1.ª parte

«Apião a Epímaco, seu pai e senhor. Saudações. Desejo, em primeiro lugar, que estejas de saúde, que tudo te corra bem e que vivas feliz na companhia da minha irmã, da sua filha e do meu irmão. Estou grato ao Senhor Serapis porque passei por um grave risco no mar e consegui salvar-me. Ao chegar a Miceno recebi, da parte de César, três peças de ouro como recompensa de viagem. As coisas estão a correr bem. Peço-te, meu pai e senhor, que me escrevas, ao menos umas linhas, para que possa assegurar-me que, tanto tu como os meus irmãos, estão bem de saúde. Ao mesmo tempo poderei agradecer-te de novo a boa educação que me deste e com a qual, se os deuses o permitirem, espero fazer rápidos progressos. Saudações a Capitão, ao meu irmão e à minha irmã, a Serenilha e a todos os meus amigos. Enviei por Eutemón um pequeno retrato meu. O meu nome militar é Antonio Máximo. O meu maior desejo é que estejas bem».

Esta é uma carta do século II depois de Cristo, escrita em grego e conservada num papiro.

É a carta de um jovem soldado grego, alistado na guarda imperial romana, dirigida de Niceno, um porto junto a Nápoles, ao seu pai.

A carta é um género literário antiquíssimo. As mais antigas que conhecemos datam do ano 2000 antes de Cristo. São de todos os tipos, não faltando as que têm um conteúdo especificamente religioso.

Dos vinte e sete livros do Novo Testamento, vinte e um chegaram-nos sob a forma de «carta». Uma parte significativa dessas cartas -catorze ao todo - foram atribuídas, desde os tempos antigos, pela tradição cristã, ao apostolo São Paulo.

Ao abrir-se a Bíblia no índice podem ir-se assinalando estas catorze cartas, uma por uma, desde a carta aos Romanos até à carta aos Hebreus. É bom esforçarmo-nos para as memorizar, pois estarão continuamente a ser mencionadas. Para já, era importante prestar atenção ao seguinte:

- Algumas destas «cartas», como por exemplo, Hebreus e talvez Efésios, entre outras, quase que de carta só têm o título e a aparência externa. São, na realidade, outra coisa, pertencem a outro género literário.

- Embora a tradição cristã tenha posto todas estas «cartas» à sombra de São Paulo, é quase certo que nem todas elas foram escritas pelo apóstolo. Hoje, em verdade, quase ninguém atribui a São Paulo a paternidade da carta aos Hebreus; igualmente existem sérias dúvidas sobre aquelas que, mais à frente, vamos chamar cartas da segunda época paulina: Colossenses, Efésios, 1.ª e 2.ª a Timóteo, Tito e, talvez, a 2.ª carta aos Tessalonicenses.

Se sentes curiosidade, e se dispões de tempo, podes ler, com intenção de comparar, a carta aos Gálatas e a carta aos Efésios. Notar-se-ão as diferenças de conteúdo, de estilo, de vocabulário, de tom, etc… Não será que tenham sido escritas por um autor diferente e em épocas também diferentes?

- Em qualquer dos casos, todas elas, incluindo Hebreus, embora esta menos, podem ser colocadas na órbita de São Paulo, quer ele as tenha escrito directamente, quer tenham sido obra de discípulos seus, alguns anos depois da sua morte.

Não pretendemos resolver, neste momento e aqui, esta questão. Apenas nos limitamos a estabelecer dois grupos no epistolário paulino:

- Cartas da primeira época paulina: 1 Tes, Gal, 1-2 Cor, Rom, Fil e Flm. É habitual chamarem-se as cartas «Protopaulinas» .

- Cartas da segunda época paulina: Col, Ef, 1-2 Tim, Tit e talvez 2 Tes. «Deuteropaulinas» é a designação que começa a atribuir-se a estas cartas.

Como pode ver-se, prescindimos, nesta parte, da carta aos Hebreus, uma vez que a relação com Paulo e a seu círculo de influência, não sendo nulas, são, a todos as títulos, muito inferiores às outras treze cartas que formam a «corpus paulino» propriamente dito. Para sublinhar a coesão interna de toda a obra paulina, e não quebrar a fio da exposição, é necessário ler as duas partes dedicadas à literatura paulina como se fossem uma só.

Dito isto, iniciamos agora a leitura comentada das cartas paulinas que têm a particularidade de ser - ao menos varias delas - os primeiros escritos, cronologicamente falando, do Novo Testamento. É bom saber, antes de mais nada, que vamos entrar em contacto com um génio.

Génio do pensamento, sem dúvida, mas também de certo modo, génio da literatura. Nele se encontram as análises mais subtis e as sínteses mais fulgurantes. Pertence à raça dos grandes, dos que enobrecem tudo quanto tocam.

Paulo é, em todos os sentidos, uma das figuras mais ricas e fascinantes de todo a Novo Testamento. Após vinte séculos, as suas cartas continuam a ser apaixonantes e constituem a correspondência mais célebre de todos as tempos.

Não pensemos em Paulo como um escritor de laboratório. Seria ele mesmo o primeiro a estranhar que as suas cartas fossem lidas como quem estuda as tese de um teólogo que, no silêncio do seu gabinete, vai, até aos mínimos pormenores e palavras, burilando com paciência as suas conclusões.

Paulo é, antes de mais, um missionário, um pregador do evangelho: Ai de mim se não anunciar o evangelho! (l Cor 9, 16).

Se, ao escrever, se esforça por encontrar a palavra mais oportuna, por fazer vibrar aqueles a quem se dirige, fá-lo para comunicar com mais eficácia a mensagem da salvação.

Não procurava escrever uma obra literária quando escrevia ou ditava as suas cartas. É possível que nem pensasse que poderiam ser lidas fora do círculo mais ou menos restrito dos seus destinatários imediatos. Se, apesar de tudo, as suas cartas constituem um acontecimento literário de primeira grandeza, como a reconhecem os críticos literários de todos as tempos, isto deve-se ao privilégio do génio que era.

Abordaremos a leitura destas cartas, não com a ordem que têm na Bíblia (que é uma ordem artificial), mas com a ordem cronológica mais provável da sua redacção.

É necessário, no entanto, conhecer algo mais sobre São Paulo e a sua trajectória de escritor de cartas.

Quem é Paulo?Ler Fil 3, 4-6

Gal 1, 11-25 Gal 2, 1-10

- Um judeu de raça e de religião, pela sua origem. Juntamente com toda a sua família, pertencia ao partido dos fariseus e, muito provavelmente, no momento do seu nascimento, recebeu o duplo nome (um hebreu e outro greco-latino) de SAULO PAULO (ver Act 13,9; 23, 6-8).

- Um cidadão romano pelo lugar do seu nascimento: Tarso de Cilícia, cidade helénica de primeira grandeza, situada na parte sudeste da actual Turquia (ver Act 21,3-39; 22, 25-29).

- Um incondicional discípulo da cultura grega e, pela educação que recebeu, um excelente conhecedor da Bíblia e das tradições judaicas (ver Act 22,3).

- A sua passagem de encarniçado perseguidor de cristãos a divulgador apaixonado do cristianismo está acima de toda a dúvida (Gal 1, 13-16,23; 1 Cor 15, 9-10; 1 Tim 12-14; Act 8, 3; 9, 1-22). Já não é tão claro que se deva entender literalmente o relato que o Livro dos Actos nos oferece, em três ocasiões diferentes, da chamada conversão de São Paulo (Act9, 1-22; 22, 6-12; 26, 12-18). É possível que o autor do livro dos Actos não pretenda fazer história, como tal, apresentando um acontecimento não apenas importante e real, mas sobrenatural, da única maneira possível, ou seja, através de um género literário próprio, em que a imaginação e a criatividade do autor tentam descrever e visualizar algo realmente indescritível.

- A partir deste momento, Paulo sempre nos será apresentado como profundamente enamorado de Cristo e totalmente comprometido com as comunidades que evangeliza (Gal 2, 19-20; 2 Cor 3, 1-13; Fil 1, 18-26).

Ler Flm 1-252 Cor 10, 1-11

2.ª parte

O quêe como escrevePAULO?

Ler: Flm 1-25

Paulo escreve cartas. Ele é o criador da carta cristã e, através dela, o primeiro educador cristão à distância. Deve dizer-se, além disso, que, para uma mensagem como a cristã «que deve ser proclamada sem alardes de humana eloquência ou sabedoria» (I Cor 1,17), nenhum outro género literário é mais apropriado do que este -simples, familiar e sem pretensões - das cartas.

São, no entanto, cartas especiais, semelhantes e diferentes das cartas correntes da época. São muito mais extensas que as cartas conservadas em papiros, ou que as cartas de Cícero, Plínio o Jovem, ou Séneca.

São cartas que têm, geralmente, um ar coloquial e privado. Não se lhes podem atribuir especiais pretensões literárias, mas, de facto, ultrapassam o âmbito do meramente privado ou pessoal; com frequência se transformam em reflexões, ensaios ou discursos teológicos. Servem para continuar, à distância, a actividade evangelizadora do apóstolo.

Os aspectos pessoais, funcionais, bem como a causa do evangelho, constituem nelas um todo. Pelo seu conteúdo e, também, pela sua forma, com frequência bastante elevada, estão a meio caminho entre a carta privada e a carta estritamente literária. Um exemplo de que no Novo Testamento não existem cartas privadas, propriamente ditas, é o caso da carta a Filémon.

Paulo escreve as suas cartas, quase sempre, ao sabor das circunstâncias. A primeira é a que escreve aos Tessalonicenses e surgiu como uma solução de emergência, face aos problemas que esta comunidade vivia e a impossibilidade de Paulo poder deslocar-se, pessoalmente, de Coríntio a Tessalónica.

Algo de semelhante se passa com as restantes. Não procuremos, por isso, exposições sistemáticas nas cartas. Talvez se possam considerar excepção a carta aos Romanos, na primeira época, e a carta aos Efésios, na segunda

Igualmente não devemos procurar nas cartas requintes literários. No fundo, Paulo desconfia da «sabedoria» humana e coloca a sua força de persuasão no poder da palavra de Deus, confirmada pelos sinais do Espírito ( I Tes 1, 5; I Cor 2, 4-5).

Paulo escreve sem preocupações estilísticas. Mas, como se dizia anteriormente, ele é um génio que torna grande tudo quanto toca. O conjunto das suas cartas constituem um acontecimento literário de primeira grandeza e a sua arte, como escritor, é alimentada sobretudo pelo poderoso ideal religioso que ele respira.

A quem escreve PAULO ?Ler 2 Cor 10, 1-11

Naturalmente que cada carta nasceu em circunstâncias concretas distintas. Distintos são também os problemas que se reflectem em cada uma delas. Uma leitura inteligente deverá ter em conta, em cada caso, esta diversidade de situações. Há, todavia, alguns dados que podem ser comuns:

Paulo escreve, quase sempre, a comunidades cristãs sediadas em cidades, em grandes cidades.O cristianismo espelhado nas cartas de Paulo é um cristianismo urbano, não rural. Isto tem a sua importância para compreender, por exemplo, a diferença de perspectiva teológica e prática entre as cartas e os evangelhos sinópticos.

Também é verdade, no entanto, que algumas cartas, transmitidas como sendo de São Paulo, estão dirigidas a pessoas particulares.

Paulo escreve a comunidades cristãs cujos membros procedem tanto do judaísmo como do paganismo. Regra geral, o núcleo mais forte de cristãos nas comunidades paulinas era de origem pagã. A existência de judeus convertidos deve ter contribuído, grandemente, para agudizar certos problemas, como na Galácia, Filipos e, inclusivamente, Roma.

Escreve também para comunidades com problemas causados pelos próprios cristãos que, com melhor ou menos boa intenção, interpretam mal a mensagem de Cristo. Não é fácil a uma pessoa converter-se ao cristianismo sem ficarem rastos da situação anterior, nem de um golpe se pode romper com o passado.

É emocionante assistir ao esforço firme e comovedor de Paulo para dar à luz comunidades verdadeiramente cristãs nas quais, apesar de tudo, continuam a existir sombras, espessas sombras por vezes.

Escreve, não como um teólogo de laboratório, mas como um pai que se entrega pelos seus filhos, como um mestre a quem não é indiferente a formação e o progresso dos seus alunos, como um missionário que vive e pratica com exigência o que anuncia.

Isto explica porque, mais de uma vez, as palavras não lhe são suficientes e, sob a pressão de um pensamento demasiado rico e de emoções demasiado vivas, o seu estilo pode parecer-nos um tanto arrevesado e difícil de seguir.

Anos Dados Biográficos Actividade Literária

3-8 d.C. Nascimento em Tarso da Cilícia 8-20 Infância e primeira educarão na sua

cidade natal 20-25 ap. Educação em Jerusalém 25-30 ap. Provável estadia em Tarso 30-33 ap. Regresso a Jerusalém34-36 Vocação – conversão 37-39 ap. Estadia na Arábia 39 ap. Encontro com Pedro em Jerusalém 39-44 ap. Estadia em Tarso e Antioquia

Anos Dados Biográficos Actividade Literária

45-49 Primeira viagem apostólica (Chipre e Ásia Menor)

49 Assembleia de Jerusalém 49-52 Segunda viagem apostólica: Regiões

centrais da Ásia Menor (Macedónia e Grécia)

50 Evangelizarão de TessalónicaEstadia em Corinto 1.ª Tessalonicenses e 2.ª

aos Tessalonicenses, segundo a opinião tradicional

Anos Dados Biográficos Actividade Literária

53-58 Terceira viagem apostólica (Galácia, Frígia, Éfeso, Macedónia, Grécia e regresso a Jerusalém por Mileto, Tiro e Cesareia).

54-57 Estadia em Éfeso Carta aos Gálatas 56 ou 57 Provável prisão em Éfeso 1.ª Carta aos Coríntios

(para muitos autores, as cartas aos Filipenses e a Filémon.) 2.ª Carta aos Coríntios

58 Estadia em Corinto Preso em Jerusalém

Carta aos Romanos

58-60 Cativeiro em Cesareia

Anos Dados Biográficos Actividade Literária

60-61 Viagem a Roma 61-63 Primeiro cativeiro em Roma Carta aos Colossenses e

aos Efésios, segundo a opinião tradicional.

64-66 Viagem de Paulo a Espanha e de novo as Igrejas do Oriente

Segundo bastantes autores, a Carta a Timóteo e a Carta a Tito, 2.ª Carta a Timóteo, segundo a opinião tradicional. Muitos autores colocam nestes anos a redacção das Cartas aos Colossenses, aos Efésios, a Timóteo, a Tito e, inclusive, a 2.ª aos Tessalonicenses

NOTA: Existe hoje a tendência entre os estudiosos de São Paulo para colocar a morte do Apóstolo por ocasião da sua primeira prisão em Roma, não muito para além do ano 60. Pode ser que tenha sido assim, mas enquanto não houver provas convincentes, pode deixar-se aberta a possibilidade da sua viagem a Espanha, depois do primeira prisão em Roma.

Se tivesses que escrever, hoje, à “tua Comunidade cristã do Candal”, o que é que escrevias?

Ler: 1 Cor 1, 17-31◦ O que é que te sugere este texto, pensando no

afastamento de tantos?