A PROPÓSITO DE DIABOS, DIABRITOS E OUTROS MAFARRICOS.pdf

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    NOGUEIRA, Carlos. Do conto popular e da lenda literatura paracrianas e jovens. A propsito deDiabos, Diabritos e Outros Mafarricos,de Alexandre Parafita. Culturas Populares. Revista Electrnica 7 (julio-diciembre 2008), 11 pp.http://www.culturaspopulares.org/textos7/articulos/nogueira1.pdf

    ISSN: 1886-5623

    DO CONTO POPULAR E DA LENDA LITERATURA PARA CRIANAS E JOVENS.

    A PROPSITO DEDIABOS, DIABRITOS E OUTROSMAFARRICOS,

    DE ALEXANDRE PARAFITA

    CARLOSNOGUEIRA

    Centro de Tradies Populares PortuguesasUniversidade de Lisboa

    ResumoNo conto popular portugus, o ciclo do diabo sem dvida um dos mais estimulantes eporventura o mais conhecido dos ciclos do corpusnacional e dos corpora do Ocidente. Poder-se- mesmo afirmar que este conjunto textual interessa a todas as classes sociais e faixasetrias, a todo oser portugus, que, no raro e de diversos modos, se institui enquanto sujeitoatravs da sua relao com o diabo, nas suas mltiplas e imprevistas formas.Palavras-chave: conto popular, diablo, Portugal, Alexandre Parafita.

    Abstract

    Portuguese folktales about the devil constitute a widely known corpusboth in Portugal andbeyond its frontiers. This group of texts is important for all social classes and for people of

    all ages, because the relationship with the devil in it's multiple and unexpected shapes is a

    way of building the Portuguese identity.

    Keywords: folktale, devil, Portugal, Alexandre Parafita.

    Conta-se que um dia o diabo foi ter com um lavrador e props-lhe fazerem uma

    sementeira a meias. O lavrador, como lhe fazia jeito dividir os encargos, aceitou. E que semeamos? perguntou. O que for melhor disse o diabo. Que tal semearmos um campo de batatas?... avanou o lavrador. Pois que seja concordou o scio.Meteram ento ombros ao negcio. O diabo entrou com as sementes, os adubos, os

    pesticidas, e o lavrador entrou com o trabalho. Foram dias, semanas, meses, a sachar, aregar, a pulverizar... e, por fim, o batatal cobriu de verde toda a planura do campo.Ficou um autntico regalo para os olhos. A colheita adivinhava-se da melhor.

    Entretanto, ao aparecer para a colheita, o diabo ficou de tal modo deslumbrado comtanta verdura que logo procurou arranjar maneira de ficar com a melhor parte. Propsento ao lavrador:

    Vamos fazer a diviso da seguinte forma: eu fico com a parte do batatal que estpara cima da terra e tu ficas com a parte que est para baixo.

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    O lavrador nem pestanejou. Aceitou logo. Se assim que queres, assim seja!J se est a ver. Ficou o lavrador com as batatas e o outro com a rama.

    No ano seguinte, apareceu de novo o diabo ao lavrador a propor que voltassem a fazeruma sementeira a meias. E que semeamos? perguntou o lavrador.

    O que for melhor disse o diabo. Batatas, no, que ainda as tenho do ano passado. Que tal semearmos um campo detrigo? Pois que seja concordou o scio.Reataram ento o negcio.O diabo entrou com as sementes e o lavrador com o trabalho. Chegada a altura da

    colheita, l estava a seara e que bela! a ondular ao ritmo da brisa mansa do Estio.Veio ento o diabo para as partilhas e diz ao lavrador: Da ltima vez no me correu bem o negcio que fiz contigo. Por isso, ficas tu agora

    com a parte do cereal que est por cima da terra e eu fico com a parte que est porbaixo!

    O lavrador aceitou. claro. Ficou ele com o gro e o outro com as razes. Quandodeu conta da asneira que fez dizem , o diabo fartou-se de dar guinchos e pinotes. Eda em diante j no quis mais sociedades com o lavrador.

    Alexandre Parafita,O diabo e o lavrador, inDiabos, Diabritos eOutros Mafarricos, Lisboa, Texto Editora, 2003.

    o conto popular portugus, o ciclo do diabo sem dvida um dos mais

    estimulantes e porventura o mais conhecido dos ciclos do corpusnacional

    e dos corpora do Ocidente. Poder-se- mesmo afirmar que este conjuntotextual interessa a todas as classes sociais e faixas etrias, a todo o ser portugus (e

    no s), que, no raro e de diversos modos, se institui enquanto sujeito atravs da sua

    relao com o diabo, nas suas mltiplas e imprevistas formas. Neste grupo de contos

    populares, o anti-sujeito o diabo, figura arquetpica da manha assim como a

    mulher o no plano antropomrfico, e a raposa, o polvo, a serpente e o lobo o so no

    plano zoomrfico , e o sujeito um homem simples e popular que, ao contrrio do

    doutor Fausto, sabe resistir s tentaes diablicas1.

    Alexandre Parafita, na obraDiabos, Diabritos e Outros Mafarricos, selecciona

    dez narrativas que ele prprio recolheu da tradio oral de Trs-os-Montes e reconta-

    as em verses cuja linguagem se inscreve num paradigma de oralidade arquetpica;

    uma oralidade que transporta as marcas quer do colectivo quer do contador que

    ordena o discurso e a histria, investindo o novo texto de elementos lingusticos,

    retricos, psquicos e sociais que decorrem de uma relao pessoal entre ele e todos

    1 Arnaldo Saraiva, O conto popular portugus: Joo Soldado que meteu o Diabo no saco, inLiteratura Marginal/izada, Porto, Edies rvore, 1980, pp. 67-68.

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    os materiais implicados na construo textual. O enunciador do texto escrito pertence

    a uma genealogia ilustre de intrpretes-autores cujos nomes so revelados, com a

    devida homenagem, no Painel de contadores que fecha o livro. A voz de cada um

    deles , pois, de certo modo, perpetuada na voz de uma entidade, inscrita no papel,

    que d ao relato um espao de eternidade. A oralidade que o texto de Alexandre

    Parafita prope, sntese de uma pluralidade de vozes, por isso veraz e verosmil,

    original e j ouvida, como todos os textos tradicionais. A cada leitor compete partir

    dessa oralidade da escritaque igualmente uma escrita da oralidade.

    Nestes contos e nestas lendas encontramos histrias de diabos e seres afins

    que, nalguns casos, vivem um inferno que no o da sua essncia enquanto seres

    malditos e diablicos. Na disputa com o portugus supostamente ingnuo ou indefeso,

    o diabo, figura maior dessa legio de demnios que quer seduzir e escravizar o

    Homem, no consegue usar com sucesso os seus conhecimentos malignos e v-se no

    s derrotado como ridicularizado. O poder destes textos vem precisamente, em larga

    medida, da insubordinao que significa ridicularizar o diabo, impondo-lhe o

    espectculo do riso que o degrada e assegura ao receptor uma superioridade que no

    s desvia ou distrai o esprito como constitui uma medicina e uma fora socializadora.

    O cmico destas narrativas, enquanto srie de constituintes de um todo em processo,

    elemento vital tanto da criao como da identidade do texto; e exactamente essa

    qualidade cmica da expresso, do contexto diegtico e/ou do perfil psicolgico e

    comportamental das personagens o que d solidez estrutura profunda comum a cada

    conto deste ciclo: lavradores, crianas e velhas (o humano) suplantam o determinismo

    do sobrenatural, superam a sua precariedade de seres para a morte e transferem

    algumas das suas imperfeies para o diabo. Ao contrrio do amanuense Teodoro de

    O Mandarim de Ea de Queirs, que, tentado por um diabo de sobrecasaca preta e

    chapu alto, mata um Mandarim e herda sem custo a sua incontvel fortuna, ocampons simples e arguto vive em paz com a sua conscincia; por isso, no se lhe

    aplica a moralidade enunciada no final de O Mandarim, que reproduzida na verso

    adaptada por Gonalo M. Tavares para a infncia e a juventude: E a vs, homens,

    lego-vos, sem comentrios, estas palavras: S sabe bem o po que dia a dia ganham

    as nossas mos: nunca mates o mandarim2(como lembra Coimbra Martins num dos

    seus estudos sobre Ea de Queirs, matar o mandarim cair na tentao de, por

    2O Mandarim, adaptado para os mais novos por Gonalo M. Tavares, ilustraes de Helena Simas,Vila Nova de Famalico, Edies Quasi, 2008. Sem numerao de pginas.

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    exemplo, enriquecimento imediato, por se crer ingenuamente que nada ter de ser

    dado em troca).

    O primeiro texto do livro, O diabo e o lavrador, encerra um caso de

    duplicidade semntica, tpica dos contos deste ciclo, que decorre da sua configurao

    alegrica; duplicidade que estratgia de activao da moral da narrativa: o sentido

    literal (o diabo, de acordo com o pensamento cristo, existe e quer dominar o

    Homem) interage com um segundo sentido (ao usar os seus mtodos desonestos, cada

    um de ns estar a encarnar o diabo). No limite, o interesse desta narrativa resulta de

    uma inverso quase total de papis que a conhecida maldade do diabo autoriza

    eticamente: o maldito explorado porque quer enganar o lavrador. O que neste texto

    se faz , pois, contra a moral do sistema religioso oficial, a ratificao de uma moral

    admitida pelo contexto, no a concretizao de uma imoralidade. A cada leitor infantil

    caber descobrir se existe para si uma verdade una e infalvel ou, como sucede com

    este lavrador, um movimento sempre contingente e imprevisto de (i)moralidades. O

    riso que o conto desperta no final o primeiro signo da sua vitalidade.

    O dogma cristo que explica o nascimento do diabo, um anjo cado que se

    revolta contra o Criador, evocado em dois textos que tm como protagonistas duas

    entidades divinas. Da narrativa O diabo e as amndoas sobressai a proverbial

    bondade de Deus e do seu filho, que no deixa de dar um bom conselho ao seu arqui-

    inimigo, mesmo se ele no lhe solicita qualquer ajuda:

    Certo dia o diabo, no ms de Fevereiro, ao passar pelo termo de Uva, no concelhode Vimioso, encontrou uma amendoeira em flor e sentou-se debaixo dela, pensando queestaria prestes a dar fruto. Entretanto, Nosso Senhor passou por l e perguntou-lhe:

    Que ests a fazer? Estou espera que esta rvore d fruto. Como j est em flor, no deve demorar. Por que no vais antes esperar o fruto da cerejeira? tornou-lhe Nosso Senhor. Nem pensar! Esta j est em flor e a cerejeira ainda no!3

    Santo Antnio e o diabo enquadra-se na srie de contos e lendas que tm

    como tema a desconstruo da manha do demnio. A novidade mais substancial deste

    texto reside na sua ligao ao episdio bblico da tentao de Cristo pelo Diabo

    (Certo dia Santo Antnio ia por um caminho e, atrs dele, seguia o diabo a tent-

    lo4). O contexto e o comportamento dos actantes cristos so porm distintos em

    relao matriz hipotextual; mudam o cenrio e o perodo de tempo da tentao (o

    deserto e os quarenta dias reduzem-se a um caminho e a menos de um dia); e muda

    3Diabos, Diabritos e Outros Mafarricos, p. 12.4Idem, p. 17.

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    sobretudo a atitude do santo, que significa uma alterao na axiologia e na pragmtica

    do texto: obstinada perseguio do Diabo, que, segundo os evangelhos, Jesus tolera

    e ultrapassa sbia e pacientemente, correspondem, no texto tradicional que Alexandre

    Parafita reescreve, comportamentos e solues em tudo prprios de um ser humano

    comum: O santo bem procurava correr com ele, mas de nada lhe valia. O outro no o

    largava. At que chegaram a um ribeiro que levava muita gua e onde no existia

    nenhuma ponte para passarem. Ento Santo Antnio arranjou logo uma maneira de se

    livrar da companhia. Tirou a capa, fez dela um barco e passou para o outro lado 5.

    Santo Antnio quer afastar o Diabo e, depois de o conseguir, oferece-lhe cristmente

    o auxlio solicitado (mesmo se o objectivo , sabe-se, perverso). Mas a resposta do

    santo parece-nos ambgua porque no sabemos se o acto final existe j em estado

    latente no acto que supostamente haveria de colocar o Diabo na outra margem:

    Mas o diabo nem assim desistia de o acompanhar. Gritava, pulava, gesticulava. Porfim, Santo Antnio resolve dar-lhe uma oportunidade. E ento o que faz. Usando detoda a sua fora, dobrou uma rvore da margem onde estava e f-la chegar at junto dodiabo, dizendo-lhe:

    V! Agarra-te a ela! O outro assim fez. E, mal ele se agarrou, o santo larga arvore das mos... e a vai o diabo pelos ares6.

    Por premeditao, acidente ou mudana brusca de perspectiva, h o

    restabelecimento da ordem: Deus, Sat e o Homem ocupam os seus lugares originais.

    Acreditar na tese da aproximao de Santo Antnio ao diabo aceitar o pensamento

    de vrios telogos dos primeiros sculos do Cristianismo e de poetas dos tempos

    modernos: a redeno de Sat, que implicaria uma reconciliao final com Deus. A

    tese da libertao pode impor-se provisoriamente ao leitor mas o desfecho do texto

    confirma a manuteno da velha ordem. O diabo que nem assim se deu por vencido,

    ironizou l do alto, antes de se perder no meio das nuvens, por certo j pronto a

    avanar com a sua gil perversidade sobre outros filhos de Deus: Ests a ver,

    Antnio? Milagres contigo, mas saltos comigo7. Elemento consubstancial

    natureza humana, o humor , aqui, demonaco (literalmente): imprevisto, ousado,

    imaginativo e feroz como o do diabo do Doutor Faustode Thomas Mann, de cuja

    existncia o narrador homodiegtico, depositrio do relato enigmtico e secreto de

    Adrian Leverkn, duvida; embora no duvide do tom satnico do discurso atribudo

    5

    Idem, p. 17.6Ibidem.7Ibidem.

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    ao interlocutor do seu amigo: Um dilogo? Foi realmente um dilogo? Eu deveria

    estar louco para crer nisso. E, por essa razo, no posso to-pouco acreditar que

    Adrian, no fundo da sua alma, tenha considerado real o que via e ouvia, seja enquanto

    o via e ouvia, seja mais tarde, quando o assentava no papel no obstante o cinismo

    com que o interlocutor tentava convenc-lo da sua presena objectiva. Se todavia este

    no existia e horrorizo-me ao admitir, ainda que apenas incondicionalmente, a

    existncia da sua existncia real pavorosa a ideia de que tambm aqueles

    argumentos cnicos, aqueles escrnios, aqueles embustes tenham brotado da prpria

    alma do acossado8. Esta evocao e este pacto mais ou menos tcito com o

    demonaco no existem nos contos populares portugueses nem na literatura oral

    portuguesa em geral, que no pe minimamente em causa a existncia do Demnio

    (decerto porque, como observa oportuna e lapidarmente Fernando Pessoa, a ns o

    Diabo nunca nos meteu medo9).

    Nas palavras de Eduardo Loureno, naNau Catrineta, que reduz o Maligno a

    coisa nenhuma, reenviando o corpo ao mar (da vida) e a alma a Deus, a nossa relao

    com o diabo tem uma funda e sbia soluo10; uma soluo, acrescente-se, que, sem

    recorrer aos mecanismos do humor sbio e do burlesco prprios do conto popular, se

    concretiza em absoluta seriedade. Portanto: dois modos muito distintos de resolver o

    mesmo problema que, no fundo, representam dois dos movimentos mais

    caractersticos da alma portuguesa, que ora reage pela risibilidade ora pela gravidade

    e aspereza: Que queres tu, meu gajeiro, alvssaras te hei eu de dar?/ Capito,

    quero a tua alma para comigo levar/ Arrenego de ti, demnio, que me estavas a

    tentar!/ A minha alma s de Deus; o meu corpo dou ao mar./ Toma-o um anjo nos

    braos, no o deixa afogar./ Deu um estoiro no demnio, calmaram vento no

    mar./ noite, Nau Catrineta j estava em terra a varar11.

    8Doutor Fausto. A Vida da Compositor Alemo Adrian Leverkn Narrada por um Amigo, traduo deHerbert Caro, revista para Portugal por Jos Jacinto da Silva Pereira, Lisboa / Porto, Publicaes DomQuixote / O Oiro do Dia, 1987 (1. ed., 1949), p. 261.9Apud Eduardo Loureno, Jorge de Sena e o demonaco, in O Canto do Signo: Existncia e

    Literatura (1957-1993), Lisboa, Editorial Presena, 1994, p. 177.10Ibidem.11 Verso do Porto da Cruz (concelho de Machico) [Madeira], recitada por Matilde Vieira, 78 anos.

    Recolhida por Pere Ferr, no dia 05/04/1981. In Pere Ferr, Romances Tradicionais(Subsdios para oFolclore da Regio Autnoma da Madeira), com a colaborao de Vanda Anastcio, Jos JoaquimDias Marques e Ana Maria Martins, Funchal, Cmara Municipal do Funchal, 1982, p. 315-316.

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    Mas nem todas estas narrativas delineiam a dicotomia bem/mal de modo to

    explcito. No conto A velha e o trasgo h uma convivncia que suscita, se no uma

    reabilitao do mafarrico, pelo menos um olhar moderado e inquiridor sobre ele:

    Um dia, com pena dela, o trasgo disps-se a compens-la pelas diabruras que lhefazia durante a noite. Esperou ento pela hora da sesta e, mal a velhota se encostou aum canto apassar pelas brasas, ele foi, sorrateiramente, para junto dela e ps-se-lhe acatar os piolhos.

    Foi remdio santo. A velha acordou da sesta mais aliviada. E da em diante, como otrasgo passou a ir catar-lhe os piolhos durante o dia, j ela no tinha de se coar tantodurante a noite. Por isso, deu em dormir sempre bem regalada, com sono de chumbo.Dormia de tal modo que j nem dava pelo rebulio que o trasgo continuava a fazer emcasa12.

    Quer isto dizer que no se desencadeia nestas dez narrativas o efeito de

    monotonia que resulta da previsibilidade (ainda assim sempre minimizada pelo

    inusitado da trama e pelo imprevisto da concluso); a m reputao das personagens

    cria um horizonte de expectativas que todavia inventivamente subvertido neste

    texto. Tambm O menino de vermelho constitui uma proto-comdia que veicula,

    em termos de pragmtica, a noo de que nenhuma relao unvoca porque o outro,

    actuando na ordem do agir que sempre contingente, define-se pela pluralidade:

    Um dia, para tentar livrar-se do esprito que ali tanto a importunava, resolveuprocurar outra casa para se mudar. E quando estava nas mudanas, a carregar loias,mveis e outros haveres, encontrou no percurso entre as duas casas um menino devermelho com um banco s costas.

    A velhota, muito admirada, perguntou-lhe: Olha l, esse banco meu! Para onde vais com ele?E o rapaz, com ar mais admirado ainda, exclamou:

    Ento no estamos a mudar de casa?13

    Numa palavra: cada um destes textos confronta o sujeito com a sua natureza

    enquanto pessoa, com as suas verdades, as suas dvidas e os seus medos mais

    recnditos; e inscreve-o num processo de experimentao e leitura de casos que lhe

    assegura uma melhor compreenso do mundo e do seu devir. Os sentidos da vocao

    pedaggica destes contos e destas lendas convergem assim no numa moralidade de

    sentido estrito mas num questionamento moral (base de toda a arte tica que ensina a

    viver). Esta virtualidade concretiza-se especialmente naqueles pontos em que a adeso

    do receptor fuso integral com o texto. Sempre que os leitores ou ouvintes entram,

    12Diabos, Diabritos e Outros Mafarricos, p. 25. Sublinhados no original.13Idem, pp. 30-31.

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    durante o acto da leitura ou audio, no universo atpico e acrnico que o da

    instaurao de um imaginrio real, ocorre a suspenso da distncia entre o texto e o

    mundo emprico. O jogo especular entre o mundo do texto e o imanente mais interior

    ao sujeito configuram ento um nico mundo (to eterno e fugaz como qualquer

    outro).

    O livro Diabos, Diabritos e Outros Mafarricos contribui, pois, para a

    legitimao tanto da literatura de transmisso oral como da literatura para a infncia e

    a juventude em Portugal. Mais (recuperando e consolidando o que dizamos a abrir

    este artigo): estes textos, de que Alexandre Parafita simultaneamente ouvinte,

    recolector, intrprete e autor, dizem-nos que h uma especificidade textual que ao

    mesmo tempo oral e escrita, dita e lida. Se cada uma destas narrativas , antes de

    mais, memria da oralidade, no menos evidente que h tambm uma memria da

    escrita na narrativa oral. Os sinais do registo no dominante completam o sentido do

    ideal de dico: o conto oral procura a nobreza do discurso erudito, o escrito a

    naturalidade e a clareza (a verdade) da voz. precisamente esta articulao entre os

    sistemas da escrita e da oralidade que em grande parte explica o sucesso destes textos

    junto dos jovens leitores (e no s, como se sabe, ou no estivssemos perante obras

    da tradio oral). A transcrio do conto um modo de canonizao: no s porque a

    letrapresentifica e certifica uma textualidade at a sujeita a uma deriva interminvel,

    mas tambm porque o centro que a escrita gera existe para ser deslocado nos

    processos de leitura e reconto (oral e/ou, de novo, escrito). Entenda-se: a canonizao

    (que , acima de tudo, uma questo de supervivncia do texto da tradio popular) no

    acontece simplesmente por se verificar a realizao grfica e sintagmtica dos signos

    lingusticos orais; justifica-a tambm a noo de oralidade enquanto veculo

    multimilenar de sabedoria e encantamento ldico.

    Notemos, a concluir, uma proposio que hoje (quase) ningum ignora:atravs destes contos e destas lendas, a criana e o jovem entram no mundo da leitura

    e da vocalidade enquanto redefinio dos condicionalismos do real-real, de criao de

    outras formas e modelos do mundo, e, nesse espao e nesse tempo renovados em que

    se plenamente humano, vem reconhecidos os seus cdigos lingusticos, sociais e

    culturais. A sala de aula, a biblioteca e o auditrio da escola podem e devem tornar-se

    cada vez mais numa mise-en-abme em aco dos momentos em que, na nossa

    sociedade tradicional, o acto narrativo era um ritual de celebrao da palavra e decoeso social.

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    Atravs do cruzamento esclarecido e operativo dos caminhos cientfico,

    metodolgico e pedaggico-didctico, importa por conseguinte atribuir mais

    visibilidade a contedos j h muito presentes nos curricula dos ensinos bsico e

    secundrio mas ainda no devidamente explorados nas suas virtualidades

    comunicacionais, literrias e culturais. No duvidemos: investir no estudo e na

    divulgao, em contexto escolar, de textos quer da tradio oral portuguesa (e no s),

    quer da literatura para a infncia e a juventude que se institui a partir de gentipos

    tradicionais, favorecer a liberdade de ser e de pensar, aprofundando a educao para

    a cidadania e a implementao de novas capacidades cognitivas; e promover um

    conhecimento organizado e esclarecido da lngua portuguesa, desde logo na sempre

    actual problemtica da norma e dos desvios, a que importa garantir uma abordagem

    sria, sob pena de no investirmos na edificao de um ambiente social e cultural

    mais pluralista, aliciante e democrtico.

    Mas no suficiente dispormos de uma utensilagem terico-crtica cada vez

    mais penetrante para a anlise ideolgica, psicolgica, antropolgica ou lingustica

    destes textos no processo de ensino-aprendizagem. O valor de uso dos contos e das

    lendas do ciclo do diabo exige que se considere como estratgia essencial de todo este

    processo a recolha activa de textos por parte dos alunos: quer os que eles

    eventualmente apresentam como corpusinteriorizado, quer os que circulam nos seus

    ambientes de socializao interpessoal, quer, ainda, os que existem em volumes como

    os de Tefilo Braga ou Jos Leite de Vasconcelos e, agora, de Alexandre Parafita. Ao

    desenvolvimento de actividades e estratgias de operacionalizao pedaggico-

    didctica inscritas no currculo (ouvir / falar / ler / escrever) h portanto que

    acrescentar actividades de intermediao que mobilizem as comunidades em torno das

    suas narrativas literrias breves e das suas escolas, gerando e fomentando uma cultura

    de escolaridade alargada, de respeito e apreo pelo texto da cultura oral e tradicional,pela instituio escolar e pelo outro.

    Ora, tal no plenamente exequvel sem o desenvolvimento de projectos de

    parceria escola/comunidade que procedam a uma conceptualizao prtica dos

    textos (simultaneamente orais, populares e tradicionais) e implementao de uma

    cultura literria que tanto de maravilhamento ldico e esttico quanto de

    conhecimento sobre o mundo; em ltima instncia, de problematizao da cultura do

    preconceito e do fundamentalismo de qualquer espcie. Expliquemo-nos: sobre estestextos recaem os prejuzos que, regra geral, afectam os actos que a palavra superstio

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    recobre e por isso conhec-los aprender a respeitar as crenas e as prticas descritas

    no acontecimento textualizado. No por acaso que este livro se constri tambm

    como manual de cultura popular que o leitor infantil e juvenil l com gosto e proveito:

    cada texto, apresentado num breve pargrafo por uma voz coloquial mas de

    especialista que usa uma metalinguagem apropriada ao desenvolvimento cognitivo e

    cultural dos seus destinatrios directos, traz em si a marca de leituras do mundo real e

    do mundo maravilhoso ou sobrenatural, sem fazer juzos de valor abusivos acerca da

    mundividncia e de costumes que podero ser recebidos por muitos leitores pelo

    menos com algum estranhamento negativo (acrescente-se: as notas de rodap que por

    vezes acompanham as narrativas assinalam ainda mais a vinculao do narrado a um

    tempo e a um espao prprios).

    Sobretudo nas narrativas protagonizadas por trasgos, esse estranhamento

    transforma-se rapidamente em fascinao ldica e em construo de uma experincia

    artstica que decorre da articulao indefinvel entre a objectividade (reproduo de

    um representado) do texto e a subjectividade (acto intransmissvel de conscincia) do

    leitor. Como bvio, esta oscilao, prpria da obra literria em geral, acentua-se nos

    textos que tm como referentes principais estes seres estranhos e vagos. Seja como

    for, nesta srie, a ligao do maravilhoso natural a pessoas comuns no muito

    diferente da relao que, nos contos tradicionais e universais mais divulgados, existe

    entre essas mesmas pessoas, incluindo as crianas, e os duendes e gnomos. Uma parte

    muito substancial da riqueza deste livro reside na existncia de dois tipos de

    estranhamento: o fantstico e o maravilhoso. Lida-se com o inexplicado que a

    encarnao do mal o Diabo dentro de um universo em que prevalece a

    indecidibilidade: o jovem leitor hesita entre as causalidades contrrias da Natureza e

    do sobrenatural. Existe um ambiente de estranheza e indeciso que no favorece a

    instaurao, em termos absolutos, de uma realidade-outra. A este territrio chamamos,de acordo com a taxinomia de Todorov, fantstico14. Nas narrativas em que entra o

    trasgo aceita-se, considerando o seu carcter no propriamente malfico e infantil, que

    o sobrenatural que impe as suas leis e a sua realidade: a realidade do maravilhoso,

    como acontece nos contos de fadas, no o mundo do fantstico protagonizado pelo

    Demnio, o representante mximo do Mal e promotor de todos os medos (estatuto

    que, mesmo neste textos que o humanizam e ridicularizam, seu por direito

    14Introduction la Littrature Fantastique , Paris, ditions du Seuil, 1970.

  • 7/25/2019 A PROPSITO DE DIABOS, DIABRITOS E OUTROS MAFARRICOS.pdf

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    inalienvel). Tanto o maravilhoso como o fantstico, categorias pelas quais se opera

    uma busca ontolgica e se desafia a velha ordem religiosa, visam no a concretizao

    de uma verdade, mas a procura e a experimentao de verdades. Na viso do mundo

    aqui apresentada no h irracionalidade mas antes pluralidade.

    Estes procedimentos terico-metodolgicos e pedaggico-didcticos

    permitiro por certo sublinhar o dilogo intertextual que os contos e as lendas do ciclo

    do diabo estabelecem com o esquema matricial de uma Lngua e de uma Literatura

    que todos conhecemos e usamos; e contribuiro com naturalidade para a

    concretizao do objectivo que todos perseguimos, independentemente da funo que

    desempenhamos no sistema educativo: a construo de cidados plenamente

    amadurecidos, civilizados, cultos e com aptides e interesses diversificados.