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BUKOWSKI, C. O Amor é um Cão dos Diabos

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Como a prosa, cada poema de Charles Bukowski corta como aço de navalha. Ele expõe as vísceras da realidade, revolve o cotidiano, e, de onde nem se pensa que sairá um poema, brotam versos de pura genialidade. Algo como um saxofone gemendo na noite fria. As ruas molhadas refletindo o brilho feérico do neon. Fantasmas da madrugada buscam um gole da bebida mais forte que encontrarem. Bares fechando; a luz amarelada, o odor acre de suor misturado com álcool e muito tabaco. Poucos souberam, como Charles Bukowski, arrancar versos de quartos sórdidos de hotel, becos imundos, mulheres de todas as formas, bocas vermelhas demais, madrugadas longas, solitárias. É o bepop dos marginalizados, dos perdedores, pensadores de sarjeta, filósofos encharcados de uísque vagabundo.

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Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversosparceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não maislutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a

um novo nível."

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ParaCarl Weissner

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1mais uma criatura atordoada pelo amor

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Sandra

é a alta e magradonzela do quartode brincoscoberta por um longovestido

está sempre altaem sapatos de saltoespíritoboletastrago

Sandra se inclinaem sua cadeirainclina-se em direção aGlendale

aguardo que sua cabeçabata na maçanetado guarda-roupaenquanto ela tentaacenderum novo cigarro numoutro já quaseconsumido

aos 32 ela gosta dejovens limposimaculadoscom rostos semelhantes ao fundode pires recém-comprados

depois de se vangloriara não mais poderacabou me trazendo seus prêmiospara que eu desse uma olhada:garotos nulos, loiros e silenciosos

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quea) sentamb) levantamc) falamao seu comando

às vezes ela traz umàs vezes doisàs vezes trêspara que eu osveja

Sandra fica muito bem emvestidos longosSandra pode partir provavelmenteo coração de um homem

espero que ela encontreum.

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você

você é uma fera, ela dissesua enorme barriga brancae seus pés cabeludos.você jamais corta as unhase tem mãos gordascomo as patas de um gatoseu nariz vermelho e brilhantee os maiores bagos queeu já vi.você lança esperma comouma baleia lança água peloburaco das costas.

fera, fera, fera,ela me beijou,o que você quer para ocafé da manhã?

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a deusa de um metro e oitenta

sou grandesuponho que é por isso que minhas mulheres sempre

[parecempequenasmas essa deusa de um metro e oitentaque negocia imóveise artee que voa do Texaspara me vere eu voo ao Texaspara vê-la –bem, há nela o suficiente paraser agarradoe eu me agarro todonela,puxo-lhe a cabeça para trás pelos cabelos,sou macho de verdade,chupo-lhe o lábio superiorsua xoxotasua almamonto sobre ela e lhe digo,“vou lançar suco quente e brancodentro de você. não voei desdeGalveston para jogarxadrez”.

depois nos deitamos enlaçados como vinhas humanasmeu braço esquerdo debaixo de seu travesseiromeu braço direito sobre o lado de seu corpoaferro-me às suas mãos,e meu peitobarrigabolaspauenroscam-se nelae através de nósno escuropassam raios

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pra lá e pra cápra lá e pra cáaté que eu desfaleçae nós durmamos.

ela é selvagemmas dócilminha deusa de um metro e oitentafaz-me rira risada do mutiladoque ainda precisa deamor,e seus olhos abençoadosfluem para o fundo de sua cabeçacomo nascentes na montanhaao longenascentesfrescas e boas.

ela me resguardoude tudo o que não estáaqui.

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já vi mendigos demais com os olhos vidrados bebendo vinho barato debaixoda ponte

você se senta comigono sofánesta noitenova mulher.

você já viu osdocumentáriossobre animais carnívoros?

eles mostram a morte.

e agora me perguntoque animal entrenós doisdevoraráprimeiro o outrofísica epor fimespiritualmente?

nós consumimos animaise então um de nósconsome o outro,meu amor.

enquanto issoprefiro que você váprimeiro e do primeiro jeito

se os gráficos de performance passadassignificarem alguma coisaeu certamente ireiprimeiro e do últimojeito.

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gostosa e sexy

“sabe”, ela disse, “você estava no bare por isso não pôde vermas eu dancei com aquele cara.nós dançamos juntossem parar.mas não fui para casa com eleporque ele sabia que eu estavacom você.”

“valeu mesmo,” eudisse.

ela estava sempre pensando em sexo.levava isso sempre consigocomo algo embrulhado num saco de papel.quanta energia.ela começava por qualquer homem disponívelnos cafés da manhãentre ovos e baconou mais tardeentre um sanduíche no almoço ouum bife no jantar.

“moldei meu modo de ser inspirada em Marilyn Monroe,”[ela

medisse.

“ela está sempre fugindopara alguma discoteca local para dançarcom algum otário,” um amigo certa vezme contou, “estou surpreso que vocêcontinue com ela depois de tudo o que já aconteceu.”ela desaparecia nas corridaspara depois surgir e dizer“três caras se ofereceram para me pagarum drinque”.

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ou então eu a perdia no estacionamentoe a procurava e elaestava caminhando com um estranho.“bem, ele veio desta direçãoeu vim daquela e nósmeio que caminhamos juntos. nãoqueria ferir os sentimentos dele.”

ela disse que eu era um homemmuito ciumento.

um dia ela apenassubmergiuem seus órgãos sexuaise desapareceu.

era como um despertadorcaindo dentro do Grand Canyon.bateu e chocalhou etocou e tocoumas eu não pude maisvê-la nem ouvi-la.

me sinto bem melhoragora.dediquei-me ao sapateadoe agora visto um chapéu de feltropreto levemente inclinadosobre o olhodireito.

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a música suave

vence o amor porque nela não háferidas: pela manhãa mulher liga o rádio, Brahms ou Ivesou Stravinsky ou Mozart. ferve osovos contando em voz alta os segundos: 56,57, 58... descasca os ovos, os trazpara mim na cama. depois do café da manhã éa mesma cadeira e ouvir a músicaclássica. A mulher está no seu primeiro copo descotch e no seu terceiro cigarro. digo-lheque preciso ir ao hipódromo. elaestá aqui há 2 noites e 2 dias. “quandovoltarei a vê-la?” pergunto. elasugere que fique a meu critério.aceno com a cabeça e Mozart toca.

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entorpeça seu rabo e seu cérebro e seu coração...

eu estava saindo de um caso que havia terminado mal.francamente, eu deslizava em direção ao fundo do poçosentindo-me realmente desprezível e acabadoquando tive sorte com essa dama em sua enorme camacoberta por um dossel enfeitado de joiasmaisvinho, champanhe, cigarros, boletas etevê a cores.ficamos na cama ebebemos vinho, champanhe, fumamos, detonamos as

[boletasàs dúziasenquanto eu (sentindo-me desprezível e acabado)tentava superar o caso que havia terminado mal.assistia à tevê tentando embotar meus sentidos,mas a coisa que realmente ajudoufoi esse drama muito longo(especialmente escrito para a televisão) sobreespiões...espiões americanos e espiões russos, etodos eram tão espertos ebacanas...até mesmo seus filhos não sabiamsuas esposas não sabiam, ede certo modoeles mesmos quase não sabiam...e logo vieram os contraespiões, os agentes duplos:caras que trabalhavam para os dois lados, ee então um deles passou de agente duploa agente triplo,e tudo se tornou agradavelmente confuso...acho que nem o cara que tinha escrito o roteirosabia o que estava acontecendo...aquilo seguiu por horas!hidroplanos se chocando contra icebergs,um padre em Madison, Wisc. matou seu irmão,um bloco de gelo foi despachado num cofre para o Peruno lugar do maior diamante do mundo, e

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loiras entravam e saíam de quartos comendonozes e doces recheados com creme;o agente triplo passou aagente quádruplo e todo mundo amavatodo mundoe eu segui vendo aquiloe as horas passaram ee tudo finalmente desapareceu como um clipe de papel emmeio a uma cesta de lixo e eume aproximei do aparelho e o desliguei epela primeira vez em uma semana e meiadormi bem.

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uma das mais quentes

ela usava uma peruca de um loiro platinadoe tinha a face carregada de rouge e póe não economizava no batomtraçando uma enorme boca pintadae seu pescoço era coberto de rugasmas ainda tinha o rabo de uma garotae as pernas eram boas.ela usava calcinhas azuis que eu baixei eergui seu vestido, e à luz bruxuleante da TVtomei-a de pé.enquanto nos digladiávamos ao redor do quarto(estou fodendo uma cova, pensei,trazendo os mortos de volta à vida, maravilhosotão maravilhosocomo comer azeitonas geladas às 3 da manhãcom metade da cidade em chamas)gozei.

vocês podem ficar com suas virgens, rapazesdeem-me velhas gostosas no alto de seus saltoscom rabos que esqueceram de envelhecer.

claro, você tem que dar o fora depoisou ficar muito bêbadoo que é a mesmacoisa.

bebemos vinho por horas e assistimos tevêe quando fomos pra camapara dormirela não tirou os dentes da bocaa noite toda.

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cinzas

peguei as cinzas dele, ela disse, e as lanceiao mar e as espalhei eelas nem sequer pareciam cinzaseo que dava peso à urna eram osseixos verdes e azuis...

ele não lhe deixou nem um centavo de seusmilhões?

nada, ela disse.

mesmo depois de todos aqueles cafés da manhãe almoços e jantares ao lado dele? depoisde ter escutado toda a merda que ele falava?

ele era um homem brilhante.

você sabe do que estou falando.

seja como for, eu fiquei com as cinzas. e você comeuminhas irmãs.

nunca comi suas irmãs.

comeu sim.

comi uma delas.

qual?

a lésbica, respondi, ela me pagou o jantar e as bebidas,não tive muita escolha.

estou indo, ela disse.

não se esqueça do frasco.

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ela entrou para buscá-lo.

sobra tão pouco de você, ela disse, que quando você morre e eles te queimam precisamacrescentar uma porção de seixos verdes e azuis.

está bem, eu disse.

vejo você daqui a 6 meses! ela gritou e bateu a porta.

bem, pensei, creio que para me livrar dela terei quecomer a outra irmã. caminhei até o quarto e comecei a daruma olhada nos números de telefone. tudo o que eu

[lembravaera que elavivia em San Mateo e tinha um ótimoemprego.

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foda

ela tirou o vestidopor sobre a cabeçae eu vi a calcinhaum tanto enterrada em suascarnes.

é simplesmente humano.agora teremos que fazê-lo.eu terei que fazê-lodepois de todo esse logro.é como uma festa –dois idiotasnuma cilada.

debaixo dos lençóisdepois que apagueias luzessuas calcinhas ainda estavamali. ela esperava umnúmero introdutório.eu não podia culpá-la. mas simme perguntar por que ela estava alicomigo? onde estão os outroscaras? como você pode se julgarsortudo tendo alguém queoutros abandonaram?

não precisávamos fazer aquiloembora tivéssemos que fazê-loera algo comorenovar o créditocom o homem do imposto derenda. tirei a calcinha.decidi não usara língua. ainda assimpensava no momentoem que tudo estivesse terminado.

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dormiremos juntosesta noitetentando nos acomodarentre os papéis de parede.

tento, falho,reparo no cabelo em suacabeçamais do que tudo reparo no cabeloem suacabeçae de relance emsuas narinasde porquinho

tentonovamente.

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eu

mulheres não sabem como amar,ela me disse.você sabe como amarmas mulheres só queremparasitar.sei disso porque soumulher.

hahaha, eu ri.

por isso não se preocupe por ter terminadocom Susanporque ela apenas irá parasitaroutro homem.

falamos um pouco maisentão eu me despedidesliguei o telefonefui ao banheiroe mandei uma boa merda de cervejabasicamente pensando, bem,continuo vivoe tenho a capacidade de expelirsobras do meu corpo.e poemas.e enquanto isso acontecerserei capaz de lidar comtraiçãosolidãounhas encravadasgonorreiae o boletim econômico docaderno de finanças.com issome levanteime limpeidei a descarga

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e então pensei:é verdade:eu sei comoamar.

ergui minhas calças e caminheipara a outra peça.

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outra cama

outra camaoutra mulher

mais cortinasoutro banheirooutra cozinha

outros olhosoutro cabelooutrospés e dedos.

todos à procura.a busca eterna.

você fica na camaela se veste para o trabalhoe você se pergunta o que aconteceuà últimae à outra antes dela...é tudo tão confortável –esse fazer amoresse dormir juntosa suave delicadeza...

após ela partir você se levanta e usao banheiro dela,é tudo tão intimidante e estranho.você retorna para a cama edorme mais uma hora.

quando você vai embora é com tristezamas você a verá novamentequer funcione, quer não.

você dirige até a praia e fica sentadoem seu carro. é quase meio-dia.

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– outra cama, outras orelhas, outrosbrincos, outras bocas, outros chinelos, outrosvestidos

cores, portas, números de telefone.

você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais sensato.

você dá a partida no carro e engata a primeira,pensando, vou telefonar para Janie logo que chegar,não a vejo desde sexta-feira.

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encurralado

não dispa o meu amorvocê pode encontrar um manequim;não dispa um manequimvocê pode encontraro meu amor.

ela há muito tempome esqueceu.

ela experimenta um novochapéue parece maiscoquetedo que nunca.

ela é umacriançae um manequimeé a morte.

não tenho como odiarisso.

ela não faznada fora docomum.

queria apenas que elafizesse.

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esta noite

“seus poemas sobre as garotas ainda estarão por aídaqui a 50 anos quando as garotas já tiverem ido”,meu editor me telefona.

caro editor:parece que as garotas já seforam.

entendo o que o senhor diz

mas me dê uma mulher verdadeiramente vivanesta noitecruzando o piso em minha direção

e o senhor pode ficar com todos os poemas

os bonsos mausou qualquer outro que eu venha a escreverdepois deste.

entendo o que o senhor diz.

O senhor entende o que eu digo?

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a escapada

escapar de uma viúva negraé um milagre tão grande quanto a própria arte.que rede ela pode tecerenquanto o arrasta vagarosamente em sua direçãoela irá abraçá-lodepois, quando estiver satisfeita,ela o mataráainda no mesmo abraçoe lhe sugará todo o sangue.

escapei de minha viúva negraporque ela possuía machos demaisem sua redee enquanto ela abraçava um delese depois o outro e então aindaoutrome liberteiretorneiao lugar onde estava anteriormente.

ela sentirá minha falta –não de meu amormas do gosto do meu sangue,mas ela é boa, ela encontrará outrosangue;ela é tão boa que quase sinto falta de minha morte,mas não o suficiente;escapei. eu vejo as outrasteias.

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a furadeira

nosso livro de casamento,diz ali.dou uma olhada.eles duraram dez anos.foram jovens uma vez.agora eu durmo na cama dela.ele telefona:“quero minha furadeira de volta.deixe-a separada.pegarei as crianças àsdez.”ao chegar ele espera do ladode fora.as crianças vão comele.ela volta para a camae eu estico uma pernaencosto-a nela.eu também tinha sido jovem.as relações humanas simplesmente não sãoduráveis.pensei nas mulheres que passaram porminha vida.elas parecem inexistentes.

“ele levou a furadeira?” pergunto.

“sim, levou.”

me pergunto se um dia terei que voltar parabuscar minha bermudae meu disco com a gravaçãoda Academy of St. Martin in the Fields? suponho quesim.

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texana

ela é do Texas e pesa47 quilose para em frente aoespelho penteando oceanosde cabelos ruivosque descem ao longo de todassuas costas até a bunda.o cabelo é mágico e lançafaíscas quando eu me deito na camae a vejo penteá-los.ela parece uma criaturasaída de um filme mas estáaqui de fato. fazemos amorpelo menos uma vez por dia eela consegue me fazer rirsempre que deseja.as mulheres do Texas são sempresaudáveis, e além disso elalimpa meu refrigerador, minha pia,o banheiro, e faz comida ee me serve alimentos saudáveise lava os pratostambém.

“Hank”, ela me disse,segurando uma lata de suco deuva, “este é o melhor detodos”.dizia na lata: suco natural de uvaROSA do Texas.

ela se parece com a Katherine Hepburnna épocado ensino médio, e vejo esses47 quilospenteando um metrode cabelo ruivodiante do espelho

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e a sinto dentro de meuspulsos e no fundo dos meus olhos,e os dedos e as pernas e a barrigaa sentem, assim comoaquela outra parte,e toda Los Angeles se desfaze chora de contentamento,as paredes das alcovas tremem –o oceano invade tudo e ela se virae me diz, “maldito cabelo!”e eu digo,“sim”.

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a aranha

então houve um tempo emNew Orleansem que eu vivia com uma gorda,Marie, no Bairro Francêse fiquei bastante doente.enquanto ela estava no trabalhoajoelhei-menaquela tardena cozinha erezei. não sou umhomem religiosomas era uma tarde escura demaise eu rezei:“caro Deus: se você me poupar,prometo-lhe nunca mais tomaroutro trago”.fiquei ali de joelhos e foi como estarnum filme –ao terminar minha oraçãoas nuvens se abriram e o solrasgou as cortinase deitou sobre mim.então me ergui e fui dar uma cagada.havia uma aranha enorme no banheiro da Marie.mas caguei do mesmo jeito.uma hora depois comecei a me sentir muitomelhor. dei uma volta pelo bairroe sorri para as pessoas.parei na mercearia e compreiuma dúzia de cervejas para Marie.comecei a me sentir tão bem que uma hora depoisme sentei na cozinha e abriuma das cervejas.esvaziei-a e depois outrae então fui lá ematei a aranha.quando Marie voltou do trabalhoeu lhe dei um beijo daqueles,

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depois sentei na cozinha e conversamosenquanto ela preparava o jantar.ela me perguntou o que eu tinha feito naquele diae eu lhe disse que tinha matado umaaranha. ela não ficoubraba. era uma boapessoa.

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o fim de um breve caso

tentei fazer o negócio de pédessa vez.normalmente não costumafuncionar.dessa vez pareciaque...

ela seguia dizendo“ó, meu Deus, você tempernas lindas!”

tudo estava bematé que ela tirou ospés do chãoe enroscou suas pernasem volta dos meus quadris.

“ó, meu Deus, você tempernas lindas!”

ela pesava cerca de 63quilos e ficou ali presa enquanto eutrabalhava.

foi só quando cheguei ao clímaxque senti a dorcorrer espinhaacima.

deitei-a no sofáe caminhei ao redorda sala.a dor continuava.

“olha só”, eu lhe disse,“é melhor você ir. tenhoque revelar uns filmes

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na minha câmara escura.”

ela se vestiu e se foie eu segui até acozinha para um copod’água. peguei um copo cheiocom a mão esquerda.a dor correu para além de minhasorelhas edeixei cair o copoque se espatifou no chão.

entrei numa banheira cheia deágua quente e sais Epsom.recém tinha acabado de me esticarquando o telefone tocou.ao tentar endireitarminhas costasa dor se estendeu porpescoço e braços.caí pesadamenteme agarrei às bordas da banheiraconsegui saircom raios verdes e amarelose luzes vermelhaslampejando em minha cabeça.

o telefone continuava tocando.atendi.“alô?”

“EU TE AMO!”, ela disse.

“obrigado”, eu disse.

“é tudo o que você tempra me dizer?”

“sim.”

“vá à merda!” ela disse e

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desligou.

o amor se esgota, penseiao caminhar de volta aobanheiro, mais rápidodo que um jato de esperma.

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lamentando e se queixando

ela escreve: você vaise lamentar e se queixarem seus poemassobre como eu trepeicom 2 caras na semana passada.eu te conheço.ela escreve para medizer que meu sensorestava certo –ela recém tinha trepadocom um terceiro caramas ela sabe que nãoquero saber com quem, nem por quenem como. ela encerra suacarta, “com amor”.

ratos e baratastriunfaram novamente.aí vem ele correndocom uma lesma em suaboca, entoandovelhas canções de amor.feche as janelaslamentefeche as portasqueixe-se.

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um poema quase feito

eu vejo você bebendo numa fonte com suasminúsculas mãos azuis, não, suas mãos não são minúsculaselas são pequenas e a fonte é na Françade onde você me escreveu aquela última carta eeu respondi e nunca mais obtive retorno.você costumava escrever poemas insanos sobreANJOS E DEUS, tudo em caixa alta, e vocêconhecia artistas famosos e muitos deleseram seus amantes, e eu escrevia de volta, está tudo bem,vá em frente, entre na vida deles, não sou ciumentoporque nós nem nos conhecemos. estivemos perto uma

[vez emNew Orleans, metade de uma quadra, mas nunca nos

[encontramos,nunca um contato. assim você seguiu com os famosos,

[escreveusobre os famosos, e, claro, descobriu que os famososestavam preocupados com a fama deles – não com a jovem ebela garota em suas camas, que lhes dava aquilo, e

[que acordavade manhã para escrever em caixa alta poemas sobreANJOS E DEUS. nós sabemos que Deus está morto, eles nos

[disseram,mas ao ouvi-la eu já não tinha certeza. talvezfosse a caixa alta. você era uma das melhores poetas e eu disse para os editores, “publiquem-

na, publiquem-na,[ela é louca mas é

mágica. não há mentira em seu fogo”. eu te ameicomo um homem ama uma mulher que jamais tocou,

[paraquem apenasescreveu, de quem manteve algumas fotografias. eu poderia

[ter teamado mais se eu tivesse sentado numa pequena sala

[enrolando umcigarro e ouvindo você mijar no banheiro,mas isso não aconteceu. suas cartas ficaram mais tristes.seus amantes te traíram. criança, escrevi de volta, todos os

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amantes traem. isso não ajudou. você disseque tinha um banco em que ia chorar e que ficava numa

[pontee a ponte ficava sobre um rio e você sentava no seu banco de

[chorartodas as noites e descia o pranto pelos amantes quete machucaram e te esqueceram. escrevi de volta mas não

[obtivequalquer retorno. um amigo me escreveu contando do seu

[suicídio3 ou 4 meses depois de consumado. se eu tivesse te

[conhecidoprovavelmente teria sido injusto com você ou você comigo. foi mesmo melhor assim.

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blue cheese e chili

essas mulheres supostamente deveriam aparecere me vermas elas nuncavêm.há aquela com uma enorme cicatriz ao longoda barriga.há a outra que escreve poemase liga às 3 da manhã, dizendo,“eu te amo”.há a que dança com umajiboiae escreve a cada quatrosemanas, dizendoque virá.e a 4ª que alega dormirsemprecom meu último livrodebaixo dotravesseiro.

bato uma punheta no calore escuto Brahms e comoblue cheese com chili.

essas mulheres são boas de cabeça e decorpo, excelentes dentro ou fora da cama,perigosas e fatais, éclaro...mas por que todas têm de viverlá no norte?

sei que um dia elas irãochegar, mas duas ou trêsno mesmo dia, evamos sentar e conversare então todas irão emborajuntas.

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um outro qualquer as teráe eu caminharei por aíem meu short surradofumando cigarros demaise tentando extrair algumdramade nenhum progressode fato.

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problemas relacionados à outra mulher

eu tinha lançado todo meu charme sobre elapor algumas noites em um bar –não que nosso caso fosse novo,eu a amara por 16 mesesmas ela não queria ir até minha casa“porque aquela outra mulher tem andado por lá”,e eu disse, “tudo bem, tudo bem, o que vamos fazer?”

ela viera do norte e procurava por umlugar para ficarenquanto estava hospedada com sua amiga,e foi até seu trailer alugadoe voltou com alguns cobertores e disse,“vamos até o parque”.eu lhe disse que ela estava loucaque os policiais iam nos pegarmas ela respondeu “não, está agradável e enevoado”,então fomos para o parqueespalhamos o equipamento e começamos atrabalhar e então surgiram luzes de faróis –uma radiopatrulha –ela disse, “rápido, ponha suas calças! eu já estou comas minhas!”eu disse, “não posso. a minha está toda enrolada.”e eles vieram com lanternase perguntaram o que estávamos fazendo e ela disse,“beijando!” um dos policiais me olhou edisse, “não posso culpá-lo”, e depois de alguma conversafiada eles nos deixaram em paz.mas ainda assim ela não queria a cama onde aquela mulherhavia estado,então acabamos num quarto escuro de motelsuando e beijando e trabalhandomas fazendo a coisa direitinho; depois, claro,de todo aquele sacrifício...estávamos finalmente em minha casanaquela tarde seguintefazendo a mesma coisa.

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aqueles policiais não foram maus, apesar de tudonaquela noite no parque –e é a primeira vez que eu digo alguma coisa desse tiposobre policiais,e,espero,que sejaa última.

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M.T.[1]

ela morava em Galveston e faziaM.T.e eu fui visitá-la e fizemos amorininterruptamente ainda que o tempo estivesse muitoquentee tomamos mescalinae uma balsa até a ilhae dirigimos 200 milhas até o hipódromo maispróximo.nós dois ganhamos e fomos sentar num bar de caipiras –odiado e não frequentado pelos nativos –e então fomos para um motel caipirae voltamos um ou dois dias depoise fiquei por lá mais uma semanapintei-lhe um par de quadros decentes –um de um homem sendo enforcadoe outro de uma mulher sendo fodida por um lobo.acordei certa noite e ela não estava na camae levantei e caminhei ao redor perguntando,“Gloria, Gloria, onde você está?”era um lugar enorme e eu caminhava a esmoabrindo porta atrás de porta,então abri uma que parecia a de um closete lá estava ela de joelhoscercada por fotografias de7 ou 8 homensas cabeças raspadasem sua maioria usando óculos sem armações.havia uma pequena vela acesae eu disse, “oh, me desculpe”.Gloria vestia um quimono com águiasem pleno voo na parte de trás.fechei a porta e voltei para a cama.ela saiu 15 minutos depois.começamos a nos beijar,sua língua enorme deslizando para dentro e para fora da

[minhaboca.

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ela era uma garota grande e saudável do Texas.“escute, Gloria”, consegui finalmente dizer,“preciso de uma noite de folga”.

no dia seguinte ela me levou até o aeroporto.eu prometi escrever. Ela prometeu escrever.nenhum de nós escreveu.

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a 5ª do Bee

escutei-a pela primeira vez enquanto trepava com uma[loira

que tinha a maior xoxota emScranton.

escutei-a novamente enquanto escrevia uma cartapara minha mãepedindo US$ 5.000e ela me respondeu mandando3 tampinhas de garrafa eos ossinhos dos dedos indicadores dovovô.

a 5ª acabará com vocêna grama ou na pista do jóquei,a gatinha disse,cruzando o tapetede papagaios estampados.

se a 5ª não te matara décima irá,disse a prostituta Caliente.enquanto eles sobem amaravilhosa bandeira vermelha cor de ketchup93 ladrões choram em meio apoeira púrpura.

a 5ª é como umaformiga numa mesa de café da manhã cheia debengalas ebesourossugando osuco de laranja do amanhecer que chega.

e eu peguei as 3 tampinhas que minha mãemandou eas devorei

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embrulhadas em páginas darevistaCosmopolitan.

mas estou cansado da5ªe eu disse isso a uma mulher emOhio, certa vez, eurecém havia carregado carvão por 3 lancesde escadaeu estava tonto ebêbado, e ela disse:

como você pode dizer que não dá bolapara algo muito maior do que vocêjamais será?

e eu disse:

isso é fácil.

e ela se sentou em uma cadeira verde ee eu numa cadeira vermelhae depois dissonunca mais voltamos a fazeramor.

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40 graus

ela cortou as unhas dos meus pés na noite passada,e pela manhã ela disse, “acho que vouficar deitada aqui pelo resto do dia”.o que significava que ela não iria trabalhar.ela estava em meu apartamento – o que significava outrodia e outra noite.ela era uma pessoa legalmas recém havia me dito que queria terum filho, queria casar, efazia 40 graus lá fora.quando pensei em outra criança eoutro casamentocomecei realmente a passar mal.havia me resignado a morrer sozinhoem uma pequena peça...agora ela tentava remodelar meu plano de mestre.além disso ela sempre batia a porta do meu carro com

[muita forçae comia com a cabeça perto demais da mesa.nesse dia havíamos ido ao correio, a uma loja dedepartamentos e depois a uma lancheria para almoçar.já me sentia casado. na volta eu quaseentrei em um Cadillac.“vamos encher a cara”, eu disse.“não, não”, ela respondeu, “é muito cedo”.e então ela lacrou a porta do carro.continuava fazendo 40 graus.quando abri a caixa do correio descobri que a companhiade seguros queria mais 76 pratas.subitamente ela invadiu o quarto correndo e gritou, “OLHA, ESTOU FICANDO VERMELHA!

CHEIA DE MANCHAS! O QUE DEVO FAZER?”“tome um banho”, eu lhe disse.fiz um interurbano para a seguradora eexigi saber a razão daquilo.ela começou a gritar e a gemer lá dabanheira e eu não conseguia ouvir nada e disse, “um

[momento,por favor!”

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tapei o telefone com a mão e gritei de volta para ela:“OLHA SÓ! ESTOU NUM INTERURBANO! SEGURE A

[ONDA,PELO AMOR DE DEUS!”o pessoal da seguradora insistia que eu lhes devia$76 e que me enviariam uma carta explicando por quê.desliguei e me estiquei na cama.eu já estava casado, me sentia casado.ela saiu do banheiro e disse, “posso me deitarao seu lado?”e eu disse, “ok”em dez minutos sua cor tinha voltado ao normal.tudo porque ela havia tomado um comprimido de niacina[2].ela se lembrou de que isso acontecia sempre.ficamos ali estirados suando:nervos. ninguém tem espírito suficiente para superar os

[nervos.mas eu não podia dizer isso a ela.ela queria ter seu bebê.que caralho.

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pacific telephone

vá atrás dessas piranhas, ela disse,vá atrás dessas putas,logo ficará de saco cheio de mim.

não quero mais fazer esse tipo de merda,eu disse,relaxe.

quando bebo, ela disse, sinto dor na minhabexiga, uma queimação.

deixe a bebida comigo, eu disse.

você está só esperando o telefone tocar,ela disse,você não para de olhar pro aparelho.se uma dessas piranhas ligar você sairácorrendo porta afora.

não posso lhe prometer nada, eu disse.

então – simples assim – o telefone tocou.

aqui é a Madge, disse a voz. precisover você imediatamente.

oh, eu disse.

estou num aperto, ela continuou, preciso de dezpratas – rápido.

logo estarei aí, eu disse, edesliguei.

ela me olhou, era uma piranha,ela disse, o rosto todo em chamas.

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que diabos há com você?

escute, eu disse, tenho que ir.você fica aqui. já volto.

vou embora, ela disse. eu te amo mas você élouco, um caso perdido.

ela apanhou a bolsa e bateu a porta.

provavelmente é algum distúrbio profundamente enraizado[na

infânciaque me faz assim vulnerável, pensei.então saí de casa e fui até meu fusca.dirigi para o norte pela Western com o rádio ligado.havia putas caminhando pra lá e pra cádos dois lados da rua e Madge pareciamais perdida do que qualquer uma delas.

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100 quilos

estávamos na cama eela começou a brigar:“seu filho da puta! espere um minuto,vou acabar com a sua raça!”

comecei a rir:“qual é o problema? qual é o problema?”

“seu filho da puta!” ela gritou.

segurei-lhe as mãos enquanto ela se contorcia.

era um par de décadas mais jovem do que euuma maluca bem-alimentada.ela era muito forte.

“seu filho da puta! vou acabar com a sua raça!”ela gritou.

rolei por sobre ela com meus 100 quilos efiquei apenas ali.

“uugg, uuuu, meu Deus, isso não é justo, uuuu, meuDeus!”

rolei para o lado e caminhei até a outra peça esentei no sofá.

“vou pegar você, cretino”, ela disse, “você não perde poresperar!”

“só não o arranque com uma mordida”, eu disse, “ou você[fará

triste uma meia dúzia de mulheres.”ela subiu sobre a cabeceira da minha cama(que possuía uma superfície plana embora estreita)e ficou ali empoleirada assistindo às notícias na

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tv.a tv dava de frente para o quarto e a iluminavaali sentada sobre acabeceira.

“pensei que você fosse normal”, eu disse, “mas étão louca quanto as outras todas.”

“fique quieto”, ela disse, “quero assistir aonoticiário!”

“olhe”, eu disse, “vou...”“SHHHH!”, ela disse.

e lá ficou sobre a cabeceira da minha camaassistindo realmente às notícias. aceitei-a daquelamaneira.

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reviravolta

ela dirige para a vaga no estacionamento enquantoeu me escoro contra o para-choque de meu carro.ela está bêbada e seus olhos estão molhados de lágrimas:“seu filho da puta, você trepou comigo quando nãoestava a fim. disse pra eu continuar ligando,disse pra eu me mudar pra perto da cidade,e então me disse pra deixar você em paz.”

tudo muito dramático e eu gostando daquilo.“claro, bem, o que você quer?”

“quero falar com você. quero ir pra suacasa e falar com você...”

“estou com alguém agora. ela foi buscar umsanduíche.”

“quero falar com você... demora um pouco prasuperar as coisas. preciso de mais tempo.”

“claro. espere até que ela saia. não somosdesumanos. podemos tomar um drinque juntos.”

“merda,” ela disse, “oh, merda!”

pulou dentro do carro e arrancou.

a outra apareceu: “quem era aquela?”

“uma ex-amiga.”

agora ela se foi e estou aqui sentado e bêbadoe meus olhos parecem molhados de lágrimas.está tudo muito silencioso e sinto como se um arpãoestivesse atravessado no meio das minhas tripas.caminho até o banheiro e vomito.

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piedade, eu penso, será que a raça humana não sabe nadasobre piedade?

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um poema para a velha dente-podre

conheço uma mulherque segue comprando quebra-cabeçasquebra-cabeçaschinesesblocosaramespeças que finalmente se encaixamnuma espécie de ordem.ela se dedica à questãode modo matemáticoresolve todos os seusquebra-cabeçasvive perto do marpõe açúcar para as formigas lá forae acreditadefinitivamentenum mundo melhor.seu cabelo é brancoraramente o penteiaseus dentes são podrese ela veste macacões frouxose amorfos sobre um corpo que a maioriadas mulheres desejaria ter.ao longo de muitos anos ela me irritoucom o que eu considerava suasexcentricidades:como mergulhar conchas na água(para que ao regar as plantas elasrecebessem cálcio).mas finalmente quando penso na suavidae a comparo a outras vidasmais deslumbrantes, originaise belaspercebo que ela machucou menosgente do que qualquer outra pessoa que conheço(e com machucar quero dizer simplesmente machucar).ela enfrentou alguns momentos terríveis,

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momentos em que talvez eu devesse tê-laajudado maisporque era a mãe da minha únicafilhae uma vez fôramos grandes amantes,mas ela havia superado essas dificuldadescomo eu dissedas pessoas que conheço ela foi a que machucoumenos gente,e se você olhar para isso pelo que isso significa,bem,ela criou um mundo melhor.ela venceu.

Frances, este poema é pravocê.

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comunhão

cavalos correndocom ela a milhas de distânciarindo com umlouco

Bach e a bomba de hidrogênioe ela a milhas de distânciarindo com umlouco

o sistema bancárioguinchos de carrogôndolas em Venezae ela a milhas de distânciarindo com umlouco

você nunca viu de fatouma escada antes(cada degrau olhandoseparadamente para você)e do lado de forao vendedor de jornais parecendoimortalenquanto os carros passamdebaixo do solcomo um inimigoe você se perguntapor que é tão difícilenlouquecer –se é que você já não estálouco

até agoravocê não tinha visto umaescada que se parecesse comuma escada

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uma maçaneta que se parecesse comuma maçanetae sons como esses sons

e quando a aranha aparecee olha pra vocêpor fimvocê já não a odeiapor fimcom ela a milhas de distânciarindo com umlouco.

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tentando acertar as contas:

tínhamos fumado alguns baseados e tomado algumascervejas e eu estava estirado na camae ela disse, “olha, eu fiz 3 abortosem sequência, não quero que você enfie essacoisa dentro de mim!”

o negócio começava a crescer e nós doisolhávamos para ele.“ah, qual é”, eu disse, “minha namorada trepoucom 2 caras diferentes esta semana e estou tentandoacertar as contas.”

“não me envolva nessa sua merdadoméstica! o que quero que você faça agora é queTOQUE uma PUNHETA enquanto eu ASSISTO!quero VER você bater atéGOZAR! quero ver o SUCO jorrar!”

“ok aproxime seu rosto.”

ela o aproximou e dei uma cuspida na palma da mãoe comecei a trabalhar.

ele cresceu. um pouco antes de gozar euparei, segurando-o pela basepuxando a pele,a cabeça pulsandopúrpura e brilhante.

“oooh”, ela disse.lançou a boca sobre ele, chupou-oese afastou.

“termine”, ela disse.“não!”

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voltei a bater e então parei novamenteno último instante e fiquei a balançá-lo ao redor doquarto.

ela o olhoucaiu outra vez sobre elechupoue tirou da boca.

alternamos o processopra lá e pra cá

vez após vez.

finalmente eu a arranqueida cadeirapara a camarolei pra cima delameti pra dentrotrabalheitrabalheie gozei.

quando voltou dobanheiro ela disse,“seu filho da puta, eu amo você,amo você há muito tempo.quando eu voltar a Santa Barbaravou escrever pra você. Vivocom esse cara mas eu oodeio, não faço a mais vaga ideia do queestou fazendo ao lado dele.”

“ok”, eu disse, “mas aproveitando que você jáestá de pé, poderia me trazer um copod’água? estou seco.”ela seguiu até a cozinha ea ouvi reclamar quetodos os meus copos estavamsujos.

disse a ela para usar uma

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xícara. ouvia água correndo epensei, mais uma fodae o jogo estará zeradoe poderei me apaixonar novamente por minha namorada –isto ése ela não tiver se envolvido numafoda extrao que provavelmente elafez.

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Chicago

“consegui,” ela disse, “apareci.”ela estava com botas novas, calçase um suéter branco. “agora eu seio que eu quero.” ela era de Chicago ehavia se mudado para o distrito de Fairfax, L.A.

“você me prometeu champanhe,”ela disse.“eu estava bêbado quando liguei. que tal umacerveja?”“não, me passa seu baseado.”ela tragou, soltou:“não é lá grande coisa”.e me devolveu.

“há uma diferença”, eu disse, “entrefazer a coisa e simplesmente ficar duro.”

“gosta das minhas botas?”“sim, bem legais.”“escuta, tenho que ir. posso usaro banheiro?”“claro.”

quando ela voltou tinha a boca muitopintada de batom. eu não via uma assimdesde que era garoto.beijei-a a caminho da portasentindo o batom grudar em meuslábios.

“tchau” ela disse.“tchau” eu disse.caminhou pela passagem até o carro.eu fechei a porta.

ela sabia o que queria e não era

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eu.conheço mais mulheres desse tipo do que dequalquer outro.

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garotas calmas e limpas em vestidos de algodão

tudo o que eu sempre conheci sempre foram putas,[ex-prostitutas,

loucas. vejo homens com mulheres calmas egentis – vejo-os nos supermercados,caminhando juntos na rua,eu os vejo em seus apartamentos: pessoas empaz, vivendo juntas. sei que essa pazé apenas parcial, masexiste paz, muitas horas e dias de paz.

tudo o que eu sempre conheci foram boleteiras, alcoólatras,putas, ex-prostitutas, loucas.

quando uma vaioutra vempior do que sua antecessora.

vejo tantos homens com garotas calmas e limpas emvestidos de algodãogarotas com rostos que não são de predadoras ou deferas.

“nunca traga uma puta junto com você,” eu digo para[meus

poucos amigos, “eu me apaixonarei por ela.”

“você não consegue suportar uma boa mulher, Bukowski.”preciso de uma boa mulher. preciso de uma boa mulhermais do que da máquina de escrever, mais do que domeu automóvel, mais do que deMozart; preciso tanto de uma boa mulher que possosenti-la no ar, posso senti-lana ponta dos dedos, posso ver calçadas construídaspara seus pés caminharem,posso ver travesseiros para sua cabeça,posso sentir a expectativa da minha risada,posso vê-la acariciar um gato,

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posso vê-la dormir,posso ver seus chinelos no chão.

eu sei que ela existemas em que parte deste planeta ela estáenquanto as putas continuam me encontrando?

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provaremos as ilhas e o mar

sei que em alguma noiteem algum quartologomeus dedos abrirãocaminhoatravésde cabelos limpos emacios

canções como as que nenhuma rádiotoca

toda a tristeza, escarnecendoem correnteza.

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2eu, e aquela velha: aflição

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este poeta

este poeta andou bebendo durante 2 ou 3 dias e eleentrou no palco e olhou para a plateia eimediatamente soube que iria fazer aquilo. ha via umpiano de cauda no palcoe ele foi até lá,abriu a tampa e vomitou dentro. então fech ou atampa e fez sua leitura.

eles tiveramque remover as cordas do piano e limpar o interiorpara en tão recolocá-las.

posso entenderpor que nunca voltaram a convidá-lo. mas espalharparaoutras universidades que ele era um poetaque gostava de vomitar em pianos de cauda não foijusto.

eles jamais consideraram a qualidade de sua leitura.conheço esse poeta: ele é como todos nós: vomitaráem qualquer lugar por dinheiro.

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inverno

um cachorro grande, sujo e feridoatingido por um carro e caminhandoem direção ao meio-fioemitindo enormessonsseu corpo curvadovermelho explodindo pelocu e pela boca.

olho para ele esigo em frentepois como seriapara mim segurarum cão moribundo junto aum meio-fio em Arcadia,o sangue escorrendo por minhacamisa e calças ecueca e meias e meussapatos? pareceria apenasuma tolice.além disso, pus o olho no cavalonúmero 2 no primeiro páreoe queria fazer uma dobradinhacom o número 9no segundo. estudei o jornal parapagar algo em torno de $ 140assim eu tinha que deixar aquelecachorro morrer ali sozinhobem defronte aoshopping centercom as senhoras àprocura de pechinchasenquanto o primeiro floco deneve caía sobre aSierra Madre.

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o que eles querem

Vallejo escrevendo sobresolidão enquanto morria defome;a orelha de Van Gogh rejeitada por umaputa;Rimbaud correndo para a Áfricaem busca de ouro e encontrandoum caso incurável de sífilis;Beethoven ficou surdo;Pound foi arrastado pelas ruasnuma gaiola;Chatterton tomou veneno para rato;o cérebro de Hemingway pingando dentrodo suco de laranja;Pascal cortando os pulsos na banheira;Artaud trancado com os loucos;Dostoiévski de pé contra um muro;Crane pulando na hélice de um barco;Lorca baleado na estrada pelo exércitoespanhol;Berryman pulando de uma ponte;Burroughs atirando na mulher;Mailer esfaqueando a sua;– é isso o que eles querem:o danado dum showuma placa luminosano meio do inferno.é isso o que eles querem,aquele bando deestúpidosinarticuladostranquilossegurosadmiradores decarnavais.

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Iron Mike

falamos sobre este filme:Cagney servia uvasa uma mulhermais rápido do que ela conseguiacomer eentão ela seapaixonava por ele.

“isso nem semprefunciona”, digo a IronMike.

ele dá uma risadinha e diz,“claro”.

então ele desceu a mãoe tocou seu cinto.32 escalpos de mulherestavam pendurados ali.

“eu e meu enorme cacetejudeu”, ele disse.

então ergue as mãospara indicar otamanho.

“opa, sim, muito bem”,eu disse.

“elas aparecem”, eledisse, “eu as traço, elascomeçam a ficar, eu lhes digo,‘é hora de ir’.”

“você é corajoso,Mike.”

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“essa aí não ia se mandarentão eu tive que me levantar eesbofeteá-la... ela foiembora.”

“eu não tenho sua fibra,Mike. elas ficam,lavam os pratos, esfregamas manchas de merda novaso, jogam fora osvelhos prospectos do Jockey Club...”

“elas jamais vão me pegar”,ele disse.“sou invencível.”

olhe, Mike, nenhum homem éinvencível.algum diavão considerá-lo louco peloolhar como num desenho a lápis feito por umacriança. você não conseguirábeber um copod’água ou cruzar umquarto. haverá asparedes e o som dasruas lá fora, evocê ouvirá metralhadorase tiros de morteiro. isso se daráquando você quiser, mas nãopuder ter.

os dentesnunca são por fimos dentes do amor.

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guru

grande barba negrame dizque eu não sintoterror

olho pra eleminhas tripas chacoalhamcascalho

vejo seus olhosvoltados pra cima

ele é forte

tem unhas sujas

e penduradas nas paredes:armas embainhadas.

ele sabe das coisas:

livrosas vantagenso melhor caminho paracasa

gosto delemas creio que elemente

(não tenho certeza de queele mente)

sua esposa se sentanum cantoescuro

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quando a conheciera a mulhermaislindaque eu já tinhavisto

agora ela setornarasua gêmea

talvez não por culpadele:

talvez a coisanos faça a todosassim

no entanto, logo que deixeia casa delessenti terror

a lua pareciadoente

minhas mãos escorregavamnovolante

manobro meucarroe desço aladeira

quase batonumcarro azul-esverdeadoestacionado

enterre-me para sempre,Beatriz

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poeta hesitante, hahaha

cão enjeitado doterror.

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os professores

sentado com os professoresfalamos sobre Allen Tatee John Crow Ransomos tapetes estão limpos eas mesas da cafeteria brilhame então circulam conversassobre verbas e trabalhos emprogressoe há até umalareira.o piso da cozinha estábem enceradoe eu recém haviajantadodepois de ter bebido até as3 da manhãapós a leiturada noite passada

agora lá vou eu outra veznuma faculdade próxima.estou em pleno Arkansas emjaneiroalguém chega a mencionarFaulknervou ao banheiroe vomito ojantarao sairlá estão eles em seus casacos e sobretudosesperando na cozinha.devo entrar em15 minutos.haverá um bom públicoeles me dizem.

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para Al…

não se preocupe com rejeições, parceiro,eu já fui rejeitadoantes.

algumas vezes você comete um erro, pegandoo poema erradoo mais comum para mim é cometer o erro deescrevê-lo.

mas eu gosto de uma montaria em cada corridamesmo que o homemque organiza a largada da manhã

a coloque pagando 30 por um.

tenho que pensar na morte mais e mais

senilidade

muletas

poltronas

escrevendo poesia púrpura com acaneta pingando

quando mocinhas com bocasde piranhacorpos como limoeiroscorpos como nuvenscorpos como flashes de luzpararem de bater à minha porta.

não se preocupe com rejeições, parceiro.fumei 25 cigarros esta noitee você sabe sobre a cerveja.

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o telefone tocou apenas uma vez:era engano.

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como ser um grande escritor

você tem que trepar com um grande número de mulheresbelas mulherese escrever uns poucos e decentes poemas de amor.

e não se preocupe com a idadee/ou com os talentos frescos e recém-chegados.

apenas beba mais cervejamais e mais cerveja

e vá às corridas pelo menos uma vez porsemana

e vençase possível.

aprender a vencer é difícil –qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.

e não se esqueça do Brahmse do Bach e também da suacerveja.

não exagere no exercício.

durma até o meio-dia.

evite cartões de créditoou pagar qualquer contano prazo.

lembre-se que nenhum rabo no mundovale mais do que 50 pratas.(em 1977).

e se você tem a capacidade de amar

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ame primeiro a si mesmomas esteja sempre alerta para a possibilidade de umaderrota totalmesmo que a razão para essa derrotapareça certa ou errada –

um gosto precoce da morte não é necessariamenteuma coisa má.

fique longe de igrejas e bares e museus,e como a aranha sejapaciente –o tempo é a cruz de todos,mais oexílioa derrotaa traição

todo este esgoto.

fique com a cerveja.

a cerveja é o sangue contínuo.

uma amante contínua.

arranje uma grande máquina de escrevere assim como os passos que sobem e descemdo lado de fora de sua janela

bata na máquinabata forte

faça disso um combate de pesos pesados

faça como o touro no momento do primeiro ataquee lembre dos velhos cãesque brigavam tão bem:Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.

se você pensa que eles não ficaram loucos

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em quartos apertadosassim como este em que agora você está

sem mulheressem comidasem esperança

então você não está pronto.

beba mais cerveja.há tempo.e se não háestá tudo certotambém.

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o preço

bebendo um champanhe de 15 dólares –Cordon Rouge – na companhia de putas.

uma se chama Georgia enão é chegada em meia-calça:estou sempre tendo que ajudá-lacom suas longas meias negras.

a outra é Pam – mais bonitaporém meio desalmada, efumamos e conversamos ebrinco com suas pernas eenfio meu pé descalço nabolsa aberta de Georgia.está cheia defrascos com pílulas.tomo algumas delas.

“escutem”, eu digo, “uma devocês tem alma, a outraaparência. posso combinarvocês duas? pegar a almae enfiar na aparência?”

“se você me quer”, diz Pam, “vailhe custar cem pratas.”

bebemos um pouco mais e Georgiadespenca no chão e não conseguese levantar.

digo a Pam que gosto muitode suas orelhas. seucabelo é longo e natural eruivo.“estava de brincadeira quando falei emcem”, ela diz.

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“oh”, eu digo, “quanto vai mecustar?”

ela acende um cigarro commeu isqueiro e me olhaatravés da chama:

seus olhos me dizem.

“olhe”, eu digo, “acho que nãopoderei pagar aquele preço novamente.”

ela cruza as pernasdá uma tragada em seu cigarro

sorri enquanto expele a fumaçae diz, “claro que pode”.

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sozinho com todo mundo

a carne cobre os ossose colocam uma menteali dentro ealgumas vezes uma alma,e as mulheres quebramvasos contra as paredese os homens bebemdemaise ninguém encontra opar idealmas seguem naprocurarastejando para dentro e para forados leitos.a carne cobreos ossos e acarne buscamuito mais do que meracarne.

de fato, não há qualquerchance:estamos todos presosa um destinosingular.

ninguém nunca encontrao par ideal.

as lixeiras da cidade se completamos ferros-velhos se completamos hospícios se completamas sepulturas se completam

nada maisse completa.

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o segundo romance

eles apareciam eperguntavam“já terminou seusegundo romance?”

“não.”

“o que tá pegando? o que tá pegandoque você nãotermina?”

“hemorróidas einsônia.”

“será que você nãoperdeu?”

“perdi o quê?”

“você sabe.”

agora quando eles aparecemeu lhes digo,“sim. já terminei.sairá em setembro.”

“você terminou o livro?”

“sim.”

“bem, escute. tenho que ir.”

nem mesmo o gatoaqui da vizinhançabate mais à minhaporta.

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que beleza.

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Chopin Bukowski

este é meu piano.

o telefone toca e as pessoas perguntam,o que você está fazendo? que talencher a cara com a gente?

e eu digo,estou ao piano.

o quê?

desligo.

as pessoas precisam de mim. eu ascompleto. se não podem me verpor um tempo ficam desesperadas, ficamdoentes.

mas se as vejo muito seguidoeu fico doente. é difícil alimentarsem ser alimentado.

meu piano me diz coisas emtroca.

às vezes as coisas estãoconfusas e nada boas.outras vezesconsigo ser tão bom e sortudo comoChopin.

às vezes me sinto enferrujadodesafinado. issofaz parte.

posso me sentar e vomitar sobre asteclas

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mas é meuvômito.

é melhor do que sentar em uma salacom 3 ou 4 pessoas eseus pianos.

este é meu pianoe é melhor que os deles.

e eles gostam e desgostamdele.

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dama melancólica

ela fica ali sentadabebendo vinhoenquanto seu maridoestá no trabalho.ela considerade suma importânciaque seus poemas sejampublicadosnas pequenasrevistas.possui doisou três de pequenosvolumes de sua poesiamimeografados.tem dois outrês filhoscom idades que vãode 6 a 15.já não é maisa linda mulher quecostumava ser. mandafotos em que aparecesentada sobre uma pedrajunto ao oceanosozinha e condenada.podia ter estado com elauma vez. me perguntose ela acha que eupoderiasalvá-la?

em todos os seus poemasseu marido jamaisé mencionado.mas costumafalar sobre seujardimassim sabemos que está

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lá, de alguma maneira,e que talvez elatrepe com os botões de rosae os tentilhõesantes de escreverseus poemas.

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barata

a barata rastejousobre os ladrilhosenquanto eu estava mijando eao virar minha cabeçaela enfiou o traseironuma fenda.peguei o inseticida e disparei o aerossole disparei e dispareie finalmente a barata saiue me lançou um olhar muito nojento.então desabou dentroda banheira e fiquei assistindo àsua mortecom um prazer sutilpois eu pagava o aluguele ela não.recolhi-a comum tipo de papel higiênicoazul-esverdeado e joguei-ana descarga. era tudo o que setinha a fazer, exceto quenas redondezas de Hollywood eWestern temos que seguirfazendo isso.dizem que algum dia essatribo herdaráa terramas faremos com queesperem maisalguns meses.

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quem, diabos, é Tom Jones?

por duas semanasestive dormindo com umagarota de 24 anos deNova York – na épocaem que ocorria a greve doslixeiros, e certa noiteminha antiga mulher de 34 anoschegou e disse, “quero verminha rival”. foi o que ela feze então disse, “ó, vocêé a coisinha mais querida!”depois disso reparei que houve umagritaria de gatas selvagens –urros e unhadas,lamentos de animal ferido,sangue e mijo...

eu estava bêbado e só decalção. tenteiseparar as duas e caí,torcendo o joelho. entãoatravessaram a porta eavançaram ruaafora.

chegaram viaturas cheiasde policiais. um helicóptero dapolícia sobrevoou o local.

fiquei no banheiroe sorri para o espelho.não é comum que coisastão esplêndidas assimaconteçam aos 55 anos.

muito melhor do que os distúrbios emWatts[3].

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a de 34 retornoupara dentro. estava todamijada e sua roupatransformada em farrapos e eraseguida por dois policiais quequeriam saber a razão daquilo tudo.

erguendo meus calçõeseu tentava explicar.

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derrota

ouvindo Bruckner no rádiome perguntando por que não estava meio loucodepois do último rompimento com minhaúltima namorada.

me perguntando por que não estou guiando pelas ruasbêbadopor que não estou no banheirona escuridãona escuridão atrozponderandolacerado por pensamentos incompletos.

suponhopor fim istocomo um homem comum:conheci muitas mulherese em vez de pensarquem está trepando com ela agora?eu pensonesse instante ela está aborrecendo terrivelmenteoutro desgraçado.

ouvir Bruckner no rádioparece algo tão pacífico.

muitas mulheres já passaram por aqui.estou sozinho afinalsem estar sozinho.

pego um pincel Grumbachere limpo minhas unhas com a ponta afiada.

percebo uma tomada na parede.

veja, eu venci.

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sinais de trânsito

os velhos camaradas jogamno parque olhando o mar ao longepondo marcadores ao longo da pistacom gravetos de madeira.quatro jogam, dois para cada ladoe 18 ou 20 se sentam aosol e assistempercebo isso enquanto sigoem direção ao banheiro públicoenquanto meu carro está no conserto.

o parque abriga um velho canhãoenferrujado e inútil.seis ou sete veleiros cortamo mar lá embaixo.

termino a tarefasaioe eles continuam jogando.

uma das mulheres usa uma maquiagem carregadabrincos falsos e fumaum cigarro.os homens são muito magrosmuito pálidosusam relógios de pulso que lhes machucamos pulsos.

a outra mulher é muito gordae dá uns risinhosa cada vez que um ponto é marcado

alguns deles têm a minha idade.

eles me enojam

o modo como esperam pela morte

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com tanta paixãoquanto um sinal de trânsito.

essas são as pessoas que acreditam em comerciaisessas são as pessoas que compram dentaduras a prazoessas são as pessoas que comemoram feriadosessas são as pessoas que têm netosessas são as pessoas que votamessas são as pessoas que têm funerais

esses são os mortosneblina e fumaçao fedor no aros leprosos.

esses são afinal quase todosque existem.

gaivotas são melhoresalgas marinhas são melhoresareia suja é melhor

se pudesse posicionar aquele velho canhãocontra elese fazê-lo funcionareu o faria.

eles me enojam.

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462-0614

agora recebo muitas chamadas de telefone.todas iguais.“é Charles Bukowski,o escritor?”“sim,” eu lhes respondo.e eles dizem que entendem minhaescrita,alguns deles são escritoresou querem ser escritorese estão em empregos estúpidos ehorríveise não conseguem nem encarar a salao apartamentoas paredesessa noite...querem alguém com quem possamconversar,não podem acreditarque não posso ajudá-losque não conheço as palavras.não podem acreditarque agora mesmome dobro em meu quartosegurando minhas entranhase dizendo“Jesus Jesus Jesus,de novo não!”eles não podem acreditarque as pessoas mal-amadasas ruasa solidãoas paredestambém são minhas.e quando desligo o telefoneeles acham que escondi ojogo.

não escrevo a partir da sabedoria.

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quando o telefone tocaeu também gostaria de ouvir palavrasque pudessem aliviar um pouco algumadessas coisas.

é por isso que meu nome está nalista.

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fotografias

elas o fotografam em sua varandae no seu sofáe você de pé no quintalou encostado em seu carro

essas fotógrafasmulheres com rabos enormesque lhe parecem melhoresque seus olhos ou suas almas

– este jogo com o autorna verdade não passa de umnúmero barato à Hemingwaye James Joyce

mas veja –lá estão os livrosvocê os escreveununca esteve em Parismas escreveu todos aqueles livrosatrás de você(e outros que não estão ali,perdidos ou roubados)

tudo o que você tem que fazeré se parecer com o Bukowskipara as câmerasmas

você segue de olhonaquelesrabos enormes e magníficose pensando –outra pessoa os está faturando

“olhe aqui nos meus olhos”elas dizem e disparam suas câmeras

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acionam o flash de suas câmerase acariciam suas câmeras

Hemingway costumava boxear oupescar ou ir às touradasmas depois que elas se vãovocê bate uma debaixo dos lençóise toma um banho quente

elas nunca mandam as fotoscomo prometeme seus rabos magníficos se vãopara sempree você se comportou como um ótimo literato –ainda vivologo em breve mortoolhando fundo para seus olhos e almase tudo mais.

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social

o traçado azul da ondarasgos de estrada amarela

um volanteuma mulher insana sentadaao seu lado

reclamando enquanto o oceanofaz espuma

e pessoas em motor homesamarelas ebrancasimpedem sua passagempor um tempofrenéticoenquanto você escutaculpado disso eculpado daquilo

você admiteisso e aquilomas nunca é osuficiente

ela quer conquistasesplêndidase você está escaldado poressas conquistasesplêndidas

chegando láela descecaminha em direção àcasa

você mija junto ao

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para-lamas do seu carrobêbado de cerveja

pequenas gotas de vocêpingando napoeirana poeiraseca

depois de fechar o zíper vocêse põe em marchapara encontrar os amigosdela.

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um poema para a armadura peitoral

tenho um ditado, “os duros sempre retornam”.

mas Vera era mais doce do que a maioria,e assim fiquei surpreso quandoela chegou naquela noitedizendo, “me deixe entrar”.

“não, não, estou trabalhando num soneto.”

“ficarei só um minuto, depois mevou.”

“Vera, se eu deixar você entrar sei que só sairá daquiem 3 ou 4 dias.”

era noite e eu não acenderaa luz da varanda e assim não pude vê-lase aproximarmasela lançou uma direita queexplodiu bem no centro do meupeito.

“baby, esse foi um soco lindo.agora caia fora.”

então fechei a porta.

ela voltou 5 minutos depois:“Hank, não consigo achar meu carro, eujuro que não consigo achar. me ajudea encontrá-lo!”

vi meu amigo Bobby-the-Riffcaminhando. “ei, Bobby ajudeessa aí a achar o carro. nosfalamos depois.”

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foram juntos.

mais tarde Bobby disse que encontraramo carro na frente do pátio de alguém,motor e luzesligados.

não ouvi mais falar de Veradesde entãoa não ser que seja elaquem me ligaàs 2 e 3 e 4 da manhãe não responde quando eudigo “alô”.

mas Bobby diz quepode cuidar delaentão decidi deixá-lapara Bobby.

ela mora numa rua lateral em algum lugar deGlendalee eu o ajudo a abrir omapa rodoviário enquanto bebemos nossasSchlitz dietéticas.

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o pior e o melhor

nos hospitais e nas cadeiasestá o piornos hospíciosestá o piornas coberturasestá o piornos albergues vagabundosestá o piornas leituras de poesianos concertos de rocknos shows beneficentes para os inválidosestá o piornos funeraisnos casamentosestá o piornas paradasnos rinques de patinaçãonas orgias sexuaisestá o piorà meia-noiteàs 3 da manhãàs 5h45 da tardeestá o pior

pelotões de fuzilamentorasgando o céuisto é o melhor

pensar na Índiaolhando para as carrocinhas de pipocaassistindo ao touro pegar o matadoristo é o melhor

lâmpadas encaixotadasum velho cão se coçandoamendoins em um saquinhoisto é o melhor

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jogar inseticida nas baratasum par de meias limpascoragem natural vencendo o talento naturalisto é o melhor

de frente para pelotões de fuzilamentolançar pedaços de pão às gaivotasfatiar tomatesisto é o melhortapetes com marcas de cigarrofendas nas calçadasgarçonetes que mantêm a sanidadeisto é o melhor

minhas mãos mortasmeu coração mortosilêncioadágio de pedraso mundo em chamasisto é o melhorpara mim.

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cupons

cigarros umedecidos por cervejada noite passadavocê acende umse engasgaabre a porta em busca de are junto à entradaestá um pardal mortosua cabeça e seu peitoarrancados.

pendurado à maçanetahá um anúncio da All AmericanBurgerque consiste de alguns cuponsquedizemque na comprade um hambúrguerde 12 de fev. a 15 de fev.você ganha de graçaum pacote de batatasfritas médio e umcopo pequeno de coca-cola.

pego o anúncioembrulho o pardal com elelevo até a lata de lixoe despejo ládentro.

veja:renunciando a batatas fritas e cocapara ajudar a manterminha cidadelimpa.

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sorte

o que está mal a respeito dissotudoé ver as pessoasbebendo café eesperando. gostaria deembebê-los todosna sorte. eles precisamdisso. precisam bemmais do que eu.

sento nos cafése os vejo aesperar. não creioque haja muito maisa fazer. as moscasvão pra lá e pra cános vidros das janelase bebemos nossocafé e fingimosnão olhar unspara os outros.espero junto com eles.entre o movimentodas moscasas pessoas vagueiam.

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cão

um cão apenascaminhando sozinho numa calçada quente em plenoverãoparece ter mais poderdo que dez mil deuses.

por que isso?

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guerra de trincheira

abatido pela gripebebendo cervejao rádio num volumesuficientemente alto para superaros sons produzidospelo estéreo das pessoas querecém se mudarampara a casaao lado.dormindo ou acordadoseles ajustam seu aparelhono volume máximodeixando suasportas e janelasabertas.

cada um deles tem18, casados, vestemsapatos vermelhos,são loiros,magros.tocam detudo: jazz,música clássica, rock,country, modernacontanto que estejaalta.

este é o problemade ser pobre:temos que conviver como som dos outros.semana passada foiminha vez:havia duas mulheresaquibrigando entre sie elas

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correram pela calçadagritando.a polícia veio.

agora é a vezdeles.agora caminhopra lá e pra cá emmeus calções sujos,dois tampões de borrachaenfiados bem fundoem meus ouvidos.

chego a pensar emassassinato.esses coelhospequenos e rudes!pedacinhos ambulantesde ranho!

mas na nossa terrae do nosso jeitonunca terá havidouma chance;somente quandoas coisas não estãoindo tão malpor um instanteque esquecemos.

algum dia cada umdeles estará mortoalgum dia cada umdeles terá umcaixão separadoe então haverásilêncio.

mas por oraé Bob DylanBob Dylan BobDylan por aí

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afora.

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a noite em que trepei com meu despertador

certa vezpassando fome na Filadélfiaeu ocupava um quartinhocaía a tarde e a noite chegavae me postei junto à janela no 3° andarno escuro e olhei para umacozinha que ficava no outro lado do 2° andare avistei uma bela garota loiraabraçar um jovem e ali beijá-locom o que parecia ser fomee fiquei parado a olhá-los até que seseparassem.então dei meia-volta e acendi a luz do quarto.vi minha cômoda e suas gavetase meu despertador sobre ela.peguei o relógioe o levei pra cama comigotrepei com ele até que os ponteiros caíssem fora.depois saí e vaguei pelas ruasaté sentir meus pés se encherem de bolhas.quando voltei fui até a janelae olhei pra baixo e lá pro outro ladoe a luz na cozinha deles estavaapagada.

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quando me penso morto

penso em automóveis estacionadosnas vagas

quando me penso mortopenso em panelas de fritura

quando me penso mortopenso em alguém fazendo amor com vocêquando não estou por perto

quando me penso mortorespiro com dificuldade

quando me penso mortopenso em todas as pessoas que esperam pela morte

quando me penso mortopenso que nunca mais poderei beber água

quando me penso mortoo ar fica completamente puro

as baratas na minha cozinhatremem

e alguém terá que jogarfora minhas cuecas limpas esujas

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noite de Natal, sozinho

noite de Natal, sozinho,num quarto de moteljunto à costaperto do Pacífico –ouviu?

eles tentaram fazer desse lugar algoespanhol, hátapeçarias e lâmpadas, eo banheiro é limpo, háminibarras de saboneterosa.

não nos encontrarão poraqui:as piranhas ou as damas ouos adoradoresde ídolos.

lá na cidadeeles estão bêbados e em pânicofurando sinais vermelhosarrebentando suas cabeçasem homenagem ao aniversário deCristo. isso é uma beleza.

em breve terei terminado esta garrafa derum porto-riquenho.pela manhã vomitarei e tomareibanho, voltarei paracasa, comerei um sanduíche à uma da tarde,estarei no meu quarto por volta dasduas,estirado na cama,esperando o telefone tocar,sem responder,meu feriado é uma

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evasão, minha razãonão é.

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certa vez houve uma mulher que enfiou a cabeça dentro do forno

o terror se torna por fim quasesuportávelmas nunca completamente

o terror se arrasta como um gatorasteja como um gatopor minha mente

posso ouvir a risada das massas

elas são forteselas sobreviverão

como a barata

nunca tire seus olhos da barata

você não voltará a vê-la outra vez.

as massas estão em todo lugarsabem como fazer as coisas:elas têm raivas sadias e mortaispor coisas sadias emortais.

gostaria de estar dirigindo um Buick 1952 azulou um Buick 1942 azul-marinhoou um Buick 1932 azulsobre um desfiladeiro do inferno e em direção aomar.

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camas, banheiros, você e eu...

pensando nas camasusadas e reutilizadaspara treparpara morrer.

nesta terraalguns de nós trepam mais do quenós morremosmas a maioria de nós morremelhor do quetrepamos,e morremosbocado a bocado também –em parquestomando sorvete, ounos iglusda demência,ou em esteiras de palhaou sobre amoresdesembarcadosouou.

:camas, camas, camas:banheiros, banheiros, banheiros

o sistema de esgoto humanoé a maior invenção domundo.

e você me inventoue eu inventei vocêe é por isso que nós nãodamosmais certonesta cama.você era a maior invenção

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do mundoaté que resolveume mandar descargaabaixo.

agora é a sua vezde esperar que alguém aperteo botão.alguém fará issocom você,puta,e se eles não fizeremvocê fará –misturada ao seu próprioadeusverde ou amarelo ou brancoou azulou lavanda.

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isso então...

é o mesmo que antesou que da outra vezou da vez anterior a essa.eis um paue eis uma bocetae eis um problema.

a cada vezvocê pensabem eu aprendi desta vez:vou dizer a ela que faça issoe eu farei isto,já não quero a coisa toda,só um pouco de confortoe um pouco de sexoe apenas um mínimo deamor.

agora novamente esperoe os anos vão escasseando.tenho meu rádioe as paredes da cozinhasão amarelas.sigo esvaziando as garrafasà esperados passos.

espero que a morte reservemenos do que isto.

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imaginação e realidade

há muitas mulheres solteiras no mundocom um ou dois ou três filhose alguém se pergunta aonde foram os maridosou aonde foramos amantesdeixando para trástodas essas mãos e esses olhos e esses pése essas vozes.ao passar por suas casasgosto de abrir armários eolhar o que há dentroou então debaixo da piaou no guarda-roupa –espero encontrar o maridoou o amante e ele me dirá:“ei, parceiro, você não percebeu asestrias, ela tem estriase peitos caídos e comecebolas o tempo todo e peida... massou um cara habilidoso. posso consertar coisas,sei como usar um torno mecânico etroco sozinho o óleo do carro. sei jogarsinuca, boliche, posso chegar em 5º ou6º em qualquer maratona poraí. tenho um jogo de tacos degolfe, lanço a bola a longas distâncias. seionde fica o clitóris e o que fazer comele. tenho um chapéu de caubói com as abasdobradas para cima.sou bom com o laço e com os punhosconheço os últimos passos de dança.”

e eu direi, “veja só, estou de saída”.e sumirei antes que ele acabe me desafiandopara uma queda de braçosou me conte uma piada bagaceiraou me mostre a tatuagem no seubíceps direito em movimento.

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mas de fatotudo o que encontro no armário sãoxícaras de café e pratos marrons, grandes e rachadose debaixo da pia uma pilha de traposendurecidos, e no guarda-roupa – mais cabidesdo que roupas, e é só quando ela me mostrao álbum e as fotos dele –tão bom quanto uma calçadeira, ou um carrinho desupermercado cujas rodas não estão emperradas –que a dúvida íntima se desfaz, e aspáginas avançam e ali está uma criança comum traje de banho vermelho e lá estáa outraperseguindo uma gaivota em Santa Mônica.e a vida se torna triste e nada perigosae, dessa maneira, boa o suficiente:tê-la para lhe trazer uma xícara de café emuma daquelas xícaras sem que eleapareça.

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roubada

sigo pensando que ela estará lá foraagoraesperando por mimazulo para-choque frontal amassadoa cruz de Malta penduradano retrovisor.o tapete de borrachaembolado debaixo dos pedais.8 km/lo bom e velho TRV 491a fiel amante de um homem,o modo como eu lhe engatava a segundaao dobrar uma esquinao modo como ela podia furar um sinalquando ninguém estava por perto.o modo como conquistávamos enormese pequenos espaçoschuvasolneblinahostilidadeo impacto das coisas.

saí das lutas no Olympic na últimaterça-feira à noitee minha caranga tinha sumidocom outro amantepara outro lugar.

as lutas tinham sido boas.chamei um táxi numa estaçãoe me sentei numa cafeteria para comeruma rosquinha com geleia acompanhada de café eesperei,e eu sabia que se encontrasseo homem que a havia roubadoeu o mataria.

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o táxi chegou. acenei para omotorista, paguei pela rosquinha e pelocafé, saí noite afora,entrei no carro, e lhe disse, “Hollywood coma Western”, e naquela noiteem específico aquilo foi tudo.

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o humilde herdou

se eu sofro assim diante dessamáquina de escreverpense em como eu me sentiriaentre os colhedoresde alface em Salinas?

penso nos homensque conheci nasfábricassem qualquer chance deescapar –sufocados enquanto vivemsufocados enquanto riemde Bob Hope ou LucilleBall enquanto2 ou 3 crianças jogambolas de tênis contraas paredes.

alguns suicídios jamais sãoregistrados.

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os insanos sempre me amaram

e os subnormais.ao longo de todo o ensinofundamentalensino médiofaculdadeos rejeitados seuniam amim.caras com um só braçocaras com tiquescaras com problemas de falacaras com uma película brancasobre um dos olhos,covardesmisantroposassassinostaradose ladrões.e em todasas fábricas e navagabundagemsempre atraíos rejeitados. eles me encontravamlogo de cara e se grudavamem mim. continuamfazendo isso.aqui na vizinhança há agoraum que meencontrou.ele anda por aí empurrando umcarrinho de supermercadocheio de lixo:bengalas partidas, cadarçossacos vazios de batata frita,caixas de leite, jornais, canetas...“ei, parceiro, o que tá fazendo?”eu paro e conversamos umpouco.

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então eu digo adeusmas ele continua meseguindopara além dosputeiros e dosprostíbulos...“me mantenha informado,parceiro, me mantenha informado,quero saber o que estáacontecendo.”esse é o meu insano do momento.nunca o vi falarcom maisninguém.o carrinho chacoalhaum pouco atrásde mimentão alguma coisacai.ele se detém parajuntá-la.enquanto ele se ocupa disso euentro pela porta de umhotel verde que fica naesquinacruzoo saguãosaio pela portados fundos eali há um gatocagandoabsolutamente deliciado,que me arreganha osdentes.

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Big Max

durante o ensino médioBig Max era um problema.ficávamos sentados na hora do recreiocomendo nossos sanduíches com manteiga de amendoime batatas fritas.ele tinha pelos no narize sobrancelhas cerradas, seus lábiosbrilhavam com saliva.já usava tênis número43. suas camisas ficavam esturricadas em seupeito enorme. seus pulsos pareciamduas toras. e ele cruzava as sombras atrás do ginásioonde sentávamos, meu amigo Eli e eu.“caras”, ele ficava ali parado, “caras,vocês sentam com seus ombros caídos!vocês caminham com os ombroscaídos! como é que vão conseguiralguma coisa?”

não respondíamos.

então Max olhava pra mim.“fique de pé!”

eu me levantava e ele ficava caminhandoàs minhas costas e dizia, “erga seusombros assim!”

e ele puxava meus ombros para trás.“veja! não faz você se sentir melhor?”

“claro, Max.”

logo ele se afastava e eu voltava à minhapostura normal.

Big Max estava pronto para enfrentar o

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mundo. olhar para ele nos deixavaenojados.

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aprisionado

no inverno caminhando em meuteto meus olhos do tamanho de luzes deposte. tenho quatro patas como um rato maslavo minhas roupas íntimas – barbeado ede ressaca e de pau duro e sem advogado.tenho cara de esfregão. cantocanções de amor e carrego aço.

preferiria morrer a chorar. não suportoa matilha não posso viver sem ela.inclino minha cabeça contra o refrigeradorbranco e quero gritar comoo último lamento de vida para todo sempre massou maior do que as montanhas.

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é o modo como você joga o jogo

chame-a de amorcoloque-a de pé sob a luzimperfeitaponha-lhe um vestidoreze cante implore chore riaapague as luzesligue o rádioacrescente-lhe enfeites:manteiga, ovos crus, jornais deontem;um cadarço novo, e entãopáprica, açúcar, sal, pimenta,ligue para sua tia velha e bêbada emCalexico;chame-a de amor,espete-a bem, adicionerepolho e molho de maçã,então a esquente primeirono lado esquerdo,depois nodireito,ponha-a numa caixalivre-se deladeixe-a nos degraus de uma portavomitando como você faránashortênsias.

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no continente

eu sou frouxo. eusonho também.me deixo sonhar. sonho emser famoso. sonho emcaminhar nas ruas de Londres eParis. sonho emsentar em cafésbebendo vinhos caros epegando um táxi de volta a um bomhotel.sonho emconhecer lindas mulheres no saguãoedispensá-las porquetenho um soneto em mente quequero escreverantes do nascer do sol. quando o sol nascerestarei dormindo e haverá umgato estranho enroladono parapeito da janela.

penso que todos nos sentimos assimde vez em quando.eu gostaria mesmo de visitarAndernatch, na Alemanha, o lugar ondecomecei. depois gostaria devoar até Moscou para checaro sistema de transporte coletivo assimteria alguma coisa levemente obscena parasussurrar no ouvido do prefeito deLos Angeles quando retornasse para estelugar fodido.

poderia acontecer.estou pronto.

já vi lesmas escalarem

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paredes de três metros de altura edesaparecerem.

você não deve confundir isto comambição.eu seria capaz de rir ao receberuma mão perfeita nas cartas –

e não esquecerei de você.vou lhe mandar cartões-postais einstantâneos, e osoneto acabado.

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12:18 a.m.

decapitado no meio danoitecoçando os lados do meu corpoestou coberto de mordidaslivro aos chutes minhas pernas brancas dos lençóisenquanto as sirenes soamhá um disparo de arma de fogo.

vou à cozinhaem busca de um copo d’águadestruir o devaneio de uma baratadestruir a própria barata.um vendaval vem do norteenquanto o homem no apartamentoda frenteenfia seu pau no rabo de suafilha de 4anos.

escuto os gritosacendo um charutoenfio-o nos lábios de minhacabeça decapitada.é um coronaenvelhecidoum Medalist Naturáles, Nº 7.

retorno ao banheirocom um inseticida.aperto a válvula.sai o spray. tenhonáuseas,penso em antigas batalhasem amores mortos.

tanta coisa acontece na escuridãoainda que amanhã

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o sol continue seguindo seu rumo,você receberá uma multa se estacionardo lado sul de uma rua numaquinta-feiraou do lado norte nasexta.

a eficiência do sol e daleiprotege a sanidade.

alguma coisa me morde.disparoenlouquecidamente o spray em meuslençóis.

volto-mevejo o espelho na escuridão –o charutoa pança flácidameu reflexoenvelhecido.

dou uma risada.

é bom que eles nãosaibam.

pego minha cabeça

coloco-a novamente em meupescoço

entro sob os lençóis e

não consigo dormir.

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táxi

a dançarina mexicana balançava suas plumas eseu rabo para mim,sem que eu lhe tivesse pedido, eminha mulher enlouqueceu e saiu correndo do café ecomeçou a chover e dava para ouvir os pingos notelhado e eu estava sem emprego e me restavam 13 diasde aluguel.às vezes, quando uma mulher corre assim de vocêé de se perguntar se não faz isso por questõeseconômicas, bem, não se pode culpá-las –se eu tivesse que ser comido, preferia que fossepor alguém com grana.estamos todos assustados, mas quando você é feio eestá completamente fodido você sefortalece, e chamei o garçom e disse,achou que vou virar esta mesa, estoude saco cheio, pirado, preciso deação, chame o seu leão-de-chácara, mijarei naclavícula dele.

fuiposto pra fora bruscamente.chovia. dei um jeito de me recompor sob a chuva ecaminhei pela rua desertaalgodão-docequinquilharias à venda, todas as lojinhas fechadascom cadeados Woolworth de 67 centavos.

chego ao final da rua a tempode vê-la entrar num táxicom outro cara

desabo junto a uma lata de lixo, me levantoe mijo nela, sentindo-me triste e logo nemtanto, sabendo que havia coisas demais que eles podiam

[fazercontra você, o mijo escorrendo pela lata

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corrugada, os filósofos deveriam ter algo a dizer sobreisso. mulheres. a sorte delas contra o seudestino. o vencedor leva Barcelona. próximobar.

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como você não está fora da lista?

os homens ligam e me perguntam isto.

você é realmente Charles Bukowskio escritor?

sou escritor de vez em quando, eu digo,na maior parte do tempo eu não faço nada.

escute, eles dizem, eu gosto das suascoisas – se importa se eu aparecer aícom uma dúzia de latinhas?

você pode trazê-las, eu digodesde que não entre...

quando as mulheres ligam, eu digo,ó, sim, escrevo, sou um escritorapenas não estou escrevendo nada neste exato momento.

me sinto tola ligando para você,elas dizem, e fiquei surpresade achar seu nome na lista telefônica.

tenho meus motivos, eu digo,a propósito, por que você não aparecepra tomar uma cerveja?

você não se importaria?

e elas chegammulheres lindasboas de corpo e mente e olho.

frequentemente não há sexomas estou acostumadoainda assim é bombom demais apenas olhar para elas...

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e em alguns raros momentostenho uma maré inesperada de sortepara variar.

para um homem de 55 que não transouaté os 23e não muitas vezes mais até os 50creio que deva continuar listadona Pacific Telephoneaté conseguir o mesmo número de mulheresque os homens normais conseguiram.

claro, terei que continuarescrevendo poemas imortaismas a inspiração está lá.

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boletim do tempo

suponho que esteja chovendo em alguma cidade espanholaneste momentoenquanto me sinto maldeste jeito;gosto de pensar nissoagora.vamos a um vilarejo mexicano –isso soa bem:um vilarejo mexicanoenquanto me sinto maldeste jeitoas paredes amareladas pelo tempo –aquela chuvalá fora,um porco se movendo em seu chiqueiro à noiteincomodado pela chuva,os olhos diminutos como pontas de cigarro,e seu maldito rabo:pode vê-lo?não consigo imaginar as pessoas.talvez elas também estejam se sentindo mal,quase tão mal quanto eu.pergunto-me o que elas fazem quando se sentemassim?provavelmente não o mencionam.dizem apenas,“veja, está chovendo”.Assim é melhor mesmo.

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velho limpo

daqui auma semana farei55.

sobre o queescrevereiquando ele nãolevantar maispela manhã?

meus críticosvão adorarquando a minha diversãopassar a sertartarugase estrelas-do-mar.

chegarão inclusive adizercoisas boas sobremim

como se eu tivessefinalmentealcançado arazão.

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alguma coisa

estou sem fósforos.as molas de meu sofáestouraram.roubaram minha maleta.roubaram minha tela a óleo dedois olhos rosados.meu carro quebrou.lesmas escalam as paredes de meu banheiro.meu coração está partido.mas as ações tiveram um dia de altano mercado.

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uma janela de vidros espelhados

cães e anjos não sãomuito diferentes.frequentemente vou comer nesselugarpor volta das 2h20 da tardeporque todas as pessoas que almoçamali estão particularmente arruinadasfelizes pelo simples fato de estarem vivas ecomendo feijãopróximas a uma janela de vidros espelhadosque impede a passagem do calore não deixa que os carros e ascalçadas cheguem ao interior.

podemos tomar quanto caféde graça quisermose nos sentamos e em silêncio bebemoso café preto e forte.

é bom estar sentado em algum lugarneste mundo às 2h20 da tardesem sentir-se carneado até obranco dos ossos. mesmoestando arruinados, sabemos disso.

ninguém nos incomodanão incomodamos ninguém.

anjos e cães não sãomuito diferentesàs 2h20 da tarde.

tenho minha mesa favoritae depois de terminar

empilho os pratos, pires,o copo, os talheres

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com cuidado –faço à sorte minha oferenda –e lá fora o solsegue trabalhando bemdescrevendoseu arcoenquanto aqui dentroreinaa escuridão.

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junkies

“ela aplicou no pescoço”, ela medisse. eu disse que era para me aplicarna bunda e ela tentou e disse, “oh-oh”,e eu disse, “que merda está acontecendo?”ela disse, “nada, este é o modo Nova Yorkde fazer a coisa”, e tentou enfiar a agulha de novo e disse,“oh, merda”. Peguei o negócio e tentei me aplicarno braço, consegui injetar uma parte.“não sei por que as pessoasse metem com isso, não há nadade mais. acho que são todos uns coitadose querem realmente chegar ao fundo do poço. nãohá saída, é como se eles não conseguissemchegar onde querem ou pretendeme não tivessem outra saída.isso tinha que ser assim.ela aplicou no pescoço.”

“eu sei”, eu disse. “liguei pra ela, elamal conseguia falar, disse que estava comlaringite. tome um pouco deste vinho.”

era vinho branco e 4h20 da manhã e suafilha dormia no quarto. a tevêa cabo estava ligada sem volume eum enorme pôster com um John Wayne ainda jovemnos velava, e não nos beijamos nem sequer fizemosamor e acabei saindo de lá às 6h15depois que a cerveja e o vinho acabarame também para que sua filha não acordasse para ir aocolégio e me encontrasse ali sentado nacama de sua mãecom o John Wayne e a noite encerradae sem quaisquer esperanças para quem quer que fosse...

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99 para um

o tubarão resplandecentequer meus bagosenquanto atravesso a seção de carnesem busca de salame e queijo

donas de casa púrpurasapalpando abacates de 75 centavossabem que meu carrinho é umpau monstruoso

sou um homem com um relógio antigoparado em uma cabine telefônica numa espeluncachupando um bico vermelho como morangode cabeça para baixo em meio à multidão na Filadélfia.

de repente tudo ao meu redor são gritos deESTUPRO ESTUPRO ESTUPRO ESTUPRO ESTUPROe eu estou metendo em alguma coisa debaixo de mimcabelos de um ruivo opaco, mau hálito, dentes azuis

costumava gostar de Monetcostumava gostar muito de Monetera divertido, eu pensava, o que ele faziacom as cores

mulheres são caras demaiscoleiras para cachorro são carasvou começar a vender ar em sacos alaranjadoscom os dizeres: florescências da lua

costumava gostar de garrafas cheias de sanguejovens garotas em casacos de pelo de cameloPríncipe Valenteo toque mágico do Popeye

o esforço está no esforçocomo um saca-rolhas

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um homem de verdade não deixa farelos de cortiça no vinho

este pensamento já ocorreu a milhões de homensao se barbearema remoção da vida talvez fosse preferível àremoção dos pelos

cuspa algodão e limpe seu espelhoretrovisor, corra como se tivesse vontade, ex-atleta,as putas vencerão, os tolos vencerão,mas dispare como um cavalo ao sinal da largada.

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o estouro

demaistão pouco

tão gordotão magroou ninguém.

risos oulágrimas

odiososamantes

estranhos com faces comocabeças detachinhas

exércitos correndo atravésde ruas de sanguebrandindo garrafas de vinhobaionetando e fodendovirgens.

ou um velho num quarto baratocom uma fotografia de M. Monroe.

há tamanha solidão no mundoque você pode vê-la no movimento lento dosbraços de um relógio.

pessoas tão cansadasmutiladastanto pelo amor como pelo desamor.

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outrascara a cara.

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os ricos não são bons para os ricosos pobres não são bons para os pobres.

estamos com medo.

nosso sistema educacional nos diz quepodemos ser todosgrandes vencedores.

eles não nos contarama respeito das misériasou dos suicídios.

ou do terror de uma pessoasofrendo sozinhanum lugar qualquer

intocadaincomunicável

regando uma planta.

as pessoas não são boas umas com as outras.as pessoas não são boas umas com as outras.as pessoas não são boas umas com as outras.

suponho que nunca serão.não peço para que sejam.

mas às vezes eu penso sobreisso.

as contas dos rosários balançarãoas nuvens nublarãoe o assassino degolará a criançacomo se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.

demaistão pouco

tão gordo

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tão magroou ninguém

mais odiosos que amantes.

as pessoas não são boas umas com as outras.talvez se elas fossemnossas mortes não seriam tão tristes.

enquanto isso eu olho para as jovens garotastalosflores do acaso.

tem que haver um caminho.

com certeza deve haver um caminho sobre o qual aindanão pensamos.

quem colocou este cérebro dentro de mim?

ele choraele demandaele diz que há uma chance.

ele não dirá“não”.

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um cavalo de olhos azul-esverdeados

o que você vê é aquilo que vê:os hospícios raramenteestão visíveis.

que continuemos caminhando por aíe nos coçando e acendendocigarros

é mais miraculoso

do que os banhos das beldadesdo que as rosas e as mariposas.

sentar-se em um pequeno quartoe beber uma latinha de cervejae fechar um cigarroouvindo Brahmsem um radinho vermelho

é como ter voltadode uma dúzia de batalhascom vida

ouvir o somda geladeira

enquanto as beldades banhadas apodrecem

e as laranjas e maçãsrolam para longe.

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3Scarlet

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Scarlet

fico feliz quando elas chegame feliz quando se vão

feliz quando escuto os saltosse aproximando de minha portafeliz quando esses saltosse afastam

feliz por foderfeliz por me importarfeliz quando tudo termina

edesde que as coisas ou estãocomeçando ou terminandofico feliza maior parte do tempo

e os gatos caminham pra cima e pra baixoe a terra gira em torno do sole o telefone toca:

“é a Scarlet”.

“quem?”

“Scarlet.”

“certo, pinta aí.”

e desligo pensandotalvez seja isso

entrodou uma cagada rápidame barbeiome banho

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me visto

ponho o lixoe as caixas cheias de garrafas vaziaspra fora

me sento ao som dossaltos se aproximandoparecendo mais a aproximação de um exércitodo que o som da vitória

é Scarlete na minha cozinha a torneiracontinua pingandoprecisando de conserto.

cuidarei disso maistarde.

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ruiva de cima a baixo

cabelos ruivoslegítimosela os põe em movimentoe pergunta“meu rabo continua gostoso?”

que comédia.

há sempre uma mulherpra salvar você de outra

e assim que ela o salvaestá pronta paradestruí-lo.

“às vezes eu odeio você”,ela disse.

afastou-se e foi se sentarna minha varanda para ler meu exemplardo Catulo, e ficoupor lá cerca de uma hora.

as pessoas passavam de lá para cáem frente à minha casase perguntando como umcara tão velho e feio podia arranjaruma beldade daquelas.

nem eu sabia.

assim que ela entrou eu a puxeipara o meu colo.ergui meu copo e lhedisse, “beba isso”.

“oh”, ela disse, “você misturou

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vinho com Jim Beam, logo vai ficarsafado”.

“você passa hena nos cabelos,não?”

“você não enxerga nada”, ela disse ese levantou e baixousuas calças e a calcinha eos pelos lá embaixo tinham amesma cor dos cabeloslá em cima.

o próprio Catulo não poderia ter desejadograça mais histórica oumagnífica;depois ele seenamorou de

rapazolasinsuficientemente loucospara se tornarmulheres.

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como uma flor na chuva

cortei a unha do dedo médioda mãodireitarealmente curtae comecei a correr o dedo ao longo de sua bocetaenquanto ela se sentava muito ereta na camaespalhando uma loção por seus braçosfacee seiosdepois do banho.então acendeu um cigarro:“não deixe que isso o desanime”,e seguiu fumando e esfregando aloção.continuei tocando sua boceta.“quer uma maçã?”, perguntei.“claro”, ela disse, “tem uma aí?”mas eu lhe dei outra coisa...ela começou a se contorcere depois rolou para um lado,ela estava ficando molhada e abertacomo uma flor na chuva.então ela se voltou sobre a barrigae seu cu maravilhosoolhou para mime eu passei minha mão por baixo echeguei outra vez na boceta.ela se espichou e agarrou meupau, virando-se e se contorcendo toda,penetrei-ameu rosto mergulhando na massade cabelos ruivos que se alastrava feito enchentede sua cabeçae meu pau intumescido adentrouo milagre.mais tarde tiramos sarro da loçãoe do cigarro e da maçã.depois eu saí para comprar um pouco de frango

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e camarão e batatas fritas e pão docee purê de batatas e molho esalada de repolho, e nós comemos. ela me dissequão bem ela se sentia e eu lhe disseo quão bem eu me sentia e nós comemoso frango e o camarão e as batatas fritas e o pão docee o purê de batatas e o molho etambém a salada de repolho.

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castanho-claro

um olhar castanho-claro

esse estúpido, vazio e maravilhosoolhar castanho-claro.

darei um jeitonele.

você não precisa maisme enganarcom seus truquesde Cleópatrade cinema

já se deu contade que se eu fosse uma calculadoraeu poderia entrar em paneregistrandoas infinitas vezes que você usouesse olhar castanho-claro?

não que não seja o que há de melhoresse seu olhar castanho-claro.

algum dia um filho da puta loucoirá matá-la

e então você gritará meu nomee finalmente entenderáo que já devia ter entendido

há muitotempo.

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brincos enormes

saio para buscá-la.ela está em alguma missão.ela está sempre cheia de missõesmuitas coisas pra fazer.nunca tenho nada pra fazer.

ela sai de seu apartamentovejo-a se aproximar do meu carro

ela vem descalçavestida de modo casualexceto por enormes brincos.

acendo um cigarroe quando ergo os olhosela está estirada no meio da rua

uma rua bastante movimentada

todos os seus 50 quilostão magníficos quanto qualquer coisa que você possaimaginar.

ligo o rádioe espero ela se levantar.

ela o faz.

abro a porta do carro.ela entra. afasto-me do cordão dacalçada. ela gosta da canção que toca na rádioe aumenta o volume.

ela parece gostar de todas as cançõesela parece conhecer todas as cançõescada vez que a vejo ela parece aindamelhor

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200 anos atrás eles a teriam queimadoem um poste

agora ela passa seurímel enquanto nossocarro segue adiante.

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ela saiu do banheiro com sua cabeleira ruiva flamejante e disse...

os policiais querem que eu vá até lá e identifiqueum cara que tentou me estuprar.perdi outra vez a chave do meu carro; tenhoa que abre a porta, mas não a que dá partida naignição.essas pessoas estão tentando tirar minha filha de mim,mas eu não vou deixar.Rochelle quase tomou uma overdose, então foi até oHarry com um bagulho, e ele a pegou de jeito.ela teve as costelas fissuradas, você sabe,e uma delas lhe perfurou o pulmão. elaestá no hospital conectada a uma máquina.

onde está meu pente?o seu está sempre imundo.

eu lhe disse,eu não vi o seupente.

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uma assassina

a consistência é impressionante:boca fedorentapodre por dentro eum corpo quase perfeito,uma longa e luminosa cabeleira loira –que confunde a mime aos outros

ela segue de homem em homemoferecendo carícias

ela fala de amor

então submete os homensà sua vontade

boca fedorentapodre por dentro

vemos isso tarde demais:depois que o pau é engolidoo coração vai atrás

sua longa e luminosa cabeleiraseu corpo quase perfeitocaminha pela ruadebaixo do mesmo solque banha as flores.

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uma aposta perdida

ela não é pra você, cara,não faz o seu tipo,ela foi maltratadafoi usadaadquiriu todos os maushábitos,ele me disseentre um páreo e outro.

vou apostar no cavalo 4,eu lhe disse.bem, é que eu gostaria apenasde tentar tirá-lada correnteza,salvá-la, pode-se dizer.

você não conseguirá, ele disse,você tem 55, precisa de gentileza.vou apostar no cavalo 6.você não é o cara parasalvá-la.

e você pode? perguntei.não acho que o 6 tenhachance, prefiro o 4.

ela precisa de alguém que lhe desça a mão,que a jogue na parede, ele disse,que lhe chute o rabo, ela vai adorar.ficará em casa elavará a louça.o cavalo 6 vai estar nadisputa.

não sou bom nesse negócio de bater em mulher,eu disse.

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então tire ela da cabeça, ele disse.

não é fácil, respondi.

ele se levantou e foi no 6e eu me levantei e fui no 4.o cavalo 5 ganhoupor 3 corpospagando 15 para um.

os cabelos dela são ruivoscomo relâmpagos vindos do paraíso,eu disse.

tire ela da cabeça, ele disse.

rasgamos nossos bilhetese olhamos para o lagono centro da pista.

aquela ia seruma longa tardepara nós dois.

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a promessa

ela se inclinou sobre o lado da camae abriu um portfoliojunto à parede.estávamos bebendo.ela disse, “você me prometeu essesquadros uma vez, nãolembra?”“o quê? não, não, não lembro.”“bem, você prometeu”, ela disse, “e vocêsabe que promessa é dívida.”“tire a mão desses quadros”,eu disse.então fui até a cozinha buscaruma cerveja. fiz uma parada para vomitare quando volteipude vê-la sair pela janelaatravessando o pátioem direção à sua casa que ficava nos fundos.ela tentava correre ao mesmo tempo equilibrar 40 pinturassobre a cabeça:óleostelas em preto e brancoacrílicosaquarelas.ela pisou em falso e quasecaiu sentada.então subiu depressa os degraus da varandae sumiu porta adentro em direção aoseu apartamento que ficava escada acimaavançando com todos aqueles quadrossobre a cabeça.foi uma das coisas maisengraçadas que jamais vi.bem, suponho que o negócio agora sejapintar mais 40.

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acenos e mais acenos de adeus

paguei suas despesas ao longo de todo o trajeto entre[Houston

e São Franciscodepois voei pare encontrá-la na casa do irmão delae acabei bêbadoe falei a noite inteira sobre uma ruiva, eela disse por fim, “você dorme ali em cima”,e eu subi a escadado beliche e ela dormiuna cama de baixo.

no dia seguinte eles me levaram até o aeroportoe eu voei de volta, pensando, bem,ainda restou a ruiva e assim que chegueiliguei para ela e disse, “voltei, baby,peguei um avião para ver essa mulher e faleisobre você a noite inteira, então aqui estou eu de volta...”

“bem, por que você não volta lá e terminao serviço?” ela disse e desligou.

então enchi a cara e o telefone tocoue elas se apresentaram comoduas garotas alemãs que queriamme ver.

então elas apareceram e uma delas tinha 20 e aoutra 22. contei-lhes que meu coraçãohavia sido esmigalhado pela última vez eque eu estava desistindo desse negócio de mulher. elas riramde mim e nós bebemos e fumamos e fomosjuntos para a cama.

eu tinha essa cena diante de mim eprimeiro agarrei uma e depois agarrei aoutra.

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finalmente fiquei com a de 22 ea devorei.

elas ficaram 2 dias e 2 noitesmas nunca fui com a de 20,ela estava menstruada.

finalmente as levei para Sherman Oakse elas ficaram junto ao pé de uma longapassagemacenos e mais acenos de adeus enquanto eu dava a réno meu fusca.

quando voltei havia uma carta de umamulher de Eureka. dizia que queria que eua fodesse até que ela não pudessemais caminhar.

me deitei e puxei umapensando na garotinha que eu tinha vistouma semana atrás em sua bicicleta vermelha.

depois tomei um banho e vesti meu robeverde e felpudo bem a tempo de pegar as lutasna tevê diretamente do Olympic.

havia um negro e um chicano.isso sempre dava uma boa luta.

e era também uma boa ideia:ponha os dois no ringue e deixe quese matem.

assisti a todo o combatesem deixar de pensar na ruiva uma vez sequer.

acho que o chicano venceumas não tenho certeza.

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liberdade

ela estava sentada na janelado quarto 1010 no Chelseaem Nova York,o antigo quarto de Janis Joplin.fazia 40 grause ela estava alteradae tinha uma perna para forado peitoril,e se inclinava para fora e dizia,“Deus isso é ótimo!”e então ela escorregoue quase caiu lá embaixo,agarrando-se no momento final.foi por pouco.voltou para dentro e se esticouna cama.

já perdi um bocado de mulheresde um bocado de modos diferentesmas teria sidoa primeira vezdesse modo.

então ela rolou da camacaindo de costase quando me aproximeiela estava dormindo.

ela passara o dia todo querendover a Estátua da Liberdade.agora por um tempo ela não me incomodariacom isso.

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não toque nas garotas

ela está lá em cima vendo meu médicotentando conseguir umas pílulas para emagrecer;ela não é gorda, precisa do barato.sigo até o bar mais próximo e espero.às 3h20 da tarde de uma terça-feira.eles têm uma dançarina.

há apenas um outro cara no bar.

ela faz seus passosolhando-se no espelho.parece uma macacaescuracoreana.

ela não é muito boa,esquelética e previsívele ela estica sua língua para mim edepois para o outro cara.

os tempos devem ser bem difíceis, penso.

tomo mais algumas cervejas e me levanto para sair.ela me acena.“já vai?”, pergunta.“sim”, eu digo, “minha esposa tem câncer.”

dou-lhe um aperto de mão.

ela aponta para um cartaz atrás de si:NÃO TOQUE NAS GAROTAS.

ela aponta para o cartaz e diz,“o cartaz diz ‘NÃO TOQUE NAS GAROTAS’.”

sigo até o estacionamento e espero.ela aparece.

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“conseguiu as pílulas?” pergunto.“sim”, ela diz.“então ganhou o dia.”

penso na dançarina cruzando minhacozinha. não consigo visualizar. morrereisozinhodo mesmo modo que vivo.

“leve-me para casa”, ela diz,“tenho que me preparar para o curso noturno”.“claro”, eu digo e a levo embora.

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óculos escuros

nunca uso óculos escurosmas esta ruiva foi buscaruma receita preenchida no Hollywood Blvd.e ela seguia discutindo comigo,rilhando os dentes e rosnando.deixei-a junto ao balcão da prescriçãoe fui dar uma volta e comprei um enorme tubo deCrest e uma garrafa gigante de Joy.então me aproximei de um mostruário de óculos escurose comprei o mais terrível parque pude encontrar.pagamos por nossas coisasfomos até um restaurante mexicanoe ela pediu um taco do qual não daria contae ficou ali sentadarilhando os dentes e rosnando e rosnando pra mime após comer pedi 3 cervejassequei-asdepois pus meus óculos.“ó meu Deus”, ela disse, “puta que pariu!”e eu a acertei dos dois ladosa mais excelente das respostasrosnando fedorentas balas de marmeladarajadas de merdapeidos vindos do inferno,então me levanteipagueiela saindo atrás de mimnós dois de óculos escurose as calçadas se dividindo.encontramos o carro delaentramos e partimoseu ali sentadoempurrando os óculos novamente contra meu narizarrancando-lhe a espinhaagitando-a do lado de fora da janelacomo um mastro partido da Confederação...os óculos escuros e malévolos ajudando.

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“puta que pariu!” ela disse,e o sol brilhava no céue eu não percebia.

saíram a bagatela de US$ 4.25mesmo levando-se em consideração que esqueci a Creste a Joy nomexicano do taco.

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orador debaixo de mau tempo

por Deus, não sei o quefazer.elas são tão legais de se ter por perto.elas têm um jeito de tocaras bolase olhar para o pau muitoseriamentevirando-opuxando-oexaminando cada parteenquanto seus longos cabelos caemsobre a sua barriga.

não é apenas o foder e o chuparque alcançam o interior do homeme o amaciam, são os extras,está tudo nos extras.

agora é noite e está chovendoe não há ninguémestão todas em outros lugaresexaminando coisasem novos quartoscom novos humoresmesmo que em velhosquartos.

seja o que for, é noite e está chovendo,uma chuva torrencial, maldita epesada...

muito pouco a fazer.já li o jornalpaguei a conta do gása conta de luza conta do telefone.

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continua chovendo.

elas amaciam um homeme então o deixam a nadarem seu próprio suco.

preciso de uma vagabunda no velho estilobatendo à porta esta noitefechando seu guarda-chuva verde,gotas de chuva enluarada sobresua bolsa, dizendo, “merda, cara,não consegue achar uma música melhor do queessa no seu rádio?e aumente o aquecimento...”

é sempre quando um homem está tomadode amor e tudomaisque continua chovendoalagadouraencharcantechuvaboa para as árvores e para agrama e para o ar...boa para coisas quevivem sozinhas.

eu daria qualquer coisapela mão de uma fêmea em mimesta noite.elas amaciam um homem edepois o deixamescutando a chuva.

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melancolia

a história da melancoliainclui a todos nós.

eu, eu escrevo em folhas sujasenquanto encaro fixamente as paredes azuise o nada.

estou tão acostumado à melancoliaquea cumprimento como a uma velhaamiga.

farei agora 15 minutos de sofrimentopela ruiva perdida,digo aos deuses.

faço isso e me sinto um tanto malbastante triste,então me levantoREVIGORADOmesmo sabendo que nada estáresolvido.

isto é o que eu ganho por chutara religião no rabo.

deveria ter chutado o raboda ruivaonde estão seu cérebro e seu pão commanteigana...

mas não, eu estava me sentindo tristecom tudo:a ruiva perdida foi apenas outrogolpe numa longa vidade perdas...

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escuto uns tambores no rádio agorae dou uma risada.

há alguma coisa errada comigoalém damelancolia.

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um caso de estetoscópio

meu médico recém entrou em sua salavindo da cirurgia.ele me encontra no banheiro masculino.“puta que pariu”, ele me diz,“onde você a encontrou? oh, como é bomolhar para garotas como esta!”eu lhe digo: “é minha especialidade: corações decimento e corpos esculturais. se conseguir ouvir umbatimento, me avise.”“vou cuidar dela direitinho”, ele diz.“sim, e por favor lembre-se de todos os códigosde ética de sua honorável profissão”, eu lhe disse.

fechou primeiro a braguilha e depois lavou as mãos.“como está a sua saúde?” ele pergunta.“fisicamente funciono como um relógio. mentalmente estou perdido, condenado, carregando

minha pequena[cruz, toda

essa merda.”

“cuidarei bem dela.”

“sim. e me avise a respeito dos batimentos cardíacos.”

ele saiu.terminei, fechei a braguilha e também saí.mas não lavei minhas mãos.

estou muito à frente dessas preocupações.

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morda-se de raiva

vim até aqui, ela diz, para lhe falarque está tudo acabado. não estou de brincadeira,acabou. ficamos assim.

sento no sofá olhando ela ajeitarseus cabelos longos e ruivos em frente ao espelhodo meu quarto.ela ergue os cabelos efaz um coque no topo da cabeça –ela deixa que seus olhos encontremos meus –então ela solta os cabelos edeixa que eles lhe cubram o rosto.

vamos para a cama e eu a segurode costas sem dizer uma palavrameu braço em volta de seu pescoçotoco seus pulsos e mãossinto-a até chegaraos cotovelosmas não além.

ela se levanta.

está tudo acabado, ela diz,morda-se de raiva. vocêtem alguma borrachinha?

não sei.

achei uma, ela diz,vai servir. bem,vou indo.

me levanto e a levoaté a portalogo ao sair

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ela diz,quero que você me compreum sapato de salto altosalto agulhasapatos pretos de salto.não, quero um parvermelho.

vejo ela seguir pela passagem de cimentodebaixo das árvoresela caminha direitinho eenquanto as poinsétias gotejam ao soleu fecho a porta.

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a retirada

desta vez o negócio acabou comigo.

me sinto como as tropas alemãsaçoitadas pela neve e pelos comunistascaminhando curvadasas botas gastasforradas com papel jornal.

minha condição é tão terrível quanto.talvez até pior.

a vitória estava tão pertoa vitória estava logo ali.

enquanto ela estava ali diante de meu espelhomais jovem e bela do quequalquer outra mulher que eu já conhecerapenteando metros e mais metros de cabelo ruivoenquanto eu a observava.

e quando ela veio para a camaestava mais bela do que nuncae o amor foi muito muito bom.

onze meses.

agora ela se foicomo todas se vão.

desta vez o negócio acabou comigo.

é um longo caminho de voltamas de volta pra onde?

o cara que vai na minha frente acaba decair.

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passo por cima dele.

será que ela também o acertou?

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cometi um erro

me estiquei até a última prateleira do armárioe puxei de lá uma calcinha azule mostrei a ela eperguntei “são suas?”

e ela olhou e disse,“não, devem ser da cadela”.

depois disso ela se foi e não a videsde então. não está na sua casa.continuo passando por lá, enfiando bilhetesdebaixo da porta. volto ali e os bilhetescontinuam intocados. arranco a cruz de Maltado retrovisor do meu carro e a amarrocom um cadarço à sua maçaneta, deixoum livro de poemas.ao retornar na noite seguinte tudocontinua ali.

continuo rondando as ruas em buscadaquele encouraçado cor de vinho que ela dirigecom uma bateria fraca, e as portaspendendo das dobradiças estropiadas.

circulo pelas ruasa um passo de chorar,envergonhado de meu sentimentalismo epossível amor.

um homem velho e confuso dirigindo na chuvaperguntando-se onde a boa sorte foiparar.

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4melodias populares no que restou de sua mente

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garotas de meia-calça

estudantes de meia-calçasentadas nas paradas de ônibusparecendo cansadas aos 13com seus batons de framboesa.está quente sob o sole o dia na escola foimaçante, e ir pra casa émaçante, e eudirijo meu carroe dou uma espiada naquelas pernas quentes.seus olhos não estão focadosem nada –elas foram avisadas sobreos veteranos tarados ecruéis; eles não desistirãoassim tão fácil.e ainda assim é maçantepassar aqueles minutos nobanco e os anos emcasa, e os livros que elascarregam são maçantes e aquilo de que sealimentam é maçante, e até mesmo osveteranos tarados e cruéis sãomaçantes.

as garotas de meia-calça esperam,esperam pelo momento e horaexatos para só então se movere certamente conquistar.

circulo com o meu carroespiando suas pernassatisfeito por saber que jamais fareiparte nem de seus paraísos nem deseus infernos. mas os batonsescarlates naquelas tristes bocasque esperam! seria deliciosobeijar cada uma delas, uma vez que fosse, por completo,

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e então devolvê-las.mas o ônibus aspegará primeiro.

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subindo seu rio amarelo

uma mulher contou a um homemassim que ele desceu de um aviãoque eu estava morto.uma revista publicoua notícia de que eu tinha morridoe mais alguém disseque eles ouviram sobre o meufalecimento, e que então alguémescreveu um artigo e dissenosso Rimbaud nosso Villion estámorto. ao mesmo tempo um velhoparceiro de bebida publicouum texto afirmando que eujá não podia mais escrever. umverdadeiro trabalho de Judas. elesnão podem esperar que eu me vá, essescretinos. bem, escuto oconcerto de piano número umde Tchaikovski eo locutor anuncia que a5ª e a 10ª sinfonias de Mahlervirão a seguir desdeAmsterdã,e as garrafas de cerveja seespalham sobre o chão e as cinzasdos meus cigarroscobrem minhas cuecas dealgodão e minha barriga, mandeitodas as minhas namoradaspro inferno, e mesmo istoé um poema muito melhor do quequalquer coisa que esses coveirospossam escrever.

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artistas:

ela me escreveu por anos.“estou bebendo vinho na cozinha.chove lá fora. as criançasestão na escola.”

ela era uma cidadã qualquerocupada com sua alma, sua máquina de escrevere suareputação como poeta underground.

ela escrevia decentemente e com honestidademas apenas depois que outros jáhaviam aberto o caminho.

me ligava bêbada às 2 da manhãàs 3enquanto o marido dormia.

“é bom ouvir a sua voz”, eladizia.

“é bom ouvir a sua voz também”, eudizia.

que diabo, vocêsabe.

ela finalmente apareceu. acho que tevealgo a ver comThe Chapparal Poets Society of California.eles tinham que eleger seus quadros. ela me ligoudo hotel deles.

“estou aqui”, ela disse, “vamos elegeros representantes.”“ok, ótimo”, eu disse, “escolha uns realmente bons”.

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desliguei.

o telefone voltou a tocar.“ei, você não quer me ver?”

“claro”, eu disse, “qual é o endereço?”

depois que ela disse até logo eu bati umatroquei as meiasbebi meia garrafa de vinho esegui até lá.

estavam todos bêbados e tentavamse foder mutuamente.

levei-a para minha casa.

ela vestia uma calcinha cor-de-rosacom fitinhas.

bebemos uma pouco de cerveja efumamos e falamos sobreEzra Pound, depoisdormimos.

já não tenho clarose a levei para oaeroporto ounão.

ela continua me escrevendo cartase eu as respondoda pior maneira possíveltorcendo para que eladesista.

algum dia talvez ela alcance afama como EricaJong. (seu rosto não é lá essas coisasmas seu corpo é legal)e eu pensarei,

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meu Deus, o que foi que eu fiz?estraguei tudo.ou melhor: eu não estragueinada.

enquanto isso tenho o número de sua caixa postale é melhor eu informar a elaque meu segundo romance sairáem setembro.isso deverá manter os seus mamilos durosenquanto considero a possibilidade deFrancine du Plessix Gray[4].

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eu também tenho a cueca carimbada

escuto suas vozes do lado de fora:“ele sempre bate à máquina até tãotarde?”“não, é bastante incomum.”“ele não deveria bater a essahora.”“isso quase nunca acontece.”“ele bebe?”“acho que sim.”“ontem ele foi até a caixado correio só de cuecas.”“eu também vi.”“ele não tem amigos.”“está velho.”“não deveria bater a esta hora.”

eles entram e começaa chover enquanto3 disparos soam a meia quadrade distância eum dos arranha-céus nocentro de L.A. começaa arderem chamas de 8 metros que lambem a escuridãoda noite.

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Hawley está saindo da cidade

este caratem um olhar loucoe é bronzeadoum bronzeado escuro de solo sol de Hollywood e do oesteo sol do hipódromoele me vê e diz,“ei, Hawley está saindo da cidadepor uma semana. ele detonaas minhas vantagens. agoratenho uma chance.”

ele está sorrindo, fala sério:com Hawley fora da cidadeele se mudará paraaquele castelo em Hollywood Hills;dançarinasseis pastores alemãesuma ponte levadiça,vinhos de dezanos.

Sam, o Putanheiro,se aproxima e eu lhe digo queestou faturando US$ 150 por dianas corridas.“vou direto nastotalizações”, eu lhe digo.“preciso de uma garota”, ele me diz,“que possa prender um carasem vir com toda essa bobajada sobremoral cristãno final.“Hawley está saindo da cidade”,eu digo a Sam.

“onde está o Sapato?”

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ele pergunta.“lá pro leste”, diz um velhoque está ali parado.ele tem um pequeno protetor de plástico brancosobre o olho esquerdocravejado depequenos furos.

“isso deixa tudo nas mãos do Pinky”,diz o bronzeado.

ficamos todos ali de pé olhando uns para osoutros.entãoapós um sinal silenciosonos afastamose seguimos,cada qualem uma direção diferente:norte sul leste oeste.

nós sabemos de algo.

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um poema rude

eles seguem escrevendodespejando poemas...jovens garotos e professores universitáriosesposas que bebem vinho durante a tardeenquanto seus maridos trabalham,eles seguem escrevendoos mesmos nomes nas mesmas revistastodos escrevendo um pouco pior a cada ano,lançando uma coletânea de poesiasdespejando mais poemasé como um concursoé um concursomas o prêmio é invisível.

eles não escreverão contos ou artigosou romancesapenas seguirãodespejando poemascada um soando mais e mais como os outrose menos e menos como eles mesmos,e alguns dos garotos se cansam e desistemmas os professores nunca desisteme as mulheres que bebem vinho durante a tardenunca nunca nunca desisteme novos garotos chegam com novas revistase há alguma correspondência entre homens e mulheresalgumas fodase tudo é exagerado e estúpido.

quando os poemas são recusadoseles os reescreveme mandam para a próxima revista na lista,e eles fazem leiturastodas as leituras que conseguemde graça na maioria das vezesesperando que alguém finalmente os reconheçafinalmente os aplaudafinalmente os congratule e reconheça o

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talento delesestão todos tão certos de suas genialidadeshá tão pouco autoquestionamento,e a maioria deles vive em North Beach ou Nova York,e seus rostos são como seus poemas:iguais,e conhecem uns aos outros ese congregam e se odeiam e se admiram e se escolhem e sedescartame seguem despejando mais poemasmais poemasmais poemaso concurso dos cretinos:tap, tap, tap, tap, tap, tap, tap, tap, tap, tap...

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uma abelha

suponho que como qualquer garototive um melhor amigo na vizinhança.o nome dele era Eugene e era muito maiordo que eu e um ano mais velho.Eugene costumava me encher de porrada.estávamos sempre brigando.eu tentava vencê-lo mas sempre sem muitosucesso.

uma vez pulamos juntos de cima do telhado da garagempara provar que éramos valentes.torci meu tornozelo e ele saiu ilesocomo manteiga recém-tirada do papel.

acho que a única coisa boa que ele fez por mimfoi quando uma abelha me picou o pé descalçoe assim que me sentei para tirar o ferrãoele disse,“vou pegar a filha da puta!”

e foi o que ele fezcom uma raquete de tênismais um martelo de borracha.

estava tudo bemdizem que de qualquer modoelas morrem.

meu pé inchou e dobrou de tamanhoe eu fiquei de camarezando para morrer

e Eugene seguiu em frente e se tornou umalmirante ou comandantede alguma coisa de vulto na Marinha dos Estados Unidose conseguiu passar por uma ou duas guerrassem se ferir.

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imagino-o envelhecido agoranuma cadeira de balançocom seus dentes postiçosbebendo seu leitinho...

enquanto eu bêbadomasturbo esta tiete de 19 anosque divide a cama comigo.

mas o pior é que(assim como naquele salto do telhado da garagem)Eugene segue vencendoporque ele nem sequer está pensandoem mim.

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o principal

aí vem a cabeça de peixe cantanteaí vem a batata assada em sua roupa bizarra

aí vem nada para fazer o dia todoaí vem outra noite sem conciliar o sono

aí vem o telefone e sua campainha errada

aí vem um cupim com um banjoaí vem um mastro com olhos vaziosaí vem um gato e um cachorro usando meias de náilon

aí vem uma metralhadora em cantoriaaí vem o bacon numa frigideiraaí vem uma voz dizendo qualquer coisa tola

aí vem um jornal recheado com pequenos pássaros[vermelhos

com bicos marrons e retos

aí vem uma boceta carregando uma tochauma granadaum amor fatal

aí vem a vitória carregandoum balde de sanguee tropeçando num arbusto

e os lençóis pendurados nas janelas

e os bombardeiros em direção a leste oeste norte sulse perdemse reviram como saladaenquanto todos os peixes no mar se alinham em filaúnica

uma longa fila

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muito longa e finaa linha mais longa que você puder imaginar

e nós nos perdemoscruzando montanhas púrpuras

caminhamos a esmopor fim nus como a faca

tendo desistidotendo posto tudo pra fora como uma inesperada semente deazeitonaenquanto a garota da central telefônicagrita ao telefone:“não retorne a ligação! você parece um cretino!”

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ah...

bebendo cerveja alemãe tentando alcançar oo poema imortal às5 da tarde.mas, ah, eu disse aosestudantes que a coisa certaa fazer é não tentar.

mas quando as mulheres não estãopor perto e os cavalos não estãocorrendoo que mais se pode fazer?

tive um par defantasias sexuaisalmocei foraenviei três cartasfui à mercearia.nada na tv.o telefone está calado.passei fio dental

entre meus dentes.não vai chover e eu escutoos primeiros a chegar das8 horas de trabalho enquantodirigem e estacionam seus carrosatrás do apartamentoao lado.

me sento bebendo cerveja alemãe tento alcançaro grande poemae não irei conseguir.apenas seguirei bebendomais e mais cerveja alemãe enrolando cigarros

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e lá pelas 11 horasestarei deitadona cama desfeitaolhando para cimaacordado sob a luzelétricaesperando ainda pelo poemaimortal.

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a garota no banco da parada de ônibus

eu a vi quando eu estava na pista da esquerdaindo a leste pela Sunset.ela estava sentadaas pernas cruzadaslendo um livro de bolso.era italiana ou indiana ougregae enquanto eu estava parado no sinal vermelhovez ou outra um ventoerguia sua saia,eu tinha a visão desimpedida,revelandopernas da mais imaculada perfeiçãoque eu jamais vira.sou essencialmente tímidomas olhei e fiquei olhandoaté que uma pessoa no carro atrás de mimcomeçou a buzinar.

isso nunca tinha acontecido dessamaneira.dei a volta na quadrae estacionei numa vaga dosupermercadobem em frente ao lugar em que ela estavade óculos escuroseu não deixava de olharcomo um colegial em sua primeiraexcitação.

memorizei seus sapatosseu vestidosuas meiasseu rosto.os carros passavam e me bloqueavama visão.então eu a via novamente.o vento erguia sua saia

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para muito além das coxase comecei a me tocar.um pouco antes do ônibus dela aparecercheguei ao orgasmo.senti o cheiro do meu espermasua umidade em meu calçãoe cueca.

era um ônibus branco e feioe a levou embora.

dei a ré no estacionamentopensando, eu sou um voyeur pervertidomas ao menos não meexpus.

sou um voyeur pervertidomas por que elas fazem isso?por que têm essa aparência?por que deixam o vento soprarassim?

ao chegar em casatirei a roupa e fui para o banhosaí enrolado natoalhaligueias notíciasapaguei as notíciaseescrevi este poema.

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voltando para onde eu estava

eu costumava retirar a parte de trásdo telefone e enchê-la com trapose quando batiam à portaeu me fingia de morto e se eles persistissemmandava-os em termos vulgares para aquelelugar.

apenas mais um velho malucocom asas de ourouma pança branca e flácidamaisum par de olhos capaz de nocautearo sol.

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um casal adorável

eu tinha que dar uma cagadamas em vez disso fuiaté essa loja parafazer uma chave.a mulher usava um vestidode algodão e cheiravaa rato almiscarado.“Ralph”, ela urroue, seu marido,um porco velho numacamisa floridacalçando um sapato 39apareceu e ela disse,“esse homem queruma chave”.ele começou a afiá-lacomo se realmente não quisessefazer aquilo.havia sombrasfurtivas e urinano ar.segui ao longo dobalcão de vidro,apontei e chamei amulher,“ei, eu quero esteaqui”.ela me alcançou oobjeto: um canivetenum estojo de um púrpuraclaro.US$ 6.50 mais as taxas.a chave custoupraticamentenada.peguei o troco esaí em direçãoà rua.

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algumas vezes você precisade gente desse tipo.

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a noite mais estranha que de fato você já viu...

eu tinha esse quarto da frente na DeLongpree costumava me sentar por horasdurante o diaolhando pela janelada frente.havia um número incontável de garotas quepassavamrebolando;aquilo salvava minhas tardes,acrescentava algo à cerveja e aoscigarros.

certo dia eu vi alguma coisaa mais.escutei primeiro o som.“vamos lá, empurrem!”, ele disse.era uma enorme tábuacom 1 metro de largura por20 de comprimento;com rodinhas atarraxadas às extremidadese ao meio.ele puxava pela frenteusando duas longas cordas presas à tábuae ela ia atráscontrolando a direção e também empurrando.todos os seus bens estavam atados àquelatábua:potes, panelas, colchas e tudo o maisamarrado à tábuabem preso;e as rodinhas rangiam.

ele era branco, um colono, umsulista –magro, curvo, as calças a pontode cair e revelarseu rabo –o rosto rosado pelo sol e

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vinho barato,e ela negracaminhando aprumadaempurrando;ela era simplesmente maravilhosade turbantegrandes brincos verdesum vestido amareloque iado pescoço aotornozelo.seu rosto estava gloriosamenteindiferente.

“não se preocupe!” ele gritou, voltando-se paraela, “alguém vainos alugar um quarto!”

ela não respondeu.

então eles desapareceramembora eu ainda ouvisseas rodinhas.

eles iriam conseguir,pensei.

tenho certeza quesim.

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numa vizinhança de assassinos

as baratas cospemclipes de papele o helicóptero descreve círculos e mais círculosem busca de sangueluzes de busca deslizando furtivas por nossoquarto

5 caras nesta área têm pistolasoutro umfacãosomos todos assassinos ealcoólatrasmas a coisa é ainda pior no hoteldo outro lado da ruaeles ficam sentados na entrada verde e brancabanais e depravadosesperando para serem institucionalizados

aqui cada um de nós tem um pequeno vasona janelae quando brigamos com nossas mulheres às 3 da manhãfalamosbaixinhoe em cada uma das varandashá um pequeno prato de comidasempre esvaziado pela manhãpresumimospelosgatos.

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soldado raso

tiraram meu homem das ruasoutro diaele usava um casaco de moletom dos L.A. Rams[5]

as mangas cortadase debaixouma camiseta do exércitosoldado rasoe ele usava uma boina verdecaminhava muito eretoera negro e vestia calções marronso cabelo de um loiro apagadonunca incomodava ninguémroubava alguns bebêse corria dando gargalhadasmas sempre retornava com as criançasilesasdormia atrás dobordelcom a permissão das garotas.a compaixão se revela emestranhos lugares.

certo dia não o vi maise depois mais outro se passou.perguntei nas redondezas.

meus impostos voltarãoa subir. o estado precisa lhedar abrigo ecomida. os policiais o pegaram.isso não ébom.

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o amor é um cão dos diabos

pé de queijoalma de cafeteiramãos que odeiam tacos de bilharolhos como clipes de papeleu prefiro vinho tintoentedio-me em aviõessou dócil durante terremotossonolento em funeraisvomito nos desfilese vou para o sacrifício no xadreze nas bocetas e nos afetoscheiro urina nas igrejasjá não consigo mais lerjá não consigo mais dormir

olhos como clipes de papelmeus olhos verdesprefiro vinho branco

minha caixa de camisinhas está passando davalidadeeu as tiro pra foraTrojan-Enz[6]

lubrificadaspara maior sensibilidadetiro todas pra forae ponho três ao mesmo tempo

as paredes do meu quarto são azuis

para onde você foi, Linda?para onde você foi, Katherine?(e Nina partiu pra Inglaterra)tenho cortadores de unhae limpa-vidros Windexolhos verdesquarto azul

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brilhante metralhadora solar

essa coisa toda é como uma focapresa em oleosas rochase cercada pela Banda Marcial de Long Beachàs 3h26 da tarde

há um tiquetaquear atrás de mimmas nenhum relógiosinto algo rastejarao longo de minha narina esquerda:memórias de aviões

minha mãe tinha dentes postiçosmeu pai tinha dentes postiçose durante todos os sábados de suas vidaseles recolhiam todos os tapetes de sua casaenceravam o chão de tabuõese o cobriam novamente com os tapetes

e Nina está na Inglaterrae Irene está no abrigo municipale eu pego meus olhos verdese me deito em meu quarto azul

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minha tiete

fiz uma leitura no último sábado nobosque para além de Santa Cruze estava a 3/4 do finalquando escutei um grito longo e desesperadoe uma jovem bastanteatraente veio correndo em minha direçãovestido longo & fogo divino nos olhose invadiu o palcoe gritou: “EU QUERO VOCÊ!EU QUERO VOCÊ! ME LEVE! MELEVE!”eu disse a ela: “olhe, fique longede mim”.mas ela continuava agarrada às minhasroupas e se esfregando emmim.“onde você estava”, eu lhe perguntei, “quando euvivia com apenas uma barra de doce por dia emandava meus contos para aAtlantic Monthly?”ela agarrou minhas bolas e quaseas arrancou. seus beijostinham gosto de sopa de merda.2 mulheres subiram no palcoea carregaram para dentro dobosque.eu ainda podia ouvir seus gritosquando comecei o poema seguinte.

talvez, pensei, eu devessetê-la possuído naquele palco na frentede todos aqueles olhos.mas alguém nunca pode ter certezase isso é boa poesia ouácido de má qualidade.

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agora, se você tivesse que ensinar escrita criativa, ele perguntou, o que vocêlhes diria?

eu lhes diria para terem um caso de amorfracassado, hemorróidas, dentes podrese beber vinho barato,para evitarem a ópera e o golfe e o xadrez,seguirem trocando a guarda de suascamas de parede em paredee depois eu lhes diria para teremoutro caso de amor fracassadoe nunca usar uma fita de seda na máquinade escrever,evitar os piqueniques em famíliaou serem fotografados em um jardim coberto derosas;para lerem Hemingway apenas uma vez,pularem Faulknerignorarem Gogololharem fixo para as fotos de Gertrude Steine ler Sherwood Anderson na camacomendo biscoitos Ritz água e sal,perceberem que as pessoas que não paramde falar sobre a liberação sexualna verdade estão mais assustadas do que vocês.para ouvirem E. Power Biggs debulhar oórgão no rádio enquanto estãofumando um Bull Durham no escuronuma cidade estranharestando apenas um dia pago de aluguelapós terem desistido de tudoamigos, parentes e empregos.jamais se considerem superiores e/ou dentro da médianem nunca tentem sê-lo.tenham um outro caso de amor fracassado.observem uma mosca sobre uma cortina de verão.jamais tentem ter sucesso.não joguem sinuca.deixem que uma fúria legítima tome conta de vocês

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quando seus carros estiverem com um pneu no chão.tomem vitaminas mas não levantem pesos nem corram.

então depois disso tudorevertam o processo.tenham um bom caso de amor.e a coisaque vocês talvez aprendamé que ninguém sabe nada –nem o Estado, nem os ratosnem a mangueira no jardim nem a Estrela Polar.e se por acaso vocês me pegaremensinando numa classe de escrita criativae me lerem este poemaeu lhes darei um A com louvorbem no olhodo cu.

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a boa vida

uma casa com 7 ou 8 pessoasvivendo alirachando o aluguel.há um estéreo nunca utilizadoe um par de bongôsnunca utilizadoe há panos cobrindo asjanelase você fumaenquanto baratas vivasescorregam sobre os botões de suacamisa e despencam nochão.

está escuro e alguém vai embusca de comida. você comee dorme. todos dormem ao mesmotempo: no chão, sobre as mesas,sofás, camas, nas banheiras. há atémesmo uma pessoa lá fora no mato.

então alguém acorda ediz, “vamos lá, vamos fecharum!”

alguns outros acordam.“opa. é isso aí.”

“beleza. vamos lá, alguém aífecha dois. vamos noschapar!”

“isso. vamos nos chapar!”

fumamos alguns baseados e depoisvoltamos a dormirtrocando apenas de lugar

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da banheira para o sofá, da mesa parao tapete, da cama para o chão, e um novosujeito desaba no matolá fora, e eles ainda nãoencontraram Patty Hearst e Tim não querfalar comAllan.

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o grego

o cara do pátio da frente não conseguefalar inglês, ele é grego, umsujeito com um aspecto um tanto estúpidoe feio que é o diabo.

agora meu senhorio resolveu pintar quadros,nada muito bom.

ele mostrou ao grego uma de suas pinturas.

o grego saiu e voltou compapéis, pincéis, tintas.

o grego começou a pintar no seu pátioda frente. ele deixa as pinturas do lado de fora prasecar.

o grego nunca havia pintado antes –agora ali estão:

um violão azuluma ruaum cavalo.

ele é bompara os seus mais de quarenta anos ele ébom.encontrou umbrinquedo.está felizagora.

então eu penso, me pergunto se ele chegará a ficarmuito bom?e me pergunto se terei que vero resto?a glória e as mulheres e as mulheres eas mulheres e as mulheres e

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a decadência.

quase posso farejar os sanguessugas formandouma fila à esquerda.

veja bem,eu mesmo já estou ligado a ele.

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meus camaradas

aquele ali ensinaaquele outro vive com a mãe.e aquele outro é sustentado por um pai alcoólatra e

[rubicundodono de um cérebro de mutuca.aquele ali toma boletas e vem sendo sustentado pelamesma mulher há 14 anos.aquele outro escreve um romance a cada dez diasmas ao menos paga o próprio aluguel.aquele ali vai de lugar em lugardormindo em sofás, bebendo e proferindo seusdiscursos.aquele ali imprime seus próprios livros numa máquinacopiadora.aquele outro vive num vestiário abandonadonum hotel em Hollywood.aquele parece saber como arranjar tostão depois de tostão,sua vida é um preencher de formulários.aquele ali simplesmente é rico e vive nos melhoreslugares enquanto bate às melhores portas.aquele lá tomou café com William CarlosWilliams.e aquele ali ensina.e aquele lá ensina.e aquele ali publica livros de autoajuda sobre como fazeras coisas e usa uma voz dominadora e cruel.

eles estão em todo o lugar.todos são escritores.e quase todo escritor é um poeta.poetas poetas poetas poetas poetas poetaspoetas poetas poetas poetas poetas poetas

a próxima vez que o telefone tocarserá um poeta.a próxima pessoa a bater à portaserá um poeta.aquele ali ensina

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e aquele outro vive com a mãee aquele lá está escrevendo a história deEzra Pound.oh, irmãos, somos as mais doentes eas piores criaturas da raça.

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alma

oh, como eles se preocupam com minhaalma!recebo cartaso telefone toca…“você vai ficar bem?”perguntam.“ficarei bem”, eu lhes digo.

“já vi tantos se afundarem na sarjeta”,eles me dizem.“não se preocupem comigo”, digo.ainda assim me deixam nervoso.entro e tomo uma chuveiradasaio e espremo uma espinha donariz.então vou até a cozinha e preparoum sanduíche de salame e presunto.eu costumava viver de doces baratos.agora tenho mostarda alemã importadapara passar no sanduíche. devo estar em perigopor causa disso.

o telefone segue tocando e as cartas seguemchegando.

se você vive dentro de um armário na companhia de ratose come pão velhoeles gostam de você.você passa a ser umgênio.

ou se está num manicômio oudetido numa delegaciaeles o chamam de gênio.ou se você está bêbado e não para de gritarobscenidadesvomitando as tripas no

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chãovocê é um gênio.

mas experimente pagar o aluguel um mêsadiantadovestir um novo par de meiasir ao dentistafazer amor com uma garota limpa e saudávelem vez de pegar uma putae você vendeu suaalma.

não estou minimamente interessado em perguntar comovão suas almas.suponho que era o que eu deveriafazer.

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uma mudança de hábito

Shirley chegou à cidade com uma perna quebradae conheceu o chicano que fumavalongos charutos slime eles foram morar juntosna Beacon Street5º andar;a perna não atrapalhavamuito eeles assistiam televisão juntose Shirley cozinhava, demuletas e tudo;havia um gato, Bogey,e eles tinham alguns amigose falavam sobre esportes e Richard Nixone de como era difícil tocaras coisas.funcionou por alguns meses,Shirley se livrou até do gesso,e o chicano, Manuel,conseguiu um emprego no Biltmore,Shirley costurava todos os botões caídosdas camisas de Manuel, remendava e emparelhava as meiasdele, entãoum dia Manuel retornou para casa, eela havia sumido –sem discussão, sem bilhete, apenassumira, levando todas as roupase pertences, eManuel sentou-se junto à janela e olhou para a ruae não foi ao trabalhona manhã seguinte nemna outra e nemna outra,sequer ligou para avisar,perdeu o emprego,recebeu uma multa por estacionamento proibido, fumouquatrocentos e sessenta cigarros, foipreso por embriaguez, saiu por

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fiança, foia julgamento e se confessouculpado.

quando o aluguel venceu elese mudou da Beacon Street,deixou o gato e foi viver comseu irmão eos dois enchiam a caratodas as noitese falavam sobre o quãoterrívelera a vida.

Manuel jamais voltou a fumaraqueles longos charutos slimporque Shirley sempre diziacomoele ficava bonitocom eles na boca.

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sempre tive problemas comdinheiro.num dos lugares em que trabalheitodos comiam cachorro-quentee batatas fritasna cantina da empresa3 dias antes de cadapagamento.eu queria uns bifes,cheguei inclusive a procurar o gerenteda cantina eexigir que ele servisseuns bifes. ele se recusou.

Eu esqueci do dia do pagamento.eu tinha um alto grau de indiferença eo dia do pagamento chegava e todosnão falavam em outracoisa.“pagamento?” eu dizia, “diabo, hoje é dia dereceber? me esqueci de pegar meuúltimo cheque...”

“pare de falar merda, cara...”

“não, não, é sério...”

eu me erguia e ia até o caixae claro que o cheque estava láe na volta eu o mostravaa todos eles. “Jesus Cristo, esqueci completamentedo negócio...”

por alguma razão isso os deixavafuriosos. então o funcionário do caixaaparecia. eu tinha doischeques. “Jesus”, eu dizia, “dois cheques”.

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e eles ficavamfuriosos.alguns deles mantinhamdois empregos.

No pior dos diaschovia pesadamenteeu não tinha uma capa de chuva entãovesti um velho casaco que eu não usava haviameses echeguei um pouco atrasadoquando eles já estavam no batente.procurei por cigarros nos bolsose num deles encontrei uma nota decinco dólares:“ei, vejam”, eu disse, “acabo de encontrar cinco pratasque eu não sabia que tinha, quebeleza”.

“ei, cara, não venha com essamerda!”

“não, não, estou falando sério, de verdade, lembrode ter vestido este casaco quandoestava bêbado e vagando de barem bar. já me tomaram dinheiro muitas vezes,fiquei desconfiado... tiro o dinheiro daminha carteira e o escondo emoutras partes.”

“sente de uma vez e comece atrabalhar.”

meti a mão num bolso interno:“ei, vejam, tem um VINTÃO aqui! Deus, não sabiaque tinha este VINTÃO!estouRICO!”

“ninguém está achando graça, seufilho da puta...”

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“ei, meu Deus, aqui tem mais OUTRAde vinte! é muita, muita muitagrana... eu sabia que não tinha gasto todo odinheiro naquela noite. pensei que tinham melevado os cobres outra vez...”

continuei vasculhando ocasaco. “ei, aqui tem uma de dez eaqui mais um cinquinho! meu Deus...”

“escute, já disse pra você sentare calar a boca...”

“meu Deus, estou RICO... não preciso nem maisdeste emprego...”

“cara, senta aí...”

achei mais outra de dez depois que me senteimas não dissenada.podia sentir as ondas de ódio eestava confuso,eles achavam que eu tinhaarmado toda aquela históriaapenas para fazê-los sesentirem mal. não era o que euqueria. pessoas que tem que passar a cachorros-quentes ebatatas fritas por3 dias antes de sair o pagamentojá se sentem mal osuficiente.

sentei-meinclinei-me para a frente ecomecei atrabalhar.

do lado de foracontinuavachovendo.

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sentado numa lancheria

minha filha é a maiordas glórias.comíamos um lanchepara viagem em meu carroem Santa Mônica.eu digo, “ei, filha,minha vida tem sidoboa, tão boa”.ela me olha.baixo minha cabeçacontra o volante,tremo, depoisabro a porta de supetão,finjovomitar.me endireito.ela rimordendo seusanduíche.pego quatrobatatas fritascoloco-as em minha boca,mastigo-as.são 5h20 da tardee os carros passam voando por nóspra lá e pra cá.lanço um olhar furtivo:tivemos toda a sorte deque precisamos:seus olhos brilhamenquanto o diacai, e ela estásorrindo.

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danação e hora da sesta

meu amigo está preocupado com a morte

ele vive em Friscoeu em L.A.

ele vai à academia epuxa uns ferros e dá golpesnum grande saco.

a velhice o diminui.

não pode beber por causado fígado.

consegue fazer50 flexões.

ele me escrevecartasme dizendoque sou o único queo escuta.

claro, Hal, eu lhe respondonum cartão-postal.

mas não quero gastartoda essa grana em academia.

vou para a camacom um sanduíche delinguiça de fígado e cebolaà uma hora da tarde.

depois de comertiro um cochilo

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com os heli-cópteros e os abutrescirculando sobre meucolchão de molas deformado.

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tão louco quanto sempre fui

bêbado e escrevendo poemasàs 3 da manhã.

o que importa agoraé mais umabocetaapertada

antes que a luzse apague

bêbado e escrevendo poemasàs 3h15 da manhã.

algumas pessoas me dizem que soufamoso.

o que estou fazendo sozinhobêbado e escrevendo poemas às3h18 da manhã?

sou tão louco quanto sempre fuieles não entendemque não parei de me pendurar pelos calcanharesda janela do 4º andar –eu ainda o façoagora mesmoaqui sentado

ao escrever estas linhasestou pendurado pelos calcanharesvários andares acima:68, 72, 101,a sensação é amesma:implacávelbanal e

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necessária

aqui sentadobêbado e escrevendo poemasàs 3h24 da manhã.

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sexo

vou pela avenida Wiltonquando esta garota de uns 15 anosvestida com um jeans apertadoque se cola ao seu rabo como duas mãospula na frente do meu carroparo e deixo ela cruzar a ruae enquanto olho suas curvas ondulantesela me olha direto através dopara-brisacom olhos púrpurase então faz brotarpara fora da bocaa maior bola de chicletecor-de-rosaque eu jamais vienquanto escuto Beethovenno rádio do carro.ela entra numa merceariae se vaie eu fico abandonado com oLudwig.

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já morreu

sempre quis transar comHenry Miller, ela disse,mas quando cheguei láera tarde demais.

diabos, eu disse, vocêssempre chegam tarde demais, garotas.hoje já me masturbeiduas vezes.

não era esse o problema dele,ela disse. a propósito,como você consegue batertantas?

é o espaço, eu digo,todo o espaço entreos poemas e os contos, éintolerável.

você deveria esperar, ela disse,você é impaciente.

o que você pensa de Céline?perguntei.

queria transar com ele também.

já morreu, eu disse.

já morreu, ela disse.

importa-se de ouvir umamusiquinha? perguntei.pode ser legal, ela disse.

dei-lhe Ives.

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Era tudo que me restavanaquela noite.

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gêmeos

ei, disse o meu amigo, quero que você conheçaHangdog Harry, ele me lembra você,e eu disse, tudo bem, e fomos atéesse hotel ordinário.velhos assistiam sentadosum programa de tevê no saguãoenquanto subíamos a escadaaté o 209 e lá estava Hangdogsentado numa cadeira de palhauma garrafa de vinho aos seus péso calendário do ano passado na parede,“sentem-se, rapazes”, ele disse,“este é o problema:a desumanidade do homem com o próprio homem”.ficamos vendo ele enrolar umcigarro Bull Durham.“tenho um pescoço de 40 cm e matareitodos que quiserem foder comigo.”deu uma lambida no cigarroe depois cuspiu no tapete.“sintam-se em casa. fiquem à vontade.”

“como está se sentindo, Hangdog?” perguntoumeu amigo.

“terrível. estou apaixonado por uma prostituta,não a vejo há 3 ou 4 semanas.”

“o que você acha que ela está fazendo, Hang?”

“bem, neste exato momento eu diriaque ela está chupando algum caralho.”

ele apanhou a garrafa de vinhoe deu uma tremenda enxugada.

“veja”, disse meu amigo a Hangdog,

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“temos que ir”.

“certo, o tempo e a maré, ambos nãoesperam...”

ele me olhou:“como disse que era seu nome mesmo?”

“Salomski.”

“prazer em conhecer você, rapaz.”

“o prazer foi meu.”

descemos a escadaeles continuavam no saguãoassistindo tevê.

“o que você achou dele?”perguntou meu amigo.

“porra”, eu disse, “ele era realmenteum cara legal. com certeza.”

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o lugar não parecia mau

ela tinha coxas colossaise uma risada muito gostosaria de qualquer coisae as cortinas eram amarelase eu gozeie rolei para o ladoe antes que ela fosse ao banheiropuxou um pano de baixoda cama e me jogou.estava duroenrijecido pelo esperma de outroshomens.limpei-me no lençol.

ao retornarela se curvoue pude ver todo seu traseiroenquanto ela colocava um Mozartpara tocar.

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as garotinhas

lá no norte da Califórniaele estava de pé no púlpitoe estivera lendo por algum tempopoemas sobrea natureza e a bondadedo homem.

ele sabia que tudo estavacerto e não se podia culpá-lo:ele era um professor e nuncaestivera na cadeia ou num bordelnunca tivera uma lata velha que enguiçouno meio de um engarrafamento;jamais precisara de mais de3 drinques durante sua noite maisselvagem;jamais tinha sido logrado, espancado,assaltado,nem fora mordido por um cachorroele recebia cartas bacanas de GarySnyder, e seu rosto eraamável, liso emeigo.sua esposa jamais o traíra,nem tivera sua sorte.

ele disse, “vou ler apenas mais3 poemas e entãodesço daqui e passo apalavra ao Bukowski”.

“oh, não, William”, disseram todasas garotinhas em seus vestidos rosase azuis e brancos e laranjas elavandas, “oh, não, William,leia um pouco mais, leia um poucomais”!

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ele leu mais um poema e então disse,“este será o último poema quelerei”.

“oh, não, William”, disseram todas asgarotinhas em seus vestidos transparentesvermelhos e verdes, “oh, não, William”, disseramtodas as garotinhas em seus jeans coladoscom pequenos corações a eles bordados,“oh, não, William”, disseram todas as garotinhas,“leia mais poemas, leia mais poemas!”

mas ele manteve a palavra.terminou o poema e desceu do púlpito edesapareceu. quando me levantei para leras garotinhas se agitaram emseus assentos e algumas delas assobiaram ealgumas fizeram comentários a meu respeitoque usarei em outra ocasião.

duas ou três semanas depoisrecebi uma carta de Williamdizendo que tinha gostado de fato da minha leitura.um cavalheiro de verdade.eu estava na cama de cuecas e com umaressaca de 3 dias. perdi o envelopemas peguei a carta e fiz com elaum aviãozinho como aqueles queaprendi a fazer na época docolégio. ele cruzou o quartoantes de aterrissar entre um velho programa de corridae um par de cuecas carimbadas.

não nos correspondemos desde então.

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chuva ou sol

os abutres no zoo(todos os 3)sentam-se bastante tranquilos em suaárvore enjauladae abaixono chãohá postas de carne podre.os abutres estão empanturradosnossos impostos os têm mantidobem alimentados.

seguimos para a próximajaula.um homem está alisentado no chãocomendoa própria merda.reconheço a figurade nosso antigo carteiro.sua expressão favoritasempre fora:“tenha um ótimo dia”.naquele dia, foi o que me aconteceu.

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ameixas geladas

comendo ameixas geladas na camaela me contou sobre o alemãoque era dono de toda quadraexceto da loja de tecidose de como ele tentou comprara loja de tecidosmas as garotas disseram, não.o alemão tinha a melhor mercearia emPasadena, suas carnes eram carasmas valiam o preçoe suas frutas e verduras erammuito baratas eele também vendia flores. as pessoas vinhamde toda Pasadena para ir à sualojamas ele queria comprar a loja de tecidose as garotas seguiam dizendo, não.certa noite alguém foi visto saindoa correr pela porta dos fundos da loja de tecidose então o fogo se ergueue quase tudo foi destruído –elas fizeram um tremendo inventáriotentaram salvar tudo o que tinha sobradofizeram uma liquidação de incêndiomas não funcionouelas tiveram que vender, por fim,e então o alemão comprou a loja de tecidomas a deixou lá, vazia,a esposa do alemão tentou reerguer o negóciotentou vender pequenas cestas e outras quinquilhariasmas não funcionou.

terminamos as ameixas.“é uma história triste”, eu lhe disse.então ela se inclinou e começou a me chupar.as janelas estavam abertas e meus gritospodiam ser ouvidos por toda vizinhançaàs 5h20 de um fim de tarde.

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garotas voltando para casa

as garotas voltam para casa em seus carrose eu me sento à janela eassisto.

há uma garota num vestido vermelhodirigindo um carro brancohá uma garota num vestido azuldirigindo um carro azulhá uma garota num vestido rosadirigindo um carro vermelho.

quando a garota no vestido vermelhodesce do carro brancoeu olho para suas pernas

quando a garota no vestido azuldesce do carro azuleu olho para suas pernasquando a garota no vestido rosadesce do carro vermelhoeu olho para suas pernas.

a garota no vestido vermelhoque desceu do carro brancotinha as melhores pernas

a garota no vestido rosaque desceu do carro vermelhotinha pernas razoáveis

mas sigo lembrando da garota no vestido azulque desceu do carro azul

vi suas calcinhas

você não sabe o quão excitante a vida pode serpor volta

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das 5h25 da tarde.

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certo piquenique

que me lembra quetrepei com Jane por 7 anosela era uma bêbadaeu a amava

meus pais a odiavameu odiava meus paisfazíamos um ótimoquarteto

certo dia fomos a um piqueniquejuntoslá nas montanhase jogamos carta e bebemos cerveja ecomemos salada de batata

por fim eles a trataram como se ela fosse umapessoa de verdade

todos riameu não.

mais tarde na minha casauísque na cabeçaeu lhe disse,não gosto delesmas é bom que tenham tratado vocêbem.

seu idiota, ela disse,será que não percebeu?

percebi o quê?

eles não tiravam os olhos da minha barriga de cerveja,pensaram que eu estava grávida.

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oh, eu disse, então brindemos à nossa belacriança.

à nossa bela criança,ela disse.

viramos os copos.

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penicos

nos hospitais em que estivevocê vê as cruzes nas paredescom as finas folhas de palma atrás delasamareladas e escurecidas

é o sinal para aceitar o inevitável

mas o que realmente machucasão os penicosduros debaixo da sua bundavocê está à beira da mortee tem que dar um jeito de sentar sobre essacoisa impossívele urinar edefecar

enquanto isso na camaao lado da suauma família de 5 traz mensagens de esperançapara um caso incurávelde doença cardíacacâncerou putrefação generalizada.

o penico é uma pedra impiedosauma horrorosa zombariaporque ninguém quer arrastar seu corpo agonizanteaté o banheiro e voltar.

você se arrastamas eles mantêm as barras erguidasvocê está no seu leitoseu minúsculo leito de mortee quando a enfermeira voltauma hora e meia depoise não há nada no penicoela o encara com seu mais

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imoderado olhar

como se à beira da mortealguém estivesse apto a fazeras coisas mais comunsvez após vez.

mas se você pensa que isso é ruimapenas relaxee deixe a coisa virtodanos lençóis

então você ouviránão só da enfermeiramas tambémde todos os outros pacientes...

a parte mais complicada de morreré que eles esperam que vocêse vácomo um disparo em direção aocéu noturno

algumas vezes isso pode ser feito

mas quando você precisar da bala na espingardaolharáe descobriráque os fios sobre sua cabeçaconectados anos atrásao botãoforam cortadosretalhadoseliminadostransformadosem algotão inútil quantoo penico.

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o bom perdedor

a face vermelhado Texasmais a idadeele está num hipódromode L.A.falando comum grupo de pessoas.é o 4º páreoe ele está pronto prapartir:“bem, até mais,camaradas, que Deus os abençoe,vejo vocêsamanhã...”

“um cara bacana.”“é.”

ele segue para oestacionamento paraentrar num carro de12 anos

dali ele seguirápara uma pensão

seu quarto não teránem toalete nemchuveiro

seu quarto teráuma janela com umapersiana de papel rasgadae do lado de fora haveráuma parede de cimento descascadagrafitada por cortesiade uma gangue de jovem chicanos

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ele tirará ossapatos edeitará

estará escuromas ele não acenderáa luz

ele não tem nadaa fazer.

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uma arte

todo o percurso desde o Méxicodiretamente do campopara 14 vitórias13 por nocaute.ele estava em 3º no rankinge numa luta preliminarfoi nocauteado por um lutador negroque nem estava ranqueado e que não lutavahá 2 anos.

todo o percurso desde o Méxicodiretamente do campo.a bebida e as mulheres acabaramcom ele.na revanche ele foi mais uma vez nocauteadoe suspenso por 6 meses.

todo esse percursopelo trago e 2 casos dedoença venérea.

retornou um ano depoisjurando que estava limpo, que tinhaaprendido a lição.e conseguiu arrancar um empate com o9º do ranking de sua divisão.

retornou para a revanchee a luta foi interrompidano 3º assalto porque elenão conseguia maisse proteger.

e ele refez todo o percurso de voltaaté o Méxicodiretamente para o campo.

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é preciso um poeta fodãocomo eupara conseguir lidar com as bebidas e as mulheresescapar das doenças venéreasescrever sobre fracassoscomo o delee manter minha posição entre os10 primeiros do ranking:todo o percurso desde a Alemanhadiretamente das fábricasentre garrafas de cervejae a campainha dotelefone.

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as garotas do hotel verde

são mais bonitasque estrelas de cinemae elas se espreguiçam nogramadotomando banho de sole uma está sentada com um vestidocurto e saltosaltos, as pernas cruzadasexpondo coxasmiraculosas.ela usa uma bandanana cabeçae fuma umcigarro comprido.o tráfego fica lentoquase para.

as garotas ignoramo tráfego.estão pachorrentasno meio da tardesão putassão putas semalmae são mágicaspois mentema troco de nada.

entro no meu carroespero o tráfegoliberar,cruzo a ruaem direção ao hotel verdeà minha favorita:elase bronzeia nogramado próxima aomeio-fio.

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“olá”, eu digo.ela me volta seusolhos de falsosdiamantes.seu rosto não temexpressão.

lanço meu mais recentelivro de poemaspela janela docarro.ele caiao lado dela.

engato aprimeira,me afasto.

haverá algumasrisadasesta noite.

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um bom sujeito

recebo telefonemasdemais.eles procurampela criatura.não deviam fazer isso.

nunca liguei paraKnut Hamsun ouErnie ouCéline.

nunca liguei paraSalingernunca liguei paraNeruda.

esta noite recebiuma chamada:

“olá. você éCharles Bukowski?”

“sim.”

“bem, eu tenho umacasa.”

“e?”

“um bordel.”

“entendo.”

“li seuslivros. tenhoum puteiro num barco emSausalito.”

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“beleza.”

“quero lhe passar o meunúmero de telefone. quandovocê vier a San Francisoeu lhe pago um drinque.”

“certo. me passa onúmero.”

anotei-o.

“mantemos um negócio de categoria. estamosem busca de advogados e senadores,cidadãos da elite, assaltantes,cafetões, e por aí vai.”

“eu ligo pra você quandoestiver por aí.”

“boa parte das garotaslê seus livros. elaso amam.”

“sério?”“sério.”

nos despedimos.

gostei daquelaligação.

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hora da cagada

meio bêbadodeixei a casa delasuas cobertas quentese eu estava de ressacanão sabia sequer que cidade eraaquela.saí caminhando sem conseguirachar meu carro.mas eu sabia que ele tinha que estar em algum lugar.e logo eu também estavaperdido.caminhei a esmo. era amanhã de uma quarta-feira e eu podiaver o oceano ao sul.mas toda aquela bebida:a merda estava prestes a escorrerpara fora de mim.segui em direção aomar.avistei uma estrutura de tijolosmarrons nos limitesda rebentação.entrei. havia umvelho gemendo em umdos reservados.“olá, meu chapa”, ele disse.“olá”, eu disse.“está um inferno lá fora,não?”, o velhoperguntou.“sim”, respondi.“precisa de um trago?”“nunca bebo antes do meio-dia.”“que horas você tem aí?”“11h58”“temos dois minutos.”me limpei, dei a descarga, subi minhascalças e me afastei.

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o velho continuava no seu reservado,gemendo.apontou para uma garrafa de vinhojunto a seus pésquase vaziae eu a apanhei e tomei cerca de metadedo que ainda restava.estiquei para ele uma nota de dólar, velha eamassadaentão segui para o lado de fora e vomiteinum gramado.olhei para o oceano e ooceano parecia bom, cheio de azuis everdes e tubarões.saí dali e refiz o caminhoaté a ruadeterminado a encontrar meu automóvel.custou-me uma hora e quinze minutose quando finalmente consegui encontrá-loentrei e dei a partidafingindo saber tanto quantoo homemao lado.

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loucura

não bato com meus punhos nas paredesapenas sentomas a loucura entra de assaltouma maré de loucura.

a mulher do quintal dos fundos urra,chora todas as noites.às vezes a polícia chegae a leva por um ou dois dias.

eu acreditava que ela sofria com a perdade um grande amoraté que um dia ela superou aquilo e me contousua história –ela perdera 8 apartamentospara um gigolô que a havia logrado e ficadocom eles.ela urrava e chorava por causa da perda das propriedades.começou a soluçar enquanto me contava aquiloentão com uma boca cheirando a alho e cebolasdelineada com um batom vencidoela me beijou e disse:“Hank, ninguém te ama se você não tiver dinheiro”.

ela é velha, quase tão velha quanto eu.

ela se foi, ainda chorosa...

na manhã seguinte às 7h20 dois enfermeiros negrosapareceram com uma maca,só que bateram na minha porta.

“vamos lá, cara”, disse o mais alto.“esperem”, eu disse, “isso é um engano.”

eu estava numa terrível ressacaparado com meu roupão surrado

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os cabelos caindo sobre os olhos.

“este é o endereço que nos deram, cara,aqui não é o 5437?”

“sim.”

“vamos lá, cara, não foda com a gente.”

“a mulher que vocês querem mora lá nos fundos.”

os dois contornaram o pátio.

“esta porta aqui?”

“não, não, esta é a minha porta dos fundos. olhem, subam esses degraus atrás de vocês. é aporta da direita, a que está com a caixa do correio pendurada.”

eles foram até lá e bateram na porta. eu vi os dois a levaremconsigo. não usaram a maca. ela seguiu entre eles.e me passou rapidamente a impressão de que estavam

[levandoa pessoa errada, mas não tive certeza.

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um poema de 56 anos

segui com duas damasaté Venicepara dar uma olhada nuns móveis antigos.estacionei no fundo da lojae entrei com elas.US$ 125 por um relógio, US$ 700 por 6 cadeiras.parei de olhar.

as damas circulavamolhando tudo.tinham classe.me despedi de uma delase dei o fora.

era domingo e o barnão estava muito melhor,todos nervosos e jovense loiros e pálidos.terminei minha bebida, peguei 4 cervejasna loja de conveniênciase sentei em meu carro para bebê-las.

ao terminar a 4ª cervejaas damas apareceram.perguntaram-me se eu estava bem.eu lhes disse que toda experiênciaera válidae que elas me haviam tirado demeu habitualmente negro estado deespírito.

a que eu conhecia melhor havia comprado uma mesacom tampo de mármore por US$ 100.ela possuía seu próprio negócio e era umapessoa civilizada.civilizada o suficiente para conhecer um vizinhoque tinha uma van

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e enquanto eu estava acomodado em seu apartamento[bebendo

um Zeller Schwarze Katz 1974eles foram apanhar a mesa.

mais tarde ela quis saber a minha opinião sobrea mesa e eu disse que me parecia bacana,às vezes eu perdia cem pratas noscavalinhos. assistimos tevê na cama e mais tardenaquela noite eu não consegui gozar. pensei que eraporque não conseguia deixar de pensar na mesa de

[mármore.tinha certeza de que era isso. eu não possuía nenhuma

[antiguidadeem mármore na minha casa, quase nunca tive problemas

[sexuais naminha casa. algumas vezes, masmuito raramente.não consigo entender toda essa função deantiguidades

tenho certeza de que é uma gigantescavigarice.

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a bela jovem passando pelo cemitério –

paro meu carro no semáforovejo-a passando pelo cemitério –

enquanto ela segue junto à grade de ferroposso ver para além das barrasvejo as lápidese o gramado verde.

o corpo dela se mexe em frente à grade de ferroas lápides não se mexem.

penso,será que mais alguém vê isso?

penso,será que ela vê essas lápides?

se vê,ela possuiu uma sabedoria de que não disponhopois parece ignorá-las.

seu corpo se move commágica fluideze sua longa cabeleira é iluminadapelo sol das 3 da tarde.

o sinal mudaela cruza a rua na direção oestedirijo para oeste.

sigo costeando o oceanodesçoe corro pra lá e pra cáem frente ao mar por 35 minutosvendo pessoas aqui e acolácom olhos e ouvidos e dedose várias outras partes.

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ninguém parece se importar.

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cerveja

não sei quantas garrafas de cervejaconsumi esperando que as coisasmelhorassem.não sei quanto vinho e uísquee cervejaprincipalmente cervejaconsumi depoisde rompimentos com mulheres –esperando o telefone tocaresperando o som dos passos,e o telefone nunca tocaantes que seja tarde demaise os passos nunca chegamantes que seja tarde demais.quando meu estômago já está saindopela bocaelas chegam frescas como flores de primavera:“mas que diabos você está fazendo?vai levar três dias antes que você possa me comer!”

a mulher é durávelvive sete anos e meio a maisque o homem, bebe muito pouca cervejaporque sabe como ela é ruim para aaparência.

enquanto enlouquecemoselas saemdançam e riemcom caubóis cheios de tesão.

bem, há a cervejasacos e mais sacos de garrafas vazias de cervejae quando você pega umaas garrafas caem através do fundo úmidodo saco de papelrolando

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tilintandocuspindo cinza molhadae cerveja choca,ou então os sacos caem às 4 horasda manhãproduzindo o único som em sua vida.

cervejarios e mares de cervejacerveja cerveja cervejao rádio toca canções de amorenquanto o telefone permanece mudoe as paredes seguemparadas e estáticase a cerveja é tudo o que há.

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artista

de súbito me torno um pintor.uma garota de Galveston me dáUS$ 50 por um quadro de um homemsegurando uma bengala doce enquantoflutua por um céu escuro.

então um jovem com uma barba negraaparecee eu lhe vendo três por US$ 80.ele gosta de telas grosseirasnas quais escrevo coisas como –“cague” ou “GRANDE ARTE ÉBOSTA DE CAVALO, COMPRE TACOS”.

posso fazer um quadro em 5 minutos.uso tinta acrílica, direto dotubo.pinto o lado esquerdo do quadroprimeiro com minha mão esquerda e depoistermino o lado direito com minhamão direita.

agora o jovem barbudoretorna com um amigo com um cabelotodo espetado e eles trazem uma loirinhacom eles.

o barba negra continua sendo o mesmo otário:vendo-lhe um punhado de merda –um cachorro laranja com a palavra“CACHORRO” escrita ao seu lado.

o cabelos espetados quer 3 quadrospelos quais peço US$ 70.ele não tem a grana.fico com as telas masele promete me mandar uma

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garota chamada Judyde cinta-liga e saltos altos.ele já lhe contou sobre mim:“um escritor de fama internacional”, ele dissee ela respondeu, “oh, não!” e puxouseu vestido sobre sua cabeça.“eu quero isso”, eu lhe disse.

depois discutimos as condiçõeseu queria comê-la primeiroe depois receber um boquete.“que tal o boquete primeiro edepois a foda?”, ele perguntou.

“isso não funciona”, eudisse.

então chegamos a um acordo:Judy viria até aqui edepoiseu alcançaria a ela as3 pinturas.e assim estamos:de volta ao escamboo único modo de vencer ainflação.

apesar dissogostaria deiniciar aqui o Movimento pela Libertação Masculina:quero uma mulher que me dê 3 desuas pinturas após fazeramor comigo,e se ela não souber pintarpode me deixarum par de brincos de ouroou talvez um pedaço de orelhaem homenagem àquele queera capaz.

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meu velho

16 anos de idadedurante a depressãocheguei em casa bêbadoe todas as minhas roupas –calções, camisas, meias –pastas, e páginas decontostinham sido jogadas forasobre o gramado da frente e narua.

minha mãe estava meesperando atrás de uma árvore:“Henry, Henry, nãoentre... ele vaimatar você, leusuas histórias...”

“posso chutar abunda dele...”

“Henry, pegue issopor favor... eprocure um quarto para você.”

mas o que o preocupava eraque eu talvez nãoterminasse o colegialentão eu voltariaoutra vez.

uma noite ele entroucom as páginas deum dos meus contos(que eu nunca submeti a ele)e disse, “este éum grande conto”.

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eu disse, “ok”e ele me alcançoue eu li.era uma história sobreum homem ricoque teve uma briga comsua esposa e sefoi pela noiteatrás de uma xícara de cafée ficou observandoa garçonete e as colherese garfos e osal e o pimenteiroe o letreiro de néonna janelafoi então que voltoupara seu estábulopara ver e tocar seucavalo favoritoquedeu-lhe um coice na cabeçae o matou.

de alguma maneiraa história em suas mãostinha um significado para eleapesarde que quando a escrevinão tinha nenhuma ideiaa respeito do quetratava.

então eu lhe disse,“ok, velho, você podeficar com ela”.e ele a pegoue caiu forae fechou a porta.acho que foio mais próximoque jamais estivemos.

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medo

ele se aproxima do meu Fuscadepois que já estacioneie segue pra láe pra cárindo ao redor de seucharuto.

“ei, Hank, tenho reparadonas mulheres que têm frequentadosua casa ultimamente... só coisafina; você está fazendo seu trabalhodireitinho.”

“Sam”, eu digo, “isso não éverdade; sou um dos homens mais solitáriosque Deus pôs neste mundo.”

“temos umas garotas bacanas noputeiro, você devia experimentar umadelas.”

“tenho medo desses lugares,Sam, não posso nem entrar.”

“eu lhe mando uma garota então,artigo de luxo.”

“Sam, não me mande uma puta,eu sempre me apaixono porelas.”

“certo, amigo”, ele diz,“me avise se mudarde ideia.”

eu o vejo se afastar.alguns homens estão sempre

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no controle do seu jogo.para mim, a maior parte do tempoé confusão.

ele pode partir um homemao meioe não sabe quem éMozart.

de todo modoquem quer ouvirmúsicanuma noite chuvosa dequarta-feira?

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pequenos tigres por toda parte

Sam, o putanheiro,tem sapatos que estalame ele caminha pra lá e pra cápelo quintalestalando e conversando comos gatos.pesa 140 quilos,um assassinoe conversa com os gatos.ele frequenta as mulheres na casade massagem e não tem namoradasou automóvelnão bebe ou se chapaseus maiores vícios sãomastigar um charuto ealimentar todos os gatosda vizinhança.algumas das gatas ficamprenhese depois por fim aparecemmais e mais gatos etoda a vez que abro minha portaum ou dois gatos entramcorrendo e algumas vezes acaboesquecendo que eles estão ali eeles cagam debaixo da camaou me desperto no meio da noitecom sons estranhospulo da cama com minha facaentro na cozinha e láestá um dos gatos de Sam, o putanheiro,circulando em voltada pia ou sentado sobrea geladeira.Sam administra o puteiroda esquinae suas garotas ficam paradasna varanda ao sol

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e o semáforo vai dovermelho ao verde e do vermelho ao verdee todos os gatos do Sampossuem parte do significadoassim como fazem os dias e as noites.

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depois da leitura:

“...já vi pessoas em frente asuas máquinas de escrever em tal apertoque faria com que seus intestinos explodissemcu afora se estivessemtentando cagar.”

“ah hahaha hahaha!”

“...é uma vergonha trabalhar assimtão pesado só para escrever.”

“ah hahaha hahaha!”

“a ambição raramente tem alguma coisaa ver com o talento. é melhor ter sorte, edeixar o talento vir manquejando logoatrás da sorte.”

“a haha.”

ele se levantou e deixou o lugar com uma virgem de 18 anos,a mais linda estudante entretodas.fechei meu bloquinhome ergui e manquejeilogo atrás dosdois.

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sobre guindastes

às vezes, após você ter recebidodas forças um belo chute no rabo

você costuma desejar ser um guindasteestendido sobre uma perna

na água azul

mas há sempreavelha questãoque você conhece:

você não quer serum guindasteestendido sobre uma perna

na água azul

o infortúnio não ésuficiente

e

a vitóriaclaudica

um guindaste não podepagar por um rabo

ou

vadiar às tardesem Monterey

essas são algumas

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das coisas

que os humanos podem fazer

além deficar sobre uma perna só

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um relógio de bolso dourado

meu avô era um alemão altocom um cheiro estranho no hálito.ele permanecia muito eretoem frente à sua casinhae sua esposa o odiavae seus filhos o achavam estranho.eu tinha seis anos a primeira vez que nos vimose ele me deu todas as suas medalhas de guerra.na segunda vez que nos vimosele me deu seu relógio de bolso dourado.era muito pesado e eu o levei para casae dei corda bem fortee ele parou de funcionaro que me fez sentir mal.nunca mais voltei a vê-loe meus parentes nunca falavam delenem mesmo minha avóque muito tempo atrásdeixou de viver em sua companhia.uma vez perguntei por elee me disseramque bebia demaismas na melhor imagem que guardo deleele está muito eretoem frente a sua casae dizendo, “olá, Henry, vocêe eu, nós nosconhecemos”.

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viagem à praia

os homens fortesos homens musculososlá na praia elesse sentambronzeados como chocolateos pesosespalhados ao seu redor eintocados

ficam sentados enquantoas ondas avançam erecuam

ficam sentados enquanto omercado de açõesergue e destróihomens e famílias

ficam sentados enquantoum apertar de botãopoderia transformarseus caralhosem palitos de fósforospretos e enrugados

ficam sentados enquantosuicidas em quartos verdesos trocam por espaço

ficam sentados enquanto antigasMiss Américaschoram diante de espelhosenrugados

ficam sentadosficam sentados com menosvivacidade que macacos

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e minha mulher para eos olha:“uuuu uuuu uuuu”, eladiz.

me afasto comminha mulher enquanto as ondasavançam e recuam.

“há alguma coisa erradacom eles”, ela diz, “o queé?”

“o amor deles só corre emuma direção.”

as gaivotas giram eo mar avança e recua

e nós os abandonamoslá atrásdesperdiçando o tempo que lhesrestao momento presenteas gaivotaso mara areia.

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um poema para o engraxate

o equilíbrio é preservado pelas lesmas que escalam osrochedos de Santa Mônica;a sorte está em descer a Western Avenueenquanto as garotas numa casa demassagem gritam para você, “Alô, Doçura!”o milagre é ter 5 mulheres apaixonadaspor você aos 55 anos,e o melhor de tudo isso é que você só é capazde amar uma delas.a bênção é ter uma filha mais delicadado que você, cuja risada é mais leveque a sua.a paz vem de dirigir umFusca 67 azul pelas ruas como umadolescente, o rádio sintonizado em O Seu ApresentadorPreferido, sentindo o sol, sentindo o sólido roncardo motor retificadoenquanto você costura o tráfego.a graça está na capacidade de gostar de rock,música clássica, jazz...tudo o que contenha a energia original dogozo.

e a probabilidade que retornaé a tristeza profundadebaixo de você estendida sobre vocêentre as paredes de guilhotinafurioso com o som do telefoneou com os passos de alguém que passa;mas a outra probabilidade –a cadência animada que sempre se segue –faz com que a garota do caixa nosupermercado se pareça com aMarilyncom a Jackie antes que levassem seu amante de Harvardcom a garota do ensino médio que sempreseguíamos até em casa.

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lá está a criatura que nos ajuda a acreditarem alguma coisa além da morte:alguém num carro que se aproximanuma rua muito estreita,e ele ou ela se afasta para que possamospassar, ou se trate do velho lutador Beau Jack[7]

engraxando sapatosapós ter queimado todo seu dinheiroem festasmulheresparasitasbufando, respirando junto ao couro,dando um trato com a flanelaos olhos erguidos para dizer:“mas que diabos, por um momentotive tudo. isso compensa todo oresto.”

às vezes sou amargomas no geral o sabor tem sidodoce. é apenas que tenhomedo de dizê-lo. é comoquando sua mulher diz,“fala que me ama”, evocê não consegue.

se você me vir sorridenteem meu Fusca azulaproveitando o sinal amarelodirigindo firme em direção ao solestarei mergulhado nosbraços de umavida insana

pensando em trapezistas de circoem anões com enormes charutosnum inverno na Rússia no início dos anos 40em Chopin com seu saco de terra polacanuma velha garçonete que me traz uma xícaraextra de café com um sorrisonos lábios.

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o melhor de vocême agrada mais do que pode imaginar.os outros não importamexcetuado o fato de que eles têm dedos e cabeçase alguns deles olhose a maioria deles pernase todos elessonhos e pesadelose uma estrada a seguir.

a justiça está em toda parte e não descansae as metralhadoras e os coldres eas cercas vão lhe dar provadisso.

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[1] No original, T.M., abreviatura de Transcendental Meditation, literalmente Meditação Transcendental. (N.T.)[2] Ácido nicotínico. Um tipo de vitamina do complexo B. (N.T.)[3] Bairro negro de Los Angeles onde ocorreu um sério distúrbio de ordem racial. (N.T.)[4] Escritora famosa por sua beleza, uma espécie de celebridade-socialite de sua época. (N.T.)[5] Time de futebol americano da cidade. (N.T.).[6] Marca de camisinhas americanas. (N.T.)[7] Peso leve americano. Duas vezes campeão mundial. (N.T.)

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Charles Bukowski

CHARLES BUKOWSKI nasceu a 16 de agosto de 1920 em Andernach, Alemanha, filho de umsoldado americano e de uma jovem alemã. Aos três anos de idade, foi levado aos EstadosUnidos pelos pais. Criou-se em meio à pobreza de Los Angeles, cidade onde morou porcinquenta anos, escrevendo e embriagando-se. Publicou seu primeiro conto em 1944, aos 24anos de idade. Só aos 35 anos é que começou a publicar poesias. Foi internado diversas vezescom crises de hemorragia e outras disfunções geradas pelo abuso do álcool e do cigarro.Durante a sua vida, ganhou certa notoriedade com contos publicados pelos jornais alternativosOpen City e Nola Express, mas precisou buscar outros meios de sustento: trabalhou catorzeanos nos Correios. Casou, teve uma filha e se separou. É considerado o último escritor“maldito” da literatura norte-americana, uma espécie de autor beat honorário, embora nuncatenha se associado com outros representantes beats, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg.

Sua literatura é de caráter extremamente autobiográfico, e nela abundam temas epersonagens marginais, como prostitutas, sexo, alcoolismo, ressacas, corridas de cavalos,pessoas miseráveis e experiências escatológicas. De estilo extremamente livre e imediatista,na obra de Bukowski não transparecem demasiadas preocupações estruturais. Dotado de umsenso de humor ferino, auto-irônico e cáustico, ele foi comparado a Henry Miller, Louis-Ferdinand Céline e Ernest Hemingway.

Ao longo de sua vida, publicou mais de 45 livros de poesia e prosa. São seis os seusromances: Cartas na rua (1971), Factótum (1975), Mulheres (1978), Misto-quente (1982),Hollywood (1989) e Pulp (1994). Bukowski publicou em vida oito livros de contos ehistórias: Ereções, ejaculações e exibicionismos (1972), Ao sul de lugar nenhum: históriasda vida subterrânea (1973), Tales of Ordinary Madness (1983), Hot Water Music (1983),Bring Me Your Love (1983), Numa fria (1983), There’s No Business (1984) eSeptuagenarian Stew (1990). Seus livros de poesias são mais de trinta, entre os quais Flower,Fist and Bestial Wail (1960), You Get So Alone at Times that It Just Makes Sense (1996),sendo que a maioria permanece inédita no Brasil. Várias antologias, além de livros depoemas, cartas e histórias foram publicados postumamente.

Da sua vasta obra, os seguintes títulos são publicados no Brasil pela L&PM Editores:Pulp, Hollywood, A mulher mais linda da cidade, Numa fria, Notas de um velho safado, Ocapitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio (com ilustrações deRobert Crumb) e Ereções, ejaculações e exibicionismos, sob os dois volumes intituladosFabulário geral do delírio cotidiano e Crônica de um amor louco.

Bukowski morreu de pneumonia, decorrente de um tratamento de leucemia, na cidade deSan Pedro, Califórnia, no dia 9 de março de 1994, aos 73 anos de idade, pouco depois determinar Pulp.

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Texto de acordo com a nova ortografia.

Título original: Love is a Dog from Hell

Este livro foi publicado em formato 14x21cm pela L&PM Editores em 2007

Tradução: Pedro GonzagaCapa: Ivan Pinheiro Machado sobre foto de Charles BukowskiPreparação de original: Bianca PasqualiniRevisão: Jó Saldanha e Fernanda Cavagnoli

CIP-BRASIL. Catalogação-na-FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

B949a

Bukowski, Charles, 1920-1994O amor é um cão dos diabos / Charles Bukowski; tradução Pedro Gonzaga. – Porto Alegre, RS: L&PM Editores, 2011.(Coleção L&PM POCKET, v.888)

Tradução de: Love is a Dog From HellISBN 978.85.254.2246-0

1. Poesia inglesa. I. Gonzaga, Pedro. II. Título. II. Série07-3704. CDD: 821CDU: 821.111-1

© 1977, Charles Bukowski

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