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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais 22 a 26 de Outubro de 2012 606 A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX Luiz Alexandre Barbosa Pinto Júnior Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá Resumo: O fenômeno da ideologia ganhou grande repercussão a partir do momento que a obra de Marx ganha reconhecimento no campo da teoria social. Desde então várias interpretações surgiram, acerca desse fenômeno, dado o caráter não-sistemático do tratamento que Marx dá ao tema. Em diferentes momentos de sua obra, o autor usa o termo ideologia com significados também diferentes, o que incentivou o surgimento de várias interpretações, muitas vezes em contradição com os próprios princípios norteadores de sua obra. O reconhecimento de que essas múltiplas definições do termo ideologia existem em função da produção teórica marxiana remete-nos ao objetivo último desse trabalho. Qual seja, apresentar, de modo sucinto, o surgimento do pensamento de Marx, ressaltando o caráter ontológico das afirmações deste, de modo a debater com algumas das diversas interpretações desse pensamento, que veem no fenômeno da ideologia, uma falsidade socialmente condicionada, uma falsa consciência. Argumentamos que essas interpretações estão pautadas em uma base filosófica racionalista, que postula a prioridade do critério de conhecimento no sujeito conhecedor, na problemática gnosiológica, em detrimento do objeto a ser conhecido, do ser-precisamente-assim existente, base essa, estranha ao pensamento materialista ontológico de Marx. Palavras-chave: Karl Marx; Gnosiologia; Ontologia; Falsa consciência.

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

Luiz Alexandre Barbosa Pinto Júnior

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá

Resumo: O fenômeno da ideologia ganhou grande repercussão a partir do momento que a obra de Marx ganha reconhecimento no campo da teoria social. Desde então várias interpretações surgiram, acerca desse fenômeno, dado o caráter não-sistemático do tratamento que Marx dá ao tema. Em diferentes momentos de sua obra, o autor usa o termo ideologia com significados também diferentes, o que incentivou o surgimento de várias interpretações, muitas vezes em contradição com os próprios princípios norteadores de sua obra. O reconhecimento de que essas múltiplas definições do termo ideologia existem em função da produção teórica marxiana remete-nos ao objetivo último desse trabalho. Qual seja, apresentar, de modo sucinto, o surgimento do pensamento de Marx, ressaltando o caráter ontológico das afirmações deste, de modo a debater com algumas das diversas interpretações desse pensamento, que veem no fenômeno da ideologia, uma falsidade socialmente condicionada, uma falsa consciência. Argumentamos que essas interpretações estão pautadas em uma base filosófica racionalista, que postula a prioridade do critério de conhecimento no sujeito conhecedor, na problemática gnosiológica, em detrimento do objeto a ser conhecido, do ser-precisamente-assim existente, base essa, estranha ao pensamento materialista ontológico de Marx.

Palavras-chave: Karl Marx; Gnosiologia; Ontologia; Falsa consciência.

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

INTRODUÇÃO

O problema da Ideologia assumiu muitas formas nas mais variadas formulações teóricas desde o século XIX até os dias de hoje. A centralidade da reflexão sobre o tratamento a ser dado às ideias, pensamentos, concepções, formas de consciência, conferiu a problemática da ideologia, um lugar de destaque nas discussões filosóficas, sociológicas e científicas dos últimos três séculos.

A formulação de Marx teve um papel central na apropriação ulterior do problema por outros autores. Mesmo não sendo o cunhador primário do termo, Marx o utiliza, principalmente nas duas obras de juventude destinadas a um “acerto de contas” com a filosofia neo-hegeliana de sua época e com Feuerbach, A Sagrada Família e A Ideologia Alemã. Desse modo, devido a importância histórico-social da obra de Marx no fim do século XIX e no século XX, várias outras interpretações e apropriações foram formuladas na tentativa de esclarecer o problema, diversificando cada vez mais o universo de significados imputados ao problema da ideologia.

Ao constatarmos o fato de ser a obra de Marx o apêndice do salto que se dá para os vários sentidos modernos assumido pelo termo, podemos constatar que a variação desse sentido também acontece em função das diversas apropriações feitas em torno dessa obra. Isso nos coloca a necessidade de fazer um resgate da obra do autor, no sentido de identificar, no seio de sua construção teórica de articulação categorial, onde se coloca o fenômeno da ideologia, e qual o papel cumprido por ele. Para isso não poderíamos deixar de dialogar com uma longa tradição de diferentes matizes que propõe diferentes abordagens frente a obra de Marx, identificando qual a relação especifica que essas correntes e/ou tradições estabelecem.

A principiar pela tentativa de demonstração da linha traçada por grande parte dos historiadores do termo vale a pena mencionar que imputam a Francis Bacon o início da preocupação com o fenômeno ideológico. É importante ressaltar, como bem lembra Vaisman (1989) que essa preocupação já traz em si mesma, uma orientação da análise do problema. Identifica-se o início da tematização da ideologia com a preocupação com o conhecimento científico correto. Bacon, em seu Novum Organum, formula sobre os ídolosafirmando serem eles “noções falsas que ocupam o intelecto humano e nele se acham implantadas, /.../ a ponto de ser difícil o acesso a verdade”. (BACON, 1999, p.39) Com base nessas formulações a ideologia é identificada como a responsável pelo erro, pela ilusão e pela falsidade que impede o avanço da ciência, possibilitando assim que se defina as preocupações de Bacon, como as primeiras a tratarem do tema.

Um outro ponto ressaltado sempre pelos historiadores do termo foi a sua origem, identificada pela primeira vez na obra de Antoine Desttut de Tracy, Élements d’idéologie, na qual o autor caracteriza a ideologia como a “ciência dasideias”, a “base necessária para a edificação das ciências, na medida em que através dela seria possível evitar as falsas ideias” (VAISMAN,

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1989: 401). De Tracy foi intelectual ativo na representação da “burguesia revolucionária” francesa, fez parte do “Institut Nationale” onde se ocupou de “criar para as écolescentrales do serviço civil um novo programa de educação nacional, que teria como base a ciência das ideias”, incialmente contando com todo o apoio de Napoleão Bonaparte. (EAGLETON, 1997, p.68) Segundo Konder, os ideólogos, como eram chamados o grupo de intelectuais do qual De Tracy fazia parte, deram sinais de que queriam “ensinar” Napoleão Bonaparte a dirigir o Estado, fazendo críticas e proposições a este. (KONDER, 2003, p.22) Bonaparte se enfurece com esses intelectuais e começa a designá-los de “ideólogos” no sentido negativo, dizendo que eles “destroem todas as ilusões” dos povos, e afirmando que:

“Todas as desgraças que afligem a nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história” (CHAUÍ, 1980: 77).

A influência decisiva da formulação de Marx quanto ao termo e ao fenômeno da ideologia é campo de grande discussão entre os historiadores desse termo e os estudiosos do marxismo. De modo predominante, tende-se a imputar a Marx um papel importante na constituição do significado moderno que o termo veio a assumir. Muitos autores afirmam a existência de uma suposta “teoria das ideologias” na obra de Marx, responsabilizando o filósofo alemão pela absorção da significação que os filósofos iluministas franceses deram à palavra, como ciências das ideias, porém, usando-a também no sentido que lhe foi atribuído por Napoleão Bonaparte. A primeira vez que Marx fez uso do termo ideologia foi em A Sagrada Família. Ao dialogar com a análise da revolução francesa elaborada por Bruno Bauer, Marx comenta o fato de NapoleãoBonaparte sentir certo desprezo pelos “ideólogos”, bem como pelos industriais, embora reconhecesse a importância da “base burguesa do estado moderno”. (VAISMAN, 1996: 40).

Ester Vaisman, em sua tese de doutorado, intitulada A Determinação Marxiana da Ideologia, identifica as várias problemáticas que surgiram nas várias interpretações feitas a partir do uso que Marx faz do termo ideologia em sua obra. Segundo a autora “parece claro que a linha de demarcação principal, no interior da bibliografia compulsada, é aquela que estabelece um elo de continuidade entre a doutrina dos ídolos de Bacon, a teoria iluminista dos pré-juízos e Marx, passando por Hegel e Feuerbach!” Ou seja, o problema da ideologia como ideias falsas que atrasam o conhecimento científico, surge em Bacon, na sua instauração empirista, passa pelos iluministas franceses que procuram explicar o surgimento das ideias e afastar as falsas ideias, tem sua expressão também colocada nas obras de Feuerbach e Hegel,através da associação da auto-alienação com o atraso do conhecimento científico, em cada autor de maneira peculiar, e ganha sua forma mais acabada em Marx.

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

Para o que nos importa no âmbito desse artigo, ao invés de fazermos uma análise exaustiva das várias formulações a respeito do tema, exploraremos de maneira sucinta como a constatação do caráter ontológico da teoria social de Marx coloca sobre novas bases as possibilidades de tematização da categoria da ideologia.

O CARÁTER ONTOLÓGICO DA OBRA DE MARX E A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA

Segundo Vaisman, na trilha de Lukács, a constatação da dominação da problemática gnosiológica em torno do tema da ideologia é na verdade, o fruto de uma “tendência que vem se desenvolvendo há, praticamente, dois séculos no campo da filosofia”. (VAISMAN, 1989, p.407) Essa tendência é identificada por Lukács no fato de “o pensamento filosófico ter sido inteiramente dominado pela teoria do conhecimento, pela lógica e pela metodologia”, ignorando-se assim como um “despropósito intempestivo” “toda tomada de posição sobre o problema de saber se alguma coisa é ou não é”, toda tomada de posição “sobre a questão do ser”. (LUKÁCS apud VAISMAN, 1989, p. 407-408)

Iremos analisar, nessa parte de nosso artigo, como os enunciados de Marx, “se interpretados corretamente /.../, são entendidos – em última instância – como enunciados diretos sobre um certo tipo de ser, ou seja, são afirmações ontológicas”, para posteriormente determinar de que maneira Marx concebe onologicamente a problemática do conhecimento, modificando sensivelmente as possibilidades de interpretação dos trechos contidos em sua obra acerca do fenômeno da ideologia. (LUKÁCS, 1979, p.11)

No Terceiro Manuscrito dos Manuscritos Economico-Filosóficos, Marx postula: “Um ser não-objetivo é um não-ser”, e desenvolve a questão da seguinte maneira:

“Assenta um ser, que nem é ele próprio objeto nem tem um objeto. Um tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria isolado e solitariamente. Pois, tão logo existam objetos fora de mim, tão logo eu não esteja só, sou um outro, uma outra efetividade que não o objeto fora de mim. Para este terceiro objeto eu sou, portanto, uma outra efetividade que não ele, isto é, [sou] seu objeto. Um ser que não é objeto de outro ser, supõe, pois, que não existe nenhum ser objetivo. Tão logo eu tenha um objeto, este objeto tem a mim como objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, apenas pensado, isto é, apenas imaginado, um ser da abstração. Ser (sein) sensível, isto é, ser efetivo, é ser objeto do sentido, ser objeto sensível, e, portanto, ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é ser padecente.” (MARX, 2004, p.127-128)

O trecho acima é uma categórica oposição ao “ser não objetivo, espiritualista” de Hegel. Marx “identifica ser à objetividade” e também “procura demarcar o caráter relacional

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da mesma”, de “constante interação objetivamente existente entre seres efetivos enquanto tais, ressaltando ao final o seu caráter de padecimento, ou seja, de carecimento do outro”. (VAISMAN, 1996, p.127) Esse trecho representa uma característica fundamental, apontada por Marx, da determinação ontológica do ser, a determinação de que um ser para existir, deve ser objeto de outro ser, ou, deve ser objetivo. Um ser da abstração, um “ser somente pensado” é um não-ser.

Aqui ressoam em Marx os ecos do materialismo de Feuerbach, na medida em que esse efetua uma “virada ontológica” reconhecida pelo jovem filósofo. Marx se apropria das idéias de Feuerbach as levando, contudo, para além do que o próprio Feuerbach pensava. Deteremos-nos a isso adiante, importa agora reconhecer alguns pontos conexos dessa relação.

Quando Feuerbach diz que “um ser só pensante e, ademais, que só pensa abstratamente, não tem representação alguma do ser, da existência, da realidade”, ele está questionando a possibilidade de o ser “só pensante” conhecer algo da realidade. Isso acontece justamente por que “só mediante os sentidos se dá um objeto em sentido verdadeiro – e não mediante o pensar por si mesmo. O objeto dado pelo pensar ou idêntico a ele é apenas pensamento”. Ou seja, só mediante os sentidos do ser objetivo é possível o pensamento conhecer algo. Um ser que só pensa, “pensa por si mesmo”, e o seu objeto não é diferente de si, é apenas pensamento. Quando Marx diz que somente um ser objetivo tem objetos fora de si, ele está justamente reafirmando a tese de Feuerbach segundo o qual “o ser é tão diferenciado como as coisas que são. /.../ O ser não é um conceito universal, separável das coisas. É uno com o que é”. (FEUERBACH apud CHASIN, 2009, p.43-44)

Contudo, essa confirmação do pensamento de Feuerbach vem ceifada de críticas e distanciamentos. No que segue podemos ver um trecho onde Marx particulariza a relação da objetividade do ser em geral, para o “ser natural”:

“O homem é imediatamente um ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, está, em parte, dotado de forças naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo /.../ como ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, é um ser que padece, condicionado e limitado, tal qual o animal e a planta; isto é, os objetos de seus instintos existem exteriormente como objetos independentes dele.” (MARX apud VAISMAN, 1996, p.129)

Nesse trecho Marx coloca que o homem, enquanto ser natural, necessita de objetividades que são exteriores a ele, que existem fora do seu corpo. Dessa maneira necessita de satisfazer essas necessidades, ou, como afirma Chasin, essa “limitação ou incompletude”, recorrendo à externalidade. Marx aponta uma determinação importante do ser do homem, na medida em que afirma que ele, como um ser natural, não pode prescindir de características específicas desse modo de ser. Lukács, em sua Ontologia, vai fazer largas considerações sobre a “insuperável base natural” do “ser social”, apontando que o ser social, ou seja, o ser humano, “pressupõe o

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ser da natureza orgânica e inorgânica”. (LUKÁCS, 1979, p.16-17) A nosso ver, essa afirmação lukácsiana está em perfeita consonância com a afirmação de Marx reproduzida acima, determinando o ser natural, frente ao ser em geral.

Contudo, para Marx, essa relação não se esgota aí. O homem não é apenas um ser natural, o homem é um “ser natural humano”, um “ser genérico”. Vejamos como Marx desenvolve essa peculiaridade do homem:

“Mas o homem não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é, ser existente para si mesmo [fürsichselbstseiendesWesen], por isso, ser genérico, que, enquanto tal, tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber. Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos naturais assim como estes se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. A natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humano de modo adequado.” (MARX apud CHASIN, 2009, p.92)

Podemos observar claramente a diferenciação que Marx, já no início do trecho, faz. O homem não é apenas um ser natural, ele é um ser genérico, ou seja, em seu modo de agir ele se relaciona ativamente com a natureza fundando um gênero novo, o gênero humano. Em outras palavras, agindo no mundo de um modo que lhe é próprio ele inaugura novas características que confirmam uma nova concretização do ser, e que cada vez mais se afastam (conforme sua ininterrupta ação) das determinações e/ou limitações estritamente naturais. Portanto o homem se diferencia do ser natural por ser também um ser ativo, que quanto mais atua e conhece, mais ele se afirma como homem. Ele se autoconstrói no seu gênero.

A decorrência disso é imediata. Na sua ação sobre a natureza, “o homem tem sua gênese, a história; mas esse ato genérico lhe é consciente1 e, enquanto tal, supera a si mesmo. A história é a verdadeira história natural do homem”. Portando o homem em seu saber e em seu agir, concomitantemente e conscientemente, modifica a natureza e a si mesmo através do trabalho (ação consciente de intercâmbio com a natureza), suprindo suas necessidades enquanto ser natural, mas ao mesmo tempo criando novas necessidades sociais a serem supridas, construindo e conhecendo a si mesmo e o mundo a sua volta. Esse é o marco da gênese da história do homem, que a partir daí se diferencia da história natural e passa a ser a história da relação do homem com a natureza e da relação do homem entre si. (FREDERICO, 2009, p.195)

1 A “consciência”, ou o “saber” do Homem, como afirma Marx, não pressupõe aqui o completo conhecimento da realidade que rodeia o indivíduo que age, em cada situação diversa. A ação da consciência na realidade, pressupõe somente uma “resposta” à situação que cerca o sujeito, resposta esta, que por sua vez, só mostra sua correspondência com o real no âmbito da prática. Lukács se posiciona categoricamente sobre essa questão: “Se agora, partindo do sujeito que põe, lançamos um olhar sobre o processo global do trabalho, notamos imediatamente que esse sujeito certamente realiza a posição teleológica de modo consciente, mas sem jamais estar em condições de ver todos os condicionamentos da própria atividade, para não falarmos de todas as suas consequências. É óbvio que isso não impede que os homens atuem.” (LUKÁCS, p.233, 2007)

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A partir dessa concepção totalmente nova é que Marx consegue ir além do materialismo sensualista do filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Acusa Feuerbach de somente compreender a realidade através de uma “dupla contemplação”, por um lado como uma “contemplação profana”, com a qual acessa o “sensível”, ou, estabelece o “objetivo” como o realmente existente, e, por outro, através de uma “contemplação elevada, filosófica”, pela qual capta a “verdadeira essência” das coisas.

“Ele [Feuerbach] não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas.” (MARX, 2007, p. 30)

Assim, a contribuição de Feuerbach é exposta nos seus devidos limites, como o próprio Marx reconheceu. Ao não reconhecer o caráter de atividade sensível do “ser natural humano”, Feuerbachacaba por não reconhecer o ser social enquanto tal, e, portanto, de continuar a compreender a relação entre natureza e sociedade como “antíteses que se excluem”. (LUKÁCS, 1979, p.13)

Na primeira das famosas “Teses Ad Feuerbach”, aforismos identificados por Engels em um caderno de anotações de Marx, publicados pela primeira vez no livro de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Marx expõe de modo categórico um ponto central de sua crítica ao materialismo de Feuerbach, diz ele:

“O principal defeito de todo materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo em oposição ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo – que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal.” (MARX 2007, p.533)

Portanto, para Marx,Feuerbach não compreende o lado ativo do homem, e por isso, não compreende serem os objetos e os sentidos do homem, também frutos da sua autoconstituição, levada a cabo pela sua atividade. A consequência disso se mostra no fato de para ele, subjetividade e objetividade se manterem como exterioridades, limitando assim a possibilidade de conhecer o homem agindo na história.

Por outro lado, o idealismo, na medida em que compreende o lado ativo, concebe a atividade humana somente como atividade ideal, como atividade pensada. A consequência disso é a de não conceberem o caráter sensível, efetivo da atividade, convertendo a história, na

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“história das ideias”, e necessitando de recorrer ao recurso lógico da “alienação da ideia” para remeter a realidade sensível. Vaisman acertadamente identifica que para Marx não se trata de afirmar que toda atividade ideal seja falsa, o que “é falso ou falsificador é considerar a atividade das ideias como a única atividade autenticamente humana. /.../ Falsificador, segundo Marx é o procedimento que estabelece identidade entre ideia e atividade”. (VAISMAN, 1996, p.135)

A objetividade que existe envolvendo o homem, e com a qual ele se relaciona, é modificada pelo caráter ativo da ação do homem, de maneira que após ser modificada não é mais apenas objetividade sensível, mas se torna subjetividade que se objetivou, e é, portanto, um ente totalmente novo, uma objetividade humana. Por exemplo: uma arvore que após ser trabalhada pela subjetividade humana vira uma mesa.

Contudo, não é apenas a objetividade que se modifica, pois nessa relação também a subjetividade que modifica é ela mesma modificada, não sendo nunca mais a mesma após o ato de objetivação. Após objetivar-se a subjetividade é interpelada pelas consequências de sua ação de modo a conhecer novas propriedades e características da realidade na qual age.

Ao admitir a realidade do novo gênero em questão, o gênero humano, como atividade sensível, Marx desemboca em um novo modo de caracterizar a relação entre objetividade e subjetividade. A objetividade do homem, aquela com a qual ele se relaciona, modificando suas formas, retirando dela aquilo que precisa para suprir suas necessidades, ganha uma forma humana, pois se trata de objetividade modificada subjetivamente, tanto pela atividade prática, quanto pela percepção que os homens fazem dela.

Por outro lado, a subjetividade humana, na medida em que modifica a objetividade através da sua atividade, o faz estabelecendo na realidade uma nova objetividade que somente existia subjetivamente, ou idealmente. Portanto, no mundo dos homens a objetividade não é algo exterior ao sujeito, mas sim algo constituído subjetivamente pelo próprio homem. Da mesma maneira, a subjetividade humana não é puro potencial orgânico de faculdades cognitivas naturais, isoladas do mundo, mas sim subjetividade que ao modificar o mundo para suprir suas necessidades, modifica a si própria conhecendo o mundo a sua volta.

Assim, pela mediação da prática sensível, subjetividade e objetividade desenvolvem um intercâmbio que não as permite serem concebidas como exterioridades puras. E pela mesma mediação a subjetividade que modifica o mundo o conhece, de modo que o critério do conhecimento não é mais somente a organização adequada do pensamento do sujeito que procura conhecer, mas sim a própria realidade na qual o sujeito está inserido e se propõe a modificar, a própria realidade do objeto.

É por essa via que a nova relação coloca também uma nova forma de analisar a possibilidade do conhecimento. O conhecimento é possível, pois o sujeito que age no mundo antecipa sua ação idealmente levando em conta a constituição do objeto onde deve agir. Porém

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essa antecipação não é o conhecimento. É na prática que ocorre a confirmação ou a negação daquilo que o sujeito antecipou idealmente, na medida em que corresponde ou não à lógica própria do objeto. Assim, “pensar e ser são /.../certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua”, são dois momentos da atividade sensível cuja unidade é a própria confirmação do “ser genérico” do homem. (MARX apud CHASIN, 2009, p.100)

A instauração teórica de Marx, portanto, não é de maneira nenhuma a negação da existência da atividade ideal, e a redução da prática humana somente a ação prática, sensível. Negando a interpretação empirista do mundo, viciada na realidade sensível, Marx também desautoriza, nesse ponto, qualquer interpretação mecanicista de sua obra. A atividade humana é atividade ideal e atividade real ao mesmo tempo. Prescindindo de um dos lados, o outro lado se descaracteriza enquanto ação humana e perde sua especificidade.

De justa inovação, a formulação de Marx supera uma tradição filosófica que, na teoria do conhecimento, somente consegue conceber a relação entre subjetividade e objetividade mediante a prévia “separação ontológica de sujeito e objeto”. De maneira que o critério para o conhecimento correto se coloca como a exata constituição das faculdades cognitivas do sujeito conhecedor, isolado do mundo, e da objetividade que procura conhecer. É nessa medida, como diz Chasin, que:

“A possibilidade do conhecimento é inteiramente descaracterizada: não é mais indagado se o homem é capaz de conhecer, mas se um logos desencarnado – enquanto tal sem gênese determinada e sem vínculos necessários – tem essa faculdade. Por isso no dizer de Marx, polemizar ‘acerca da realidade ou não-realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica’” (CHASIN, 2009, p.102)

Para Marx as possibilidades de conhecimento estão inscritas no próprio ser que “se confirma” na sua ação e em seu conhecimento. Não se trata aqui de perguntar se o homem é capaz de conhecer, mas de confirmar que na sua práxis o homem realmente conhece, e a séculos se autoconstituiu com base nesse conhecimento. A partir dessa confirmação ontológica é que se pode pensar como se colocam as possibilidades de conhecimento em relações sociais infinitamente mais complexas, atentando para as condições determinantes tanto no sujeito que conhece como no objeto a ser conhecido.

Nesse sentido vale abordar de maneira mais explícita uma determinação que já vem implícita desde o início desse capítulo, para que possamos tratar de modo adequado as possibilidades de conhecimento do individuo: trata-se da sociabilidade enquanto condição de existência do novo gênero, tanto em seu pensamento, quanto em sua ação.

Sobre isso Marx afirma:

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“Assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por ele. A atividade e a fruição, são também modos de existência, segundo a atividade social e a fruição social. A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem social, pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua para o outro e do outro para ele, é primeiro aqui que ela existe como fundamento da sua própria existência humana, assim como também na condição de elemento vital da efetividade humana/.../ Portanto, a sociedade é a unidade essencial completada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito.” (MARX, 2004, p.106-107)

Para Marx, portanto, a sociedade não somente produz o homem como também é produzida por ele. A diferença entre o ser natural e o ser natural humano, é que no ser natural o modo de existência do ente, exemplar unitário, está dado biologicamente e não vai além dessas possibilidades biológicas. Já a condição social do ser natural humano, faz com que ele supere cada vez mais essa base natural através de sua atividade. Mas isso somente é possível, pois a atividade e a fruição não são somente dos indivíduos isolados, mas sim da sua ação articulada com conjunto da sociedade. Ou seja, o “homem social” é a “condição” de existência do ser natural humano, justamente porque é o seu próprio “modo de existência”.

Ainda assim, a existência genérica do homem social não possibilita a identificação de todo ser individual com o gênero, imediatamente. Para Marx:

“é preciso evitar fixar mais uma vez a ‘sociedade’ como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também – e isto necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou universal. (MARX, 2004, p.107)

O autor afirma, portanto, que a vida individual do ser natural humano, é e só pode ser uma “confirmação da vida social”, onde o indivíduo se apropria das produções humanas que lhes são dispostas e exterioriza seu modo de vida particular. “Todo modo de efetivação individual – prático/teórico – se dá na trama da interatividade humano-social”. (VAISMAN, 1996, p.188) Nessa medida também o modo de sentir e pensar dos indivíduos inseridos em uma formação social específica tem larga relação com ela. Fica claro para Marx, quando em confronto direto com a concepção dos jovens hegelianos que separa consciência do ser real, sensível, que a consciência tem desde o início um caráter social, de necessidade relacional entre os homens. Para ele a consciência é “consciência do vínculo limitado com as outras pessoas”, da

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“necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam”, e está vinculada diretamente com os processos de vida que as relações sociais engendram e as respostas correspondentes. Essa determinação, contudo, não implica diretamente a afirmação da correspondência mecânica entre relações de produção e consciência social, como muito se vem fazendo em nome das afirmações de Marx. No famoso trecho do Prefácio de 57, Marx estabelece isso com muita clareza. Após considerar as relações de produção e o fato de a totalidade dessas relações constituir a “base” sobre a qual se ergue a “superestrutura política e jurídica”, o autor afirma categoricamente: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”2 (MARX, 2007, p.45)

A constatação desse caráter social do pensamento vai desvendar, no plano do conhecimento, os condicionamentos aos quais estão submetidos os sujeitos que se propõe a conhecer a realidade. “/.../ se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram”. (MARX & ENGELS apud VAISMAN, 1999, p.197)Disso resulta necessariamente que diferentes relações sociais, em diferentes épocas, ou, que diferentes localizações sociais dos sujeitos em uma estrutura social determinada, vão também determinar socialmente a possibilidade do conhecimento. É a essa determinação social do pensamento que Marx vai sempre recorrer quando, na crítica aos “economistas vulgares”, identifica o posicionamento teórico dos seus autores na sua origem social, de classe.

Nesse ponto, o estabelecimento do caráter prático e social do conhecimento nos leva a uma problemática que, levantada por Chasin, após Lukács, é de grande importância para o tratamento da temática da ideologia e do conhecimento em geral, principalmente no âmbito das Ciências Sociais. Trata-se da contraposição que atualmente se costuma postular da relação entre interesse e verdade. Como diz Chasin, nos dias atuais a “verdade interessada passou a ser compreendida apenas como verdade utilitária, funcionalizada ou instrumentalizada, sem que fosse encarado a sério o tema preliminar da verdade e da falsidade como utilidades históricas”. (CHASIN, 2009, p.103)

Para Marx não se pode concluir pelo critério do interesse se uma formulação ideal é falsa ou não, pois toda formulação ideal humana tem em vista ou modificar a natureza,

2 O trecho citado do famoso prefácio é objeto de inúmeras polêmicas no que se refere ao modo como Marx trata a influência da “base” sobre “superestrutura”. Daí muito se incorreu ao erro de interpretar a passagem como uma espécie de “economicismo” de Marx, na medida em que a base econômica determinaria todas as outras expressões sociais, como a ideológica, política, jurídica e etc de maneira causal e mecânica. Fundamental para compreender com clareza a afirmação com a qual Marx finaliza o trecho, a saber, “não é a consciência dos homens que determina o ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”, é perceber a correlação entre base e superestrutura como componentes de um complexo maior que é a totalidade do ser social, a qual Marx imputa, definitivamente, a determinação da consciência. Dessa maneira, a base econômica não é a determinante da consciência, mas como seu próprio nome diz, ela é a base, a condição de possibilidade, da existência das relações jurídicas, políticas, religiosas e ideológicas em geral. É a partir dessa base, e sempre retornando a ela, que se estabelecem e se desenvolvem as diferentes formas de consciência. (LUKÁCS, 1979,p.41)

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ou, as próprias relações sociais, de maneira que o interesse é a própria confirmação de sua existência. Como diria Marx o homem “se confirma tanto em seu ser como em seu saber”. Aqui se demonstra um aspecto que vai acompanhar Marx durante toda sua obra, na medida em que, como diz Lukács, ele vai analisar os seus interlocutores sempre recorrendo à “crítica ontológica” dos limites científicos de um tempo histórico determinado3. Nesse caso específico, a crítica ontológica se direciona no sentido de afirmar falsa a tentativa de problematizar a possibilidade de conhecimento sob um prisma que separa o ser que pensa do seu processo de vida real. Para Marx “a consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente”, ou seja, o sujeito que pensa e que formula teoricamente, está inserido em determinadas relações sociais que exigem dele respostas para as questões que surgem a partir delas. Portanto o sujeito que formula uma resposta sempre a formulará de maneira interessada, buscando esclarecer as conexões dos fenômenos em questão.

Na crítica aos “economistas vulgares” que Marx faz tanto n’A Miséria da Filosofia, como em As Teorias da Mais-Valia esse procedimento de vai se mostrar com toda intensidade.Não se trata de saber se tal afirmação é errada porque contém o interesse de um grupo social específico recusando-a assim de maneira moral, mas sim saber, segundo a própria lógica do objeto em questão, se a afirmação é falsa ou verdadeira, e posteriormente determinar, segundo a vinculação social na qual se encontra a afirmação, a causa da sua falsidade ou veracidade, ou seja, a exata conexão que acusa se o erro advém realmente do interesse socialmente determinado.

É nessa relação específica que algumas das formulações sobre a questão da ideologia incorrem por vias estranhas ao estatuto que o pensamento de Marx inaugura. Como argumentaremos a seguir essas vias se fundamentam em um “critério científico-gnosiológico” para determinar um certo tipo de pensamento como falso e enquadrar as formulações de Marx acerca da categoria da ideologia nesse rol. Tipicamente, esse tipo de tratamento é dado à questão principalmente pela obra de Althusser, quando este estabelece o que chama de “corte epistemológico” entre a ciência e a ideologia.

3 Lukács no capítulo de sua Ontologia dedicado a Marx, vai expor de modo detalhado como a relação entre essência e fenômeno no ser social vai chegar até o “agir interessado”, de maneira que grupos sociais com interesses determinados possam se apropriar da ciência de modo a deixar de lado as conexões reais da realidade. Nesse sentido aponta a importância da “critica ontológica”, uma “nova forma tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia” criada por Marx, que assume “uma cientificidade que no processo de generalização nunca abandona esse nível, mas que, apesar disso, em toda verificação dos fatos singulares, em toda reprodução ideal de uma conexão concreta, tem sempre em vista a totalidade do ser social e utiliza essa como metro para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma consideração ontológico-filosófica da realidade em-si, que não se põe acima dos fenômenos considerados, coagulando-os em abstrações, mas se coloca ao contrário – crítica e autocriticamente – no máximo nível de consciência, como o único objetivo de poder captar todo ente na plena concreticidade da forma de ser que lhe é própria, que é específica precisamente dele.” (LUKÁCSapud CHASIN, 2009, p.104-105)

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ALTHUSSER E O “CORTE EPISTEMOLÓGICO”

Em um primeiro momento o problema da ideologia foi de fato importante na teorização de “alguns autores particularmente importantes para a formação da sociologia do conhecimento”. Nesse caso específico, segundo Vaisman, o “fenômeno da ideologia, é concebido como sinônimo de pensamento socialmente condicionado”, sendo portanto dado um tratamento diverso em cada caso apontado. Contudo, Vaisman prossegue, afirmando que: mesmo que se mostrem “as várias definições dos objetos e dos atributos dessa disciplina, /.../, convém sublinhar que a questão central, sem dúvida, é a própria problemática do conhecimento” sendo que:

“nesse quadro, é fácil perceber o modo pelo qual a teoria das ideologias de Marx foi abordada e assimilada pela sociologia do conhecimento: como uma reflexão específica sobre o papel dos fatores de caráter sócio-economico na formação das ideias falsas”. (VAISMAN, 1996, p.56)

Um fato importante que Vaisman aponta, é a possibilidade de se “identificar nesta fase, em certa medida, elementos de preparação da etapa subsequente que se caracteriza pelo aparecimento da polêmica epistemológica” em torno na obra de Marx, e portanto, da problemática da ideologia. O autor mais característico dessa “etapa” é o filósofo francês Louis Althusser, na obra de quem, segundo Vaisman, ocorre uma “radicalização do critério gnosiológico na determinação do que é ideologia.”. Ao afirmar que “a questão epistemológica é o próprio objeto da filosofia marxista”, Althusser estabelece à filosofia “simplesmente uma função no campo da prática teórica, a de ‘traçar uma linha de demarcação no interior do domínio teórico, entre ideias consideradas verdadeiras e ideias consideradas falsas, entre o científico e o ideológico’”. (ALTHUSSER apud VAISMAN, 1989, p.402)

O que segue dessa afirmação, de maneira bastante clara, é que “ideológico,/.../, é todo enunciado que, em termos puramente epistemológicos, se configura de modo oposto àquela que seria a função teórica ou função do conhecimento”. Portanto, para Althusser haveria uma “descontinuidade drástica, de ordem ‘qualitativa, teórica e histórica, que podemos designar, com Bachelard, pelo termo ‘corte epistemológico’”. (VAISMAN, 1989, p.402)

Embora se trate de uma relação complexa, que não pretende de modo algum ser esgotada nesse trabalho, é preciso indicar que essa concepção é fruto de uma separação epistemológica entre subjetividade e objetividade, característica do pensamento epistemológico cientificista que, embora se particularize de diversas formas em outros autores e doutrinas filosóficas, tem seu estatuto centrado no critério gnosiológico que postula a centralidade da busca pelos critérios de conhecimento no sujeito conhecedor e não no objeto a ser conhecido.

Como vimos anteriormente o novo estatuto que o pensamento de Marx inaugura deixa de recorrer a essa separação para pensar a problemática do conhecimento, fundamentando ontologicamente um enriquecimento perceptivo da questão, na medida em que reconhece que

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tanto o sujeito é histórica e socialmente determinado em seu pensamento, quanto o objeto em seu desenvolvimento.

Tendo em vista esse estatuto a pura e simples caracterização da ideologia como falso, se opondo à ciência, se, confrontada com trechos famosos e recorrentemente invocados da obra de Marxpara caracterizar a ideologia, inclusive pelo próprio Althusser, coloca toda uma série de complexos e instituições sociais tais como as “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas” nos termos de uma falsidade.Isso faz com que Althusser em seu ensaio, Aparelhos Ideológicos do Estado, tenha que caracterizar a ideologia como um “mecanismo que transforma imaginariamente o indivíduo em sujeito, mas também tem a função de ‘conduzir sua auto-sujeição ao sistema dominante’”, (VAISMAN 1989, p.404)

A própria afirmação de Althusser sobre o tema, na sua obra Elementos de Auto-Crítica, datada de 1972, deixa claro que o próprio autor reconhece essa relação:

“apesar de todas as minhas precauções, eu o concebi [o corte epistemológico] e defini nos termos racionalistas da ciência e da não ciência. Não abertamente nos termos ‘clássicos’ da oposição entre a verdade e o erro (aquela do cartesianismo, retomando uma posição ‘fixada’ desde as origens, desde o platonismo). Não nos termos de uma oposição entre o conhecimento e a ignorância (aquela da filosofia das luzes). Mas, ouso dizer o pior: nos termos de uma oposição entre A Ciência e A Ideologia.” (ALTHUSSER apud VAISMAN, 1996, p. 74)

“IDEOLOGIA EM GERAL” E FALSA CONSCIÊNCIA

A demarcação do fenômeno da ideologia como uma falsidade, ou como uma falsa consciência, contudo, não pode ser afirmada somente uma simples interpretação errônea dos textos de Marx. Há que se considerar que existem trechos diversos da obra do autor onde realmente há caracterizações diferenciadas da ideologia. Muitos autores como Gramsci, Lukács e Vaisman, reconhecem essa “duplicidade” na caracterização que Marx faz do fenômeno da ideologia.

É principalmente n’A Ideologia Alemã, em um fragmento de dedicado a Feuerbach, mais especificamente no item: “A ideologia em geral, em especial a filosofia alemã”, que Marx & Engels vão expor a sua famosa passagem sobre sua concepção da história:

“Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. /.../ teremos que analisar a história dos homens, pois quase toda ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou uma abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história.” (MARX & ENGELS, 2007, p.86-87)

Podemos observar, nesse trecho, que os autores identificam a ideologia com uma

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“concepção distorcida da história”. Mas não só. Consideram também como “uma abstração dela”. Ou seja, a “concepção distorcida da história” não se trata de qualquer distorção, mas daquela distorção que faz “uma abstração total” da história. A frase arrematada no final do trecho é categórica nesse sentido. “A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história” (grifos nossos)

Vejamos que esse modo de proceder de Marx & Engels, é mesmo um nervo vital de sua argumentação levada a cabo nas mesmas páginas que seguem a do trecho citado. Importa para eles naquele momento explicar que, o que os indivíduos pensam, como eles representam o mundo idealmente, é uma consequência do “modo” pelo qual eles “exteriorizam sua vida”, ou seja, produzem as condições de sua própria existência. Nesse sentido afirmam que não há consciência separada do mundo, e que uma consciência invertida é fruto do “modo limitado de atividade material” e de “relações sociais limitadas”. É nesse sentido que vão censurar os hegelianos: “A nenhum desses filósofos ocorreu a ideia de perguntar sobre a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, sobre a conexão de sua crítica com seu próprio meio material.” (MARX & ENGELS, 2007, p.84)

Em outro longo trecho essa relação fica mais exposta ainda, pois nele os fundadores do marxismo colocam o pensamento “sobre os seus próprios pés”:

“A produção de ideias, de representações, da consciência, está em princípio, imediatamente entrelaçada coma a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. /.../ Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente {bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera obscura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida /.../.” (MARX & ENGELS, 2007, p.93-94)

Nesse trecho Marx e Engels nos dizem que ideologia, é a representação da realidade onde “os homens e as relações aparecem de cabeça para baixo”, ou seja, onde se concebe a realidade como produzida pelas ideias, e não pelo “desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde” ou pelo “processo histórico” de sua vida.

A interpretação de Vaisman é marcante nesse sentido. Para a autora, os trechos citados se referem à questão da ideologia da mesma maneira como o termo é usado para designar Proudhon na obra, A Miséria da Filosofia. Ou seja, diz que Proudhon “encara as categorias econômicas como ideias puras, ‘pensamentos espontâneos, independente das relações reais’”. (VAISMAN 1996, p. 232) O termo ideologia n’A Ideologia Alemã e n’A Miséria da Filosofia assume um sentido onto-crítico frente a um “procedimento especulativo” específico, que diz

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respeito “à inversão ontológica perpetrada pela especulatividade neohegeliana. Ou seja, a inversão não remete à ideia falsa, mas à falsidade de que as ideias gerem o ser”. (VAISMAN, 1996, p. 150)

Já a interpretação de Terry Eagleton, em sua obra Ideologia, caminha para outros rumos. Eagleton aponta que “a teoria das ideologias de Karl Marx é provavelmente mais bem entendida como parte de sua teoria da alienação”, na qual Marx explica que “em certas condições sociais /.../, os poderes, produtos e processos humanos escapam ao controle dos sujeitos humanos e passam a assumir uma existência autônoma”, começando a “exercer sobre eles um poder imperioso”, ao ponto de eles próprios se submeterem a o que, na realidade, nada mais é do que “os produtos de sua própria atividade”. Continua Eagleton, dizendo que “a teoria da ideologia /.../ de Marx e Engels diz respeito a essa lógica generalizada de inversão e alienação”, arrematando que “se os poderes e instituições humanos podem ser submetidos a esse processo, então a consciência também pode.” (EAGLETON, 1997, p.71)

Para o autor a lógica que rege essa ligação necessária entre a “teoria da ideologia” de Marx e sua “teoria da alienação” se funda em três constatações. Em um primeiro momento Eagleton constata a tese materialista de que a consciência nada mais é do que a consciência do mundo existente, de modo que esta não pode ser desligada do “processo de vida real”. Em um segundo momento o autor constata que a consciência é um fruto da prática, mas a prática se constitui de relações sociais invertidas, ou, alienadas. Conclui, portanto, postulando que essa inversão dada na realidade através do fenômeno da alienação, tem um reflexo na consciência tornando a própria consciência da pratica existente, ou seja, do mundo alienado, uma consciência invertida, uma falsa consciência.

Deparamos-nos aí com duas interpretações diferentes sobre a categoria da ideologia, no modo como ela aparece nos trechos retirados de A Ideologia Alemã, obra que é referência para o estudo da categoria nas Ciências Humanas de maneira geral. Por um lado Ester Vaisman caracteriza que o modo a ideologia é utilizada aí se refere a um instrumento crítico de uma forma específica de pensamento, a especulatividade neohegeliana. Por outro Terry Eagleton trás a tona a categoria da alienação e identifica a ideologia como o reflexo da inversão posta na realidade pela alienação, na consciência.

Contudo, Marx, no Prefácio a Contribuição à Crítica da Economia Política, já mencionado aqui, vai utilizar a categoria de maneira fundamentalmente diversa.

“na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais

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determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.” (grifos nossos) (MARX. 2007. p.46)

A produção social da consciência, a organização produtiva dos homens, as relações de produção, todas essas categorias são analisadas nesse trecho em um nível de generalização muito maior. Ao que nos importa aqui convém nos determos na analise do termo ideológico empregado por Marx no trecho citado. O autor chama a atenção do leitor a “distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção” das “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”.

Ora, a não ser que Marx pretendesse enunciar todas as formas diferenciadas da produção econômica como especulativas, ou errôneas, ou falseadas, não há como interpretemos, a luz do estatuto ontológico da obra do autor, a ideologia da mesma maneira que nos trechos explicitados n’A Ideologia Alemã.

É baseado nesse trecho que Lukács, em sua obra tardia, Para uma Ontologia do Ser Social, irá caracterizar o fenômeno da ideologia como uma “forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social dos homens consciente e operativa”, afirmando assim que a ideologia “não é uma qualidade fixa deste ou daquele produto espiritual, mas, ao invés, por sua natureza ontológica é uma função social, não uma espécie de ser” (LUKÁCS apud VAISMAN, 1989, p. 418-420)

Para Vaisman, a ideologia no segundo sentido levantado por Marx é muito mais “denominativa de um amplo complexo de entificações sociais, onde estão incluídas formas de consciência, bem como dos horizontes sociais a partir das quais são engendradas”. (VAISMAN, 1996, p.237) Vaisman em sua tese chega a analisar vários momentos da obra do autor onde ele utiliza o termo, e conclui que existem duas acepções diferentes, mas “não necessariamente excludentes”: no primeiro caso o termo ideologia é empregado na “identificação da filosofia

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especulativa neohegeliana em particular e à especulação em geral” denominado pela autora do sentido “onto-crítico”; e no segundo caso, mencionado acima, o sentido é denominado “onto-nominativo”. (VAISMAN, 1996, p.237)

Desse trecho também se convencionou tirar como consequência, outra forma de conceber o fenômeno da ideologia enquanto toda e qualquer forma de consciência distinta das categorias econômicas. Desse tipo de afirmação é que surgiram definições de ideologia enquanto “concepção de mundo”, uma definição um tanto quanto generalizada. Cabe aqui apenas chamar a atenção para o fato de que Marx não só coloca todas as relações enunciadas como “formas ideológicas”, mas que ele também enuncia uma relação de condição, ou seja, as “formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”.

CONCLUSÃO

A determinação social do pensamento na obra de Marx, vai delinear de maneira mais clara em que medida pode emergir uma “falsa consciência” ou uma consciência falseada da realidade social. Isso vai mostrar como certas condições sociais históricas podem favorecer, limitar, possibilitar e até impossibilitar o aparecimento de certas formações ideais ou formas de consciência. A relação feita por teóricos que relacionam a teoria da alienação com o fenômeno da ideologia se estabelece de maneira mecânica e limitada. O complexo intrincado de relações concretas que estabelece os reflexos do processo de alienação na consciência, em suas diversas formas, é imediatamente identificado com a categoria da ideologia.

A constatação da “inversão” real impetrada pela existência da alienação do ser social na história, por si só estabeleceria um limite à consciência deste, que não poderia fugir à existência da falsa consciência. Parece-nos, como argumentamos acima, que mesmo nos trechos onde Marx relaciona a inversão na consciência com uma inversão real, ele se refere a uma possibilidade complexa de determinação dessa inversão que deve ser avaliada conforme cada manifestação histórica da inversão em questão. Ao tematizar a realidade alemã com a qual se deparava, o autor identifica nela a limitação que tem seu reflexo no pensamento neohegeliano especulativo.

Dessa forma Eagleton concebe a existência de um “paradoxo” na teoria de Marx e Engels sobre a ideologia. Pois se, em uma realidade na qual as relações sociais alienadas desembocam em uma consciência invertida (falsa consciência), como pode a teoria que faz a crítica da ideologia se prestar como portadora da verdade? O autor chega a aventar, baseado nessa conclusão, que a teoria de Marx e Engels conserva ainda “algo de uma estrutura racionalista ou iluminista”. Ao mesmo afirma ser ela anti-racionalista, na medida em que concebe que a base das formações ideais é a atividade prática social, “as contradições que essa atividade gera”. Mais a frente ele recorrerá a divisão manual e intelectual do trabalho para justificar o que

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chama de “erro ideológico”, afirmando que as ideias que se separam da atividade material não necessariamente deixam de ser determinadas por esse processo, essa separação, em si mesma, é fruto do processo em questão. (EAGLETON, 1997, p.71)

Parece-nos que esse impasse se desenvolve em torno da vinculação simplista entre o fenômeno da alienação e o da ideologia. Como afirmado acima, a compreensão da complexidade da determinação social do pensamento, em cada caso, pode identificar as necessidades sociais inerentes aos erros impetrados pelas formações sociais falsas. Isso porque ela desvenda uma nova forma de perceber a relação que o sujeito conhecedor em seu pensamento tem com o objeto a ser conhecido, pois se mostra totalmente vinculado ao desenvolvimento social alcançado pelo pensamento nas condições de existência na qual se encontra.

As consequências decorrentes dessa nova forma de perceber os enunciados de Marx foram demonstradas por nós, nos limites desse artigo como um veículo para possíveis interpretações que julgamos mais ricas sobre o fenômeno da ideologia. A categoria da ideologia, a luz desse “retorno a Marx” inaugurado por Lukács, abre possibilidades de identificação das disputas de consciência que ocorrem na complexa sociedade de classes atual de maneira muito mais dinâmica do que aquela que identifica a função teórica da ideologia simplesmente com a identificação do falso, do manipulado, do velamento e etc.

Na trilha do que afirma Lukács, o fenômeno da “falsa consciência” existe, mas ele tem uma forma particular, ele se constitui como formas de consciência que “não resistem a uma crítica gnosiológica”, ou seja, que quando confrontadas ao real se demonstram equivocadas. Isso não faz com que toda falsa consciência exerça realmente uma papel determinante na “batalha das ideias” que permeia todo o conflito social. As novas possibilidades de ação da “arma da crítica”, com a categoria da ideologia pensada em seu formato ontológico, podem ser muito melhor pensadas na sua função de se “apoderar das massas”. (MARX, 2010)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Page 20: A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM … · 22 26 2012 606 A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX Luiz Alexandre Barbosa Pinto Júnior Graduado em Ciências

Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa socialUniversidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais

22 a 26 de Outubro de 2012625

A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

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