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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA DE HUMBERTO DE CAMPOS MARCOS ANTONIO MAIA VILELA SALVADOR – BA 2009

A Protoficção científica de Humberto de Campos Marcos A... · Humberto de Campos, destacaremos a presença de textos que utilizaram temas e formas antecipatórias das principais

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Page 1: A Protoficção científica de Humberto de Campos Marcos A... · Humberto de Campos, destacaremos a presença de textos que utilizaram temas e formas antecipatórias das principais

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL

A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA DE HUMBERTO DE CAMPOS

MARCOS ANTONIO MAIA VILELA

SALVADOR – BA2009

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MARCOS ANTONIO MAIA VILELA

A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA DE HUMBERTO DE CAMPOS

Orientador: Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) do Departamento de Ciências Humanas (DCH – I) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudo de Linguagens.

SALVADOR – BA2009

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FICHA CATALOGRÁFICAElaboração: Biblioteca Central da UNEB

Bibliotecária: Helena Andrade Pitangueiras– CRB: 5/536

Vilela, Marcos Antonio Maia. A protoficção cientifica de Humberto de Campos/ Marcos Antonio Maia Vilela – Salvador, 2009. 139 f. Orientador: Prof. Dr. Silvio Roberto dos Santos Oliveira Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. Campus I. Contém referências e anexos.

1. Campos, Humberto de – 1886 – 1934 – crítica e interpretação. 2. Ficção cientifica brasileira. I. Oliveira, Silvio Roberto dos Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 809

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Às crianças nordestinas que, à noite, se sentam no batente de

suas casas, ignorando o desencanto, as promessas perdidas,

os desalentos, e olham para um céu estrelado com o desejo de

um dia chegarem à Lua.

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AGRADECIMENTOS

Considero as personagens desta seção como partes da pedra fundamental

que sustentou o desenvolvimento de todo o trabalho que aqui se encontra

encadernado. Afinal, em dois anos, obtive contato com muitas pessoas, perdi o

contato com outras; mas a lembrança da existência de todas continuará em minha

memória e ficará carinhosamente registrada nestas folhas de papel.

Agradeço a Deus, Mestre compassivo, por sempre acompanhar as minhas

jornadas e viagens, cumprindo a promessa de estar sempre presente independente

das circunstâncias e peripécias deste pupilo sempre desatento.

Agradeço aos meus pais e a toda minha família pela paciência e carinho.

Meu reconhecimento e admiração ao amigo e Prof. Sílvio Oliveira, por me

ajudar a entender e a “desentender” uma série de teorias e comportamentos,

fazendo com que, através de seus gestos, eu não me esquecesse de trilhar o

caminho da serenidade e solidariedade.

À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) pela bolsa

de mestrado concedida em meados de 2008, com a qual pude prosseguir a árdua

jornada iniciada em 2007.

Aos membros da banca, Profa. Dra. Maria do Socorro Silva Carvalho e Prof.

Dr. Roberto Henrique Seidel, pela leitura interessada e atenciosa do texto na

qualificação e pelas preciosas sugestões que tentei seguir na finalização do

trabalho.

Ao escritor Roberto de Sousa Causo, pelo incentivo, envio de materiais,

leitura e comentários sobre meus textos.

Aos colegas mestrandos e professores do PPGEL, pela oportunidade de

compartilhar vários momentos de alegria, descontração e discussões teóricas

importantes.

A Cláudia Norete (GG) e a Manoel Barreto (Mané), confrades da “Sociedade

dos Anéis”, com os quais compartilhei as conquistas, alegrias e resenhas escritas

nos “Livros de Atas dos Anafóricos Acadêmicos Alienígenas”.

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A Camila e Danilo, funcionários do PPGEL, pela gentileza e atenção com que

sempre dirimiam as dúvidas sobre processos e prazos.

A Profa. Márcia Rios da Silva, que com seu olhar e dedicação ao ensino me

fascinou, desde a graduação, com a Teoria da Literatura e as definições de imagem

poética.

Às amigas Sueli Santana e Joise Rêgo, por terem me acolhido na cidade de

Salvador de forma admirável, me emprestando um lar para repousar, trabalhar e

criar feriados. Além disso, agradeço por terem me presenteado com a alegria da

“minha preta” Raianna, sobrinha que me deixava sem palavras para a pergunta: “- e

agora, a gente vai fazer o quê?”.

Um agradecimento carinhoso a Telma Barbosa, amiga incomparável, sempre

presente e pronta para festejar a vida.

Ao meu irmão Rafael Garrido, pela paciência em ouvir e pelos sábios

ensinamentos que fui recolhendo de suas palavras trovejadas e atitudes sempre

marcantes.

Ao meu irmão Paulo Vilela, pela solidariedade e paciência com este irmão

mais velho e “sem juízo”, que às vezes enviava e-mails contendo histórias um pouco

absurdas.

A Camila Oliveira, “menina bordada de flor”, por ter colorido meus dias nos

momentos finais da produção desta dissertação.

Às inesquecíveis amigas Elielza Amorim e Vandelma Santos, por permitirem

que eu compartilhasse dos temores, sustos e alegrias de uma vida “vertiginosa”, que

sempre rendia muitas interjeições.

À grande amiga Seli de Jesus, minha “guru espiritual”, pelos momentos de

conversa ao redor da “mesa branca” e inúmeros exemplos de firmeza, coragem,

determinação e muita alegria.

A Priscila, mãe de Vinícius, pela presença nos momentos alegres e tristes de

minha vida, compartilhando uma amizade eterna.

Aos colegas e amigos do Instituto Cultural Steve Biko, onde pude me

aproximar mais fortemente de minhas raízes étnicas, contribuindo, um pouco, com

aquilo que aprendi em breves andanças.

A todas as pessoas que permanecem em minha vida, ou que um dia

passaram por ela, e que juntas compõem o eu que hoje sou.

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As fantasias desse feitio, para serem duradouras, devem ter, no entanto, outra finalidade, que não seja apenas recrear o espírito. [...] É essa crítica ao mundo real, através de um mundo imaginado, que dá eternidade às criações absurdas. (grifo nosso)

(CAMPOS, Humberto de. Crítica 3ª Série. São Paulo: W. M. Jackson, 1960, p.34)

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RESUMO

Os contos de Humberto de Campos (1886-1934), escritos no início do século XX, contribuem para a análise das construções ideológicas e culturais que circulavam no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, daquela época. Ao recorrer a construções ficcionais situadas entre a fantasia da especulação do futuro e a realidade do cotidiano, Humberto de Campos construiu um tipo de texto que, considerando as análises teóricas de Bráulio Tavares e Roberto Sousa Causo, se definiu, neste estudo, como “protoficção científica”: uma escrita que garante possibilidades de discussão sobre a realidade brasileira a partir de representações do imaginário de modernidade presentes nos elementos que caracterizam um texto de ficção científica. Com base nessas reflexões, este trabalho analisou as imagens de modernização, descrições do avanço tecnológico e contradições da cultura brasileira em textos de Humberto de Campos. Os contos utilizados nesta pesquisa foram: “Os sábios selenitas” e “Entre o que foi e o que virá”, publicados após a morte do autor, em 1935, no livro “Lagartas e libélulas”; e “Os olhos que comiam carne”, publicado em 1932 na coletânea “O monstro e outros contos”.

Palavras-chave: Humberto de Campos. Ficção científica. Modernização. Literatura brasileira.

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ABSTRACT

The tales of Humberto de Campos (1886-1934), written in the early twentieth century, contribute to the analysis of ideological and cultural constructions that circulated in Brazil, especially in Rio de Janeiro, that time. By using a fictional buildings located between the fantasy of speculation of the future and the reality of daily life, Humberto de Campos built a kind of text which, from the theoretical analysis by Roberto de Sousa Causo and Bráulio Tavares, is defined, in this study, as "scientific protofiction": a text that shows some possibilities for discussion on the Brazilian from the imaginary representations presented in the elements of modernity that characterize a text of science fiction. Based on these observations, this work will examined the images of modernization, technological advancement and descriptions of the contradictions of Brazilian culture in the texts by Humberto de Campos. The tales were: Os sábios selenitas and Entre o que foi e o que virá published after the author's death, in 1935, in the book Lagartas e libélulas and Os olhos que comiam carne, published in 1932 in the collection O monstro e outros contos.

Key-words: Humberto de Campos. Science fiction. Modernization. Brazilian literature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................11

1 FANTASIAS NO CARNAVAL DE ESCRITAS........................................................23

1.1 Presenças na literatura brasileira.............................................................23

1.2 As multifaces de Humberto de Campos...................................................31

1.3 Definições e pré-histórias da ficção científica no Brasil............................40

2 HUMBERTO DE CAMPOS: TRAJETÓRIAS E NOVOS MUNDOS........................49

2.1 Fragmentos de azulejos............................................................................49

2.2 Trajetórias e movimentos de translação...................................................52

2.3 Novos mundos: viagens e fantasias.........................................................58

3 IMAGENS DO FUTURO: VÁRIAS METÁFORAS...................................................66

3.1 A ficção científica como metáfora do contraste........................................66

3.2 Imagens em trânsito.................................................................................73

3.3 Pamórfio, Babel e as torres modernas......................................................77

3.3.1 O caos do futuro: Pamórfio..........................................................78

3.3.2 O fim da civilização: A Torre de Babel.........................................81

3.4 Em busca de retornos no processo de mutação.......................................84

3.5 Contrastes em desenvolvimento...............................................................89

4 A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA E A PROBLEMATIZAÇÃO DA SOCIEDADE......96

4.1 A cidade.....................................................................................................96

4.2 A civilização.............................................................................................105

4.3 O homem.................................................................................................115

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................123

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................125

ANEXOS...................................................................................................................130

Obras de Humberto de Campos....................................................................131

Os sábios selenitas........................................................................................133

Entre o que foi e o que virá............................................................................137

Os olhos que comiam carne..........................................................................140

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INTRODUÇÃO

O texto que agora entregamos à leitura é devedor de um trabalho de pesquisa

que possuía reflexões teóricas e análises inicialmente desenvolvidas no projeto de

Iniciação Científica (IC), no curso de Licenciatura em Letras da Universidade do

Estado da Bahia, vinculado ao Departamento de Educação, campus de Alagoinhas.

Com duração de um ano (2005-2006), o subprojeto intitulado “O científico e a

invenção na Literatura Brasileira” fazia parte do projeto global: “Outras Literaturas:

Linguagens marginadas e re-apropriações culturais”, ambos orientados pelo Prof.

Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira. As atividades desenvolvidas durante a

vigência desse subprojeto contaram com o financiamento de uma bolsa de IC da

Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (FAPESB), no mesmo período (2005 –

2006). Em 2007, aprovado na seleção do Programa de Pós-Graduação em Estudo

de Linguagens, o projeto de pesquisa “A protoficção científica de Humberto de

Campos” compõe o projeto “TEAFRO: culturas minoritárias na literatura e outras

linguagens”, liderado também pelo Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira. Em

2008, o projeto passou a contar com o auxílio financeiro (bolsa de mestrado) da

FAPESB.

No subprojeto de Iniciação Científica “O científico e a invenção na literatura

brasileira”, pudemos investigar as relações entre a ciência e as representações

desta enquanto temática dos textos literários. Com base em leituras e debates no

interior do projeto, começamos a perceber a presença de uma literatura de fantasia

e ficção científica entre os escritores brasileiros desde fins do século XIX. As

considerações finais surgidas na pesquisa geraram novas inquietações que foram se

robustecendo na continuidade das análises, configurando o anteprojeto de pesquisa

apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens e a

consequente dissertação.

Durante nossas pesquisas em textos críticos sobre a ficção científica no

Brasil, deparamo-nos com uma série de escritores pertencentes ao cânone que se

experimentaram no gênero de fantasia, mas que por algum motivo se encontravam

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distantes das discussões acadêmicas. Um destes escritores era Humberto de

Campos, objeto do presente estudo. O relatório final da iniciação científica negou a

impossibilidade de o Brasil possuir textos de fantasia e ficção científica1, pois, de

acordo com os textos analisados, esse tipo de escrita já existia em nossa literatura,

mesmo que a representação de ciência, lá encontrada, fosse traduzida através de

uma abordagem fantástica (ou fantasiosa).

Segundo o relatório final de IC, a idéia de ficção científica está registrada na

literatura brasileira mesmo que a aparição e presença de tecnologias e

equipamentos não obtivessem tratamento semelhante à orientação da época, tal

como fizeram Jules Verne e H. G. Wells na Europa. Ao tomar como pressupostos

iniciais as informações de Bráulio Tavares2 no artigo A Origem da Ficção Científica

no Brasil, passamos a buscar os textos de Humberto de Campos que foram citados

como precursores da escrita de ficção científica no país. A partir desse momento,

verificamos que os escritores, nas primeiras décadas do século XX, demonstraram

interesse pelas idéias daquilo que mais tarde seria definido especificamente como

gênero de ficção científica.

O artigo de Bráulio Tavares deu-nos um grande número de pistas sobre as

temáticas abordadas por Humberto de Campos e nos levou ao contato com a

compilação das Obras Completas do escritor. Encontramos nas Obras não somente

os textos citados por Tavares, mas uma série de outros que explicitam em sua

temática a constante problematização do futuro, a relação do homem com a ciência

e as aparições e contradições de um tipo de sociedade mais civilizada que outra.

Essa descoberta, aliada aos resultados do subprojeto de IC, propiciou a construção

do projeto de pesquisa para o mestrado no qual nos propúnhamos a desenvolver as

relações entre texto e sociedade por meio das imagens literárias e da ideologia de

modernização que circulou no Brasil no início do século XX; relações marcadas pela

escrita de Humberto de Campos.

A escolha dos textos críticos aqui apresentados, notadamente aqueles que

discutem a presença da ficção científica no Brasil, obedece a um pressuposto que

para nós é bastante claro. Embora não sejam reconhecidos pela Academia ou pela

disciplina dos estudos literários, esses escritores possuem um contato muito próximo 1 Apoiado, sobretudo, nos textos teóricos de Bráulio Tavares (1993), Roberto Causo (2003) e nos textos literários de Aluísio Azevedo (Demônios, 1895), Afonso Schimdt (Zanzalás, 1938) e Humberto de Campos (Os olhos que comiam carne, 1932).2 TAVARES, Bráulio. As Origens da Ficção Científica no Brasil. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993.

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com a produção de ficção científica em nosso país, teorizando sobre o gênero,

escrevendo textos ficcionais e organizando coletâneas de textos de diversos

autores. Bráulio Tavares e Roberto Causo, por exemplo, detêm uma vasta

experiência consolidada na publicação de textos, possuindo uma (in)fluência no

debate das obras entre os leitores e fãs da ficção científica no Brasil. Esses

escritores acompanham a história do gênero no país e conhecem as discussões

atuais da ficção científica em nossa literatura, permitindo que seus textos também

sejam citados em outras produções acadêmicas3. As análises dos momentos da

literatura de ficção científica no Brasil e os desdobramentos das proposições críticas

apresentadas por estes escritores permitem-nos mantê-los presentes em nosso

discurso.

Diante das diferentes abordagens sobre a ficção científica4, percebemos que

o termo ainda permanece sem um lugar teórico que consiga abarcar todas as suas

especificidades. Escritores, a exemplo de Tvetzan Todorov5, preferem localizar o

termo como um subgênero da literatura fantástica ao relacioná-lo com as definições

e características do Fantástico. Roberto Causo6 prefere utilizar o termo “ficção

especulativa” ao invés de ficção científica por compreender que desse modo constrói

uma definição de texto que apresenta expectativas para o futuro ao mesmo tempo

em que mantêm conexões com narrativas “míticas, satíricas, utópicas,

romanescas”7. De acordo com Bráulio Tavares, a opção por “ficção especulativa” foi

adotada anteriormente pelo escritor americano Robert Heinlen8 na intenção de

classificar um texto que apresentasse hipóteses fictícias sobre o futuro e nesse

sentido pudesse afastar a necessidade de relacionar a literatura de ficção científica

com a ciência vigente, “real”.

A ficção especulativa, segundo Roberto Causo, apresenta uma criação

hipotética de realidades, através de soluções tecnológicas e descrições de 3 Podemos exemplificar a utilização das discussões destes escritores nas dissertações de mestrado de Suzane Lima Costa (COSTA, Suzane Lima. Ficção Científica no Brasil: configurações de uma arte ciber-barroca. Salvador, 2006. 180f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal da Bahia), Fabiana da Câmara Gonçalves Pereira (PEREIRA, Fabiana da Câmara Gonçalves. Fantástica Margem – O Cânone e a Ficção Científica Brasileira. Rio de Janeiro, 2005. 156f. Dissertação (Mestrado), Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro)4 Encontraremos estudos de ficção científica voltados às produções cinematográficas, quadrinhos, música, produtos publicitários, artes visuais, metodologia do ensino das ciências e, por fim, literatura.5 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.6 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.7 Idem, p.45.8 TAVARES. Bráulio. O que é Ficção Científica. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção Primeiros Passos)

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ambientes e habitantes em um universo paralelo, que talvez pudessem vigorar no

futuro da humanidade. Com base nessas definições, percebemos que uma das

possibilidades de compreender o foco temático da ficção científica está na

abordagem e realce dos processos de modernização e suas contradições no interior

da sociedade. Contradições verificadas através do contato da humanidade com os

avanços tecnológicos e científicos. Ainda de acordo com Causo, o caráter

“especulativo” seria uma forma de abarcar e ampliar as relações entre os textos de

ficção científica com a literatura de horror, policial e mitológica.

Bráulio Tavares também nos diz que os textos de ficção científica não se

preocupam em apresentar enredos nos quais a ciência tenha absoluta

exclusividade. Esses textos apresentam uma versão de ciência fundamentada em

uma “fantasia” sem limites e responsabilidades com a ciência “real”9. O texto é

composto por uma série de elementos e cenários que fazem parte do cabedal

teórico da ciência, mas tampouco a narrativa ou o autor buscam qualquer explicação

ou relação coerente e consistente com a ciência conhecida e aclamada na realidade

empírica. Por exemplo, a narrativa de Herbert George Wells não se preocupa em

relacionar empiricamente a ciência da época com a possibilidade dos paradoxos

temporais, manipulações genéticas, criação de materiais e compostos químicos. No

entanto, contatando os textos, percebemos a presença da figura do cientista que,

através de explicações bem particulares e usando um linguajar típico da ciência,

demonstra e comprova no próprio enredo quais são os produtos utilizados nos

experimentos, o funcionamento de máquinas e equipamentos.

Na percepção desse pequeno distanciamento entre fantasia e realidade,

devemos observar o vínculo da ficção científica com o elemento fantástico tal como

fora definido por Tvetzan Todorov10. Segundo o teórico, na estrutura do texto literário

podemos verificar representações do desconhecido que permitem a hesitação do

leitor frente à narrativa, causando assim uma expectativa acerca do

desenvolvimento do enredo. Ao analisarmos a ficção científica, entendemos que o

futuro desconhecido das civilizações inspiraria nos leitores o medo do porvir. Os

escritores utilizam esse mote ao descreverem outra realidade (futura ou paralela)

com elementos próprios do ambiente de modernização e “evolução” da ciência na

humanidade. Essa descrição causa uma hesitação nos leitores quanto à realidade e

9 TAVARES. Bráulio. O que é Ficção Científica. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção Primeiros Passos).10 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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às consequentes hipóteses que estão associadas a ela naquilo que está sendo

narrado. Queremos dizer com isso que, a partir do movimento existente no interior

da própria sociedade, o escritor encontra e constrói algumas de suas inquietações,

transmitindo-as aos seus leitores.

Para Todorov, o sentimento do fantástico causado pela hesitação dissolveria-

se com a finalização da narrativa e os esclarecimentos imprescindíveis à

compreensão dos eventos. O leitor relacionaria o esclarecimento dos fatos

vivenciados em sua própria realidade com a realidade descrita e os personagens do

texto, desfazendo a dúvida e admitindo hipóteses. Na ficção científica, a realidade

descrita aproxima-se em alguns aspectos da realidade do leitor, mas não permite a

finalização completa da expectativa do desconhecido. Howard Phillips Lovecraft11

apresenta o medo do desconhecido, proporcionado ao leitor através da escrita,

como um dos elementos fundamentais da literatura fantástica. Segundo o autor, a

presença do medo seria verificada intrinsecamente na própria narrativa e no modo

como o narrador apresenta os cenários, acontecimentos intrigantes e situações “fora

do comum”. O medo existe, para o leitor, quando se é possível enxergar na narrativa

a probabilidade de que os fatos absurdos e sobrenaturais aconteçam na realidade. A

dúvida no texto permite criar uma reflexão acerca do contato entre os espaços e

realidades experimentadas pelo leitor, em seu próprio cotidiano, frente à narrativa

ficcional.

A aproximação entre a literatura brasileira e a escrita fantástica pode ser

percebida em alguns momentos do romantismo, desde meados do século XIX. Lá,

veremos alguns exemplos de textos fantásticos que não estiveram presos a uma

rigidez conceitual quanto ao gênero, tampouco constituíram uma “escola literária”

brasileira específica. Na Europa, a presença de uma escrita que se valia de termos

cientificistas e temas no âmbito da ciência, como nos textos de Jules Verne (França)

e H.G. Wells (Inglaterra), era discutida enquanto os textos circulavam no Brasil com

um número razoável de leitores. Acreditamos que esses textos trouxeram uma série

de contribuições no diálogo com a literatura brasileira, especificamente com os

textos de Humberto de Campos e o imaginário de modernidade em circulação no

Brasil.

11 LOVECRAFT. Howard Philips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.

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O discurso pretensamente cientificista que essas produções nacionais

apresentava dedicava-se à exposição de uma realidade sócio-econômica

desenvolvida e altamente civilizada. Em seus textos, alguns escritores e intelectuais

brasileiros12 aliaram a ideologia da modernização e a “necessidade” de a sociedade

adentrar no “universo” dos avanços da ciência junto aos países mais desenvolvidos.

Desta maneira, buscaram referenciais culturais e científicos no exterior,

principalmente na França, para adequar a nova leitura que se pretendia associar à

República recém-instituída. As disposições literárias constituídas ao longo deste

período resultariam em um modo de pensar o desenvolvimento científico e

tecnológico do Brasil que pode ser verificado na leitura e interpretação do real feita

por alguns escritores no início do século XX, dentre eles Humberto de Campos.

Se observarmos os parâmetros utilizados pelo cânone para identificar

“esteticamente” os textos de Humberto de Campos com o desenvolvimento científico

e tecnológico do país, teremos alguns problemas, pois não conseguiremos associar

diretamente a obra de Campos como pertencente a este ou aquele “movimento

literário” específico. Primeiramente, porque o escritor publicou mais de 30 livros –

entre contos, crônicas, poesias, textos memorialistas, biografias e críticas literárias,

– implicando uma produção multifacetada quanto à temática e à forma. Em segundo

lugar, parece-nos que Humberto de Campos, talvez por exercer a função de

jornalista, não estivesse engajado na constituição de um programa literário

específico e não se preocupasse em formar um coro com seus pares da Literatura

em prol da validação de algum tipo de “estética”. Sua escrita, essencialmente

recolhida dos jornais, talvez seja um dos elementos que o afastaram dos

paradigmas do cânone literário.

Vale notar que o foco do nosso trabalho está situado em um reduzido número

dos textos, frente ao universo geral da obra do escritor. Isso impede-nos

estabelecer ou reconhecer um rótulo geral para essa escrita de acordo com as

terminologias definidas pelo cânone. A escolha dos textos que compõem o nosso

trabalho permite apenas desenvolver a compreensão de um aspecto da escrita de

Campos, o que não invalida outras análises futuras acerca de sua obra completa.

Por isso, não podemos rotular toda a obra de Humberto de Campos como

“protoficção científica”, ou classificá-lo como um escritor de ficção científica, mas

12 Nicolau Sevcenko apresenta Olavo Bilac e vários cronistas e jornalistas do início do séc. XX como fomentadores dos ideais de modernização.

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podemos perceber algumas das facetas existentes no âmbito geral de sua obra.

Acreditamos que, ao revisitar as produções dele, ainda distantes das discussões

acadêmicas, contribuímos para o enriquecimento dos estudos sobre a literatura

brasileira do início do século em questão.

Humberto de Campos publicou a maioria de seus textos nos jornais de grande

circulação do Rio de Janeiro. Mesmo com uma população considerável de

analfabetos no início do século XX, ele despertava constantemente o interesse de

novos leitores, alcançando uma parte cada vez maior da população letrada13. A

linguagem dos textos, o fato de serem publicados em periódicos e a ampla aceitação

do público leitor fazem-nos pensar na possibilidade de tratarmos com uma espécie

de literatura voltada para as massas, que atendia à rapidez do consumo de

informações e lazer atrelado aos objetivos financeiros do escritor, que se mantinha

com essas publicações.

A partir de algumas crônicas escritas por Campos, sabemos que os leitores

sempre se comunicavam com ele através de cartas enviadas aos jornais, nas quais

se pediam conselhos e discutiam os textos e comentários publicados nos dias

anteriores14. Essa atitude fornecia ao escritor alguns temas a serem tratados em

seus textos posteriores e assim alimentava a relação entre o produtor e o

consumidor dos textos, além de trazer e permitir leituras da realidade com base em

outras perspectivas.

A linguagem utilizada nos textos nos faz perceber diretamente a opção do

escritor por uma escrita mais acessível ao grande público, apresentando temáticas

bem próximas às discussões do cotidiano. Ao lidar dia-a-dia com as mesmas

inquietações dos leitores, Humberto de Campos parece se apropriar de um

arcabouço imaginário que traduz algum tipo de anseio, crítica ou comprovação dos

fatos experimentados na realidade. Dessa forma, percebemos em Campos uma

escrita na qual se deixam escapar ironias, imagens e representações da

13 De acordo com Múcio Leão e Alexandre Caroli Rocha, muitos dos textos de Humberto de Campos publicados nos jornais foram recolhidos e publicados em coletâneas que alcançaram um grande número na tiragem e edições. Os textos foram publicados, inclusive, em outros estados brasileiros,devido ao grande interesse pelos escritos de Campos.14 Nas Obras Completas, encontramos crônicas em que Humberto de Campos responde a alguns de seus leitores ou menciona-os através de comentários e referências, além de agradecê-los por algum tipo de recomendação, sugestão ou crítica. Podemos citar como exemplos as crônicas Aos amigos da Baía, Resposta a uma carta, Bálsamo para um coração, Carta a Maria Cerqueira, Carta a um noivo, Carta a um viúvo, Carta a um cidadão de dez anos, Carta ao Dr. Juiz de menores, Carta a duas Marias, entre outros.

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contemporaneidade do início do século XX, do mesmo modo que em outros

escritores inseridos pelo cânone.

Tais escritores mantinham-se em sintonia com os paradigmas de legitimação

do processo desencadeado pela elite econômica, política e cultural em direção ao

avanço industrial e à consolidação de um pensamento modernizante no Brasil

republicano. A intenção inicial de cronistas e jornalistas da época localizava-se no

desligamento total dos paradigmas coloniais15 sem romper com os modelos advindos

da “Metrópole”, através do contínuo processo de modernização vigente na Europa. A

elite buscava decalcar uma imagem de civilização culta apoiada nos moldes

europeus, imprimindo a necessidade de se implementar na cidade do Rio de Janeiro

uma série de projetos que tinham como objetivo favorecer o desenvolvimento

tecnológico e industrial do país. Consequentemente, o objetivo era o de instituir no

imaginário nacional um status de civilização “avançada e próspera”.

Essas conjecturas acerca dos aspectos de uma vida social “mais civilizada” e

de indivíduos comprometidos com a idéia de progresso habilitavam os escritores e

críticos a algumas leituras e interpretações da realidade um pouco mais fantasiosas

que outras, embora todas estivessem atreladas a uma conjuntura real: seja social,

econômica ou cultural. Os textos literários, ao aproveitarem os conhecimentos

divulgados da ciência, voltavam-se para uma descrição subjetiva pautada na

proliferação de imagens localizadas numa sociedade em busca da “evolução” e da

“civilidade”. Com base nestes anseios, podemos encontrar na própria literatura

algumas hipóteses sobre o desenvolvimento de tecnologias para a sociedade, que

tentavam deslocar a visão dos sujeitos para o futuro, sem que eles se distanciassem

do presente.

As idealizações acerca do futuro, orientadas pelo desenvolvimento científico,

permitiam a criação de narrativas literárias a partir de imagens e objetos

tecnológicos que chegavam abruptamente ao conhecimento da população

brasileira16. O conhecimento sobre o futuro no interior do enredo literário poderia ser

apresentado sob o olhar crítico do narrador ou em uma atitude insistente de

aclamação do desenvolvimento sócio-econômico que a modernização tencionava

trazer à sociedade brasileira. Mesmo situados em uma ambientação futurística, os

15 SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.16 Idem, O Prelúdio republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (História da vida privada no Brasil)

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textos utilizavam como temática e provocação os males sociais comuns àquela

época, – permitindo, em uma leitura contemporânea, a percepção de constantes

interrogações ideológico-culturais, pautadas em um “estilo” científico e civilizado de

vida e que afligiam vários setores da vida na sociedade. Essas narrativas traziam –

ao destacar o método “científico” de compreensão do mundo como mola propulsora

para o avanço da civilização – uma crítica irônica, até mesmo humorística, a seu

elogio.

Os textos de Humberto de Campos propiciam uma análise dessas

construções ideológicas e culturais que circulavam no Brasil, especificamente no Rio

de Janeiro daquela época. Os textos circulavam nos jornais paralelamente aos

discursos que habitavam no imaginário do público leitor. A escrita de Campos

recorre a algumas construções ficcionais situadas entre a presença fantasiosa das

“descobertas” da ciência e o desejo de aproximá-las da realidade. A partir das

leituras do momento histórico e literário, encontraremos no texto de Humberto de

Campos uma escrita que preferimos nomear, orientados por Bráulio Tavares, como

“protoficção científica”17. Uma escrita que, além de garantir mais uma possibilidade

de discutir a realidade brasileira, o faz a partir das representações de modernidade

presentes em elementos característicos da ficção científica, sem se constituir em

uma escrita “genuinamente” definida como ficção científica.

A partir disto, nossa intenção neste trabalho é analisar as imagens de

modernização, descrição do avanço tecnológico e críticas contidas nos textos de

Campos. Imagens que dialogam em contradições e utopias com o universo social e

cultural da modernidade brasileira. Esses textos localizam-se diante da euforia do

processo e, ao mesmo tempo, esboçam uma crítica ao demasiado desejo de

modernização industrial e a seus desdobramentos na vida social, sobretudo

referentes aos aspectos culturais daquilo que se convencionou chamar de

civilização. É o conceito de civilização e modernidade que procuramos criticar

através dos textos de Humberto de Campos. Para tanto, focalizamos nesta pesquisa

os textos: Entre o que foi e o que virá e Os sábios selenitas, publicados após a

morte do autor, em 1935, no livro Lagartas e libélulas; e Os olhos que comiam carne,

publicado em 1932 na coletânea O monstro e outros contos.

17 TAVARES, Bráulio. A Origem da Ficção Científica no Brasil. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993.

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A partir dessas reflexões, esquematizamos esta dissertação em quatro

capítulos, nos quais analisaremos a escrita de Humberto de Campos, estabelecendo

uma relação dos textos escolhidos com a definição de protoficção científica proposta

por Bráulio Tavares e Roberto Causo, além de analisar as imagens de modernidade

e a formação de uma crítica sobre o processo.

No primeiro capítulo, com intuito de localizar a obra em destaque de

Humberto de Campos, destacaremos a presença de textos que utilizaram temas e

formas antecipatórias das principais características da ficção científica na literatura

brasileira. Analisaremos também o termo “protoficção científica” de Bráulio Tavares

e Roberto Causo, o qual preferimos utilizar ao situarmos os textos de Campos, que

aqui serão analisados em diálogo com o tipo de escrita ligeira e palatável ao grande

público.

No segundo capítulo, apresentaremos algumas relações entre os textos de

Campos e as idéias de ficção científica pautadas nos modelos existentes àquela

época. Apontaremos uma breve biografia de Campos, construída com base em

escritos autobiográficos, relacionando-os a alguns textos publicados em jornais e

outros livros. Nesses textos obteremos, a partir de alguns elementos, a

compreensão de um escritor que estava ciente das imagens fantásticas que fizeram

parte do seu mundo particular de leituras.

No terceiro capítulo, apresentaremos uma análise do texto de ficção científica

como representação e contraste das realidades existentes no presente e

aguardadas para o futuro. Tomaremos como ponto inicial as imagens contidas em

seu enredo sobre a construção de uma sociedade moderna, ávida pelo

desenvolvimento e aparelhamento tecnológico que a sustentariam no futuro.

Apontaremos as concepções de Humberto de Campos sobre o futuro apoiados nas

personagens de seus textos e em símbolos existentes em outras narrativas.

Discutiremos, também, a imagem enquanto representação simbólica do que foi

vivenciado ou se vivencia, compreendendo que ela é portadora de uma ideologia

que nos oferece uma definição e comentário favorável ou crítico da realidade em

que foi construída. Ao partimos desse princípio, relacionaremos as imagens e as

concepções ideológicas que proliferavam no Brasil às suas representações de

desenvolvimento.

No quarto capítulo, passaremos a analisar os textos: Entre o que foi e o que

virá, Os sábios selenitas e Os olhos que comiam carne mediante a apresentação e

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reflexão teórica das imagens vigentes naquela realidade e explicitadas nos textos

que se relacionam com a temática principal do nosso estudo. Nesse capítulo,

contataremos outras produções que, de alguma forma, tangenciam a temática em

foco, como textos de Jules Verne, Voltaire, H. G. Wells, dentre outros. Utilizaremos

elementos desses textos que julgamos importantes na relação com os textos de

Campos frente à temática e ao modo como o escritor se comportou diante da

realidade que se construía no seu próprio texto. Teceremos algumas reflexões sobre

as construções das imagens e contradições no início do século XX e suas relações

com a contemporaneidade. Problematizaremos o uso da escrita de ficção científica

no que diz respeito à configuração criada pelo escritor para a idéia de civilização. Os

entendimentos de um país moderno e avançado serão discutidos segundo o ponto

de vista da criação de algumas imagens de futuro e civilização criticadas por

Campos e bastante atuais na discussão da contemporaneidade.

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1 FANTASIAS NO CARNAVAL DE ESCRITAS

1.1 Presenças na literatura brasileira

No artigo escrito por Bráulio Tavares1 encontramos referências sobre vários

escritores brasileiros que mantiveram algumas conexões e interesses com temas da

ficção científica (doravante FC). Essa escrita não está de acordo com o termo e as

características que foram atribuídas mais fortemente ao gênero nos anos 1950, mas

compõe um texto no qual as idéias sobre FC aparecem em estado embrionário.

Tavares expõe alguns conceitos e exemplos de escritores brasileiros de FC desde o

final do século XIX, e neles podemos verificar a presença e permanente diálogo com

temáticas produzidas fora do país. Nessa discussão, o autor nos oferece uma breve

história da origem da literatura de viés fantástico ou de FC no Brasil, adentrando ao

século XX com muitos exemplos. De acordo com Tavares, na história da literatura

brasileira podemos encontrar a presença da literatura fantástica e de FC, mesmo

que as obras e os escritores não se tenham reunido em torno de um programa

literário específico. No entanto, com a leitura dos manuais de estudos literários,

verificamos que não existe nenhuma abordagem teórica quanto à FC brasileira,

tampouco encontraremos a apresentação de escritores que se exercitaram nessa

escrita:

[...] a literatura fantástica tem uma longa tradição em nosso país, mesmo não tendo recebido dos críticos e historiadores de literatura a atenção que merece. Essa literatura nunca foi capaz de se cristalizar em torno de “movimentos” ou “grupos literários” que lhe dessem proeminência histórica, e é bem pequeno o número de autores que a cultivaram com regularidade.2

Concordando com esta proposição, Roberto de Sousa Causo3 aponta

algumas obras brasileiras, especificamente a partir de 1875, discutindo a circulação

desse tipo escrita na literatura brasileira no período. Causo apresenta uma série de

1 TAVARES, Bráulio. As Origens da Ficção Científica no Brasil. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993. p. 2.2 Idem.3 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 103.

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textos e escritores que, de algum modo, se aproximaram da produção da literatura

fantástica, resultando em um gênero que ele preferiu denominar como ficção

especulativa. Os textos brasileiros, segundo o autor, tangenciavam os temas

populares da fantasia, focalizando enigmas quanto ao futuro através de romances

utópicos e sátiras a eventos e personalidades da sociedade brasileira. Para

exemplificar esse aspecto e interesse dos escritores brasileiros, Causo cita o livro

Páginas da História do Brasil, escritas no ano 2000 do escritor Joaquim Felício dos

Santos (1826-1895). Esse livro, que é uma coletânea de folhetins publicados no

jornal O Jequitinhonha, entre os anos de 1868 a 1872, possui como cenário o futuro

da Monarquia Brasileira no ano 2000. O tema serviria muito mais como uma crítica

“panfletária” ao regime do que propriamente um enredo envolvendo aventuras e

personagens:

Tais trabalhos, assim como vários outros que adentram ao século XX até a década de 1920, demonstram o interesse dos autores brasileiros em desenvolver narrativas satíricas e utópicas, bem como de fantasias moralizadoras e até exemplos do scientific romance, gerando um corpo de ficção especulativa que poderia ter sustentado uma produção maior nas décadas seguintes, mais intensa do que a registrada.4

Segundo Bráulio Tavares, a FC no Brasil não reuniu grupos de intelectuais e

artistas em prol da constituição e afirmação de uma “escola” literária na qual

transitassem textos do fantástico ou de ficção científica. Para ele, o agrupamento de

escritores e textos ao redor de uma temática ou interesse estético específico

consolidaria um tipo de escrita. Isso permitiria a ampla distribuição da produção

literária através de meios institucionalizados, posicionando-a em um panorama

geral. Tavares, na expectativa de justificar o “apagamento” da FC do cenário

artístico-cultural brasileiro, apresenta dois motivos que explicariam a “lacuna” na

historiografia e estudos literários. O teórico afirma a existência de textos com

temáticas da FC e fantasia, mas indica que eles não desfrutaram da visibilidade

necessária para permanecerem no cânone e desencadearem novas produções que

herdassem aspectos do estilo e tema propostos:

Não tivemos, portanto, dois fatores que cristalizam o cultivo de um gênero: 1) a existência de uma ou mais Grandes Obras que desencadeiam dezenas de imitação por anos a fio, ou 2) a existência de um grupo organizado de autores com objetivos semelhantes, que, à força da pura e simples militância, inscrevem uma tendência intelectual na história da literatura de seu país (como são chamadas “escolas” ou “movimentos”)5

4 CAUSO, 2003, p. 210.5 TAVARES, 1993, p. 3.

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Mesmo não compondo um “movimento literário” específico, encontramos

vários textos que possuem características da escrita de FC. Tavares também indica

alguns escritores de grande destaque na época que se experimentaram

esporadicamente nesse tipo de temática. As produções, ainda que esparsas,

receberam a assinatura de escritores pertencentes ao cânone literário, a exemplo de

Álvares de Azevedo (Noite na Taverna), Joaquim Manuel de Macedo (A Luneta

mágica) e Machado de Assis (O Imortal, Conto Alexandrino, As Academias de Sião),

dentre outros. Curiosamente, boa parte dessas produções não está presente nas

discussões da literatura do período, mesmo que os textos tenham sido escritos por

autores ligados ao cânone. Em contrapartida, se não existiu uma crítica voltada à

temática desses textos, ao menos eles ainda são citados, possibilitando o

conhecimento por parte dos leitores na contemporaneidade. O que não acontece

com outros textos que aqui serão citados, a exemplo dos contos de Humberto de

Campos.

Alguns escritores do final do século XIX e início do século XX utilizaram

elementos típicos da escrita fantástica no enredo de seus textos, como já

percebemos através de Roberto Causo. No nosso entendimento, a escrita de

fantasia permitiu a criação de uma possibilidade ficcional diferente das

representações existentes sobre a sociedade, utilizando elementos próprios do

gênero para discutir crenças e tabus. Ao lidar com o “desconhecido” e o “conhecido”,

os enredos permitiam uma extrapolação do conceito de realidade material em

direção a outro, existente no interior do texto, que pode ser contatado pelo leitor a

partir do imaginário e leitura de seu próprio contexto sócio-cultural.

O interesse por temas fantásticos, como nos diz Tavares em outro contexto,

está presente nas literaturas de todos os tempos e lugares: “O fantástico é um tipo

de literatura presente em todos os povos e em qualquer época; o realismo literário é

um fenômeno de séculos recentes” 6. Os escritores que se dedicaram a este tipo de

narrativa utilizam um ponto comum com a realidade que é a impossibilidade de

representá-la de acordo com a materialidade vigente7. Na intenção de extrapolar

6 TAVARES, 1992, p.12.7 Esta impossibilidade pode ser analisada a partir de Michel Focault como as interdições ao discurso. De acordo com Foucault: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar em tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar.” FOCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 9.

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essa materialidade, seria necessário apropriar-se de elementos que estivessem

vinculados ao transcendente, ou criassem uma atmosfera na qual os temas

“proibidos” fossem apresentados sem causar fortes turbulências na ordem social.

Tzvetan Todorov nos diz que a função social da literatura fantástica era justamente

discutir aquilo não podia ser apresentado explicitamente na sociedade8. A existência

de imagens que pudessem formatar conceitos e ideologias “perigosas” para a

sociedade transita com mais tranquilidade nas narrativas (sejam escritas ou orais)

que se situam em outro lugar ou compõem outra estrutura distante no espaço/tempo

da época.

As experimentações com a temática fantástica no Brasil não gozaram do

mesmo prestígio que outras obras produzidas no mesmo período. Além daqueles

escritores pertencentes ao cânone, Bráulio Tavares cita outros que não

permaneceram no panorama da literatura brasileira atual, embora tenham sido

personalidades de destaque no cenário da época. Escritores como o já citado

Joaquim Felício dos Santos, Coelho Neto e o próprio Humberto de Campos não são

apresentados pelo cânone literário da atualidade e seus textos sequer são

lembrados nas discussões da historiografia literária.

Segundo Bráulio Tavares, escritores como Coelho Neto e Humberto de

Campos possuem exemplares de texto fantástico que podem ser verificados ao

longo da vasta obra literária que ambos possuem. Tavares cita alguns desses textos

como constituintes de uma gênese da ficção científica no Brasil. Coelho Neto, de

acordo com Tavares, escreveu um grande número de textos fantásticos, o que

evidenciaria ainda mais o interesse da época por este tipo de escrita, principalmente

se levarmos em consideração o prestígio de Neto no espaço literário. Os livros

Lanterna Mágica (1899), coletânea de contos fantásticos, Esfinge (1908), Melusina

(1923) e Imortalidade (1925) são exemplos da produção de literatura fantástica de

Coelho Neto. Contudo, Tavares reafirma o apagamento destes textos no panorama

literário da contemporaneidade: “Essas obras encontram-se virtualmente esquecidas

atualmente, a exemplo da maior parte dos livros de Coelho Neto – mais de cem

títulos [...]”9.

8 Além da censura institucionalizada, Todorov afirma que o próprio autor em sua “psique”, sofre com censuras: “Mais do que um simples pretexto, o fantástico é um meio de combate contra uma e outra censura: os desmandos sexuais serão melhor aceitos por qualquer espécie de censura se forem inscritos por conta do diabo. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica, 2004, p. 167.9 TAVARES, 1993, p.2.

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Humberto de Campos também é citado por Tavares como um escritor que

possui um grande número de livros publicados, mas que se encontra “mergulhado

na obscuridade”10 juntamente com seus textos de temática fantástica. O contato de

Campos com a obra de Coelho Neto é verificado em algumas das afirmações sobre

o estilo de ambos que em alguns momentos revelam afinidades sobre as temáticas

utilizadas por Campos. Se observarmos que Humberto de Campos toma Coelho

Neto como referencial para sua escrita, perceberemos o quanto a temática fantástica

pode ter sido “disputada” para a construção dos enredos e narrativas. No capítulo

Eu e Camões do livro Memórias Inacabadas de Humberto de Campos, lemos uma

referência aos escritos fantásticos de Coelho Neto que foram utilizados como ponto

de partida para o jovem escritor:

Lidos as “Baladillas” e o “Fruto Proibido”, considerei-me em condições de escrever contos e fantasias. Um daqueles faquires alí encontrados havia pôsto os olhos na semente maravilhosa, que germinara em dois dias. E escrevi um conto. E depois outro. E um terceiro. Contos fúnebres, fantásticos, em que havia mochos e ciprestes, e sombras de mortos, e cruzes de cemitério. Os próprios assuntos eram, se me não engano, surrupiados ao mestre, e modificados, apenas, pela minha ignorância.11

A escrita e a fama de Coelho Neto no Brasil configuravam uma espécie de

modelo para todos os aspirantes à seara literária: “foi a êsse escritor que me atirei,

tomando-o para meu modêlo e meu mestre. O seu orientalismo encantava-me. A

sua linguagem seduzia-me.”12, diz Humberto de Campos. Coelho Neto exercitou a

escrita fantástica através de elementos sobrenaturais e improváveis de acontecer na

realidade, optando por uma narrativa que focalizasse o desconhecido. Interesse

temático também seguido por Campos: “Um, e outra, eram, então, duas expressões

do mistério. E o mistério exercia, naquele instante, sôbre meu espírito, irresistível

atração”.13 Essas declarações ainda são do jovem Humberto de Campos que

começava, naquele momento, a demonstrar interesse pela escrita literária e pelos

temas do mistério e realidades desconhecidas:

Coelho Neto havia, com a sua excursão de 1899, enchido todo o norte dos ruídos metálicos da sua glória. Havia batizado com seu nome colarinhos e rosas, chapéus e valsas, ruas de cidade e quitutes de sertão. Ser um dia, Coelho Neto, era, pois, receber a senha para a imortalidade.14

10 TAVARES, 1993, p.2.11 CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1960.12 Idem, p. 143.13 Idem.14 Idem, p. 145.

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Essa relação de admiração é evidenciada durante toda a trajetória da escrita

de Humberto de Campos. Múcio Leão nos diz que: “É sob a fascinação inevitável de

Coelho Neto que, de ora por diante, se vai desenrolar o fio da vida de Humberto de

Campos”15. A escrita da juventude consolida-se a partir dos parâmetros e

características do texto de Coelho Neto, na forma e estética quanto na temática e

abordagens. A proximidade com o modelo era tamanha que o próprio Humberto de

Campos reconhecia as similaridades com o texto de Neto: “[...] eu não poderia dizer,

evidentemente, se [as narrativas] eram de Coelho Neto ou se eram minhas.”16.

Embora encontremos um grande número de citações sobre a escrita

fantástica entre os autores brasileiros, estes exemplares não se constituíram como

objeto de estudo nas análises da literatura na contemporaneidade. Isso dificulta a

inserção da escrita de FC nos panoramas dos estudos literários do início do século

XX, pois não leva em consideração a existência de uma matriz que proporcionaria o

interesse pela literatura fantástica; uma escrita que se desenvolveria na direção do

aparecimento da FC em estado embrionário.

As abordagens fantásticas das temáticas utilizadas por esses escritores

apoiavam-se em seus diálogos com a realidade, sobretudo através de suas

convicções políticas, filosóficas e/ou religiosas. Verificamos um exemplo desse

posicionamento na citação feita por Roberto Causo a Joaquim Felício dos Santos na

utilização do texto como crítica ao regime monárquico. Bráulio Tavares, ao discutir

aspectos e caracterizações dos romances utópicos, considerados como semente

das narrativas típicas da FC, produzidos no final do século XIX e início do século XX,

diz-nos que: “A aventura é um elemento praticamente ausente das histórias

futuristas desse período. Os autores não estavam interessados em divertir o público,

mas em defender alguma tese moral ou social.”17. A partir desse posicionamento,

percebemos que os textos de fantasia ou de ficção científica do início do século XX

estavam a serviço de uma ideologia que regia o pensamento dos escritores, em uma

espécie de reverberação dos entendimentos de cultura e sociedade vigentes

naquele momento. Sobre esse tópico, Causo aponta o livro O Presidente negro ou O

choque das raças (1926), de Monteiro Lobato, como um espaço para a difusão do

conceito de eugenia através da narrativa de ficção científica. A defesa da eugenia

15 LEÃO, Múcio. Elogio a Humberto de Campos, In OLIVEIRA, Almir de. Humberto de Campos um exemplo de vida. Salvador: Editora Universitária Americana, 1990, p. 127.16 CAMPOS, Memórias Inacabadas, p. 145.17 TAVARES, 1993, p.2.

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feita por Lobato concentra-se na ideia de uma “limpeza” racial que se dará num

processo rápido ou paulatino com o objetivo de estabelecer uma pureza e

hegemonia de um determinado grupo, a favor da verdadeira civilização:

Para a sensibilidade atual, a destruição do modo de vida de um grupo é inaceitável, mas tal destruição cabia muito bem na sensibilidade da época, que via com naturalidade o conceito do desaparecimento de espécies ou organizações sociais tidas como “atrasadas” ou “primitivas”, dentro da chave de luta pela sobrevivência do mais apto, própria do Darwinismo Social.18

As contradições políticas e sociais vividas no Brasil durante o período

conduziram os escritores ao debate e problematizações de suas ideias

posteriormente impressas em seus textos literários. Roberto Causo também nos diz

que a literatura de FC brasileira, mesmo abandonando a ideia de aventura e se

dedicando muito mais à difusão de padrões e pensamentos, não se distanciou da

ideia do romance divulgado na Europa, representado por Jules Verne e Herbert

George Wells. O lugar dos textos brasileiros nesse contexto possibilitava o

aproveitamento dos impasses entre a modernidade e o primitivismo colonial vigentes

para difundir ideologias e apresentar “soluções” com base em um enredo que se

apropriava de um futuro ou de uma realidade paralela. Os escritores criavam

cenários fantásticos e os configuravam em um espaço para o debate e afirmação de

ideologias. Flora Süssekind cita um texto de João do Rio, escrito em 1910, que

abrange a discussão sobre a apropriação de um imaginário voltado ao futuro:

Outro exemplo, ainda em João do Rio, é O dia de um homem em 1920, texto de 1910, incluído em Vida vertiginosa (1911), em que se procura prefigurar, “diante de sucessivos inventos”, o que seria um dia comum na vida de alguém dentro de uma década. Imagina-se, então, sistemas de palavras baseadas na abreviatura, trens subterrâneos, despertadores elétricos, aeroplanos, recordes de velocidade, ascensores, uma “Companhia de Moto Contínuo”, um jornal falante.19

O princípio do século XX no Brasil experimentou intensos processos de

modernização nos quais sempre entravam em choque os valores do sentimento

colonial com a ideia de ruptura em direção a valores mais civilizados, modernos e

principalmente pautados no paradigma de racionalidade e ciência. Segundo Causo,

na realidade brasileira desse período, circulavam personagens que fomentavam a

idéia de prosperidade com base no desenvolvimento da ciência e da tecnologia,

dentre eles Santos Dumont e Oswaldo Cruz. A relação da consciência brasileira com

esses emblemas de modernidade contrastava com a falta de interesse imediato e

18 CAUSO, op. cit, p.140.19 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 19.

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recursos para a implementação de programas de saneamento e urbanização das

cidades (quadro que foi alterado abruptamente com o exemplo da “Regeneração” do

Rio de Janeiro). Consideremos também que o Brasil tardiamente se tornou uma

República e um ano antes “finalizou” o processo de escravização dos negros. Esses

se tornaram os passos que procuravam diminuir as distâncias da ideia de

modernidade no espaço brasileiro. De acordo com Causo, as diferenças na

concepção da realidade brasileira possibilitaram uma construção ficcional na qual o

contraste podia operar e assim divulgar novos padrões para a consolidação do ideal

moderno: “É em confronto com esse pano de fundo que os primeiros exemplos de

ficção científica brasileira irão aparecer. Logo se percebe que o Brasil não esteve

alienado do scientific romance que se produziu no século XIX.”20

Diante desses confrontos, a própria localização do discurso científico nas

narrativas demonstra o modo como a ciência estava compreendida no cenário

brasileiro do início do século XX. Segundo Causo, a primeira obra brasileira que

enfoca a presença de um discurso propriamente científico nos textos literários é o

livro Doutor Benignus, escrito por Augusto Emílio Zaluar e publicado em 1875, muito

antes do livro de Monteiro Lobato e seus métodos e doutrinas para a configuração

de uma nova raça resultante da eugenia. O enredo do Doutor Benignus dialoga com

os textos dos escritores franceses, especificamente os livros de Jules Verne. No

entanto, de acordo com Causo, existe uma diferença entre as produções européias

e brasileiras. Nesse caso, o livro de Zaluar apresenta uma compreensão de ciência

bem diversa daquela apresentada nos textos de Verne. O modo como os

personagens encaram as descobertas científicas demonstram o tipo de papel que a

própria ciência assume no contexto social.

Para o Brasil do final do século XIX, as descobertas científicas ainda soavam

como matéria de ficção, ainda atreladas ao supersticioso, dotado de um misticismo

típico da Alquimia, enquanto a Europa experimentava as constantes “revoluções”

industriais e tecnológicas. No texto de Verne, a ciência possui um papel ativo e é a

chave para o desenvolvimento do pensamento humano em direção ao conhecimento

e domínio de toda a natureza. De acordo com Causo, no texto de Zaluar, a ciência

ainda não é entendida como elemento chave para o desenvolvimento e não possui a

mesma relevância que possuía na Europa. A ciência, para Zaluar, não interferiria

ativamente na sociedade e teria como vantagem apenas a erudição dos leitores e

20 CAUSO, op cit, p.128.

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envolvidos numa espécie de contemplação diante do “poder” que emana das

descobertas nos laboratórios:

Essa ciência passiva, contemplativa, é índice evidente do modo como a ciência e a tecnologia tinham pouca relevância no Brasil do autor. Do mesmo modo, trata-se de uma ciência técnica que não se integram – ao contrário do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos – agressivamente à economia ou à vida social do Brasil.21

Em todo o caso, percebemos que o texto de fantasia e ficção científica em

suas possibilidades estéticas foi produzido no Brasil desde o final do século XIX.

Para nossa discussão é importante identificar essa presença da literatura fantástica

no país, pois verificaremos que esse tipo de escrita se desenvolveu em direção à

FC, discutindo as múltiplas realidades que vigoravam no país. Através da utilização,

nos contos, de cenários e personagens fictícios, identificamos contrastes entre os

interesses de modernização frente a uma sociedade que ainda possuía

características de subdesenvolvimento. A partir dos textos críticos citados,

mencionamos escritores brasileiros desse período, na tentativa de recorrer a uma

história da literatura que ainda não foi contada ou discutida, tornando-se inexistente

nos manuais didáticos.

1.2 As multifaces de Humberto de Campos

A obra de Humberto de Campos é altamente diversificada e não podemos

simplesmente enquadrá-la em determinada “corrente estética” e/ou literária, muito

menos nomeá-lo como um escritor parnasiano, simbolista, pré-moderno ou escritor

genuíno de ficção científica. Temos no cômputo de sua bibliografia desde poesias,

contos, crônicas até críticas literárias, biografias curtas e autobiografias. Humberto

de Campos distinguiu-se no meio jornalístico, atuando em jornais cariocas, embora

exercesse em determinados momentos a política (foi deputado federal pelo

Maranhão), assumindo funções administrativas. A atuação na imprensa fez com que

sua obra fosse composta, em boa parte, de crônicas e críticas literárias, textos que

escrevia nas colunas dos jornais em que trabalhou ou atuou como correspondente.

21 CAUSO, op cit, p.130.

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32

De acordo com Múcio Leão, Humberto de Campos, ao sair de Parnaíba, sua

cidade natal, foi morar no estado do Pará, onde trabalhou como administrador de

seringais e ali vivenciou “contato direto e diário com a vida dos homens mais

infelizes que existem no Brasil”22. A realidade experimentada nesses espaços fez

com que Campos assumisse uma atitude crítica na escrita de artigos de protesto

contra as péssimas condições de trabalho nos seringais da Amazônia. A

repercussão desses textos diante daquele quadro social levou-o a manter contato

com as figuras políticas da região23. No discurso da Academia Brasileira de Letras, o

acadêmico Múcio Leão diz que: “O chefe político do Estado, o senador Antonio

Lemos, pressente no jovem jornalista destemido a força do talento e da cultura. E

oferece-lhe um lugar na Província do Pará. Pouco depois convida-o para seu

secretário particular.”

Em Belém, Campos escreveu o livro Poeira (1911), uma reunião de poemas,

que deu início e projeção à sua carreira de escritor. Segundo Múcio Leão, o livro e

seus poemas foram merecedores das boas críticas de Carlos de Laet, Afonso Celso

Medeiros e Albuquerque, Guerra Junqueiro e Fialho Almeida24. O livro aparecia nas

resenhas dos jornais cariocas com um tom elogioso ao novo poeta. O modo como

ele se apropriava das correntes estéticas em voga trouxe a admiração de leitores e

outros escritores brasileiros ao tipo de diálogo estético existente entre os modelos de

escrita vigentes e os modelos antigos, notadamente os clássicos presentes na

produção parnasiana. O escritor Hermes Vieira diz:

“[...] Humberto de Campos, como ‘epigono do parnasianismo’, seguia os caminhos palmilhados por Vicente de Carvalho, Cruz e Sousa, Raimundo Corrêa, Olavo Bilac e tantas e tantas outras pujantes celebrações da poetica nacional. [...] Os seus versos, comquanto aparecessem no limiar da segunda década do século XX, teem o sabor das produções antigas.”25

22 LEÃO, op cit., p.127.23 Alexandre Caroli Rocha diz-nos que Humberto de Campos: “Em 1903, após novo incentivo de seu tio Antoninho, embarcou para Belém. Lá no início de sua estada, viveu situação crítica, pois não encontrou o emprego prometido e, em penúria, sofria de neurastenia. Conseguiu o encargo de revisor num jornal em decadência, até que lhe surgiu a proposta de ser administrador de seringais em Marapuá, nas fronteiras do Pará com o Amazonas. Trabalhou nessa região durante um ano e meio, e porque contraiu febre palustre teve de voltar a Belém, onde foi contratado como redator do jornal Folha do Norte. Foi o início de sua carreira jornalística. Em tom de denúncia, escrevia especialmente sobre a deplorável situação a que eram submetidos os seringueiros.” ROCHA, Alexandre Caroli. O caso Humberto de Campos: Autoria literária e mediunidade. Campinas, São Paulo, 2008. 274f. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas.24 LEÃO, op cit., p.132.25 VIEIRA, Hermes. Humberto de Campos e sua expressão literária. São Paulo: Cultura Moderna, (19--). p.26.

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Ao sair de Belém, Campos foi para o Rio de Janeiro, onde exerceu funções

na administração pública, tornando-se depois redator do jornal Imparcial. É nesse

momento em que o escritor, através dos textos publicados nos periódicos, se

notabiliza na imprensa brasileira com suas crônicas e críticas literárias, sendo

aclamado e bastante lido pela população. Apesar do grande número de analfabetos

no Brasil, os jornais conseguiam aglomerar leitores em detrimento dos romances e

livros publicados. A linguagem coloquial do jornalismo era considerada como a

grande heresia contra os textos literários, mas era muito bem recebida pela maioria

da população, que se encontrava diante de uma linguagem menos “empolada” e de

“fácil entendimento”.

De acordo com Flora Süssekind, existiam diferenças de opinião entre os

literatos acerca da linguagem dos jornais. Raul Pompéia, por exemplo, mostra-se

contrário a algumas metodologias: “Dentre elas, a adoção de uma escrita jornalística

como recurso para popularizar e facilitar a leitura da prosa de ficção.”26 No entanto,

muitos escritores, na intenção de se profissionalizarem, adotaram textos ligeiros e

curtos, com comentários a temas corriqueiros em circulação na imprensa ou na vida

cotidiana, aproximando sua escrita do grande público. Segundo Múcio Leão,

Humberto de Campos alcançou grande prestígio nos jornais locais, que o projetaram

nacionalmente:

Ele percorre várias redações, nessa peregrinação melancólica que no Brasil é a vida de um jornalista. Seus pseudônimos são vários e enchem colunas e colunas das folhas cariocas. Às vezes, seus artigos aparecem, simultaneamente, no Rio e em São Paulo, na Bahia, no Recife e em Porto Alegre...27

O entendimento dos novos papéis do escritor na República construiu outra

figura do intelectual brasileiro. A escrita deixava de ter uma função voltada para as

discussões da realidade política ou das “belas letras” para se orientar na direção dos

assuntos mundanos veiculados nos periódicos impressos. Como a maioria da

população brasileira não era alfabetizada, o escritor não conseguia se manter

apenas com a venda de seus livros. Com a instauração da República, a situação se

agravou, pois os escritores da época deixaram de gozar dos suportes e

financiamentos oriundos das pequenas fortunas, destinadas a imprimir uma imagem

erudita do escritor frente ao público. A imagem romântica de um escritor envolvido

com questões nacionais e dedicado a apresentar um espírito de contemplação na

26 SÜSSEKIND, op cit. p. 59.27 LEÃO, op cit p. 133.

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perfeição e descrição das formas era gradativamente corroída pelo trabalho nas

oficinas jornalísticas. No entanto, segundo Brito Broca:

[...] não se pode negar que os jornais, proporcionando trabalho aos intelectuais, mesmo quando se tratava de simples rotina de redação, sem nenhum cunho literário, facilitava a vida de muitos deles, dando-lhes um second métier condigno, no qual podiam, certamente, criar ambiente para as atividades do escritor.28

Os escritores, voltados para o jornalismo e para uma aproximação direta com

seus leitores, tornaram-se interlocutores imediatos do público através dos textos

editados diariamente. O contato com os fatos mundanos no início do século XX daria

a esses escritores a visibilidade necessária e desejada para futuros

empreendimentos literários29. A ampliação da circulação dos jornais e o número de

vendas confirmavam o sucesso dos periódicos. Sucesso revertido não somente em

prestígio, mas em recursos financeiros para os escritores-jornalistas. Isso

possibilitava a manutenção de outras atividades, inclusive o próprio sustento da

família do escritor. Süssekind nos diz que:

[...] ainda em 1906, Alphonsus de Guimaraens, por exemplo, receberia quatrocentos mil-réis mensais de A Gazeta, de São Paulo. Em 1915, Humberto de Campos já recebia trezentos mil-réis por mês, chegando em 1928 a um salário de quinhentos mil-réis.

Algumas das obras de ficção de Humberto de Campos são apresentadas por

Bráulio Tavares como peças ligeiras que compunham jornais e revistas,

popularizando um estilo de escrita e opções temáticas entre o público30. Os contatos

entre o jornalismo e o prestígio da escrita literária adquirido na publicação de suas

poesias fizeram com que Campos aproveitasse as leituras dos livros clássicos e

suas experiências durante a vida. A partir dessas experiências, construiu um

pensamento sobre as relações dos sujeitos com a própria sociedade, através de

comentários nas crônicas jornalísticas. É com esse prestígio que o escritor passa a

resenhar e criticar livros de jovens escritores, afirmando sua presença como ilustre

figura das searas literárias e jornalísticas. De acordo com Jeffrey Needell, os leitores

optavam pelo consumo imediato dos assuntos mundanos apresentados nas crônicas

e comentários corriqueiros e, desse modo, acompanhavam as produções dos

escritores pelos periódicos, conferindo-lhes um pouco mais de prestígio:

28 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 216.29 Ainda segundo Flora Süssekind: “Além de ampliar o número de interlocutores para o texto literário, a colaboração na imprensa se apresentava, no período, como a única trilha concreta em direção à profissionalização para os escritores.” SÜSSEKIND, op cit, p. 74.30 TAVARES, op. cit, 1993.

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Como fora sempre o caso, os livros de autores brasileiros eram poucos e baixas as tiragens das edições. Em geral, a reputação do escritor se fazia nos periódicos e, às vezes, pela republicação do mesmo material em forma de livro. Apesar de uma menção ou opiniões favoráveis de um crítico consagrado ajudar um pouco, os leitores dos periódicos eram essencialmente aqueles que garantiam o êxito de um autor.31

Em 1920, Humberto de Campos é eleito Imortal da Academia Brasileira de

Letras e, em 1923, assume a coluna de crítica literária do jornal Correio da Manhã,

no Rio de Janeiro. Em algumas das críticas publicadas nos jornais e recolhidas

posteriormente em coletâneas, são encontradas impressões e discussões do

escritor sobre livros que usam elementos de ficção científica e fantasia em seus

enredos, tal como Bráulio Tavares noticia em seu artigo. A permanência de Campos

nos espaços da crítica consolida o prestígio do escritor e o recomenda para as

leituras do grande público. De acordo com Tavares, parte da produção literária de

Humberto de Campos está voltada para o contato com esses elementos de fantasia

e ficção científica32, o que é muito significativo quando se constata a circulação dos

textos em jornais e a aceitação de temáticas pelo público leitor:

A maior parte de sua obra de ficção consiste em contos muitos curtos que eram publicados em jornais e revistas; alguns deles usam elementos de FC ou fantasia. [...] Humberto de Campos foi também um dos críticos mais respeitados de seu tempo e foi um dos primeiros críticos brasileiros a enxergar as qualidades específicas da FC e a elogiar autores que a exploraram.33

As críticas de Campos às obras A costela de Adão de Berilo Neves, e

Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls apresentam uma análise inovadora, buscando

relacionar aspectos históricos aos avanços científicos e imagens de

desenvolvimento em circulação na sociedade. Tavares cita apenas essas duas

críticas literárias, mas, em nossas pesquisas, encontramos mais uma crítica, escrita

por Humberto de Campos, inserida neste contexto de análises e discussões sobre

obras de “ficção científica”. O livro A República 3000, do escritor Menotti Del Pícchia,

também fora analisado por Campos34, que destacou alguns elementos de fantasia

31 NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.230.32 Vale lembrar que, de acordo com Bráulio Tavares, esse termo passou a ser utilizado após 1920 e, podemos verificar a partir das críticas, que Humberto de Campos não se referiu a nenhuma obra como “ficção científica”: “Science fiction foi o nome sonoro e simpático escolhido por Hugo Gersnback, editor da revista Amazing Stories, nos anos 20, para denominar o tipo de literatura que ele tentava incentivar.” TAVARES, op. cit, 1992, p. 11.33 TAVARES, 1993, op. cit, p. 2.34 Humberto de Campos analisa dois livros de Menotti Del Picchia. Na segunda seção, o livro A República 3000 é apresentado. CAMPOS, Humberto de. Crítica 3ª série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 5: Menotti Del Pícchia.

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presentes no livro e os relacionou aos elementos e pensamentos da ciência vigente,

mesma metodologia utilizada na análise dos outros livros.

A partir das críticas literárias, percebemos que Campos se dedicou a resenhar

e problematizar obras que tomaram a FC como via criativa de abordagem às

temáticas do cotidiano. Nesse sentido, ele apreende os temas e enredos dos textos

e os relaciona com alguns aspectos da sociedade corrente. A terminologia adotada

nessas análises e caracterizações das obras expressa a percepção que Campos

possuía dos textos nos quais “se misturam fantasia e ciência”35. Essa mistura é

entendida como o cruzamento de duas realidades ficcionais que se direciona a uma

terceira, que é a própria realidade experimentada e verificada no texto por todos os

leitores e pelo crítico no papel de mediador.

O exercício da crítica para Humberto de Campos tinha a intenção de orientar

os leitores que aguardavam a opinião de uma personalidade “autorizada”, que

tivesse o prestígio necessário para discorrer, recomendar e analisar alguma obra

específica. No Prefácio ao primeiro volume do livro “Crítica”, Campos diz que a

função do crítico: “em vez de interpretar o juízo do público sôbre o livro que este leu,

a sua missão consiste no julgamento sincero e individual da obra literária para

esclarecimento do público, e conseqüente orientação das suas leituras.”36 Cabia ao

escritor e crítico produzir um comentário que encaminhasse o livro, recomendando-o

ou não para o público. Os leitores seriam guiados pelas compreensões sobre a

realidade, conjecturas, análises particulares do crítico que levariam o público ao

encontro de outras obras citadas, destacando a erudição do escritor.

Em contrapartida ao prestígio da crítica de Humberto de Campos, os contos e

crônicas publicadas sob o pseudônimo de Conselheiro XX eram considerados

licenciosos e corruptores dos costumes da sociedade. Isso permitiu as diversas

opiniões de outros críticos e escritores da época sobre a obra de Campos publicada

em jornais e revistas. Alexandre Caroli Rocha37 nos mostra algumas dessas opiniões

sobre os escritos de Campos na época do lançamento de suas publicações. João

Clímaco Bezerra, citado por Rocha, diz:

35 Termo utilizado por Campos ao se referir à obra Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls. Ver: CAMPOS, Humberto de. Crítica 2ª série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 389: Reveladores da Amazônia.36 CAMPOS, Crítica 1ª. Série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 7.37 ROCHA, Alexandre Caroli. O caso Humberto de Campos: Autoria literária e mediunidade. Campinas, São Paulo, 2008. 274f. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas.

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Mas a verdade é que os pequenos contos, as anedotas estampadas em revistas “proibidas para menores”, das quais a Maçã foi o exemplo maior, granjearam para Humberto de Campos uma popularidade jamais igualada por qualquer escritor de seu tempo. Combatiam-no os moralistas, como ocorreu com Carlos de Laet, que, depois de louvar calorosamente o poeta de Poeira, moveu-lhe acirrada campanha contra as histórias fesceninas. 38

Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Múcio Leão

anula as condenações que os críticos da época fizeram contra os contos e crônicas

de Campos, ao considerá-los como licenciosos e permissivos aos leitores. De

acordo com o acadêmico, as crônicas versavam sobre os costumes da sociedade e

eram normalmente representadas de maneira a causar o riso e o deboche em

determinados casos. Ou seja, se os textos eram licenciosos, a sociedade o era

primeiramente e, se a escrita provocava o riso, este estava vinculado aos elementos

da própria sociedade. A representação da sociedade num enredo que possibilitava o

deboche não interessava aos incentivadores de uma cultura séria e pautada no rigor

das formas e conduta dos indivíduos sociais.

No raciocínio de Múcio Leão, a ampla divulgação dos textos e das obras que

os reuniam em seguida à publicação nos periódicos mostrava o sucesso dessa

escrita frente ao público em geral, retirando, assim, a pecha de “caráter corruptor”

dos textos de Campos. De acordo com Leão, o prestígio de Humberto de Campos

tornava-se visível no número de tiragens e edições de suas obras e na circulação

dos seus textos em jornais e revistas:

As duas séries de Poeira..., livros graves e belos, onde o sonho era alto e a imaginação era pura, não tinham chegado além da segunda edição. Enquanto isso, os volumes facetos do Conselheiro XX cresciam, cresciam, cresciam em tiragens sucessivas. Em poucos anos, a Bacia de Pilatos alcançava doze milheiros; Os Gansos do Capitólio e o Vale de Josafá alcançavam cada um treze milheiros; A Serpente de Bronze alcançava quatorze milheiros; o Tonel de Diógenes alcançava dezesseis milheiros. São êxitos colossais, para o Brasil. E penso que somente ultrapassados – se, acaso, o foram – pelo êxito que vieram a ter, na última fase da vida de Humberto, os volumes melancólicos e desolados em que ele confidencia com os leitores sobre os seus sofrimentos e desgraças íntimas.39

A diversidade e multiplicidade da obra de Campos não podem ser

desprezadas. A pluralidade de gêneros e temáticas talvez responda a uma

estratégia do escritor de chegar até seus leitores com assuntos que estivessem na

pauta de interesses da sociedade, como faziam os jornalistas de um modo geral. A

utilização do texto curto também atendia aos padrões que eram cada vez mais

38 BEZERRA apud ROCHA, op cit. p.29.39 LEÃO, op cit, p. 135.

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exigidos pelos jornais, pois: “Tornando-se mais leves, os jornais passaram a solicitar

crônicas mais curtas e vivas, condizentes com as exigências da paginação, em vez

de folhetins que atravancam o texto.”, nos diz Brito Broca40. Flora Süssekind associa

o texto literário distribuído nos jornais a outros produtos provenientes da utilização

de técnicas e máquinas provenientes do processo de modernização:

Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos característicos à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária. (grifo da autora).

A partir dessas análises, percebemos que o conto e a crônica produzidos

diretamente para os jornais e revistas servem muito a essa aproximação com a

fotografia e o cartaz. A narrativa focalizada numa única cena põe em destaque

determinados fatos, não se prolongando demasiadamente como acontecia nos

folhetins e nas novelas publicadas no século XIX. O texto, objetivo, transmitia suas

ideias principais sem que o leitor necessitasse perder mais tempo acompanhando o

enredo. Em outro contexto, basta observarmos a caracterização de Julio Cortázar

sobre o conto para percebermos as relações entre este e a fotografia. Segundo

Cortázar, a construção do conto partia da:

[...] necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.41

Os contos e crônicas de Humberto de Campos atendiam a esse recorte de

tempo (do leitor) e espaço (no jornal) na construção das narrativas. Ao se deter em

cenas delimitadas pelo recorte narrativo, percebemos o interesse por temas em

circulação na sociedade que pudessem fomentar a discussão e manter o diálogo

entre os leitores e o escritor. Com base nos textos analisados, percebemos que as

temáticas se aproximam de enredos fantásticos, apresentando elementos, máquinas

e sociedades desconhecidas naquele momento. A caracterização desses elementos

aproxima-se da definição de “ficção científica” e o enredo dos contos permanece em

contato com a realidade vigente do Brasil daquele período: imagens e ideias que

representam uma concepção de sociedade presente no imaginário cultural daquele

momento, possibilitando a criação de leituras “fantásticas” sobre a realidade.

40 BROCA, op cit. p. 219.41 CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 151-152.

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Na leitura dos textos encontramos uma crítica e/ou comentário às imagens de

desenvolvimento tecnológico e civilização existentes na sociedade do período. Essa

relação muito aproximada entre a crônica e o conto nos parece bastante produtiva

por construir no próprio texto uma percepção diferente da realidade cotidiana. O

texto de Humberto de Campos caracteriza-se por possuir uma estrutura narrativa

que se distancia da mera descrição “realista” dos aspectos da sociedade, indo em

direção a uma compreensão particular daquilo que se experimenta. O uso das

imagens e construções simbólicas serve, nessa composição, como uma estratégia

de ficcionalização de descrições e cenas nítidas ou facilmente verificáveis na

realidade empírica. No entanto, as imagens continuam plenamente identificadas na

leitura do real contrastada com o texto. De acordo com Léo Godoy Otero:

O artista expressa sua idéia por meio de imagens, enquanto o publicista demonstra essa idéia por meio de deduções lógicas. E se o escritor, ao invés de operar com imagens, opera com deduções lógicas, deixa de ser artista convertendo-se em publicista, embora escrevendo romances, novelas, contos.42

A crônica teria esse vínculo “realista” com a realidade, pois se constituiria

como uma descrição comentada de fatos experimentados. O conto teria um viés

mais “literário”, pois lida com um enredo, temas e personagens ficcionais sem

qualquer vínculo direto (embora este vínculo exista) com a realidade. O contraste e a

intersecção entre a crônica e conto na produção de Humberto de Campos

provocam-nos a definir os textos nesta pesquisa como contos, pois embora escritos

como comentários da realidade, constroem um enredo e cenário ficcionais que

discutem as experiências vividas no bojo da sociedade.

Essa escrita multifacetada dialoga constantemente com as solicitações da

norma jornalística, ao mesmo tempo em que dissolve as fronteiras entre o real,

plenamente descrito, e a fantasia, plenamente inventada, estabelecendo um espaço

em que se encontram essas possibilidades. Nos textos analisados, essa

representação de realidades leva-nos a perceber a construção de uma descrição e

de uma crítica implícita e intrínseca às imagens de futuro e desenvolvimento em

uma sociedade fictícia, embora possamos reconhecê-la como brasileira.

As ocorrências de elementos de FC na prosa de Humberto de Campos são

bem pontuais, o que nos possibilita identificar uma afinidade com os temas e modos

da escrita de fantasia e ficção científica sem a necessidade de criar um rótulo

42 OTERO, Léo Godoy. Introdução a uma história da ficção científica. São Paulo: Lua Nova, 1987. p.17.

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abrangente para toda a sua obra. É importante salientar que os debates acerca das

definições do termo “ficção científica” são amplos e, até o momento, ainda são

motivo para novas discussões que não chegaram, tampouco se pretende chegar, a

uma conclusão. Sobre a impossibilidade de criar uma demarcação para a

terminologia ampla e abrangente da ficção científica, David Allen afirma “[...] é bem

possível que a ficção científica resista a qualquer definição de grande alcance de

suas características.”43. Concordamos com Allen, pois ele parte do princípio da

heterogeneidade da escrita, que não nos permite extrair dela mesma um caractere

definitivo que consiga estabelecer pontos de diferença com outras ocorrências da

escrita literária. A ficção científica pode estar presente em uma história de amor, em

uma descrição utópica de civilizações, pode apresentar personagens que se valem

de discursos filosóficos, antropológicos ou sociológicos. Compreendemos a escrita

de Campos como um mosaico no qual encontramos elementos de várias escritas

juntamente com as concepções ideológicas do meio com o qual o artista interagia.

1.3 Definições e pré-histórias da ficção científica no Brasil

É muito comum atribuir aos europeus Jules Verne (1829 – 1905) e Herbert

George Wells (1866 – 1946) a “paternidade” da ficção científica. Seus livros

apresentam personagens e cenários envolvendo um instrumental típico das grandes

descobertas tecnológicas em louvor ou crítica ao desenvolvimento da humanidade.

A “razão” e a cientificidade aparecem como um discurso atuante e intrinsecamente

vinculado à sociedade européia, transmitindo certa fluência e aceitação desse

discurso na concepção do pensamento sobre civilização. A representação da

Ciência é percebida, em Wells, numa série de contradições entre a atitude do

homem frente à utilização de máquinas e a concepção de avanço tecnológico,

enquanto, em Verne, temos certa divulgação dos benefícios que essa ciência traria

para o desenvolvimento da sociedade e consolidação de uma ideia de civilização

próspera calcada na proliferação do conhecimento. Em contrapartida, vale ressaltar

também o tom “pessimista” do narrador de Jules Verne no livro Paris do Século XX44,

43 ALLEN, David L. No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus Editorial, (19--). p. 223.44 Obra descoberta recentemente, publicada em 1994. Escrito em 1863, descreve a capital da França no ano de 1960.

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desfazendo uma compreensão geral acerca do “otimismo” do escritor quanto à

aplicação de um discurso pragmático na sociedade, voltado exclusivamente ao

desenvolvimento industrial.

A definição de FC está muitas vezes voltada para o conceito de Fantástico,

sendo localizada como um subgênero da escrita de fantasia. O que percebemos na

narrativa de FC é a existência de um jogo com ideias localizadas nos conceitos:

conhecido-desconhecido, estranho-estrangeiro. A apresentação de outros mundos e

realidades consiste numa espécie de exercício de extrapolação da realidade vigente

em direção a outro universo, paralelo ou futuro. Quanto ao tema, o texto de FC pode

conter elementos exteriores ao momento presente, mas que se localizam

perfeitamente no imaginário da realidade vigente. A presença desses elementos não

permite uma desconsideração ou distinção total do enredo e do tema abordado pela

FC, antes opera com os mesmos parâmetros de qualquer outra obra de ficção.

Nesse sentido, David Allen reforça o princípio de que:

Qualquer obra de ficção científica, quer conto quer romance, precisa ter um narrador, um enredo, uma trama, um cenário, personagens, estilo e tema. [...] Em poucas palavras, as razões para ler e apreciar a ficção científica, e a maneira de estudá-la e analisá-la, são basicamente as mesmas que seriam para qualquer conto ou romance.45

Para a composição de nossa interpretação, entendemos que a manipulação

de elementos temáticos exteriores à realidade cotidiana atende a uma motivação

específica. A aparição de cenários e ferramentas ligados às diversas descobertas

científicas presentes ao longo das narrativas configuram um contato com a vigência

dos bens simbólicos daquela cultura, permitindo uma discussão da própria realidade.

Sobre a problematização do presente contida na escrita de FC, Moacy Cirne diz que:

“A FC, nascida com Verne, desenvolvida com Wells, sistematizada depois de 1926,

colocar-se-á, sempre e sempre, a serviço de um futuro pensado e problematizado no

presente”46(grifo do autor). A ficção científica, num sentido mais especulativo,

segundo Léo Godoy Otero, surge com o propósito de aproximar e até mesmo

compreender as expectativas sobre o futuro das sociedades e sobre os próprios

indivíduos. O texto, nesse sentido, torna-se provocador, na medida em que tenta

imaginar futuros e constituir novos pensamentos através da leitura da sociedade

vigente:

45 ALLEN, op cit, p. 224-225.46 CIRNE, Moacy. A Biblioteca de Caicó: Ensaios sobre vanguarda, semiologia e cultura de massa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1983. p. 47.

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Recuando-se bastante no tempo, pode-se dizer que nasceu a ficção científica desde quando o homem começou a imaginar coisas que não existiam na sua época; contudo, através de conhecimentos adquiridos poderia deduzir ou presumir achados e eventos futuros.47

Entendemos que os textos de ficção científica atestam a problematização das

relações entre os indivíduos e o ambiente no qual estão inseridos, tal como qualquer

outra obra literária. No entanto, podemos perceber uma distinção entre o texto de FC

e os textos “autenticados” como literários a partir dos próprios manuais de estudo de

literatura brasileira, que praticamente ignoram a produção de FC ao longo de todo o

século. Dentre outros aspectos, a FC concentrar-se-ia na ideia de uma produção

voltada para as massas, não credenciando os textos vinculados ao gênero a compor

uma historiografia na qual a literatura é compreendida como um produto possuidor

de uma aura estética, advinda do gênio e originalidade do artista. Além do mais, no

cenário brasileiro, a análise da FC é compreendida como uma cópia vazia dos

modelos europeus com os quais mantêm uma relação de constante dependência,

sem desenvolver nenhum aspecto característico da cultura nacional. Segundo

Gerson Lodi-Ribeiro:

Muito se disse, até um passado relativamente recente, sobre a incapacidade do autor nacional de FC para criar textos dotados simultaneamente da plausibilidade científica que se encontra nos trabalhos ingleses e norte-americanos e de uma qualidade literária mínima para torná-lo aceitável ao paladar do público leitor brasileiro. O argumento dessa pretensa incapacidade é que, sendo frutos de uma formação social cientificamente atrasada e tecnologicamente dependente, os nossos autores simplesmente não possuiriam uma visão de mundo adequada, capaz de fazê-los se sentir à vontade em assumir uma abordagem científica da FC.48

A partir desse pressuposto, o Brasil não possuiria uma relação de

pertencimento natural com a ciência e se limitaria a reproduzir abordagens de escrita

das culturas mais avançadas. Outro fator para essa marginalização está presente na

popularização de elementos imaginativos existentes na cultura brasileira que são

constantemente suplantados pela ideia de realismo contida no entendimento de uma

escrita literária como veículo de representações fiéis à realidade. A fantasia está nas

narrativas orais, lendas urbanas e narrativas cinematográficas em circulação no

espaço cultural brasileiro, mas a busca pela descrição do real entra em conflito com

a imaginação aparentemente desvinculada das vivências em sociedade. Essa

atitude impede a consolidação de uma escrita baseada em outra esfera de

47 OTERO, op cit, p.23.48 LODI-RIBEIRO, Gerson. A vertente científica na ficção científica brasileira. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993. p. 8.

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compreensão e discussão de mundo, concentrada especificamente na especulação

da existência de mecanismos, ferramentas e sociedades distantes, avançadas ou

em decadência. Mary Elisabeth Ginway nos apresenta alguns fatores que têm

afastado a ficção científica dos estudos literários brasileiros:

[...] a ficção científica brasileira, eu creio, tem sofrido duplamente, primeiro por suas associações com “arte baixa” e ficção popular, e segundo, por ser um gênero imaginativo em um país que dá um alto valor ao realismo literário. A popularização do realismo mágico e do fantástico tão prevalente em outros países da América Latina não é um princípio dominante na literatura brasileira.49

Diante de um quadro de desprestígio no interior dos estudos literários,

buscamos reforçar a idéia de que a FC é uma possibilidade literária válida para

compreendermos as modificações culturais e ideológicas ocorridas ao longo da

inserção dessa escrita na realidade. Os textos de FC não diferem, quanto à forma,

de nenhum texto de ficção em prosa, e podem substanciar diversas discussões

acerca da própria escrita, do tema e do contexto sócio-cultural no qual o texto se

inscreve. Nesse contexto, as construções ficcionais interagem constantemente com

a realidade experimentada pelo escritor, configurando um novo espaço no qual o

texto é um representante válido na análise dos elementos que a constroem, em

intersecção com um imaginário que envolve a todos. Segundo David Allen, a FC não

difere de qualquer outro tipo de escrita em prosa e o escritor continua, através de

seu texto, estabelecendo relações ficcionais entre a realidade, personagens e

indivíduos sociais:

E como qualquer prosa, os temas de ficção científica preocupam-se com a interpretação da experiência e da natureza do homem em relação ao mundo ao seu redor. Os temas na ficção científica são elaborados e apresentados exatamente das mesmas maneiras que os temas são tratados em qualquer outro tipo de ficção. 50

Ao analisar os elementos da ficção científica presentes nos textos, devemos

considerar que os aspectos científicos ou ambientes descritos nas narrativas não

obedecem necessariamente ao caráter de realidade destes elementos ou à

realidade da ciência. A cultura brasileira, embora não tenha propriamente gerado as

ideias de uma civilização construída com base no desenvolvimento científico,

consegue manter um diálogo com essas culturas “desenvolvidas”. Esse contato não

é de simples dependência ou imitação superficial dos modelos europeus, mas

49 GINWAY, Mary Elisabeth. Ficção científica brasileira: Mitos culturais e Nacionalidade no País do Futuro. São Paulo: Devir, 2005, p.29.50 ALLEN, op cit, p. 224.

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compreende a existência de uma ciência que Bráulio Tavares apresenta como mais

uma personagem das narrativas de FC. Lodi-Ribeiro observa as limitações e

possibilidades da escrita de FC no Brasil, pois:

De fato, praticamente não se desenvolve tecnologia no país (aqui estamos falando de tecnologia nacional). [...] Quanto à ciência nacional em termos latos, não existe tal coisa. Não existe uma ciência norte-americana ou brasileira. A ciência é uma atividade internacionalizada por excelência.51

Nesse mesmo sentido, Allen discorre sobre a presença da ciência nos textos

de FC, desvinculando-a de uma concretude: “tudo o mais que possa ser dito sobre

este assunto é sem dúvida verdade que a ‘ciência’ que se encontra em ficção

científica não é o mesmo tipo de ‘ciência’ que se encontra num compêndio.”52. Em

outro momento, Bráulio Tavares nos alerta sobre a intenção de aproximar os temas

utilizados nos textos de FC com a presença e participação do escritor nos interesses

da ciência institucionalizada na sociedade vigente. Isso quer dizer que a narrativa de

FC não está engajada na mera divulgação dos valores da ciência, mas busca, a

partir dos discursos existentes em seu próprio interior, uma nova perspectiva de

descrição da realidade futura ou vigente:

Temos que lembrar que a FC utiliza muita matéria prima da ciência, mas manipula os instrumentos da ficção. O resultado disso é que seu compromisso não é com a verdade, e sim com a imaginação e a fantasia. Uma boa história de FC é a que consegue nos mostrar um universo diferente do nosso, em geral mais complexo do que o nosso e dar-lhe uma coerência satisfatória. 53

A partir de Roberto Causo e Bráulio Tavares, sabemos que existiram na

literatura brasileira exemplos de um texto que estava à disposição da divulgação de

determinados valores sociais e morais. Essas intenções localizavam-se em um texto

que dialogava com os pressupostos de uma narrativa utópica e apresentavam um

novo modelo de sociedade abalizado na ideia de futuro ou de realidade paralela.54 A

presença da ciência, nesses exemplos, reduzia-se apenas ao elemento

contemplativo, sem causar um impacto mais profundo no enredo da narrativa. Os

personagens agiam como se estivessem diante de uma representação do misterioso

e de certo modo divino, sem esboçar qualquer tipo de interação. Certamente que

51 LODI-RIBEIRO, op cit, p.8.52 ALLEN, op cit, p. 227.53 TAVARES, 1992, p.24.54 De acordo com Sílvio Alexandre: “A Ficção Científica é, muitas vezes, um exercício, um esforço para se libertar de todos os convencionalismos, para imaginar mudanças em nossa sociedade, sacudir os conceitos estabelecidos, inventar situações absurdas para depois jogar com elas, analisá-las em termos do cotidiano, situar o homem e seus problemas por ângulos inusitados e atualmente impossíveis.”

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não podemos considerar essas produções diretamente vinculadas à definição

contemporânea de ficção científica, pois assim teríamos que associar diversas obras

ao longo do tempo que, em algum momento, assumiram o mesmo tipo de viés

temático.

No entanto, de acordo com Tavares, podemos identificar essas obras como

uma espécie de gênese da produção que posteriormente resultou na constituição, a

partir da literatura fantástica, de uma escrita de ficção científica no Brasil. Roberto

Causo, tomando como base um panorama da literatura “universal”, enumera

algumas obras que desde o período medieval cortejavam os elementos fantásticos

na apresentação de sátiras, novas ideias sobre cidade, realidade, sociedades e

civilizações: “[...] alguns observadores propõem que tudo que se assemelhava à

ficção científica, mas produzida antes da denominação do gênero, seria definido

como ‘protoficção científica’”55.

De acordo com essa perspectiva “ancestral” de escrita fantástica em

semelhança e contato abstrato com a “ciência”, interessou-nos apontar a escrita de

Humberto de Campos como um exemplo de protoficção científica no espaço de

produção brasileira. A literatura em nosso país, no início do século XX, começa a

apresentar uma relação mais próxima entre fantasia, ciência e realidade, embora

nesta relação não exista um exemplo de texto que possa, contemporaneamente, ser

“classificado” como ficção científica. Por isso, aproveitamos a definição de Bráulio

Tavares que, ao abordar este aspecto do estado embrionário da FC na escrita

brasileira, afirma: “São consideradas como ‘proto-fc’ aquelas obras que escritas

antes que as características do gênero se firmassem, trazem em si alguns

elementos que os identificam com ele.”56.

De qualquer modo, não podemos definir Humberto de Campos como um

escritor que tenha criado um projeto sistemático para a escrita de FC, tampouco

classificá-lo como um escritor do gênero; no entanto, encontramos em seus textos a

presença dessa intenção de revelar uma nova realidade através de parâmetros

definidos pelo entendimento do que seria desenvolvimento científico-tecnológico no

Brasil do início do século XX. O texto de Humberto de Campos aproxima-se da ideia

de protoficção científica, justamente por apresentar elementos da FC e de textos

fantásticos em circulação no Brasil e na Europa, com ideias e noções de ciência

55 CAUSO, op cit, p. 51.56 TAVARES, 1993, p. 2.

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vigentes no Brasil, muito antes do estabelecimento da terminologia do gênero.

Percebemos essa “origem” da FC não somente nos textos em que Campos

descreve e narra uma realidade “fantasiosa”, mas também em outros nos quais

comenta, nas críticas literárias, a construção ficcional de textos que relacionam a

fantasia com a expectativa do futuro ou aparecimento de um instrumental científico

característico das temáticas de FC.

As raízes de uma protoficção científica na literatura “universal”, segundo nos

informa Roberto Causo, estão muito além dos textos de Verne, Wells e das histórias

e revistas de Hugo Gersnback. A noção de contatar o futuro e o desconhecido está

presente em várias narrativas mitológicas e fantásticas ao longo dos séculos.

Nessas narrativas existe a possibilidade de pensar paradigmas temáticos e formais

que tenham levado alguns escritores a construir outras narrativas sem

necessariamente abordar uma idéia clara e específica de ciência:

A protoficção científica seria então um objeto ainda mais antigo. Peter Nicholls é um dos que acreditam que a ficção científica “é meramente uma continuação, sem qualquer hiato verdadeiro, de uma tradição de ficção imaginativa muito mais antiga, cujas origens estão perdidas nas brumas míticas e neblinas folclóricas da tradição oral”57

Alicerçados nessa definição e propondo uma aproximação com a escrita de

Campos, percebemos que os contos inventam uma tecnologia com a qual a cultura

brasileira não mantinha um contato direto. Ao tratar de uma realidade que, embora

experimentada pela sociedade, dialoga intimamente com desejos e idealizações,

permitem que o escritor reoriente suas concepções de futuro de acordo com seu

entendimento de presente e passado da sociedade. Queremos dizer com isso que a

realidade brasileira do início do século XX fora idealizada com base em parâmetros

que não residiam no interior da própria cultura, mas poderiam ser imaginados. O

cenário futuro apresentado nos textos literários foi construído com fundamento nas

diferenças existentes em relação ao passado ou presente, compondo, a partir de

elementos fantásticos, novas descrições e comportamentos dos personagens em

outro espaço-tempo.

A protoficção científica em Humberto de Campos atende justamente ao

caráter antecipador do gênero de FC no Brasil, porém não se constitui em um

exemplo da ficção científica clássica existente na Europa de Verne e Wells, ou nos

Estados Unidos a partir de 1930. Os textos de Campos aproveitariam as estruturas

57 CAUSO, op cit, p. 52.

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do fantástico, existentes em outras narrativas “ancestrais”, para compor novos

cenários de realidade através dos discursos científicos e dos projetos de

modernização existentes na capital da República do início do século XX. Segundo

David Allen: “o interesse fundamental da ficção científica encontra-se na relação

entre o homem e sua tecnologia e entre o homem e o universo.”58, que, em nossa

compreensão, está muito além da busca de comprovações da existência dos

elementos que compõem a narrativa. De tal modo, o homem (e também a mulher), a

tecnologia e o universo podem ser constantemente inventados e caracterizados

conforme uma experiência de mundo bastante particular do escritor.

58 ALLEN, op cit, p. 223.

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Ilustração 01*

* Capa do livro: Jules Verne: O grande profeta, destacando as máquinas “antecipadas” pelas narrativas do autor. Fonte: http://www.sil.si.edu/OnDisplay/JulesVerne100/verne_images.cfm

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2 HUMBERTO DE CAMPOS: TRAJETÓRIAS E NOVOS MUNDOS

2.1 Fragmentos de azulejos

Desde o primeiro contato com o texto de Humberto de Campos, deparamo-

nos com algumas questões acerca do apagamento do escritor na crítica e na história

literária brasileira. Embora tenhamos citado algumas hipóteses, não seguiremos esta

problemática justamente por compreendermos a necessidade de um estudo mais

ampliado da produção de Campos, seus leitores e críticos. No entanto, partimos

desse “apagamento” para apresentar a construção de um recorte da biografia do

escritor fundamentada em seus textos autobiográficos e a crítica de algumas de

suas obras.

Humberto de Campos, apesar de ter sido uma figura de destaque no cenário

literário do Brasil do início do século XX, não possui uma fortuna crítica numerosa,

tampouco o escritor foi objeto de estudo dos biógrafos de seu tempo e da

contemporaneidade.1 Atualmente temos acesso, com relativa tranquilidade, a alguns

momentos da vida do escritor através de seus escritos autobiográficos, além de

pequenas citações veiculadas em jornais e revistas da época, reunidas em

coletâneas. Esses pequenos recortes dedicam-se a noticiar algumas peculiaridades

da vida de Campos: a doença que o levou à morte, comentários superficiais sobre

suas crônicas jornalísticas, as funções que exercia na política e sua presença na

Academia Brasileira de Letras.

Ao que nos parece, o fato de ser Imortal da Academia Brasileira de Letras não

credenciou Humberto de Campos para os estudos da posteridade, tampouco

garantiu espaço para reflexões acerca de sua produção escrita e sua relação com a

política brasileira do início do século, dentre outros aspectos. Essa ausência de

Campos nos manuais de literatura demonstra, de algum modo, o pouco interesse da 1 Tivemos acesso a duas produções acadêmicas que focalizaram, de algum modo, Humberto de Campos e sua escrita como objeto de estudo. O já citado trabalho de Alexandre Caroli Rocha e a dissertação de mestrado de Roberta Scheibe: SCHEIBE, Roberta. A crônica e seus diferentes estilos na obra de Humberto de Campos. 2006. Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado), Universidade de Passo Fundo.

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atualidade sobre a sua produção. A falta de informações e citações de outros

intelectuais e jornalistas da época lançou Humberto de Campos para o

esquecimento nos estudos da contemporaneidade, prejudicando o entendimento

sobre uma sociedade que ele experimentou e, através de uma lente particular,

descreveu.

A ausência da figura de Campos nas produções da atualidade trouxe-nos

uma dificuldade que só conseguimos ultrapassar mediante a aceitação de outra

possibilidade para retratarmos esse escritor, enquanto participante daquela

realidade. Em meio a poucas alternativas para contornar esse empecilho, chegamos

aos textos autobiográficos de Humberto de Campos. Não podíamos deixar de levar

em consideração o próprio olhar do escritor sobre ele mesmo e por isso recorremos

a esses textos como tentativa de construir um esboço do personagem histórico que

foi Humberto de Campos. Evidentemente, a descrição de si está vinculada aos

interesses do escritor de representar-se e lançar uma imagem de si mesmo para a

posteridade. Entendemos que a imagem do escritor em seu próprio texto está de

acordo com o anseio de difundir uma figura satisfatória de si consoante sua memória

e entendimentos acerca do que deve ser dito:

A memória é um grande museu de fotografias, em cujos muros consagramos determinado espaço a cada criatura querida. Uma vez cheio êsse espaço, temos que retirar os retratos mais antigos, pondo no lugar outros mais recentes, da mesma pessoa.2

Destacamos que não faz parte de nossas intenções apresentarmos uma

discussão sobre as estratégias e performances do escrito autobiográfico de

Humberto de Campos, mas, a partir dele, desejamos construir um recorte do

personagem exposto às imagens e aos espaços que lhe foram apresentados. Para o

entendimento da composição do texto autobiográfico nos apoiamos na hipótese de

que a autobiografia obedece às mesmas ferramentas da construção do texto de

ficção, inclusive na composição de qualquer personagem ficcional. Lembramos aqui

o texto de Wolfgang Iser3 como base para a compreensão acerca da construção de

uma personagem, inclusive a autobiográfica. Consideramos, tomando Iser como

referência, que a escrita da memória se estabelece na recolha de fragmentos

selecionados e combinados a outros elementos, que assim constroem outra

perspectiva da realidade. Essas cenas compõem um quadro bem distinto daquele

2 CAMPOS, Memórias. p. 35-36.3 ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. LIMA, Luís Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

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que “realmente” existiu, mas não quer dizer que se oponha completamente àquela

verdade um dia experimentada. Humberto de Campos, ao que parece, estava ciente

da construção deste mosaico e deixa claro aos seus leitores que sua escrita é uma

composição baseada na probabilidade dos acontecimentos terem existido, sem

colocar em questão a veracidade deles:

Ao recapitular, hoje, os incidentes que assinalam a minha primeira infância, isto é, o período que vai do meu nascimento até à morte do meu pai, e que abrange os seis primeiros anos de minha vida, encontro, ùnicamente, como fragmentos de azulejos que formassem um quadro destruído, pequenos episódios, cenas ligeiras, e, aquí e alí, modestas figuras familiares.4

O texto autobiográfico é uma tentativa do escritor de manter um diálogo

consigo mesmo através da personagem que ele cria com base na realidade que ele

mesmo experimentou e que busca representar no texto. As imagens de sua infância

e adolescência estão permeadas pela leitura e experiências do escritor já

amadurecido, consciente do tipo de representação de si que deseja criar. Assim, ao

recorrermos aos textos autobiográficos de Campos, sabemos que a presença da

personagem, no contexto da escrita, permite-nos verificar os pontos de contato entre

a realidade que ele experimentou na juventude e a realidade no momento em que

descreve e narra fatos de sua vida:

Que são, na realidade, as cousas que tenho escrito, e estas páginas que estou escrevendo no limiar da velhice, senão fragmentos de paina soprados para o alto, e destinados a tombar pouco adiante, sem deixarem o mais ligeiro vestígio no pedaço do céu por onde voaram sem rumo?5

Nossa disposição em apresentar um esboço da figura de Humberto de

Campos consiste na percepção do texto autobiográfico como peça ficcional do

escritor que apresenta uma leitura particular do mundo no qual estava inserido.

Estamos cientes de que a autobiografia é mais uma possibilidade de compreender a

realidade do escritor naquela época, e surge como uma ferramenta de verificação

nas construções ficcionais de algumas de suas ideologias e entendimentos acerca

das realidades que experimentou.

No prefácio de suas Memórias, Humberto de Campos justifica o livro

autobiográfico como uma necessidade de falar de si mesmo com o propósito de

expor para seus leitores suas experiências, sucessos e fracassos. Com este

objetivo, ele apresenta sua trajetória de menino nordestino, pobre, órfão de pai,

construindo uma imagem “inferior” em relação às das demais crianças, se

4 CAMPOS, Memórias. p. 51.5 Idem, p.108.

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autodefinindo como infeliz e feio. No decurso da narrativa, na virada desse estágio,

nós encontramos o escritor com fama e sucesso, trabalhando nos jornais e atuando

ativamente na vida política do Brasil. Nesse sentido, Campos constrói uma

personagem que serve de modelo para seus leitores, mesmo que isto não seja um

objetivo declarado. No auge de sua experiência e credibilidade junto às Instituições

brasileiras – a política, o jornalismo e a Academia de Letras – suas narrativas soam

como conselhos e comentários de alguém experimentado na dificuldade de

estabilizar-se na sociedade. Constituir-se como modelo, segundo ele, seguia a

mesma intenção da escrita contida na obra de Santo Agostinho, Rosseau e Gorki6.

Entre estas, ele localizou suas “Memórias”:

Escrevo a história da minha vida não porque se trate de mim; mas porque ela constitue uma lição de coragem aos tímidos, de audácia aos pobres, de esperança aos desenganados, e, dessa maneira, um roteiro útil à mocidade que a manuseie.7

A escrita autobiográfica de Humberto de Campos, quando em diálogo com

outros textos que escreveu, traz perspectivas diferentes para a compreensão do

espaço sócio-cultural de que fazia parte. O contato entre o autobiográfico, a

realidade experimentada pelo escritor em suas memórias e os textos literários,

permitiu-nos localizar uma gênese do interesse do escritor em apresentar uma

leitura da sociedade frente às cenas de desenvolvimento e presença da

modernização.

2.2 Trajetórias e movimentos de translação

Humberto de Campos Veras nasceu em 25 de outubro de 1886, na cidade de

Miritiba (hoje Humberto de Campos), no estado do Maranhão, e morreu no Rio de

Janeiro, em 05 de dezembro de 1934. Possuiu, segundo seus relatos, uma infância

e adolescência sofridas no interior do nordeste do Brasil, deixando fortes marcas em

destaque na sua escrita. A pobreza e as poucas oportunidades para se manter

financeiramente constituíram-se como um tema importante para a afirmação da voz

do escritor no texto autobiográfico. Através dessa condição, mostra-se capaz de

6 Humberto de Campos se refere às obras: As Confissões (401) de Santo Agostinho; As Confissões (1762) de Jean Jacques Rosseau e Infância (1913) de Máximo Gorki.7 CAMPOS, Memórias, p.8.

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discutir as agruras da sociedade e ilustrar seu pensamento acerca dos contrastes

existentes nela.

Em seus relatos, Humberto de Campos torna-se símbolo da resistência contra

as adversidades experimentadas em sua origem humilde, apresentando o status

conseguido ao longo de sua jornada como vitória de sua perseverança: “[As famílias

brasileiras] Têm horror à verdade, quando esta lhes ofende a vaidade ingênua, e

ocultam o segrêdo da sua pobreza, mesmo quando heróica e honrada [...].”8. É

importante lembrar que esse é um ideário típico do final do século XIX. O sujeito que

consegue vencer as dificuldades do ambiente em que está inserido seria o único

capaz de manter-se na sociedade. Uma adaptação da teoria biológica da seleção

natural transposta para a compreensão da sociedade.

Os princípios do evolucionismo social (adaptação da teoria de Charles

Darwin) e da teoria da seleção natural estão bem presentes na proposta de Campos

ao relatar os aspectos de sua vida. Sua vitória é creditada aos seus próprios

esforços de manter-se firme rumo à conquista de seus objetivos. No Prefácio9 às

suas memórias, identificamos que a narrativa das dificuldades atravessadas pelo

escritor contribuiu para demonstrar seus modos de interpretar suas experiências de

vida, relacionando sua escrita com o mundo à sua volta. Essa atitude encaminhou-

nos para a análise das narrativas autobiográficas à medida que íamos contatando os

demais textos ficcionais de Campos, confrontando-os com sua vida e os ideários aos

quais estava exposto.

Após a morte do pai em 1892, Humberto de Campos passou a morar em

outras cidades. Sem o principal mantenedor da família, era preciso ir à busca de

estabilidade financeira, e isto incluía uma aproximação com os outros membros da

família que pudessem auxiliá-los na labuta diária10. A família nuclear de Campos era

composta por sua mãe e irmãs que saíram de Miritiba para São Luís, capital do

Maranhão, e posteriormente para Parnaíba, no Piauí, local onde a mãe permaneceu

até a morte. Após alguns anos em Parnaíba, Campos retorna para São Luís, onde

trabalha como tipógrafo e atendente em uma mercearia do comércio. Em seguida

8 CAMPOS, Memórias, Prefácio.9 Idem.10 Alexandre Caroli Rocha expõe que Humberto de Campos: “Frequentou pequenas escolas, onde se alfabetizou. E por conta dos escassos recursos da família, ingressou no mundo do trabalho como aprendiz de alfaiate e, depois, assumiu a função do balconista na loja de seu tio Emídio. Não por muito tempo, pois perdeu esse emprego e teve de auxiliar sua mãe na confecção de meias em sua casa.” ROCHA, op cit, p. 21.

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vai morar em Belém, capital do Pará, norte do país, trabalhando em um jornal local.

Estas constantes mudanças de ambiente e cidade apresentam para Campos uma

série de imagens vinculadas ao atraso, à prosperidade, pobreza, riqueza, vida e

morte. No entanto, essas imagens tomaram outra significação quando contatadas

com os textos literários que Campos leu durante a juventude. O significado de

civilização que ele deixa transparecer em seus escritos autobiográficos, a leitura dos

livros e aquela realizada pelo escritor acerca da sociedade parecem-nos bastante

interessantes, pois nos guiam na perspectiva da criação de temas e imagens

presentes nos contos.

O diálogo entre as imagens dos textos literários de seu conhecimento e

aquelas experimentadas no cotidiano da juventude trouxe para Humberto de

Campos elementos para a construção de novas leituras e percepções do mundo na

contemporaneidade de seus escritos autobiográficos. Acreditamos que isso tenha

influenciado sua relação com o mundo exterior ao evidenciar, nos contrastes e nas

descrições apresentadas a partir das cidades de Miritiba e São Luís, a relação

civilização/desenvolvimento-primitivismo/subdesenvolvimento. Apesar de todo o

deslumbramento que a capital do Maranhão lhe propiciava, o modo como o escritor

retrata sua vila natal está impregnado de um olhar doce e carinhoso, sem apontar

marcas de distanciamento com a “modernidade”. Percebemos isso no capítulo

“Miritiba”11 no qual o escritor descreve sua cidade natal. A descrição do ambiente

“primitivo” não é sentida com desgosto ou vergonha, antes parece que nos deseja

lembrar o paraíso:

Miritiba devia ter umas duzentas casas, das quais apenas umas trinta ou quarenta de telha. Os seus arredores eram, no entanto, poéticos. Nas duas extremidades da rua da frente, formavam-se novas filas de edificações que davam os fundos para o rio, tendo, aí, banheiros deliciosos. Essas casas possuíam coqueirais e fruteiras abundantes, características das regiões praieiras.12

Ao descrever sua saída de Miritiba rumo a São Luís, no capítulo A caminho

do exílio, Campos informa a seus leitores sobre as impressões que o novo ambiente

lhe causara: a organização urbana, o comércio desenvolvido e a presença de um

sentimento de progresso contrastavam com a pequena vila onde nascera. A cidade

de Miritiba tornou-se o parâmetro para conceber as novas imagens de cidade,

costumes, e assim configura suas diferenças ao mesmo tempo em que permite ao

11 CAMPOS, Memórias.12 Idem. p. 45.

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escritor a manutenção de um diálogo com as possibilidades de entendimento do

novo, especificamente do desenvolvido e do “moderno”. Ao chegar à cidade de São

Luís em 1893, ele descreve, com o olhar da maturidade, o novo lugar onde fora

morar com sua família:

E em frente à casa um muro, e uma chaminé, assinalando os fundos de uma fábrica. Na esquina mais próxima, à direita, de longe em longe passava um bonde puxado a burros. À esquerda, lá em baixo, o mercado público. E dentro de casa, ou fora, um cheiro pronunciado de gás, que dava idéia de que era o cheiro, mesmo, do Progresso.13

Percebemos um contraste semelhante nas descrições que Campos faz da

cidade de Parnaíba, local onde foram morar após terem saído de São Luís. Se, no

quadro anterior, a pequena vila de Miritiba foi utilizada como referência e

estabelecimento de pontos de diferenciação frente à descrição da cidade de São

Luís, agora era a capital do Maranhão que servia como modelo para as

comparações com a cidade de Parnaíba, no Piauí. Acreditamos que a aparição

destes elementos descritivos acerca da cidade, na autobiografia de Campos,

alimentou as imagens de civilização e desenvolvimento que ele tenha empregado

nos textos que representam o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro. Não

podemos descartar, no entanto, que essas idéias e textos tenham caminhado em

paralelo com a escrita autobiográfica, mas, ao menos para nós, ficam os vestígios

do interesse do escritor em apresentar uma sociedade e cultura “avançada” nos

moldes do pensamento vigente:

Depois de ter visto o Maranhão em 1893, ainda próspero, com suas fábricas, com os seus bondes, com o seu calçamento, com suas ruas movimentadas, com seus sobradões coloniais, com suas casas de comércio que conservavam mercadorias em exposição à porta, Parnaíba era, de algum modo, uma decepção. [...] Não tinha gás, não tinha carruagens, não tinha bondes. A impressão que Parnaíba me deu foi, em suma, a de uma Miritiba grande.14

Outro elemento importante nos textos autobiográficos é a atitude do escritor

diante dos fatos que ainda não foram explicados ou que até o momento não se

conseguia entender devido a alguma relação com o “sobrenatural” ou

“desconhecido”. O místico é estabelecido em contraste com o científico,

representado em correntes filosóficas que se mantiveram em oposição ao caráter

sobrenatural das explicações dos fenômenos vividos. As narrativas de assombração

ou relacionadas à morte, as explicações “populares” a determinados acontecimentos

13 CAMPOS, Memórias, p. 112.14 Idem, p. 129.

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são descritas como “necessárias” para o conhecimento dos fatos, mas não são tão

dignas de crédito.

A postura do escritor maduro também se configura numa referência a

algumas correntes filosóficas vigentes no início do século XX. O positivismo, ao qual

ele se rende ainda jovem15, com dezesseis anos, na cidade de Parnaíba, acaba

impregnando sua leitura sobre os fatos acontecidos durante a infância: “[...] levantei

dentro de mim mesmo o grito de libertação, e, o peito inchado de orgulho, me

proclamei, perante mim próprio, - positivista!”16. Não há, por parte do personagem

Humberto de Campos, uma tomada de posição quanto à explicação dos fatos

inusitados e explicações “mal-acabadas” que lhe eram contadas, mas restou-lhe a

dúvida e o tom suavemente cético à espera de algum tipo de comprovação. No

entanto, esta atitude científica diante da vida não descartou por completo o medo e a

angústia diante do desconhecido que estava presente no íntimo do escritor. No

mesmo capítulo em que ele se autodenomina positivista, negando Deus e a

condição prestigiada que a Religião conferia à humanidade, ele revela:

De repente, à esquina do Sr. Madeira Brandão, ouvia um sussurro, como de vozes humanas. Era o vento, a brisa noturna [...] Um frio me percorria a espinha dorsal. O cabelo se me arrepiava. [...] E o homem, rival dos deuses, e que não temia Deus, desatava em uma carreira doida pela rua deserta, sob a amplidão misteriosa e estrelada, e enveredava pela casa batendo a porta, como se viesse perseguido lá de fora por todos os monstros da Sombra e por todos os fantasmas da Noite.17

Podemos citar também, como outro exemplo, o momento em que a primeira

lancha a vapor trafega à noite nas proximidades da vila de Miritiba, quando

Humberto ainda era criança. Os apitos desconhecidos e a noite escura, sem lua,

compunham o cenário para o assombro de todos os moradores da vila. O estranho

som de apitos estremeceu todo o povoado. Todos à volta do menino Humberto

acreditavam que os apitos eram provenientes de algum monstro ou diabo que havia

chegado para liderar o fim dos tempos. As explicações religiosas acerca do

sobrenatural vigoravam em detrimento da postura científica, tão propalada pelo

positivismo de Augusto Comte. Na autobiografia de Campos, esse acontecimento é

descrito já com os valores da maturidade do escritor:

15 Ver capítulo “De Cazuza Porto a Augusto Comte”. CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. São Paulo: W. M Jackson, 1960.16 CAMPOS, Memórias Inacabadas, p. 160.17 Idem, p. 165.

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Despertando de repente, e vendo o casal e os dois filhos agoniados, ouví por minha vez um grande grito apavorante, que devia partir da garganta de um monstro. Perguntei, baixinho, o que era.- É o Anti-Cristo, o amaldiçoado... – respondeu-me a cabocla, em cujo colo eu havia me abrigado.18

O contato com o desconhecido e as conjecturas em direção ao futuro também

estão presentes no texto autobiográfico. No capítulo Fim do século, Humberto de

Campos descreve a ansiedade experimentada não somente por ele, mas por todos

à sua volta, na expectativa do que viriam a ser os próximos anos do novo século. A

transição do século XIX para o século XX estava repleta de um imaginário religioso

no qual a leitura do “final dos tempos” era seguida tal como descrevia o Apocalipse

bíblico no cenário do Juízo Final e estabelecimento do novo Reino Divino. A atitude

e descrição destes eventos por Campos, nesse caso, estão voltadas para a

materialidade dos fatos, retirando a áurea sublime e agoniada das expectativas da

chegada do final da humanidade.

A narrativa autobiográfica mostra que o escritor, quando era atendente do

comércio, passou as horas anteriores e posteriores à chegada do ano de 1900

trabalhando na contagem e armazenamento das garrafas de vinho que eram

vendidas na loja. Mesmo assumindo essa postura diante da “virada do século”,

Campos não deixa de mencionar as esperanças que o futuro trazia, permeadas pelo

sentido do misterioso e desconhecido: “Aquele momento é excepcional na História

da Humanidade. A Civilização vira uma página lida sem saber que emoções lhe

reserva a outra, que vai ler...”19. Essa expectativa não estava abalizada no

sentimento religioso, mas no sentimento de progresso e possível desenvolvimento

científico, se pensarmos principalmente no uso da palavra “Civilização”. A

comparação entre os séculos é feita visando a perceber os níveis de benefícios à

sociedade que o século vindouro traria frente às conquistas do século anterior. As

notícias que vinham da capital da República informavam à região Nordeste o anseio

pelas mudanças que certamente chegariam com o novo século:

Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda parte. O “século das luzes” ia apagar-se, legando ao que lhe vinha suceder uma infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara. Que espantos, que prodígios, traria no seu mistério o século que ia surgir? Que nome se lhe devia dar, no nascedouro? Tudo era alegria e esperança, em suma, no coração da Humanidade alvoroçada.20

18 CAMPOS, Memórias, p. 93.19 Idem, p. 482.20 Idem, p. 478.

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A partir desses recortes autobiográficos de Humberto de Campos, podemos

identificar e conceber uma figura de escritor que estava interessado nos ideais que

circulavam na sociedade brasileira, sobretudo os aspectos referentes aos costumes

populares e ao desenvolvimento urbano. O período da vida do escritor que

compreendemos aqui é o tempo que ele menciona especificamente em suas

memórias. As anotações sobre as imagens e o sentimento despertados em Campos

serviram para a nossa compreensão da escrita utilizada para representar alguns

aspectos da sociedade do início do século XX.

2.3 Novos mundos: viagens e fantasias

O livro de memórias de Humberto de Campos contém descrições de uma

trajetória marcada pela pobreza, que apresentava poucas chances de sucesso para

o escritor: “O tempo corria, célere, e o meu futuro continuava a apresentar a

perspectiva de um deserto de cinza, limitado no horizonte, por um deserto de

areia.”21. Em contraposição a este cenário sem grandes oportunidades de

crescimento, Campos informa-nos do interesse que a literatura passou a despertar

nele como uma possibilidade de construir uma vida financeiramente mais estável. A

experiência como aprendiz de tipógrafo aos treze anos, numa oficina do pequeno

jornal O Comercial, na cidade de Parnaíba, em 189922, começou a aproximá-lo do

universo da produção literária, e assim direcionou a atenção do escritor

definitivamente para o contato com as Letras:

A insistência com que eu voltava a pensar nas tipografias, e o desejo que manifestava de seguir, entre os ofícios, aquele que mais de perto se relacionava com a carreira das letras, dá-me a compreender que estas eram, na verdade, em mim, uma predestinação. Estava traçado nas fôlhas do Grande Livro em que os deuses lavram a missão final de cada criatura, que eu devia ser, um dia, escritor.23

A vida escolar atendia a todos os seus precários objetivos, limitando-se a

apresentar alguns personagens históricos, cálculos matemáticos, pequenos versos e

sonetos. A caracterização dos professores e das metodologias de ensino

21 CAMPOS, Memórias, p. 397.22 Idem, p. 386.23 Idem, p. 453.

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apresentadas por Campos também não inspiravam o desejo pela escola, tampouco,

diz-nos o escritor, aumentaram o seu desejo de aprender: “Não gostava de estudar;

mas gostava de ler.”24. Essa disposição levou Campos a enveredar pelos textos que

posteriormente o encaminharam para além da realidade massacrante do cotidiano,

ao abrir espaço para uma trilha no imaginário construído pelos textos disponíveis na

pequena biblioteca da cidade. Podemos inferir, a partir de exemplos citados pelo

próprio escritor, que os textos de interesse infanto-juvenil se concentravam nas

narrativas de aventura e fantasia. Com esta atitude, entendemos que Campos

permanecia vinculado à sua realidade; porém, na leitura dos livros, mantinha-se

distante da vida de dificuldades que experimentava, recriando-a.

O desejo pela leitura do texto literário começou a fazer parte mais atuante de

sua rotina, permitindo assim o constante diálogo entre as imagens registradas no

escrito e aquelas experimentadas cotidianamente. A leitura dividia espaço com o

trabalho na tipografia ou na mercearia, e funcionava como uma estratégia para

conhecer os novos mundos que não estavam por perto, mas eram apresentados

pelos textos. A busca por outras realidades possíveis apenas na literatura orientou o

gosto do escritor para as narrativas que pareciam extrapolar os significados da

realidade. Para afirmar essa hipótese, destacamos nos textos autobiográficos a

presença das obras de um escritor europeu, importante no contexto em que

queremos situar alguns aspectos da escrita de Humberto de Campos: “[...] lia,

também, por conta própria. Um dia, tomei uma tradução de Júlio Verne, Os Filhos do

Capitão Grant, em dois volumes. Li à tarde, e durante a noite toda. Pela manhã a

leitura estava concluída.”25.

O prédio da Biblioteca Pública de Parnaíba ficava bem em frente ao lugar

onde Campos dormia. A Biblioteca servia como abrigo para os momentos em que

era necessário buscar outros ares bem distantes da vida de sofrimento. A leitura dos

textos de Jules Verne representa, para nós, uma aproximação intelectual entre os

escritores, o que possivelmente teria influenciado a escrita de Campos na

construção de seus temas, narrativas e descrições. A partir da declaração de

Campos acerca de suas leituras e levando em consideração o momento sócio-

cultural no qual estava inserido, percebemos um diálogo com as idéias e intenções

presentes nos contos. Para demonstrar a proximidade entre o leitor Humberto de

24 CAMPOS, Memórias, p. 398.25 Idem.

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Campos e Jules Verne, poderíamos localizar um referencial para as idéias de

Campos no que diz respeito ao contato com outras realidades:

A Casa Transmontana, em cujo sótão eu dormia pela manhã, era justamente em frente à Biblioteca Pública. Da minha rede, eu via, lá dentro, os livros alinhados. E comecei a freqüentar a sua sala de leitura, todas as tardes, isto é, depois do meio-dia, até às cinco horas. Lia, e as minhas predileções eram por Júlio Verne. Atravessei, com êle, a África. Visitei, em sua companhia, o México. E fui à Lua; e desci o Amazonas, e subí ao Himalaia; ora mergulhando nas nuvens; ora mergulhando no mar; cobrindo-me de gêlo nos polos; queimando-me com o sol nos desertos; mas enriquecendo a minha alma de sonho e meu espírito de conhecimentos, como companheiro invisível e nervoso dos seus viajantes imaginários.26

Os textos do escritor francês Jules Verne contribuíram para a constituição da

leitura de mundo de Campos, especificamente quanto ao modo como as realidades

estavam apresentadas nos enredos. O caráter “científico” da literatura de Verne é

exposto através da comprovação de aspectos da narrativa através de fórmulas

científicas, exposição de conhecimentos no âmbito da biologia, geologia e outras

ciências naturais e exatas. Essas leituras poderiam ter transmitido para Campos a

aproximação com a realidade e a necessidade de senti-las materialmente, embora o

texto se mantivesse distante, ao menos alguns elementos da própria realidade

sócio-cultural. A predileção por Jules Verne revela muito acerca da possibilidade de

o escritor tê-lo utilizado também como parâmetro para seus textos.

As citações a Verne estão presentes na autobiografia de Campos e tal

presença não se restringe às memórias. Humberto de Campos cita o escritor francês

nas críticas literárias, crônicas, contos, apontando a forte permanência de alguns

dos ideais da escrita de Verne e dos pensamentos voltados para o conceito de

civilização, desenvolvimento e ciência. Os contatos com povos, civilizações e

mundos desconhecidos dos enredos de Verne instigavam a curiosidade do menino

nordestino que buscava, nessa escrita fantástica e nas aventuras protagonizadas

pelos personagens, a criação de outro mundo no qual pudesse dialogar com sua

realidade ou seus anseios de “criar” uma nova realidade. Esse diálogo estabelecia-

se no sentido de apontar uma solução ou saída para os impasses em que vivia:

Um dos maiores sonhos da minha infância, era atravessar a vida viajando. As aventuras do “Gulliver” de Swift; o “Rocambole”, de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14º aniversário, exerceram tamanha influência sôbre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência, senão naquelas viagens maravilhosas.27

26 CAMPOS, Memórias, p. 463-464.27 CAMPOS, Serpente de Bronze, p. 286.

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Encontramos breves discussões sobre H. G. Wells nas críticas literárias de

Campos. Na leitura da autobiografia não encontramos a citação direta a Wells tal

como acontece com Verne. Nas análises de obras como A República 3000 de

Menotti Del Pícchia, A Costela de Adão de Berilo Neves e A Amazônia Misteriosa de

Gastão Cruls, sabemos que Wells também compôs o cabedal de leitura de Campos:

“H. G. Wells, cuja capacidade inventiva pôde ser aferida desde 1895 com The Time

Machine, e culminou, talvez, no gênero, com War of The Worlds, em 1898.” E

prossegue em sua análise sobre Guerra dos Mundos: “[...] exagerou, porém, a sua

faculdade imaginativa. Adiantou-se tanto no tempo que saiu dos limites da realidade

[...]”28. Na análise sobre o livro de Gastão Cruls, diz: “A Amazônia Misteriosa, livro à

Wells, em que aliava a imaginação à ciência e que, sendo uma obra de ficção, era,

no mesmo passo, um livro de informação.”29

No subtítulo desta seção utilizamos o vocábulo “viagens”. Esta palavra

interessa-nos nesse momento para designar o processo de caminhar, peregrinar a

partir de um ponto inicial sem a necessidade objetiva de chegar a outro lugar.

Apontamos essa discussão para desenvolvermos, em analogia, um paralelo

metafórico com os percursos de Campos em suas jornadas empírica e ficcional,

relacionado-as. A viagem surge como imagem das andanças e da busca por algum

sentido, sem dar muitas descrições precisas (às vezes exagerando) ou ater-se a

coordenadas rígidas. Preferimos usar o termo “viagem” como devaneio e

desligamento dos parâmetros que nos mantêm arraigados à necessidade de

objetividade e materialidade. O percurso e os métodos para o cumprimento da

viagem podem ser variados e, na chegada a este outro lugar, podemos ter contato

com um cenário diferente do que estamos acostumados, fazendo-nos pensar nas

diferenças existentes desde os pontos de partida.

Quando Humberto de Campos descreveu as cidades em que havia morado

com sua família, ele o fez marcando as distinções entre elas. A figura do escritor é

uma espécie de ponto de intersecção que permite o contraste entre as realidades,

cabendo em sua descrição a utilização de elementos que possam melhor traduzir as

experiências vividas. Tomemos de empréstimo uma citação de Ítalo Calvino para

exemplificar nossa idéia sobre a viagem e as relações estabelecidas com aquilo que

fora vivido:

28 CAMPOS, Crítica 4ª Série. p.26.29 Idem, Crítica 2ª série. p. 373.

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Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades.30

Humberto de Campos, constituindo uma relação entre a novidade dos

espaços que experimentava e as impressões adquiridas anteriormente nos livros,

buscava representá-las de um modo que conseguisse absorver diferentes símbolos

e significados desses lugares. As comparações nesse sentido seriam de grande

valia, pois se podia pensar nas possibilidades de adequação do novo lugar

“concreto” àquele vivido apenas no contexto da narrativa. A viagem através dos

caminhos que o levavam à descrição dos espaços simbólicos favoreceu a impressão

no sujeito de cenas e comportamentos que experimentava em contraste. As

narrativas a partir do ponto de intersecção (o escritor e “viajante”) podem se deslocar

perante a multiplicidade de imagens, vagando entre o possível e o impossível, o

visível e o invisível. Aqui podemos identificar uma espécie de jogo: as realidades

experimentadas por Campos nos espaços das cidades de Miritiba, São Luís e

Parnaíba, agora dialogavam com a realidade textual das aventuras fantásticas e vice

versa. Construindo uma relação entre o texto e a própria experiência, Campos

utiliza-se das Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, para tecer suas comparações

entre as realidades e a aproximação destas com a fantasia:

De regresso de Brobdingnag, o capitão Gulliver abaixava a cabeça para passar sob os portais das casas inglesas, os quais ficavam, todavia, quase dois metros acima do seu cabelo. Procedendo do Maranhão, a cidade dos casarões de três e quatro andares, eu olhava, agora, para os poucos sobrados parnaíbanos tomado de comiseração. Começava a distinguir e a comparar.31

A construção e descrição imaginária das cidades, dos exploradores e

narradores das aventuras de Jules Verne serviram como suporte para as

aproximações com os ideais de desenvolvimento e civilização tão caros ao início do

século XX, tanto na Europa quanto no Brasil. Percebemos que o contato com a

produção fantástica (e na citação feita anteriormente percebemos a presença de

Jonathan Swift, Ponson Du Terrail e em outros exemplos veremos a presença de H.

G. Wells) buscava extrapolar o que se podia apreender numa leitura superficial da

realidade e do texto. Na narrativa de Marco Pólo encontramos uma ilustração para

30 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 11.31 CAMPOS, Memórias Inacabadas, p. 204.

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essa necessidade do narrador de não se conformar apenas com a objetividade de

suas descrições:

Havia ouvido dizer, repetidas vezes, que, quando o Grã-Cã enviava mensageiros às diferentes partes do mundo e estes não sabiam referir-lhe mais do que o objeto da missão para que haviam sido mandados, alcunhava-os de néscios e ignorantes, pois mais lhe aprazia ouvir falar sobre os costumes e curiosidades das cortes estrangeiras do que sobre as notícias relativas ao pretexto com que os enviara.E Marco, que disto sabia, esmerou-se em contar ao Grã-Cã as novidades, coisas estranhas e quantas curiosidades havia visto, no decorrer da sua embaixada.32

A presença de escritores vinculados à literatura fantástica como Jules Verne,

H. G. Wells e Jonathan Swift permite estabelecer, ao menos nos textos analisados,

uma espécie de referência para se descrever cenários e comportamentos. Isso não

indica apenas que conhecemos alguns dos gostos literários do escritor, mas que

entendemos o espaço cultural e ficcional onde se possibilitou o diálogo com alguns

valores da modernidade. O universo de Verne, por exemplo, representa certa

expectativa quanto ao futuro que também permeia os escritos de Campos, em sua

maturidade, enquanto crítico e cronista; assim como o espaço de discussão das

temáticas utilizadas por Wells está presente no confronto entre o desejo

desenvolvimentista e o conceito de humanidade. É nesse sentido que verificamos o

modo como o escritor relaciona suas leituras literárias para compreender o mundo à

sua volta, configurando suas narrativas e descrições para um ambiente propício às

extrapolações de realidade e crítica à sociedade.

A figura do viajante é o ponto de intersecção entre os espaços da realidade e

da fantasia. A construção e a percepção de novos mundos estão assiduamente

presentes no imaginário do viajante, que busca em suas memórias os aspectos que

lhe possam ajudar na descrição desse novo espaço. É nessa memória fragmentada

que residem os elementos necessários para a criação de novos ambientes com

base no que foi visto (lido, experimentado) ou então desejado. O autodidatismo de

Humberto de Campos e sua longa jornada através da pobreza e das pequenas

cidades do Nordeste constituem, inicialmente, o arcabouço necessário para pensar

os tipos de representação utilizadas para designar o “novo mundo” existente em

seus textos: “À noite, às oito horas, a mercearia fechava as portas. Corria a tomar o

32 POLO, Marco. O livro das maravilhas. Porto Alegre: L&PM, 2006. (Coleção L&PM Pocket) p. 44.

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meu banho, Vestia-me. Atravessava a rua. Entrava na Biblioteca Pública. E ia viajar

com Júlio Verne.”33.

Quando era menino no Nordeste, Humberto de Campos conhecia a

civilização e o desenvolvimento através das descrições contidas nos enredos desses

escritores europeus, vislumbrava os avanços da tecnologia sem efetivamente ter

qualquer acesso a ela. Posteriormente, após vários livros lidos, e o contato com a

capital da República em marcha desenvolvimentista, encontramos ainda as imagens

das cidades nordestinas em diálogo com as civilizações, ao estilo descritivo de Jules

Verne e questionado à maneira de Wells.

O contato entre civilizações, reais e imaginadas, permaneceu. Nas

representações de Campos a partir da cidade do Rio de Janeiro “regenerada”, ou

através da narrativa de uma civilização na Lua em pleno início do século XX,

encontramos exemplos dos contrastes entre a ficção e a realidade, que sua escrita

nos apresenta. Imagens de amplo desenvolvimento precisavam de um lugar no qual

não pudessem colocar em choque seu próprio caráter de realidade, ao mesmo

tempo em que pudessem se comunicar com o imaginário da população. Esse

espaço é o próprio texto.

33 CAMPOS, Memórias, p. 471.

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Ilustração 02*

Ilustração 04** Ilustração 05***

* Foto de Herbert George Wells em 1943, acessado no sítio eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Herbert_George_Wells_in_1943.jpg** A Máquina do tempo, produção cinematográfica do ano de 1960, dirigida por George Pal. Acessado em: http://www.imdb.com/title/tt0054387/*** Guerra dos Mundos, produção cinematográfica do ano de 1953, dirigida por Byron Haskin. Acessado em: http://www.imdb.com/title/tt0046534/

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3 IMAGENS DO FUTURO: VÁRIAS METÁFORAS

3.1 A ficção científica como metáfora do contraste

A escrita de Humberto de Campos é portadora de um grande número de

elementos retirados do imaginário cultural da sociedade. Como grande observador,

atento aos movimentos da sociedade carioca, Campos configura sua escrita para

apresentar uma análise da realidade através de imagens “fantásticas”, com

elementos típicos do imaginário científico. Com base nessa hipótese, podemos

estabelecer uma perspectiva de estudo que permita problematizar as imagens que

no nosso entendimento materializam as discussões daquele momento histórico e

cultural. Nesse sentido, cabe analisar primeiramente a presença da escrita de ficção

científica no nosso contexto de estudo, compreendendo esse tipo texto como uma

problematização da representação das imagens que circulavam no país.

As grandes mudanças no comportamento da sociedade, nas relações

econômicas, industriais e tecnológicas, tomavam corpo na discussão desses

escritores ao materializarem as ideias de modernização na escrita. No caso

específico do Brasil, podemos observar, a partir de Flora Süssekind, que as novas

ferramentas interferiram não somente no comportamento dos sujeitos, mas no modo

como os escritores passaram a perceber sua própria produção, possibilitando a

aproximação dos temas com esse novo contexto:

[...] a entrada quase simultânea de diversos aparelhos (cinematógrafo, gramofone, fonógrafo) e transformações técnicas (da litografia à fotografia nos jornais, por exemplo) indica significativa alteração nos comportamentos e na percepção dos que passaram a conviver cotidianamente com tais artefatos. [...] inovações técnicas que se fazem acompanhar de mudanças na visão de mundo e na percepção, sobretudo das populações da Capital Federal e das grandes cidades do país.1

Os textos de Jules Verne e H. G. Wells traziam temas que começaram a

surgir com o desenvolvimento das tecnologias e da indústria em franco apogeu na

Europa. Em Verne, por exemplo, as máquinas e instrumentais tecnológicos

1 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 26.

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descobertos, juntamente com o alcance e circulação dos discursos de ciência nesse

contexto, fomentavam a crença de poder ilimitado atribuído ao homem e suas

ambições de controlar a natureza através da aplicação desses discursos na

sociedade. Os enredos apostavam na invenção de equipamentos e instrumentos

associados ao desenvolvimento tecnológico, transmitindo a expectativa de aplicação

de novos modelos e configuração de uma sociedade evoluída, tomando o texto

como experimentação teórica e esboço especulativo da realidade. Essa intenção

estava plenamente alinhada com as expectativas da modernização e divulgação de

valores de cultura e civilidade. Ao fazer uma análise do livro 20.000 Léguas

Submarinas,de Jules Verne, David Allen afirma:

De certo modo, então, o que Verne está tentando fazer em 20.000 Léguas submarinas é tornar o leitor um participante no processo de descoberta científica, mostrando-lhe o que já foi descoberto e sugerindo muitas coisas que ainda devem ser descobertas. Para Verne, a ciência e suas descobertas eram empolgantes, e ele tentou divulgar uma sensação disto a seus leitores.2

O iluminismo francês apresentava uma imagem polida de sociedade por meio

dos eruditismos que contribuíam para a idealização de uma civilização alicerçada na

razão e na ciência. A natureza seria dominada com a utilização de ferramentas e

teorias construídas a partir do intelecto humano, mostrando, nesse sentido, a

excelência da “raça humana” na aplicação da razão. A filosofia positiva certamente

contribuiu para a construção desse pensamento, no qual prevalecia a necessidade

da superação dos mitos e explicações que não pudessem ser comprovadas

empiricamente. A busca pelas “luzes” tornava-se o principal chamariz na

identificação e distinção entre o culto e o primitivo. A busca de comprovações para

qualquer discurso mantinha a oposição com qualquer tentativa de explicação para

os fatos que não obedecessem às regras do “espírito positivo”. Segundo o Curso de

Filosofia Positiva:

A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.3

A modernização dos modelos industriais e a modificação no comportamento

dos sujeitos frente a esse processo visavam ao enriquecimento de grupos e

ampliação do mercado consumidor para os novos equipamentos desenvolvidos. As

2 ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus Editorial, (19--).3 COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. In: Os pensadores: Comte, vida e obra. São Paulo: Abril S.A., 1983.

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inovações tecnológicas eram capazes de causar espanto e ira na população que

temia, de certo modo, as conseqüências deste processo de modernização; ao

mesmo tempo, eram valorizadas as intenções que traziam o símbolo de uma

pretensa prosperidade.

E não era só uma questão da variedade de novos equipamentos, produtos e processos que entravam para o cotidiano, mas o mais perturbador era o ritmo com que essas inovações invadiam o dia-a-dia das pessoas, principalmente no contexto desse outro fenômeno derivado da revolução, as grandes metrópoles modernas.4

No entanto, H. G. Wells assumia uma postura diferenciada no tratamento dos

seus temas. Não havia uma necessidade de divulgar os avanços da ciência,

tampouco uma preocupação estrita no relacionamento dos fatos ocorridos na ficção

com os elementos em destaque na sociedade. Wells estabelece a diferença entre a

ciência do “mundo real” e a ciência do “mundo ficcional”. A falta de compromisso

com a realidade e a liberdade imaginativa na descrição de fenômenos foi alvo de

críticas por parte de Jules Verne, que acusava Wells de não ser “científico” ao

descrever os objetos e fenômenos descritos em seus livros. Perguntado sobre o

assunto, Verne sentencia: “Nós não procedemos da mesma maneira. Penso que

suas histórias não repousam em bases muito científicas. Não há nenhuma relação

entre seu trabalho e o meu.”5. Wells apropriava-se do real e o reconstruía

ficcionalmente através do imaginário tecnológico, apontando consequências e

dilemas do homem diante de especulações e avanços.

No texto literário, a extrapolação da realidade em direção a uma sociedade

idealizada a partir dos parâmetros da industrialização estava representada nas

descrições e problematização ética entre homem e ciência, tanto em H. G. Wells

como em Jules Verne. Essas inquietações estavam presentes nas representações e

enredos dos escritores, que construíam seus cenários observando principalmente os

ambientes em que a ciência se tornava cada vez mais necessária.

A imagem mais contundente que aproxima Verne e Wells é a ciência

enquanto materialização presente do rompimento com o conceito mítico,

representando a vitória da razão sobre o impossível e o desconhecido, embora esse

triunfo contribua para o aparecimento de novas “mitologias” – a presença do

desconhecido continuou compondo o quadro das expectativas nos sujeitos sociais

4 SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (História da vida privada no Brasil). p. 9.5SHERARD, Robert H. Breve Encontro. In Revista Cult: Dossiê Jules Verne, março 2005, São Paulo: Editora Bregantini. p. 45.

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quanto ao futuro de suas próprias existências. O horizonte nas sociedades futuras,

descritas nos textos europeus, mostra-se enigmático e cheio de probabilidades

desconhecidas da maior parte dos leitores:

[...] a teoria desenvolvida como base para uma viagem no tempo por meio de uma máquina simplesmente não é praticável; Wells sabia disto, mas construiu uma teoria que parece consistente, lógica e plausível, de modo que ele pudesse averiguar as conseqüências futuras de tendências que ele viu se manifestando. Isto também é uma inovação, pois a ficção científica anterior se concentrou muito mais completamente em engenhos e raramente se desviou do conhecimento científico da época.6

Discordamos da afirmação de que a narrativa de Wells e seu enredo tenham

se desviado do conhecimento científico da época, como propõe David Allen. A

premissa de comprovação dos fatos, a descrição do engenho e o reforço da idéia de

aplicação do método científico transferem para a narrativa de Wells a existência de

uma ciência, mesmo que não seja a mesma ciência vigente naquele momento. Wells

cria especulações sobre a própria ciência prevendo os resultados das aplicações do

pensamento racional e das invenções tecnológicas na sociedade. A possibilidade

que Wells lança em seu texto de verificar o estado de uma sociedade futura através

de uma máquina do tempo serve de pretexto para colocar em discussão e análise o

pensamento da época no que se refere à aplicação de modelos de desenvolvimento.

Se o futuro é representado como um caos é porque tem uma origem e ponto de

partida para explicá-lo é o próprio presente. De acordo com Allen, o narrador da

Máquina do tempo:

[...] postula que as origens das distinções entre os Elóis e os Morloques devem ser encontradas nas distinções entre Capital e Trabalho em sua própria época, distinções que ele acredita estarem rapidamente ficando maiores. [...] outro aspecto da interpretação do Viajante do Tempo diz respeito a como esta situação de sociedade dividida veio a existir; ele fornece uma aplicação histórica do Darwinismo Social, o que por sua vez era uma aplicação sociológica da biologia darwiniana.7

É nesse momento que destacamos a ideia da ficção científica como metáfora

do contraste. Discorre sobre uma materialidade que pode ser imaginada e

construída a partir de elementos presentes no imaginário que reside na própria

materialidade. A ficção científica tal como qualquer outra obra literária surge da

problematização do ambiente em que está inserida, confrontado a atualidade às

expectativas de futuro originadas no momento da escrita. O escritor relaciona-se

com a contemporaneidade e com a criação de outra realidade existente no interior

6 ALLEN, op cit, p. 41.7 Idem, p. 52.

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do texto, pautada, em certa medida, pela crítica dos modelos vigentes. A

representação do futuro contida no enredo é a problematização do presente ou

passado daquela mesma sociedade. O escritor utiliza-se de imagens e

possibilidades que estão no constante jogo entre as representações de diversos

tempos presentes, passados e futuros, localizados em variados universos. A FC

interage com esses espaços de tempo, permitindo uma interseção entre realidades

para, com base em uma delas, criar uma nova concepção de atualidade.

A escrita de ficção científica não é uma categoria definida nos primórdios do

século XX, para nenhum escritor. As definições perambulam entre a fantasia e o

desejo de aproximar o texto a uma espécie de realidade contida na ciência. O Brasil

não tinha divulgado ainda nenhuma grande obra que pudesse ser definida como

“Ficção Científica”. Humberto de Campos, ciente dessa problemática e analisando o

livro de Berilo Neves, afirma que esse “gênero” depende muito mais da imaginação

e da inventividade do escritor do que necessariamente de um vínculo com a ciência.

Na crítica ao livro de Gastão Cruls8, Campos elogia o trabalho do escritor por suprir

as lacunas da realidade com elementos imaginários; de tal modo que a imaginação,

certamente, deve ter um vínculo com a lógica que tornaria o livro “verossímil”:

A especialidade literária escolhida pelo Sr. Berilo Neves, sendo das que se acham entre nós inexploradas , denuncia, com isso, pertencer ao número das mais perigosas, e de cultura mais difícil e delicada. Se o romance histórico à Walter Scott, que oferece ao escritor uma documentação concreta e estável, apresenta a cada passo uma surpresa ao escritor desatento, pode-se imaginar o que é, ou deve ser com as perfídias da memória e da atenção, o trabalho daquele que tem de lidar com hipóteses, e cuja primeira função consiste em se desintegrar do seu tempo, e ir viver em um século que ainda não chegou, entre gente que ainda não surgiu, descrevendo costumes só apreensíveis pela imaginação baseada na lógica.9

Na contemporaneidade, algumas das imagens de fantasia veiculadas nos

textos de FC são rapidamente associadas ao gênero, possibilitando um

reconhecimento de temas e cenários típicos de uma sociedade “evoluída” inserida

no contexto do “moderno”. Segundo Tavares, o reconhecimento dos textos de ficção

científica é até mais fácil do que a criação de uma definição específica. A distinção

localiza-se na apresentação de alguns elementos característicos do gênero, que se

mantêm em acordo com a proposição da temática. A FC ilustra sociedades e

culturas a partir das imagens inerentes ao desenvolvimento tecnológico e à

identificação de culturas divergentes da atual e existente em um universo paralelo. A 8 A Amazônia Misteriosa.9 CAMPOS, Humberto de. Crítica 4ª Série. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1960. p. 34.

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FC aparenta demonstrar certo aprofundamento no estudo de algumas áreas do

conhecimento das ciências exatas e nos dilemas das ciências humanas. Em outras

palavras, a FC deseja ser uma realidade fundamentada na imaginação:

As imagens típicas da fc são claras até mesmo para o não-aficionado: espaçonaves, mutantes, cidades submarinas, pistolas desintegradoras, impérios galácticos, viagens no tempo, supercomputadores... Uma lista assim pode ser prolongada indefinidamente; é através desses elementos que o leitor casual, numa livraria, consegue identificar com nitidez a estante de obras de fc; mas não é fácil encontrar o que há em comum com todas elas.10

Para compreendermos a construção da imagem, seguimos Octavio Paz,

quando se refere à constituição simbólica da imagem, que oferece “muitos

significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia, sem suprimi-

los”11 e ainda “aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas

entre si.”12. Considerando esta perspectiva podemos compreender as ambivalências

da imagem. Assim, a imagem não representa diretamente aquilo a que se refere,

mas compreende uma série de outros significados que estão atrelados à palavra ou

a um grupo delas. Tomando como ponto de partida o imaginário construído sobre o

avanço da sociedade, o escritor capta as ideias ali presentes, configurando-as em

uma outra imagem específica que consiga traduzir alguns de seus interesses na

descrição ou apresentação de outras ideias.

Podemos perceber algumas destas ambivalências nos livros de Verne e

Wells. Por exemplo, a ida para o futuro da sociedade mundial através de A máquina

do tempo mostra-nos perspectivas lúgubres quanto à existência da humanidade no

futuro, diferentemente da ideia atribuída ao processo de desenvolvimento. Do

mesmo modo, Verne, na descrição da Paris no século XX, apresenta a frieza e total

falta de “cultura clássica” que o pragmatismo e desenvolvimento tecnológico

trouxeram para a sociedade do futuro. A ideia de prosperidade através de

equipamentos que melhorariam a vida humana é contrastada pelo desastre e

desconstrução dos símbolos de modernidade alimentados naquele momento. Wells,

em A Máquina do Tempo, apresenta Londres como metonímia de uma civilização

dividida entre os sagazes e ingênuos; selvagens e desenvolvidos; deformados e

perfeitos fisicamente. Verne mostra-nos uma Paris dedicada apenas ao progresso e

ao conhecimento técnico, que sustentam os ideais de civilização apoiados no

10 TAVARES. Bráulio. O que é Ficção Científica. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção Primeiros Passos)11 PAZ. Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 119.12 Idem.

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desenvolvimento industrial e tecnológico, esquecendo elementos culturais, como a

literatura clássica13 e as artes.

O imaginário construído nos textos escritos ou orais sobre o futuro, em alguns

casos, aparece como uma saída aos males do presente. As narrativas utópicas em

suas previsões sobre uma vida em sociedade repleta de igualdade, bondade e

prosperidade podem nos fornecer alguns exemplos. Se tomarmos a ideia de utopia

como a possibilidade de rever as intenções sobre o futuro, podemos associa-la às

conjecturas permitidas da FC, embora esta escrita não trate apenas de um futuro

ordenado. Os textos A Utopia, de Tomas Morus, e A cidade do Sol, de Tomasso

Campanella, sem descartar as narrativas religiosas como a Bíblia (só para citar

alguns exemplos), dedicam-se à construção de uma imagem de futuro baseada

justamente naquilo que faltava à sociedade da época: uma sociedade de paz,

contracenando com a possibilidade de experimentar uma cena infernal. O que se

espera é uma realização quase sempre positiva das expectativas existentes nos

programas ideológicos que circulam em toda sociedade. Mesmo que seja para trazer

um elogio ao panorama atual, a FC, nessa abordagem, suspende o “real” para

apresentar uma possibilidade que ainda não fora concretizada e, juntamente com as

contradições inerentes à implementação dessa ideologia, recriar expectativas

baseadas no imaginário social.

Verificamos, nos contos, uma total liberdade na utilização das temáticas que

absorveram, em parte, algumas das propostas de autores que construíam seus

textos sob a ótica da fantasia. Percebemos que os textos aproveitam situações e

idéias “absurdas” da própria realidade para compor seus próprios cenários com uma

nota brasileira. É justamente nesse contato entre a experiência da sociedade e a

desenvoltura em lidar com temas da fantasia que Humberto de Campos construirá

uma metáfora para as contradições existentes na sociedade e presentes também

nos indivíduos. Além da própria experimentação de aspectos da modernidade, as

informações sobre esses “avanços”, chegavam à população brasileira através dos

textos literários importados, das crônicas de jornais estrangeiros e dos relatos de

pessoas que experimentavam essas transformações no exterior do país. No Brasil,

os sujeitos são enxergados como pacientes de um processo que se configura

exteriormente, produzindo a principal imagem da modernidade que é o

desenvolvimento científico-tecnológico.

13 O protagonista é um poeta que compõe versos em Latim.

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Ao lidar com o desconhecido e com discursos científicos às vezes utópicos,

ao expor alguns contrastes entre o passado e o futuro, o homem e a ciência, a

protoficção científica de Humberto de Campos responde imediatamente ao debate

de modernização instalado no Brasil do século XX. O contato com obras literárias,

temas e imagens construídas com base no entendimento da modernidade reafirma a

ideia de que a escrita de FC não surgiu no Brasil de modo aleatório, mas estava

vinculada a um contexto sócio-cultural propício ao tipo de representação da

realidade expresso nestas escritas:

[...] muitas coisas que foram mostradas sobre ficção científica; encontros com inteligências alienígenas, mutação, viagem espacial avançada e ambientes futuros, estão todas associadas com ficção científica; embora a maioria das estórias de ficção científica sejam ambientadas no futuro, o passado e o presente são também ambientes possíveis, especialmente quando elas apresentam alternativas para o passado e o presente histórico.14

As imagens contidas nos textos de Humberto de Campos tais como a Lua e

seus habitantes, a descrição de corpos diferentes e estranhos à anatomia do corpo

humano, o saber e ignorância retratados na relação entre uma sociedade conhecida

e outra desconhecida, os equipamentos e desenho urbanístico da cidade do Rio de

Janeiro, as descobertas científicas na medicina em uma realidade paralela, a

cegueira e os métodos de cura avançados, a rápida distribuição de bens e

circulação de pessoas constituem possibilidades de interpretação da realidade e dos

diversos valores que eram introduzidos e incentivados na capital da República do

início do século XX. A partir dessas imagens, compreendemos que havia por parte

do escritor uma tentativa de criticar os anseios de modernidade, o desenvolvimento

científico-tecnológico e as diferenças culturais e sociais do Brasil.

3.2 Imagens em trânsito

Acreditamos que a construção de uma imagem está vinculada às

contradições características do seu próprio espaço de criação. Através dela

podemos perceber o caráter paradoxal da realidade e a impossibilidade de enxergá-

la tal como se apresenta a nós. Isto quer dizer que, no âmago de seus múltiplos

14 ALLEN, op cit, p. 235.

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significados, não é possível extrair-lhe uma única significação15, senão várias

propostas de entendimento da realidade. A criação de uma imagem parte dos

elementos existentes na realidade que todos experimentam; no entanto, sua

estruturação não está limitada a ela. As relações na construção dessas imagens

obedecem aos interesses de legitimação de uma perspectiva que talvez deseje

explicar uma realidade de modo diverso.

Brito Broca mostra-nos o uso dessas imagens quando se refere às

características do primeiro automóvel trazido ao Brasil por José do Patrocínio. O

automóvel era um dos maiores símbolos da modernidade e estava ligado aos

“objetos estranhos” que vinham da Europa na tentativa de confirmar as grandes

novidades que o processo de desenvolvimento traria para o país. Em nossas

análises do texto de Humberto de Campos, percebemos que um dos princípios que

movem a idéia de progresso é a imagem da velocidade. A velocidade de bens e

serviços, e do fluxo de pessoas e a demonstração da agilidade dos sistemas de

transporte possuíam como objetivo apresentar o avanço ininterrupto na aceleração

da evolução. Ser moderno é ser rápido e ágil, seja nas relações comerciais, sociais

ou culturais. O automóvel era estranho à realidade brasileira e estava impregnado

de suspeitas quanto aos “prodígios” que poderia efetuar. Como um objeto novo e

largamente divulgado na Europa, ele causava admiração e temor quanto às

conseqüências indiscriminadas de seu uso. De acordo com Brito Broca:

José do Patrocínio, a sonhar com meios mais rápidos de locomoção e tentando debalde fazer subir ao céu um aeróstato, foi o primeiro a trazer da Europa o automóvel. Todo mundo correu espantado para contemplar aquela máquina diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de gasolina. Parecia um “bicho de Marte”, a passear pela terra.16

A protoficção científica de Humberto de Campos parte do pressuposto da

existência de algum elemento anterior e relacionado à própria realidade histórica dos

sujeitos que ajude a construir uma imagem e perspectiva para o futuro: “[...] para ver

o Futuro, é preciso, sempre, volver os olhos para o Passado...”17. Ou seja, o futuro

possui elementos do passado e só poderemos compreendê-lo considerando aquilo

que já foi experimentado e conhecido anteriormente. Ficaria mais fácil, assim, o

movimento especulativo da imaginação. Ao relacionarmos essa definição de

Campos com o exemplo da descrição do automóvel criada pelos contemporâneos

15 PAZ. Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.16 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p.5.17 CAMPOS, Humberto. Crítica 4ª Série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p.41.

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de José do Patrocínio, não queremos dizer que as pessoas da época conheciam ou

sabiam o que era um “bicho de Marte”, mas concebiam o automóvel de Patrocínio a

partir de uma ideia preexistente sobre Marte. Certamente partiam de um imaginário

no qual Marte é apresentado como uma civilização avançada frente aos modelos

vigentes, e qualquer objeto desconhecido, “estranho” ou “futurista” seria

imediatamente associado ao planeta. A imagem de estranheza poderia vir dos textos

literários que circulavam na época, pois em nenhum momento a ciência do início do

século XX redigiu um tratado acerca da vida em Marte ou da classificação de como

são as espécies animais existentes naquele planeta. O imaginário social possibilitou

a imediata comparação entre o desconhecido e o que pode vir-a-ser,

proporcionando uma leitura e comparação fantasiosa entre o automóvel e “o bicho

de Marte”.

Quando Campos afirma que o futuro é reflexo do passado está discutindo

uma imagem reversa, já que o reflexo é uma imagem devolvida a quem está diante

do espelho. Ousaríamos dizer que a escrita exercitada nesses textos é o

instrumento necessário para estabelecer o contato entre as realidades temporais:

passado-presente-futuro. Nessa concepção, a imagem do futuro nos textos e a

construção de seus temas possuem aspectos do passado e/ou presente, além de

permanecerem em contato constante com as leituras do próprio escritor. Os

múltiplos contatos com as contradições da modernização vinculados à descrição de

outros mundos alimentavam a escrita literária e “especulativa”, concebendo uma

percepção diferenciada de realidade:

Os escritores superestimavam essa modernização da cidade, atribuindo ao Rio, em contos, romances e crônicas, ambientes e tipos que na realidade aqui não existiam. E os requintes de civilização, prevalecendo na parte urbana da metrópole, iam fazendo naturalmente com que velhos costumes, recuassem para a zona suburbana.18

Em Humberto de Campos, a ambientação dos temas localiza-se em uma

realidade futura (Entre o que foi e o que virá), paralela (Os sábios selenitas) e

presente (Os olhos que comiam carne). As narrativas, por mais distantes que

estejam dos fatos ocorridos no cotidiano, exprimem uma leitura dele que é

incrementada por novas imagens e concepções de realidade, utilizando elementos

de fantasia. O contraste verificado na sociedade e as expectativas construídas sobre

algumas características da modernização orientam o texto para a reflexão sobre os

18 BROCA, op cit, p.5.

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espaços nos quais interagem cenários e costumes constituintes do passado e do

presente. O texto como extrapolação da realidade contém uma crítica ou a uma

reconstrução de ideais, e, nesse caso, o emblema da modernização urbanística e de

costumes contrasta com o deslocamento de alguns padrões culturais localizados

nos subúrbios e imersos em uma história primitiva de colonização que se pretende

anular.

Tomemos como exemplo a Avenida Central no Rio de Janeiro, inaugurada em

1904, que se tornou símbolo da modernização e demonstra o teor espetacular na

concretização de uma parte dos projetos de remodelação urbanística. Esse símbolo

confirmaria a ideia de que a nação brasileira poderia deixar os resquícios do

primitivismo dos costumes ameríndios e africanos, pelo menos no que diz respeito à

presença desses indivíduos nos grandes espaços de interação, para se afirmar

como um povo civilizado. Do mesmo modo, a prática da ciência e da opinião pública

informada e ilustrada tornava-se mais um dos princípios fundamentais na concepção

da ideia de civilização. A parte da população que não dominava esses elementos de

“ilustração” era novamente deslocada para o espaço de marginalidade, com todos

os estereótipos e ações governamentais possíveis que os impedissem de colocar

em prática seus próprios projetos de saber e leitura de mundo.

Humberto de Campos, ao apresentar uma imagem do futuro ou de uma

realidade paralela, faz uso das opiniões que circulavam no Brasil para compor os

diversos quadros em seus enredos. As imagens colocam-se em constante

contradição ao extrapolar o ambiente da realidade vigente e dialogar com as

decepções e contínuas expectativas sobre o futuro da sociedade brasileira em seus

maiores contrastes entre o civilizado e o primitivo, entre o conhecimento legítimo e o

marginalizado. As narrativas construídas sob a via do fantástico aproveitavam os

elementos “científicos” para corroborar o caráter dicotômico da realidade vigente. A

ciência preferiria um texto literário mais próximo do real e teimaria negar as imagens

fantasiosas, mas ao mesmo tempo necessita delas para construir uma ideia

produtiva sobre o futuro.

Preferimos pensar que, tomando essas impossibilidades, a escrita de Campos

transitou na construção de imagens que pudessem criar uma abordagem sem

infringir normas que haviam sido estabelecidas na sociedade. Afinal de contas, a

implementação de todo o projeto “civilizatório” para o país e a eliminação de todo e

qualquer caractere de cultura considerada “primitiva” demandaram alguns custos e

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isso não poderia ser facilmente contestado, mesmo que tal contestação obtivesse a

anuência por parte de determinados grupos. É nesse momento que a escrita de

Campos se aproxima da sátira de Jonathan Swift e dos valores críticos da escrita de

Verne e Wells para desenvolver, em pequenos experimentos literários, na direção de

uma crítica ao processo que se mantinha na primeira metade do século XX.

A própria concepção de Humberto de Campos sobre o desenrolar dos fatos

históricos e a ideia pessimista acerca do apogeu de uma civilização colaboram para

um discurso diferente da ideia que o progresso contém em si mesmo todos os

parâmetros necessários ao pleno desenvolvimento de uma nação.

3.3 Pamórfio, Babel e as torres modernas

É importante destacar que tipo de imagem do futuro Humberto de Campos

possuía e discutia em seus textos. Encontraremos essa concepção desde as

ilustrações que utilizou para exemplificar suas compreensões de mundo, até a

própria explanação sobre os temas “fantásticos” de seu interesse. Tomaremos a

crônica A Filosofia de Pamórfio e a crítica homônima ao livro do escritor Berilo

Neves, intitulada A costela de Adão, para a análise. Nesses textos, perceberemos o

modo como o escritor encarava as grandes mudanças e progressos que levariam a

sociedade ao pleno estado de desenvolvimento e concretização dos ideais de

civilização.

As ideias sobre desenvolvimento são bastante intrigantes, pois questionam os

principais entendimentos que a sociedade da época transmitia sobre os processos

considerados como primordiais para a consolidação do conceito de civilização. O

movimento sempre constante de desenvolvimento visava à finalização de uma

sociedade perfeita e sem máculas de qualquer ordem. No texto, o progresso é

colocado em xeque no sentido de que o final imaginado e programado não será

alcançado, pois existiria uma regra geral que comandava todo e qualquer processo

evolutivo no interior da sociedade. As imagens clássicas, a escolha e presença de

personagens mitológicos mostram-nos que tipo de percepção Campos construiu

acerca da civilização. Compreendemos que estas mesmas concepções também

estão presentes nos demais contos.

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3.3.1 O caos do futuro: Pamórfio

Como primeira ilustração, apresentamos Pamórfio, figura mitológica extraída

do poema Colombo,do escritor Araújo Pôrto-Alegre. Pamórfio é aquele que “anuncia

a descoberta da América e todos os tristes acontecimentos que lhe assinalariam o

destino de navegador e mártir”19. Humberto de Campos utiliza as próprias descrições

do poema de Pôrto-Alegre sobre o ente mitológico para construir, a partir delas,

certa filosofia que discuta o futuro da civilização e da humanidade. Pamórfio torna-se

metáfora dos entendimentos sobre a construção das imagens de futuro e

compreensão da sociedade. O personagem é um elo que possibilita o contato entre

o futuro e o presente, agindo como porta-voz do porvir:

E foi êsse personagem misterioso “contemporâneo de todas as idades”, como diria Flaubert, que ontem me apareceu para conversar apressadamente sôbre as verdades do Presente e sôbre os segredos do Futuro.20

Na Filosofia de Pamórfio encontramos claramente a ideia de uma civilização

prestes a ser destruída, independentemente do que se possa fazer para impedir o

seu fim. A crônica é uma conversa (poderíamos até mesmo pensar numa espécie de

entrevista) entre Humberto de Campos e Pamórfio, na qual o ser mitológico

responde a algumas perguntas formuladas por Campos sobre o futuro da

humanidade e possíveis consequências de comportamentos advindos do processo

de modernização cultural. Emergem dessa conversa alguns dos temas acerca do

futuro e construção de uma imagem de civilização, retomados na crítica ao livro de

Berilo Neves:

Pamórfio – A civilização atual precipita-se, enfim, pela encosta mais íngreme do despenhadeiro. Quando o fruto principia a apodrecer, nada impedirá que a sua destruição continue. A civilização amadureceu e começa a decompôr-se. Os homens não se conformam com essa fatalidade, e culpam alguém da inquietação em que vivem.21

Humberto de Campos reforça as características de Pamórfio contidas no texto

de Pôrto-Alegre, dando-lhe uma nova contextualização temporal. Em Campos, o

19 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p. 111.20 Idem.21 Idem, p.114.

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personagem não fala sobre o descobrimento da América, tal como em sua conversa

com o navegador genovês do poema Colombo, mas se dedica a informar quais os

movimentos que levarão o homem ao seu próprio futuro. Podemos pensar numa

espécie de recriação da personagem que, no texto de Campos, tem novos objetivos,

sem, no entanto, descartar as características contidas anteriormente no poema.

Sobre si, Pamórfio diz: “Quem tem nas mãos, como eu, o Presente e o Futuro dos

homens, conhece-lhes os mistérios, e sabe qual dos dois contém mais espinhos.”22 É

nesse conhecimento abalizado nas experimentações do passado e do presente que

o futuro é desenhado. Pamórfio utiliza uma coloração bem mais pessimista do que

aqueles outros narradores que traziam o otimismo da “utopia” em seus textos, nos

quais a inserção de tecnologias e novos comportamentos são os atraentes e

“fantásticos” elementos participantes da vida cotidiana moderna.

Além de todo o processo de intertextualidade verificado no texto em destaque,

Pamórfio é um personagem que dialoga com o próprio Humberto de Campos, que

aqui se torna outro mediador do processo de “revelação” das cenas futuras. Essa

personagem não é a portadora de boas notícias; pelo contrário, ela conhece,

sobretudo, os infortúnios que estão à porta da civilização e os transmite com todo

pessimismo que lhe é possível nas caracterizações dadas pelo prosador. Campos

seria aquele que, por intermédio da figura mitológica, revela em sua escrita tudo

aquilo que Pamórfio lhe dissera anteriormente sobre o futuro. Assim, o personagem

alerta ou censura determinados comportamentos vigentes que sedimentariam a

destruição da sociedade no futuro. É nesse momento que percebemos que tipo de

futuro a civilização teria após a instauração de novos modelos na nova sociedade.

Pamórfio apresenta uma lei natural na qual todo e qualquer movimento da

humanidade está fadado à destruição completa, sem que nada possa impedir esse

processo. O personagem apresenta uma evolução que tem como destino a própria

destruição da civilização:

Mas prefiro dizer-te claramente a verdade. E o que te digo, é que o sangue derramado nos combates nos dias de revolução, é tão inútil, hoje, como a tinta consumida nas leis e nos conselhos dos sábios, nas horas de relativa serenidade. Os homens, lutando, degladiando-se, perseguindo-se, destruindo-se, estão cumprindo apenas uma simples lei natural. Chegou, para a civilização a que pertences, a hora da destruição.23

22 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p.114.23 Idem, p. 113.

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A esperança no futuro não compõe a filosofia de Pamórfio. Questionado por

Campos sobre o pessimismo das previsões, Pamórfio diz: “Tu não ignoras, pelo que

tem lido nos mestres, que todas as civilizações têm uma fase de crescimento, outra

de esplendor máximo, e outra de decadência e decomposição.”24 A história da

humanidade possui um movimento cíclico de primitivismo-apogeu-decadência que

se repete em cada geração. É a partir deste principio que Campos entende o Futuro

como percepção e compreensão do Passado. É através dessa relação com a

história vivida no passado e experimentada no presente que o futuro pode ser

esboçado. Para Pamórfio, esta é a evolução natural das sociedades, compondo um

ciclo evolutivo que, ao longo da história, foi representado por movimentos

semelhantes e, assim, podem se constituir no padrão a ser observado na atualidade:

“A civilização assíria, a civilização egípcia, a civilização greco-latina, e uma, anterior

a todas, que se desenvolveu nos desertos africanos e foi realizada pela raça negra,

foram fases de floração. E a atual deu, já, a sua última flor.”25

No que diz respeito à constituição da evolução das sociedades, a filosofia de

Pamórfio parece formalizar o fatalismo em todas as relações e atitudes empregadas

pelos indivíduos no desenvolvimento das sociedades. Todos eles seriam motivados

por uma força muito maior e exterior, fazendo com que todas as ações tomadas

pelos indivíduos não pudessem combater o próprio Destino:

Os vossos governantes, reacionários ou revolucionários, não são senão instrumentos. Sois vós, todos, tão inconscientes como a ferrugem que come o ferro ou a cárie que rói a fruta. Imaginais que conduzis e sois conduzidos. Na passagem da marcha do carro do Destino, sois a poeira que o veículo arrasta, e que imagina estar correndo espontaneamente em sua perseguição. Sois em suma, um grupo de crianças brigando, ou brincando, no dorso de um elefante em disparada.26

Assim, Pamórfio é um anunciador da destruição das civilizações. Ele prevê o

futuro, mas o apresenta sem a vontade de descrever um ambiente utópico e

prazeroso. Suas imagens distinguem as ambivalências das expectativas,

identificando o sujeito causador do infinito progresso e da própria destruição. Essa

atitude frente ao futuro e as conjecturas que podem ser criadas mediante o

comportamento ou estrutura social vigente estão embebidas por esse pessimismo

configurado nos contos em vários aspectos.

24 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p. 113-114.25 Idem, p. 114.26 Idem, p. 117.

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3.3.2 O fim da civilização: A Torre de Babel

Na crítica ao livro de Berilo Neves, Humberto de Campos toma alguns dos

pressupostos presentes na filosofia de Pamórfio para discutir a imagem de futuro,

mas, dessa vez, o escritor utiliza uma narrativa bíblica: a Torre de Babel. Seguindo o

mesmo princípio das previsões sobre o futuro reveladas por Pamórfio, Campos

analisa a coletânea de contos de Berilo Neves, ressaltando que toda e qualquer

evolução sentida no interior das sociedades possuem um único desfecho,

discordando do próprio Neves. Campos utiliza a metáfora da Torre de Babel como

símbolo da desintegração do conhecimento e consequente dispersão:

A Tôrre de Babel é o símbolo, mesmo, dêsses periódicos desastres do esfôrço humano. Ao atingir os últimos andares do edifício que vão construindo, verifica-se a desinteligência entre os obreiros e dá-se a dispersão dêles pela terra.27

Na discussão sobre o futuro, Humberto de Campos aproveita a escrita de

Neves para divulgar seu entendimento sobre a civilização em seus movimentos

evolutivos. Para Campos é preciso compreender o passado e assim será possível

desenhar as perspectivas para a construção ficcional do futuro: “[...] para ver o

Futuro, é preciso, sempre, volver os olhos para o Passado...”28. Esse é um exercício

voltado para a imaginação, sem desprezar a cientificidade da lógica e da

especulação, que parte de um ponto comum ao conhecimento de todos para que

seja possível apreender de onde surgem tais avanços descritos no texto.

Segundo a tradição judaico-cristã, a Torre de Babel foi um grande

empreendimento planejado por toda a humanidade logo após o dilúvio no qual surge

o papel protagonista de Noé. Várias tribos organizaram-se para construir uma

grande torre que pudesse tocar nos céus e reunir efetivamente todos os grupos

humanos outrora dispersos pelo dilúvio. Zangado com a arrogância e ambição dos

homens, Jeová enviou anjos para destruírem a torre e “confundir” as línguas para

que nenhum deles pudesse entender os outros e então saíssem novamente em

dispersão para ocupar outros lugares da Terra29.

27 CAMPOS, Crítica 4ª Série, p.36.28 Idem, p.41.29 Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Trad. Antonio Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Edições JUERP.

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Na crítica ao livro de Menotti Del Picchia, Campos também menciona o

símbolo de Babel como essencial para compreender as desventuras

experimentadas pela sociedade: “As criações da imaginação obedecem

normalmente ao mesmo ritmo estabelecido pela Natureza para a formação e

dissolução das sociedades humanas, das quais é símbolo o mito mosaico da tôrre

de Babel.”30 Assim, podemos pensar em Babel como uma metáfora do

desenvolvimento que alcança seu apogeu e logo em seguida despenca para a ruína

e divisão entre os homens. Para exemplificar essa teoria, Campos cita as diversas

civilizações da antiguidade que obtiveram grande esplendor através de suas

conquistas e foram totalmente destruídas.

Parece-nos que há um temor maior acerca da perda do conhecimento

acumulado ao longo de séculos. Antes da construção de Babel todos os seres

humanos possuíam uma única língua e todos compartilhavam conhecimentos sem

maiores problemas. Após Babel, toda a humanidade passou a buscar um

reagrupamento a partir das semelhanças de suas línguas, impedindo o intercâmbio

entre os conhecimentos de cada grupo. Vemos essas questões na Filosofia de

Pamórfio; mas, desta vez, na crítica ao livro de Berilo Neves, Campos focaliza o

“mundo moderno” como susceptível às mesmas destruições que afligiram as antigas

civilizações, utilizando imagens como “noite”, “submersão”, “caos de ignorância”:

O mundo moderno, com todas as suas conquistas soberbas e magníficas, desaparecerá em uma nova noite como a Idade Média. Submergirá em um caos de ignorância, como sucedeu ao mundo romano, e à civilização asiática, e à civilização egípcia [...] 31

Com este ponto de vista, o escritor passa a discutir o tipo de futuro que está

reservado à humanidade, partindo da discussão de elementos da realidade

brasileira, inclusão de novos processos vinculados ao símbolo de modernidade e

mudanças de comportamento. Campos questiona-se sobre a realidade do futuro e

essa atitude nos direciona para a compreensão do tipo de perspectiva que ele

adotou para construir suas narrativas: o franco desenvolvimento e a posterior

decadência que levaria ao esquecimento os prodígios e avanços obtidos pela

sociedade até aquele momento:

30 CAMPOS, Crítica 3ª Série, p. 21.31 Idem, Crítica 4ª Série, p. 35-36.

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Que seremos, realmente, dentro de onze séculos? A meu ver, ou estaremos mergulhados de novo na barbaria, como estávamos no século IX, ou, então, seremos tão diferentes do que somos hoje que não poderíamos, sequer, nos reconhecer. Os aeroplanos de agora serão simples reminiscências, guardadas em museus de antiguidades ilustrativas. O motor de explosão constituirá um anacronismo. Cidades terão desaparecido das cartas geográficas, dando lugar a outras, brotadas dos desertos atuais.32

Babel é a marca da destruição da civilização e regra máxima para comparar o

desenvolvimento da sociedade. A partir dos exemplos que são dados, tanto por

Pamórfio, quanto na crítica ao livro de Berilo Neves, vemos que o homem não pode

se desvencilhar de tudo o que foi preestabelecido em sua história. Eles deveriam,

portanto, saber de todos os percalços que a corrida à “máxima” evolução propiciaria

a si mesmos, cientes do movimento cíclico a que obedecem. Após a destruição da

última civilização, Campos descreve os movimentos posteriores de reagrupamento:

“[...] os operários se vão novamente aglomerando, reunindo, fraternizando. E inicia-

se a construção lenta, paciente e heróica da nova tôrre, destinada, por sua vez, à

sorte ingrata, e inevitável, das vastas edificações precedentes.”33

A comparação com a Torre de Babel, de acordo com Campos, reflete a

necessidade da própria sociedade não se perder sem qualquer tipo de referencial. A

humanidade ambicionaria muitas coisas e não haveria quem pudesse resistir à sua

dominação no futuro, se não houvesse um intervalo. Com muitos de seus feitos

divulgados, seria praticamente impossível escrever uma história na qual fosse

possível antever as conquistas e as glórias da sociedade, inclusive as

consequências que estariam atreladas a todo esse desejo de avançar em direção à

glória. Entendemos que a torre simbolizaria um intervalo entre as civilizações, de

modo que cada uma delas pudesse aprender com os erros cometidos anteriormente:

Se assim, desta feita, não acontecer; se reinar harmonia contínua na tôrre em cujos últimos andares trabalhamos, e em que já se vai acentuando o surdo protesto dos operários, por excesso de braços e carência de pão; se, em suma, continuarmos no surto ascensional do último século, – quem poderá imaginar, hoje, mesmo com precisão relativa, o que viremos a ser, no decurso de um milênio? A marcha do homem para a conquista dos segredos da natureza é alarmante e vertiginosa.34

Percebemos assim que Pamórfio e Babel são metáforas da destruição das

civilizações e crença sem qualquer tipo de esperança para o futuro. Isso, no entanto,

não impede o escritor de descrever as “maravilhas” do desenvolvimento da

modernização e influência de equipamentos tecnológicos avançados na sociedade.

32 CAMPOS, Crítica 4ª Série, p. 27-28.33 Idem, p. 36.34 Idem, p. 37.

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Ao final da crítica ao livro de Berilo Neves, Campos põe em discussão a perspectiva

humorística e “leve” sobre a qual o escritor teria constituído os enredos de seus

contos, voltando-os para a apresentação do futuro da humanidade sem grandes

contrastes. Partindo do símbolo de Babel, Campos analisa a obra de Neves e

sentencia: “E o que vejo no horizonte é menos comédia do que tragédia. É mesmo,

talvez, a maior tragédia do homem no palco revôlto, ensangüentado da terra.”35

No entanto, a perspectiva de destruição da civilização compartilha o mesmo

lugar da expectativa de um futuro repleto de máquinas, ferramentas e

comportamentos vinculados com a ideia de desenvolvimento e previstos para

acontecer. De todo modo, há por parte de Campos um desejo de comparar os

períodos que a sociedade experimentou e àqueles que ainda serão desfrutados.

3.4 Em busca de retornos no processo de mutação

Encontramos na crítica Flor da Civilização36 algumas dicotomias que

certamente fizeram parte da construção pessimista e opositiva aos valores sempre

presentes no interior do processo e divulgação da ideia de civilização. Vemos que os

desígnios românticos de valorização do “primitivo” surgem ao mesmo tempo em que

aparece certo elogio aos modelos propagados por essa ideia. Uma dicotomia muito

comum nas definições sobre a identidade brasileira, pois aqui verificamos a

existência de uma linha tênue entre aquilo que se imagina e se constrói e aquilo que

deveria ser destruído ou reformulado:

O Brasil é, em grande parte, pelo sangue, negro e caboclo. Mas tem compromisso com a Civilização, os quais não permitem que êle ande de tanga nos rins e de rodela nos beiço. E como país civilizado, deve obedecer aos Cânones da arte que o tempo escolheu e os séculos consagraram.37

A discussão localizada nesse trecho está vinculada ao debate dos parâmetros

utilizados para estabelecer as diferenças entre civilizado e primitivo. O

reconhecimento da formação étnica do Brasil não impede a afirmação e o

estabelecimento dos modelos que devem ser assimilados, aquele que “o tempo

escolheu e os séculos consagraram”. No entanto, a ideia de civilização é

35 CAMPOS, Crítica 4ª Série, p. 41-42.36 Idem, Contrastes, 1960.37 CAMPOS, Contrastes, p. 220.

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contrastada com a concepção romântica da depravação do homem por causa de

seu deslocamento para a cidade, ideia assinalada na filosofia de Jean Jacques

Rosseau38. Ao mesmo tempo, vemos a necessidade de atrelar os modelos de

civilização ao clássico e sublime, distante da barbárie, mistura e confusão. As

especulações sobre o futuro, dessa forma, devem possuir um vínculo com os

modelos da antiguidade clássica, reafirmados pelos iluministas do século XVIII na

filosofia da libertação do homem contra a obscuridade do misticismo religioso e da

falta de comprovações científicas. No entanto, não podemos descartar a presença

da imaginação romântica das utopias e da construção de novos modelos mais

eficientes e “igualitários” de sociedade.

Em contrapartida, Humberto de Campos está consciente das mudanças que

ocorrem e que elas sempre remeteram a “tempos mais doces” vividos no passado.

Na crônica Mudaria a cidade... ou mudei eu?, Campos aponta para a relatividade

das opiniões acerca do tempo e das mudanças, sem descartar os valores

apreendidos ao longo da história:

E todos nós, quando começa a entardecer na vida, isto é, quando principia o conflito entre o nosso gôsto e o gôsto dos tempos novos, temos à boca, ou no coração, o mesmo gemido da alma. Quantos moços de hoje, daqui a vinte anos, não acharão que o momento que agora vivemos, no Rio de Janeiro, é tão doce como era incomparável, aos meus olhos, e ainda me parece hoje, a vida carioca de 1912?39

Em meio à construção de novos pensamentos, em fins do séc. XIX, acerca da

cidade e dos costumes advindos do processo de inserção de novas tecnologias,

verificamos que o pessimismo se instala com muito mais força, pois de algum modo

todo o imaginário romântico sobre o homem e a cidade vão ruindo de modo

vertiginoso. Essa percepção, no entanto, não é uma regra geral, pois do mesmo

modo que o pessimismo se instala verificamos uma sensação de otimismo40 que

circunda toda e qualquer expectativa sobre o futuro. As narrativas de fantasia e as

notícias jornalísticas refletiam a esperança de uma sociedade cada vez mais

avançada, na qual o homem dominasse totalmente os mistérios da natureza,

encerrando o misticismo causado pelo desconhecido. Evidentemente, o avanço

programado para o século XX estava de acordo com o entendimento capitalista de

desenvolvimento e a imagem de um futuro sempre lucrativo para os grandes

38 ROSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a Origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).39 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p. 110.40 Basta observarmos algumas das narrativas de Jules Verne em elogio à descoberta de novas máquinas, procedimentos científicos e o futuro da sociedade.

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empreendedores. De acordo com Marshall Berman, existe uma diferença no

entendimento de modernidade dos pensadores do séc. XIX e séc. XX e podemos

comparar essa diferença com a postura de Campos frente ao processo de

desenvolvimento. Berman diz que:

Se prestarmos atenção àquilo que escritores e pensadores do século XX afirmam sobre a modernidade e os compararmos àqueles de um século antes, encontraremos um radical achatamento de perspectiva e uma diminuição do espectro imaginativo. Nossos pensadores do século XIX eram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna, lutando desesperados contra suas ambigüidades e contradições; sua auto-ironia e suas tensões íntimas constituíam as fontes primárias de seu poder criativo. Seus sucessores do século XX resvalaram para longe, na direção de rígidas polarizações e totalizações achatadas.41

De acordo com Berman, os pensadores do século XIX estavam posicionados

na linha tênue das divergências sobre o espírito moderno. Essa postura se

acentuava à medida que novos valores iam surgindo, fazendo com que o intelectual

buscasse uma opinião que pudesse refletir diretamente a ambivalência do processo.

Percebemos o contraste entre as expectativas do futuro e a “saudade” de um

passado que significa a pureza, mas também o primitivismo e a “ignorância” das

explicações místicas diversas do modelo positivista. No interior dessa ambivalência

surgiam questionamentos que colocariam em foco a representação do futuro, a partir

do presente e passado da sociedade.

A chegada de novos equipamentos e o aprimoramento de tecnologias

permitiram o distanciamento da ideia de uma evolução contínua e plenamente

equilibrada. As constantes alterações de comportamento mediante a “necessidade”

do consumo e do prestígio de aquisição de produtos que representassem os

símbolos da modernidade, talvez tenham propiciado uma confusão no

estabelecimento de novos valores. Estes mantinham-se em acordo com paradigmas,

que, mesmo no interior da ciência e do esclarecimento, aproximavam a ideia de

desconhecimento do futuro, suplantando tudo o que era vigente e de conhecimento

geral:

Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano; jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de media, que se comunicam em escala cada vez maior [...]42

41 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 35.42 Idem, p.28.

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A presença de um desejo de retornar à “simplicidade” das relações sociais,

enaltecendo alguns modelos apregoados pelo clássico, na contemplação e imitação

da ideia de “Beleza” não estavam descoladas da confrontação com o aparecimento

do “novo”. Nessa relação percebemos a necessidade, por parte de Humberto de

Campos, de descrever detalhadamente os espaços reformulados pelo anseio de

construção de “novas arquiteturas”, tanto das cidades, quanto das relações sociais,

voltadas para o futuro, elogiando e alertando subliminarmente os perigos que viriam

no estabelecimento de novos paradigmas.

As experiências adquiridas no Nordeste e no Norte do país construíram em

Campos uma visão particular de mundo. A relação entre as imagens de passado e

presente é explicitada em contraste. Retiramos da crônica Mudaria a cidade... ou

mudei eu? uma parte do pensamento de Campos no que diz respeito à mudança

dos aspectos urbanos e do modus vivendi da população carioca:

Quando, em 1912, eu cheguei ao Rio de Janeiro, senti uma tão profunda emoção como se tivesse descoberto o Paraíso Terrestre. A Avenida já estava aberta, mas ainda apresentava claros nas construções. Os velhos estabelecimentos tradicionais da rua do Ouvidor resistiam, ainda, à febre inovadora.43

Aqui percebemos o contraste das perspectivas sobre o futuro, ainda

desconhecido, e talvez digno de temor. Na crônica, Campos faz um levantamento

das impressões que normalmente as pessoas adquirem com relação ao passado,

confrontando-os com o presente e as esperanças de um futuro. Ao relacionar estes

pontos, parece compensar as diferenças que se apresentam aos olhos de cada um

dos habitantes da cidade, justificando o momento presente. No entanto, o texto

constrói uma postura compreensiva quanto às mudanças, ao transferir para o

espaço, “o mundo”, o caráter de flexibilidade. Ao tomar essa atitude, Humberto de

Campos não invalida as alterações verificadas na sociedade, mas atribui ao homem

o desespero de perceber as mudanças e notar a impotência diante dos fatos em

cujo curso não pode interferir. O sentimento de nostalgia está presente nas

descrições de Campos: “Os dias eram tecidos com fios de seda, e as horas rolavam

no regaço da noite como pequeninos gatos preguiçosos em uma grande almofada

de veludo negro... E as letras eram, ainda, um delicado ornamento da vida.”44. Ao

apontar as diferenças existentes no presente, o passado transparece como a origem

43 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 106.44 Idem

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de todas as relações, que se instituem como “perfeitas”, livres de corrupções de

qualquer ordem.

Na crônica citada, percebemos também o estabelecimento de uma relação

entre os textos literários do passado e a nova ordem que se estabelecia no cotidiano

do autor. Os cenários e objetivos da escrita são remodelados com o passar dos

tempos. Se a escrita “daqueles dias” se comprometia apenas com o ornamento da

vida, Campos queixa-se indiretamente das modificações experimentadas, pois o

literário e o literato não desempenham a mesma função em seu “presente”. O lirismo

e a idealização da figura do autor cedem espaço a uma outra concepção para o

profissional das “letras”, que deixa de administrar um sacerdócio para escrever

sobre assuntos mundanos. O escritor, neste novo momento, não consegue mais

sobreviver apenas com os frutos abnegados de uma atividade literária propriamente

dita, por isso migra ou para o jornalismo ou para o funcionalismo público. O ideal

romântico de escritor disputa lugar com o profissional do jornalismo, o cronista que

observa e critica os novos e antigos costumes da cidade:

Os suicídios por amor, tão caro ainda às últimas gerações do século XIX, são já cobertos do maior ridículo. As musas inspiradoras abandonavam o fundo ensombrecido das janelas, tão propicio às idealizações românticas, para reaparecer, vestidas no rigor da moda, pechinchando no comércio de varejos. O jornalismo, com sua curiosidade pelo lado vulgar dos homens, acabou com os heróis. A guerra, vista em pormenor e analisada tecnicamente, banalizou-se.45

Nas análises de Humberto de Campos sobre o processo de modernização,

verificamos um anseio romântico de retorno ao estado “primitivo”; mas, em

contrapartida, permanece o desejo de estabelecer uma nova percepção sobre a

sociedade, a ciência e a civilização, através dos novos modelos oriundos da Europa

e de toda a necessidade de afirmação de uma tecnologia e conhecimento que talvez

será útil ao desenvolvimento da sociedade humana. Não é ingênuo pensar que a

“adesão” do escritor ao positivismo está relacionada com essa tendência de ampliar

visões e compreensões sobre o mundo no qual está inserido.

Verificamos que um contraste se estabelece. Ao mesmo tempo em que se

procura uma aproximação com a ciência e com a “realidade” por meio de

comprovações empíricas, o escritor tenta, pela imaginação e conjecturas “ideais”,

decifrar o futuro ou parte dele. Essas conjecturas estão vinculadas ao presente e ao

passado de determinada localidade ou grupo social, possibilitando certa coerência

45 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 120-121.

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nas especulações que estão propostas no texto. Ao observar o futuro como um

estágio avançado da implementação de tecnologias, o escritor encontra os modelos

anteriores e pertencentes ao passado e assim pode construir, ao menos na

imaginação, um esboço daquilo que talvez se torne no futuro aquele espaço ou tipo

de relação entre os indivíduos.

3.5 Contrastes em desenvolvimento

As ambivalências são constantes nos modos de representar costumes e

espaços. Se de um lado percebemos um pessimismo com relação ao futuro, por

outro, observamos o elogio às grandes descobertas que propiciam o avanço da

civilização. Humberto de Campos imagina e descreve a organização de cidades,

comportamentos e reações dos próprios indivíduos frente aos modelos a que foram

expostos com grande impacto durante o período.

As ideologias que circulavam naquele espaço são representadas de modo a

perceber como todas elas são contraditórias em seu interior. Na descrição

urbanística da cidade, por exemplo, são apresentadas várias máquinas e

ferramentas que facilitariam a vida na sociedade, mas isto é posto em contraste com

os comportamentos anteriores. Não que houvesse por parte de Campos um

interesse apenas de informar “sobre o futuro”, mas, nessa representação, ele cria

uma atmosfera na qual o conflito de percepções e interesses pudessem se

aproximar.

É possível que na descrição dos quadros e cenas existisse, por parte do

escritor, certa necessidade de repensar os caminhos pelos quais trilha a civilização

e, ao reconhecer essa necessidade, retornar ao ponto de partida e estancar ou

refazer o processo. As mudanças e consequências para a sociedade advindas do

“avanço da civilização” encontrarão seu apogeu em sua própria derrocada,

repensando o presente e os modelos constituídos.

Embora as previsões para o futuro sejam carregadas de pessimismo, isso não

impede que Campos descreva seu espanto quanto à presença dos avanços

existentes na sociedade. Na crônica Os avanços da medicina, o escritor refere-se às

revoluções na área médica, principalmente no que diz respeito ao processo

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cirúrgico. Campos relata um procedimento “revolucionário”, descoberto na França,

no qual se podia enxertar um braço no corpo de outra pessoa. O escritor utiliza

exemplos e imagens extraídas das Viagens de Gulliver46, demonstrando o “terror” da

cirurgia, ao mesmo tempo em que se encanta com a “maravilha” do feito. Campos,

em sua crônica diz: “Que revolução na vida, nas letras, nas artes, em tudo! Wells, o

romancista do Absurdo, o criador do inverossímil, nunca imaginou coisa igual”47.

Logo em seguida complementa: “E no futuro, que confusão! que tumulto! que

anarquia! E, sobretudo, que campo imenso, franqueado ao doido galope da

imaginação!”48. Para Humberto de Campos o único modo de arrematar os contrastes

existentes nessa nova descoberta é por meio do humor:

Esse general Trumelet, cujo braço vem abrir um caminho no mistério, deve lutar, já, hoje, com os inconvenientes da inovação. A mão que lhe cortaram, era de oficial, e executava, automaticamente, o gesto de comandar. E a que lhe deram, pendurada no novo braço, há de saber, apenas, o gesto dos que são comandados. Podia, entretanto, ser peor: podiam lhe ter posto, para angústia da sua bravura, uma perna de poltrão...49

Através da ironia e do humor, o escritor propõe a crítica e o questionamento

aos procedimentos empregados na cirurgia do general francês. Do mesmo modo

critica as descobertas no campo da ciência e as aplicações na vida dos indivíduos.

Aqui vemos um contraste: ao mesmo tempo em que a medicina caminha para a

evolução, ela está rompendo a ordem natural dos seres vivos em suas limitações.

Não que isto se configure numa atitude “não-científica”, mas problematizadora, pois

sugere que a cirurgia seja analisada com um pouco mais de cuidado.

A partir disso, destacaremos uma série de exemplos do processo intertextual

na composição da escrita de Campos que nos permitem pensar nos modos de

captação de leituras e na percepção dos métodos pelos quais o escritor abordava

seus temas, expondo, no interior dos textos, conceitos e opiniões. Os contos versam

sobre a cidade do Rio de Janeiro (Entre o que foi e o que virá), sobre um tipo de

civilização e atitudes que entendemos ser brasileiras (Os sábios selenitas) e sobre a

reação do homem frente às descobertas científicas e suas aplicações na vida

46 “Entre os sábios que o herói de Swift encontrou em atividade patriótica na Academia de Lagado, no reino de Laputa, um particularmente o surpreendeu pela utilidade e pela originalidade do seu invento: o autor de um processo físico de harmonizar os políticos. Tomava-se uma centena de próceres de cada partido, de modo a arranjar uma centena de pares cujos crânios fossem do mesmo tamanho. Em seguida, abria-se a cabeça de todos, e fazia-se uma rápida troca de miolos, em porções justas.” CAMPOS, Da Seara de Booz, p. 185.47 Idem, p. 187.48 Idem.49 Idem, p. 188.

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cotidiana (Os olhos que comiam carne). Em todos eles a presença da ciência é

problematizada, seja como discurso ou como a contradição de seus instrumentos e

ferramentas em uso nessa “modernidade”. Acreditamos que, com esses textos,

podemos esboçar uma análise acerca da ambivalência da identidade brasileira

nesse aspecto do primitivo e civilizado, desenvolvido e subdesenvolvido. O aspecto

da colonização permanece tanto na proposta política da Monarquia quanto na

República recém instaurada, e os textos de Campos podem nos ajudar nessa

compreensão acerca dos valores que foram associados ao universo da

modernização brasileira.

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Ilustração 5*

Ilustração 6** Ilustração 7***

* Graf Zeppelin sobrevoando a Avenida Central (Avenida Rio Branco). A partir de 1930 o Zeppelin passou a fazer viagens constantes para o Rio de Janeiro. Fonte: http://tigredefogo.blogspot.com/2007/06/graf-zeppelin-sobre-o-rio-de-janeiro.html** Foto de Augusto Malta. Rua do Resende, Rio de Janeiro. Disponível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional. http://catalogos.bn.br/redememoria/galerias/MaltaMHN/images/DSC_0018.jpg*** Foto de Augusto Malta. Rua d’Assembléia, Rio de Janeiro. Disponível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional. http://catalogos.bn.br/redememoria/galerias/MaltaMHN/images/DSC_0026.jpg

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Ilustração 8*

Ilustração 9**

* Foto de Augusto Malta. Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro. Disponível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional. http://catalogos.bn.br/redememoria/galerias/MaltaMHN/images/DSC_0025.jpg**Cena da cidade “moderna” extraída do filme Metropolis de Fritz Lang, 1927.

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Ilustração 10*

Ilustração 11**Ilustração 12***

* Imagem do selenita segundo George Mèlies no filme: Le Voyage dans La Lune, de 1902.** Capa da edição do livro Primeiros Homens na Lua, de H. G. Wells. *** Ilustração da narrativa Da Terra à Lua, de Jules Verne.

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Ilustração 13*

Ilustração 14**

Ilustração 15***

* Produção cinematográfica O homem com olhos de raios-X, dirigido por Roger Corman em 1963.** Capa da revista Superboy, spin-off do Superman criado por sugestão do próprio Jerry Siegel. Na capa uma troca de “olhares” através da visão de raio X. Fonte: http://www.coverbrowser.com/image/superboy/98-2.jpg*** Neste quadrinho, Lois Lane assusta-se pela capacidade matemática do Superman e não pelo uso da visão de raio X. Jerry Siegel e Joe Shuster publicaram o personagem pela primeira vez na revista Action Comics #1, no ano de 1938. A visão de raio X, de Paulo Fernando, descrita por Humberto de Campos, data de 1932, ano da publicação da coletânea em que encontramos o conto: Os olhos que comiam carne.

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4 A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA E A PROBLEMATIZAÇÃO DA SOCIEDADE

O olhar para o futuro e para a criação de novas hipóteses quanto à

organização social e cultural brasileiras convergiam para a apresentação e críticas

acerca das ideias que sustentavam a noção de progresso. Ao mesmo tempo, estas

“soluções” (na apresentação de um ambiente futurístico baseado em um

pensamento cientificista) logravam resolver, discutir, criticar os males sociais e as

constantes interrogações ideológico-culturais difundidos na capital da República do

início do século XX. A partir das imagens e representações acerca do futuro,

incluídas no escopo da protoficção científica de Humberto de Campos, passaremos

a analisar mais especificamente os contos, percebendo as relações entre eles e a

realidade na qual estavam inseridos.

Analisaremos os contos assumindo como suporte as construções de

realidade tomadas de empréstimo e lançadas para uma representação do futuro. O

universo da cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas desse século, estava

impregnado por projetos idealizados pelo grupo dominante que objetivavam o

desenvolvimento tecno-industrial do país. Atreladas a essa movimentação, surgiam

expectativas na aplicação de teorizações cientificistas e filosóficas dos aspectos da

vida social urbana. O interior deste universo propiciava leituras e interpretações

sobre a realidade e o futuro um pouco mais fantasiosas que outras, embora

estivessem atreladas a uma conjuntura real: seja social, econômica e principalmente

cultural.

Os contos Entre o que foi e o que virá, Os sábios selenitas e Os olhos que

comiam carne assumem uma linguagem e imagens pertencentes a esse universo de

desenvolvimento, civilização e supremacia de ideais científicos. Esses textos

possibilitaram a análise de construções ideológicas e culturais que circulavam no

Brasil a partir do Rio de Janeiro. Os contos apresentam-se ambivalentes quanto aos

ideais presentes no imaginário do público daquela época e que ainda persistem na

discussão da contemporaneidade. É importante notar que os textos recorrem a

relações titubeantes entre a fantasia e o desejo de realidade do discurso científico

na construção de hipóteses para o futuro. Existe neles uma espécie de antecipação,

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fundamentada no desdobramento de perspectivas existentes na sociedade, em

direção às mudanças no desenho urbanístico da capital, no tipo de sociedade e nos

entendimentos de civilização e procedimentos científicos, a exemplo da medicina.

Entendemos que estes enredos foram construídos a partir das motivações culturais,

na tentativa de estabelecer um prognóstico ideal para o país frente às configurações

verificadas no passado e existentes no presente. Esta “hipótese de futuro”

encontrada na escrita de Humberto de Campos discute as possibilidades de se

conceber uma realidade brasileira através do texto baseado na narrativa fantástica,

analisando abordagens e repercussões da compreensão do momento histórico

daquele período.

Na análise dos contos, verificamos que Humberto de Campos colocou em

destaque três imagens que utilizaremos como matriz para o desenvolvimento de

nossa discussão. No conto Entre o que foi e o que virá, a temática está centralizada

na imagem de cidade desenvolvida, repleta de máquinas e instrumentos que

“facilitariam” a vida na sociedade carioca do ano 2000, explicitamente voltada para a

velocidade e produtividade. Em Os sábios selenitas, encontramos a imagem de

civilização altamente desenvolvida e científica, porém “extraterrestre”, em relação

com o desconhecimento de uma civilização primitiva “terráquea”, identificada na

imagem da violência e inexistência de uma linguagem que permita a comunicação.

Por fim, no conto Os olhos que comiam carne, verificamos uma intersecção do texto

com a biografia de Humberto de Campos, na qual as imagens de visão e cegueira

estabelecem contatos com a ciência e sua atuação na sociedade. No conto, a

medicina estrangeira está absolutamente à frente da brasileira e permite que o cego

consiga enxergar, a partir de uma intervenção cirúrgica, cenas que nenhum outro ser

humano conseguiria ver naturalmente.

4.1 A cidade

No conto Entre o que foi e o que virá, Humberto de Campos retorna com a

figura enigmática de Pamórfio, que durante a descrição da cidade aparece apenas

como observador. Neste caso, é o próprio escritor que assume a função de “profeta”,

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ao relatar as características da cidade carioca. É interessante notar que Campos

inicia suas digressões com a afirmativa:

Para conhecer o Futuro, a marcha para diante, é preciso, primeiro, conhecer o Passado, de que é ele o reflexo. Por isso, quando eu me quero transportar ao Rio de Janeiro de amanhã, visito, antes, o Rio de Janeiro de ontem.”1

Essa atitude pode significar a busca pelas hipóteses do futuro, contrastando a

ideia de “primitivismo” com a de “desenvolvimento”. Não nos parece que o

primitivismo aqui seja visto como algo extremamente negativo. A ideia de avanço

tecnológico e comercial verificada no conto leva-nos a crer que se trata da evolução

da sociedade rumo a seu máximo esplendor. Isto não aparece como positivo ou

negativo, apenas sinaliza os estágios de desenvolvimento. Por outro lado, a figura

de Pamórfio afirma o discurso pessimista sobre a especulação do futuro. O narrador

conversa com um ente mitológico que o acompanha ao longo da narrativa, ciente

das perspectivas negativas que caracterizam sua relação com o porvir:

É nesse Pamórfio que eu penso, às vezes, quando me ponho a refletir sobre os destinos da Humanidade, e, mais restritamente ainda, no desta cidade que lhe é, hoje, cérebro e coração. Já alguém imaginou, por acaso, o que será o Rio de Janeiro dentro de um século ou, mesmo, dentro de cincoenta anos? Já houve quem se transportasse em pensamento a esta Sebastianópolis, imaginando-se no ano 2000? Faça cada um os seus cálculos, e dê liberdade à imaginação.2

As imagens sobre a cidade do Rio de Janeiro no momento de sua fundação

são apresentadas como ponto de partida para as hipóteses do escritor. O narrador,

criado por Humberto de Campos, descreve desde o desenho geográfico da região

até as primeiras intervenções dos habitantes e as primeiras aparições dos

elementos da modernidade. As descrições estão sempre focalizadas na integração

de grupos populacionais, fluxo de pessoas e na agilidade das trocas comerciais. As

imagens de velocidade na circulação de informações, de rapidez no comércio, no

abastecimento dos gêneros alimentícios à capital, dão a tônica da representação da

cidade do futuro.

Mesmo ao descrever os acontecimentos do passado, o narrador se apoia nas

imagens de velocidade quando menciona, por exemplo, a construção de vias de

ligação, que propiciaria a facilidade na locomoção de pessoas e bens materiais.

Com isso percebemos que estas imagens gozavam de importância para aquele

momento. Ao partir para o passado, Humberto de Campos identifica o embrião

desse ideal de velocidade que é estabelecido na interação de pessoas e grupos 1 CAMPOS, Humberto de. Lagartas e Libélulas. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 202.2 Idem.

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sociais diferentes. Quando se refere ao Rio de Janeiro do passado, o narrador

afirma: “Aberta uma estrada sobre o mangal, para a Quinta da Boa Vista,

estabelecem-se ligações entre os núcleos de população que se formaram.”3. Nesta

breve descrição, percebemos o caráter de facilitação do transporte e do

estreitamento entre os grupos populacionais. Ao finalizar a etapa da descrição do

passado, o autor estabelece uma cena de transição para se concentrar nas

descrições sobre o futuro:

Vêm os bondes. Abre-se o túnel de Copacabana. A cidade, cheia, derrama-se. Rodam automóveis sobre o asfalto onde corria o tatuí na areia molhada. E surge a capital magnífica e atordoante, a metrópole moderna, com os seus jardins de vinte e cinco quilômetros e os arranha-céus de vinte e cinco andares...4

A definição de “metrópole moderna” já é uma aparente necessidade de

distinguir os modelos de cidade. Os vazios do desenho urbanístico propiciados pelos

jardins de vinte e cinco quilômetros e prédios altíssimos servem também como um

indicador dos anseios de modernidade na especulação quanto ao futuro. Uma

indicação de que a cidade se constitui no símbolo de prosperidade e avanço da

cultura moderna. No entanto, esta é uma cultura que privilegia o individualismo e

favorece uma atitude pragmática das relações sociais, visando a produtividade e

otimização do tempo.

Encontramos idêntica preocupação no romance Paris do Século XX, de Jules

Verne, obra descoberta recentemente e publicada apenas em 1994. Este livro,

escrito em 1863, descreve a capital da França no ano de 1960. Paris é uma cidade

absolutamente urbana e carente de uma “cultura clássica”, na qual o protagonista

Michel Dufrénoy busca um editor para os seus versos latinos. No capítulo Apanhado

geral das ruas de Paris, o narrador apresenta-nos o personagem em meio às

imagens de velocidade: “Michel Dufrénoy seguira a multidão, mera gota de água

naquele rio que, com a ruptura de suas barragens, se transformava em torrente.”5. A

rua torna-se, por excelência, o espaço profícuo para a percepção das mudanças

urbanísticas e culturais, além de permitir o estabelecimento de interações entre os

sujeitos, habitantes daquela cidade.

Em outro contexto, João do Rio, na crônica A Rua, menciona o caráter

dialógico entre os sujeitos e a própria cidade, partindo do espaço das ruas: “Nas

3 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 204.4 Idem.5 VERNE, Júlio. Paris no século XX. São Paulo: Editora Ática, 1995, p.42.

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grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus

habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos,

opiniões políticas”6. A partir de João do Rio, percebemos o quanto as experiências

adquiridas no espaço das ruas interferiam no imaginário cultural da população

brasileira. Certamente a velocidade e produtividade são os elementos primordiais da

modernidade que se desvela, tangenciando as diversas realidades experimentadas

por cada sujeito na vivência com a rua em meio à multidão. Essa mesma multidão

que circula nas ruas das grandes metrópoles é uma das temáticas presentes na

teoria de Walter Benjamin na análise dos textos de Baudelaire:

Mover-se através do trânsito, comporta para o indivíduo uma série de choques e colisões. Em pontos perigosos de cruzamento, fazem-no estremecer, em rápidas sucessões, nervosismos iguais às batidas de uma bateria. Baudelaire fala do homem que mergulha na multidão como num reservatório de energia elétrica. Define-o, logo em seguida, descrevendo assim a experiência do choque como “um caleidoscópio dotado de consciência”.7

A velocidade impõe-se como necessária à nova compreensão das relações

em sociedade. O fluxo de pessoas no romance de Verne, a rua, que em João do

Rio, é imagem do espaço de interações na modernidade, e o homem como

“reservatório de energia elétrica”, segundo Benjamin, compilam o símbolo de

sociedade que reflete a agilidade como uma marca de destaque. O caleidoscópio

pode ser compreendido como a reunião de diversos fragmentos e culturas

experimentadas, que constituídos na imagem do “homem moderno” formariam uma

visão de mundo diferenciada, pautada em diversos conhecimentos, mantendo-se

consciente da atuação transformadora no universo.

Através do romance de Verne podemos relacionar algumas pistas da

necessidade de vincular imagens de desenvolvimento com a velocidade das trocas

comerciais e do trânsito de pessoas. A imagem de “agilidade e rapidez” está

presente tanto em Jules Verne quanto em Humberto de Campos e podemos

identificá-la como um dos símbolos de desenvolvimento e de civilização.

Percebemos essa busca pelo progresso na descrição da cidade de Paris, conforme

o narrador criado por Jules Verne:

6 RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. São Paulo: Martin Claret, 2007. p.36. (Coleção a obra-prima de cada autor).7 BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 54.

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Os meios de transporte eram rápidos, portanto, nas ruas menos atravancadas que no passado, pois uma determinação do Ministério da Polícia proibia que carretas, carros de carga ou caminhões circulassem, depois das dez da manhã fora de certas ruas reservadas.Essas diversas melhorias conviam bem àquele século febril, em que a multiplicidade dos negócios não deixava espaço para o repouso e não permitia atrasos.8

Uma destas cenas está vinculada, no texto de Campos, com o trabalho dos

“cidadãos do futuro”. No Rio de Janeiro do ano 2000 não se pode perder nenhum

minuto na caminhada rumo à evolução e o progresso: “Há serviço aéreo para São

Paulo de dez em dez minutos, e aeronaves de luxo das onze horas para um almoço

em Petrópolis, as quais reporão o assinante no Rio à meia hora, tendo ele gasto

uma hora à mesa.”9. O tempo é um elemento que contribuiria para a associação com

a modernidade, ou seja, o homem não pode desperdiçar nenhum minuto que não

esteja vinculado ao trabalho, permanecendo assim engajado no desenvolvimento da

sociedade e acumulação de riquezas. Do mesmo modo, Jules Verne refere-se aos

habitantes de Paris, ao apresentar pela voz de seu narrador o espanto acerca dos

serviços e maravilhas existentes naquela cidade:

“serviam-se delas tranquilamente, sem ficarem mais felizes por isso, pois, com seu ritmo acelerado, suas atividades apressadas, seu ardor americano, percebia-se que eram acossados sem interrupção nem piedade pelo demônio da fortuna.”10

Sabemos, através de Jeffrey Needell, que havia uma prática comum de

deslocamento dos burgueses cariocas do centro da cidade para Petrópolis,

transferindo um status de elegância e prosperidade aos chefes de família. A partir

dessa experiência de “presente”, Campos lança sua observação para o futuro e

desenvolve a necessidade de um transporte veloz, capaz de deslocar os “homens

de negócio” para suas atividades, permitindo que eles pudessem cumprir sua

agenda de trabalho e suas “obrigações” familiares ao mesmo tempo em que

ostentavam suas riquezas. Esse grupo, de acordo com Needell, trouxe para si

prestígio suficiente, sendo necessário criar uma “instituição” para reunir os sócios.

Era o Club dos diários:

O termo deriva das viagens diárias a que se obrigavam aqueles cuja riqueza e posição lhes permitia veranear no fresco refúgio serrano da elegante Petrópolis, mas paralelamente exigia deles que percorressem o caminho ida

8 VERNE, Júlio. Paris no século XX. São Paulo: Editora Ática, 1995, p. 49.9 CAMPOS, Humberto de. Lagartas e Libélulas. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 205.10 VERNE, 1995, p. 50.

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e volta até seus escritórios cariocas, a cada manhã e tarde, num ritual tedioso para aplacar tanto os deuses da moda quanto os da riqueza.11

A mesma ideia de urgência e brevidade na execução das tarefas verificamos

no texto de Campos. Embora não tivesse sido leitor desse romance de Verne, no

qual encontramos o protagonista aflito em meio a uma sociedade que privilegia o

conhecimento da técnica, Humberto de Campos, em suas narrativas e personagens,

experimenta o mesmo contexto histórico da busca pelo desenvolvimento. Desse

modo, localizamos as concepções sobre os tipos de civilização que circulavam na

época e que estão refletidos na escrita de ambos os escritores e em suas

descrições. Uma sociedade que “não permite atrasos”, mas valoriza o tempo e a

produtividade, é criticada no modo como incentiva os sujeitos para o enriquecimento

da elite e o trabalho. Vejamos como o “uso produtivo” do tempo e dinheiro é descrito

na narrativa de Campos: “Fornece-se leite e vinhos como se fornecia gasolina em

1933; deita-se a moeda em um dos orifícios, e abre-se uma torneira para receber o

líquido correspondente.” Rapidez no fornecimento e no consumo, excetuando a

interação humana com o leiteiro e o frentista, vendedor de gasolina. A moeda e o

contato com a máquina são os símbolos da relação capitalista que divulga a melhor

maneira de adquirir bens e serviços.

Ao se voltar inicialmente para o passado para construir suas hipóteses sobre

o futuro, Humberto de Campos realiza a tarefa de comparar o ambiente cultural no

qual estava inscrito com suas projeções, descrevendo o resultado dos

desdobramentos das hipóteses baseadas na atualidade. Esta percepção, verificada

no texto, dialoga com os diversos imaginários que foram construídos no processo de

urbanização da cidade do Rio de Janeiro. Na descrição do “passado”, a Avenida

Central, símbolo do processo de modernização urbanística do Brasil, e as outras

vias que interligavam o centro às demais localidades e ao porto, eram apenas o

esboço para uma intensificação desta imagem de velocidade: “A Avenida Central

não é mais, agora, do que uma pequena veia do novo sistema circulatório do

formidável organismo urbano.”12. Naquele momento, a Avenida era a obra máxima

das reformas urbanísticas, e associá-la, no ano 2000, a “uma pequena veia”

simbolizava o quanto a sociedade brasileira progrediria em direção ao apogeu da

civilização, demonstrando o quanto se modernizava ao longo das décadas.

11NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.95.12 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 205.

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A imagem de velocidade está refletida não apenas nas reestruturações

urbanísticas da cidade e deslocamentos de pessoas. Verificamos essa tendência na

concepção dos bens culturais em destaque no conto de Campos. Sobre esse tema,

o narrador, instigado por Pamórfio, prevê que no ano 2000: “Há romances e novelas

vendidos em pequenos discos: adquire-se Shakespeare comprimido, e mete-se no

bolso, para ouvir em casa.”. A partir deste exemplo, observamos que os pequenos

discos substituem os livros e, ao invés da leitura do texto, o sujeito serve-se de uma

relação mais “confortável” com o texto clássico. Desse modo, o indivíduo estaria livre

para fazer outras coisas e não precisaria dispor de um tempo específico para a

leitura, baseado no contato direto com o livro. Parece-nos que os romances e

novelas são encarados como mercadoria que se compra e leva para casa sem

grandes complicações, rompendo qualquer tipo de imagem sacralizada, outrora

atribuída a textos literários como os de Shakespeare. No entanto, a citação do

escritor inglês aponta para a conservação de uma cultura específica, comprometida

com os valores da “ilustração”, humanista e clássica. Mesmo no ambiente do

distante ano 2000, os escritores, a exemplo de Shakespeare, mantêm-se presentes

no imaginário cultural, certamente concebido como um texto universal, independente

do tempo e do espaço.

Outra ferramenta projetada para o futuro possui a mesma ideia de trânsito

rápido de informações e permitia que qualquer habitante da cidade obtivesse acesso

às informações e notícias de diferentes espaços do planeta: “Um aparelho instalado

na praça Mem de Sá permite assistir, vendo e ouvindo, o combate entre alemães e

franceses, e que é a ‘revanche’ dos franceses, derrotados pelos alemães em 1952.”.

Seria propriamente a livre acessibilidade na divulgação das notícias que são

transmitidas no momento em que os fatos ocorrem. Não apenas se lê um texto

escrito, tal como nos jornais, mas se ouve e vê. Um produto multimídia que permite

a aproximação do sujeito com as informações. Observamos também que o aparelho

está localizado numa praça e as notícias circulam lá entre os “telespectadores”,

produzindo uma ideia de opinião pública que pode ser compartilhada com os outros

que se encontram ali presentes. De modo semelhante, a leitura dos jornais e

folhetos informativos é alterada por conta da “campanha contra o papel”, no qual

percebemos certa preocupação do narrador com os recursos naturais do planeta, ao

mesmo tempo em que a efemeridade das informações é posta em destaque. Os

jornais deixariam de ter a circulação diária para, em termos contemporâneos, serem

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atualizados em “tempo real”, justificando a eliminação do papel por outro veículo que

não causasse tantos danos à natureza:

A campanha contra o papel, que ameaçava destruir todas as florestas da terra, institui o jornal-verbal: quem quer ter notícias do que está acontecendo no mundo põe um pequeno fone portátil ao ouvido e aperta um botão, ou entra em qualquer estabelecimento de comércio, onde grandes aparelhos anunciam as novidades da hora.13

No final do texto, Pamórfio (que até o momento figura apenas como

observador) surge com um ar irônico, desdenhando as suposições do narrador

quanto ao futuro da cidade. A entidade, conhecedora das ciências ocultas e dos

destinos da humanidade, utiliza a mesma imagem de velocidade para arrematar as

descrições feitas pelo narrador: “Para atingir a realidade quanto ao Futuro, falta

fôlego aos cavalos da tua imaginação!”14 Se partimos do significado da imagem de

Pamórfio no contexto do conto veremos que as descrições sobre o desenvolvimento

da cidade estavam atreladas a uma crítica dos processos que buscavam essa

“civilização”. As imagens de velocidade, agilidade no comércio, as relações com

outros sujeitos, com a informação e a própria cidade figuram como extremamente

necessárias ao desenvolvimento, mas configuram implicitamente a crítica e os

prejuízos a esse processo.

É deste modo que o Rio de Janeiro, no texto de Campos, constrói sua

organização estrutural, utilizando o princípio da velocidade como base. As hipóteses

estão, ainda assim, vinculadas à realidade vigente com a qual o escritor mantém

seus entendimentos sobre o futuro e o destino final da sociedade. A figura de

Pamórfio, portadora de uma visão negativa do desenvolvimento da sociedade, serve

como ponto de apoio para a análise do narrador acerca deste ambiente. Assim, a

cidade é compreendida no apogeu de sua evolução e experimentada implicitamente

como um “inferno”, ao se distanciar de padrões já vividos e considerados como

portadores de danos menores ao coletivo social. Na narrativa, Humberto de Campos

posiciona-se à distância ao mesmo tempo em que comunga do imaginário de um

destino apocalíptico para a humanidade.

13 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 205.14 Idem, p.207.

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4.2 A civilização

O conto Os sábios selenitas não trata especificamente de uma previsão para

o futuro. Encontramos uma realidade paralela, na qual existem habitantes na Lua (os

selenitas) que querem manter contato com os habitantes da Terra. Observamos uma

clara relação entre dois grupos distintos incomunicáveis até aquele momento. Um

grupo apresenta-se como evoluído e portador de um conhecimento científico

superior e o outro grupo é desprovido de inteligência. O contato com o Outro é uma

temática bastante explorada nos textos que tratam de utopias e principalmente nos

textos de ficção científica. O Outro é desconhecido, aquele sobre o qual não se sabe

muita coisa, sendo assim passível de estereótipos.

Na tentativa de descortinar os “mistérios” sobre a existência do Outro,

encontramos na escrita de textos utópicos, por exemplo, a demonstração de

elementos ausentes em determinado contexto, se partirmos de um referencial

estabelecido na representação de formas “perfeitas”. Em uma rápida observação a

textos como A Utopia, de Tomas Morus (1478-1535), percebemos algumas

aspirações diante da realidade vigente daquele momento. Nas narrativas utópicas, o

escritor, por meio de um relato aparentemente despretensioso, apresenta

características da viagem e descoberta de uma nova civilização que difere em muito

da civilização na qual o escritor está inserido.

Tomas Morus, por exemplo, talvez imbuído de um sentimento religioso em

consonância com os ideais de uma sociedade igualitária, apresenta uma ilha

(Utopia) que difere da realidade social vigente. O símbolo de uma sociedade pós-

apocalíptica governada pelo Messias é retomado para compor a narrativa de Morus.

Nela concentra-se um sentimento de comunhão e igualdade entre os habitantes,

privilegiando as descrições de um comportamento voltado para o desapego à

propriedade privada e aos elementos de riqueza material. É importante notar que

essa igualdade prescrita na forma de governo é afirmada na descrição da ilha,

mesmo que lá também existissem escravos e que fossem tratados duramente. O

princípio de igualdade é evidenciado nas condições sociais, políticas e econômicas

dos habitantes, nas roupas utilizadas, tipos de alimentos que devem ser

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consumidos, até na unificação litúrgica da vida religiosa. Certamente é uma

igualdade que assegura privilégios e põe em relevo outros grupos caracterizados

como estranhos, insurgentes, intrusos, bárbaros, etc.

Podemos pensar que nas narrativas utópicas está em reflexão uma realidade,

na medida em que reconfiguram aspectos vigentes diretamente no texto,

apresentando didaticamente algumas soluções para o presente. O texto constrange

uma dessas realidades com uma possibilidade ainda inexistente, mas

aparentemente melhor, perfeita em todos os aspectos. O interessante é que as

narrativas de caráter utópico sempre caminham para uma homogeneização de

costumes, saberes e culturas. A uniformidade e uniformização dos conjuntos sociais

parecem ser mais aprazíveis do que a existência de um amplo espectro de

“alternativas”. A utopia elimina as diferenças, pois o ideal de igualdade e espaço

homogeneizado é necessário para se manter o controle. Por isso, verificamos esse

controle nas vestimentas, nos usos e comportamentos dos cidadãos diante de toda

a sociedade, pois talvez assim as imperfeições e desníveis de várias ordens serão

corrigidos.

No conto de Humberto de Campos, encontramos uma intenção de descobrir o

mistério do desconhecido, descrevendo-o a partir de um referencial. No texto, os

selenitas desejam saber se o planeta Terra possui vida inteligente e se seus

habitantes estariam dispostos a estabelecer contato. Aqui, percebemos a utilização

do imaginário acerca da existência de vida em outros planetas. Ao iniciar a narrativa

com a sociedade encontrada na Lua, o escritor estabelece uma inversão de papéis,

pois seriam os seres humanos a se perguntarem sobre a vida na Lua.

Essa temática foi utilizada em outros textos literários como Da terra à Lua, de

Jules Verne, e Os primeiros homens na Lua, de H. G. Wells. No texto de Campos, a

pergunta é invertida e os referenciais de beleza e saber são rasurados na intenção

de promover o questionamento. Os selenitas Sttaf, Herlowawth e Anianax, membros

da Academia de Ciências Lunares e Celestes, procuram saber se a Terra é

habitada, e entre si cogitam as possibilidades dessa existência: “Reunidos os três

monstros inteligentes no alto de uma grande montanha calcinada, entraram a

discutir, em voz gutural, a possibilidade de um entendimento com os longínquos

habitantes da Terra.”. Anianax, o sábio que já havia estipulado cálculos sobre outros

corpos celestes apresenta suas hipóteses sobre o problema do desconhecido,

interrogando os demais acerca da natureza do objeto de pesquisa:

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O planeta que nos ocupa não pode ser habitado, como a Lua, em que vivemos. A massa líquida que se move dele, tomando-lhe três quartas partes da superfície, e, sobretudo, a umidade ambiente, são infensos a qualquer manifestação de vida. E se, porventura, os meus cálculos falham; se há, por lá seres vivos, estes permanecem, necessariamente, em um estado tão rudimentar de inteligência, que nos seria impossível travar com eles quaisquer relações.15

Percebemos aqui a necessidade de conformar os questionamentos a certo

espírito científico que pudesse trazer respostas comprovadas e irrefutáveis. A

criação das hipóteses leva à construção de um programa de investigação que

consiga compreender algumas explicações acerca do objeto de estudo. Os selenitas

desejam resolver o problema do desconhecido, afinal a Terra desperta a curiosidade

dos sábios. A citação na narrativa do empreendimento de uma pesquisa empírica na

verificação da vida no planeta está em sintonia com os pressupostos positivistas de

Comte, que incentivavam a “luta” do homem contra qualquer tipo de explicação que

não pudesse ser comprovada in loco.

Por outro lado, a existência de habitantes na Lua é o primeiro elemento que

suspende a realidade vigente e conduz a narrativa para o contraste dos

entendimentos sobre civilização. Os selenitas são inteligentes e capazes de

construir equipamentos e ferramentas que consigam responder às suas questões,

exercitando o espírito científico, claramente positivista. No texto, localizamos esse

anseio no momento em que o narrador expõe as diversas teorias acerca da

possibilidade de vida inteligente na Terra. Essas teorizações estavam

fundamentadas em estudos anteriores que podiam ser colocados em confronto com

novas descobertas. Na tentativa de “encerrar” a questão, bastaria constituir uma

expedição para comprovar ou negar as teorias existentes:

A teoria de Anianax, de que a Terra é desabitada, e de que, se tem habitantes, estes se conservam em um estado rudimentar, vivendo na mais lamentável brutidão, era já, a de Clown, pai de Wfluffnwit. E a de Sttaff, de que o grande planeta é habitado, e de que os seus habitantes se acham em uma situação de cultura igual, pelo menos, à nossa, também não é nova. Advogavam-na, em tempos que a lembrança não apreende, Sttowen, Aixley, Butternwamnd, e outros, cujo nome a luz do entendimento não repetiu na memória das criaturas. O que eles não tinham, porém, como nós era o meio de resolver tamanha controvérsia, tamanha dúvida, o qual nos é facultado, agora, pela máquina voadora de Warthwift. Façamos, pois, com que ele parta, convenientemente do planeta que nos conduz através da amplidão, trazendo-nos informações seguras, claras, positivas, sobre os nossos misteriosos vizinhos do ar.16

15 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p.184-185.16 Idem, p.186.

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Encontramos, também na narrativa, o uso de equipamentos que contribuiriam

para desvendar o problema. A máquina voadora, construída por um dos selenitas,

serve ao propósito da expedição que tem o objetivo de chegar a Terra. O aparelho é

muito diferente da bala de canhão utilizada no livro de Verne, ou da “cavorita” do

livro de Wells17. Embora não exista ao longo da narrativa uma descrição minuciosa

da nave selenita, sabemos que ela decola e aterrissa, não sendo arremessada ou

“atirada” ao alvo e tampouco é composta por uma substância misteriosa. O domínio

dos céus e utilização das máquinas que voam, talvez seja uma das marcas

principais de desenvolvimento tecnológico. Não podemos esquecer que na

configuração desse aparelho selenita podemos encontrar os êxitos de Santos

Dumont em seus experimentos com o avião, no cenário científico brasileiro. O

equipamento construído pelos selenitas distingue os graus do conhecimento e

domínio da ciência que eles possuem e o modo como os utilizam para promover

uma expedição científica. Aqui, temos a ideia de que a civilização exterior ao planeta

Terra é muito mais evoluída tecnologicamente, a ponto de desenvolver uma

máquina e empreender viagens interplanetárias para comprovar, ou não, a

existência de vida inteligente nos planetas. O diálogo entre os selenitas deixa claro

quais eram as intenções do programa de investigação:

– A máquina de voar inventada pelo engenheiro Warthwift, – ponderou, levantando a enorme cabeça trêmula, estrelada de olhos, o venerando Herlowawth – é o único processo de que dispomos para descobrir se o planeta de que dependemos é, como se supõe, habitado. Os nossos recursos para verificação à distância, são, como sabemos, deficientes. Se os aparelhos acusam vestígios de vida, que se patenteiam pela modificação progressiva da crosta planetária, essa possibilidade é afastada, de pronto, pelos fenômenos verificados, e por uma infinidade de circunstâncias em que se apóiam alguns dos nossos mais eminentes colegas.18

Poderíamos estabelecer uma comparação a esse desejo de comprovações e

descobertas se nos lançarmos ao período das grandes navegações de fins do

século XV e início do XVI. A Europa, em especial Portugal, direcionou os esforços

no estudo e análise da existência de “novas terras” que pudessem propiciar a

expansão do comércio de mercadorias e extração de matéria prima. Utilizou a

17 Em ambos os livros, os personagens são pesquisadores que pretendem descobrir se a Lua é habitada e quem são esses seres. No livro de Verne, os integrantes do Clube do Canhão se empenham na tentativa de construir um projétil que, lançado à Lua, pudesse descortinar o mistério acerca de seus habitantes. Em Wells, a “cavorita” é uma substância anti-gravitacional que reveste o veículo no qual os tripulantes embarcam em direção à Lua, lá encontram um povo triste e mau-humorado. VERNE, Jules. Viagem ao redor da Lua. Rio de Janeiro: Editora Matos Peixoto, 1963; WELLS, H. G. Os primeiros homens na Lua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.18 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p.184.

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ciência que dispunha na época, para possibilitar a construção de grandes navios que

pudessem chegar “seguros” ao destino planejado. Embora não estivessem movidos

pelo positivismo de Comte, o desenvolvimento das ciências no Renascimento

italiano e Humanismo português substanciaram a necessidade de encontrar novos

mundos, todos ainda desconhecidos, possibilitando também a especulação da

existência deles19.

Tanto os “desbravadores” portugueses como os selenitas não encontraram

áreas vazias e espaços que não estivessem ocupados pela cultura dos nativos no

“Novo Mundo”. Aqui, verificamos o jogo de intenções e representações no interior do

projeto de colonização. O Outro, nativo, é símbolo do primitivismo e é representado

pelos cronistas como dependente do “civilizador”, ou até mesmo como um ser

monstruoso que, de alguma maneira, justificasse o extermínio. Desse modo, todos

os esforços são direcionados aos “selvagens”, no sentido de esquematizar e

hierarquizar costumes, doando, a partir de então, uma cultura “legítima” vinda do

colonizador. Inevitavelmente teremos uma ideia de extermínio, seja da cultura ou

dos povos nativos. O colonizador pretende afirmar sua própria cultura como

superior, possuidora uma origem “divina” ou composta de referências arbitrárias de

“certo” e “errado” de um grupo hegemônico. O contato com o Outro é uma temática

muito produtiva na ficção científica, como atesta Roberto Causo:

[...] é possível argumentar que a ficção especulativa continuou projetando o mesmo modelo de investigação especular dos seus próprios objetos, originários da própria estrutura da qual o autor extrai os elementos de sua produção, mas com um sujeito exótico, uma alteridade que é virtual – o Outro é o ser alienígena, e não o nativo dos trópicos ou das Índias; o mutante ou o monstro e não os selvagens primitivos; o homem do futuro, e não o colono que se misturou aos nativos. O Outro certamente está no centro das intenções da ficção especulativa, tanto quanto a ciência ou a extrapolação.20

O imaginário europeu repleto do diálogo com a cultura religiosa e mística de

vários povos apresentava os novos “mundos” como se fossem extraídos de um

paraíso divino, protegido por bestas, demônios, maldições e seres fantásticos. No

entanto, a caracterização dos espaços que se desejava explorar era muito bem

19 No Iluminismo francês, encontramos um conto de Voltaire que discute a vida em outros planetas. Os personagens principais descobrem e analisam o planeta Terra, definindo seus habitantes como arrogantes, mesmo sendo muito pequeninos em comparação aos “extraterrestres”. O enredo apresenta-se a partir da viagem interplanetária de Micrômegas, habitante de um dos planetas de Sirius e seu secretário, habitante de Saturno. VOLTAIRE. Romances e Contos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959.20 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 62.

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definida. As riquezas naturais e o ambiente propício ao desenvolvimento da extração

de recursos de toda ordem eram símbolos da Terra da Promissão, enquanto os

habitantes eram considerados “ingênuos”, torpes em seus costumes, pertencentes

ao quadro descritivo dos produtos do lugar a ser explorado, desprovidos de qualquer

senso de organização sócio-política e cultural. Em suma, os nativos eram sujeitos

que não criariam obstáculos ao “dever” dos colonizadores de civilizar as nações, no

ato de entregar-lhes um rei, uma fé e um sistema cultural “legítimo”.

Os Sábios Selenitas põem em foco a discussão acerca do Outro e os modos

como são representados e compreendidos a partir da cultura hegemônica. Nesta

representação, surge todo o ideário filosófico que circulava no início do século XX

através da constituição de uma metodologia de trabalho que pudesse apontar as

comprovações das teorias, especulações e desse modo apresentar uma descrição

dos habitantes que pudesse atender ao desejo de hierarquizar costumes e grupos

sociais. A questão que consideramos fundamental no conto está localizada na

dúvida dos selenitas sobre os habitantes da Terra e a possibilidade destes

estabelecerem um diálogo.

Na discussão do programa de investigação sobre o planeta, os selenitas

entram em acordo e decidem mandar para o campo de pesquisa um emissário que

pudesse analisar seus traços físicos e geográficos e verificassem a existência de

habitantes capazes de manter um contato com eles. Acertadas as diretrizes do

estudo empírico, o selenita “desbravador” parte para o cumprimento de seus

objetivos. Segundo o narrador, os habitantes da Terra identificam a espaçonave

selenita como: “[...] uma grande ave de forma jamais vista, que descia rapidamente,

em ligeiros rodopios de parafuso. Chegado à Terra, o grande pássaro pousou

fragorosamente no solo fofo, levantando grande nuvem de areia.”21. A nave do

selenita desce no deserto do Saara. O emissário julga os primeiros seres vivos como

habitantes daquele árido planeta e tenta estabelecer contato com os leões que

estavam descansando próximos a um Oásis. A figura do leão, em nossa análise, é

um símbolo emblemático. Humberto de Campos já havia feito outra referência sobre

o animal no conto O Leão22. Podemos discutir a construção dessa imagem, partindo

da concepção sobre o Outro e sobre as características contidas em ambos os

textos.

21 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p.187.22 Idem, Pombos de Maomé, 1960.

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No conto O Leão, o chamado “rei dos animais” está no deserto da Líbia,

África, e vive em plena liberdade no deserto, experimentando uma vida sossegada e

sem grandes problemas. O deserto e a África são imagem associadas ao estado

rudimentar de civilização, embora neste conto a representação que se apreende é

de um espaço utópico no qual a “população” de leões vive em perfeita harmonia e

tranquilidade, sem qualquer marca que os distinga quanto à organização de uma

civilização ou de cultura particular. O único valor presente é a liberdade. No entanto,

os animais são susceptíveis ao rapto de grupos dominadores. O narrador inicia:

Nesse tempo, os desertos da Líbia eram muito menos freqüentados do que hoje. A principal indústria do país – a cultura do leão em estado livre, dava excelentes resultados. O leão pululava e podia-se dizer que bastava a gente se abaixar para apanhá-lo. E era lá que os romanos se abasteciam de reis dos animais para os ásperos divertimentos do circo.23

Ao desenvolver o conto, o narrador mostra a captura do leão e as atitudes

atrozes com as quais ele é tratado pelos romanos: “carregado naquela gaiola, de

cidade em cidade, onde era mostrado como curiosidade; e à medida que a viagem

prosseguia, os guardas redobravam os maus tratos com o animal [...]”. Ele é exposto

a todo tipo de brutalidade sob a posse dos romanos: “[...] deixavam-no jejuar dias

inteiros; picavam-no com barras de ferro em brasa; acutilavam-no a todo instante;

chegaram mesmo, a aparar-lhe as garras num requinte de crueldade.”. Por fim, ao

chegarem à Itália, destino da jornada, o leão é levado para desempenhar as

“funções” de animal selvagem no circo romano:

No meio do anfiteatro, dezenas de seres macilentos, desgrenhados, horríveis, agrupavam-se, em atitudes ameaçadoras, ou levantando os punhos num gesto de desafio. O leão estremeceu, e soltou um grito:– Nossa Senhora! Lançaram-me aos cristãos!...E, resignado a tudo, deitou-se sobre o flanco, esperando a morte.24

De fato, existe uma nota humorística voltada à narrativa, na qual o leão se

torna servo dos romanos, raptado e levado cativo para cumprir ordens e participar

no circo. Acreditamos que a utilização do espaço africano, especificamente, o

deserto, está relacionada com a intenção de representar os habitantes da África e a

relação deles com os “dominadores”. Assim, percebemos que o conto é uma

alegoria do período da escravização africana. No entanto, há um confronto com a

descrição da história: o leão, no circo romano, devorava os cristãos, no conto de

Campos são os cristãos que o matam logo após ser torturado no percurso até a

Itália, símbolo da grande civilização romana. Encontramos uma representação 23 CAMPOS, Pombos de Maomé, p. 198.24 Idem, p.200.

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alegórica da escravidão, na qual o animal, livre e “de belo aspecto”, é retirado do

deserto africano para servir e posteriormente ser morto pelos cristãos, seus

dominadores. Aqui verificamos a inversão de alguns valores, pois a imagem dos

cristãos é posta em contradição pela atitude que eles tomam diante do leão que

deveria ser o símbolo da selvageria, primitivismo e morte.

Há uma diferença na representação do leão contida em Os sábios selenitas.

Neste conto, existe um grupo de leões descansando nas proximidades do Oásis no

momento em que o selenita chega com sua astronave em Amfitalah, no Saara,

África. Os animais estão em liberdade, atentos a tudo que acontece à sua volta. É

nesse estado de vigilância que eles recebem com certa “surpresa” a chegada do

habitante da Lua. Compreendemos que a construção da imagem do leão nesse

conto localiza-se no binômio “civilizado-selvagem” e no conto anterior

“liberdade/vida-servidão/morte”. O que interessa para os selenitas é o contato com

uma vida inteligente e esta “inteligência”, nós entendemos como sinônimo de

civilização, conforme a filosofia positivista. O contato entre duas civilizações

(selenitas-terráqueos) estabelece hierarquias a partir do referencial do “saber”. Os

leões do conto são ferozes, reforçando a ideia de selvagem, e não permitem que o

emissário se aproxime tanto do grupo:

A poucos passos, porém, deteve-se, aterrado: é que percebera um rugido cavo, soturno, profundo, partindo com certeza dos grandes habitantes do Oasis. Encheu-se de coragem e deu mais dois passos; e ia dar o terceiro, quando os leões, enfurecidos pelo desafio, deram um salto de três metros, partindo, de dentes à mostra e de juba alvoroçada, a seu encontro.

A partir do contato imediato entre selenitas e habitantes da Terra surge uma

relação metonímica, na qual, toda a população “terráquea” será classificada pelos

sábios selenitas como violenta, primitiva e de aspecto selvagem. A defesa dos leões

contra o estranho, representado pelo selenita, é entendida como uma recepção

violenta e negativa, impedindo o estabelecimento de uma aproximação entre as

“civilizações”. Se tomarmos a dicotomia civilizado-selvagem como vértice de análise,

identificaremos que o emissário, e todos os selenitas a partir da representação dele,

compõe o grupo de civilizados portadores de uma ciência e sabedoria, enquanto os

leões africanos são representados como inferiores. O relatório do viajante selenita

afirma que o planeta Terra é:

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– Habitado sim; mas por entidades com as quais são impossíveis as nossas relações. Os seres que lá vivem, moram ao ar livre, dormem no solo bruto, possuem quatro patas, dois olhos, e na cabeça, maiores que a nossa, um turbilhão de cabelos emaranhados. Mal me viram, escancararam uma boca enorme, e saltaram-me em cima, no propósito certo de devorar-me.

A descrição dos costumes e organização dos habitantes da Terra é

construída a partir do referencial dos próprios selenitas que assumem tipicamente

uma atitude etnocêntrica em detrimento do grupo de leões. Se buscarmos uma

relação dessa temática com a problematização acerca do ideal de desenvolvimento,

veremos que os selenitas são considerados como superiores em relação aos

“terráqueos”. Ainda, se verificarmos os discursos correntes na sociedade brasileira,

veremos que a representação é invertida, ou seja, os “humanos” (ou poderiam ser

humanistas, europeus) consideram-se superiores a qualquer outro tipo de civilização

existente. Os europeus seriam o símbolo absoluto de “superioridade” frente às

outras nações, e no Brasil, especificamente na sociedade carioca, a elite sobrepõe-

se a qualquer grupo que esteja distante dos ideais de civilização. A atitude

etnocêntrica, sobre a qual nos referimos, é segundo Todorov:

[...] a caricatura natural do universalista: este, em sua aspiração ao universal, parte de um particular, que se empenha em generalizar; e tal particular deve forçosamente lhe ser familiar, quer dizer, na prática, encontrar-se em sua cultura.25

A partir do conhecimento institucionalizado, o conceito de real e realidade

torna-se abrangente e “homogêneo”, não distinguindo as brechas nas

representações e descrições das particularidades. No entanto, a própria escrita em

si mesma é fruto desse mosaico de realidades, pois experimenta o contato com

diversos espaços de interação e exprime, nas formas narrativas, alguns desígnios

ideológicos das próprias leituras do escritor acerca do momento em que viveu. A

utopia gera um contraste na realidade mais ampla e talvez já se constitua como um

imaginário que consiga atender às expectativas mais gerais para uma sociedade

futura, embora esta latência encontre-se mesmo no presente e seja capaz de

orientar o desdobramento das ideologias vigentes. No intuito de colocar em

suspenso as imagens da realidade vigente, o texto de ficção científica, segundo

Roberto Causo, opera no confronto de realidades, no questionamento de ideologias

e construções simbólicas no âmbito da cultura:

25 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 21.

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Para a ficção científica, tudo é relativo em termos de que as ideologias dominantes são incapazes de resumir a realidade em suas intenções totalizadoras. Para a FC, o universo é um processo dinâmico no qual operam fatores que vêm sempre relativizar visões estabelecidas.26

Na tentativa de compreender a metáfora do conto, associamos a imagem do

leão de Humberto de Campos aos grupos marginalizados existentes no Rio de

Janeiro do início do século XX. Através da ideologia da higienização, o imaginário da

sociedade foi construído na comparação das doenças que assolavam a cidade com

os negros, flagelos “sociais” da cidade materializados nos cortiços, entendidos como

focos de disseminação de doença. Esse espaço de convivência marginal era

associado à origem das “perversões” sociais substanciadas nas manifestações e

trocas culturais que lá circulavam. A ideia de progresso para as camadas mais

pobres da população certamente não era a mesma que a burguesia trazia em seus

programas institucionais. A população marginalizada da capital, ao sofrer ações

governamentais, padecia também com a recriminação de valores culturais

classificados como primitivos e animalescos. De acordo com Nicolau Sevcenko, os

símbolos do progresso para a população pobre e negra apresentavam-se sombrios

e nebulosos, sem qualquer tipo de perspectiva satisfatória que pudesse congregar

parte dessa população em um espaço de conformação na sociedade:

[...] acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padrões e o ritmo de desdobramento da economia européia, onde “nas indústrias e no comércio o progresso do século foi assombroso, e a rapidez desse progresso miraculosa”. A imagem do progresso – versão prática do conceito homólogo de civilização – se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia.27

A expectativa de futuro construída pela elite burguesa era totalmente adversa

para a população pobre que estava distanciada do processo, não possuindo

nenhuma relação de pertencimento. A presença efetiva desses sujeitos na

sociedade representava os ranços do sistema colonial e escravocrata que fez parte

de todo o período monárquico. Essa presença, desejava-se anular, erradicar ou, o

que se demonstrou mais fácil: marginalizar. Os marginalizados possuíam uma

cultura e leitura da realidade que faziam parte de uma concepção da sociedade que,

como disse Sidney Chalhoub28, era definida pela burguesia como típica das “classes

perigosas”. Desse modo, os grupos poderiam contaminar todo o ideário de

26 CAUSO, p. 49.27 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 41-42.28 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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modernização da capital, sendo necessário o estabelecimento de um constante

processo de anulação cultural e contínuo deslocamento dos espaços de interação.

4.3 O homem

No conto Os olhos que comiam carne, percebemos uma relação muito

próxima com a própria biografia de Humberto de Campos. Na temática do conto, a

presença de elementos construídos a partir de processos científicos influencia

radicalmente a vida do ser humano. É neste conto que encontramos uma aplicação

mais direta da filosofia de Pamórfio acerca da evolução da humanidade. O discurso

científico que divulgava os benefícios de sua inserção na vida social encontra um

grande impedimento, que são as consequências à própria humanidade, produzidas

pelos equipamentos e processos.

Humberto de Campos, antes de sua morte em 1934, foi perdendo

gradualmente a visão, registrando algumas impressões em seu diário. Morreu antes

de produzir, segundo ele mesmo, uma obra capaz de “imortalizá-lo” durante as

décadas vindouras. Além de conferir grande prestígio entre os críticos e leitores, o

trabalho no jornalismo contribuía para o sustento financeiro imediato do escritor; no

entanto, de acordo com seus escritos, isso não o satisfazia completamente. Nas

anotações em seu diário de 26 de julho de 1931, Campos confessa o desgosto que

sente, ao saber que pode ficar cego:

Ameaçado de cegueira, já com uma das visões perdida e, assim, de tombar inútil precisamente quando sentia o espírito melhor provido para a realização de uma obra literária que me sobrevivesse, eu sou como operário que passou anos inteiros a carregar o material para construção de um abrigo para os seus dias de velhice, e a quem cortam os braços no momento em que vai lançar o primeiro tijolo.29

Diante das nossas leituras, percebemos que a construção do personagem

Paulo Fernando, do conto Os olhos que comiam carne, traz características da

própria descrição autobiográfica de Campos em seus diários. Ainda escrevendo

sobre a possibilidade de permanecer cego, o escritor arremata: “A fatalidade tapa-

me os olhos no instante, precisamente, em que ia beber com eles, comovidamente,

o vinho de ouro do sol...”. A aproximação entre o escritor e o personagem do conto é

29 CAMPOS, Humberto de. Fragmentos de um diário. São Paulo: W. M. Jackson Inc, 1960. p.257.

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bastante visível, embora existam diferenças na trajetória de ambos. Campos sabe

que vai ficar cego e se queixa por não ter completado sua obra. Paulo Fernando,

logo após ter publicado o último volume de uma obra monumental, fica cego e, de

acordo com o narrador, se exprimia em grande frustração por ter dedicado boa parte

de sua vida à construção de tal obra e não poder desfrutar das glórias da

publicação:

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.30

A obra História do Conhecimento Humano faz uma referência à ciência e ao

conhecimento adquiridos pelo homem no decurso dos séculos. A partir de outros

textos, verificamos que a definição de “história” é uma das preocupações de

Humberto de Campos. Encontramos análises do escritor sobre o assunto em

diversas críticas e crônicas31. A compreensão de que a história registra a imaginação

de fatos do passado contribui para a formação do entendimento sobre a

especulação do futuro. Se a construção e o relato dos fatos ocorridos no passado

estão sujeitos à interferência da imaginação do historiador, não será muito diferente

a tentativa na especulação do porvir.

A última obra publicada por Paulo Fernando estaria situada na fase de

transição entre o passado e futuro, permitindo que a personagem se tornasse o

ponto de interseção temporal e espacial. Ao ficar cego, Paulo ficou circunscrito ao

mundo que experimentou no passado, não sendo permitido alcançar um tempo no

futuro, do qual também pudesse fazer parte. A história do conhecimento da

humanidade estaria, assim, entregue a todos aqueles que desejassem construir a

história das décadas vindouras, não esquecendo os referenciais de presente e

passado.

Na narrativa, destacamos o elemento sobre o qual o escritor se dedica: a

descrição da cegueira do personagem e os mistérios que envolvem o procedimento

30 CAMPOS, Humberto de. O monstro e outros contos. São Paulo: W. M. Jackson Inc, 1960. p. 151.31 Encontramos um exemplo desse interesse na crônica: Os historiadores e a história, na qual Campos enfatiza: “A História é, assim, menos o reflexo dos acontecimentos do que uma obra de imaginação. Por isso mesmo, o Presente sempre sente saudades do Passado. Mas o Futuro há de sentir, por sua vez, saudades do Presente, porque os historiadores hão de inventar homens que o ilustrem e fatos que o enfeitem, de modo que tenhamos sempre a ilusão de que já houve, na vida, alguma cousa de grande, de puro, de heróico e de bom.” CAMPOS, Humberto. Últimas crônicas. São Paulo: W. M. Jackson Inc, 1960, p.33-34.

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cirúrgico capaz de restabelecer sua visão. O narrador descreve a angústia e

ceticismo do personagem ao saber da cegueira e mostra a incredulidade na busca,

através da ciência, de uma cura. O médico e professor alemão Platen é a

representação da imagem de ciência como solução para qualquer tipo de mal. Vindo

do exterior do país, somente ele seria capaz de curar a cegueira do personagem.

Encontramos registros no diário de Humberto de Campos nos quais a

angústia sobre os problemas de visão é exposta várias vezes. A solução para a

cegueira do escritor só seria possível com uma intervenção cirúrgica feita na

Alemanha ou liderada pelo médico alemão Krause. No registro de 30 de julho de

1931, Campos escreve a opinião dos médicos brasileiros acerca da cura para sua

enfermidade: “– É uma operação sem importância na mão de Krause. Mas é preciso

ir à Alemanha... À Alemanha ou aos Estados Unidos... Aqui, ninguém a faz, nem

convém experimentar...”32 A angústia e dúvida sobre o procedimento faz com que o

escritor registre em 17 de agosto de 1931 a conversa com seu médico e amigo

Afonso Mac Dowel sobre o assunto, que lhe diz:

A intervenção cirúrgica, seja no Rio, seja no estrangeiro, é perigosa. A um cliente a quem falasse apenas como médico, eu me limitaria a expor os riscos. Mas a um amigo como você, eu devo dar, também, um conselho. E eu prefiro ver um amigo cego, mas vivo, a vê-lo morto em um ato operatório recomendado por mim.33

Na anotação do mesmo dia, Campos parece ter desistido da ideia da cirurgia

após a conversa com o amigo. No entanto, construiu um personagem com as

mesmas agruras de que padecia, contextualizando-o num conto onde a fantasia e

imaginação pudessem interagir com a expectativa da ciência como solucionadora

dos problemas da humanidade. O personagem Paulo Fernando faz a cirurgia no

Brasil orientada pelo médico alemão, o Prof. Platen: “Esforços foram empregados,

assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião da sua

viagem a Buenos Aires.”34.

Aqui, compreendemos que, através de sua escrita, Campos extrapolou a

própria realidade, na construção de um personagem que pudesse expressar seus

temores e angústias diante da aplicação de uma ciência praticamente desconhecida

na vida cotidiana dos sujeitos. Os olhos que comiam carne é uma especulação

sobre a vida do escritor diante do desconhecido e das consequências que poderiam

32 CAMPOS, Fragmentos de um diário. p. 258.33 Idem, p.261-262.34 Idem, O monstro e outros contos, p.156.

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surgir após a cirurgia. As descobertas no campo da medicina são emblemáticas,

justamente por lidar diretamente com a vida dos indivíduos e, desse modo, Paulo

Fernando torna-se uma metonímia de toda a humanidade. A restituição da visão aos

cegos era um feito apenas descrito e motivado por via da fé mística e sobrenatural.

Ao usar uma nomenclatura e um instrumental científico no decorrer da narrativa,

Campos constrói, a partir de sua própria experiência, uma ficção científica que

ambiciona discutir o futuro próximo que atingiria toda a humanidade. A partir das

construções ficcionais, o escritor transfere para o personagem todas as suas

angústias e temores, fazendo com que Paulo se mantivesse cético em todo o enredo

diante do deslumbramento dos “milagres” do professor Platen:

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos. [...] E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico.35

O conto usa termos e uma linguagem científica para discorrer sobre a

cegueira do personagem e sobre o processo que pode restaurar sua visão.

Compreendemos também que o texto engendra a dúvida sobre todo o procedimento

cirúrgico e simboliza o ceticismo com relação a mudanças. O personagem, às

vésperas da cirurgia: “[...] não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de

emoção.”. Esta atitude condiz com o pensamento da filosofia de Pamórfio, ao se

referir ao futuro com certo pessimismo, pois não há mais nada a fazer para mudar o

estado precário da vida humana, por mais evoluída que ela se encontre.

Esse ceticismo é verificado em outros textos que mencionam a medicina

“avançada” para solucionar males da saúde humana. Neles, o humorismo é usado

para reforçar a atitude cética, como podemos verificar nos contos: Os milagres da

cirurgia, Los niños de Coruña, O enxerto e A perna de Cachorro. Todos esses

apresentam a medicina como objeto central, problematizando a ética, ou então o

próprio procedimento cirúrgico. O conto A perna de Cachorro, por exemplo,

descreve um transplante, que, segundo o narrador: “Tratava-se em suma, de utilizar

em uma criança de três anos, cuja tíbia havia sido esmagada por um bonde, o osso

da perna de um cachorro que ali estava, a um canto, os olhos súplices, aguardando

a hora do seu martírio.”36. Após quatro meses, a mãe da criança retorna ao médico

35 CAMPOS, O monstro e outros contos. p. 154-155.36 Idem, A funda de Davi, p.371-372.

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com uma preocupação, arrematando o conto com humor: “[...] Imagine o senhor que

ele, que era tão direito, tão acomodado, não pode passar, agora, junto de um poste,

ou de um muro, sem levantar a perninha!...”37

Em Os olhos que comiam carne, não verificamos o humor, mas uma crítica

aterradora sobre as possíveis consequências dos procedimentos científicos da

medicina para a cura de enfermidades. O corpo humano concebido pela religião

cristã como sagrado, sofria uma intervenção direta de elementos artificiais que

poderiam prolongar funções orgânicas perdidas. Entendemos essa intervenção

como simbólica à medida que dialoga com imagens relativas à luz-saber, cegueira-

trevas, orgânico-artificial, presente-futuro.

A cegueira, na mitologia grega, é apresentada como um castigo dos deuses e

possui Tirésias como o maior exemplo disto. No entanto, após a intercessão do

próprio sujeito, os deuses compensam o castigo da cegueira com outro tipo de

visão. Tirésias enxerga o futuro e pode prever o destino das pessoas. Na análise do

conto, entendemos que a cegueira constitui um ritual de passagem entre o presente

e o futuro. Paulo Fernando carrega em si mesmo as marcas do passado, (e por isso,

escreve, ao longo de sua vida, uma história sobre o conhecimento adquirido pela

humanidade) e não consegue entender ou mesmo participar da construção de um

novo conhecimento que se vincula ao imaginário de desenvolvimento científico-

tecnológico. As oposições apresentam-se aqui de acordo com a perspectiva da

ruptura, pois aquele que conhecia o passado entrou “na noite eterna”38 da cegueira e

nada mais pode experimentar através da visão, que permitia o “saber” na leitura e

escrita de livros.

A descrição do processo cirúrgico, ao se apropriar de uma linguagem

científica que dê conta da complexidade do problema e da cirurgia em si, concede a

à narrativa o caráter de realidade na possível comprovação do que está sendo dito.

O médico e pesquisador é louvado pelas descobertas baseadas em procedimentos

conhecidos do público geral como os “raios X”. Platen demonstra ter conhecimento

suficiente para prosseguir com qualquer intervenção cirúrgica, pois existe uma teoria

científica que garantiria o sucesso de sua atuação. O narrador do conto explica que:

37 CAMPOS, A funda de Davi, p. 374.38 Idem, Fragmentos de um diário. p. 262.

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O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecia integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.39

Aqui, encontramos o ponto que produz a hesitação40, se lembramos do

conceito de Todorov sobre o texto fantástico. Os fios de “hêmera”, que permitiriam o

restabelecimento da visão, são cercados de mistério e, de acordo com Todorov,

esse elemento desconhecido contribui para o estabelecimento da dúvida no enredo.

A explicação científica é a escolha para solucionar o enigma, mas não é suficiente

para impedir que outras imagens baseadas na fantasia sejam construídas acerca do

resultado da operação. Os fios de “hêmera”, “composição metálica de sua

invenção”41 permitem que o doutor Platen se coloque numa esfera superior do

conhecimento, capaz de arbitrar sobre qualquer assunto de sua área, conferindo

credibilidade a seus atos e prestígio à sua carreira. Percebemos também que, nesse

distanciamento do conhecimento em circulação no “senso comum”, o médico

adquire um status que pode compará-lo a um ser mítico que realiza “milagres”

através da ciência.

Embora o enredo possua um vínculo com a ideia de materialidade científica,

existem elementos que não podem ser explicados por completo, cabendo nesse

sentido a inserção do imaginário fantástico. A metodologia e os processos usados

pelo Prof. Platen não são do conhecimento de todos, e isso faz com que as pessoas

que desconhecem essa ciência criem outras explicações para o fenômeno.

Explicações que podem usar um amplo espectro de símbolos e elementos

conjuntamente com reações advindas do imaginário comum da sociedade. É a partir

destas interferências que podem ser criadas outras “mitologias” sobre os assuntos,

reproduzindo estereótipos, fomentando explicações que se baseiam unicamente na

construção de imagens e fantasias.

Após a cirurgia, Paulo Fernando retorna a enxergar, no entanto é uma visão

modificada pela tecnologia que compõe agora seu organismo. Neste instante, o

39 CAMPOS, O monstro e outros contos. p. 158-159.40 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.41 CAMPOS, O monstro e outros contos. p. 156.

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personagem deixa sua humanidade para compartilhar com a “tecnologia artificial” as

funções de seu próprio corpo. Transforma-se num ciborgue42, que é definido através

da relação interdependente do organismo humano com qualquer outro organismo

artificial. Com seu corpo modificado, o personagem desfruta de uma visão a que não

está acostumado, tampouco é aquela a que ele aguardava. Paulo Fernando enxerga

o que está além da visão de todas as outras pessoas. Uma visão que está além do

“natural” e do senso comum. De acordo com o narrador:

A sua retina, como os raios X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!43

Nesse sentido, a ciência interfere na visão da realidade, atravessando a

materialidade dos corpos. Paulo Fernando com esta nova visão, enxerga as

personagens que o aguardavam no hospital de um modo diferente. Elas não eram

compostas por almas, ou guiadas por sentimentos e influências transcendentais,

mas eram movidas e sustentadas por esqueletos. As pessoas eram, em essência,

esqueletos. Nesse momento, percebemos que o futuro da humanidade não fora

romantizado ou apresentado a partir de imagens perfeitas que conduzem à

contemplação do belo e da harmonia, mas foi apresentado cruamente a partir do

desejo de materialidade e comprovação dos experimentos científicos. Ao possuir em

seu corpo um mecanismo artificial baseado na mesma tecnologia dos raios X, o

personagem deixa sua natureza humana e passa a enxergar o futuro dos corpos em

decomposição, em seu último estágio. A sociedade como um todo não passaria de

um “sinistro baile de esqueletos”, não havendo nada que pudesse impedir essa

evolução.

Perceber a realidade através dos olhos da tecnologia soa desesperador. A

possibilidade de ver além do senso comum e conhecer o que existe por trás de toda

a barreira que esconde a “essência” do humano, perturba o personagem. Ao

arrancar seus olhos, Paulo Fernando afirma diante dos presentes que não deseja

enxergar através das significações científicas, tampouco quer ser aquele que está

em contato com o conhecimento do futuro. A partir dessa imagem, lembramos da

42 Podemos encontrar uma definição pós-moderna sobre a figura do ciborgue no livro organizado por Tomás Tadeu Silva, que aponta para a idéia de uma metáfora do ser hibrido, que é capaz não somente de interagir com diversas possibilidades culturais, mas de estabelecer sua própria composição a partir de diferentes materiais, sejam eles “orgânicos” ou “artificiais”. Ver SILVA, Tomás Tadeu (org). A antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.43 CAMPOS, O monstro e outros contos, p. 161.

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narrativa bíblica acerca dos cuidados que os fiéis cristãos devem ter para evitar os

escândalos causados pelo “olho mau”. No evangelho de Mateus, capítulo 18,

versículo 09, podemos relacionar o desfecho do conto com a negação de participar

dos modelos construídos a partir do entendimento de civilização: “E, se teu olho te

fizer tropeçar, arranca-o, e lança-o de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho,

do que tendo dois olhos, ser lançado no inferno de fogo”44. Diante da visão macabra

do “baile de esqueletos” e dos medos interiores de ver diferentemente dos demais

em seu último estágio, Paulo Fernando arranca os olhos, silenciando o horror do

absurdo apresentado pelos avanços da modernidade científico-tecnológica,

principalmente no que se relaciona a enxergar o Outro.

44 Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Trad. Antonio Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Edições JUERP.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta dissertação, apresentamos um percurso teórico que pudesse discutir as

representações da sociedade brasileira nos contos de Humberto de Campos.

Caracterizamos a escrita dos textos como protoficção científica por compreender um

grande número de elementos e temáticas que se aproximam da definição de ficção

científica divulgada nos anos 1930. Isso quer dizer que os textos analisados aqui

compõem uma “pré-história” da ficção científica brasileira, apresentando algumas

temáticas fantásticas que puderam ser desenvolvidas ao longo da história da nossa

literatura.

A protoficção científica de Humberto de Campos foi utilizada aqui com o

intuito de substanciar qualquer reflexão para distinguir os padrões e distorções

verificadas a partir dos modelos de civilização e desenvolvimento no Brasil do início

do século XX, apontando contradições presentes nas imagens de modernidade do

país. A escrita da ficção científica nesse contexto é emblemática justamente por

trazer a discussão dos modelos de desenvolvimento, apresentando os principais

confrontos entre o ser humano e uma sociedade diferente daquela em que os

sujeitos viviam. Uma sociedade em constantes mudanças e adaptações que não

aceitam qualquer interrupção na consolidação dos intentos programáticos em

direção ao avanço tecnológico, cultural, industrial. O sujeito torna-se um estrangeiro

em seu próprio espaço social, por não se reconhecer participante daquele espaço

que agora é caracterizado como distinto de suas concepções sobre a realidade.

Justificamos a abordagem dos textos de Humberto de Campos ao

destacarmos a ausência do gênero de fantasia e ficção científica nos estudos

literários brasileiros da contemporaneidade, especificamente os textos do escritor,

que, segundo nosso entendimento, podem contribuir para a análise da realidade

cultural brasileira presente em suas crônicas e contos escritos no início do século

XX. Criticamos também, o silêncio da historiografia literária por não apresentar e

discutir a presença da literatura fantástica e de FC no cenário brasileiro, haja vista os

inúmeros exemplos desde fins do século XIX.

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No que tange ao texto de protoficção científica, percebemos, ao considerar a

concepção de futuro de Humberto de Campos, que os contos em análise construíam

uma leitura diferenciada da sociedade brasileira, identificando um ciclo evolutivo que

findaria inevitavelmente com a destruição da própria sociedade, para que pudesse

novamente ser reerguida por outra geração. Campos utilizaria metáforas como a

Torre de Babel e o ente mitológico Pamórfio por anunciarem a destruição esperada

pela sociedade. Em nossa dissertação, buscamos destacar essas concepções em

diálogo com a estrutura do texto de protoficção científica.

Na análise dos contos Entre o que foi e o que virá, Os Sábios selenitas e Os

olhos que comiam carne construímos uma perspectiva de reflexão sobre as

representações da realidade daquele período. A partir dos elementos da literatura

fantástica em diálogo com as contradições e valorizações das imagens de

modernidade, pudemos compreender alguns aspectos que estavam envolvidos na

adaptação dos modelos necessários para a inserção no espaço do desenvolvimento

científico e tecnológico mundial.

Por fim, analisamos as imagens de modernização brasileiras, descritas

através do avanço tecnológico criticado pelos textos de Campos. Imagens que

dialogam em contradições e utopias com o universo social e cultural no seio da

modernidade brasileira. Concluímos que os contos se localizam diante da euforia do

processo de desenvolvimento tecnológico, esboçando uma crítica ao demasiado

desejo de modernização industrial em seus desdobramentos na vida social,

sobretudo referentes aos aspectos culturais daquilo que se convencionou chamar de

civilização.

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ANEXOS

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Obras de Humberto de Campos

(Todos os livros aqui citados foram publicados pela W. M Jackson Inc. no ano 1960)

Poeira, poesia

Da seara de Booz, crônicas Vale de Josaphat, contos

Tonel de Diógenes, contos

A serpente de bronze, contos

Mealheiro de Agripa, contos e crônicas

Carvalhos e roseiras, crítica

A bacia de Pilatos, contos

Pombos de Maomé, contos

Antologia dos humoristas galantes

Grãos de mostarda, contos

Alcova e salão, contos

O Brasil anedótico, anedotas

Antologia da Academia Brasileira de Letras, discursos

O monstro e outros contos, contos

Memórias 1886-1900, autobiografia

Crítica 1ª Série, crítica literária

Crítica 2ª Série, crítica literária

Crítica 3ª Série, crítica literária

Crítica 4ª Série, crítica literária

Os párias, contos

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À sombra das tamareiras, contos

Sombras que sofrem, crônicas

Um sonho de pobre, autobiografia

Destinos, crônicas

Lagartas e libélulas, crônicas e contos

Memórias inacabadas, autobiografia

Notas de um diarista, autobiografia

Reminiscências, autobiografia

Sepultando os meus mortos, autobiografia

Últimas crônicas, crônicas

Perfis, 1ª Série, biografia

Perfis, 1ª Série, biografia Contrastes, crítica

O arco de Esopo, contos

A funda de Davi, contos

Gansos do capitólio, contos

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Os sábios selenitas

Reunidos os três monstros inteligentes no alto de uma grande montanha

calcinada, entraram a discutir, em voz gutural, a possibilidade de um entendimento

com os longínquos habitantes da Terra. Empunhando um aparelho de proporções

gigantescas, em cuja fabricação entravam metais desconhecidos, e no qual se

engastavam para aumento gradual das imagens, dezenas de lentes de cristal polido

por um processo recente, Sttaff, o mais jovem dos sábios selenitas, pesquisava o

espaço, atento, na direção do nosso planeta. Ao seu lado, sentado num pedaço de

rocha, Herlowawth, o mais idoso, fazia cálculos sobre uma folha de metal

semelhante às nossas ligas de alumínio, que segurava, ao mesmo tempo, com cinco

das suas seis mãos, e, ainda, com outra, suplementar, que lhe pendia, rugosa, da

escura extremidade da cauda. Em frente aos dois, com um pacote de lâminas aberto

diante do seu único olho de visão perfeita, Anianax, astrônomo que já havia

calculado o número de estrelas de sete mil constelações invisíveis, meditava,

silencioso, sobre os resultados possíveis daquela experiência temerária.

– A máquina de voar inventada pelo engenheiro Warthwift, – ponderou,

levantando a enorme cabeça trêmula, estrelada de olhos, o venerando Herlowawth –

é o único processo de que dispomos para descobrir se o planeta de que

dependemos é, como se supõe, habitado. Os nossos recursos para verificação à

distância, são, como sabemos, deficientes. Se os aparelhos acusam vestígios de

vida, que se patenteiam pela modificação progressiva da crosta planetária, essa

possibilidade é afastada, de pronto, pelos fenômenos verificados, e por uma

infinidade de circunstâncias em que se apóiam alguns dos nossos mais eminentes

colegas.

– É essa a minha opinião, – atalhou Anianax, interrompendo o exame do

espaço e fixando no Mestre o seu grande olho congestionado. – O planeta que nos

ocupa não pode ser habitado, como a Lua, em que vivemos. A massa líquida que se

move dele, tomando-lhe três quartas partes da superfície, e, sobretudo, a umidade

ambiente, são infensos a qualquer manifestação de vida. E se, porventura, os meus

cálculos falham; se há, por lá seres vivos, estes permanecem, necessariamente, em

um estado tão rudimentar de inteligência, que nos seria impossível travar com eles

quaisquer relações.

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– E aqueles sinais que eles traçam, às vezes, na sua atmosfera, em rápidos

riscos de fogo? – aventurou Sttaff.

– Nada significam, nem representam. São simples fenômenos magnéticos. A

vida seria impossível naquele meio, com aqueles obstáculos à sua conservação, e,

se a vida é difícil, a inteligência é, pode-se dizer, impossível.

Erguendo a cabeça pesada e nua, em que a idade já havia fechado meia

dúzia de olhos, Herlowawth, o mais idoso dos astrônomos selenitas, apagou os

cálculos com a mão da ponta da cauda, e objetou, sentencioso:

– Milhões de vezes tem o nosso astro penetrado na sombra, banhando-se, do

outro lado, na luz, sem que os nossos antepassados hajam apurado a sua grande

dúvida sobre o misterioso planeta de que somos satélites. As opiniões que vos

separam, separavam, antes, gerações e gerações. Os motivos que aventais, as

razões que vos servem de apoio, constituíam, já, o apoio dos nossos avós. A teoria

de Anianax, de que a Terra é desabitada, e de que, se tem habitantes, estes se

conservam em um estado rudimentar, vivendo na mais lamentável brutidão, era já, a

de Clown, pai de Wfluffnwit. E a de Sttaff, de que o grande planeta é habitado, e de

que os seus habitantes se acham em uma situação de cultura igual, pelo menos, à

nossa, também não é nova. Advogavam-na, em tempos que a lembrança não

apreende, Sttowen, Aixley, Butternwamnd, e outros, cujo nome a luz do

entendimento não repetiu na memória das criaturas. O que eles não tinham, porém,

como nós era o meio de resolver tamanha controvérsia, tamanha dúvida, o qual nos

é facultado, agora, pela máquina voadora de Warthwift. Façamos, pois, com que ele

parta, convenientemente do planeta que nos conduz através da amplidão, trazendo-

nos informações seguras, claras, positivas, sobre os nossos misteriosos vizinhos do

ar.

– Seja cumprida a tua ordem! – aplaudiu Sttaff.

– Faça-se o que disseste! – confirmou Anianax.

***

Por uma tarde de março último, leões que repousavam, fechando os olhos à

canícula, no pequeno oásis de Amfitalah, no Saara, puseram-se de pé, de repente,

despertados por um rumor insólito, que descia do céu. Semicerrando os olhos

fulvos, para ver melhor naquela orgia de luz atordoante, as feras distinguiram, muito

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alto, uma grande ave de forma jamais vista, que descia rapidamente, em ligeiros

rodopios de parafuso. Chegado à Terra, o grande pássaro pousou fragorosamente

no solo fofo, levantando grande nuvem de areia. Passado um instante, viram os

leões destacar-se da ave um monstro de grande cabeça, pontilhada de olhos, o

qual, movendo-se com agilidade sobre duas pernas finas e curtas, apresentava,

contudo, a vantagem de possuir seis mãos e, ainda, uma outra, suplementar, na

extremidade da cauda.

Ao ver-se no solo firme, o monstro olhou em torno, pesquisando em redor. De

repente, descobrindo o oásis, onde seis leões o olhavam de pé, examinando-lhes os

movimentos, encaminhou-se para eles, aos saltos, empunhando na mão

suplementar uma placa de metal, que, pelos riscos nela desenhados, devia ser, pelo

menos, uma saudação dos habitantes da Lua aos seus longínquos amigos da Terra.

A poucos passos, porém, deteve-se aterrado: é que percebera um rugido cavo,

soturno, profundo, partido com certeza dos grandes habitantes do oásis. Encheu-se

de coragem e deu mais dois passos; e ia dar o terceiro, quando os leões,

enfurecidos pelo desafio, deram um salto de três metros, partindo, de dentes à

mostra e de juba alvoroçada, a seu encontro. Conhecendo, mais por instinto do que

por entendimento, o propósito das fera, o selenita firmou na areia os dois pés, as

sete mãos e, quase, a cabeça, e, num pulo formidável, ganhou o aparelho, que se

pôs, de pronto, em movimento, subindo, rápido, em espiral, em direção ao disco da

Lua.

***

A Academia de Ciências Lunares e Celestes achava-se reunida, naquela

noite, com solenidade imaginável. Centenas de sábios, principalmente astrônomos,

ali estavam trazidos de todas as regiões do satélite, para ouvirem, finalmente, a

palavra do Emissário. Quase sem pernas, caminhando sobre as mãos, ali se viam,

entre outros, Piungahw, que descobrira a intensidade das camadas solares,

calculando-lhes as calorias; Armwh, que medira, até então, dois milhões de estrelas

e bólides; Fhiurd, que estabelecera comunicações magnéticas entre os pólos

lunares; e, enfim, separados pelo venerando Herlowawth, que presidia a sessão, o

teimoso Anianax, partidário da inabitabilidade da Terra ou da bruteza das suas

criaturas, e o jovem Sttaff, que dirigia, no círculo dos sábios selenitas, a corrente

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contrária, emprestando um alto grau de inteligência aos prováveis habitantes

terrestres.

Aberta a sessão, deu entrada no grande anfiteatro o emissário Warthwift, que

acabava de resolver o grande problema, na exploração do planeta longínquo. Pálido,

a fisionomia grave, o supercílio dos seus vinte olhos cerrados, quase, pela emoção

de que se achava possuído, o aviador lunar equilibrou-se nas pernas finas, e entre o

silêncio geral, empunhando, amarrotada, a folha de metal que levara no seu vôo,

comunicou, entre a comoção formidável de todos:

– Sábios selenitas, a vossa determinação foi cumprida. Fui ao planeta que me

designastes, e ele é habitado.

– Habitado!... – exclamaram, ao mesmo tempo, quinhentas vozes com

seiscentas tonalidades.

– Habitado, sim; mas por entidades com as quais são impossíveis as nossas

relações. Os seres que lá vivem, moram ao ar livre, dormem no solo bruto, possuem

quatro patas, dois olhos, e na cabeça, maiores que a nossa, um turbilhão de cabelos

emaranhados. Mal me viram, escancaram uma boca enorme, e saltaram-me em

cima, no propósito certo de devorar-me. Em conclusão: o planeta é habitado, mas

por seres em estado rudimentar de entendimento, com os quais é impossível

qualquer espécie de comunicação!

Terminado o discurso de Warthwift, Sttaff encaminhou-se para o adversário e

felicitou-o.

– Venceste, Anianax!

E, beijando-se os quarenta olhos, abraçaram-se, comovidos, com as quatorze

mãos – inclusive a suplementar.

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Entre o que foi e o que virá

Aquele Pamórfio, do Colombo de Araújo de Porto-Alegre, apareceu-me outra

vez. Personagem extra-humano, não é ele mais, todavia do que a metamorfose de

outros, que se encontram nos poemas antigos, e que têm a sua origem em Tirésias,

na Odisséia. Conhecendo o Passado e o Futuro, ele é o gênio que aparece ao nauta

em Tenerife, e que não só lhe fala das civilizações asiáticas, subjugadoras do

mundo, como daquelas que viriam na corrente dos séculos novos, com as grandes

navegações. Olhando, como Janus, o Oriente e o Ocidente, podia ele anunciar ao

almirante genovês o que viria a ser o mundo que ele ia descobrir. Antes que a proa

da caravela rompa os segredos do mar, ele, profeta prodigioso, lhe desvenda os

mistérios do Tempo.

É nesse Pamórfio que eu penso, às vezes, quando me ponho a refletir sobre

os destinos da Humanidade, e, mais restritamente ainda, no desta cidade que lhe é,

hoje, cérebro e coração. Já alguém imaginou, por acaso, o que será o Rio de

Janeiro dentro de um século ou, mesmo, dentro de cincoenta anos? Já houve quem

se transportasse em pensamento a esta Sebastianópolis, imaginando-se no ano

2000? Faça cada um os seus cálculos, e dê liberdade à imaginação.

Para conhecer o Futuro, a marcha para diante, é preciso, primeiro, conhecer o

Passado, de que é ele o reflexo. Por isso, quando eu me quero transportar ao Rio de

Janeiro de amanhã, visito, antes, o Rio de Janeiro de ontem. Imagino-me,

primeiramente, na época de Mem de Sá. É nos tempos, ainda, dos primeiros

estabelecimentos no alto da colina histórica, entre a floresta e o mar. Expulso o

francês, ideador da França Antártica, resta ainda, lá embaixo, rodeando a

eminência, o tamoio, que ele açulou. Entre os montes, peitos da cidade futura,

estendem-se os marnéis, os pântanos, as lagoas em que sonham garças românticas

e dormem sáurios preguiçosos. Pequenos rios de água fresca, filhos de fontes

solitárias, serpeiam cantando, levando alimentos àquelas miniaturas da baía –

espelho redondo e enorme de que a terra verde é moldura. Mas a semente plantada

no outeiro é fecundada e multiplica-se. Descendo a ladeira do morro do Castelo, as

primeiras casas chegam à planície. Colonos temerários estabelecem-se diante do

mar, onde hoje é a rua Primeiro de Março, até onde se espraiam, então, as águas

marítimas. Abre-se a rua que será a do Ouvidor. Dentro em breve, a cidade ocupará,

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com as suas quintas cercadas, todo o perímetro entre o Morro de Santo Antonio e o

da Conceição. Um grande fosso, entre um e outro, por onde se despejam as águas

da Carioca, e que dará à futura rua Uruguaiana o nome da rua da Vala, traça os

limites da nova metrópole portuguesa na América. Os Jesuítas já atravessaram,

porém esses limites, e montaram engenhos. É o Engenho Novo. É Engelho Velho.

Aterra-se a lagoa Comprida, que fecha o caminho da Tijuca, entre Santa Teresa e o

Mangue, onde é hoje a rua Frei Caneca. Aterra-se, igualmente, a lagoa Grande, em

frente ao futuro convento da Ajuda, e abre-se o caminho das Laranjeiras e de

Botafogo, onde a abundância de águas e suavidade do clima favorecem a

multiplicação das grandes chácaras. E a cidade se vai espraiando, ampliando,

estendendo os tentáculos das ruas e dos caminhos trafegados. Do charco do

mangue e dos igapós da lagoa Comprida, surge a Cidade Nova. Aberta uma estrada

sobre o mangal, para a Quinta da Boa Vista, estabelecem-se ligações entre os

núcleos de população que se formaram. O selvagem, absorvido pelo branco, é seu

colaborador no desbravamento. Rolam os primeiros tílburis e, pelo mar, as primeiras

barcas, ligando Botafogo ao Pharoux. Vêm os bondes. Abre-se o túnel de

Copacabana. A cidade, cheia, derrama-se. Rodam automóveis sobre o asfalto onde

corria o tatuí na areia molhada. E surge a capital magnífica e atordoante, a

metrópole moderna, com os seus jardins de vinte e cinco quilômetros e os arranha-

céus de vinte e cinco andares...

Volto-me, porém, para o Oriente, para o lado do sol e dos mistérios do

Destino. E que vejo, ou imagino: é a cidade do Futuro, com suas surpresas. O

coração de Sebastianópolis é, agora, a Esplanada do Castelo. A cidade volta ao seu

berço para tomar novo surto. Onde era o morro do Estácio e de Mem de Sá,

levantam-se edifícios de sessenta e setenta andares. A Avenida Central não é mais,

agora, do que uma pequena veia do novo sistema circulatório do formidável

organismo urbano. Na baía, há menor número de navios do que de hidro-aviões, os

quais substituíram o transatlântico europeu com a naturalidade com que o automóvel

tomou o lugar ao trem de ferro. Os grandes edifícios têm plataformas para os aviões

particulares como as casas têm, hoje, uma garage para o carro. A cidade vai, agora,

até Nova Iguassú, com a continuidade das ruas. Há serviço aéreo para São Paulo

de dez em dez minutos, e aeronaves de luxo das onze horas para um almoço em

Petrópolis, as quais reporão o assinante no Rio à meia hora, tendo ele gasto uma

hora à mesa. A campanha contra o papel, que ameaçava destruir todas as florestas

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da terra, instituiu o jornal-verbal: quem quer ter notícias do que está acontecendo no

mundo põe um pequeno fone portátil ao ouvido e aperta um botão, ou entra em

qualquer estabelecimento de comércio, onde grandes aparelhos anunciam as

novidades da hora. Há romances e novelas vendidos em pequenos discos: adquire-

se Shakespeare comprimido, e mete-se no bolso, para ouvir em casa. A ponte Rio-

Niterói ficou destinada, agora, aos tradicionalistas, porque toda a gente prefere os

grandes comboios aéreos da linha Angra dos Reis - Cabo Frio. Alguns jornais-

falados pedem providências contra a demora na retirada dos fios que serviram,

outrora, aos carros que ligavam aereamente o Pão de Açúcar à Urca, esta ao

Corcovado, o Corcovado ao Bico do Papagaio e este ao Dedo de Deus, fios esses

que embaraçam o vôo aos aviões do serviço urbano. A carne verde vem,

diariamente, de Goiás e do Pará, em carros frigoríficos que viajam a 8.000 metros de

altura. Fornece-se leite e vinhos como se fornecia gasolina em 1933; deita-se a

moeda em um orifício, e abre-se uma torneira para receber o líquido

correspondente. Novas bebidas foram inventadas; e entre estas uma, do químico

americano Lowell, a qual, tomada quando se vai embarcar em avião, faz com que o

individuo perca durante cinco horas 40% do seu peso. Um aparelho instalado na

praça Mem de Sá permite assistir, vendo e ouvindo, o combate que se está travando

entre alemães e franceses, e que é a "revanche" dos franceses, derrotados pelos

alemães em 1952. A pólvora, tão humanitária, foi, infelizmente, abolida: toda a

campanha é feita com eletricidade e gases venenosos.

Sob a cidade visível, estende-se outra: há, por baixo do Rio de Janeiro, todo

um labirinto de avenidas iluminadas por meio de raios solares artificiais (sem

lâmpadas), no qual fervilham cerca de 30% dos quatorze milhões de habitantes que

agora possui a metrópole brasileira. Não obstante a atividade da vida subterrânea, a

multiplicidade registrou em 1999 nada menos de 8.754.728 ícaro-movéis, isto é,

aparelhos de vôo para uma pessoa só, e que podem ser guardados em casa ou

trazidos debaixo do braço como os guarda-chuvas dos nossos avós...

Chegado, porém, a esse ponto das minhas cogitações, vejo que se corporifica

diante de mim uma figura sorridente, misto de deus e demônio. É Pamórfio.

– De que sorris? – indago.

– Da tua ingenuidade. Para atingir a realidade quanto ao Futuro, falta fôlego

aos cavalos da tua imaginação!

E dissipa-se, como uma nuvem.

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Os olhos que comiam carne

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último

volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze

anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor

Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.

Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da

janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele

sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá

fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho

de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.

E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa.

Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que

o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço

e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não

lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

– Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

– Esta lâmpada está queimada, Roberto? – indagou o escritor, ao escutar os

passos do empregado no aposento.

– Não, senhor. Está até acesa.

– Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? – exclamou o patrão, sentando-se

repentinamente na cama.

– Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que

está aberta.

– A janela está aberta, Roberto? – gritou o homem de letras, com o terror

estampado na fisionomia.

– Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado

pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito

prognosticavam os médicos.

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A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade,

impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem

de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um

gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade

das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena

os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia.

Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da

noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia.

E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a

informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de

restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se

tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação,

a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de

realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se

achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela

antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-

se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do

nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com

uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu

milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen

desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder

tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das

Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião

entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o

acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O

rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos,

olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a

sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites

de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos

magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira

de um abismo, e temesse tombar na voragem.

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Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão,

tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de

desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas

relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são

inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura

humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os

seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de

cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum

auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro,

dizendo-lhe amavelmente:

– Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a

permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e

nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a

inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu

na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara

para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais

soube nem viu.

O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de

que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de

"hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-

o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto

direto com a luz, restabelecia integralmente a função desse órgão. Cientificamente,

era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias

faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas

realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo,

como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas

se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas

silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do

corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam

à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra

hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a

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recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de

duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa.

Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando

sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da

operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O

santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela

verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que

pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na

sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros

ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e

dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia

com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em

uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o

rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo,

como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as

mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

– Abra os olhos! – diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai

se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê.

Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas

não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se

movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus

olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo

humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas

inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão!

Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado

macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados

numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que

adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de

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amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que

marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos

quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado

na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

– Afastem-se ! Afastem-se – intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num

movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba escabujando

no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando

macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um

sinistro baile de esqueletos...