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120 ISSN 1809-2616 ANAIS IV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006 ABSTRAÇÃO EM HELENA WONG –1960 A 1965 Ana Paula França Carneiro da Silva 1 [email protected] Resumo: Este trabalho é uma compilação da monografia apresentada, em abril de 2005, ao curso de Especialização em História da Arte do Século XX da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. A monografia consiste na análise do relacionamento de Helena Wong com a abstração durante grande parte de sua carreira, enfocando, entretanto, a produção realizada entre 1960 e 1965. Neste período, a produção abstrata da artista desenvolveu-se mediante tendências diversificadas, dialogando, em alguns momentos, com a visualidade da arte oriental e mantendo-se em consonância com as realizações de outros importantes artistas da época. Destacando um grande exemplo de qualidade artística alcançada fora do eixo Rio-São Paulo, contribui-se com a extensão do conhecimento sobre a abstração informal no país. Palavras-chave: Helena Wong; Abstração informal; Arte brasileira. UMA ABSTRAÇÃO INFORMAL Quando se trata da produção artística brasileira própria da década de 1960, marcos como o Neoconcretismo, a Nova Figuração e até mesmo a gênese de uma Arte Conceitual, geralmente, monopolizam a atenção. A pintura, assim como havia sido considerada até então, já não fazia parte do universo destes artistas que buscavam justamente transcendê-la sem arrependimentos. Mas, enquanto estes reforçavam a profecia referente à morte da pintura, outros denominados ainda, simplesmente, como pintores, produziam por aqui seus melhores trabalhos, os quais, embora carregassem a especificação técnica de “óleo sobre tela” na etiqueta de identificação, foram capazes de despertar reações conflituosas inflamando discussões em um cenário pouco preparado para digerir novidades. Este modo de concepção, denominado como informal, tornou-se duplamente incômodo por se contrapor tanto às vertentes pictóricas sedimentadas quanto às consideradas de vanguarda. O informalismo constituía-se como uma eficiente alternativa às limitações do cunho político-social ligado à linguagem expressionista e, simultaneamente, às 1 Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e belas Artes do Paraná. Mestranda em História e Teoria da Arte pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A produção abstrata de Helena Wong –1960 a 1965 · abstracionismo relatando o modo como procurou “captar o microcosmo e o macrocosmo que existem em cada partícula”. Concluiu

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ISSN 1809-2616

ANAISIV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006

ABSTRAÇÃO EM HELENA WONG –1960 A 1965Ana Paula França Carneiro da Silva1

[email protected]

Resumo: Este trabalho é uma compilação da monografia apresentada, em abril de 2005, ao curso de Especialização em História da Arte do Século XX da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. A monografia consiste na análise do relacionamento de Helena Wong com a abstração durante grande parte de sua carreira, enfocando, entretanto, a produção realizada entre 1960 e 1965. Neste período, a produção abstrata da artista desenvolveu-se mediante tendências diversificadas, dialogando, em alguns momentos, com a visualidade da arte oriental e mantendo-se em consonância com as realizações de outros importantes artistas da época. Destacando um grande exemplo de qualidade artística alcançada fora do eixo Rio-São Paulo, contribui-se com a extensão do conhecimento sobre a abstração informal no país.Palavras-chave: Helena Wong; Abstração informal; Arte brasileira.

UMA ABSTRAÇÃO INFORMAL

Quando se trata da produção artística brasileira própria da década de 1960,

marcos como o Neoconcretismo, a Nova Figuração e até mesmo a gênese de uma Arte

Conceitual, geralmente, monopolizam a atenção. A pintura, assim como havia sido

considerada até então, já não fazia parte do universo destes artistas que buscavam

justamente transcendê-la sem arrependimentos.

Mas, enquanto estes reforçavam a profecia referente à morte da pintura, outros

denominados ainda, simplesmente, como pintores, produziam por aqui seus melhores

trabalhos, os quais, embora carregassem a especificação técnica de “óleo sobre tela”

na etiqueta de identificação, foram capazes de despertar reações conflituosas

inflamando discussões em um cenário pouco preparado para digerir novidades. Este

modo de concepção, denominado como informal, tornou-se duplamente incômodo por

se contrapor tanto às vertentes pictóricas sedimentadas quanto às consideradas de

vanguarda. O informalismo constituía-se como uma eficiente alternativa às limitações

do cunho político-social ligado à linguagem expressionista e, simultaneamente, às

1 Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e belas Artes do Paraná. Mestranda em História e Teoria da Arte pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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exigências dogmáticas do racionalismo na arte imposta pela Arte Concreta. Além disso,

o fato de que, aderindo a esta vertente abstrata, jovens pintores brasileiros

conseguiram penetrar de modo intempestivo no circuito nacional e internacional

alimentava, consideravelmente, o clima de discórdia. É justamente deste “corpo

estranho” inserido no contexto dos anos 60 que iremos tratar aqui, pois a abstração

exercitada por Helena Wong compartilha destas e de outras características que fazem

da pintura informal um campo deveras desconfortável e, conseqüentemente, destinado

ao limbo das pesquisas.

DA LIÇÃO CUBISTA

O caráter expressionista da obra de Helena Wong2 tem sido insistentemente

destacado e, de maneira geral, suas obras e declarações revelam seu fascínio pela

abordagem subjetiva e intuitiva do tema. Mas, desde a década de 1950, no cenário

cultural do Paraná assim como nos grandes centros do Brasil, a linguagem

expressionista esteve atrelada a temáticas de cunho social determinadas pela primeira

geração de artistas modernos locais. Considerando que os artistas mais jovens

encaravam esta situação como um entrave, é compreensível que Helena Wong tenha

sido atraída por outras possibilidades que proporcionassem uma maior autonomia de

pesquisa.3

Depois de sua incursão pelo impressionismo, a artista descobre as novas

propostas das vanguardas artísticas do início do século por intermédio decisivo do

Círculo de Artes Plásticas do Paraná4 e da convivência com Alcy Xavier. Sendo assim,

a despeito da identificação com o expressionismo, não pôde evitar o encontro com

outro importante movimento transformador da arte: o cubismo.

Certamente, a reflexão de Helena Wong sobre esta importante conquista estética

não foi tão programática e profunda quanto à de outros destacados artistas, mas o 2 Helena Wong nasceu na China, na cidade de Pequim, em 1938. Sua família emigrou em 1951, passando pelo Rio de Janeiro antes de se fixar na capital do Estado do Paraná, Curitiba. Sua iniciação artística efetiva foi feita ainda no país de origem com ênfase nas técnicas tradicionais da pintura chinesa. 3 Em meados da década de 50, o trabalho de Helena Wong já começava a se destacar no cenário local. Nessa época, já possuía obras selecionadas pelo Salão Paranaense de Belas Artes do Paraná. Além disso, a partir de 1959, participou das exposições organizadas pelo Clube Concórdia intituladas Salão de Belas Artes da Primavera, importante vitrine do período, que mesmo sem oferecer grandes prêmios, foi uma das poucas opções muito disputadas pelos artistas adeptos das tendências modernas na região. Oscilando entre a seção de Pintura e Desenho, a artista colecionou medalhas de prata e ouro. Nas edições deste Salão, o público pôde acompanhar então a passagem de seu trabalho figurativo, de 1959 e 1960, para as realizações abstratas a partir de 1961.4 Instituição fundada por ex-alunos da Escola de Belas Artes do Paraná, em 1958, que oferecia cursos livres que abrangiam atividades artísticas e artesanais.

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legado cubista também possui um peso apreciável em sua introdução à abstração e

podemos estimar a contribuição deste para o início de suas experiências efetivamente

abstratas. Um bom exemplo disto pode ser identificado em Abstração X (Fig. 1),

realizada em 1960. Uma rápida observação da obra revela sua inclinação informal, ou

seja, sua distância de um rigor geométrico. Contudo, uma apreciação mais atenta

revela que apesar do caráter formal impreciso, há ainda resquícios de uma espécie de

“malha” normativa configurada por linhas oblíquas que pretendem criar uma

dilaceração do espaço pictórico. Em Abstração X, as propriedades intrínsecas desta

estrutura, como a noção de tridimensionalidade e a dinâmica dada pelas linhas

diagonais são aproveitadas para a criação de um sistema auto-referencial. No entanto,

nas bordas superior e direita do quadro, a cor se liberta totalmente da área

determinada pelo sistema para dominar a superfície da tela como mancha translúcida.

Esta ambigüidade faz com que as linhas que parcialmente delimitam as áreas coloridas

pareçam ora encobertas ora sobrepostas a um fundo indefinido, estimulando uma

tensão constante entre as entidades. A exploração desta tensão é encontrada em

muitos dos trabalhos de diversos artistas da época denominados como informais. O

principal fator de aproximação entre estas obras está enraizado em um

conservadorismo, em um modo de tratar o espaço pictural em consonância com a

vertente mais tradicionalista da “Nova Escola de Paris” ,5 ou seja, intimamente atrelado

ao legado dos mestres da primeira versão da Escola, especialmente a Braque. Uma

orientação como esta deu margem para o argumento de que este tipo de abstração

fosse geradora de “formas novas de princípios velhos”.6

O espírito propagado pela Escola de Paris, “onde são admitidas e misturam-se

todas as correntes e tendências, sob a única condição de serem ‘modernas’” e onde a

“condição fundamental da liberdade artística consistia em sua independência em face

de qualquer diretriz política e religiosa”,7 apresentava-se condizente com o ânimo de

Helena Wong na época de sua opção pela abstração. Um período muito agitado pelas

novas descobertas, que faz com que a artista admita seu despreparo: “Ainda estou a

caminho da procura de um estilo próprio e penso que para demonstrar aquilo que

quero sou ainda muito imatura. Preciso aperfeiçoar-me tanto tecnicamente como no

5 RAGON, Michel. Une nouvelle École de Paris: 1945-1949. In:_____. Journal de l’art abstrait. Genebra: Skira, 1992. p. 66-85. Ragon subdivide a nova Escola em três tendências principais sendo elas: a da “tradição francesa”, assim compreendida por abrigar na maioria artistas franceses e que foram considerados como os autênticos herdeiros da escola do início do século XX (especialmente tratando-se do cubismo). Sob a ascendência de Braque, o motivo ainda é caro a pintores como Bazaine, Bissiére, Manesier, Maria Vieira da Silva etc. Além desta, identifica uma tendência a “renovação da abstração geométrica” e finalmente, uma tendência à “abstração lírica”. 6 Indicação presente no manifesto do Grupo Ruptura, emitido em 1952.7 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. 6. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p. 341.

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desenvolvimento das minhas idéias”.8 Esta busca iria acompanhá-la nos anos

subseqüentes, causando rápidas modificações em suas pinturas e desenhos.

A PAISAGEM ABSTRATA

Em 1961, Helena Wong recebe Medalha de Ouro na seção de desenho e o

prêmio aquisição pela pintura Marinha (Fig. 2) no Salão Paranaense de Belas Artes9.

Além das possibilidades de leitura preditas pelo título, outras particularidades

desta obra evidenciam a inclinação persistente da artista, ainda que manifesta através

da linguagem abstrata, em eleger o mundo exterior como sua principal ascendência.

Segundo Wollheim, o inegável aspecto representacional da pintura abstrata está

na capacidade do espectador de “ver em”, ou seja, de distinguir uma figura de um

fundo, considerando que apenas uma pintura totalmente monocromática poderia nada

representar.10 Aliado a esta premissa, Gooding destaca o fato de que grande parte dos

artistas abstratos do pós-guerra encontrava-se em busca de um “retorno à natureza”

fazendo “uma arte que confessadamente refletisse de alguma maneira sua experiência

8 O Estado do Paraná, Curitiba, 14 fev. 1960.9 A partir desta edição, a abstração abandona sua condição marginal para, finalmente, conquistar uma oficialidade semelhante à encontrada nas principais exposições de arte dos grandes centros do país.10 WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. Trad.: Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 62.

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imediata do mundo dos fenômenos”.11 Ragon também identificou essa tendência

definindo-a como “uma nova maneira de ver a natureza”, afirmando que apesar dos

pintores se referirem a ela não o faziam de modo descritivo.12 Helena Wong manifestou

a importância que a adoção desse tipo de postura teve em seu envolvimento com o

abstracionismo relatando o modo como procurou “captar o microcosmo e o

macrocosmo que existem em cada partícula”. Concluiu que a partir deste princípio

surge “a fase que a crítica considera abstrata que veio da preocupação formal à

lírica”.13

Enquanto Fernando Velloso14 desejava abolir tal ascendência, Helena Wong

considerava abertamente a anterioridade da inspiração na natureza. Contudo, os

resultados gerados por qualquer um dos processos: o de invocação ou de rejeição do

natural, podem ativar a capacidade imaginativa do observador, demonstrando que a

figura pode estar à espreita, independentemente da vontade do artista.

Reconhecendo as reminiscências latentes das formas e das cores, Helena Wong

sentia-se livre para eqüalizar o nível de abstração que desejava. Além da

correspondência cromática identificada em Marinha, (onde possíveis céu e o mar são

azuis e a areia permanece amarelada), a artista manipulou propriedades naturalistas

aparentemente insondáveis. O aumento da largura das áreas definidas próximas da

porção inferior da tela juntamente com a aplicação de tons mais densos, configuram

uma sensação de recuo perspectivo, determinando grosseiramente o ponto de vista

mais próximo e o mais longínquo do espectador. Enquanto Fernando Velloso oferecia

uma visão quase radiográfica de suas estruturas vegetais, Helena Wong proporcionava

uma vista panorâmica de uma construção geográfica imaginária.

Confrontando Abstração X com Marinha, constatamos o descarte da trama

normativa em favor de uma fluência praticamente unidirecional. Valorizando a

horizontalidade, a dinâmica proporcionada pela obliqüidade foi substituída pela

11 GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 75.12 RAGON, Michel. Une nouvelle manière de voir la nature. In:_____. Naissance d’un art nouveau. Paris: Albin Michel, 1963. p. 102. “Il faut bien dire que s’ils se réfèrent à la nature, s’ils l’exaltent, s’ils la magnifient, jamais cette nature n’est chez eux descriptive.”13 WONG, H. Diário do Paraná, Curitiba, 30 maio 1971. Entrevista.14 VELLOSO, Fernando. Entrevista concedida a Suzana Lobo para o Museu Guido Viaro. Cutitiba, 14 dez. 1997. Velloso, importante nome da abstração atuante em Curitiba, declarou: “eu fazia uma pintura totalmente abstrata. Mas as pessoas que olhavam essa pintura propositalmente abstrata achavam sempre que havia uma reminiscência muito grande da natureza através das árvores, troncos e de tanto eu escutar essas referências, acabei me conscientizando que eu trazia, talvez de forma atávica, essa presença da natureza dentro de mim, que isso extravasava mesmo quando eu estava pintando objetivamente uma coisa abstrata. Isso fez com que em determinado ponto em diante, eu assumisse isso que estava velado dentro de mim. E dessa forma, essa última fase minha eu chamo de florestas reconstruídas, justamente porque eu estou construindo formas a partir do que seriam formas da natureza”.

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distribuição de planos paralelos e sobrepostos. Para conceber a segunda, Helena

Wong assumiu a dimensão da ferramenta, a espátula, gerando de uma vez só, por

meio do gesto linear, o plano desejado. Convém então recordarmos as realizações do

pintor francês Pierre Soulages e o desenvolvimento de sua “linha-forma”, nas quais “a

cor esmagada por um utensílio mais largo deixa de ser linha: passa a ser

imediatamente forma, o mesmo gesto que aplica a cor pode arrancá-la”.15

Desse modo, assim como o gesto, a matéria pictórica ganha um papel

proeminente na concepção da obra e o comportamento da artista com relação à cor é

alterado. A preferência por composições quase monocromáticas passa a imperar em

suas realizações abstratas. Tomamos a submissão da cor como um fato que evidencia

a insistente valorização dos aspectos gráficos em detrimento dos pictóricos.

Provavelmente, as principais experiências da artista foram geradas nos desenhos a

nanquim16 e, posteriormente, transpostas para as pinturas. Além disso, o vigor dos

desenhos teve grande importância para a sua projeção em âmbito nacional, pois foi

com deles que Helena Wong integrou pela primeira vez a Seção Nacional da Bienal

Internacional de São Paulo, participando assim da exposição de maior prestígio da

época e de mais uma edição que viria a consagrar a consolidação do informalismo no

Brasil.

O DIÁLOGO COM A ARTE ORIENTAL

Segundo o texto de apresentação da delegação brasileira da VII edição da Bienal

de São Paulo, “somente o fato de expor nas bienais por si mesmo deveria ser

considerado um prêmio”.17 Helena Wong gozou desse privilégio integrando a seção de

desenho desta mesma exposição, quatro anos após sua primeira visita à Bienal. Uma

obra com especificações muito semelhantes àquelas que constam no catálogo de 1963

é analisada aqui: Desenho II (Fig. 3).18

Neste trabalho, a relação “linha-forma” apontada anteriormente modifica-se de

maneira essencial, pois o gesto largo que proporcionava de modo simultâneo a

distribuição linear e o plano resultante transmuta-se num gesto muito fino e curto,

15 VALLIER, Dora. A arte abstracta. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 210.16 Exemplos destas obras são encontrados na monografia de Especialização da autora.17 FERRAZ, Geraldo. Catálogo VII Bienal de São Paulo. Texto de apresentação da delegação brasileira. São Paulo, 1963.18 Outro exemplo que compartilha elementos desta análise é Desenho I, também de 1963, (técnica mista s/ papel, 67, 9 x 99, 9 cm) pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

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solicitando uma repetição mais ativa no processo de definição da forma. Através de um

sistema semelhante ao de hachuras (observar detalhe na Fig. 4), a artista conseguia,

aumentando ou diminuindo a freqüência das linhas, um gráfico de limites definidos e de

áreas mais ou menos intensificadas. A determinação dessa unidade gestual como

parâmetro para geração de obras distintas foi interpretada pela crítica como sendo a

maneira encontrada pela artista para dar vazão à sua formação oriental. Para Roberto

Pontual, a “multiplicidade de traços, arregimentados em massas indefinidas de cor e

assemelhando a vapores libertos ao ar, indicam como uma de suas características

básicas a agilidade caligráfica, resíduo ainda da origem oriental em que permanece

mergulhada”.19

A partir de 1963, Helena Wong reproduz e reinventa esse procedimento infinitas

vezes. A indicada influência oriental faz com que estes trabalhos participem da

importante discussão, imposta internacionalmente ao informalismo e que, no Brasil,

recebeu projeção devido à relevante participação dos artistas nipo-brasileiros na

configuração desta vertente no país.

A técnica escolhida para a realização dos desenhos chamou a atenção da crítica

com relação à competência caligráfica da artista, sem que destacassem, entretanto, o

fato de Helena Wong valer-se, mesmo que intuitivamente, do sistema espacial de

representação da paisagem desenvolvido por seus ancestrais. Abdicando da energia

do traço largo e nervoso, a aparência de seus desenhos modificou-se

consideravelmente, sem abandonar, no entanto, a invocação da paisagem. Encerram,

19 PONTUAL, Roberto. Catálogo exposição na Galeria Marte 21. Curitiba, 13 out. 1973.

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todavia, o mesmo desejo de “abolir o écran que as separa do mundo exterior”

demonstrado já em obras anteriores, portanto, encontram-se igualmente à “margem da

arte abstrata”, situação em que a lição do Extremo Oriente, segundo Vallier, constituiu

um valioso suporte para inúmeros artistas.20 Por meio do entendimento da essência

regente na estrutura das tradicionais pinturas, Helena Wong realiza um precioso

desdobramento particular.

O artista do Extremo Oriente concebe a paisagem obedecendo a preceitos

distintos aos dos ocidentais e, conseqüentemente, demandando um outro tipo de

contemplação. “A sua paisagem deve ser explorada não só no espaço, mas também

no tempo”. Deste modo, não impõe um único ponto de vista ao observador, “o pintor

convida-nos a explorarmos com ele a paisagem”.21 Com freqüência, estes desejavam

abarcar vários elementos da natureza na mesma composição, necessitando assim

desenvolver uma solução para as chamadas “junções difíceis”. Para tanto, uniam as

montanhas, rochas, despenhadeiros etc., mediante a representação da bruma ou da

água, ou seja, mediante a equalização dos cheios e vazios. Além disso, o efeito podia

adquirir características mais ou menos potencializadas dependendo da manipulação

das diferentes manifestações da pincelada: a linha, a aguada, o salpico etc. Helena

Wong investe na distribuição de linhas incisivas, o que faz com que as formas

pontiagudas concebidas pela artista pareçam ter sido inspiradas na representação

intimidante das montanhas oferecida pela tradição nortista.22 Assim, a diafaneidade é

relativizada pela disposição das linhas que configura uma inegável sensação tátil.

Ao analisarmos Primavera II (Fig. 4) observamos como, mais uma vez, um

procedimento gráfico ressoa sobre a sua produção pictórica. De posse do pincel, a

artista não almeja um controle tão rígido da configuração das linhas e a distinção entre

figura e fundo ganha novos parâmetros. Em contrapartida, a introdução da cor revela

possibilidades ainda não desenvolvidas em seus desenhos.23

Após um período de atividade artística no qual as dimensões da influência oriental

ainda podem ser veemente renegadas devido à sua adequação aos ideais ocidentais

difundidos pela “Nova Escola de Paris”, a produção de Helena Wong ganha novo

20 VALLIER, Dora. A arte abstracta. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 222. Destaca-se aqui o nome de uma artista pertencente à Escola de Nova York, Mark Tobey.21 SULLIVAN, M. A arte chinesa. In:_____. A arte chinesa e japonesa. Londres: Grolier Incorporated, 1965. p. 12.22 Há diversidades formais entre as duas importantes tendências na representação paisagística na China. A mais conhecida delas é a distinção entre a Dinsatia Sung do Norte e a do Sul, onde as escolhas estilísticas determinavam obras com particularidades diferentes, algo semelhante à distinção entre “linear” e “pictórico” (Wölflin) estabelecida com relação a pintura ocidental. 23 A respeito destas obras temos como fato marcante a exposição individual realizada no Museu de Arte de São Paulo, organizada pelo MAC-USP que integrou uma das telas expostas a seu acervo.

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fôlego através de obras nas quais percebemos sua bagagem oriental aflorar

livremente. Intencionalmente ou não, por meio da valorização de aspectos presentes

na arte chinesa, a artista desenvolve de modo mais evidente uma linguagem pessoal.

A RELAÇÃO COM A PRODUÇÃO DOS ARTISTAS NIPO-BRASILEIROS

Trajetórias semelhantes apresentam alguns artistas de origem extremo-orientais

adeptos do informalismo no Brasil. Destaca-se aqui a produção proveniente do início

do envolvimento com o abstracionismo, em meados da década de 1950, princípios da

década de 1960 de apenas três deles: os nipo-brasileiros Manabu Mabe, Tikashi

Fukushima e Tomie Ohtake.24

Manabu Mabe nasceu em 1924 e chega ao Brasil com apenas dez anos de idade.

Trabalhou na lavoura de café das fazendas em Lins, interior de São Paulo, assim como

Tikashi Fukushima que desembarcou no Brasil alguns anos depois, em 1940, quando

já era um jovem de vinte anos. A falta de recursos e as escassas oportunidades para a

atividade artística condicionavam o lento desenvolvimento de ambos, no entanto, sem

enfraquecer o desejo de muito em breve ter a pintura como atividade principal. Ao

contrário da maioria dos japoneses daquela época, Tomie Ohtake veio ao Brasil a

passeio e aqui permaneceu desde 1936. Radicando-se desde o início na cidade de

São Paulo, não enfrentou as mesmas animosidades de uma vida dedicada ao trabalho

na lavoura, mas sua tarefa foi dedicar-se exclusivamente à família até os trinta nove

anos, quando buscou a orientação do pintor japonês Keya Sugano.

Os primeiros temas dos artistas nipo-brasileiros foram a paisagem, urbana ou

rural, o retrato e a natureza morta,25 e com deles, começaram a se destacar,

inicialmente nas exposições promovidas pelo Grupo Seibi e, logo em seguida, nas

importantes mostras da época como o Salão Paulista de Belas Artes, o Salão Nacional

de Arte Moderna e a Bienal de São Paulo. Mas logo perceberam que a hegemonia da

pintura figurativa expressionista estava sendo abalada, dando-se conta do crescente

destaque dado ao abstracionismo. Segundo Manabu Mabe, “na pintura brasileira da

época tinha-se a impressão de que, se não fosse pintura abstrata não seria

conceituada como pintura. Tikashi Fukushima, Flávio Tanaka e eu nos atiramos

24 Mereceriam menção ainda outros nomes, mas o critério de seleção foi o fato de que as obras dos três artistas carregam elementos suficientes para o confronto almejado, facilitando a viabilização de uma análise mais sintética. Nenhum dos nipo-brasileiros citados possuía um trabalho gráfico tão consistente dentro da linguagem abstrata quanto Helena Wong, sendo assim mais coerente que somente pinturas, onde a influência oriental apresenta-se mais consistente sejam os objetos de estudo.25 FUNDAÇÃO ARMANDO ÁLVARES PENTEADO. Herança do Japão: aspectos das artes visuais nipo-brasileiras. São Paulo, 1988. Catálogo de Exposição.

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resolutos nessa abordagem”.26 Tomie Ohtake também abandonou definitivamente as

pequenas e tímidas paisagens, assumindo o abstracionismo em 1954. Todos os três

demonstravam uma inexperiência comum à de tantos outros recém adeptos da

abstração, sendo que a opção inicial foi notadamente a transposição dos moldes

europeus. Durante o abrupto desvio de estilo, não se deram conta da potencialidade de

sua bagagem primordial. Conseguiram manter-se presentes no diminuto circuito

artístico brasileiro por meio de obras abstratas (ou abstratizantes) que deviam muito

ainda aos modelos importados da Nova Escola de Paris.

Entretanto, comum também foi o esgotamento paulatino dessa fórmula e a

descoberta de uma oportunidade viável para o aproveitamento dos preceitos da arte

oriental que, a despeito de distinções, todos naturalmente herdaram. O fato é que,

assim como Helena Wong, todos eles aproximaram-se mais de uma linguagem pessoal

a partir do momento em que decidiram dar abertura aos conhecimentos latentes.

A exploração do caráter gestual pode ser tomada como a afinidade mais evidente

entre o trabalho destes artistas e as pinturas de Helena Wong. Mas, enquanto os nipo-

brasileiros dão preferência ao macro-gesto, incisivo e econômico, Helena Wong valia-

se das propriedades caligráficas do micro-gesto, reincidente e relativamente

meticuloso.

Diante de obras de Mabe, Fukushima e Ohtake, o espectador consegue

apreender a completude do gesto podendo até mesmo arriscar uma breve

reconstrução do caminho percorrido pelo pincel do artista sobre o suporte. Enquanto

que as pinturas de Helena Wong oferecem uma alternância ininterrupta de ritmo

conduzindo os olhos do espectador a um caminho inconstante e turbulento. Em

Primavera II (Fig. 5),27 por exemplo, a artista determina entre zonas praticamente

desabitadas, uma porção mais ou menos centralizada de pequenos signos em

convulsão uns sobre os outros; desse modo, a pesquisa iniciada nos desenhos ganha

novas proporções.

Provavelmente, devido ao sentimento de realização pessoal proporcionado pela

certeza de uma retomada autêntica e criativa de suas fontes mais espontâneas e,

especialmente, pela projeção que essa opção possibilitava no cenário cultural, estes

artistas, cada um a seu modo, permaneceram trilhando o caminho da abstração. O

comportamento da produção de Helena Wong, contudo, a partir de 1965, modifica-se

profundamente. Na verdade, o relacionamento da artista com o abstracionismo nunca

26 MABE, Manabu. Mabe: Chove no cafezal. 1994.27 Propriedades semelhantes são observadas em Ritmos vermelhos n. 11 (óleo s/ tela, 98 x 118 cm), pertencente ao Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

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foi tão bem resolvido quanto o de seus pares. Por isso, não podemos estranhar o fato

de que nos mesmos anos em que concebia intensamente desenhos abstratos, realize

obras em que a figura é tratada com uma nitidez tão próxima de seus primeiros

trabalhos.

O VALOR DE UMA EXPERIÊNCIA

O fato de Helena Wong manter o flerte com a figuração não desvaloriza as

conquistas proporcionadas por sua fase abstrata. Analisando os caminhos que

escolheu para dar continuidade à sua carreira artística, podemos dimensionar a

importância que este período teve em seu desenvolvimento. A artista valeu-se da

destreza caligráfica exercitada na abstração para um maior aproveitamento da linha em

suas obras subseqüentes, podendo explorá-la tanto como delimitadora de figuras

quanto como preceptora da atmosfera que as envolve. Além disso, a experimentação

de diferentes tipos de estruturas composicionais possibilitada pelas diversificações da

linguagem abstrata preparou a artista para a concepção do ambiente onírico que se

tornou adequado à carga significativa que desejava imprimir em seus trabalhos

figurativos do fim da década de 1960.

Em sintonia com as discussões da época em que foram realizadas e

apresentando uma qualidade equivalente àquela identificada no trabalho de outros

artistas, as obras abstratas de Helena Wong apresentam uma importância histórica

maior do que simples fase de transição. Mediante a análise desta produção,

Page 12: A produção abstrata de Helena Wong –1960 a 1965 · abstracionismo relatando o modo como procurou “captar o microcosmo e o macrocosmo que existem em cada partícula”. Concluiu

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evidenciam-se a necessidade e o valor do estudo da arte realizada nas regiões

periféricas do Brasil para o melhor entendimento do informalismo no país e para,

conseqüentemente, o preenchimento desta grande lacuna na história da arte brasileira.

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