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| 83 A PROBLEMÁTICA ENFRENTADA PELAS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS ANTE O CONSERVADORISMO LEGISLATIVO E JURISDICIONAL Clara Bilro Pereira de Araújo Acadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Clara Silvério Diógenes Acadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO O artigo investiga o enfrentamento das famílias simultâneas pelo legislador e juristas brasileiros. Para tanto, destaca a função social da família com o advento da Constituição Federal de 1988 e analisa até que ponto a tutela da monogamia coaduna-se com esta. Constata que, a despeito dos impedimentos previstos no Código Civil vigente, as famílias paralelas configuram uma realidade social no país. Verifica, contudo, que o Poder Judiciário, ainda em nome do preceito monogâmico, mantém uma atuação conservadora sobre a questão. Conclui que o Estado continua a interferir de forma indevida na família, desamparando direitos atrelados à dignidade da pessoa humana. Palavras chave: Famílias simultâneas. Função social da família. Monogamia. Conservadorismo. Clara Bilro Pereira de Araújo - Clara Silvério Diógenes

A PROBLEMÁTICA ENFRENTADA PELAS FAMÍLIAS … · (artigos 1.521, inciso VI, e 1.723, § 1º). ... art. 3º, IV) é de clareza solar ... Assim, em face da perspectiva atual do Direito

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A PROBLEMÁTICA ENFRENTADA PELAS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS ANTE O CONSERVADORISMO LEGISLATIVO E JURISDICIONAL

Clara Bilro Pereira de AraújoAcadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Clara Silvério DiógenesAcadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

O artigo investiga o enfrentamento das famílias simultâneas pelo legislador e juristas brasileiros. Para tanto, destaca a função social da família com o advento da Constituição Federal de 1988 e analisa até que ponto a tutela da monogamia coaduna-se com esta. Constata que, a despeito dos impedimentos previstos no Código Civil vigente, as famílias paralelas configuram uma realidade social no país. Verifica, contudo, que o Poder Judiciário, ainda em nome do preceito monogâmico, mantém uma atuação conservadora sobre a questão. Conclui que o Estado continua a interferir de forma indevida na família, desamparando direitos atrelados à dignidade da pessoa humana.

Palavras chave: Famílias simultâneas. Função social da família. Monogamia. Conservadorismo.

Clara Bilro Pereira de Araújo - Clara Silvério Diógenes

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1. INTRODUÇÃO

O presente artigo parte da observação de que o legislador ordinário e os membros do Poder Judiciário brasileiro permanecem, nos dias atuais, adotando uma postura conservadora no enfrentamento das questões relativas às famílias paralelas ou simultâneas. Nesse contexto, o objetivo central do trabalho consiste em investigar a existência ou não de legitimidade nessa atuação, bem como de que modo ela repercute no meio social.

Para tanto, inicialmente, busca-se abordar a nova perspectiva que assumiu o Direito das Famílias com o advento da Constituição Federal de 1988, responsável por diversas e densas alterações na regulamentação das relações privadas. Nesse ínterim, a família, assim como os demais institutos jurídicos civilistas, ganhou uma função social, em prol da dignidade da pessoa humana.

Não obstante a reestruturação dos princípios do estatuto jurídico da família em face da tábua axiológica contemplada na Constituição, verifica-se que a monogamia permanece sendo enquadrada entre eles. Questiona-se, por isso, a coerência de tal enquadramento ante os princípios constitucionais, partindo-se da suposição de que a monogamia restringe a liberdade na formação da entidade familiar.

Em seguida, passa-se a avaliar a aplicabilidade dos dispositivos do Código Civil de 2002 que, em nome do preceito monogâmico, pretendem impedir o casamento e a união estável de pessoa casada (artigos 1.521, inciso VI, e 1.723, § 1º). Vislumbra-se, pois, que, a despeito do que determina o Diploma, as famílias paralelas, constituídas por uniões estáveis ou por casamento e união estável, são fatos comuns na realidade social do país.

Tratando-se de uma realidade social, não podem ser, portanto, ignoradas pelo Direito e, já que não contempladas pelo legislador, devem ser enfrentadas pelos magistrados, estes mais sensíveis às questões sociais postas do que aquele. Ocorre que não é o que se observa da análise jurisprudencial a respeito da matéria, que reforça a invisibilidade

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jurídica das relações paralelas. Disso extrai-se a relevância do tema, visto que o Direito não pode ignorar a realidade, sob pena de negar direitos e, assim, violar a dignidade humana.

Por fim, a metodologia adotada trata de uma pesquisa teórica, seguindo a vertente jurídica. Desenvolveu-se o artigo por meio da investigação dos dispositivos do Código Civil, em especial daqueles referentes à regulamentação da união estável, bem como pela coleta de informações na Jurisprudência brasileira e na melhor doutrina civilista. 2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA

Inicialmente, cumpre recordar que a família do século XIX e início do século XX caracterizava-se por ser heteroparental, patriarcal e hierarquizada. O Código Civil de 1916, pois, elaborado ainda no século XIX, refletia os valores da época, referindo-se a um conceito patrimonial de família, restrita ao casamento, com funções claras de procriação e produção de riquezas. Nessa toada, a família apresentava natureza de instituição em relação à integridade da qual o Estado devia vigorosa proteção.

No entanto, com a complexa evolução da sociedade e a supremacia adquirida pela Constituição Federal de 1988 em detrimento do Diploma Civil, consagrou-se no cerne do ordenamento jurídico brasileiro - e, portanto, da tutela estatal - a dignidade da pessoa humana. Reconhecia-se, a partir de então, o predomínio das relações jurídicas existenciais sobre aquelas meramente patrimoniais, que imperavam na legislação civil de 1916.

Por óbvio, a promoção da dignidade da pessoa humana como fundamento da República (artigo 1º, inciso III, da CF) determinou profundas modificações na estrutura tradicional de regulação das relações privadas. Isso porque recaiu sobre cada instituto jurídico civilista a obrigação de exercer uma determinada função perante a sociedade,

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com vistas a dar eficácia à finalidade superior, já mencionada, da Carta Magna. Nesse sentido, é o pensamento da doutrina:

Tornou-se inquestionável, portanto, que o Direito é um sistema aberto de valores, materializando-se em princípios, que indicam uma direção a seguir, uma finalidade a alcançar. Todo instituto jurídico é criado com um determinado fim, com uma determinada função, a qual deve ser observada na sua aplicação, sob pena de se desvirtuá-lo. (GAMA; GUERRA, 2007, p. 162)

Desse modo, não podendo ser de maneira diversa, a família também passou a assumir uma função social, qual seja, a de promover o desenvolvimento pleno da personalidade, de propiciar o bem-estar e a felicidade dos sujeitos. A família, atrelada, agora, a essa função, ganhou, então, uma nova roupagem, uma vez que deixou de ser qualificada enquanto instituição e se tornou instrumento a serviço da dignidade da pessoa humana.

É o que alguns doutrinadores optaram por denominar de família eudemonista: “não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade” (FACHIN, 1999, p. 10). Com o mesmo pensar, lecionam Farias e Rosenvald (2012, p. 47-48):

Não há mais proteção à família pela família, senão em razão do ser humano. Enfim, é a valorização definitiva e inescondível da pessoa humana!Não se olvide, demais de tudo isso, que a Lex Legum (no art. 3º, IV) é de clareza solar ao disparar que é objetivo fundamental da República “promover o bem de todos”, deixando antever a nítida preocupação com a dignidade da pessoa humana.[...] É o que se convencionou chamar de família eudemonista, caracterizada pela busca da felicidade

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pessoal e solidária de cada um de seus membros. (grifo do autor)

Nesse novo contexto, adquiriu posição privilegiada, no âmbito do Direito das Famílias, o princípio, constitucionalmente contemplado, da autonomia da vontade dos indivíduos, de maneira tal que a família de hoje deve ser constituída no molde que aos seus membros melhor se afigurar. A família reduzida ao matrimônio deu lugar, portanto, à pluralidade de entidades familiares, fundadas no afeto e na solidariedade mútua entre os seus integrantes.

A mencionada pluralidade encontra embasamento constitucional no artigo 226, § 3º e § 4º, da Carta Maior, que delega igual proteção ao casamento, à união estável entre o homem e a mulher e à família monoparental. Evidentemente, não se trata de rol taxativo perante as múltiplas e complexas relações constatadas na realidade social contemporânea, podendo-se citar ainda como exemplos as uniões homoafetivas, as relações poliafetivas e as famílias simultâneas ou paralelas.

Nesse seguimento, elucida o doutrinador Lôbo (2011, p. 70), com fundamento na Constituição Federal de 1988, que o princípio da liberdade no campo das relações familiares apresenta duas frentes imprescindíveis: “liberdade da entidade familiar, diante do Estado e da sociedade, e liberdade de cada membro diante dos outros membros e da própria entidade familiar”.

Dessa feita, não somente não cabe ao Estado interferir na vida privada das pessoas a ponto de determinar padrões para a configuração de suas famílias, como também, se ele assim o fizer, estará cometendo grave afronta ao princípio da liberdade. De outra parte, cada membro, no exercício de sua dignidade, é livre - porque igual - em relação ao outro e, consequentemente, à sua entidade familiar, de modo que qualquer exploração em seu meio deve ser combatida.

Por esses motivos, sob a ótica das duas vertentes do princípio da liberdade, pode-se dizer que a participação do Estado na família

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será legítima apenas se com vistas a resguardar o desenvolvimento da integridade de qualquer de seus componentes que seja - ou esteja em risco de ser - violada pelo outro. Coadunam com esse ponto de vista Farias e Rosenvald (2012, p. 157):

Isto porque o Direito das Famílias contemporâneo se apresenta como a expressão mais pura de uma relação jurídica privada, submetida, por conseguinte, ao exercício da autonomia privada dos indivíduos. Nesse quadrante, toda e qualquer ingerência estatal somente será legítima e justificável quando tiver como fundamento a proteção dos sujeitos de direito, notadamente daqueles vulneráveis, como a criança e o adolescente, bem como a pessoa idosa (a quem se dedica proteção integral).

Assim, em face da perspectiva atual do Direito Civil-Constitucional, deve-se fazer prevalecer a autonomia privada na família, para que a sua construção, e mesmo extinção, ocorra de acordo com os valores morais, ideais e projetos de vida de seus membros. A observância ao princípio da liberdade na comunidade familiar mostra-se essencial para a boa consecução da função social da família.

3. A SUPERAÇÃO DA MONOGAMIA COMO PRINCÍPIO JURÍDICO DA FAMÍLIA

Nesse novo viés que assume o Direito das Famílias, urge investigar a natureza da monogamia, elemento que, desde sempre, exerce grande influência sobre o ordenamento jurídico brasileiro. Em consulta a livros da doutrina civilista, verifica-se, ainda, o enquadramento da monogamia enquanto princípio do estatuto jurídico da família.

Parte-se, aqui, contudo, da suposição de que o Estado, ao determinar, em nome da monogamia, uma proibição a pessoas casadas de constituírem outra família, está intervindo de modo a limitar a liberdade na formação da entidade familiar. Por isso, no presente momento,

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questiona-se acerca da pertinência em manter tal qualificação diante da nova feição – constitucionalizada - que adquiriu o Direito das Famílias.

Para tanto, faz-se mister retomar a origem da monogamia na cultura ocidental, que se deu ainda na Antiguidade, especialmente entre os gregos. Antes disso, aponta Engels (1984), em seus estudos sobre a história da família, que, no período primitivo, em que ainda não vigoravam as limitações cominadas pelo costume, observava-se a prática da poligamia pelos homens e da poliandria por suas mulheres.

A família monogâmica, consoante o autor (1984), não surgiu, pois, em razão de causas naturais, mas, sobretudo, em função de novas condições sociais e econômicas que se estruturaram a partir de então. Sustenta Engels (1984, p. 82), nesse sentido, que “a monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos – as de um homem – e do desejo de transmitir estas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro”.

De sua afirmação, podem ser extraídas as duas bases sobre as quais se ergueu a ideia de monogamia: o surgimento da propriedade privada e o predomínio econômico do homem. A partir disso, é possível compreender que ela se origina da necessidade de conservar o patrimônio do homem, detentor de todas as riquezas, e de transmiti-lo por herança aos filhos que, para isso, precisam ser seus.

Em função de tal necessidade, a família monogâmica ganha um papel claro e específico: assegurar a reprodução de filhos cuja paternidade seja certa, sem que qualquer pequena dúvida recaia sobre ela. É exatamente nesse ponto que reside a razão pela qual a monogamia contraiu um caráter peculiar, que perdura mesmo nos dias atuais: a monogamia exclusiva para a mulher.

Nessa toada, aduz Engels (1984), quando retrata a época heroica grega, que a existência da escravidão concomitante com a monogamia foi determinante para delinear esta característica, visto que o homem detinha a propriedade sobre várias jovens cativas, dispondo delas conforme sua vontade. De outra parte, assumia a sua mulher nada mais do que o posto de mãe de seus herdeiros, que administrava a casa

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e monitorava as escravas.Evidentemente, passa-se a ser severamente exigida a fidelidade

conjugal da mulher, enquanto ao homem o próprio costume cede o direito à traição, quando não a própria lei manifestamente autorizava, como fez o Código de Napoleão na França. Nas exatas palavras de Engels (1984, p. 82): “Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem; tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor empecilho à poligamia, oculta ou descarada, deste”.

Nessa senda, insta concordar com a definição posta por Giddens (2010, p. 63): “A família tradicional era acima de tudo uma unidade econômica”. Não por outro motivo vigorou por muito tempo o casamento de conveniência, quando os pais se encarregavam de escolher o cônjuge de sua filha de acordo com o tamanho de suas riquezas. O matrimônio representava, desta feita, uma aliança político econômica entre duas famílias, em quase nada tendo a ver com as afeições dos sujeitos que o compunham.

A partir do que foi exposto até agora, cabe, então, traçar um primeiro apontamento. O Código Civil de 1916, que regia soberanamente as relações privadas, retratava a sociedade do século XIX e início do século XX, dispondo, por isso, de manifesta natureza patrimonialista, como antes dito. Isso significa dizer que a mencionada codificação fora construída em torno de um objetivo primordial: proteger o direito à propriedade.

Ao obstar o reconhecimento dos laços extramatrimoniais, assim como o de qualquer filho havido fora do casamento, o Diploma Civil de 16, impedia o esvaziamento do patrimônio da família “legítima”, concentrada nas mãos de seu patriarca. Assim, a monogamia ali contemplada estava perfeitamente em harmonia com os seus ideais e, visivelmente, a serviço da proteção à propriedade. É o que explica Silva (2013)1:

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O princípio da monogamia está diretamente vinculado à distinção entre família legítima e família ilegítima, a família formada pelo casamento e concubinato. Portanto, o princípio é perfeitamente adequado à tutela da família transmissora do patrimônio, transpessoal. O princípio da monogamia pressupõe uma família merecedora da tutela do Estado e outra que fica fora deste âmbito de proteção. (grifo nosso)

Ocorre que, com as mudanças de valores na sociedade, tomou nova forma e cada vez maior relevância um elemento que, segundo Engels (1984), pouco se conhecia na Antiguidade, quando se desenvolveu a monogamia. Trata-se do amor sexual, que, conforme o doutrinador (1984), resumia-se, inicialmente, a um dever objetivo, meramente acessório, que surgia com a celebração do casamento. Na atualidade, por outro lado, define-se pelas inclinações subjetivas a partir das quais se ergue a família, configurando, pois, a sua base.

O filósofo (1984) afirma que o amor sexual moderno é muito além do que o simples desejo sexual. Enquanto este sempre existiu porque inerente à natureza do ser humano, atrelando-se, em tempos antigos, unicamente à procriação, aquele presume o afeto, a solidariedade e o respeito recíprocos entre os amantes e, desta feita, a igualdade e liberdade dos sujeitos. Acerca do assunto, vale destacar as lições de Giddens (2010, p. 66):

[...] ao longo das últimas décadas os principais elementos de nossas vidas sexuais no Ocidente mudaram de uma maneira absolutamente fundamental. A separação entre sexualidade e reprodução está a princípio completa. Pela primeira vez a sexualidade é algo a ser descoberto, moldado, alterado. A sexualidade, que costumava ser definida tão estritamente em relação ao casamento e à legitimidade, agora pouca conexão tem com eles.

Nesse sentido, a família, segundo Giddens (2010), passa a ser

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construída no amor romântico, desfazendo-se do seu tradicional caráter de contrato econômico. Tal mudança foi tão absorvida pela sociedade, que, atualmente, ao oposto do século XIX e início do século XX, sofre forte reprovação social a família não pautada no amor e o indivíduo que visa obter com o casamento vantagens em virtude da boa condição financeira do seu par.

É o que se extrai dos ensinamentos de Engels (1984, p. 88): “nada ficou tão inquebrantavelmente assentado como a imoralidade de todo casamento não baseado num amor sexual recíproco e num contrato de cônjuges efetivamente livres. Em resumo: proclamava-se como um direito do ser humano o matrimônio por amor”.

São esses novos ideais sobre os quais começa a se reorganizar a família da sociedade brasileira que a Constituição Federal de 1988 pretende espelhar e propagar, relocando os objetivos patrimoniais para um segundo plano, bem abaixo das questões existenciais, que são atreladas à dignidade da pessoa humana. O atual conceito de família à luz do afeto vem, dessa maneira, a cominar o princípio da pluralidade das entidades familiares, às quais merece proteção o Estado.

Assim, se a Constituição Federal se tornou o cerne da ordem jurídica brasileira e, portanto, de todas as relações jurídicas, inclusive as privadas, devendo a legislação civil obediência às suas normas, a monogamia – para a mulher -, que antes se encaixava perfeitamente como princípio do estatuto jurídico da família, de acordo com os objetivos patrimonialistas do Código Civil de 1916, hoje, não mais se justifica nem se sustenta como tal.

Como visto, a finalidade da monogamia cinge-se a proteger o patrimônio da família, a partir do controle da sexualidade feminina e, portanto, da paternidade de sua prole. Nos dias atuais, perdeu a monogamia o seu objeto de tutela estatal, seja porque a família nada mais tem a ver com a unidade econômica de antes, seja porque ao Estado não deve mais interessar proteger a incolumidade da propriedade erguida em sua constância e muito menos controlar a sexualidade.

Não é só. A monogamia como regra não coaduna com os

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princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, que hoje regem o estatuto jurídico da família, mais especificamente o da liberdade – do qual decorre a pluralidade de entidades familiares – e o da igualdade. Impô-la pode confrontar o primeiro, porque limita a autonomia dos sujeitos de constituírem a família à sua vontade, e o segundo, porque presume uma família legítima - o casamento - e outra ilegítima – a extramatrimonial -, dando predominância a uma e condenando à invisibilidade a outra.

Por tais motivos, sustenta-se que, muito embora a monogamia configure elemento predominante da moral ocidental, em grande parte decorrente de preceitos religiosos, esvaziaram-se, com os novos valores democráticos e os princípios assentados na Constituição, os fundamentos para o Estado exigir o seu exercício e punir o seu descumprimento. Em função disso, mostra-se anacrônico e ilegítimo enquadrar, hoje, a monogamia como princípio do estatuto jurídico. Na argumentação de Silva (2013)2:

De fato, a superação da monogamia como princípio, constitui questão de cidadania. Num Estado plural e laico, todos devem ter espaço para a livre constituição de família. Não cabe ao Estado, em atenção a princípios arcaicos e injustificáveis, no atual estágio de desenvolvimento do Direito das Famílias, colocar obstáculos ao reconhecimento das diversas formas de constituição de família. Ainda que haja uma maioria religiosa e mesmo uma hegemônica compreensão moral de que a monogamia deve nortear as relações de conjugalidade, esta maioria não tem o direito de impor à totalidade dos cidadãos um modelo único de família.

2 Documento on-line não paginado.

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4. A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 1.723, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL: AS FAMÍLIAS PARALELAS COMO UMA REALIDADE SOCIAL

Chegado a tal fato conclusivo, poderia se presumir que, advinda a Constituição Federal de 1988, suprema para toda a ordem jurídica, o Código Civil de 2002, que se promulgava anos após, estaria impregnado, em sua totalidade, dos novos valores e princípios estabelecidos pela Carta. Entretanto, ressalva, com razão, Moraes (2006, p. 236) que “as conquistas até aqui obtidas não diminuem a extensão do desafio que temos diante de nós”.

Conforme os ensinamentos da autora (2006), ao contrário do que se poderia supor acerca de um novo Código Civil que já surgia constitucionalizado, dentre os inúmeros empecilhos que perseveram e as novas dificuldades que se colocam à metodologia civil-constitucional, o Diploma de 2002 é o maior deles. Isso porque são muitos os “anacronismos e deficiências que o texto, elaborado na década de 1970, traz em seu corpo, consagrando, em numerosos dispositivos, entendimentos que se opõem ao movimento de personalização que se vinha operando em doutrina e jurisprudência” (MORAES, 2006, p. 236).

Em meio a esses anacronismos, o novo Código Civil, em nome do princípio – já superado – da monogamia, mantém o impedimento a pessoas casadas de casarem (artigo 1.521, inciso VI) e, ainda, passa a aplicá-lo à união estável (artigo 1.723, § 1º). Assim, a rigor de tais dispositivos, a pessoa casada, além de não poder contrair novo casamento, encontra-se obstada de compor união estável, salvo esteja separada de fato ou judicialmente.

Neste momento, não mais se pretende discutir a inadequação teórica desses artigos à luz da tábua axiológica prevista na Constituição, uma vez que já restou demonstrado ser incabível, perante ela, elencar a monogamia como princípio estruturante do Direito de Família, e o Código Civil, em sentido contrário, o resguarda. Visa-se, agora, analisar a aplicabilidade dos mencionados dispositivos em face da realidade social

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brasileira.Nesse viés, não se pode negar que, no âmbito do casamento,

é plenamente exequível o impedimento previsto no inciso VI do artigo 1.521. Isso porque a existência do matrimônio está condicionada à chancela estatal, de maneira que somente se podem dizer casados aqueles que, atendidos todos os requisitos e formalidades legais, forem constituídos pelo Estado como tal. Nessa toada, explica Dias (2015, p. 248) que, tentando a pessoa casada realizar novo casamento, a despeito do disposto na lei:

[...] há como tornar obrigatório tal comando: simplesmente deixar de celebrar o casamento. Mais. Desatendida a proibição legal, o casamento é nulo (CC 1.548 II) e pode, a qualquer tempo, ser desconstituído por iniciativa dos interessados ou do Ministério Público (CC 1.549). Não é só. Anulado o matrimônio, os efeitos da sentença retroagem à data da celebração (CC 1.563), e o enlace simplesmente desaparece como se nunca tivesse existido. (grifo do autor)

Por sua vez, quanto ao § 1º do artigo 1.723, há de se destacar, inicialmente, que o Diploma Civil vigente, ao qual se delegou a regulamentação da união estável, após sua expressa previsão na Carta Magna, estendeu a ela os institutos próprios do casamento, regulando-a à imagem e semelhança deste. Assim, ao empregar os impedimentos matrimoniais à união estável, afirma Dias (2015, p. 248) que o legislador, “De maneira até um pouco ingênua, tenta limitar a vontade dos parceiros pelos mesmos motivos que nega o direito de casar”.

Não observou ele, todavia, que a união estável e o casamento, embora ambos merecedores de igual proteção da ordem jurídica, configuram formas de constituir família, essencialmente, distintas. A união estável nasce a partir da convivência, de modo que a sua existência, ao contrário do matrimônio, independe da outorga do Estado. Não é preciso autorização estatal para que então se possa vislumbrar essa

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entidade familiar: ela primeiro existe e cabe tão somente ao Estado reconhecê-la.

Não por outro motivo a união estável é, ou ao menos deveria ser, o campo familiar, por excelência, regido pela preeminência da autonomia privada, de forma a propiciar aos sujeitos fugir das demasiadas formalidades e rédeas que define o Estado para o casamento. No mesmo sentido, sustenta Schreiber (2010, p. 10) que “o instituto da união estável surgiu como meio de proteção às famílias formadas espontaneamente, à margem do liame solene do matrimônio”.

Também se extrai das lições de Namur (2008), ao tratar do tema das famílias simultâneas, que a família está situada antes do Direito, razão pela qual não é o Direito que deve atribuir forma e conteúdo à família, e sim o contrário, sob pena de não a abranger em toda a sua complexidade. Como visto, ainda que o Direito possa condicionar a existência do casamento, não pode, naturalmente, fazê-lo com a união estável.

Assim, se uma pessoa casada compõe uma união estável, não há como reputá-la inexistente nem mesmo a fazer desaparecer, apesar da proibição legal contida no § 1º do artigo 1.723 do Código Civil. Merecem destaque, nesse contexto, os apontamentos de Dias (2015, p. 249):

Tais relações estão sujeitas à reprovação social e legal, mas nem por isso há algum meio capaz de coibir sua formação. Como existem, não há como simplesmente ignorá-las. [...] Com ou sem impedimentos à sua constituição, entidades familiares que se constituem desfocadas do modelo oficial merecem proteção como núcleo integrante da sociedade. Formou-se uma união estável, ainda que seus membros tenham desobedecido as restrições legais.

Desta feita, muito embora se reconheça a eficácia da vedação contemplada no inciso VI do artigo 1.521, defende-se, aqui, a impossibilidade de observância prática daquela prevista no § 1º do

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artigo 1.723. Em outras palavras, significa dizer que, em que pese reunir o Estado poderes para, de fato, impedir a formação de dois casamentos paralelos, não é capaz de evitar a constituição de uma união estável em concomitância com um casamento e, por evidência, a coexistência de duas ou mais uniões estáveis – mesmo porque em relação a esta última hipótese não consta proibição legal manifesta.

Em verdade, famílias paralelas ou simultâneas com estas conformações são fatos constatados comumente na realidade social brasileira. É o que reitera Madaleno (2008, p. 780) ao alegar que: “Não tem sido nada infreqüente os pretórios brasileiros depararem com relacionamentos paralelos, entre um casamento e uma união estável ou duas uniões estáveis, de longa e pública duração, com prole, formação de patrimônio e reconhecimento social”.

Assim, as famílias paralelas são uma realidade social no país, não apenas atual, como também antiga. Isso em razão do caráter peculiar que, desde sua origem, apresentou a monogamia – exclusiva para a mulher. Consequentemente, a grande maioria dos exemplos que se verificam são constituídos por um homem que forma duas ou mais famílias com duas ou mais mulheres, normalmente, dependentes economicamente dele.

Nesse contexto, ocorre como pontifica Engels (1984, p. 81): “Com efeito, o matrimônio por grupos continua existindo, ainda hoje, para os homens. Aquilo que para a mulher é um crime de graves consequências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, quando muito, uma leve mancha moral que se carrega com satisfação”.

5. DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES PARALELAS

Conforme aduzido e demonstrado supra, as famílias paralelas são uma realidade histórica na sociedade brasileira, que, no entanto, permanecem às margens do Direito. Nesse ínterim, mesmo gozando dos requisitos inerentes à caracterização de uma união estável, quais

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sejam, a ostensividade, a publicidade e a notoriedade, na grande maioria dos casos, nenhum direito tem sido reconhecido, pelo Poder Judiciário, à mulher tida por “concubina”, afastando do homem qualquer ônus decorrente do término da relação.

Nada obstante essa situação e apesar da inexistência de legislação que garanta à mulher o direito de ter reconhecida a união paralela que manteve com o homem, faz-se mister a tutela dessa realidade pelo Direito, sob pena de se incorrer em duas perigosas consequências. A primeira, e principal, delas é deixar a mulher absolutamente desamparada após o término de uma relação em razão da qual, por vezes, abdicou de se inserir no mercado de trabalho para cuidar da casa, cuidar da família que construiu com o seu companheiro.

A segunda consequência, por sua vez, consiste na possibilidade de essa exclusão desencadear um enriquecimento ilícito de uma das partes (em regra, o homem), que embora tenha sido auxiliada pelo(a) companheiro(a) na construção do seu patrimônio, com o término da relação, não possui qualquer obrigação patrimonial para com ele/ela.

Dentro dessa perspectiva, de obsolescência da legislação pátria em relação ao reconhecimento das uniões paralelas, apresenta-se patente a atuação do Poder Judiciário que, através da hermenêutica, viabiliza a conformação entre o direito legislado e as questões sociais que demandam a tutela jurídica. Fala-se em uma atuação primeira do Judiciário, tendo em vista a maior sensibilidade do órgão frente às mudanças sociais, ao passo que para o Poder Legislativo é despendido um maior tempo e faz-se necessário um procedimento mais detalhado para a atualização da leis e conformação delas com a realidade social vigente.

Nessa toada, tem-se a força, cada vez maior, que as decisões judiciais vêm adquirindo no Ordenamento Jurídico Brasileiro, desde a Emenda Constitucional 45/04, com a criação das Súmulas Vinculantes (com as quais é dado ao Supremo Tribunal Federal o poder de “legislar”, elaborando enunciados que têm força normativa e são de observância obrigatória pelos demais Tribunais) ao Código de Processo Civil de 2015, que reforçou o papel dos precedentes judiciais no direito pátrio.

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Foi nesse sentido que se operou a mudança de entendimento e de tutela do direito para com as uniões homoafetivas. Quando do julgamento da ADIn 4277 e da ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, muito embora art. 226, §3º da Constituição e o art. 1.723 do Código Civil reconheçam como entidade familiar apenas “a união estável entre o homem e a mulher”. No julgamento das supracitadas ações, merece destaque um excerto do voto do Ministro Ayres Britto, o qual, por vias paralelas, aplicar-se-ia também às uniões simultâneas:

A Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica (BRITTO, 2011, p. da internet)3.

Disso se depreende, portanto, que o conceito de família hodierno se encontra “para além do numerus clausus”4 previsto na Constituição, questão que apenas reforça a imprescindibilidade de se reconhecer as uniões paralelas como entidades familiares.

Não obstante, da análise da jurisprudência pátria a respeito do assunto, o que se verifica é a observância estrita ao texto legal, ao princípio da monogamia em detrimento do reconhecimento de direitos

3 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf> Acesso em 10 set 2016.4 Expressão utilizada no trabalho “Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus”, de autoria de Paulo Luiz Netto Lobo. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf>

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àquelas que mantiverem relação estável, duradoura, ostensiva com um companheiro. Essa linha de entendimento é percebida através da análise de julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL. UNIÕES CONCOMITANTES. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DO INTUITU FAMILIAE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. A via especial não se presta à análise de possível ofensa a dispositivos da Constituição, sob pena de usurpação da competência da Suprema Corte.2. Inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis concomitantes em face dos requisitos necessários à sua configuração, em especial a fidelidade mútua e o intuitu familiae. Precedentes.3. Recurso especial a que se nega provimento.(Resp 1556338, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 05/05/2016)AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS PREVISTOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 83/STJ.1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas, pelo Tribunal de origem, de forma suficientemente ampla, fundamentada e sem omissões deve ser afastada a alegada violação ao art. 535 do Código de Processo Civil.2. Inviável o recurso especial cuja análise das razões impõe reexame do contexto fático-probatório da lide, nos termos da vedação imposta pelo enunciado nº 7 da Súmula do STJ.3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que não é possível o reconhecimento de uniões simultâneas, de modo que a caracterização da união estável pressupõe a ausência

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de impedimento para o casamento ou, pelo menos, a necessidade de haver separação de fato ou judicial entre os casados. Incidência da Súmula 83/STJ.4. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no AREsp 1363270/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 17/11/2015, DJe 23/11/2015).

Diante disso, verifica-se que, apesar do entendimento do Supremo Tribunal Federal, quando do reconhecimento das uniões homoafetivas, em 2011, de que a Constituição Federal não atribuiu ao termo “família” nenhum significado restritivo, ortodoxo e segregador, o Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência pacífica no sentido de afastar do conceito de entidades familiares as uniões simultâneas, mesmo quando gozam de características inerentes à união estável.

Nesse ínterim, o que se depreende da posição do Superior Tribunal de Justiça (e que vem sendo acompanhada, via de regra, pelos Tribunais inferiores) é a priorização de uma cultura monogâmica (e, por via de consequência, ortodoxa) e legalista em detrimento da proteção e reconhecimento de direitos (inerentes, pois, à dignidade da pessoa humana das partes envolvidas na relação) para a companheira, após o término da união. Verifica-se, portanto, uma posição eivada de retrocesso, que além de violar o princípio da dignidade da pessoa humana, corolário da Constituição Federal de 1988, dá margem à exclusão de pessoas da proteção legal.

6. CONCLUSÃO

Ante o exposto, tem-se como primeiro ponto conclusivo a incompatibilidade da monogamia com os parâmetros axiológicos contemplados na Constituição Federal de 1988, de modo que ela já não mais se sustenta enquanto princípio estruturante do Direito das Famílias. Os princípios da liberdade, da igualdade e da democracia foram

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determinantes para a reestruturação, conforme a Constituição, da lista dos princípios do estatuto jurídico da família.

Dessa nova composição, nasceu o princípio da pluralidade das entidades familiares, às quais se deve igual proteção. Este princípio, por sua vez, não é efetivo se em concomitância com a imposição da monogamia, visto que, a partir desta, limita-se a liberdade na formação da entidade familiar, assim como pressupõe hierarquia entre os seus modelos.

Desta feita, em que pesem os avanços obtidos no Direito das Famílias com o advento da Carta Magna, retrocessos são visivelmente configurados quando se constata, não só pelo legislador, como também pela grande maioria dos magistrados, o não reconhecimento das famílias paralelas ou simultâneas, em prol do preceito monogâmico, já ultrapassado.

Em que pese não serem aprovadas por padrões morais e religiosos, nem mesmo contempladas pela lei, se as famílias paralelas são uma realidade na sociedade brasileira, deveriam ser devidamente enfrentadas pelo Poder Judiciário, mais próximo e sensível às questões sociais. Em sentido contrário, todavia, os juízes, com estrito rigor à lei, confirmam ainda mais a sua condenação à invisibilidade jurídica.

Os resultados disso não poderiam ser outros: direitos legítimos (a alimentos, pensão por morte ou partilha de bens, por exemplo) ficam completamente desamparados e, com isso, vê-se severamente violada a dignidade da pessoa humana. Conclui-se, portanto, que o Estado, em nome da tutela à monogamia, assume um papel inverso do que deveria realizar.

Nesse campo, intervém discricionariamente na família de modo a estabelecer e exigir padrões que afrontam a autonomia privada. Ao mesmo tempo, quando se depara com litígios que envolvem uniões paralelas, nos quais a sua interferência se faria necessária à proteção de direitos, prefere ignorá-las. Ao contrário, o Estado deveria respeitar a vontade dos indivíduos de constituir a família nos conformes que lhes interessar e intervir de forma legítima, isto é, quando, de fato, imperioso

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à proteção da dignidade das pessoas envolvidas, que inclui, muitas vezes, as “concubinas”.

REFERÊNCIAS

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LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, v. 9, n. 29, p. 233-258, jul./dez. 2006.

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THE PROBLEMATIC FACED BY THE SIMULTANEOUS FAMILIES BEFORE THE LEGISLATIVE AND JURISDICTIONAL CONSERVATISM

ABSTRACT

The article investigates the confrontation of the simultaneous families by the legislator and Brazilian jurists. Therefore, it highlights the social function of the family with the advent of Constitution of 1988 and analyzes how much the tutelage of monogamy is in line with that. It notes that, despite of the impediments foreseen on the actual Civil Code, the parallel families configures a social reality in the country. It verifies, notwithstanding, that the Judicial Power, still in name of the monogamy precept, keeps a conservative performing about the matter. It concludes that the State still interferes improperly in the family, abandoning some rights related to the dignity of human being.

Keywords: Simultaneous Families. Social function of the family. Monogamy. Conservatism.

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