me deu.

Personagem

Teu nome qusi indiferente e nem teu rsto j me inquieta. A arte de amar exatamente a de ser poeta. Para pensar em ti, me basta o prprio amor que por ti sinto: s a idea, serena e casta, nutrida do enigma do instinto. O lugar da tua presena um deserto, entre variedades: mas nsse deserto que pensa o olhar de tdas as sadades. Meus sonhos viajam rumos tristes e, no seu profundo universo, tu, sem forma e sem nome, existes, silencioso, obscuro, disperso. Tdas as mscaras da vida se debruam para o meu rsto, na alta noite desprotegida em que experimento o meu gsto. Todas as mos vindas ao mundo desfalecem sbre o meu peito, e escuto o suspiro profundo de um horizonte insatisfeito. Oh! que se apague a bca, o riso, o olhar dsses vultos precrios,

pelo improvvel paraso dos encontros imaginrios! Que ningum e que nada exista, de quanto a sombra em mim descansa: - eu procuro o que no se avista, dentre os fantasmas da esperana! Teu corpo, e teu rosto, e teu nome, teu corao, tua existncia, tudo - o espao evita e consome: e eu s conheo a tua ausncia. Eu s conheo o que no vejo. E, nsse abismo do meu sonho, alheia a todo outro desejo, me decomponho e recomponho...

Estirpe

Os mendigos maiores no dizem mais, nem fazem nada. Sabem que intil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar. Deixam-se estar ao sol e chuva, com o mesmo ar de completa coragem, longe do corpo que fica em qualquer lugar. Entreteem-se a estender a vida pelo pensamento. Si algum falar, sua voz foge como um pssaro que cai. E de tal modo imprevista, desnecessria e surpreendente que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai. Oh! no gemiam, no... Os mendigos maiores so todos esticos. Puseram sua misria junto aos jardins do mundo feliz, mas no querem que, do outro lado, tenham notcia da estranha sorte que anda por les como um rio num pas. Os mendigos maiores vivem fra da vida: fizeram-se excludos. Abriram sonos e silncios e espaos nus, em redor de si. Teem seu reino vazio, de altas estrlas que no cobiam. Seu olhar no olha mais, e sua bca no chama nem ri. E seu corpo no sofre nem gosa. E sua mo no toma nem pede. E seu corao uma coisa que, si existiu, j se esqueceu. Ah! os mendigos maiores so um povo que se vai convertendo em pedra. sse povo que o meu.

Tentativa

Andei pelo mundo no meio dos homens: uns compravam joias, uns compravam po. No houve mercado nem mercadoria que seduzisse a minha vaga mo. Calado, Calado, me diga, Calado por onde se encontra minha seduo. Alguns, sorririam, muitos, soluaram, uns, porque tiveram, outros, porque no. Calado, Calado, eu, que no quis nada, porque ando com pena no meu corao? Se no vou ser santa, Calado, Calado, os sonhos de todos porque no me do? Calado, Calado, perderam meus dias? ou gastei-os todos, s por distrao? No sou dos que levam: sou coisa levada... E nem sei daqueles que me levaro... Calado, me diga si devo ir-me embora, para que outro mundo e em que embarcao!

Cantiga

Bem te vi que ests cantando nos ramos da madrugada, por muito que tenhas visto, juro que no viste nada. No viste as ondas que vinham to desmanchadas na areia, qusi vida, qusi morte, qusi corpo de sereia... E as nuvens que vo andando com marcha e atitude de homem, com a mesma atitude e marcha tanto chegam como somem. No viste as letras, que apostam formar idas com o vento... E as mos da noite quebrando os talos do pensamento. Passarinho, tolo, tolo, de olhinhos arregalados... Bentev, que nunca viste como os meus olhos fechados...

Epigrama N 11

A ventania misteriosa passou na rvore cr de rosa e sacudiu-a como um vu, um largo vu, na sua mo. Foram-se os pssaros para o cu. Mas as flres ficaram no cho.

Passeio

Quem me leva adormecida por dentro do campo fresco, quando as estrlas e os grilos palpitam ao mesmo tempo? O cu dorme na montanha, o mar flutua em si mesmo, o tempo que vai passando filtra a sombra nas areias. Quem me leva adormecida sbre o perfume das plantas, quando, no fundos rios a gua nova a cada instante? No ha palavras nem rostos: eu mesma no me estou vendo. Algum me tirou do corpo, fez-me nome, nicamente, nome, para que as perguntas me chamem, com vozes tristes, e eu no me esquea de tudo si houver um dia seguinte. O cu roda para oste: as pontes vo para as guas. O vento um silncio inquieto com perspectivas de barcos. Quem me leva adormecida pelas dunas, pelas nuvens,

com ste som inesquecvel do pensamento no escuro?

Cantiga

Ns somos como o perfume da flor que no tinha vindo: esperana do silncio, quando o mundo est dormindo. Pareceu que houve o perfume... E a flor, sem vir, se acabou. Oh! abelha imaginativa! o que o desejo inventou...

A menina enfrma

I A menina enfrma tem no seu quarto formas inmeras que inventam espantos para seus olhos sem iluso. Bonecos que enchem as grandes horas de pesadelos, que lhe roubam os olhos, que lhe partem a garganta, que arrebatam tesouros da sua mo. Um dia, ela descobriu szinha que era duas! a que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo, balanada num cu de estrlas invisveis, sem contato nenhum com o cho.

II A mo da menina enfrma refratou-se tambm na gua pura, como, outras vezes, sua voz, nesses rios do cu. Partiu-se a mo contemplativa dentro d'gua: mas no houve mesmo amargura, mas qusi delcia, no seu pulso quebrado e exato. E ela contempla a onda mansa: e tudo isso uma simples lembrana? uma alheia notcia? ou algum velho retrato?

III A menina enfrma passeia no jardim brilhante,

de plantas hmidas, de flores frescas, de gua cantante, com pssaros sbre a folhagem. A menina enfrma apanha o sol nas mos magrinhas: seus olhos longos teem um desenho de andorinhas num rosto sereno de imagem. A menina enfrma chegou perto do dia to mansa e to simples como uma lgrima sbre a esperana. E acaba de descobrir que as nuvens tambm teem movimento. Olha-as como de muito mais longe. E com um sorriso de sadade pe nesses barcos brancos seus sentimentos de eternidade e parte pelo claro vento.

Desenho

Fino corpo, que passeias na minha imaginao como o vento nas areias, sers o rei Salomo? H um perfume de madeira e uma confusa noo de leo e nardo, a noite inteira, na minha imaginao. Estendem-se no meu leito prpura e marfins...Esto safiras pelo meu peito, cedros pela minha mo... Trres, piscinas, palmeiras, de pura imaginao, parecem to verdadeiras... Sers o rei Salomo? Ondas de mel e de leite se derramam pelo cho, no silencioso deleite da sombra e da solido. Navega nas minhas veias, em vagorosa inveno,

um vinho de luas-cheias Por isso, em meu corpo vo brotando, em mornos canteiros, incenso, mirra, e a cano de uns pssaros prisioneiros... Sers o rei Salomo? Na noite qusi perfeita da minha imaginao, que da tua mo direita?...

Timidez

Basta-me um pequeno gesto feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve... - mas s sse eu no farei. Uma palavra cada das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras mais distantes... - palavra que no direi. Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos, - que amargamente inventei. E, enquanto no me descobres, os mundos vo navegando nos ares certos do tempo, at no se sabe quando... - e um dia me acabarei.

Taverna

Bem sei que, olhando p'ra minha cara, p'ra minha bca, triste e incoerente, p'ros gestos vagos de sombra incerta que hoje sou eu, minha loucura se faz to clara, minha desgraa to evidente, minha alma tda to descoberta, que pensam: ste, no bebeu... Passei a noite, passei o dia de cotovelos firmes na mesa, de olhos sobre o vinho perdidos, a testa pulsando na mo: e muros de melancolia subiam pela sala acsa, inutilizando os gemidos, mas quebrando-me o corao. Deixei o copo no mesmo nvel: bebida imvel, esplho atento, onde - s eu - vi desbrochares, rsto amargo de amor! Vim da taverna brio de impossvel, pisando sonhos, beijando o vento, falando s pedras, agarrando os ares... - Oh! deixem-me ir para onde eu fr!...

Pergunta

Estes meus tristes pensamentos vieram de estrlas desfolhadas pela bca brusca dos ventos? Nasceram das encruzilhadas, onde os espritos defuntos pem no presente horas passadas? Originaram-se de assuntos pelo raciocnio dispersos, e depois na sadade juntos? Subiram de mundos submersos em mares, tmulos ou almas, em msica, em mrmore, em versos? Cariam das noites calmas, dos caminhos dos luares lisos, em que o sono abre mansas palmas? Proveem de fatos indecisos, acontecidos entre brumas, na era de extintos parasos? Ou de algum cenrio de espumas, onde as almas deslisam frias, sem aspiraes mais nenhumas? Ou de ardentes e inteis dias, com figuras alucinadas por desejos e covardias?

Foram as esttuas paradas em roda da gua do jardim...? Foram as luzes apagadas? Ou sero feitos s de mim, estes meus tristes pensamentos que boiam como peixes lentos num rio de tdio sem fim?

Epigrama N 12

A engrenagem trincou pobre e pequeno inseto. E a hora certa bateu, grande e exata, em seguida. Mas o toque daquele alto e imenso relgio dependia daquela exgua e obscura vida? Ou percebeu siquer, enquanto o som vibrava, que ela ficava ali, calada mas partida?

Vento

Passaram os ventos de Agosto, levando tudo. As rvores humilhadas bateram, bateram com os ramos no cho. Voaram telhados, voaram andaimes, voaram coisas imensas: os ninhos que os homens no viram nos galhos, e uma esperana que ningum viu, num corao. Passaram os ventos de Agosto, terrveis, por dentro da noite. Em todos os sonos pisou, quebrando-os, o seu tropel. Mas, sbre a paisagem cansada da aventura excessiva sem forma e sem co, o sol encontrou as crianas procurando outra vez o vento para soltarem papagaios de papel.

Misria

Hoje tarde para os desejos, e nem me interessa mais nada... Cheguei muito depois do tempo em que se pode ouvir dizer: Oh! minha amada... O mar imvel dos teus olhos pode estar bem perto, e defronte. Mas nem navega as horas nem se cuida mais de horizonte. Durmo com a noite nos meus braos, sofrendo pelo mundo inteiro. O suspiro que em mim resvala bem pode ser, a cada instante, o derradeiro. Morrer uma coisa to fcil que tdas as manhs me admiro de ter o sono conservado fidelidade ao meu suspiro. E pergunto: Quem que manda mais do que eu sbre a minha vida? Nste mar de s desencanto, que sereia murmura uma cano desconhecida? E em meus ouvidos indiferentes, alheios a qualquer vontade, que rstos vo reconhecendo os passeios da eternidade? Perto do meu corpo estendido, nufrago inerte de sombras e ares,

quem chegar, desmanchando secretos nveis? Sers tu? - para me levares... (Vejo a lgrima que escorre por cima da minha pena. Ai! a pergunta sempre enorme, e a resposta, to pequena...)

Metamorfose

Sbito pssaro dentro dos muros cado, plido barco na onda serena chegado. Noite sem braos! Clido sangue corrido. E imensamente o navegante mudado. Seus olhos densos apenas sabem ter sido. Seu lbio leva um outro nome mandado. Sbito pssaro por altas nuvens bebido. Plido barco nas flores quietas quebrado.

Nunca, jmais e para sempre perdido o co do corpo no prprio vento pregado.

Despedida

Vais fucando longe de mim como o sono, nas alvoradas; mas h estrlas sobressaltadas resplandecendo alm do fim. Bebo essas luzes sem tristeza, porque sinto bem que elas so o ltimo vinho e o ltimo po de uma definitiva mesa. E olho par a fuga do mar, e para a asceno das montanhas, e vejo como te acompanhas, - para me desacompanhar. As luzes do amanhecimento acharo tda a terra igual. - Tudo foi sobrenatural, sem pso de contentamento, sem noes do mal nem do bem, - jgo de pura geometria, que eu pensei que se jogaria, mas no se joga com ningum.

Epigrama N 13

Passaram os reis coroados de ouro, e os heris coroados de louro: passaram por stes caminhos. Depois, vieram os santos e os bardos. Os santos, cobertos de espinhos. Os poetas, cingidos de cardos.

NDICE Aceitao[40] Acontecimento [129] Alva [58] A menina enfrma [172] Anunciao [14] Assovio [158] Atitude [89] A ltima cantiga [28] Campo [74] Cano[32] Cano[36] Cano[43] Cantar[135] Cantiga [119] Cantiga [166] Cantiga [171] Cantiguinha [60] Cavalgada [121] Convenincia [31] Corpo no mar [90] Criana [49] Desamparo [51] Descrio [86] Desenho [175] Despedida [192] Destino [137] Desventura [96] Dilogo [33] Discurso [16] Distncia [72] Encontro [116] Epigrama n 1 [9] Epigrama n 2 [25] Epigrama n 3 [41]

Epigrama n 4 [56] Epigrama n 5 [73] Epigrama n 6 [88] Epigrama n 7 [101] Epigrama n 8 [118] Epigrama n 9 [131] Epigrama n 10 [151] Epigrama n 11 [168] Epigrama n 12 [185] Epigrama n 13 [194] Estirpe [162] Estrla [94] Excurso [18] xtase [66] Fadiga [104] Feitiaria [146] Fim [47] Fio [52] Gargalhada [45] Grilo [84] Grilo [128] Guitarra [70] Herana [154] Histria [155] Horscopo [107] Inverno [53] Luar [92] Marcha [148] Medida da significao [122] Metamorfose [190] Misria [187] Motivo [10] Murmrio [42] Msica [22] Noes [99] Noite [12] Noturno [97] Noturno II [143] Onda [152]

Ofandade [57] Origem [145] Passeio [169] Pausa [80] Pergunta [182] Personagem [159] Perspectiva [34] Praia [112] Provncia [132] Quadras [141] Realejo [102] Renncia [78] Ressureio [109] Retrato [21] Rimance [76] Sereia [114] Serenata [26] Serenata [111] Solido [38] Som [68] Taverna [180] Tentativa [164] Terra [62] Timidez [178] Valsa [82] Vento [186] Vinho [81]

Reproduo da ficha catalogrfica preparada em 1942 pelo Coronel Zacarias Silva. Os textos entre colchetes foram acrscimos manuscritos pela Autora N.E. CECILIA MEIRELES [GRILLO] literariamente CECILIA MEIRELES Usa os pseudnimos: [Florncia C. M. C.]

BIOGRAFIA: Nasceu no Distrito Federal. filha de [Carlos Alberto de Carvalho M.] e de d. [Mathilde Benevides Meireles] Esprito de slida cultura, Cecilia Meireles poetisa, prosadora, pedagogista, professora e conferencista (notadamente sobre educao, arte e literatura) ANOTAES interessantes: 1 livro publicado: NUNCA MAIS E POESIA DOS POEMAS, versos, em 1923, no Rio de Janeiro. 1 Premio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, em 1938, com seu livro VIAGEM. BIBLIOGRAFIA: A POESIAS: Nunca mais e Poema dos Poemas Baladas para El-Rei Viagem Vaga Musica B NOVELA:

Olhinhos de Gato [ publicada na Rev. "Ocidente" de Lisboa.]

C LITERATURA INFANTIL: Criana, meu amr, [livros de textos] E mais: O Espirito Vitorioso, [tese de Concurso Cadeira de Literatura da antiga Escola Normal do Distrito Federal -] So Paulo 10/VIII/1942 Zacarias Silva (assinatura)

[Lit. infantil Rute e Alberto resolveram ser turistas]

----FICHA PROVISORIA MODIFICADA E AMPLIADA PELA AUTORA---[Conferncias realizadas e editadas em Lisboa e Coimbra: Notcia da literatura brasileira (Coimbra) Batuque, samba e macumba (Lisboa)]

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