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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de História Sinuê Neckel Miguel Movimento Universitário Espírita (MUE): Religião e política no Espiritismo brasileiro (1967-1974) Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Mestre em História, na área de concentração História Cultural. Orientadora Profa. Dra. Eliane Moura da Silva CAMPINAS 2012

MIGUEL Sinue Neckel Tit Movimento Universitario Espirita

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  • Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Departamento de Histria

    Sinu Neckel Miguel

    Movimento Universitrio Esprita (MUE): Religio e poltica no Espiritismo brasileiro (1967-1974)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do ttulo de Mestre em Histria, na rea de concentrao Histria Cultural.

    Orientadora Profa. Dra. Eliane Moura da Silva

    CAMPINAS 2012

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    Resumo A dissertao tem como tema o Movimento Universitrio Esprita (MUE) das

    dcadas de 1960 e 1970 que atuou fundamentalmente no estado de So Paulo. Tratou-se de

    uma tendncia dentro do Espiritismo que emergiu num momento de fortes tenses sociais

    propondo um conjunto de renovaes tericas e prticas ao movimento esprita brasileiro.

    Atravs do exame da atuao do MUE e do estudo do pensamento social esprita,

    empreendemos uma anlise histrica acerca da especificidade deste movimento dentro da

    cultura esprita: um Espiritismo altamente crtico e politizado, voltado para questes

    sociais. Tal o carter do MUE, marcado pela participao da juventude universitria esprita

    que se politizou e com isso iniciou um processo de construo de snteses em torno de

    religio e poltica, propondo um socialismo cristo. Ao final, o MUE, revelando a

    existncia potencial de um Espiritismo de esquerda, provocou uma forte reao de oposio

    por parte dos principais dirigentes do Espiritismo brasileiro, ensejando assim a sua prpria

    extino.

    Palavras-chave: Espiritismo, Religio, Poltica, Socialismo.

    Abstract This essay has as its theme the Movimento Universitrio Esprita (MUE) of the

    1960s and 1970s which acted primarily in the state of So Paulo. It was a trend in the

    Spiritism that emerged in a time of severe social tensions, proposing a series of theoretical

    and practical renovations to the Brazilian spiritist movement. Through the examination of

    the actions of the MUE and the study of the social thinking spiritist, we undertook a

    historical analysis about the specificity of this movement into spiritist culture: a critical and

    highly politicized Spiritism, focused on social issues. Such is the character of the MUE,

    marked by the participation of spiritist college youth who has politicized and thus they

    began a construction process of synthesis about religion and politics, by proposing a

    Christian socialism. At the end the MUE, revealing the potential existence of a left wing

    Spiritism, provoked a backlash from the opposition by the main leaders of the Brazilian

    Spiritism, thus occasioning its own extinction.

    Key words: Spiritism, Religion, Politcs, Socialism.

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    Agradecimentos Ao final de uma jornada, olhamos para trs e percebemos como teria sido

    impossvel chegar aonde chegamos sem o apoio de inmeras pessoas. Quero ento

    agradecer quelas que mais diretamente (no tempo e no espao) contriburam para a

    realizao dessa dissertao de mestrado jornada rdua e venturosa que representa uma

    fase crucial da minha vida acadmica.

    Prof. Dr. Eliane Moura da Silva, muito obrigado pela confiana depositada em

    mim. Sua orientao competente e amiga foi decisiva para o sucesso dessa empreitada.

    Aos professores Silvio Seno Chibeni e Izabel Andrade Marson agradeo pelas

    excelentes sugestes dadas na ocasio de minha qualificao. J constituindo a banca

    examinadora em minha defesa da dissertao, a Prof. Izabel Marson e o Prof. Artur Cesar

    Isaia certamente contriburam muito com retificaes e crticas construtivas que foram, na

    medida das minhas possibilidades, incorporadas a este trabalho.

    A todos aqueles que aceitaram ser entrevistados para esta pesquisa agradeo

    imensamente, pois suas falas, suas memrias, suas experincias, deram vida a esta

    dissertao. So todos, de certo modo, co-autores, j que nossos dilogos constituem boa

    parte do texto. Obrigado, ento, Paulo de Tarso Ubinha, Therezinha Oliveira, Armando

    Oliveira Lima, Shizuo Yoshida, Pedro Francisco de Abreu Filho, Claro Gomes da Silva,

    Adalberto Paranhos, Ccero Marcos Teixeira, Ana Maria Fargoni, Antnio Carlos Fargoni,

    Marlene Adorni Mazzotti, Martinho Januario de SantAna, Nilza Aparecida Vicente de

    Mello, Djalma Caselato, Valter Scarpin, Walter Sanches, Edson Silva Coelho, Izao

    Carneiro Soares, Angela Conceio Bellucci, Edson Raszl, Telmo Cardoso Lustosa,

    Nicolau Archilla Messas, Josilda Rampazzo, Apolo Oliva Filho, Maria Eny Rossetini Paiva

    e Claudio Di Mauro.

    Ao Armando Oliveira e ao Edson Raszl agradeo com grande alegria por terem

    disponibilizado praticamente todo o material escrito relativo ao Movimento Universitrio

    Esprita (MUE). Alis, sem a organizao e preocupao com a memria do MUE revelada

    por esses dois ex-mueanos esta pesquisa seria simplesmente invivel. Ao Pedro

    Francisco, obrigado por fornecer documentos importantes, mostrando-se sempre solcito.

    Ao Adalberto Paranhos agradeo pelo esforo em solucionar as minhas dvidas mesmo

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    com uma agenda to cheia. Ao Djalma Caselato e ao Walter Sanches meu muito obrigado

    por terem viabilizado o aprofundamento dessa pesquisa j na sua reta final, passando-me

    contatos e esclarecendo pontos obscuros que no teriam encontrado soluo sem a sua

    enorme diligncia.

    Ao pessoal de Araraquara, em especial ao casal Antnio Carlos e Ana Maria

    Fargoni, agradeo pela tima acolhida.

    Dora Incontri, ao Alysson Mascaro e Maria Eny Rossetini Paiva agradeo pelos

    dilogos sobre pensamento social esprita. Ao Jder Sampaio e aos interlocutores do

    ENLIHPE, obrigado pela oportunidade de trocar ideias sobre a histria do Espiritismo. E ao

    Silvio Chibeni muito obrigado por tantas reflexes filosficas acerca da Doutrina Esprita

    que pude sorver em diversas ocasies.

    Ao pessoal do Ncleo Esprita Universitrio da Unicamp e do Grupo de Estudos

    Espritas da Unicamp agradeo pela oportunidade de refletir e dialogar em profundidade

    sobre Espiritismo.

    Ao Eugenio Lara, pesquisador e militante esprita, um especial abrao pelas diversas

    informaes e materiais de fundamental importncia que me foram passados com solicitude

    para a realizao dessa dissertao.

    Ao Marcius Igor Bigheto obrigado pela troca de ideias sobre o MUE. Ainda que

    tenha ocorrido de um modo rpido, foi timo encontrar um interlocutor bem familiarizado

    com o tema.

    Aos amigos que generosamente me ajudaram com a reviso do texto e com a troca

    de ideias, Saulo, Igor e Raphael, meu fraterno abrao. Obrigado tambm ao meu amigo

    Davi, pelas interessantes conversas sobre poltica.

    Federao Esprita do Rio Grande do Sul agradeo por manter as portas abertas

    para a pesquisa. E Federao Esprita Brasileira agradeo por disponibilizarem seu acervo

    do Reformador atravs da internet com um sistema de busca muito til para todos os

    pesquisadores do Espiritismo. Ao Centro Esprita Allan Kardec de Campinas agradeo pelo

    emprstimo de livros utilizados nessa dissertao e pela acessibilidade pesquisa.

    A CAPES e ao Programa de Moradia Estudantil da Unicamp, agradeo pelo

    fundamental suporte financeiro e material. Desejo que estes recursos assim como a

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    prpria universidade brasileira como um todo - estejam cada vez mais largamente

    disponveis para que o fazer da pesquisa universitria possa um dia deixar de ser privilgio

    de poucos.

    Finalmente, no posso deixar de agradecer aos meus familiares, pela compreenso e

    enorme apoio que sempre me deram. Sei o quanto tem sido difcil suportar a distncia e a

    ausncia fsica destes ltimos anos. Pai, me, irmos, avs, tios, primos... vocs moram no

    mais ntimo do meu corao. O amor que nos une foi, e sempre ser fundamental para que

    eu possa alar voos cada vez mais altos. Ao meu pai, Alexandre Miguel, e minha me,

    Clarice Nunes Neckel, devo reconhecer ainda as marcas profundas que deixaram em meu

    carter. A prpria dissertao , de certo modo, resultado da influncia indelvel de meus

    pais: as experincias com religio e com poltica me conduziram at aqui.

    E, para encerrar, quero dizer do meu profundo amor pela famlia que constitu, com

    a qual aprendo muito dia aps dia. Ao Jos Antnio, que est me aceitando como pai, ainda

    que me falte o tempo adequado para lhe dar a ateno que merece, meu beijo carinhoso

    com o amor de quem j lhe considera como filho. minha esposa, querida amiga,

    companheira de tantas lutas, minha profunda gratido por ter me apoiado ao longo destes

    anos difceis, cheios de desafios que s fizeram fortalecer nossa unio. Eu te amo muito

    Ana Paula! Do tamanho do universo...

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    Sumrio Introduo ............................................................................................................................... 1 Captulo 1 Surgimento do Movimento Universitrio Esprita .......................................... 13

    1.1 - Espiritismo encarnado: uma breve e necessria histria poltica do movimento esprita brasileiro at 1960 ................................................................................................ 13 1.2 Poltica e questes sociais no movimento esprita brasileiro .................................. 26 1.3 Espiritismo de esquerda: a tradio intelectual esprita de vis socialista .............. 52 1.4 Os anos 1960 e 1970: contexto poltico-cultural nacional e internacional .............. 74

    Captulo 2 Ao do Movimento Universitrio Esprita: revolucionar o movimento esprita atravs da crtica em favor do socialismo cristo ................................................................. 83

    2.1 Progressismo: crtica e dilogo contra dogmatismo e autoritarismo ..................... 100 2.2 Poltica: revoluo socialista, cristianismo e movimento esprita ......................... 131

    Captulo 3 A reao ao Movimento Universitrio Esprita: apoios recebidos e represses sofridas. .............................................................................................................................. 189

    3.1 Do apoio represso ............................................................................................. 189 3.2 O fim do movimento e sua herana ....................................................................... 278

    Concluso ........................................................................................................................... 289 Bibliografia ......................................................................................................................... 295 Anexo ................................................................................................................................. 313

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    Introduo Esta dissertao trata da experincia histrica de um grupo de espritas

    universitrios que, aproximadamente entre 1967 e 1974, atuou de forma poltica e

    intelectual buscando elaborar uma agenda crtica e socialista no movimento esprita. Sero

    analisadas as causas do surgimento do movimento e o seu impacto no meio esprita,

    levando em conta os momentos de tenso e ebulio social das dcadas de 1960 e 1970,

    sem descurar da prpria trajetria do movimento esprita em geral. O objetivo principal

    compreender a emergncia e o ocaso de uma tendncia dentro do movimento religioso

    esprita que propunha uma forma de socialismo cristo, de reviso de aspectos doutrinrios

    e de crticas s formas hierarquizadas de organizao ento vigentes. Com isso, temos no

    MUE um momento particularmente importante para interpretar cultura poltica, lcus de

    confrontos de ideias e lutas por poder.

    Consideraremos poltica em sentido lato, abrangendo no apenas o universo da

    disputa partidria pelo poder na esfera governamental, no apenas o domnio social da

    relao entre Estado e sociedade civil. Tomaremos o poltico como um campo e um

    trabalho1, isto : um lugar (estruturante e estruturado) de formao dos indivduos para os

    tornar componentes de uma dada comunidade ou sociedade, e um processo de embates e

    consensos para a definio das suas regras constituintes. Para deixar mais claro nosso ponto

    de partida, aproveitamos a orientao de Pierre Rosanvallon:

    Falando substantivamente do poltico, eu qualifico assim tanto uma modalidade de existncia da vida comum quanto uma forma de ao coletiva que se distingue implicitamente do exerccio da poltica. Se referir ao poltico e no poltica, falar do poder e da lei, do Estado e da nao, da igualdade e da justia, da identidade e da diferena, da cidadania e da civilidade, enfim de tudo aquilo que constitui uma cidade para alm do campo imediato da competio partidria pelo exerccio do

    1 Inspiramo-nos na proposio de Pierre Rosanvallon: O poltico tal como eu o entendo corresponde ao mesmo tempo a um campo e a um trabalho. Como campo, ele designa o lugar onde se formam os mltiplos filhos da vida dos homens e das mulheres, aquilo que d seu quadro de conjunto a seus discursos e a suas aes. Ele se refere ao fato da existncia de uma sociedade que aparece aos olhos de seus membros como formando um todo que faz sentido. Como trabalho, o poltico qualifica o processo pelo qual um grupo humano, que no compe em si mesmo seno uma simples populao, toma progressivamente a face de uma verdadeira comunidade. , portanto, constitudo pelo processo sempre litigioso de elaborao de regras explcitas ou implcitas do participvel e do partilhvel que do forma vida da cidade (ROSANVALLON, 2003, p. 12; livre traduo nossa).

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    poder, da ao governamental cotidiana e da vida ordinria das instituies. (ROSANVALLON, 2003, p. 14; livre traduo nossa)

    Nesse sentido, o Espiritismo sempre esteve ligado ao poltico (e poltica), tanto

    por sua vinculao com o campo de representao e articulao dos poderes pblicos,

    quanto por sua incurso em discusses relativas s grandes ideias concernentes

    organizao da sociedade. A parte terceira dO Livro dos Espritos est recheada de

    candentes questes sociais, como o problema das desigualdades sociais e das riquezas, a

    funo do trabalho e o direito de propriedade. No Brasil, ainda na Repblica Velha, o

    deputado e mdico Bezerra de Menezes (1831-1900) foi fundamental para a consolidao

    do Espiritismo frente s oposies da lei. J na Era Vargas a atuao dos militares espritas,

    bem como juzes e mdicos, contribuiu bastante para salvaguardar as prticas espritas das

    investidas de psiquiatras e clrigos que apelavam para a represso do Estado2. Em segundo

    lugar, o socialismo no posio indita entre os espritas3. A comear pelo filsofo Lon

    Denis (1846-1927), de militncia no movimento operrio francs e escritor da obra

    Socialismo e Espiritismo4. No Brasil, esta obra foi prefaciada pelo poltico e jornalista

    socialista Jos de Freitas Nobre (1921-1990). Lembremos que j em finais do sculo XIX e

    comeo do XX abre-se, no Brasil, uma crescente vaga religiosa no-catlica que permitiu

    uma circulao de iderios entre maons, livre-pensadores, positivistas, espritas,

    anarquistas e socialistas, aproximando de algum modo estes grupos5. Outro importante

    exemplo: filiado ao PCB, tendo sido prefeito de Ilhus BA, Eusnio Lavigne (1883-1973)

    2 Em estudos anteriores (MIGUEL, 2009b, 2010 e 2011b), tratei do problema poltico no movimento esprita e das suas relaes com o Estado, verificando, por exemplo, a importncia dos militares espritas na defesa do Espiritismo na Era Vargas. 3 Por socialismo, entenda-se um leque bastante amplo de teorias que tem em comum alguma forma de apelo igualitrio (o que implica, em geral, em fortes restries ao direito de propriedade privada em prol do bem comum, normalmente postulando-se a necessidade de extinguir a propriedade privada dos meios de produo e distribuio da riqueza). Na terceira parte do primeiro captulo abordamos alguns dos diferentes tipos de posturas socialistas adotas por pensadores espritas. 4 Originalmente publicado como uma srie de artigos na Revue Spirite em 1924, sob o ttulo Socialisme et Spiritisme. No Brasil publicado pela editora O Clarim em 1982. 5 Ver, por exemplo, a figura do pioneiro esprita e maom, Carlos Pareta, apresentado em outro estudo de minha autoria Espiritismo fin de sicle: a insero do Espiritismo no Rio Grande do Sul (MIGUEL, 2009). No texto Maonaria, anticlericalismo e livre pensamento no Brasil (1901-1909) apresentado por Eliane Moura Silva no XIX Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, conhecemos a figura de Everardo Dias, grfico, jornalista, maom, espiritualista, anarquista e depois comunista. Antnio Guedes Coutinho outro socialista esprita, militante no movimento operrio, tomado como tema do livro de Benito Schmidt Um socialista no Rio Grande do Sul: Antnio Guedes Coutinho (1968-1945) (SCHMIDT, 2000).

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    expe a possvel conciliao entre Comunismo e Espiritismo num artigo chamado Os

    espritas e o Comunismo, publicado na Tribuna Popular e transcrito nO Estado de Goiz

    em 26 de dezembro de 1945 (S, 1998, p. 6), alm de escrever, junto com Sousa do Prado,

    outro esprita comunista, o livro Os espritas e as questes sociais (interpretao

    progressista de O Livro dos Espritos).

    No MUE temos a organizao de um grupo que procurava articular um discurso

    programaticamente dirigido a transformar, por dentro, o movimento esprita

    institucionalizado sob a estrutura federativa ligada Federao Esprita Brasileira (FEB),

    claramente hegemnica desde o chamado Pacto ureo de 1949 polmico acordo de

    unificao federativa nacional que confere grande poder FEB. Derrubar o autoritarismo,

    promover o dilogo com a cultura contempornea, defender o esprito crtico e encampar a

    disseminao de um socialismo cristo eram os principais tpicos do projeto de

    transformao do MUE dirigido para o conjunto do movimento esprita6.

    Um balano bibliogrfico Os estudos acadmicos em Cincias Humanas sobre o Espiritismo existem com

    alguma variedade de enfoques. Contudo, poucos trabalhos aprofundaram as anlises sobre

    as relaes entre o movimento esprita e a discusso poltica.

    Vejamos ento quais so, em geral, os tipos de estudos realizados acerca do

    Espiritismo para nos situarmos com nosso projeto. Num primeiro grupo podemos encontrar

    os trabalhos que explicam as modelaes do Espiritismo atravs da influncia de

    elementos externos, seja de modo funcionalista, seja de um modo culturalista, com

    referncia a uma identidade cultural brasileira. Outro grupo de estudos foca a interao

    mais ou menos imprevisvel de diversos agentes e instituies sociais na definio dos

    rumos do movimento esprita, visualizando tambm a marca que este imprime na sociedade

    em geral e em outros grupos em particular.

    6 Houve a tentativa, em escala muito reduzida, de divulgar um Espiritismo crtico no mbito universitrio, o que se concretizou com a revista Presena, publicada pelo MUE de Campinas de 1969 a 1973, circulando na Universidade Catlica de Campinas e na Universidade Estadual de Campinas.

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    No primeiro grupo podemos relacionar a anlise funcionalista de Cndido Procpio

    Camargo em Kardecismo e umbanda (1961) e Catlicos, espritas e protestantes (1973), os

    trabalhos culturalistas de Marion Aubre e Franois Laplantine, com a ideia de um

    espiritismo brasileira, conformado por uma cultura da mediao (AUBRE e

    LAPLANTINE, 1990, p. 185), de Donald Warren Jr., que remete para uma configurao

    mental brasileira tanto o sucesso da penetrao do Espiritismo no Brasil, quanto sua

    inflexo em um sentido religioso (GIUMBELLI, 1997, p. 27) e Sylvia F. Damazio

    afirmando que o principal fator da expanso do Espiritismo, em suas vrias vertentes, foi a

    prtica da medicina mgica arraigada na cultura brasileira (DAMAZIO, 1994, p. 153).

    Um trabalho importante por servir como um contraponto s anlises que explicam o

    perfil do Espiritismo por influncias externas o de Maria Laura Viveiros de Castro

    Cavalcanti. Em O mundo invisvel: cosmologia, sistema ritual e noo de pessoa no

    Espiritismo, Cavalcanti enfatiza o fato de que religio no apenas expressa ou traduz

    outras realidades, como tambm uma matriz de produo de valores, de maneiras de

    pensar e se relacionar com a realidade social mais abrangente (CAVALCANTI, 1983, p.

    10). Podemos destacar tambm o antroplogo David Hess, que, no entanto, mesmo

    articulando diversos domnios poltica, religio, cincia, etc. no que chama de arena

    ideolgica (HESS, 1991, p. 1-9), explica a atuao dos espritas pela marca, em ltima

    instncia, da cultura da mediao, entendida como um trao da cultura brasileira. Com

    metodologia diversa, inspirando-se em Marshall Sahlins e Clifford Geertz, e centrando sua

    anlise em personagens paradigmticos e definidores de determinadas conjunturas do

    movimento esprita (STOLL, 2003, p. 12), Sandra Jacqueline Stoll pinta as cores de um

    Espiritismo Brasileira (STOLL, 2003).

    J Eliane Moura Silva aborda o Espiritismo em sua anlise comparada de diversas

    religies no que respeita s suas formulaes do fenmeno da morte e do ps-morte,

    procurando permanncias universalizadas e especificidades (SILVA, 1993).

    Nos estudos mais recentes sobre o Espiritismo podemos enfim perceber uma

    preocupao geral em explic-lo de modo relacional, isto , na interao entre agentes

    sociais diversos - com suas prticas e representaes - no interior do movimento esprita e

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    desse com outros grupos e instituies (psiquiatras, clrigos catlicos, juzes, Medicina,

    Cincia, Igreja etc.). Vejamos alguns desses estudos.

    Marcelo Camura em Fora da Caridade no h Religio! Breve Histria da

    Competio Religiosa entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais

    na Cidade de Juiz de Fora: 1900-1960 (CAMURA, 2001), Flamarion Laba da Costa, em

    Demnios e anjos: o embate entre espritas e catlicos na Repblica Brasileira at a

    dcada de 60 do sculo XX (COSTA, 2001) e Artur Cesar Isaia em Catolicismo e

    religies medinicas no Rio Grande do Sul (ISAIA, 2002) mostraram as lutas prticas e

    simblicas entre espritas e catlicos no campo religioso, constitutivas de suas respectivas

    identidades. Isaia vem trabalhando frequentemente com a temtica do Espiritismo,

    mostrando sua proximidade com a modernidade e a repblica (ISAIA, 2005) e os embates

    no campo da medicina (ISAIA, 2006, 2007, 2008a, 2008b e 2008c).

    O relacionamento entre espritas e mdicos psiquiatras o tema da dissertao de

    Anglica Boff Espiritismo, alienismo e medicina: cincia ou f? Os saberes publicados na

    imprensa gacha da dcada de 1920 (BOFF, 2001), da monografia de Graziele Schweig

    Espiritismo e Medicina Psiquitrica: estudo de caso no Hospital Esprita de Porto Alegre

    (SCHWEIG, 2006), dos artigos de Roberta Scoton Idias psiquitricas sobre as religies

    medinicas em Juiz de Fora MG (1890-1940) (SCOTON, 2005) e A loucura esprita

    em Juiz de Fora MG (SCOTON, 2004) e o de Giumbelli Heresia, doena, crime ou

    religio: o Espiritismo no discurso de mdicos e cientistas sociais (GIUMBELLI, 1997b).

    Exemplo mais recente desse tipo de abordagem a tese de doutorado Uma fbrica de

    loucos: Psiquiatria X Espiritismo no Brasil (1900-1950) (ALMEIDA, 2007) de Anglica

    Aparecida Silva de Almeida que analisa os embates entre a Psiquiatria e o Espiritismo entre

    1900 e 1950 em torno da mediunidade e da loucura, atravs de suas representaes e

    instituies no campo cientfico, delineando assim suas respectivas posies.

    Com ateno especfica relao entre Espiritismo e Cincia, temos Homeless

    spirits: modern spiritualism, psychical research and the anthropology of religion in late 19th

    and early 20th centuries de Joo Vasconcelos (VASCONCELOS, 2003), Aspetti della

    ricerca scientifica sullo spiritismo in Italia (1870-1915) de Fabrizio Pesoli (PESOLI,

    1999), The other world: spiritualism and psychical reserach in England, 1850-1914 de

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    Janet Oppenheim (OPPENHEIM, 1985), O espiritismo e as cincias e Spirits and

    scientists: ideology, spiritism and brazilian culture de David Hess (HESS, 1987 e 1991) e,

    tangencialmente, Estudando o invisvel: William Crookes e a nova fora de Juliana

    Mesquita Ferreira (FERREIRA, 2004).

    Cabe destaque ainda aos estudos antropolgicos de Bernardo Lewgoy, que

    abrangem desde a cultura escrita e oral dos espritas (LEWGOY, 2000), at interpretaes

    sobre o relacionamento do Espiritismo com a Igreja (LEWGOY, 2006a), a Cincia

    (LEWGOY, 2006b), a Medicina e o Estado (LEWGOY, 2004), ora numa poltica de

    legitimao demarcacionista, distinguindo, por exemplo, a teraputica esprita da

    teraputica mdica oficial, ora em operaes sincrticas com os valores do Estado

    nacionalista e autoritrio (Era Vargas) ou com a caridade catlica.

    Alm do estudo de Artur Isaia que trabalha a relao do Espiritismo com a

    modernidade e a repblica (ISAIA, 2005) e da pesquisa de Bernardo Lewgoy que levanta

    questes importantes sobre a relao dos espritas com o Estado (LEWGOY, 2004), temos

    apenas mais alguns poucos trabalhos sobre Espiritismo que abordam a poltica Na

    abordagem de Emerson Giumbelli em O cuidado dos mortos: uma histria da condenao

    e legitimao do espiritismo (GIUMBELLI, 1997a), as relaes dos espritas com a justia

    so a via de interao com o Estado, mas no se chega a discutir projetos polticos e sociais

    dos espritas para a sociedade. Uma exceo relevante com relao ao enfoque poltico o

    livro de Fbio Luiz da Silva, Espiritismo: histria e poder (1938-1949) (SILVA, 2005).

    Trabalhando com a noo de economia das trocas simblicas (Bourdieu) e com o

    processo de definio dos estabelecidos e dos outsiders(Elias), analisa os usos possveis

    do discurso esprita da histria como parte de uma estratgia de legitimao do

    Espiritismo frente aos campos religioso, cientfico e estatal, e como um modo da

    Federao Esprita Brasileira marcar fronteiras entre os de dentro e os de fora, ou seja,

    aqueles que se submetem autoridade da FEB e aqueles que a questionam; entre o

    verdadeiro e o falso Espiritismo (SILVA, 2005, p. 8). Essa problemtica permear a

    presente dissertao, levando-se em considerao o fato de que os conflitos internos do

    movimento esprita entrelaam-se com os conflitos externos. Um trabalho que parece

    interessante, do qual tomamos conhecimento apenas muito recentemente intitula-se

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    Espiritismo Kardecista brasileiro e cultura poltica: histria e novas trajetrias

    (FERREIRA, 2008). Tambm tardiamente, viemos saber de um trabalho de concluso de

    curso realizado na PUC-Campinas por Marcius Igor Bigheto tratando justamente do MUE,

    realizado em 2006 (no consta um ttulo especfico no trabalho). Com relao s ideias

    sociais espritas, registramos a dissertao de mestrado em histria de Cleusa Beraldi

    Colombo intitulada Histria das Idias Sociais Espritas Um sculo de Espiritismo:

    Frana-Brasil, 1857-1957, publicada em livro com o ttulo Idias Sociais Espritas

    (COLOMBO, 1998). Implcita e explicitamente, dialogamos com as reflexes dessa autora.

    Ainda com ateno s ideias sociais espritas, destacamos o artigo Espiritismo,

    Conservadorismo e Utopia de Artur Cesar Isaia (ISAIA, 2004).

    Finalmente, cabe mencionar nossos trabalhos j citados Espiritismo e poltica: o

    compasso dos espritas com a conjuntura dos anos 1930-1940 (MIGUEL, 2009b), O

    Espiritismo frente Igreja Catlica em disputa por espao na Era Vargas (MIGUEL,

    2010) e A questo poltica no Espiritismo: o sagrado e o profano em tenso (MIGUEL,

    2011b), nos quais tratamos das representaes produzidas pelos espritas sobre os temas da

    poltica e da questo social conjugadas aos conflitos e alianas com Estado.

    Contudo, parece-nos evidente que a relao do Espiritismo com o Estado e a

    discusso poltica tem sido relegada a plano secundrio (principalmente no que se refere

    aos valores polticos dos espritas), em geral apenas perpassando alguns trabalhos. Assim,

    esta pesquisa sobre o MUE se prope a examinar um problema pouco estudado na

    bibliografia sobre Espiritismo, encarando como relevantes os posicionamentos polticos, a

    defesa, oposio ou indiferena s doutrinas sociais que marcam as diferentes coloraes

    ideolgicas da cultura esprita.

    No caso do nosso estudo, procuramos identificar o impacto gerado pela cultura

    universitria dos anos 1960 e pelo contexto poltico, social e cultural mais amplo (no Brasil

    e no mundo) nos jovens universitrios espritas que construram o MUE. Este impacto foi

    (como no poderia deixar de ser) mediado pelo campo social7 especfico do movimento

    esprita brasileiro. Ao analisarmos as culturas polticas dspares que passam a ser 7 Tomamos de Pierre Bourdieu a definio de campo social, como um espao relativamente autnomo, (...) microcosmo dotado de (...) leis prprias, um campo de foras e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de foras (BOURDIEU, 2004, p. 20, 22 e 23).

  • 8

    tensionadas no interior do movimento esprita a partir da atuao do MUE, perceberemos

    que o prprio campo social objeto de luta tanto em sua representao quanto em sua

    realidade (BOURDIEU, 2004, p. 29). Isto , partindo-se de representaes sociais distintas

    que diagnosticavam diversamente a situao presente do Espiritismo no Brasil, o que estava

    em jogo era a prpria definio do que deve ser o movimento esprita e o Espiritismo. O

    singular na nossa pesquisa est justamente em prestar especial ateno s representaes

    sociais sobre poltica que concorreram no interior do campo religioso do movimento

    esprita brasileiro, com implicaes prticas explosivas.

    Objetivos Explicar, articulando questes externas e internas ao movimento esprita, as

    causas do surgimento e do trmino do MUE;

    Caracterizar o MUE levando em conta as possveis diferenas existentes entre seus participantes;

    Mapear a diversidade de posies e aes no interior do movimento esprita brasileiro acerca do MUE;

    Comparar o MUE com outros movimentos que envolveram religiosos com a questo poltica no mesmo perodo (a Juventude Universitria Catlica, por

    exemplo) e

    Resgatar o impacto social, cultural e poltico do MUE no movimento esprita.

    Material e mtodos Para apreendermos tanto as intenes do MUE e as influncias que sofreu, quanto a

    recepo de suas ideias pelos espritas, precisamos examinar as representaes em jogo na

    documentao escrita de parte a parte e nas falas dos agentes histricos a serem

    entrevistados. Portanto, se faz necessrio o uso de diversas fontes para cobrirmos todos os

    lados mais significativos da histria que pretendemos contar. Analogamente

    reconstituio verossmil da cena do crime, poderemos com isso, moda de detetives,

  • 9

    reconstituir de um modo aproximado a dinmica relacional mltipla do processo histrico,

    entendido como em parte determinado pelos sujeitos e em parte limitador de suas aes e

    pensamentos8.

    Tratando com diversas fontes escritas revistas, livros, correspondncias

    necessrio estar atento s especificidades de cada produo, j que suas variadas formas

    condicionam seus contedos (LUCA, 2005, p. 132-141). Por exemplo, enquanto A

    Fagulha, revista produzida pelo MUE, dirigia-se ao pblico esprita em sua totalidade, uma

    correspondncia escrita por um membro do MUE estaria voltada especificamente a um

    determinado opositor do grupo. Assim, no primeiro caso a linguagem e os argumentos

    devem revestir-se de um carter mais impessoal, persuadindo um leitor sem face a

    concordar com as teses do movimento. J no segundo o leitor tem rosto e voz bem

    definidos, marcando mais fortemente o carter dialgico da produo escrita, com toda a

    carga emotiva que isso implica para os missivistas envolvidos. Por fim, um livro constitui

    de forma completa o estatuto de obra, com a marca do autor elevada a primeiro plano e

    uma estruturao mais rigorosa das ideias, visando um sucesso de longa durabilidade e

    munido de um poder de penetrao mais contundente pela respeitabilidade que uma obra

    bem acabada suporta.

    J ao trabalhar com fontes orais, devemos levar em considerao uma srie de

    aprendizados acumulados na tradio da histria oral. No que se refere pertinncia

    especfica da histria oral, destaca-se a vantagem de podermos perscrutar a experincia

    pessoal de cada agente social a partir da sua prpria subjetividade, o que incide diretamente

    nas nossas interpretaes acerca das causas de tal ou qual atitude dos sujeitos histricos.

    Contando com a verso do entrevistado sobre o que ele vivenciou, arrecadamos precioso

    material para anlise do fenmeno investigado, o que contribui para diminuir os riscos de

    interpretarmos mal as motivaes dos atores histricos.

    Porm, alguns cuidados especiais ao se tratar com fontes orais precisam ser

    estabelecidos, em razo de basicamente duas peculiaridades enquanto fonte: a fonte oral

    8 Christopher Lloyd, em As estruturas da histria, procura formular uma combinao realista entre

    o poder dos sujeitos e o das estruturas, a qual eu adoto: as pessoas que so teorizadas como agentes da histria, mas sempre dentro de determinadas situaes sociais e culturais capacitadoras e incapacitadoras (LLOYD, 1995, p. 222).

  • 10

    construda a dois (pesquisador/entrevistador e entrevistado) e feita do presente para o

    passado.

    As entrevistas nessa pesquisa sero temticas, procurando saber o que o

    entrevistado tem a dizer com respeito ao seu envolvimento com o MUE nosso objeto de

    estudo. De todo modo, o eixo das entrevistas no deixa de ser biogrfico, no sentido de que

    sempre partem da vida narrada do entrevistado sob a sua prpria perspectiva, versando

    sobre a sua experincia e a sua viso acerca dos temas desenvolvidos na pesquisa.

    O roteiro geral das entrevistas foi definido com base no levantamento prvio dos

    nomes dos possveis entrevistados elencados pela relevncia diagnosticada a partir da

    leitura das outras fontes e indicaes fornecidas por contatos preliminares com aqueles que

    participaram do MUE. claro que ao longo da pesquisa vrias questes novas foram

    surgindo bem como novos entrevistados.

    Resumo dos captulos Esta dissertao est dividida fundamentalmente em trs captulos, dando conta do

    surgimento, da ao e da reao ao Movimento Universitrio Esprita. O primeiro captulo

    explora o contexto de emergncia do MUE, tanto interno ao movimento esprita quanto

    externo. Veremos como os espritas tm pensado (e se posicionado) a respeito da poltica e

    das questes sociais, identificando tambm uma tradio (minoritria) intelectual esprita

    de vis socialista. Por outro lado, examinaremos o contexto poltico, social e cultural mais

    amplo no qual emerge o MUE, fazendo um paralelo com a Juventude Universitria Catlica

    (JUC). Assim, esperamos situar o leitor quanto s condies de possibilidade de existncia

    do MUE.

    J no segundo captulo cuidamos em analisar exaustivamente o pensamento do

    MUE, utilizando-nos principalmente do seu mais importante veculo de manifestao: a

    revista A Fagulha. Em torno de dois grandes eixos articuladores progressismo e poltica

    pretendemos dar conta do conjunto de elementos estruturantes das propostas dos

    universitrios espritas, dentre as quais destacamos a do criticismo (ou esprito

    universitrio) e a do socialismo cristo. Sublinhamos que a ao do MUE resumiu-se

  • 11

    basicamente disseminao de ideias, o que justifica a especial ateno dada ao seu

    pensamento.

    Finalmente, no terceiro captulo voltamo-nos ao estudo da reao ao MUE. Esta

    reao foi fortemente negativa por parte da imensa maioria dos dirigentes espritas e

    consideravelmente simptica por parte da juventude esprita. A dinmica dos confrontos,

    encontros e desencontros que agitaram o movimento esprita brasileiro atingido pelo MUE

    ser explicada com base numa reflexo em torno de trs elementos: o contexto poltico

    mais amplo, as ideias correntes de religio e poltica e a seletividade ideolgica.

    Na concluso, alm de fazermos o clssico balano do conjunto da dissertao,

    pretendemos aproveitar o nosso estudo sobre o MUE para pensar a respeito do problema da

    poltica no universo religioso do Espiritismo.

  • 12

  • 13

    Captulo 1 Surgimento do Movimento Universitrio Esprita

    Recordemos, a propsito, a tentativa farisaica no sentido de envolver Jesus politicamente nos acontecimentos da sua poca. Quiseram mesmo faz-lo lder do movimento de libertao material dos judeus. O Mestre no apenas se furtou manobra, mas situou clara e explicitamente a sua presena entre ns, alheando-se poltica de Csar e to-somente preparando os homens para a redeno espiritual. A aluso ao seu Reino, que no era nem deste mundo, desestimularia qualquer jogada poltica, de quem quer que fosse. (Reformador, jul, 1970, p. 163)

    A condenao da propriedade privada, que gera os conflitos do egosmo, em Cristo mais veemente e profunda do que em Marx. (PIRES, 1946, p. 29)

    1.1 - Espiritismo encarnado: uma breve e necessria histria poltica do

    movimento esprita brasileiro at 1960 Para entendermos o que era o movimento esprita poca do surgimento do

    Movimento Universitrio Esprita (MUE) devemos desenhar um panorama histrico que

    ressalte os seus traos mais marcantes produzidos ao longo de processos, rupturas,

    influncias, confluncias, embates internos e externos, que se deram desde os seus

    primrdios no sculo XIX at a dcada de 1960. O enfoque deve ser mantido sobre as

    questes poltica e religio, porm sem perder de vista a totalidade de fatores significativos

    nos diversos campos de relaes em que esteve inserido o Espiritismo ao longo de sua

    histria no Brasil.

    No sculo XIX, notadamente a partir de 1848, com o caso das irms Fox, um amplo

    movimento emerge como produto e reao ao cientificismo da poca trata-se do moderno

    espiritualismo (SILVA, 1993). O espetculo das mesas girantes toma conta dos sales de

    Paris9. Aparecem diversos mdiuns que alegavam ter a capacidade de intermediar a

    manifestao de Espritos desencarnados. Inmeras revistas especializadas proliferam a par

    de um crescente interesse pelos proclamados fenmenos espirituais. Comisses de

    9 A propsito, Karl Marx, em tom irnico, deixa entrever a popularidade deste espetculo ao dissertar sobre o fetichismo da mercadoria, exemplificando com a descrio do aparecimento da mesa como mercadoria, forma sob a qual se transforma numa coisa fisicamente metafsica. Alm de se pr com os ps no cho, ela se pe sobre a cabea perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabea de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela comeasse a danar por sua prpria iniciativa (MARX, 1988, p. 70).

  • 14

    investigao cientfica so formadas para avaliar a sua suposta genuinidade. Os resultados

    so divergentes e envoltos em cerradas polmicas: alguns apontavam fraudes, outros

    entendiam tratar-se de fenmenos explicveis por poderes mentais desconhecidos, outros

    corroboravam a tese espiritualista e outros ainda permaneceram em dvida.

    em meio a esse contexto que a doutrina esprita surge na Frana em 1857 com o

    trabalho de organizao e teorizao efetuado pelo pedagogo Hippolyte Lon Denizard

    Rival o Allan Kardec sobre as mensagens atribudas aos Espritos desencarnados que se

    comunicariam com o mundo dos encarnados atravs de diversos mdiuns, residentes em

    diferentes localidades. Desse trabalho nasce Le Livre des Esprits. A obra de imediato faz

    um grande sucesso, sendo reeditada quinze vezes em apenas doze anos de existncia

    (AUBRE e LAPLANTINE, 1990, p. 30).

    Atravs de imigrantes franceses jornalistas, comerciantes, professores o

    Espiritismo chega ao Brasil10. Rapidamente se formam pequenos crculos de estudos

    espritas entre as elites no Rio de Janeiro e em Salvador.

    Apesar do mpeto inicial de estudo da Doutrina Esprita ter se dado no Rio de

    Janeiro, foi na Bahia que o Espiritismo ganhou destaque e se desenvolveu com mais solidez

    na dcada de 1860, despertando a Igreja Catlica para o combate ante a novidade que

    comeava a conquistar adeptos de relevo social. Foi com o professor e jornalista Lus

    Olmpio Teles de Menezes que se formou o Grupo Familiar do Espiritismo em 1865 na

    Bahia (DAMAZIO, 1994, p. 66). Este destacado divulgador do Espiritismo travou um

    aceso debate com os representantes do catolicismo, permanecendo, entretanto, numa

    postura de submisso Igreja religio oficial do Estado Monrquico.

    No Rio de Janeiro, o crescimento vertiginoso dos adeptos do Espiritismo, facilitado

    pela tolerncia religiosa dos liberais11, levou criao da Federao Esprita Brasileira

    10 Conforme Sylvia Damazio, dentre os introdutores do Espiritismo no Brasil destacaram-se Casimir Lieutaud, Adolphe Hubert e Madame Collard. Casimir Lieutaud, era diretor do Colgio Francs, estabelecimento de ensino dos mais conceituados na Corte [...] publicou o primeiro livro de divulgao da nova doutrina, impresso no Rio de Janeiro, em 1960: Les Temps sont Arrivs. Adolphe Hubert era editor do Courrier du Brsil, jornal de oposio ao governo de Napoleo III e de tendncia anticlerical, cuja redao era um local de encontro da colnia francesa e de discusses sobre os mais variados temas. Madame Perret Collard revelou-se uma mdium psicografa, figura indispensvel s sesses espritas (DAMAZIO, 1994, p. 65).

  • 15

    (FEB) (GIUMBELLI, 1997, p. 63-64), que viria a ser, poucos anos aps a sua fundao,

    com a marcante liderana de Bezerra de Menezes12, um rgo centralizador voltado para

    atividade unificacionista do movimento esprita em todo o territrio brasileiro,

    autorreferenciado como instituio modelar (GIUMBELLI, 1997, p. 119-129).

    No sculo XIX, o Espiritismo no Brasil foi marcado politicamente pela presena do

    abolicionismo e do liberalismo, batendo-se principalmente pela liberdade de religio

    (DAMAZIO, 1994, p. 112). Muitos espritas tambm eram republicanos engajados, como

    Antnio da Silva Neto, Francisco de Bittencourt Sampaio e Otaviano Hudson, sendo que

    outros, livre-pensadores que deram espao ao Espiritismo defendendo a separao entre a

    Igreja e o Estado e a liberdade de conscincia, tambm assinaram o Manifesto Republicano,

    a exemplo de Saldanha Marinho e Quintino Bocaiva, futuramente tambm esprita

    (DAMAZIO, 1994, p. 69-72).

    Era comum, na poca, o trnsito de alguns indivduos por diversas filosofias e

    movimentos sociais, comumente tendo como centro aglutinador as lojas manicas, que

    permitiam em seu interior a difuso de tendncias laicistas europias, de positivismo, de

    formas alternativas de expresso religiosa tais como o espiritualismo em geral e do

    espiritismo em particular, bem como do protestantismo. Era o direito voz e onde se

    abrigavam minorias e grupos intelectuais (SILVA, 1997, p. 7). Em razo desse ecletismo,

    podia-se ser, sem dificuldades, ao mesmo tempo, maom e esprita, como Carlos Pareta

    11 A tolerncia religiosa dos liberais foi fundamental para a divulgao do Espiritismo, principalmente por parte dos lderes republicanos Saldanha Marinho e Quintino Bocaiva, pois, atravs deles, as colunas dos jornais Dirio do Rio de Janeiro, A Repblica e O Paiz ficaram abertas para rebater os ataques do Catolicismo ultramontano, quando da grande querela que se estabeleceu entre a ortodoxia catlica e os defensores da nova doutrina (DAMAZIO, 1994, p. 72). 12 At hoje, ele lembrado, entre os espritas, como o Allan Kardec brasileiro e como uma das figuras a quem o espiritismo mais deve o que atualmente possui. Personagem histrico na lembrana de todos, Bezerra de Menezes tambm presena, visto que continua, enquanto espiritismo e guia, a dar conselhos e orientaes atravs dos mdiuns de hoje. Um dado interessante que essa imagem comeou a ser construda no momento imediatamente posterior a sua morte. Bezerra de Menezes foi saudado pelo Reformador como o mais eminente dos chefes e o mais perfeito dos discpulos do espiritismo. Alm disso, sua passagem para o plano espiritual foi narrada como uma verdadeira ascenso, presenciada por toda a elite celeste (o que inclua os apstolos, Maria Madalena e vrios anjos). De l, Bezerra de Menezes preocupou-se logo em animar seus colegas da FEB: No quebrem essa cadeia sagrada. Glorificado pelos vivos e acolhido pelos mortos mais ilustres, Bezerra de Menezes torna-se, desde ento, um guia para a Federao, sendo constantemente invocado para referendar os caminhos a tomar (GIUMBELLI, 1997, p. 121).

  • 16

    (MIGUEL, 2009a, p. 161), ou socialista, esprita e positivista, como Antnio Guedes

    Coutinho (SCHMIDT, 2000).

    Importa enfatizar, no entanto, que quando a monarquia caiu, os espritas j estavam

    claramente organizados como um corpo em oposio Igreja Catlica, em franca disputa

    num campo religioso de valores muitas vezes compartilhados. a poca da Igreja

    romanizada, do chamado ultramontanismo13. Assim, os valores da religiosidade interior

    (em oposio a manifestaes exteriores ou idolatria) e da caridade podiam ser comuns a

    espritas e a lideranas catlicas (MIGUEL, 2009a, p. 166 e 172-175), levando inclusive a

    uma prtica concorrencial no campo da ao social, em campanhas de beneficncia, que se

    estendeu com fora por toda a primeira metade do sculo XX (CAMURA, 2001). No

    obstante, havia claro diferenas. Dentre elas, talvez a mais importante, era a relao com

    a modernidade, em seus vrios aspectos. Note-se a fora de convencimento que a

    modernidade presente na Doutrina Esprita exerce sobre determinados grupos sociais que

    tinham o desejo de ser moderno (DAMAZIO, 1994, p. 58). De acordo com Lewgoy,

    historicamente, o espiritismo uma das primeiras alternativas religiosas especificamente modernas a canalizar a insatisfao de setores emergentes e organizados da sociedade brasileira militares, livre-pensadores, funcionrios pblicos que libertam-se da tutela eclesistica, sem querer engrossar os quadros do atesmo, adotando a linguagem da cincia, da razo e do progresso; bandeiras identificadas com a modernidade. (LEWGOY, 2005, p. 2)

    E, conforme j pudemos notar,

    na modernidade de finais do sculo XIX vivia-se uma cultura fortemente cientificista, na qual vrias correntes tericas convergiam na valorao da cincia e da tcnica como os melhores instrumentos para a resoluo de todas as principais dificuldades da humanidade (SCHMIDT, 2001, p. 114), valendo-se da noo central do progresso enquanto fora real da natureza, tornando a evoluo um caminho natural rumo a um determinado fim, em geral tido como o da realizao da perfectibilidade. nesse contexto intelectual que devemos situar a forte nfase na

    13 A reforma romanizadora, tambm conhecida como ultramontanismo, apareceu como uma reao ao mundo moderno, capaz de conden-lo, ao mesmo tempo que reforava a idia da supremacia das verdades ensinadas pela Igreja sobre os contingentes resultados do conhecimento e da experincia humana. O ultramontanismo correspondia a uma centralizao sob a gide de Roma, culminando com a proclamao do dogma da infalibilidade papal. (...) Com a perda do poder temporal do passado, procura-se firmar a total ascendncia espiritual e moral da Igreja frente ao mundo. O ultramontanismo procurava, portanto, a dominao da autoridade espiritual sobre a temporal (ISAIA, 1998, p. 21).

  • 17

    racionalidade e na conscincia por parte dos espritas, munidos de um ideal progressista que bebia nas fontes culturais do cientificismo, do liberalismo e do jacobinismo, para derrubar preconceitos e dogmas retrgrados da tradio catlica. (MIGUEL, 2009a, p. 169)

    A ideia de progresso, elemento estruturante da modernidade, de fato o eixo da

    filosofia evolucionista e reencarnacionista esprita, formando uma cosmologia bastante

    dspar da sua concorrente catlica, centrada na ressurreio e no juzo final.

    Entretanto, h que se relativizar o posicionamento teolgico da Igreja Catlica

    frente modernidade observando a sua prtica no interior do Estado laico (ou

    presumidamente laico) brasileiro. De acordo com Emanuela Ribeiro

    (...) embora a doutrina teolgica catlica tenha se mantido hostil Modernidade, podemos identificar situaes em que algumas das razes, doutrinas e tcnicas da Modernidade serviram Igreja, tendo sido por ela incorporadas, e, at mesmo usadas para sua prpria legitimao. Neste sentido, acreditamos que a principal convergncia entre ambas encontra-se no disciplinamento da sociedade civil. (RIBEIRO, 2003, p. 9-10)

    Portanto, a fora da modernidade se d de modo transversal na sociedade brasileira,

    incluindo diversos segmentos, inclusive, no campo religioso, os espritas e os catlicos.

    sob esse influxo tambm que, no final do sculo XIX, o Espiritismo ser criminalizado pelo

    Cdigo Penal de 1890, que condenava as prticas de cura consideradas como explorao da

    credulidade pblica. Tal condenao fazia parte de uma pauta de luta da Medicina, que

    buscava assim obter o monoplio de cura da populao, e um esforo de higienizao e

    disciplinarizao da populao por parte do Estado. O principal instrumento de defesa dos

    espritas, nesse contexto, ser a prtica da caridade14. Se os espritas curavam somente por

    caridade, ento a sua prtica no poderia ser caracterizada como explorao j que os

    curadores no obtinham com isso qualquer recompensa pecuniria. Apesar de muitos

    juristas no concordarem com esse argumento, todos os juzes que julgaram processos que

    enquadravam os espritas no artigo 157 do Cdigo Penal os inocentaram.

    importante ressaltarmos o fato de que os espritas defenderam-se atravs das vias

    polticas. Espritas proeminentes formaram uma Comisso Permanente para fazer frente ao

    14 A caridade a chave da defesa legal dos espritas. Se, por um lado, o mdium que pratica a caridade no explora clientes, e sim assiste aos necessitados, por outro a caridade funciona como um smbolo ou marca de uma prtica genuinamente religiosa, e como tal, como um culto, estaria assegurada pela Constituio que garante a liberdade de culto (GIUMBELLI, 1997, p. 180).

  • 18

    Cdigo, defendendo o direito liberdade religiosa (DAMAZIO, 1994, p. 116 e 121).

    Apesar de tentar, atravs de representaes, a reviso dos artigos que restringiam a

    liberdade religiosa, por inconstitucionalidade, no obtiveram xito.

    Nesse momento de luta com a Lei, com a Medicina e com a Igreja, emergiu,

    portanto, no meio esprita a nfase na caridade, na diferenciao dos cultos afro-brasileiros

    e na cientificidade e superioridade da sua Doutrina (esposada por pessoas de alta cultura na

    Europa). a que a FEB, fazendo frente ao Cdigo Penal, muda o seu carter inicial e

    assume a liderana do ainda incipiente movimento esprita, dando apoio e atuando como

    representante dos grupos espritas (GIUMBELLI, 1997, p. 179-180) alm de enfatizar o seu

    carter religioso (GIUMBELLI, 1997, p. 116)

    Com relao imprensa, se no sculo XIX ela estava muito mais inclinada a

    condenar o Espiritismo do que a aplaudi-lo, j entre os anos 1910 e 1920 se verifica uma

    grande onda de aproximao entre ambos (GIUMBELLI, 1997, p. 237). Em um estudo de

    caso realizado com um jornal popular do Rio Grande do Sul, A Gazetinha, entre os anos de

    1896 e 1898, pde-se constatar a rapidez com que se deu essa virada, provavelmente pelas

    seguintes razes: o razovel prestgio social dos defensores do Espiritismo, membros das

    elites mdias urbanas; a cobertura dada pela Maonaria e a intensa produo de peridicos

    espritas (MIGUEL, 2009a, p. 160-164). No caso do Rio de Janeiro, vale apontar que a

    FEB, mesmo em meio a suspeitas de setores da polcia e dos inspetores de sade,

    considerada consensualmente como verdadeiro Espiritismo a partir da segunda metade da

    dcada de 1910 (GIUMBELLI, 1997, p. 240).

    Ao longo da Repblica Velha, o carter laico e anticlerical do Espiritismo vai se

    metamorfoseando numa espcie de anticatolicismo romanizado, isto , os espritas do

    Brasil se apropriam e resignificam valores promovidos pela reforma de cpula do

    catolicismo, se configurando num movimento de recuperao do cristianismo primitivo que

    lana acusaes generalizantes para o conjunto da Igreja Catlica (LEWGOY, 2004,

    p.109). O carter predominante do Espiritismo entre os brasileiros, desde o incio do sculo

    XX, foi, portanto, o de um movimento tipicamente religioso, ainda que pautado por um

    mpeto reformista, defendendo um modelo de religiosidade interior (sem os formalismos e

    ritualismos das missas e liturgias catlicas) e de prtica da caridade como nico meio de

  • 19

    salvao (em oposio ao dogma particularista que afirma que fora da Igreja no h

    salvao). Como, entretanto, na prtica, uma srie de caractersticas das instituies

    religiosas se faro presentes no movimento esprita, no fora de propsito enfatizar o

    carter religioso do Espiritismo que se realizou no Brasil. A constatao desse fato muito

    importante para compreendermos o contexto no qual o Movimento Universitrio Esprita

    surgir com um vis crtico ao igrejismo, ou excesso de dogmatismo religioso.

    Tambm importante observarmos a caracterizao scio-profissional dos espritas

    para melhor entendermos as posturas adotadas e o ethos que conduziram o movimento

    esprita a determinadas prticas e representaes perante o conjunto da sociedade e em seus

    conflitos internos. Na Repblica Velha, os condutores do Espiritismo eram

    majoritariamente militares, funcionrios pblicos, mdicos e advogados (LEWGOY, 2004,

    p. 110). Com esse perfil social, talvez se possa explicar a conformao que levou o

    movimento esprita a estabelecer uma relao assistencial com os pobres, cvica com a

    Nao, afrancesada com a cultura ocidental e competitiva com a Igreja Catlica

    (LEWGOY, 2004, p. 109-110).

    Na chamada Era Vargas, com o fim da Repblica Velha, os espritas flertaram com

    o nacionalismo15, o autoritarismo, o militarismo e a ideologia do estado organicista

    corporativista (LEWGOY, 2004, p. 68-69). Conforme j examinamos em estudo anterior,

    amparando-nos nos estudos de Fbio Luiz da Silva (SILVA, 2005) e de Bernardo Lewgoy

    (LEWGOY, 2004),

    Duas obras de grande relevo na literatura esprita conjugam-se para formar os cdigos que do forma ao nacionalismo e ao autoritarismo elitista que impregnaram boa parte do imaginrio esprita da poca: Brasil Corao do Mundo, Ptria do Evangelho e A Grande Sntese. Na

    15 Fbio Luiz da Silva, em Espiritismo: histria e poder (1938-1949), investiga em profundidade a obra psicografada por Chico Xavier, Brasil Corao do Mundo, Ptria do Evangelho, central para a construo do nacionalismo esprita brasileiro. Silva observa que a histria do Brasil narrada nessa obra uma criao divina, uma histria sagrada, trabalho de seres sobrenaturais (SILVA, 2005, p. 38). Tal observao de grande importncia para entendermos o relacionamento dos espritas com a poltica. O autor, referindo-se obra psicografada por Chico Xavier, explica que o Brasil, sendo solo santificado, local do Paraso terrestre, no poderia ficar sujeito s imposies de ordem poltica, pois o seu destino j estaria traado e garantido por Jesus e pelo prprio Deus descrito como Supremo Senhor, bem ao gosto medieval de relaes de vassalagem (SILVA, 2005, p. 52-53). Para Fbio Luiz da Silva, h um certo desprezo pela poltica na obra de Chico Xavier, o que corresponde ao discurso da neutralidade poltica que veremos adiante (SILVA, 2005, p. 53).

  • 20

    primeira obra, psicografada por Chico Xavier e atribuda ao esprito Humberto de Campos, fixa-se o sentimento nacional no movimento esprita, de tal forma que este passa a ver o Brasil como o grande arauto da nova era pela qual a humanidade encontraria o reflorescimento do evangelho. (...) J em A Grande Sntese, fica evidente a afinidade eletiva entre as concepes organicistas do Estado corporativista, que sustentavam ideologicamente o Estado Novo varguista e a defesa de um Estado orgnico, explicitamente um Estado corporativista colaboracionista, defendido por Pietro Ubaldi (UBALDI, 1937, p. 394). (MIGUEL, 2009b, p. 40-41)

    Foi, portanto, uma poca de profundas transformaes no modo de ser esprita.

    Importa destacarmos a questo poltica no movimento esprita desta poca, j que se

    contraditava um discurso de iseno poltica com diversos posicionamentos polticos por

    parte dos espritas expostos nas pginas do peridico oficial da FEB, o Reformador. Para

    no nos alongarmos, em sntese pode-se dizer que uma grande parte do movimento esprita

    brasileiro encaixou-se, em boa medida, ordem vigente no Brasil16,

    pendulando a nfase em determinadas interpretaes doutrinrias de acordo com o peso da conjuntura (colocada principalmente pelo Estado, pela disputa com a Igreja Catlica e pelo contexto internacional): ora desvalorizando, ora valorizando a democracia e adaptando um discurso patritico ao universalismo da Doutrina Esprita. A questo do sistema scio-econmico colocada pelo embate entre capitalismo e socialismo resolvida geralmente por uma moderao moralizadora do regime capitalista, com raras excees de um pendor para o socialismo cristo, de carter mais reformista e certamente no-violento. A ordem um valor bastante permanente, permeando diversos discursos, ligando-se comumente idia de harmonia que, em termos de proposta poltica, se d na defesa da harmonia entre capital e trabalho. Todo esse posicionamento

    16 Mais uma vez concordamos com as concluses de Fbio Luiz da Silva: No campo do Estado, os espritas, aqui representados pela FEB, escolheram isentar-se da participao poltico-partidria por entender que os destinos do pas j estariam traados pelos espritos superiores, e a tarefa que competia aos espritas era colaborar na obra de construo do Corao do Mundo, conforme anunciado. O discurso de neutralidade poltico-partidria foi estratgia eficaz naquele momento da histria do pas, permitindo menor nmero de atritos com a mquina do Estado. Tal opo, porm, no isentou a FEB de ter e defender uma posio poltica, conforme podemos inferir do que expusemos at aqui e fica evidente neste trecho do livro Brasil, Corao do Mundo e Ptria do Evangelho: Nesta poca de confuso e amargura, quando, com as mais justas razes, se tem, por toda parte, a triste organizao do homem econmico da filosofia marxista, que vem destruir todo o patrimnio de tradies dos que lutaram e sofreram no pretrito da humanidade, as medidas de represso e de segurana devem ser tomadas a bem das coletividades e das instituies, a fim de que uma onda inconsciente de destruio e morticnio no elimine o altar das esperanas da ptria. Que o capitalismo, visando prpria tranqilidade coletiva, seja chamado pelas administraes ao debate, a incentivar com os seus largos recursos a campanha do livro, do saneamento e do trabalho, em favor da concrdia universal. (XAVIER, 1998, p. 236) (SILVA, 2005, p. 112)

  • 21

    contraria obviamente a pronunciada neutralidade poltica das instituies espritas, j que vimos que essas posies eram defendidas atravs dos seus rgos de imprensa, muitas vezes por representantes das federativas, no caso examinado, a FERGS e a FEB. Dizer-se isento de posies polticas, entretanto, permitia um reforo oficializante dos discursos dos espritas capaz de estabilizar opinies de forma sacralizada sem abertura para o debate. E ainda, por outro lado, construa-se uma cobertura a qualquer eventual instabilidade poltica que pudesse causar disputas internas ao movimento esprita e intervenes externas do Estado, j que, sendo politicamente neutro, os espritas poderiam, mais facilmente, se acomodar estrategicamente a diversos regimes. (MIGUEL, 2009b, p. 68-69)

    S para darmos um exemplo de posicionamento no contexto em exame, curioso

    que, na mesma edio do Reformador (set, 1937, p. 355-356) em que se publicou um texto

    fortemente restritivo poltica (aconselhando os espritas a no se envolverem de modo

    algum na poltica, exceo do uso do direito de votar), foi publicado tambm um artigo de

    Vinicius de explcito contedo poltico, intitulado Poltica internacional. O articulista

    ataca o modelo protecionista e expansionista vigente nas relaes internacionais,

    considerando-o fruto do egosmo. Defende o livre-cmbio como preveno para as guerras.

    A soluo para os problemas econmicos, polticos e sociais nasce assim da aplicao de

    um princpio moral o do amor. Este princpio, aplicado vida econmica chama-se

    solidariedade, e, ordem social, chama-se fraternidade (Reformador, set, 1937, p. 358).

    No perodo varguista, devemos destacar ainda que a luta pelo estado laico, contra o

    domnio catlico, foi uma constante no movimento esprita. Vale citar, por exemplo, a luta

    pelo ensino laico opondo-se investida catlica de promoo do ensino religioso, pelo qual

    a Igreja exerceria amplamente seu poder de doutrinar dentro de todas as escolas do pas.

    Essa batalha poltica foi coordenada pela Coligao Nacional Pr-Estado Leigo, criada em

    17 de maio de 1931, que congregava pessoas das mais diferentes orientaes intelectuais,

    na defesa da separao entre Igreja e Estado e na luta pela igualdade de credos na futura

    constituio (ISAIA, 1998, p. 103). O temor que uniu espritas, maons, metodistas,

    luteranos, episcopais, entre outros religiosos, era de que a oficializao do ensino

    facultativo e a assistncia espiritual no obrigatria s Foras Armadas pudessem se

    transformar em instrumentos de reafirmao do catolicismo, rumo a uma possvel unio

    Igreja-Estado, ou assinatura de uma concordata, capaz de privilegiar a religio catlica

  • 22

    (ISAIA, 1998, p. 103). Chegou a ser presidente da Coligao um dos espritas mais

    destacados do movimento esprita: o Lins de Vasconcelos17, que lutara constantemente pela

    laicidade do Estado (WANTUIL, 1981, p. 493). Uma pista interessante para a investigao

    futura do sentido dessa luta pela laicidade do Estado encontra-se no jornal dirigido por

    Vasconcelos, o Mundo Esprita, no qual se encontra em destaque a seguinte frase, no topo

    do jornal: As Sociedades Espritas do Brasil so crists e apolticas e sustentam o princpio

    da laicidade do Estado (Mundo Esprita, 27 de ago. 1949, p. 1). Com isso, a deduo que

    podemos fazer em princpio que, na reflexo de muitos espritas, o discurso de no

    interveno das instituies espritas na poltica significava no misturar religio com

    Estado, garantindo sua laicidade, obviamente se tal princpio fosse estendido para as outras

    religies. Evidente, entretanto, que a luta pela laicidade constitui um ato poltico.

    Observemos que o fato de a Igreja Catlica ter ganhado bastante espao poltico na

    Era Vargas reforou a necessidade dos espritas atentarem para o Estado no seu esforo de

    legitimao social. O resultado, conforme nosso estudo, foi que os espritas

    Organizaram-se para isso, reivindicando direitos legais que lhes permitissem manter suas atividades sem coibies, como os passes e os receiturios medinicos. Lutaram por um Estado laico, pelo reconhecimento censitrio, pela liberdade religiosa, utilizando-se da Coligao Pr-Estado Leigo, de recursos judiciais, de propaganda via rdio e imprensa escrita, com intensa produo editorial. A busca por espao no Estado foi facilitada para os espritas pela proeminncia social das suas lideranas, atingindo o funcionalismo pblico, a imprensa e o meio militar at altos escales. Valores convergentes tambm contriburam para aproximar o movimento esprita e o governo Vargas, como a nfase na educao e no trabalho e as ideologias do nacionalismo e do corporativismo, com aproximao nesse caso tambm com o catolicismo. (MIGUEL, 2010, p. 219-220)

    17 Lins de Vasconcelos foi uma grande liderana do movimento esprita. Alm de ser engenheiro agrnomo, se tornou muito rico como empresrio e assim financiou diversas obras de caridade e instituies espritas, atuando como presidente da Federao Esprita do Paran (FEP) j aos 25 anos, frequentando a presidncia dessa instituio por seis mandatos e atuando como Secretrio Geral por cinco vezes, num perodo de dezoito anos, integrando-a a Liga Brasileira de Analfabetismo e realizando o II Congresso Esprita Paranaense. Foi diretor da Revista do Espiritualismo e do jornal Mundo Esprita, empenhou-se junto com Leopoldo Machado pela realizao do I Congresso de Mocidades Espritas do Brasil e fundou a Ao Social Esprita, no intuito de desenvolver o trabalho scio-assistencial do Espiritismo. Foi tambm membro efetivo da Assemblia Deliberativa da FEB, vice-presidente da Liga Esprita do Estado da Guanabara (sucednea da Liga Esprita do Brasil) e 1 secretrio da Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, figurando ainda como seu presidente de honra (WANTUL, 1981, p. 488-497).

  • 23

    importante falarmos tambm sobre o problema da unificao no movimento

    esprita, j que esta questo remete diretamente aos seus conflitos internos, levantando

    questes sobre poder, organizao hierrquica, diretrizes doutrinrias, movimentos

    paralelos, entre outras. Questes caras ao quadro conflituoso no qual se moveram os

    universitrios espritas que se sentiram descontentes com o panorama do movimento

    esprita brasileiro em que estavam situados nos anos 1960-70.

    Na dcada de 1940 o movimento esprita brasileiro passou por um processo

    turbulento em torno da definio de sua organizao institucional nacional. A culminncia

    desse processo foi o chamado Pacto ureo, um acordo estabelecido entre a Federao

    Esprita Brasileira (FEB) e federativas estaduais que conferiu primeira um poder sem

    precedentes no Espiritismo brasileiro, atravs de um Conselho Federativo Nacional (CFN)

    subordinado chamada Casa Mter (epteto consagrado FEB).

    Em suma, do ponto de vista da engenharia institucional-administrativa, o CFN recm nascido era mais filho da Casa Mter do que das outras federativas. Era de fato um rgo subordinado FEB, pois esta detinha a presidncia do Conselho e a funo de escolher seus membros em caso de impasse nas federativas atravs da lista trplice; alm disso, possua o poder de veto no oramento e a supremacia relativa no seu financiamento. (MIGUEL, no prelo)

    Para resumir, mais uma vez remetemos o leitor ao resultado final de um estudo de

    nossa autoria:

    Em resumo, pode-se dizer que o movimento esprita brasileiro foi bastante conturbado internamente ao longo do seu processo de unificao institucional, com projetos de organizao federativa diferenciados e conflitantes que acabaram por opor entidades umas s outras bem como enfeixar alianas em torno de uma causa comum. A hegemonia da FEB foi construda em torno de muita polmica acerca da sua atividade federativa, detonando rixas que no foram facilmente resolvidas. Uma tenso permanente entre aqueles que reivindicavam maior representao no comando do Espiritismo a nvel nacional, geralmente atravs da defesa da democratizao da organizao federativa, e a FEB que permanecia entrincheirada na defesa da supremacia do seu poder, provocou por um lado o fortalecimento de federativas estaduais que passavam a promover e dirigir eventos visando unificao, caso claro da FERGS e da USE, e por outro uma seqncia de reaes da FEB que foram do extremo do desligamento das federativas dissidentes do seu quadro de filiadas a uma concesso meticulosamente calculada aos insistentes reivindicadores da unificao com incluso representativa, visando permanecer com um

  • 24

    poder decisrio superior. O resultado final um Pacto ureo que divide radicalmente opinies quanto a sua legitimidade, que serve como um marco na histria da unificao do movimento esprita e como um ponto de articulao da FEB s federativas estaduais gerando uma estabilidade institucional e uma manuteno do poderio da Casa Mter sobre uma nova estrutura federativa que no possibilitava a permanncia de um processo decisrio absolutamente unilateral. Pode-se considerar, desse ponto de vista, que houve um avano democratizante na organizao do movimento esprita brasileiro que, no entanto, permitiu a fixao da legitimidade da FEB num posto de mando superior, como uma entidade independente e acima das outras distribudas pelo Brasil. (MIGUEL, no prelo)

    Na dcada de 1950, ento, a FEB j est consolidada com a vitria obtida no Pacto

    ureo. No imaginrio popular, Chico Xavier j comea a figurar como um santo. A nfase

    evanglica na prtica esprita ganha reforo com a disseminao do Culto do Evangelho no

    Lar (LEWGOY, 2004, p. 113). O resultado, conforme Lewgoy, a abertura do espiritismo

    a uma vivncia mais evanglica, mais emotiva, menos intelectual e mais familiar da

    religio (LEWGOY, 2004, p. 114).

    De passagem, notemos que justamente na contramo dessas caractersticas que

    surgir o MUE. A cultura que floresceu com os universitrios da dcada de 1960 se fez

    presente em alguma medida nos universitrios espritas. Em razo disso, estes sentiram o

    choque cultural da sua gerao com a gerao anterior das lideranas espritas.

    Destaquemos, por fim, mais alguns elementos que caracterizam a militncia poltica

    esprita at os dias de hoje, a qual contrastaremos logo adiante com o discurso de iseno

    poltica.

    Em 1961 foi promulgada a Lei das Diretrizes e Bases da Educao contra a qual

    muitos espritas se mobilizaram18, em razo da questo da liberdade de ensino, que, na

    proposio legal do deputado Carlos Lacerda, significava apenas o direito de particulares

    de comunicarem a outros os seus conhecimentos (ROMANELLI, 2005, p. 174-175). Era a

    investida do ensino privado sobre o ensino pblico, procurando o primeiro obter prioridade

    absoluta de ao e proteo do Estado em detrimento do segundo. Era tambm mais uma

    tentativa da Igreja Catlica de controlar a educao no Brasil. Apesar de ampla oposio

    dos educadores, intelectuais, estudantes e lderes sindicais, unidos na Campanha em Defesa

    18 Ver notcia Espritas tomam posio pr Escola Pblica no Jornal Cruzeiro do Sul, 05 jul, 1960, p. 8.

  • 25

    da Escola Pblica, Lei das Diretrizes e Bases da Educao, na sua nova forma pr-ensino

    privado, sua implantao se efetivou (ROMANELLI, 2005, p. 182-183). Nesse episdio, o

    Clube de Jornalistas Espritas, presidido por Herculano Pires, redigiu o Manifesto em

    Defesa da Democratizao Escolar, enviado ao Senado em protesto aprovao da Lei

    pela Cmara dos Deputados (Revista Internacional de Espiritismo, mar, 1961, p. 53-54)19.

    J na poca da Ditadura Militar podemos citar dois exemplos de posicionamento

    quanto a discusses acerca de polticas pblicas. importante deixar claro, porm, que

    estes posicionamentos, at onde pudemos verificar, no foram levados aos poderes pblicos

    ou imprensa laica, ficando restritos ao pblico esprita, como uma orientao doutrinria.

    Vejamos quais foram eles. Um foi a defesa da legalizao do Divrcio, como direito

    queles que malograram na tarefa de harmonizao do casamento (no entanto, por

    entender-se que o casamento um compromisso mtuo do casal antes de reencarnar, aos

    espritas recomendado seguir em frente com o casamento, mesmo sob o peso de agruras,

    carregando a sua cruz) (Reformador, mai, 1975, p. 98). Outro foi a postura de alguns

    contra o controle de natalidade atravs do advento das plulas anticoncepcionais (Revista

    Internacional de Espiritismo, ago, 1966, p. 155-157 e A Reencarnao, 1970).

    Por outro lado, parece-nos evidente a omisso com relao ditadura. A

    interpretao mais plausvel que as lideranas espritas estrategicamente preferiram

    ignorar a ilegitimidade de um governo autoritrio e violentamente repressor, a fim de evitar

    qualquer tipo de problema para as instituies espritas diante de um Estado ameaador20.

    O nico contraponto que encontramos a este posicionamento dos espritas , de fato, o

    MUE, por se caracterizar como um setor dentre os espritas que se organizou para reclamar

    das injustias sociais e propor abertamente, como soluo para estas injustias, um

    socialismo cristo calcado, doutrinariamente, no Espiritismo.

    19 Sobre o assunto, conferir o artigo de Dora Incontri: A contribuio esprita no debate da escola pblica disponvel em: http://www.pedagogiaespirita.com.br/tiki-read_article.php?articleId=28. 20 Tambm se pode considerar a omisso ou o silncio como estratgia de resistncia. Se pensarmos o movimento esprita como uma minoria sem foras para resistir ao poder do Estado, esta interpretao faz bastante sentido. Por outro lado, se pensarmos o movimento esprita do ponto de vista das suas relaes de poder internas, a omisso conjuga-se a uma imposio frente a uma minoria neste caso o MUE diante da hegemonia as instituies federativas e os representantes de centros espritas.

  • 26

    Passado o to combatido MUE, temos na atualidade, como exemplo de prtica

    poltica dos espritas, a Campanha Em Defesa Da Vida, promovida pela FEB. Nessa

    Campanha, alm de outras bandeiras, milita-se contra o aborto e a eutansia, constituindo-

    se tambm como uma forma de presso poltica contra a legalizao dessas prticas por

    parte do governo. Ilustrativo do seu carter poltico foi a participao dos espritas na

    Marcha da Cidadania pela Vida, ocorrida em So Paulo, dia 20 de maro de 2010, no

    intuito de barrar a aprovao do Projeto de Lei 1135/91 que pretendia legalizar o aborto at

    setembro do mesmo ano.

    1.2 Poltica e questes sociais no movimento esprita brasileiro Na terceira parte deste captulo demonstraremos a existncia de uma tradio

    intelectual esprita de vis socialista. Porm, importante analisar a presena do iderio

    socialista em meio a um vasto campo de concepes acerca dos problemas sociais

    expressas no meio esprita. Ou seja, no basta identificar o iderio socialista na figura de

    alguns intelectuais espritas; necessrio coloc-lo em relao a outras posturas para

    melhor dimension-lo no conjunto do movimento esprita.

    Para realizar essa tarefa, examinaremos agora artigos publicados na revista

    Reformador, da FEB, que tratem de questes relacionadas ao tema dos problemas sociais,

    com posicionamentos frente questo poltica e proposta socialista, enfatizando o papel

    reservado aos espritas na sociedade. Como o Reformador uma revista de ampla

    circulao no movimento esprita brasileiro, tendo consigo a fora de verdade advinda das

    representaes coletivas em torno da Casa Mter, poderemos generalizar os

    posicionamentos frequentes nessa revista para uma ampla populao de adeptos do

    Espiritismo, especialmente aqueles mais ligados s instituies federadas. Isto

    fundamental para situarmos o iderio socialista no meio esprita, circunscrevendo-o a suas

    devidas dimenses e visualizando o imaginrio esprita acerca do social, em sua

    complexidade de representaes, dando-nos com isso o quadro de referncias com o qual o

    MUE ter de lidar na sua empreitada reformadora. Com isso, tambm almejamos definir

    melhor a especificidade do MUE com relao ao conjunto histrico de representaes

    circulantes no meio esprita acerca da poltica e das questes sociais.

  • 27

    Uma observao crucial merece ser feita de imediato. J no artigo primeiro do

    Regulamento da Sociedade Parisiense de Estudos Espritas, fundada em 1858 por Allan

    Kardec, encontramos uma taxativa interdio s questes polticas e de economia

    social: Art. 1 - A Sociedade tem por objetivo o estudo de todos os fenmenos relativos

    s manifestaes espritas e suas aplicaes s cincias morais, fsicas, histricas e

    psicolgicas. So defesas nela as questes polticas, de controvrsia religiosa e de economia

    social (KARDEC, 1996 [1861], p. 445). O fato muito significativo, pois tal interdio

    pode servir de fundamento doutrinrio para o movimento esprita. Embora no tenhamos

    encontrado qualquer referncia direta ao artigo primeiro do Regulamento por parte dos

    articulistas do Reformador, certamente o texto de grande valia para explicar as

    subsequentes posturas do movimento esprita brasileiro. Afinal, trata-se do artigo primeiro

    do regulamento do primeiro centro esprita do mundo, fundado pelo codificador21 do

    Espiritismo. No pretendemos discutir aqui as razes pelas quais Kardec obstou a discusso

    de questes polticas, de controvrsia religiosa e de economia social na Sociedade

    Parisiense de Estudos Espritas22, mas no podemos deixar de notar que ele, na prtica,

    21 Notemos, de passagem, que os termos codificador e codificao (que, por sinal, no so encontrados nas obras de Kardec), utilizados para indicar o papel de Kardec com relao ao Espiritismo e a prpria Doutrina Esprita, so altamente significativos na demarcao do Espiritismo como religio. Um cdigo legal um conjunto sistematizado de disposies legais relativamente a um determinado campo do direito e um cdigo religioso um conjunto sistematizado de dogmas, de artigos de f. A rigidez, o carter de sistema fechado, caracterstica de ambos. Assim, a codificao kardequiana algo altamente sistematizado e fechado, com o adicional de que a ideia de revelao dos Espritos superiores tende a reforar ainda o sentido de perfeio do cdigo, por ter origem divina. Ainda que os espritas no queiram chamar de dogmas os elementos constituintes da sua doutrina, o modo como eles so assumidos possui portanto uma enorme fora dogmtica. 22 Deixamos indicado ao leitor interessado em aprofundar a questo passagens muito significativas da Revista Esprita (na qual Kardec anotava vrios temas que estavam em um estgio inconclusivo com relao Doutrina Esprita): (Revista Esprita, mai, 1861, p. 204; fev, 1862, p. 62; mar, 1863, p. 125; jan, 1864, p. 15; jun, 1865, p. 248; set, 1866, p. 355; dez, 1868, p. 540; nov, 1869, p. 449-450). Para dar um exemplo da maior importncia, vejamos uma orientao de Kardec aos espritas de Lyon: Devo ainda vos chamar a ateno para outra ttica de nossos adversrios: a de procurar comprometer os espritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que o da moral, para abordarem questes que no so de sua competncia e que poderiam, com toda razo, despertar susceptibilidades e desconfianas. Tambm no vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reunies tudo quanto disser respeito poltica e s questes irritantes; nesse caso, as discusses no levaro a nada e apenas suscitaro embaraos, enquanto ningum questionar a moral, quando ela for boa. Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente teis sero uma conseqncia natural. Trabalhando pelo progresso moral, assentareis os verdadeiros e mais slidos fundamentos de todas as melhoras, deixando a Deus o cuidado de fazer que as coisas cheguem no devido tempo. No prprio interesse do Espiritismo, que ainda jovem, mas que amadurece depressa, deveis opor

  • 28

    tratou desses campos do saber em suas obras. Allan Kardec opinou, de acordo com o seu

    arcabouo cultural, em temas como a desigualdade das riquezas (temtica da economia), a

    igualdade de direitos e a liberdade de conscincia (temas da poltica), e ainda diversos

    temas de controvrsia religiosa, como as doutrinas do cu e do inferno.

    Tendo em mente este marco zero da interdio poltica e economia social na

    histria do Espiritismo, voltemo-nos para o movimento esprita brasileiro.

    Primeiramente, tratemos dos textos publicados no Reformador que discutem

    diretamente a respeito da poltica23. Em 1937, durante a era Vargas, a FEB, atravs da sua

    revista oficial e de um opsculo de larga divulgao (Reformador, ago, 1937, p. 311),

    definiu-se frente questo da poltica. Ao que parece, deste opsculo que se retirou um

    excerto publicado na revista A Reencarnao (dez, 1937, p. 3-4), pertencente Federao

    Esprita do Rio Grande do Sul (FERGS), em que se resume a postura da FEB em oito itens:

    basicamente se defende a liberdade cvica do voto poltico, a respeitabilidade geral das ideologias, ainda que todas efmeras, quando no se apiam em mtodos violentos, devendo prevalecer sempre a fraternidade e por isso no sendo admitidas as atividades coletivas com carter de partidarismo poltico, j que essas levam ao fracionamento e desarmonia. Fiando-se no carter cristo do Espiritismo, este deve estar acima das lutas e competies partidrias, (...) [no recomendando candidaturas polticas quaisquer], limitando-se a deprecar a Deus luzes, paz e foras do Alto para aqueles que houverem de arcar com as responsabilidades de governo e considerando desligadas do seu quadro federativo as sociedades adesas que prefiram atuar politicamente. (MIGUEL, 2009b, p. 50-51)

    uma firmeza inabalvel aos que buscarem vos arrastar por um caminho perigoso (Revista Esprita, fev, 1862, p. 62). 23 Utilizamos para pesquisa a base de dados do Reformador que a FEB disponibiliza em seu site. A busca se d a partir de termos constantes nos ttulos das matrias publicadas no peridico. Para pesquisar o tema poltica, optamos simplesmente por buscar artigos que tivessem o termo poltica em seu ttulo, acrescidos de alguns outros do qual j tnhamos conhecimento. No total, trabalhamos com vinte artigos, selecionando os quatorze mais relevantes para a nossa anlise. claro que o ideal para uma apreciao mais rigorosa sobre o tema da poltica no Reformador seria a pesquisa extensiva por toda a revista em busca de discursos relacionados ao tema que certamente esto espalhados por diferentes textos (e no somente aqueles em que o termo poltica consta no ttulo). Entretanto, devido ao limite de tempo disponvel para essa pesquisa, tivemos de nos contentar com uma reduzida base documental. Cremos, porm, que tal base um importante marco inicial para delinear um caminho de pesquisa sobre o tema da poltica no pensamento esprita brasileiro.

  • 29

    Cabe destacar a ideia de neutralidade na postura da FEB, no apoiando esta ou

    aquela agremiao poltica. No chega a ser discutida a questo da participao do esprita,

    enquanto cidado (sem falar em nome do Espiritismo), na vida poltico-partidria.

    Em artigo publicado no Reformador (ago, 1937, p. 311-313) sem identificao de

    autoria, comenta-se uma mensagem de Emmanuel sobre Espiritismo e poltica, dizendo que

    a mensagem corrobora os pontos de vista usualmente apresentados na revista oficial da

    FEB e no opsculo j referido tratando do tema.

    Na mensagem, Emmanuel alerta para os perigos da poltica, mas no veta a

    participao do esprita. A misso evangelizadora e a atividade poltica, alis, no so

    colocadas como mutuamente excludentes (apesar do alerta para que no seja abandonada a

    funo evangelizadora em razo da funo poltica), como quer fazer parecer o comentrio

    do ms seguinte no Reformador.

    Emmanuel ainda d palpites quanto s ideologias nacionalistas e quanto a tomar

    partido de classes ou de bancos. Ou seja, opina politicamente. Aqui cabe um parntesis a

    respeito de Emmanuel. O respeitado Esprito guia de Chico Xavier dissertara sobre

    temticas polticas, econmicas e sociais de alto relevo desde a sua primeira obra

    publicada, que leva o seu prprio nome. Nela discute-se a experincia sovitica, o nazismo

    e o fascismo, o imperialismo e chega-se inclusive a defesa de um socialismo de Jesus

    (XAVIER, 1938)24. J em outra ocasio, conta-se o seguinte episdio:

    24 Falando da relao do catolicismo com o fascismo e o nazismo, Emmanuel afirma que os pases democrticos, que se encaminham, com os seus estatutos de governo, para o socialismo cristo do porvir, sentiriam dificuldade em suportar tutelas dessa natureza. Trabalhadores por doutrinas libertrias, eles vm pagando com sangue os sues progressos penosamente obtidos. Longe de ns aplaudirmos a poltica nefasta de Stalin ou as suas atividades nos gabinetes de Lon Blum ou de Azaa; apenas salientamos a tendncia das massas para a liberdade, sacudindo o jugo milenar do Catolicismo, que, a pretexto de prosseguir na obra crist, apossou-se do Estado para dominar e escravizar as conscincias (XAVIER, 1938, p. 57). Em outra passagem, diz que dentro das vibraes antagnicas do fascismo e do bolchevismo, frmulas transitrias de atividades polticas do Velho Mundo, todos os que falam em decadncia do liberalismo esto errados. Os governos fortes da atualidade, tenham eles os rtulos de nacionalismo ou internacionalismo, ho de voltar-se, do crculo de suas experincias, para as conquistas liberais do esprito humano, caminhando com essas conquistas na sua estrada evolutiva, progredindo e avanando para o socialismo cristo do porvir (XAVIER, 1938, p. 108). Destacamos que Emmanuel joga pesadamente a responsabilidade por diversos males nos desvios da Igreja Catlica: A estabilidade da Civilizao Ocidental, sua evoluo para o socialismo de Jesus, dependiam da fidelidade da Igreja Catlica aos princpios cristos. Mas, a Igreja negou-se ao cumprimento de sua grandiosa misso espiritual e o resultado temo-lo na desesperao das almas humanas, em face dos problemas transcendentes da vida (XAVIER, 1938, p. 110).

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    Durante as reunies pblicas da Comunho Esprita Crist, de Uberaba, Chico recebe uma mensagem de Emmanuel destinada Freitas Nobre. Nela, Emmanuel falava de sua longa tarefa de pacificao do Brasil. E Chico acrescentou Dr. Nobre, Emmanuel est dizendo que o senhor ser chamado a atuar em poca muito difcil para o nosso pas, quando haver, inclusive perigo de derramamento de sangue. Primeiramente o Brasil cair muito esquerda, depois direita e finalmente caminhar pelo centro, at encontrar seu verdadeiro destino. Haver turbulncia nesses perodos de mudana e o senhor atuar como pacificador, evitando confrontos e radicalizaes.

    Era maio de 1962. O pas ainda se refazia da renncia de Jnio Quadros, Jango Goulart deposto e os militares t