14
835 A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO DA OBRA DANCER, DE COLUM MCCANN * Valdirene Alves Fontanella ** RESUMO: Acredita-se que existe um elemento intrínseco e fundamental à natureza da linguagem e também à da tradução, o qual denomina-se alteridade. Este termo é pouco discutido e seu significado é mais dificil ainda de ser estabelecido, talvez porque envolva uma série de incertezas que acompanham o homem desde seu surgimento, entre elas a de quão próximo deve ser o nosso contato com o outro, com aquele ser que nos é estranho? É melhor aventurar-se no mundo dele e procurar entender as suas diferenças ou é melhor tentar aproximá-lo do nosso? Sabe-se que estas dúvidas sempre permearam as ideias no campo social e filosófico, contudo, acredita-se que a escolha dos caminhos a seguir pela busca destas respostas se dá pelo fenômeno da alteridade, fator constituinte da subjetividade e que, finalmente, revela-se na linguagem. Desta forma, percebe-se que a tradução de narrativas literárias é um meio propício para a observação e exemplificaçãode tal fenômeno, uma vez que este processo pode ser evidenciado em diversas traduções de obras literárias já realizadas ao longo da história, das quais algumas seguiram pelo caminho da tradução domesticadora e outras pela estrangeirizada. Este trabalho propõe-se a analisar, por meio da leitura, como o fenômeno da alteridade se faz presente na voz do autor e se mantém na do tradutor nas mesmas instâncias da tradução interlinguística, a fim de evidenciar a presença desse elemento nas narrativas. Para isso, como corpus de análise deste estudo será utilizada a obra Dancer (2003), do autor irlandês Colum McCann e a tradução dessa obra para a língua portuguesa sob o título “O Bailarino”(2004) , a qual recria a história do bailarino Rudolf Nureiev, misturando fatos reais e fictícios. A fundamentação teórica baseia-se, principalmente, nas ideias de Bakhtin, Spivak, Even Zohar e Lévinas, entre outros. Espera-se que este trabalho possa contribuir como um estímulo à reflexão sobre os estudos de leitura e de tradução de narrativas literárias, levando-se em consideração o fenômeno da alteridade presente na linguagem. Palavras chave: Linguagem- Alteridade- Tradução 1. Introdução O autor, ao escrever suas obras, independente do gênero que segue a sua escrita, obviamente, usa uma língua que o representa e que também identifica culturalmente a sua narrativa. Uma obra literária costuma ser repleta de cultura, por refletir as tradições, a vida, a sociedade e seus costumes, assim como abrange e sinaliza um pouco do conhecimento de mundo que o autor e também o seu possível leitor possuem. Por considerar todos estes fatores, sabe-se que o ato de traduzir uma obra literária é muito mais do que decodificar os códigos linguísticos de uma língua estrangeira, visto que a tradução se trata de um amplo processo e envolve diversos elementos, entre eles a parte sociocultural, considerada como o elemento fundamental para a formação do caráter identitário da língua e de suas representações. Percebe-se que, ao longo das últimas décadas, grande parte dos estudos realizados na área dos Estudos da Tradução tem discutido o papel da tradução, o qual, tradicionalmente, é ligado à ideia de um dizer de outra forma, de um dizer pelo outro, o qual é sempre regido por uma ética. A partir desta ideia, organiza-se uma noção de responsabilidade em função do que foi dito pelo outro, considerando esta relação com o “diferente” como fundamental para a formação intelectual e cultural do indivíduo. * Texto completo de trabalho apresentado na Sessão II do Eixo Temático Estudos de Literatura Comparada II do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). ** Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter. Especialista em Ensino-Aprendizagem de Língua Inglesa. E-mail: [email protected]

A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

835

A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM

E NA TRADUÇÃO DA OBRA DANCER, DE COLUM MCCANN*

Valdirene Alves Fontanella**

RESUMO: Acredita-se que existe um elemento intrínseco e fundamental à natureza da linguagem e também à da tradução, o qual denomina-se alteridade. Este termo é pouco discutido e seu significado é mais dificil ainda de ser estabelecido, talvez porque envolva uma série de incertezas que acompanham o homem desde seu surgimento, entre elas a de quão próximo deve ser o nosso contato com o outro, com aquele ser que nos é estranho? É melhor aventurar-se no mundo dele e procurar entender as suas diferenças ou é melhor tentar aproximá-lo do nosso? Sabe-se que estas dúvidas sempre permearam as ideias no campo social e filosófico, contudo, acredita-se que a escolha dos caminhos a seguir pela busca destas respostas se dá pelo fenômeno da alteridade, fator constituinte da subjetividade e que, finalmente, revela-se na linguagem. Desta forma, percebe-se que a tradução de narrativas literárias é um meio propício para a observação e exemplificaçãode tal fenômeno, uma vez que este processo pode ser evidenciado em diversas traduções de obras literárias já realizadas ao longo da história, das quais algumas seguiram pelo caminho da tradução domesticadora e outras pela estrangeirizada. Este trabalho propõe-se a analisar, por meio da leitura, como o fenômeno da alteridade se faz presente na voz do autor e se mantém na do tradutor nas mesmas instâncias da tradução interlinguística, a fim de evidenciar a presença desse elemento nas narrativas. Para isso, como corpus de análise deste estudo será utilizada a obra Dancer (2003), do autor irlandês Colum McCann e a tradução dessa obra para a língua portuguesa sob o título “O Bailarino”(2004) , a qual recria a história do bailarino Rudolf Nureiev, misturando fatos reais e fictícios. A fundamentação teórica baseia-se, principalmente, nas ideias de Bakhtin, Spivak, Even Zohar e Lévinas, entre outros. Espera-se que este trabalho possa contribuir como um estímulo à reflexão sobre os estudos de leitura e de tradução de narrativas literárias, levando-se em consideração o fenômeno da alteridade presente na linguagem. Palavras chave: Linguagem- Alteridade- Tradução

1. Introdução

O autor, ao escrever suas obras, independente do gênero que segue a sua escrita, obviamente, usa uma língua que o representa e que também identifica culturalmente a sua narrativa. Uma obra literária costuma ser repleta de cultura, por refletir as tradições, a vida, a sociedade e seus costumes, assim como abrange e sinaliza um pouco do conhecimento de mundo que o autor e também o seu possível leitor possuem.

Por considerar todos estes fatores, sabe-se que o ato de traduzir uma obra literária é muito mais do que decodificar os códigos linguísticos de uma língua estrangeira, visto que a tradução se trata de um amplo processo e envolve diversos elementos, entre eles a parte sociocultural, considerada como o elemento fundamental para a formação do caráter identitário da língua e de suas representações. Percebe-se que, ao longo das últimas décadas, grande parte dos estudos realizados na área dos Estudos da Tradução tem discutido o papel da tradução, o qual, tradicionalmente, é ligado à ideia de um dizer de outra forma, de um dizer pelo outro, o qual é sempre regido por uma ética. A partir desta ideia, organiza-se uma noção de responsabilidade em função do que foi dito pelo outro, considerando esta relação com o “diferente” como fundamental para a formação intelectual e cultural do indivíduo.

*Texto completo de trabalho apresentado na Sessão II do Eixo Temático Estudos de Literatura Comparada II do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). **Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter. Especialista em Ensino-Aprendizagem de Língua Inglesa. E-mail: [email protected]

Page 2: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

836

Existe um elemento intrínseco e fundamental à natureza da linguagem e também à natureza da tradução, o qual chama-se “alteridade”. Este trabalho propõe uma reflexão sobre a evidência de tal fenômeno, no exercício da tradução literária que pensa na língua estrangeira a ser traduzida e na cultura do outro em primeiro lugar, com o objetivo de manter as estranhezas como uma forma de respeito e, também, como uma forma de enriquecer a cultura receptora de tal tradução. Ao se pensar na tradução não como um ato de repetição, mas como um meio de transformar um texto em outro texto, o qual procura manter e respeitar as estranhezas e excentricidades do primeiro, percebe-se que o fenômeno conhecido como “alteridade” encontra um campo de atuação que lhe pertence, e mostra-se como o princípio fundamental na prática da tradução conhecida aqui como “estrangeirizante”, denominação esta, particularmente, dada por Lawrence Venuti.

Percebe-se que a tradução de narrativas literárias é um meio propício para a observação e exemplificação de tal fenômeno, principalmente na tradução conhecida como estrangeirizante, a qual prima em manter as diferenças do outro e aproxima o leitor do autor, com o intuito de enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação existente entre língua, literatura, cultura e tradução, o objetivo deste trabalho é analisar, por meio da leitura, como o fenômeno da alteridade se faz presente na voz do autor Colum McCann da obra Dancer (2003) e na sua tradução para a língua portuguesa, sob o título O Bailarino (2004), realizada por Áurea Akemi Arata, sob um ponto de vista linguístico-filosófico, juntamente com as contribuições advindas dos Estudos da Tradução.

O trabalho estrutura-se da seguinte forma: primeiramente é analisado como o fenômeno da alteridade configura-se na linguagem, segundo estudos na área da filosofia da linguagem. Para isso, aborda as principais considerações realizadas por Mikhail Bakhtin e Emmanuel Lévinas. A segunda seção explora as ideias de Lawrence Venuti a fim de se observar a alteridade como o fenômeno que permeia o processo de tradução por ele defendido, na tradução da obra Dancer para Português, com o título O Bailarino (2004). Na terceira seção, procura-se observar como o autor, ao criar as personagens da narrativa, é tomado pelo fenômeno da alteridade e, também, quando constrói o personagem principal da obra como um outro, visto sob o olhar de vários outros narradores. Para isso, são levados em consideração alguns comentários, entrevistas e críticas que foram realizadas em torno da obra Dancer, assim como os estudos de Gayatri Spivak sobre a importância de se traduzir também o aspecto cultural que acompanha a língua da obra original.

Espera-se que o presente trabalho possa gerar uma reflexão sobre a concepção de tradução que prima por uma postura ética em relação ao outro, e que possui um importante papel social, ao manter os diversos elementos que envolvem a língua a ser traduzida, aproximando o leitor de outra cultura e, consequentemente, conduzindo-o à reflexão e à ação sobre a sua própria realidade.

2. A Alteridade Presente na Linguagem

Esta seção expõe algumas definições atribuídas ao fenômeno conhecido como “alteridade”, sob uma perspectiva linguístico-filosófica. Para isto, o estudo realizado sobre alteridade e linguagem apóia-se, principalmente, nas ideias de Lévinas e Bakhtin. Busca-se aqui analisar como esses teóricos, de áreas diferentes, mas afins, abordam a questão da alteridade e, especialmente, como este fenômeno torna-se visível no processo de tradução literária que opta pelo método estrangeirizante.

Iniciando sob uma concepção ampla e genérica, o termo alteridade compreende a figura do outro e expressa o modo como uma pessoa se relaciona com a outra e como essa relação acontece. A Enciclopédia Larousse Cultural define o termo alteridade como o “estado, qualidade daquilo que é outro, distinto (antônimo de Identidade)” (1998, p.220). A mesma enciclopédia

Page 3: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

837

apresenta o significado de alteridade para a filosofia como “... a relação de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o objeto pensado (o não eu)” e, em relação à psicologia, como as “relações com outrem”.

Ainda no âmbito da filosofia, o Dicionário de Filosofia de Abbagnano apresenta o termo Alteridade como: “ser outro, pôr-se ou constituir-se como outro” (2007, p. 35). No E-dicionário de termos literários, Ceia (2015) define o termo em questão, em linhas gerais, como o fato ou estado de ser outro; a diferenciação do sujeito em relação ao outro, o que se opõe à identidade, ao mundo interior e à subjetividade. O autor ainda acrescenta que um dos princípios fundamentais da alteridade é que o homem no seu meio social tem uma relação de interação e dependência com “o outro”. Por esse motivo, o "Eu" na sua forma individual só pode existir através de um contato com “o outro". Esse tema tem aparecido com frequência em estudos pós-coloniais, feministas, desconstrucionistas e psicanalíticos, assim como nota-se a presença, igualmente, no dialogismo de Bakhtin e na filosofia da ética de Lévinas, que constituiu sua teoria ética da alteridade com base realizada em estudos sobre fenomenologia e na bíblia hebraica.

Lévinas evidencia que a ideia de identidade (subjetividade) do outro não é respeitada, isto é, o indivíduo tende à redução do outro ao mesmo. O homem tenta moldar o outro conforme seus padrões e espera que ele se adapte ao seu meio. Lévinas (1980, p.30.) critica a filosofia Ocidental por colocar a ontologia como filosofia primeira. Segundo ele, a ontologia é egocêntrica, porque no decorrer da história só se preocupa com a subjetividade, tratando o “eu” como o centro do Universo.

A nova filosofia proposta por Lévinas considera a ética como filosofia primeira e aborda o conceito de alteridade como o princípio fundamental das relações humanas. Para Lévinas (2009), o outro não é objeto de compreensão nem interlocutor, só se compreende uma pessoa “ao falar-lhe”. Conscientizar-se sobre a existência do outro, deixando-a ser, é já ter aceitado essa existência. Porém, o “ter aceitado” e o “ter considerado” não correspondem a uma compreensão, a um “deixar ser”. “Compreendo o outro, a partir de sua história, do seu meio, de seus hábitos”. (LÉVINAS, 2009, p.28)

A filosofia de Lévinas aponta para uma responsabilidade que pode ser pensada na dimensão prática e ética dos deveres que a tradução, hoje, parece tentar seguir. Segundo Cardozo (2013, p.13) tradicionalmente, os deveres da tradução fundam-se na ideia de um dizer novamente, de dizer em nome do outro. A partir de então, instaurou-se uma responsabilidade que se organiza em volta do dito do outro. Contudo, o perfil da arte do pensamento contemporâneo não admite reduzir o outro apenas à esfera do dito, sem considerar, também, os silêncios que o constituem. Cardozo (2013) acrescenta ainda que, todavia, os esforços nas pesquisas para definir quem é este outro parecem ainda bem discretos, o que intensifica a justificativa central deste trabalho, que é o de promover uma reflexão sobre o papel do outro na tradução, como algo não evidente em sua totalidade apenas pela imagem que dele pode ser feita, como se fosse perfeitamente apreensível nessa redução. O outro é sempre muito mais do que simplesmente aparenta ser. O outro não pode ser compreendido apenas como a certeza de existir como um outro. É necessário um comportamento ético, com a possibilidade de perceber o outro em sua totalidade e na singularidade de sua alteridade factual. Ou seja, o fato de que o outro existe como um outro não garante a sua percepção como tal e nem permite a sua tradução na totalidade. (CARDOZO, 2013, p.15- 16).

Lévinas propõe a responsabilidade para o outro como o princípio ético da relação, porém não se limita apenas a uma forma de respeito, cuidado, solidariedade ou piedade para com um outro. Esse modo de relação com o outro tem também um papel fundante e constitutivo desse outro, possibilitando que o outro tenha o seu próprio espaço como um outro “outro”, pelo fato de sua alteridade ser irredutível.

Ainda dentro dessa perspectiva, conforme Cardozo (2013, p.17), as evidências existem: há um outro, que não é simplesmente um outro eu, a existência deste outro não se define pela

Page 4: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

838

diferença que há entre nós, uma vez que nenhum outro se esgota nos termos da relação com um determinado eu, como em um simples efeito de espelhamento. O outro existe além e aquém de sua diferença em relação a mim. O impacto que essas evidências trouxeram fez a tradução despertar o pensamento sobre a responsabilidade que deve ser imposta na relação com o outro. Percebe-se que a questão se divide, pois para se pensar na questão da responsabilidade que se instaura na relação com o outro, é preciso antes pensar qual é a condição do outro nessa relação. O outro é pensado em suas semelhanças e diferenças em relação a nós, mas também quanto àquilo que nele se diferencia além da relação que tem conosco. Pensar o outro a partir de suas continuidades e descontinuidades implica, também, pensar na possibilidade do corte e da interrupção serem considerados como gestos constitutivos da percepção do outro em sua alteridade.

Outro conceito de Lévinas (1982) relacionado à questão da alteridade é a ideia do infinito, pois envolve a dependência ao outro e remete à noção da constante necessidade que o homem tem em estabelecer uma relação com o outro. Mesmo que o sujeito atinja seus objetivos, ele sempre vai querer buscar outras relações de comunicação com um outro. Considera-se que esse mesmo pensamento de infinitude perpassa o papel da tradução em geral. Lévinas define o conceito de Infinito, como aquele que se estabelece nas relações com outras pessoas, porém sem nunca se realizar completamente. Assim, pode-se dizer que a alteridade nutre o desejo de infinito, particular, de cada ser na sua relação com o outro. Segundo Cardozo (2013, p. 28), Lévinas é contra a concepção de um pensamento que idealiza a relação. Ele defende a infinitude, a descontinuidade e a irredutibilidade do outro como as condições fundamentais de toda a relação. Mostra-se também contrário ao pressuposto que considera a relação como um continuum do eu no outro. O que se impõe, para Lévinas, é uma descontinuidade do outro, um corte necessário para abrir a relação para as estranhezas e as surpresas que vêm da alteridade absoluta do outro. Ainda de acordo com Cardozo (2013, p.33), diante da condição de infinitude do outro, não há como se pensar na tradução senão como recorte. Todo recorte passa a valer o outro. Cabe ao tradutor, então, reconhecer a condição em que opera seus cortes. Traduzir o outro, ao invés de um compromisso mimético com a totalidade e com a fidedignidade--horizonte muito distante da real condição em que a tradução (ou qualquer prática discursiva) tem lugar enquanto prática de relação com o outro, reorienta-se, portanto, como um compromisso com a atenção ao recorte que assina o outro.

Cardoso (2013, p.33) conclui que ler o outro em tradução pressupõe uma responsabilidade de leitura, ao invés de apenas uma expectativa do encontro com um outro eu. Por meio de Lévinas, surge então uma reorientação como uma ética da não-indiferença na leitura do outro em tradução: a não-indiferença à tendência de reduzir o outro a um continuum de nós mesmos; a não-indiferença à condição de recorte e assinatura de toda a leitura; a não-indiferença ao trabalho de escutar, o qual funda toda a tradução. A responsabilidade para com o outro revela-se com o próprio gesto da relação tradutória, um gesto que assina o outro com o nome do outro na relação. Um gesto que transforma o outro, a fim de mantê-lo como a força que ressignifica o eu. (CARDOZO, 2013, p.33)

Toda a obra intelectual de Mikhail Bakhtin também aborda a linguagem em uma dimensão social. O autor vê o sujeito como um indivíduo que se constitui discursivamente, na medida em que interage com vozes sociais que fazem parte de sua realidade semiótica. Para Pucci, “Essas vozes possibilitam o encontro do sujeito com as consciências de outros indivíduos, isto é, diferentes sentidos constituem o discurso do outro e abrem possibilidades para novas construções discursivas”. (2011, p.44).

Para Bakhtin, todas as instâncias que constituem o sujeito, a sua consciência, o seu pensamento, a sua individualidade e responsabilidade são guiadas pelo fenômeno da alteridade. O sujeito para Bakhtin é inteiramente social, e assim nega a posição da consciência como individual e a ideologia como social. Dessa forma, “O indivíduo, enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto autor dos seus pensamentos (...) apresenta-se como um fenômeno puramente sócio ideológico”. (BAKHTIN, 2006, p.58).

Page 5: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

839

A partir destas considerações, percebe-se que a teoria bakhtiniana fundamenta-se no discurso do Outro, porque é para o Outro que o sujeito se refere e também responde, concorda ou discorda, como explica Bakhtin:

Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre tem expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro, e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para seu objeto, mas também para os discursos dos outros sobre ele. (BAKHTIN, 2006, p.300).

De acordo com Pucci (2011), a consciência do “Eu” se realiza e é percebida através da consciência que o outro tem sobre ela. As palavras do outro são impregnadas de valores, de intenções, de um conjunto de ideologias que fazem parte de um grupo social e de uma época. A constituição do discurso do sujeito acontece de forma dialógica, quando ele entra na sequência da interação verbal,quando ele percebe as vozes e faz delas suas próprias palavras. Conforme Pucci afirma, “Em cada palavra ressoam duas vozes, a minha e a do Outro”. (2011, p.45). Bakhtin também se refere à palavra nesta passagem:

Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (1990, p.113)

A relação de alteridade está presente desde o nascimento do ser humano, mas esse encontro com o outro não se estabelece baseado no respeito e na tolerância, os quais são iniciativas do eu, mas é o outro que impõe sua presença irredutível sobre o eu. (PUCCI, 2011, p.48). Pode-se concluir que a partir desta filosofia, a identidade é uma concessão de alteridade. A identidade relaciona-se com a ilusão do domínio e da propriedade da palavra, enquanto toda a palavra é do outro, e a minha palavra, por sua vez, é apenas uma resposta a dele. O sujeito consciente é compreendido como um ser totalmente constituído no social, como se refere Bakhtin:

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (...) e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e tom que servirão a formação original da representação que terei de mim mesmo (...). Assim como o corpo se forma originalmente dentro do seio (do corpo) materno, a consciência do homem desperta envolta na consciência do outro. (BAKHTIN, 2006, p.378)

O ser humano considerado por Bakhtin também se constitui por meio da linguagem num contexto social concreto, e se constitui ao longo da vida numa relação de alteridade. Bakhtin atesta que o homem vive num mundo cercado pelas palavras do outro, desde o processo de assimilação inicial da fala até a assimilação das riquezas culturais humanas. O autor afirma que o sentido não está na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor, mas sim no processo animado da compreensão ativa e responsiva, fruto da interação entre eles. Para Bakhtin, a alteridade se encontra dentro do sujeito, e a linguagem é sempre do outro, fornecida pelo dado exterior e permanece alheia, embora o eu tente torná-la própria. Apoiando-se na teoria de Bakhtin, Pucci afirma: “As palavras de alguém são, na verdade, palavras do outro”. (PUCCI, 2011, p.47).

Page 6: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

840

Para Bakhtin, os conceitos de dialogia e alteridade são muito importantes para a compreensão da linguagem. O autor define dialogismo como sendo o elemento fundador da natureza interdiscursiva da linguagem e o relaciona diretamente ao conceito de alteridade, pois, segundo ele, os indivíduos se constituem e se transformam sempre pela relação com o outro, ou seja, em uma relação de alteridade, em um processo que surge a partir de relações sociais e históricas situadas temporalmente.

Bezerra (2012, p.47) concorda que Bakhtin oferece uma reflexão que, embora trate do diálogo de culturas no campo da literatura, pode ser estendida à tradução como diálogo e interação entre culturas, como pode-se observar nesta passagem:

Existe uma concepção muito vivaz, embora unilateral e por isso falsa, segundo a qual, para melhor se interpretar a cultura do outro, é preciso como que transferir-se para ela e, depois de ter esquecido a sua, olhar para o mundo com os olhos da cultura do outro. É claro que certa compenetração na cultura do outro, a possibilidade de olhar para o mundo com os olhos dela é um elemento indispensável no processo de sua interpretação; entretanto, se a interpretação se esgotasse apenas no momento ela seria uma simples dublagem e não traria consigo nada de novo e enriquecedor. A interpretação criadora não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, à sua cultura e nada esquece. A grande causa para a interpretação é a distância do intérprete - no tempo, no espaço, na cultura - em relação àquilo que pretende interpretar de forma criativa... Nesse encontro dialógico de duas culturas elas não se fundem nem se confundem; cada uma mantém sua unidade e sua integridade aberta, mas se enriquecem mutuamente. (BAKHTIN, 2003, p. 365-6)

Segundo Bezerra, visto sob uma perspectiva bakhtiniana, a tradução é, portanto, uma compenetração dialógica na cultura do outro, na qual a “interpretação criadora não renuncia a si mesma”, mas mantém suas particularidades, sua individualidade como marca da própria cultura, que usa de seus infinitos modos de dizer para recriar o espírito do original, o mais próximo possível, das formas de ser do outro, dando-lhe as cores específicas de sua cultura nacional. (2012, p. 48)

3. Alteridade como Princípio Fundamental da Tradução Estrangeirizante

Pode-se afirmar que a questão do outro na tradução foi introduzida por Schleiermacher, no ensaio “Sobre os diferentes métodos de tradução”. No início dos anos 1990, esse ensaio de Schleiermacher também foi tema das considerações feitas por Venuti. Em 1995, com a publicação do livro The Translator´s Invisibility: A history of translation, Venuti esclarece as diferenças entre “posturas” e “estratégias discursivas”. Para o autor, a “estrangeirização” e a “domesticação” são posturas, enquanto a escrita fluente e a resistente são estratégias discursivas. Seu trabalho obteve destaque no âmbito dos Estudos da Tradução, com a tese sobre a invisibilidade do tradutor. Segundo Venuti, no cenário anglo-americano contemporâneo, o tradutor é tratado como se fosse invisível, isto é, as traduções são lidas como se fossem os textos originais e o nome do tradutor não tem relevância. Além disso, apresentou várias evidências para provar a invisibilidade da tradução, incluindo fatores como a baixa remuneração dos tradutores, entre eles.

De acordo com França (2010, p.19), Venuti reforça sua teoria baseado nas leis de direitos autorais que prevalecem nos Estados Unidos e na Inglaterra:

As leis inglesas e norte-americanas definem a tradução como uma “adaptação” ou “obra derivada” de uma “obra original”, cujos direitos autorais, incluindo o direito exclusivo de “preparar obras derivadas” ou “adaptações”, são investidos no autor. O tradutor é dessa forma subordinado ao autor, que decisivamente controla a publicação da tradução durante

Page 7: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

841

o período de validade dos direitos autorais sobre o texto “original”, atualmente, o tempo de vida do autor mais de 70 anos. (VENUTI, 1995, p.8, apud FRANÇA, 2010, p 18).

França (2010, p.20) relata que Venuti vê as condições de trabalho dos tradutores tão críticas a ponto de interferirem na representação que eles fazem de si mesmos, levando-os a psicologizar as suas relações com o texto estrangeiro como se fosse um processo de identificação com o próprio autor. Venuti aponta a exigência de fluência na tradução como grande responsável tanto pela desvalorização da tradução quanto pelo trabalho do tradutor. O termo “fluência” significa uma escrita livre de peculiaridades linguísticas ou estilísticas que dão a impressão de que o texto traduzido foi originalmente produzido na cultura de chegada, isto é, cria a ilusão de que a tradução não é mesmo uma tradução, e sim o texto original. Esta ilusão está associada com o esforço que o tradutor faz para garantir que a leitura do texto traduzido seja fácil. Para isso, aderem ao uso corrente da linguagem, mantendo a continuidade da sintaxe e fixando um significado preciso. Ainda de acordo com França (2010, p.21), a tradução fluente condiciona a recepção, a crítica e as condições de trabalho dos tradutores, o que resulta em prejuízos que se expandem para além do âmbito da tradução, podendo desdobrar-se em discriminação étnica, confrontos geopolíticos, colonialismo, terrorismo, guerra.

Venuti procura, então, uma forma de salvar a tradução e o tradutor da invisibilidade e sugere uma prática de tradução “resistente”, ou seja, o tradutor deve tentar tornar-se visível e resistir às condições sob as quais a tradução é tratada, teorizada e praticada atualmente, sobretudo nos países de língua inglesa. Segundo Venuti, o tradutor deve dar preferência à tradução que lida com a estranheza do texto estrangeiro, pois só assim é possível uma reflexão sobre as condições, os dialetos domésticos e discursos em que ela é escrita e a situação de recepção em que é lida. (2008, apud FRANÇA, 2010, p.22).

4. A Alteridade na Voz do Autor e do Tradutor de Dancer.

Como corpus de análise deste estudo, foi utilizada a obra Dancer (2003), do autor irlandês Colum McCann e a sua tradução para a língua portuguesa, realizada por Áurea Akemi Arata, sob o título O Bailarino (2004). Esta obra não se trata de uma biografia, mas de uma ficção que recria a história do bailarino Rudolf Nureyev, misturando fatos reais e fictícios de sua tenra infância até 1987. A obra original Dancer (2003) possui 331 páginas e a tradução O Bailarino (2004) é composta de 455 páginas. A obra é dividida em quatro partes, seguindo critérios temporais.

McCann (2003) afirma que preferiu contar a história do bailarino sob a ótica dos “outros”. Para isso, utiliza a narrativa de alguns personagens reais, e de outros que são pura ficção. Nas palavras de McCann, “Escrever sobre ele é também escrever sobre os outros”. Com relação à narrativa, um dos aspectos que mais chama atenção é a forma peculiar que este autor costuma escrever suas obras e o olhar singular que ele dedica a todos os personagens.

Em entrevista concedida sobre a obra Dancer, McCann revela que para o processo de criação dos personagens, primeiramente fez um mergulho na vida do protagonista, por meio de todas as leituras que encontrou sobre Nureyev, como a biografia escrita por Diane Solway:Nureyev. Em 2001, McCann foi para a Rússia e criou os personagens com a finalidade de captar as multiplas percepções que o povo russo tinha em relação a Nureyev.

A este respeito, ressalta-se que, em sua própria trajetória de vida, Mcann afirma muitas vezes ter sentido como é ser um “outro”. Percebe-se que o autor tem um interesse especial por aqueles que não são vistos, como os imigrantes, os exilados, os perseguidos, os que são considerados como “outros”. É considerado pela crítica internacional como um autor “transcultural” e é notável que sua narratologia aborde, geralmente, aspectos éticos, e, entre eles, destaca-se a temática da alteridade.

Page 8: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

842

McCann parece ver a vida de Rudolph Nureyev como uma metáfora em relação à vida da União Soviética. Retrata o período de guerras, o fim da União Soviética, assim como a vida de Nureyev em uma ordem mais ou menos cronológica. Segundo McCann, ele não vê a obra tanto como a história de Nureyev em si, mas como um abraço de muitos mundos diferentes. (2003)

Segundo afirmações suas, queria focar noaspecto internacional que todos nós adquirimos atualmente e, também, questionar a ideia de contar histórias. Para McCann, todas as pessoas possuem histórias para contar, e todas têm o direito de fazê-lo.(2003) McCann supõe que o trabalho de contar histórias é para sondar os pequenos cantos, anônimos da experiência humana que são, por vezes, além do que seriam normalmente classificados como não-ficção ou história. Mas então, segundo ele, espreitando por cima do ombro, há a força inescapável de eventos públicos e de momentos da história,nos quais o escritor quer ainda vasculhar o interior dos cantos escuros, a fim de dar sentido ao quarto que já foi varrido por historiadores, críticos e jornalistas. A história do escritor tem de seguir uma espécie de necessidade interior imprudente, a fim de guiá-lo em uma viagem para uma área não confiável ou talvez anteriormente não documentada da experiência humana.

Como inspiração para esta história, McCann conta que há alguns anos atrás, ouviu uma história de um conhecido seu que, aos sete anos de idade, vivia em Ballymun, no início de 1970. Ele contou a McCann que seu pai costumava vir para casa quase todas as noites embriagado e que batia em sua família. Mas houve uma noite em queo pai chegou em casa sóbrioe carregando um aparelho de televisão. Toda a família reuniu-se feliz em torno da novidade. No início, eles não conseguiam qualquer recepção na TV, havia apenas neve, mas naquela noite , quando o menino carregava a TV ao redor da sala, a primeira imagem finalmente apareceu, e era a imagem de Rudolf Nureyev a dançar em seus braços, literalmente. O amigo de McCann, que tinha mais ou menos sete anos, apaixonou-se por Rudi ou, pelo menos, pela ideia que Rudi passava. Tanto que, trinta anos depois, vivendo agora no Brooklyn, ele ainda é obcecado por Nureyev. McCann percebeu que esta lembrança do amigo era uma imagem extraordinária e começou a se perguntar o que, em nosso mundo, permite que um dançarino russo penetre na consciência de um jovem operário deDublin. A história parecia refletir como, simultaneamente, o nosso mundo se tornou grande e pequeno.

Segundo o próprio McCann, ele percebeu que, por estar vivendo em Nova York, longe de Dublin, significava que ele poderia conectar-se e disconectar-se dessa história particular que, por sinal, serviu de inspiração para o romance. E, da mesma forma, talvez ele pudesse ligar e desligar-se de todas as outras histórias ou boatos ou fatos também. No final, ele afirma que queria mesmo era escrever um romance que pudesse tentar atravessar todos os tipos de fronteiras internacionais que se cruzam, talvez, com algumas vidas esquecidas.

Em relação ao seu processo de escrita, McCann (2003) ressalta que, primeiramente, foi levado às biografias de Nureyev, como a escrita por Diane Solway Nureyev: his life (1998), o que imediatamente o encantou com a vida do dançarino, a vida, o charme dele, a imprudência, a beleza, a ruína. Ficou impressionado com o fato de que a primeira dança pública de Nureyev (com a idade de seis anos) foi em um hospital, para os soldados da frente russa. Este era um fato, em grande parte, encoberto na maioria das biografias, o que instigou McCann a querer saber mais. Assim, a partir daquele momento, decidiu tentar escrever sobre o bailarino russo, ou melhor, escrever sobre ele, ao escrever sobre os outros. O problema era que ele nunca tinha ido para a Rússia e não sabia nada sobre dança, mas como o próprio McCann afirma, um autor deve escrever sobre aquilo que ele quer vir aconhecer, e não somente sobre o que já sabe.

Quando indagado sobre a quantidade e a natureza da investigação envolvida, e em como conseguiu juntar todos estes fatos para escrever a obra de ficção, McCann (2003) revela que, conscientemente, evitou o contato com quem conhecia bem Nureyev. Isso permitiu que a sua imaginação ficasse aberta para ir onde ele quisesse. E então começou a ler, como ele mesmo se refere, "fora da caixa". Ele conta que estaria perdido sem as bibliotecas, em particular, a Biblioteca Pública de Nova York , na 42nd Street que, segundo ele, é uma das maiores do mundo. Lá, era

Page 9: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

843

capaz de encontrar folhetos do Exército Vermelho de 1941, dicionários de dança, biografias, fotografias, filmes, slides, representações do mundo gay na década de 1970, artigos, citações da celebridade, até mesmo boletins meteorológicos de partes do sul da União Soviética, em 1983, associados ao nome de Nureyev.

McCann foi para a Rússia durante o verão de 2001. Lá, ele não fez o tipo de pesquisa tradicional. Em vez disso,andou muito e conversou com os que poderiam ser chamados de pessoas "comuns". É claro que as pessoas comuns são sempre o mais extraordinário - eles vivem fora dos limites da história aceita. McCann(2003) revela que secoloca em situações estranhas, a fim de tentar compreender uma história e uma cultura particular. Saiu de cafés em St. Petersburg, sentou-se por horas a fio nas escadarias de prédios de apartamentos, frequentou os lugares de banhos a vapor públicos, sentou-se no terreno de hospitais militares, andou pelos cemitérios. Em Ufa, cidade natal de Nureyev, surpreendeu-se porque poucas pessoas o conheciam. Ele era como uma espécie de rumor. Uma noite, em São Petersburgo, acabou bebendo com chefes da máfia local. Todas essas experiências ajudaram-no a formar um mosaico através do qual ele tentou entender tanto a Rússia contemporânea como a antiga. A mesma coisa aconteceu com o ballet. Ele confessa que nunca tinha ido a um ballet antes de começar o livro. Então, começou a frequentar as peças de ballet em Nova York, primeiramente, depois em São Petersburgo e, de repente, ele estava cativado. McCann (2003) relata que assistiu performances, aulas, conversou com os dançarinos e ficou impressionado com a graça e beleza e, também, com a violência de tudo ao mesmo tempo.

Segundo McCann (2003), pareceu-lhe que, após escrever o livro, a vida de Rudolph Nureyev poderia ser tomada e interpretada como uma metáfora da vida da União Soviética. Poderia ser dito que Nureyev viveu da mesma forma que a vida de seu país transcorrera, porém com antecedência, até a desintegração física do corpo. Em seguida, ambos seguiram o curioso curso de"ressurreição", tanto o país, quanto a sua reputação, os quais encontram-se agora reabilitados na antiga União Soviética.

No início do processo de escrever o romance, o autor irlandês (2003) admite que queria contar a história do ponto de vista de centenas de personagens diferentes, o que lhe parece agora uma loucura, pois cada um pode contar uma história diferente sem nunca repeti-la. No final, ele não poderia sustentar isso. Começoua se sentir como se fosse apenas um exercício literário, e, assim, acabou perdendo alguns dos personagens que tinha criado. Ele queria que Yulia, a filha do professor de dança, voltasse, por exemplo. Ele confessa que sentiu a falta dela. Mas McCann admite que perdeu essa voz. No final, ela termina o romance, e isso foi uma estranha forma de recolocá-la. De certa forma, ele conta que se sentiu como um ventríloquo: essas vozes, imaginadas ou não, tinham o dever de serem ouvidas. McCann revela que estava aprendendo todos os tipos de coisas sob ângulos diferentes. Segundo ele (2003), queria ver o que pode acontecer a uma história, quese torna um coro, mesmo que dissonante, onde todo mundo se levanta e a canta em vozes diferentes. Parecia uma maneira interessante para contar uma vida a grande e a pequenos momentos. O autor irlandês acrescenta que tanto o sapateiro, quanto o traficante, o soldado ou aenfermeira poderiam contar seus lados da história, assim como Warhol e Fonteyn e até Jimi Hendrix poderiam ser incluídos também. McCann (2003) afirma que acabou por abordá-los de uma forma mais ou menos cronológica, por isso misturados a uma certa quantidade de experimentação, com métodos bastante tradicionais. Argumenta ainda que a principal vantagem de ter tantos narradores diferentes é que permite colocar a história sob um prisma - a luz que brilha através dela dará diferentes feixes cada vez que você agitá-la, desligá-la ou distorcê-la. E isso pareceu-lhe particularmente apropriado para uma história que traz reflexões sobre uma estrela, uma celebridade internacional, nas vidas das pessoas comuns.

Para McCann (2003),em alguns aspectos, o romance é uma história progressiva de dança. Torna-se uma dança, tanto em termos da forma como a linguagem é estruturada, como também a forma como os narradores se tornam o centro das atenções por um tempo para que, em seguida, outros Narradores e dançarinos apareçam. Ele afirma que queria ser bastante fiel à Nureyev, por isso a linha que a história segue é, em grande parte, correspondente à vida do bailarino russo.

Page 10: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

844

Considerando todas as explanações acerca daobra, algumas feitas do próprio autor, percebe-se que a obra Dancer revela o exercício do fenômeno da alteridade, tanto pela narrativa, feita por vários narradores, quanto pela linguagem utilizada pelo autor. O exercício de retratar o outro sob ângulos e pontos de vista diferentes, sem nunca conseguir fazê-lo completamente é o ambiente adequado para que o fenômeno da alteridade se manifeste em sua mais pura forma, deixando ao outro o direito de apenas “ser” o que é na percepção de pessoas comuns. O autor quer explorar um novo jeito de contar histórias, o qual, segundo ele, sempre muda de acordo com a visão de quem a conta.

Com relação à tradução para o Português,O Bailarino (2004), nota-se que a tradutora opta em colocar alguns termos explicitados em notas, são eles:

Ushinkis- chapéu com abas, que podem ser presas em cima da cabeça, ou embaixo do queixo cobrindo as orelhas, quando frio. (p.17) Degtiarevs- tipo de armas soviéticas usadas na época. (p.20) Portyanka- Na verdade, são faixas de tecido enroladas nas pernas pelos pobres e soldados para aquecê-las, como se fosse polainas. (p20) Gulags- campos de trabalho forçados mantidos pelo governo soviético. (p.21) NKVD- Iniciais do Serviço Soviético de Informações, precursor da KGB. (p.22) Chandelles- volta de 180º. Para o avião ganhar altura (p.23) Luftwaffe- Força aérea da Alemanha. (p.23) Pavlik- Jovem herói comunista que entregou os próprios pais. (p.24) Babuchkas- vovozinhas, jeito carinhoso de denominar as senhoras de idade. (p.26) Markokva- é cenoura em russo. (p. 36) Politruk- doutrinador ou instrutor político. (p.42) Pilotka- quepe militar. (p. 44) Papirosy- cigarros. (p. 46) Kefir- coalhada bem rala, quase um leite fermentado. (p.47) Banya- banho público. (p.48) Komsomol- União da Juventude Comunista (p.61) Mariinski- Teatro Mariinski, em Leningrado, mais conhecido como Kirov. (p.65) Kasha- cereal, geralmente, de trigo sarraceno cozido como arroz. (p.67) Kvass- bebida fermentada feita de fermento de pão, mel e água. (p.71) Pioneiros- espécie de grupo de escoteiros com cunho político, no qual os meninos praticavam vários tipos de atividades. (p.80) Samogon- bebida alcoólica bem forte, bebida caseira feita geralmente com batata ou beterraba. (p.85) Koumiss- leite de égua fermentado. (p.91) Gopak- passo de dança folclórica russa, no qual bailarino fica de cócoras e flexiona alternadamente as pernas para frente com bastante rapidez. (p.92) Yiablotshko- passo e dança russa. O bailarino, de cócoras, executa varredura circular no chão com as pernas, alternando-as com rapidez. (p.92) Nevski Prospekt- uma das principais e mais movimentadas ruas de Leningrado. (p.107) Dia dos Finados- o autor mescla os costumes do Dia dos Mortos, que é celebrado dessa maneira no México. No Chile, o dia dos Finados é comemorado da mesma forma que no Brasil. (p.154) Murraya- jasmim-laranja. (p.155) Slippers- em inglês britânico, slippers são pantufas, chinelos ou sapatilhas, mas não de balé.(p. 170) Brylcreem- nome comercial de uma brilhantina. Borscht- sopa feita a base de beterraba, que pode ser consumida fria ou quente, dependendo da estação.(p.186) *Obrigações do Governo- por falta de dinheiro, o assalariado recebia estas “obrigações”, como pagamento de salário. Eram repassadas como se fossem dinheiro, mas eram sujeitas a atrasos. (p.188) Elephant and Castle- famoso e tradicional pub inglês. (p.247)

Page 11: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

845

Scones- bolinhos arredondados, às vezes recheados com frutas secas. (p.249) Matriochkas- conjunto de bonecas russas ocas, de madeira pintada, que são alojadas uma dentro da outra. (p.265) Mousseline d´écrevisse (musse salgada) de lagostim. (p.270) Poussin rôti aux herbes – frango de leite assado com ervas. (p.270) Bourrées- vários passos diferentes; são passos de transição, preparatórios para os saltos. (p.277) Estige- na mitologia grega, trata-se do rio subterrâneo na entrada do Tártaro, onde os mortos encontravam o barqueiro Caronte, que os conduziria até o outro lado, mediante o pagamento de uma moeda. (p.285) Lucky Strike- é marca de cigarro, cujo nome significa golpes de sorte. (p.313) Quaaludes- medicamento em comprimido, tipo de metaqualona, substância sedativa e hipnótica, não barbitúrica. (p.314) Piñata- usada em festas, é um tipo de caixa fechada decorada. Contém doces e brinquedos. Fica pendurada e em dado momento é partida a golpes, derramando o conteúdo sobre as pessoas. (p.326) Tamales- prato típico mexicano. (p.327) Pirojki- prato da culinária russa. Trata-se de uma espécie de sonho salgado que pode ter diversos recheios, como carne, batata, repolho, etc. (p.328) All in the Family- famoso seriado da TV Americana. (p.366) Be happy, go Lucky- famoso seriado da TV americana. (p.393)

Effleurage- técnica de massagem também chamada de deslizamento. Consiste em movimento suave com pressão crescente na direção do fluxo venoso e linfático. (p.411)

McCann, no entanto,não utiliza notas para explicar os termos que estão escritos em russo, nem para algumas expressões, relacionadas ao ballet, escritas em francês. A tradução para a língua portuguesa, no entanto, apresenta notas para explicitar, principalmente, os termos que estão em língua russa. De acordo com a análise das notas da tradução, constata-se que a maior parte dos termos refere-se a elementos que são considerados bastante tradicionais e que, muitas vezes, servem como identificadores da cultura russa, como nomes de comidas, bebidas, lugares, siglas, nomes próprios e objetos comuns. Quanto a representação cultural a ser mantida na tradução, Spivak salienta que o tradutor, ao traduzir o movimento de vaivém incessante da tradução naquilo que é lido, deve ter um conhecimento muito íntimo das regras de representação e daquelas narrativas permitidas que compõem a substância de uma certa cultura, e deve também tornar-se responsável e prestar contas perante a escrita/tradução do pressuposto original. (2005, p.43).

Em relação às escolhas feitas pelo tradutor, Britto acrescenta que as opções feitas pelo tradutor entre as duas vertentes: domesticação- estrangeirização dependem das circunstâncias e das obras a serem traduzidas, estas as quais são geralmente produtos de culturas que ocupam uma posição relativamente central na civilização ocidental, enquanto o leitor brasileiro, por exemplo, está situado na periferia. (2010, p.137). Brito ainda cita, como exemplo, o fato de que os leitores ingleses, franceses ou alemães conhecem pouco sobre a cultura brasileira, porém o leitor brasileiro, pelo simples fato de ser um leitor, já demonstra fazer parte de uma elite nacional, em termos de nível de instrução e, portanto, possui umconhecimento razoável sobre as culturas centrais. De modo geral, o tradutor optará pela tradução domesticadora se ele julgar que a obra se destina a um leitor do qual pode exigir pouco, ou seja, um leitor que, certamente, não reconhecerá os elementos da cultura estrangeira e que não fará esforço para obter maiores informações a respeito deles. Por outro lado, o tradutor que segue o caminho da estrangeirização pressupõe que seu leitor terá prazer em se esforçar para compreender a cultura do outro e, provavelmente, realizará as leituras de introduções e notas que julgar necessárias para seu entendimento. (2010, p137)

Supõe-se que, talvez por este motivo, o autor não tenha previsto, para os leitores de língua inglesa, problemas de estranheza para tais termos. Opostamente ao que ocorre na tradução da

Page 12: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

846

obra para a língua portuguesa, na qual a tradutora preocupou-se em definir alguns termos estrangeirizados, principalmente os russos.

Considerações Finais

Este trabalho procurou evidências nas teorias linguístico-filosóficas para demonstrar que a tradução estrangeirizante pode ser um dos meios mais radicais de se conhecer a alteridade na prática, pois entende-se que, sempre depois da tentativa frustrada de fusão entre o eu e o outro, a alteridade mostra-se como o resultado de tudo o que foi subtraído dessa união, como a sobra que não pertence ao Eu, que é, portanto, do outro. Desta mesma forma, a tradução pode ser considerada como uma vã tentativa de fusão do eu na identidade alheia, pois para aproximar-se do texto do outro é preciso antes entender o mundo em que ele está inserido. O “eu” sabe que, por mais que se esforce, nunca será o outro. Contudo, não tem como de ir ao encontro do estranho senão abandonando a subjetividade e aventurando-se na essência e na identidade daquele que se apresenta como diferente do “eu”.

Além disso, o tradutor que trata de uma obra de ficção deve levar em consideração o fato de que não opera com significados, mas com sentidos, tal como ocorre com a própria literatura enquanto vista como arte. A tradução como arte é produto de uma subjetividade especial que, mesmo traduzindo obra alheia, procura dar vida própria na língua de chegada, fazendo do original uma obra independente numa outra língua, numa outra cultura, dando-lhe uma nova existência histórica. Segundo Bezerra, a tradução trata-se da produção de uma dessemelhança do semelhante, pois, ainda que a obra seja a mesma, com o título original e o nome original do seu autor, não é uma cópia do original, porque a tradução faz dele uma obra em movimento, sujeita a diferentes interpretações, convivendo em isonomia com obras escritas na língua de chegada e sendo lida à luz de outros valores culturais, de outra psicologia de recepção, assim como das tradições da literatura dessa outra língua. A dessemelhança do semelhante permite à obra traduzida manter seus valores essenciais, semânticos, estéticos, pautada pelo espírito do original graças ao engenho criador do tradutor. (2012, p.51)

Conforme as afirmações de Bezerra, a tradução é um diálogo entre culturas, uma interação do “meu” com o “do outro”, uma troca solidária na qual a língua de chegada, transformada em discurso pelo tradutor, empresta-se à obra do outro para torná-la realidade estética num contexto estranho. Primeiramente, ela pertence à arte da palavra comum ao sistema literário da língua de partida, depois à arte da palavra comum ao sistema literário da língua de chegada. A partir daí, a obra traduzida ganha vida própria e autonomia em relação ao sistema que a gerou. Passa a integrar o sistema da língua da tradução, e, por meio desse, alcança o sistema da literatura universal. A arte de traduzir possibilita a uma obra transcender seu espaço, seu tempo e sua cultura e universalizar-se na língua do outro, transcendendo seu espaço e seu tempo. (2012, p.52)

Associa-se a ideia de alteridade, presente no pensamento de Lévinas, à prática da tradução estrangeirizante, uma vez que estase fundamenta no respeito às estranhezas que demandam do outro. Ao que se refere aos estudos da Tradução, constatou-se que os pontos de vista de Schleiermacher e de Venuti delineiam a mesma imagem do verdadeiro tradutor como sendo aquele que, por meio da apreciação da língua e através de um profundo conhecimento da vida histórico-cultural de um povo, apresenta de forma mais precisa possível algumas obras e seus autores. Ou seja, tomam as estranhezas e as diferenças do outro como o ponto de partida para a tradução. Pôde-se igualmente perceber as principais convergências entre os trabalhos desses teóricos, pelo modo como defendem um método de tradução que propicia a aproximação multilateral com outra cultura, através de uma prática que dá ênfase à estranheza do texto traduzido, apresentando-o como um texto estrangeiro e não como uma obra produzida originalmente, segundo eles, em alemão ou em língua inglesa.

Page 13: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

847

Assim como Lévinas defende a ética como a filosofia primeira, Venuti também propõe a sistematização do processo tradutório por meio de uma abordagem ética. Percebe-se que aalteridade presente nesta metodologia visa, entre outras coisas, a realização de um trabalho que respeita as diferenças linguístico-culturais do texto de partida e que acredita no reconhecimento da visibilidade do tradutor como um caminho para que isto aconteça. De acordo com Spivak, nenhuma fala é fala enquanto não é ouvida. É esse ato de ouvir-para-responder que se pode chamar de o imperativo para traduzir. A tradução fundadora entre as pessoas é um ouvir atentamente, com afeto e paciência, a partir da normalidade do outro, o suficiente para perceber que o outro, silenciosamente, já fez esse esforço. Isso revela a importância irredutível do idioma, que uma língua padrão, por mais nativa que seja não pode anular. (2005, p.58)

Neste contexto, com base em todas as considerações e análises realizadas sobre a obra, pode-se afirmar que o fenômeno da alteridade revela-se na escrita de McCann, pela maneira que ele se coloca na voz e no olhar de cada narrador que conta a história de uma pessoa, a qual, por sua vez, era considerada como um outro na sociedade Ocidental do final do século XX. Em relação a sua tradução para a língua portuguesa, a obra O Bailarino mantém os termos estrangeiros, conforme a obra original, o que aproxima, assim, o leitor do autor e da cultura do outro, e ora parece haver uma certa domesticação pelo uso de notas para a definição dos termos estrangeiros, principalmente os de origem russa, como uma forma de facilitar o acesso do leitor brasileiro à compreensão de tais termos. Contudo, o tradutor que age dessa forma precisa ter cautela e atenção, pois esta fluidez que torna um texto traduzido “transparente” pode, muitas vezes, esconder algumas diferenças linguístico-culturais existentes entre os textos e os seus respectivos leitores. Venuti (2002, p.17) comenta que “as traduções (...) inevitavelmente, realizam um trabalho de domesticação e, assim, essa domesticação poderia levar ao que ele chama de destruição da letra. E foi a partir dessa ideia, que as considerações sobre a ética na tradução começaram a ser desenvolvidas. Venuti, defendendo a ética no processo tradutório, afirma que “as traduções devem ser escritas, lidas e avaliadas com maior respeito em relação às diferenças lingüísticas e culturais” (2002, p.20). O autor advoga a favor de que em uma tradução essas diferenças devem ser negociadas. Ou seja, o fenômeno da alteridade parece ser o norteador dessas negociações, por ter em vista um olhar de respeito sobre o outro e sobre suas diferenças e excentricidades culturais.

Com base nas considerações realizadas, espera-se que este trabalho tenha contribuído, ao propor reflexões sobre a presença do fenômeno da alteridade na linguagem em geral e, especialmente, na área dos estudos de tradução literária. Acredita-se que os pensamentos dos teóricos analisados neste trabalho aproximam-se pelo fato de defenderem a posição de que é a partir da palavra do outro que as relações se constituem e se enriquecem. A alteridade na linguagem e no discurso mostra-se como elemento intrínseco, constante e fundamental, tanto no discurso interpessoal, como também na tradução literária estrangeirizante. Este tipo de tradução assume a ética de responsabilidade pelo outro, no momento em que traz para a cultura receptora as diferenças deste universo estrangeiro, além de defendera atuação de um tradutor cada vez mais livre, que age como mediador cultural e que agrega elementos novos à cultura receptora.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990.

BAKHTIN, Mikhail.Estética da Criação Verbal. 4. Ed. São Paulo: Martins fontes, 2003.

Page 14: A PRESENÇA DA ALTERIDADE NA LINGUAGEM E NA TRADUÇÃO …linguagem.unisul.br/.../PDF/Valdirene-Fontanella.pdf · enriquecer a cultura receptora. Considerando a estreita relação

848

BEZERRA, Paulo. A Tradução como Criação. Estudos Avançados26 (76), 2012. Disponível em:Visto em: 05/05/2016.

BRITTO, Paulo Henriques. O Tradutor como mediador cultural. PUC- Rio de Janeiro. 2010 SynergiesBrésilno.especial2. (pp.135-141). Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142012000300004&lng=pt&tlng=pt. Visto em: 12/03/2016.

CARDOZO, Maurício Mendonça. Escuta e responsabilidade na relação com o outro. Programa de Pós- Graduação. Universidade Federal de Santa Catarina. Outra travessia. 15. 2013 (P.13-35)

Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/30875. Acessado em: 13/04/2016.

CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários.Disponível em: http://www.edtl.com.pt/business-directory/6596/alteridade/Acessado em: 02/03/2015.

FRANÇA, Letícia Della Giacoma de. A Dimensão Político-Ideológica da Defesa da Alteridade Empreendida por Scheleirmacher e Venuti. Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2010. Disponível em:

http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/37133/R%20%20D%20%20LETICIA%20DELLA%20GIACOMA%20DE%20FRANCA.pdf?sequence=1 Acessado em 15/10/2015.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós. Ensaios sobre alteridade. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005.

LÈVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.

LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1982.

LÉVINAS, Emmanuel. O Humanismo do Outro Homem. 3ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.

McCANN, Colum. NYSWriters’ Institute. Assembly Hall, Campus Center 20:00 Reading | Recital Hall, Centro de Artes. 2003. Disponível em: http://www.albany.edu/writers-inst/webpages4/archives/mccann_colum.html. Acessado em: 12/10/2015.

McCANN, Colum. Dancer. A Novel. Metropolitan Books. Henry Holt and Company. New York: 2003.

McCANN, Colum.O Bailarino. Tradução de Áurea Arata. São Paulo: A Girafa Editora,2004.

PUCCI, Renata. Questões de Alteridade e Identidade. Impulso, Piracicaba. Jan-jun. 2011. Disponívelem:www.metodista.br/revistas/revistasunimep/index.php/impulso/article/viewFile/517/548 Acessado em: 02/03/2016

PIVAK, Gayatry. Tradução como Cultura. Revista Ilha do Desterro. Florianópolis nº 48 (p.041-064) jan./jun. 2005.

VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility. Londres e Nova York: Routledge, 1995 (2008).

VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Trad. Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda e Valéria Biondo. Bauru: EDUSC, 2002.