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1
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS PROGRAMA DE MESTRADO
O DIREITO A UMA EXISTÊNCIA DIGNA
BRUNO RIBEIRO DE SOUZA BENEZATH
Campos dos Goytacazes - RJ
2006
2
BRUNO RIBEIRO DE SOUZA BENEZATH
O DIREITO A UMA EXISTÊNCIA DIGNA
Dissertação apresentada no Curso de Mestrado em
Direito, da Faculdade de Direito de Campos, para a
obtenção do título de Mestre, sob a orientação da profª.
Dra. Lilian Marcia Balmant Emerique.
Campos dos Goytacazes - RJ
2006
3
BRUNO RIBEIRO DE SOUZA BENEZATH
O Direito a uma existência digna
Dissertação apresentada no Curso de Mestrado em
Direito, da Faculdade de Direito de Campos, para a
obtenção do título de Mestre, sob a orientação da profª.
Dra. Lilian Marcia Balmant Emerique.
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________
Profª. Dr. Lilian Marcia Balmant Emerique
Prof. Dr. Sidney Cesar Silva Guerra
Prof. Dr. Marco Aurélio Lagreca Casamasso
Campos dos Goytacazes-RJ, 19 de dezembro de 2006
4
Sou grato a todos aqueles que de alguma forma ajudaram a concretizar o presente estudo, incluindo ai os professores do curso de mestrado, com os sábios ensinamentos, a minha família, pelo apoio dado nos diversos momentos, aos amigos do trabalho na Prefeitura da Serra pela compreensão e pelo estímulo fornecido.
5
RESUMO
Esta dissertação procurou demonstrar que o princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana interage com outros princípios, e depende desses para que o seu núcleo, o ¨mínimo
existencial¨ possa ser concretizado. O que se defende é que esse núcleo engloba o conceito de
renda disponível, com a interferência do imposto sobre a renda, e também os serviços
prestados pelo Estado (prestações positivas), na medida que sendo prestados serviços de
forma satisfatória, diminuirá a necessidade de renda disponível para arcar com aquilo que
seria o mínimo para uma existência digna. Para se chegar a essas conclusões, partiu-se da
distinção entre princípios e regras, para se tratar do princípio da dignidade da pessoa humana,
incluindo ai sua relação com outros princípios, e após feito isso, tratar diretamente do mínimo
existencial, com sua conceituação, proposta de quantificação e limites.
Palavras chaves: Direitos fundamentais. Princípio da dignidade da pessoa humana. Mínimo
existencial.
6
ABSTRACT
This dissertation attempts to demonstrate that the constitutional principle of dignity of the
human beings interacts with others principles, and depends of those others to get your
nucleus, the ¨minimum to exist¨, materialized. It is also proposed that this nucleus comprises
the concept of available income, with the interference of the income tax, and also the services
given by the State, in the measure that being given services in a satisfactory form, will
diminish the necessity of available income to get what it would be the minimum for one
existence with dignity. In order to reach these conclusions, was made one distinction between
principles and rules, followed by the concept of dignity of human beings, including its
relation with other principles. This is followed by one overview of the concept and limits of
the ¨Minimum to exist¨, and one proposal of quantification for it.
Keywords: Fundamental Rights. Principle of dignity of the human beings. ¨Minimum to
exist¨.
7
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................................5
ABSTRACT.............................................................................................................................6
INTRODUÇÃO........................................................................................................................8
Capítulo primeiro – Os direitos fundamentais
1.1 Princípios e regras: conceituação e distinção....................................................................9
1.2 A teoria dos direitos fundamentais como ciência..............................................................13
1.3 Direitos fundamentais: definição.......................................................................................15
1.4 Noções e classificação dos direitos fundamentais.............................................................16
1.5 A importância de uma compreensão "principiológica" dos direitos fundamentais...........19
1.6 O estudo sobre aspecos essenciais do regime jurídico dos direitos fundamentais
sociais.......................................................................................................................................21
Capítulo segundo - O princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial
2.1 Conceituação.....................................................................................................................26
2.2 Relação do princípio da dignidade da pessoa humana com outros princípios
constitucionais...............................................................................................................................30
2.3 Noção do mínimo existencial............................................................................................39
2.4 Os mínimos e básicos sociais............................................................................................40
2.5 Os diferentes parâmetros de mínimo existencial...............................................................42
Capítulo terceiro: a analise dos diferentes parâmetros de mínimo existencial
3.1 O Salário Mínimo: Apontamentos sobre o tratamento na ordem internacional e
nacional.....................................................................................................................................46
3.2 O imposto de renda e o mínimo existencial familiar............................................................52
3.3 Conexão do mínimo existencial com o imposto de renda.................................................56
Capítulo quarto: A concretização do mínimo existencial
4.1 A reserva do possível: as prioridades orçamentárias.........................................................60
4.2 A garantia da dignidade da pessoa humana sob aspecto privatistico.................................67
CONCLUSÃO.........................................................................................................................71
REFERÊNCIAS......................................................................................................................73
8
INTRODUÇÃO
A Constituição brasileira de 1988 traz em seu corpo o princípio da dignidade
da pessoa humana, estatuindo esta dignidade como um dos fundamentos da república
Federativa do Brasil.
Tal princípio tem um núcleo, sendo este núcleo o mínimo existencial, que não
está definido de forma suficientemente clara.
Longe de querer definir de forma suficientemente clara o conteúdo do núcleo
do princípio da dignidade, pois seria por demais pretensioso, o que este trabalho visa é traçar
parâmetros para que se possa então ao menos ter uma noção do que seria tal núcleo. Portanto,
o presente trabalho volta-se ao exame do núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana,
qual seja, o mínimo existencial.
Para possibilitar uma abordagem do tema, o trabalho foi estruturado em quatro
partes, tentando partir do geral para o específico, em uma sequência lógica.
Assim, a primeira parte cuida dos direitos fundamentais em geral, e está
subdividida de modo que primeiramente é visto a conceituação de princípios e regras,
diferenciando-os, para na sequência, tratar dos direitos fundamentais explicando o regime
jurídico e ressaltando a importância de uma compreensão principiológica desses direitos. Já a
segunda parte visa a conceituar e relacionar o princípio da dignidade da pessoa humana e o
mínimo existência, detendo-se a análise mais profunda do mínimo existencial.
Na sequência há a busca dos parâmetros para o mínimo existencial: no que
consiste e como poderia ser dimensionado.
Na quarta parte a questão é como concretizar esse mínimo existencial. Se é
possível concretizar mesmo envolvendo custos, e como ficaria esse mínimo existencial face
as possibilidades orçamentárias.
A temática abordada apresenta relevância acadêmica e social, pois, ao se
pesquisar sobre o conteúdo do mínimo existencial e a sua dimensão (quais os parâmetros para
traçar no que consiste ele), verifica-se que apesar da existência de obras sobre direitos
fundamentais, e sobre dignidade da pessoa humana, não se tem escrito muito sobre a
dimensão do mínimo existencial.
Pelo outro lado, o social, a dimensão do mínimo existencial e como concretizar
este mínimo são de crucial importância para a sociedade, pois sem que isso seja feito não há
como garantir o direito a uma existência digna.
9
CAPÍTULO PRIMEIRO – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
1.1 Princípios e regras: conceituação e distinção
É fundamental saber a conceituação do que seria princípio antes de ser feita a
analise do princípio da dignidade da pessoa humana, após a qual será analisada a relação deste
com outros princípios jurídicos, para que logo após, possa ser realizada a conceituação de
¨Direito fundamental¨ e no que consiste o núcleo da dignidade da pessoa humana, ou seja, o
¨mínimo existencial¨
Para alcançar tal objetivo, traçaremos o seguinte percurso: o estudo do que
seria princípio e o que seria regras; passando na seqüência aos direitos fundamentais, para
depois estudar o princípio da dignidade da pessoa humana e sua relação com os outros
princípios, e posteriormente, ser analisado o mínimo existencial.
Segundo o dicionário eletrônico Michaelis1, ¨princípios são momentos em que
uma coisa tem origem; começo; razão¨, logo para o direito princípios são o ponto de partida de
algum argumento com base no qual alguma interpretação é recomendada. Assim, portanto, essa
noção sensitiva exige resposta a três indagações, a saber: se a recomendação em questão é
obrigatória ou facultativa, a quem se dirige e quais os seus limites.
Se se entende que a recomendação contida nos princípios não é obrigatória,
associa-se o conceito de princípio com a moral, afastando-o do direito como ordem coercitiva
válida. Em caso contrário, os princípios pertencem ao universo do direito positivo e, portanto,
contém algum grau de coerção. Por outro lado, sendo o princípio uma recomendação moral, ele
se dirige a todos em geral, indistintamente. Caso contrário, a recomendação é dirigida em
primeiro plano ao legislador ordinário e, em segundo, aos destinatários das leis que ele
produz. Entendido o princípio como uma recomendação moral não vinculante que a todos se
dirige, não tem ele qualquer limite. Ao inverso, entendido como uma recomendação
vinculante dirigida ao legislador, tem ele limite nos espaços deixados pela Constituição para o
legislador ordinário produzir as normas não proibidas, ou seja, permitidas.
Seguindo a linha de raciocínio da recomendação vinculante, ou seja,
entendendo que a recomendação contida nos princípios é obrigatória, Humberto Ávila2 define
os princípios como ¨normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com 1 Dicionário Eletrônico Michaelis, versão 3.00; 1 de julho de 1996; DTS Software Ltda 2 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ªed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 78.
10
pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma
avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária a sua promoção¨. Estabelecem assim os princípios um fim a
ser atingido, dando uma orientação prática, servindo como diretriz para a determinação de
conduta.
A teoria de Robert Alexy procura dar resposta a tais indagações com pretensão
de cientificidade. De um modo geral, para Alexy os direitos fundamentais têm caráter de
princípios e, nessa condição, eles eventualmente colidem, sendo pois necessária uma solução
ponderada em favor de um deles. Em suas palavras:
en el amplio mundo de los principios, hay lugar para muchas cosas. Puede ser llamado un mundo del deber ser ideal. Cuando hay que pasar del amplio mundo del deber ser ideal al estrecho mundo del deber ser definitivo o real, se producen colisiones o, para usar otras expresiones frecuentes, tensiones, conflictos y antinomias. Es entonces inevitable sopesar principios contrapuestos, es decir, hay que establecer relaciones de preferencia3 .
Cabe agora analisar a distinção entre princípios e regras.
Normas de direitos fundamentais dão significado aos enunciados ou
disposições de direito fundamental, dizendo aquilo que deve ser. Enunciados ou disposições,
por sua vez, são modalidades deônticas, por conterem mandados de proibição e/ou de
permissão. Enquanto as normas são princípios ou regras, enunciados ou disposições são
simultaneamente princípios e regras, tendo portanto caráter duplo. Seja como for, princípios e
regras são espécies, portanto, de normas4.
Como, para Alexy, direitos fundamentais têm caráter de principio, que provem
do mandado típico dos enunciados/disposições das normas de direitos fundamentais,
princípios e regras são o "marco de una teoria normativo-material de los derechos
fundamentales" ou estrutura dos direitos fundamentais5.
Princípios e regras são formulados por expressões deônticas de mandado e, por
isso, são razões para juízos concretos de dever ser, diferenciando-se pela/por: 1) generalidade;
2) grau e qualidade; 3) natureza deôntica e dos direitos envolvidos; 4) resolução de colisões e
de conflitos.
Enquanto os princípios freqüentemente têm alto nível de generalidade, as
3 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 133 4 Ibid., p. 83. 5 Ibid., p. 81,112,114-115 (sobre o caráter de princípio das normas de direitos fundamentais) e 242 ("el mandato expresa claramente el carácter de princípios de las normas de derecho fundamental").
11
regras têm baixo nível de generalidade.
Princípios e regras se diferenciam, ainda, por critério de grau e qualidade. Os
princípios são "mandatos de optimización", ou seja, ''son normas que ordenam que algo sea
realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes"6. Já
as regras são determinações no âmbito do possível, jurídica e faticamente, ou seja, sendo válidas,
podem ser cumpridas ou não. Enquanto as regras pertencem ao mundo do juridicamente
existente e do peremptoriamente válido, os princípios estão no indefinido mundo do possível ou
do concomitantemente possível. No conflito entre regras, uma exclui/elimina a outra, por questão
de invalidade. Na colisão entre princípios, um apenas afasta o outro no momento da resolução do
embate, quando as possibilidade fáticas e jurídicas de um deles for maior do que as do outro.
Um quadro geral sobre as diferenças entre os princípios e as regras pode ser assim apresentado:
NORMAS
PRINCÍPIOS REGRAS mais genéricos Menos genéricas, mais especificas
mandados deônticos (proibição ou permissão) fracos
Mandados deônticos fortes (maior carga autoritária)
estabelecem direitos prima facie ou relativos Estabelecem direitos definitivos, salvo quando a regra comporte exceção (nesse caso as regras estabelecem direitos prima
facie mais fortes) quando incompatíveis entre si, entram em colisão quando incompatíveis entre si, entram em conflito
a colisão é resolvida por "ponderação", sem eliminação do direito prima facie
contido no princípio preterido
o conflito e resolvido por exceção ou invalidade, nesse último caso com
eliminação da regra preterida solução da colisão ocorre na dimensão do peso (por meio da ponderação)
Solução do conflito ocorre na dimensão da validade/invalidade (por meio da
subsunção) não são hierarquizados, não admitem exceção entre si e tampouco há diferença temporal entre eles
Admitem hierarquia e exclusão pelo critério de tempo, assim como exceção
por especialidade são mandados de otimização, porque dependem de possibilidades fáticas e jurídicas
não dependem de possibilidades fáticas ou jurídicas, bastando que sejam válidas, embora possam ser descumpridas
Humberto Ávila7 conceitua princípios e regras da seguinte forma:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos.
6 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 200. p. 242. 7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ªed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.78.
12
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para
cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de
coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como
necessária à sua promoção.
Como se vê, os princípios são normas imediatamente fmalísticas. Eles estabelecem um fim a ser atingido
Para J.J Gomes Canotilho, saber como distinguir, no âmbito do superconceito norma, entre regras e princípios, é uma tarefa particularmente complexa. Relata ele vários critérios sugeridos8:
1-Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida. 2-Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa. 3-Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordena-mento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). 4- “Proximidade” da ideia de direito: os princípios são «standards» juridicamente vinculantes radicados nas exigências de «justiça» (Dworkin) ou na «ideia de direito» (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional 5- Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.
Segundo Canotilho9, são os ¨princípios jurídicos fundamentais os princípios
historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que
encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional .̈ Pertencem à ordem
jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração,
conhecimento e aplicação do direito positivo.
É fundamental saber a conceituação do que seria princípio antes de ser feita a
analise do princípio da dignidade da pessoa humana, após a qual será analisada a relação deste
princípio com outros princípios jurídicos, para que logo após tal analise, possa ser realizada a
conceituação do que seria ¨Direito fundamental¨ e no que consistiria o núcleo do princípio da
dignidade da pessoa humana, ou seja o ¨mínimo existencial¨
Para alcançar tal objetivo, traçaremos o seguinte percurso: a análise inicial, do
que seria princípio e o que seria regras; passando na seqüência a analisar os direitos
fundamentais, para na seqüência verificar o princípio da dignidade da pessoa humana e sua 8 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição.4ªed. Coimbra: Almedina. p. 1123 9 Ibid., p. 1128
13
relação com os outros princípios, e após, ser analisado o mínimo existencial.
1.2 A Teoria dos Direitos Fundamentais como ¨Ciência¨.
Alexy declara expressamente que sua teoria é jurídica, ou seja, trata da "parte
general de la dogmatica de los derechos fundamentales¨, entendidos como direitos”
positivamente válidos “, tendo por base os princípios e as posições jurídicas básicas10.
Sendo jurídica, tal teoria precisa ser enquadrada na classificação da dogmática,
que pode ser: 1) analítica: conceituação sistemática do direito válido; 2) empírica: a)
conhecimento do direito positivamente valido; b) premissas empíricas da argumentação
jurídica; ou 3) normativa: orientação e crítica da praxis judicial ou busca da decisão correta
(conforme a valoração de quem a propõe)11. Dentro dessa classificação, a dogmática de
Alexy é mista, sendo: 1) "primariamente analítica”, na "tradicion analítica de la
jurisprudencia de conceptos", de índole deontológica; 2) empírico-analítica, porque se ocupa
da jurisprudência do Tribunal Constitucional; e 3) normativo-analítica, porque analisa a
racionalidade dos direitos fundamentais como parâmetro da decisão correta12. Por tudo isso,
sua teoria se diz integrativa (das três dimensões da dogmática) e estruturante, sendo, como tal,
"cientifica", vale dizer, o "principio unificante" dessa teoria integrativa é a ciência do direito
como disciplina prática ou tridimensional13. Sendo ciência assim declarada, sua teoria não se
confunde com as demais teorias sobre os direitos fundamentais (como a liberal, a institucional
a axiológica, a democrático-funcional e a do estado social), pois elas: 1) não são elaboradas
com base naquelas três dimensões da dogmática, não sendo portanto "científicas"; 2) são
abstratas; 3) e possuem apenas uma tese14.
Deixa-se por ora de analisar e criticar tal pretensão de cientificidade, para
privilegiar o exame do contexto teórico no qual se enquadra o autor, ou seja, na
jurisprudência dos conceitos e na sua correspondente deontologia.
Na primeira citação de Alexy se encontra uma referência aos princípios como
10 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001., pp. 25 e 27-29. A respeito da teoria, diz o autor que "su base la constituyen la teoría de los principios expuesta en el tercer capítulo y la teoria de las posiciones jurídicas básicas elaborada en el cuarto capitulo" (p. 25). Com relação aos princípios de que aqui se trata, estes estão expostos no 3° Capitulo do livro, e já e as posições jurídicas básicas são expostas no 4° Capitulo do livro ¨Teoria de los Derechos Fundamentales¨ 11 Ibid., p. 29-32. 12 Ibid., p. 39 e ss. Quanto à tradição da jurisprudência dos conceitos, p. 46. 13 Ibid., p. 33-34 e 174-176. 14 Ibid., p. 36-37.
14
um mundo de dever ser ideal. Tal categoria (dever ser) não diz como são as coisas, mas como
se as deve pensar, com o objetivo de evitar a contradição15. Logo, um dos objetivos dos
princípios, enquanto dever ser, é o de evitar contradições, apesar da possibilidade de colisão
entre direitos fundamentais com caráter de princípio.
Essa preocupação com a coerência lógica é compartilhada pela jurisprudência
dos conceitos e por seu formalismo jurídico forjado pela idéia de sistema herdada da doutrina
do direito natural. Nas palavras de Karl Larenz. "a idéia de sistema significa o desabrochar de
uma unidade numa diversidade, que desse modo se reconhece como algo coeso do ponto de
vista do sentido"16.
A jurisprudência dos conceitos surgiu na Alemanha, no Século XIX e tem
origem na escola histórica, da qual pertencem os pandectistas e Savigny (para quem o direito
era baseado nos costumes populares – “espírito do povo”, conforme interpretado pela
doutrina – “direito dos professores”). A escola histórica surgiu em França, no início do Século
XIX, com o objetivo de limitar a competência interpretativa do Judiciário, sendo também
conhecida como estatalidade, porque todo o direito devia ser criado pelo Estado. Dela
nasceram a dogmática e o positivismo17. Já os pandectistas eram historicistas alemães que
interpretavam o Código de Justiniano, buscando nele a identificação dos costumes
germânicos. A jurisprudência dos conceitos também se assimilou ao formalismo por criar
uma "genealogia dos conceitos", com base numa lógica indutiva (de princípios) e dedutiva
(de conceitos), onde as premissas lógicas preferem as normas jurídicas. A subsunção tem
origem nessa escola18.
O autor dessa “genealogia dos conceitos” foi Puchta, que trabalhava com a
idéia abstrata ou lógico-formal de sistema (outra tese era a de "organismo", na versão de
Savigny) por meio de uma pirâmide de conceitos, assim esquematizado: 1) "cada conceito
superior autoriza certas afirmações"; 2) "por conseguinte, se um conceito inferior se subsumir
ao superior, valerão para ele forçosamente todas as afirmações que se fizerem sobre o
conceito superior"; 3) "a genealogia dos conceitos ensina, portanto, que o conceito supremo,
15 JELLINEK, George. Teoria General del Estado. Granada: Editorial Comares, 2000. p. 131 e 155. Referido autor é utilizado por Alexy no 5° Capítulo de seu livro, mais especificamente quanto ao conceito de status. Portanto, a noção de JELLINEK de dever ser não pode ser desconhecida por Alexy. 16 LARENZ, Karl. Metodologia de Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 21-22. 17 Karl Larenz, com base em JERUSALÉM, adverte contudo que não é possível associar o positivismo e a jurisprudência dos conceitos, porque, enquanto o positivismo prevê como tese central a possibilidade fática de o legislador decidir o que é o direito, a jurisprudência dos conceitos nega tal circunstância e diz que os conceitos fundamentais são dados ao legislador de forma antecipada, pela filosofia do direito. Logo, a jurisprudência dos conceitos, diferentemente do positivismo, possui um fundamento suprapositivo 18 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Uma Contribuição ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2001. p. 68-70 e 86-87.
15
de que se deduzem todos os outros, co-determina os restantes através do seu conteúdo", nas
palavras de Karl Larenz, O conteúdo dos conceitos fundamentais e predeterminado pela
filosofia do direito. Como esses conceitos superiores são fixos e invariáveis, os demais
conceitos são deduzidos deles19.
Alexy reconhece, ainda, que a vinculação de sua teoria a tradição analítica da
jurisprudência dos conceitos vem acompanhada de uma índole deontológica, em comparação
com a índole antropológica da jurisprudência dos interesses e com a índole axiológica da
jurisprudência dos valores20. Tal correlação assume papel decisivo em sua teoria, já que os
princípios são por ele chamados de mandados de otimização, e mandados (proibição e
permissão) são parte da deontologia, ou seja, tudo o que e obrigatório. Desde logo se vê,
portanto, que os princípios não são tratados desde o início como uma categoria axiológica ou
antropológica, mas sim deontológica.
1.3- Direitos fundamentais: definição
A importância da definição do que são os direitos fundamentais decorre
primeiramente da variedade de expressões utilizadas na Constituição de 1988, entre elas:
direitos humanos (art. 4); direitos e garantias fundamentais (titulo II e art. 6, § 1); direitos e
liberdades fundamentais (art. 5, XLI); direitos fundamentais da pessoa humana (art. 17). Tais
expressões, exceção feita a direitos humanos; tem o mesmo conteúdo que a expressão direitos
fundamentais. Trata-se de gênero (expressão direitos fundamentais) e espécies (as demais)21.
Alguns autores consideram que as expressões direitos humanos direitos
fundamentais não são sinônimas, pois se referem a instituições diferentes. Essa e a posição de
Pérez-Luno, Canotilho e Lopes, esta última com mais ênfase, defendendo que Direitos
humanos são princípios que resumem a concepção de uma convivência digna, livre e igual de
todos os seres humanos, válidos para todos os povos e em todos os tempos Direitos
fundamentais, ao contrário, são direitos jurídica e constitucionalmente garantidos e definidos
espacial e temporariamente.
A circunstância de tais direitos variarem em quantidade e extensão ao longo
dos tempos e entre os diversos países que os formalizaram não muda a sua essência, que é a de
19 Ibid., p. 25-28. 20 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 140. 21 FILHO, Vladimir Brega. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Juarez de Oliveira, 2002. p. 66.
16
representarem a esfera jurídica própria dos indivíduos frente ao Estado, limitando o poder e
até fazendo com que o poder público atue concretamente em favor destes. Pode-se dizer que
os direitos fundamentais são os direitos dos seres humanos enquanto tais, vigentes em uma
determinada ordem constitucional, e que indicam a todos (e em especial ao Estado) e em
todos os domínios os limites que não podem ser ultrapassados e também os objetivos a serem
alcançados no sentido de assegurar níveis satisfatórios de vida as pessoas, ai compreendidos
aspectos materiais e imateriais.
Ainda com base nessa definição, podem ser identificadas as características
essenciais dos direitos fundamentais, que Lopes22 aponta como sendo a função dignificadora
(ou seja, eles têm por escopo principal resguardar a dignidade humana), a natureza
principiológica (pois os direitos fundamentais também são princípios jurídicos, que
conformam o ordenamento e oferecem critérios para a solução de controvérsias jurídicas, e daí
a importância de ter sido feita previamente a análise sobre princípios e regras), a função
legitimadora (eles, por sua própria natureza, fundamentam o sistema jurídico e são critério de
legitimação do ordenamento constitucional), o aspecto de normas constitucionais (já que eles
são normas jurídicas positivadas na Constituição) e a historicidade (por refletirem os direitos
fundamentais as concepções essenciais de determinada época ou país, sobretudo no que
tange à dignidade humana)23
1.4 Noção e classificação dos direitos fundamentais
A temática dos direitos humanos fundamentais é uma das mais ricas no campo
do direito constitucional e se entrelaça inclusive com a da formação do Estado, ou pelo menos
do Estado de Direito.
Isso porque a finalidade última de tais direitos é delimitar o poder, de modo a
privilegiar o ser humano, seja pela fixação de barreiras ao exercício do poder estatal, seja pela
atribuição de deveres específicos ao Estado em prol do bem-estar dos indivíduos24.
Existem duas categorias jurídicas distintas de liberdades: de um lado, as
22 LOPES, Ana Mana D`Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. p. 41 23 Ibid., p. 37 24 E nesse sentido que Norberto BOBBIO considera que "embora as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente ern diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre - com relação aos poderes constituídos - apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios"" (in: A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus. 1992. p. 6)
17
liberdades negativas; de outro, as liberdades positivas. As liberdades negativas corresponde a
postura omissiva do Estado, a qual comporta não somente a garantia de fazer ou não fazer
alguma coisa, mas também o direito de não se submeter a interferências da autoridade na
própria esfera de liberdade25. As liberdades positivas, ao contrário, encontram sua realização
na função promocional do Estado, consubstanciando aqueles direitos que reclamam, para
serem efetivados, a prática de condutas concretas por parte do poder público.
Conforme Ferrajoli26, os direitos fundamentais podem ser separados tendo em
vista sua natureza de expectativas negativas (de uma não lesão) ou ainda expectativa positiva
(de prestação), sendo que os primeiros, nessa lógica, consistem em direitos negativos ou de
imunidade, e os segundos correspondem aos direitos positivos, isto é, expectativas de
prestações por parte de terceiros.
Assim, devem os direitos fundamentais ser classificados nessas duas
categorias, conforme a função realizadora do Estado, e portanto, se a) materialmente a
realização do direito prescinde de uma atuação concreta estatal, irá se tratar de um direito
negativo (consistindo em uma liberdade negativa, ou seja, obrigação de abstenção da
interferência na esfera pessoal por parte do Estado); e b) a atuação concreta do Estado é
necessária para a realização do direito, configurando um direito positivo ou prestacional
(consistindo em uma liberdades positivas, ou seja obrigação de intervenção ativa por parte
do Estado).
No âmbito da liberdade negativa, para De Vergotini27, existem dois fenômenos
distintos e complementares, quais sejam: 1) Liberdade do Estado, que consubstancia-se nos
direitos exercitáveis contra o poder político, os quais têm por escopo impedir interferências
indevidas nas esferas privadas dos cidadãos; e 2) Liberdade no Estado, que se refere à
participação ativa da pessoa na atividade política democrática e participativa. A liberdade
negativa tende a salvaguardar o perfil privado da pessoa humana, enquanto os direitos
políticos garantem a interação dinâmica do cidadão no contexto social e político de sua
comunidade28.
Já no âmbito da atuação concreta do Estado, existe a liberdade mediante o
Estado, ou seja, uma liberdade que depende de uma prestação do Estado, usando o Estado
como meio para a realização do direito fundamental.
25 DE VERGOTINI, Giuseppe. Diritto Constituzionale. Padova: Cedan, 2000. p. 293. 26 FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trota, 2001. p. 294. 27 DE VERGOTINI, Giuseppe. Diritto Constituzionale. Padova: Cedan, 2000, p. 293. No mesmo sentido: AMATO, Giuliano. BARBERA, Augusto (org.). Manuale di diritto pubblico. Vol. I. Bologna: il Mulino, 5a ed., 1997. p. 229. 28 DE VERGOTINI, Giuseppe. Diritto Constituzionale. Padova: Cedan, 2000. p. 293.
18
Essas categorias não são estanques, pois, por exemplo os direitos políticos não
podem ser agrupados conjuntamente dentre os direitos negativos, sendo necessária a cisão das
diversas facetas dessa espécie normativa, alocando-a de acordo com o conteúdo
preponderante: em exigindo o direito político uma omissão do Estado, deve ser catalogado
como liberdade negativa; ao contrário, porém, quando a satisfação do direito de cidadania
exige um agir concreto estatal, estaremos diante de um direito positivo. Nesta perspectiva, os
direitos de participação seriam mistos de direitos de defesa e de direitos a prestações29.
Para Robert Alexy, de forma semelhante, os direitos fundamentais são
divididos em dois grupos: a) direitos de defesa e b) direitos prestacionais em sentido amplo,
correspondendo a) a direitos a ações negativas (omissões) do Estado, consistindo assim em
direitos fundamentais assecuratórios da liberdade individual frente às intervenções do poder
público; e b) a todo direito que exige uma ação do Estado30, e então a escala das ações
positivas do Estado que podem ser objeto de um direito a prestações compreende desde a
proteção do cidadão frente a outros cidadãos, passando pela produção de normas de orga-
nização e procedimento, até prestação em dinheiro e em bens. Assim, para Alexy, seriam
direitos prestacionais:1) Direitos à proteção, 2) Direitos à organização e procedimento, e 3)
direitos a prestações em sentido estrito.
Esses direitos fundamentais, sejam negativos ou positivos, exteriorizam a
eficácia imediata de vinculação ao seu conteúdo essencial, não sendo lícito à atividade
legislativa ou administrativa infraconstitucional retirar-lhe ou inverter-lhe o seu sentido útil
ou "pôr em causa qualquer princípio constitucional que neles haja de se reflectir". Ou seja,
em relação ao conteúdo essencial dos direitos econômicos, sociais e culturais aplicam-se as
mesmas regras constitucionalmente previstas aos direitos, liberdades e garantia.
Se os pressupostos de fato para esses direitos fundamentais estiverem presentes
parece óbvio que esses direitos, na sua maioria direitos sociais, devem ser considerados de
aplicação imediata, e assim estes serão retirados da exclusiva esfera programática, e devem
ser efetivados socialmente. Aqui a grande questão parece ser: se não estiverem presentes os
pressupostos de fato para a efetivação? (sejam eles econômicos, financeiros e institucionais).
trataremos desse ponto mais ao final.
29 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2001. p.175. 30 Considerados os seguintes escritos de Robert Alexy: Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, e Epílogo a Ia teoria de los Derechos Fundamentales. Revista Espanhola de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, n° 66, ano 22, set/dez 2002, p. 13/64.
19
Assim, presentes os pressupostos, o Estado estará obrigado a promover a
concretização desses direitos, sendo pois ¨imposições constitucionais¨ (como é por exemplo a
correção das desigualdades na distribuição da riqueza).
Se não presente os pressupostos, Jorge Miranda31, por exemplo, reconhece a
incidência do princípio da reserva do possível aos direitos econômicos, sociais e culturais
(ajustamento do socialmente desejável ao economicamente possível), uma vez que o caráter
principiológico dos direitos fundamentais subordina-os às condições econômicas vigentes
quando da aplicação da norma jurídica. Como regra, todavia, o conteúdo essencial de todos os
direitos "deverá sempre ser assegurado, e só o que estiver para além dele poderá deixar ou
não de o ser em função do juízo que o legislador vier a emitir sobre a sua maior ou menor
relevância dentro do sistema constitucional e sobre as suas condições de efectivação". Tal
autor não se reporta aqui a teoria das restrições, mas sim a uma avaliação dialética entre
direitos e recursos disponíveis.
Com relação à aplicação do princípio da universalidade aos direitos
econômicos, sociais e culturais, Jorge Miranda salienta que deve ser trabalhada a partir do
princípio da igualdade material, e então assim, deve-se considerar o objetivo de diminuir as
desigualdades econômicas e sociais, que irá determinar as incumbências públicas32.
Ao mesmo tempo em que se confere eficácia imediata aos direitos negativos,
relegam-se os direitos prestacionais a intermináveis divagações doutrinárias e jurisprudências,
discutindo-se desde sua (in)capacidade de gerar pretensões concretas por parte do cidadão até
intrincadas questões relacionadas à reserva do possível, conjunto de problemas que acaba por
produzir uma imprecisão do próprio caráter das normas constitucionais.
1.5 A compreensão "principiológica": uma postura teórica a favor dos direitos
fundamentais.
A compreensão principiológica dos direitos fundamentais demonstra ser uma
postura teórica em favor dos direitos fundamentais, no momento em que permite a
31 MIRANDA, Jorge. Regime específico dos direitos econômicos, sociais e culturais, In: Estudos Jurídicos e Econômicos em homenagem ao Professor João Lumbrales. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2000. p.352. 32 Ibid., pp 354-355.
20
visualização sistêmica e integral de todos os direitos fundamentais, com a superação de
critérios diferenciatórios entre os direitos que, ao final, têm todos como objetivo essencial a
proteção da dignidade da pessoa humana, traduzindo comandos de potencialização no que se
refere à proteção concreta dos respectivos núcleos essenciais. Nesse sistema, as normas
jurídicas são subdivididas em princípios e regras. Daí a importância do estudo distintivo entre
princípios e regras.
A incindibilidade dos direitos fundamentais e a inexistência de diferenças
estruturais entre os variados tipos de direitos determinam a superação dos modelos teóricos
embasados na separação estanque entre as esferas dos direitos sociais (positivos ou
prestacionais) e dos direitos de liberdade (negativos), afirmando-se a aplicabilidade imediata
de todas as normas constitucionais, a partir da unidade de sentido dos direitos fundamentais33.
A hermenêutica jurídico-constitucional deve pressupor a idéia de que a
Constituição é um sistema aberto: conjunto interligado de princípios e regras que devem
manter entre si um vínculo de essencial coerência, de modo a evitar contradições entre as suas
disposições, conferindo-se a máxima eficácia aos direitos fundamentais. A diferença entre
direitos negativos e direitos positivos é meramente de grau, uma vez que em ambos há
expectativas negativas e positivas34, pois o fato de os direitos sociais buscarem sua fonte no
princípio da igualdade, o qual, por sua vez, é pressuposto da liberdade, demonstra, que as
particularidades existentes entre os diversos direitos não devem ser concebidas como
antagônicas e excludentes, mas como complementares à efetivação da dignidade humana
percebendo-se entre as duas categorias de direitos uma implicação recíproca: a garantia dos
direitos de liberdade é condição para que as prestações sociais do Estado possam ser objeto de
direito individual; a garantia dos direitos sociais é condição para o bom funcionamento da
democracia, bem como para um efetivo exercício das liberdades civis e políticas. Essa
complementaridade entre os direitos decorre dos três pontos em que se embassam os direitos
fundamentais (especialmente os sociais): 1) princípio da dignidade da pessoa humana; 2)
princípio democrático; e 3) compreensão (culturalmente e socialmente integrante) da
constituição.
Desses três pontos, o primeiro será objeto de analise mais acurada nesse
presente trabalho, para que após possa ser analisado no que consiste o mínimo existencial, e
como é possível (ou não) a garantia desse núcleo do princípio da dignidade da pessoa
33 MIRANDA Jorge. Prefácio da obra Direitos humanos. FERREIRA DA CUNHA, Paulo (org.). Coimbra: Almedina, 2003. p. 11. 34 FERRAJOLI, Luigi. Prólogo do livro Los derechos sociales como derechos exigibles, de Victor Abramovich e Christian Courtis. Madrid: Trotta, 2002. p. 10.
21
humana.
1.6 O estudo sobre aspectos essenciais do regime jurídico dos direitos fundamentais
sociais.
O modelo de incorporação constitucional dos direitos sociais tem forma
variável, podendo ocorrer tanto através de um preceito geral de qualificação do Estado Social,
como é o caso do Estado Alemão, ou ainda através de discriminação minuciosa de espécies
em uma declaração linear, como é o caso do Estado Português35. A constituição do Brasil de
1988 não adotou nenhum desses dois modelos, estando inscritos os direitos sociais no interior
do catálogo jusfundamental através de uma norma básica, que dita: ¨são direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição¨(art.
6º).
Assim, o enunciado normativo se desdobra em duas partes conexas, uma
contendo uma seleção de tipos, e outra uma cláusula de reserva. Houve pois uma apresentação
de uma tábua geral dos vários ramos em que os direitos sociais se subdividem, sem alusões a
situações particulares de direito subjetivo.
Assim, os direitos sociais tipificados na constituição são suscetíveis de
decomposição em uma série de espécimes singulares, cada qual com sua identidade própria.
a) Os direitos sociais como não cláusulas pétreas
O critério de divergência entre os direitos constitucionais subjetivos
fundamentais e os não fundamentais reside na imunidade ou não à abolição, ou seja, em ser
ou não cláusula pétrea. Nessa ótica, fundamentais seriam os direitos protegidos por meio de 35 MARTINS NETO, João dos Passos. Direitos fundamentais: conceito, função e tipos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 168.
22
uma rigidez absoluta (cláusula pétrea); e não fundamentais aqueles que não são indisponíveis
ao legislador derivado.
A Constituição do Brasil de 1988 declara ser inadmissível a proposta de
emenda tendente a abolir ¨os direitos e garantias individuais¨ (art. 60,§4º). Este dispositivo é,
entretanto, de alcance duvidoso quanto a estarem ou não os direitos sociais abrangidos pela
locução ¨direitos e garantias individuais¨ e, em conseqüência disso, estarem ou não subtraídos
a possibilidade de exclusão.
Em termos essenciais, essa dúvida propõe o seguinte questionamento: Os
direitos sociais são ou não direitos subjetivos fundamentais?
Mesmo com a existência dessa ¨dúvida¨, não se pode negar que a dignidade da
pessoa humana consta como um dos princípios fundamentais da própria República, pois
consta do art. 1º da Constituição Federal de 1988.
Alguém em sã consciência pode falar que pode existir mudança constitucional
tendente a alienar ou suprimir a soberania? Ou ainda, emenda que restringe a cidadania? De
igual modo é a dignidade da pessoa humana. Concluímos então que se não for direito ou
garantia fundamental, é um princípio fundamental. Como tal, sendo princípio fundamental,
deve ser concretizado na sua carga máxima.
Vamos a questão inicial. A resposta a ela (se seria ou não direitos subjetivos
fundamentais) não pode ser outra senão um sim, é direito subjetivo fundamental.
Observamos, conforme João dos Passos Martins Neto que a literalidade da expressão direitos
individuais não exclui necessariamente os direitos sociais, pois estes são ¨individuais quanto à
titularidade, ainda que individualmente pertencentes por igual a vários titulares concomitantes
(por isso que universais e homogêneos)¨36.
Ainda lista o autor mais duas razões para a interpretação no sentido do sim,
que são: 1) O estado social representou uma das cruciais decisões do poder constituinte
originário no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, e que assim, se for
admitido que os direitos sociais estejam sujeitos à abolição por meio de emenda, haveria o
reconhecimento de que a ordem constitucional poderia ser revista em sua mais íntima
essência a qualquer tempo pelo poder constituinte derivado; e 2) os direitos sociais tem uma
função decisiva de complementação, à medida que postulam tornar reais os benefícios
36 Ibid., p. 173.
23
prometidos pelos direitos liberais e políticos formalmente formulados, e então formam com
estes uma unidade indivisível. Assim, para João dos Passos Martins Neto, supor que são
pétreos apenas os direitos de liberdade e participação implica em admitir que é possível uma
volta à lógica do liberalismo originário, quando na verdade, sob a inspiração das idéias de
complementaridade e indivisibilidade, justamente contra tal risco foram erguidas as barreiras
do Estado Social.
Porém esse entendimento é ainda hoje considerado errôneo, pois não há como
realizar tal interpretação dessa forma, pois ela é contra o próprio texto de lei.
b) Aplicabilidade imediata e condições de incidência dos direitos
fundamentais.
A importância de qualificar direitos como fundamentais consiste
justamente no fato dos mesmos possuírem um regime jurídico de proteção especial outorgado
pela Constituição, com aplicabilidade imediata e tendo como destinatários todas as pessoas,
incluído aí os estrangeiros em trânsito, apesar de não estar expressamente escrito na
Constituição.
Com relação a aplicabilidade, é necessário abandonar a concepção meramente
reducionista dos direitos fundamentais, que os contemplam tão somente como limites ao
poder público, e considerá-los, também, como diretrizes positivas para a atuação estatal.
Assim, a garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais devem ser
vistos como uma obrigação ao poder público, um verdadeiro mandado, de natureza positiva,
para que haja a adequada promoção dos direitos fundamentais e, então, a sua máxima
otimização37.
37 BIAGI, Cláudia Perotto. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais na jurisprudência constitucional brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 94.
24
Segundo Lilian Márcia Balmant Emerique38:
A doutrina, ao tratar do regime jurídico dos direitos fundamentais, cita em grande parte o comando do art. 5º, § 1º, da Constituição de 1988, que estabelece o princípio da aplicabilidade imediata: “ As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata ”. O preceito representa um status distinto e reforçado para os direitos fundamentais, procurando impedir que os mesmos não sejam efetivados por falta de regulamentação. A previsão da norma citada está correlacionada à influência advinda de outras Constituições sobre a ordenação brasileira. Pode-se destacar o art. 18/1 da Constituição Portuguesa de 1976: “ Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas” e o art. 1º, III, da Lei Fundamental da Alemanha de 1949: “Os direitos fundamentais a seguir enuncia- dos vinculam o Legislador, o Poder Executivo e o Judiciário como direito diretamente vigente ”.
Expõe ainda ela que questão importante é saber se tal aplicabilidade se dá a
todos os direitos fundamentais, inclusive aqueles estipulados fora do catálogo, ou se
restrita ao art. 5º, da Constituição de 1988, e versando a respeito do assunto39:
Na Lei Maior não existe nenhum impedimento relacionado à extensão do regime de aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais previstos fora do catálogo, aliás, semelhante tratamento coaduna-se com a concepção aberta dos direitos fundamentais estipulada no art. 5º, § 2º, da norma constitucional
Embora o art. 5º, § 1º se situe topograficamente no art. 5º, deve ser afastada
toda interpretação restritiva, baseada em argumentos topográficos, que sustenta a incidência
do dispositivo apenas sobre as normas contidas no artigo referido. Mediante uma
interpretação teleológica do texto, a aplicabilidade imediata expande-se por todos os direitos
fundamentais. Em outras palavras, o campo de incidência do princípio da aplicabilidade
imediata consiste em todos os preceitos definidores de direitos e garantias fundamentais,
e é justamente esta a visão de Flávia Piovesan40
Portanto,
Os direitos fundamentais, de acordo com o princípio da aplicabilidade imediata, requerem dos poderes públicos os meios necessários para que alcance a maior eficácia possível, concedendo-lhes efeitos reforçados em relação às demais normas constitucionais, pois tal comando é um dos pilares da fundamentalidade formal dos ditos direitos no âmbito da Constituição.
38 EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito Fundamental como Oposição Política - Discordar, fiscalizar e promover alternância política. Curitiba: Juruá editora , 2006. p. 120. 39 Ibid., p. 121 40 PIOVESAN, Flávia.Proteção judicial contra omissões legislativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 89-90 apud EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito Fundamental como Oposição Política - Discordar, fiscalizar e promover alternância política. Curitiba: Juruá editora , 2006. p. 123.
25
Assim, os direitos fundamentais são dotados, em relação às demais normas constitucionais,de maior aplicabilidade e eficácia, embora isso não signifique que não existam distinções quanto à graduação dessa aplicabilidade e efi-cácia, conforme a forma de positivação, do objeto e da função desem-penhada por cada comando. Caso essa condição privilegiada fosse negada aos direitos fundamentais, acabar-se-ia, em última instância, negando-lhes própria fundamentalidade41
41 EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito Fundamental como Oposição Política - Discordar, fiscalizar e promover alternância política. Curitiba: Juruá editora , 2006. p. 126.
26
CAPITULO SEGUNDO: O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO EXISTENCIAL
2.1 Conceituação
A Constituição brasileira transformou a dignidade da pessoa humana em valor
supremo do Estado brasileiro e, em especial, do sistema jurídico-constitucional. No
constitucionalismo brasileiro contemporâneo, o homem é concebido como centro do universo
jurídico-constitucional e como prioridade justificante do Direito.
Mas o que vem a ser o princípio da dignidade da pessoa humana? Nessa
pergunta residem os riscos maiores, e ¨em nível mundial, aspectos culturais influenciam o
conceito de dignidade. Enquanto no Ocidente preza-se a igualdade entre gêneros, por exemplo,
em muitos países tolera-se a inferiorização da mulher, admitindo-se sessões de apedrejamento
e cárcere privado por desrespeito à regra interna da não-liberdade.¨42
Assim, existe a visão de que o conceito de dignidade depende de um fator
cultural.
No dicionário verifica-se que a palavra vem ¨do latim dignitate, a palavra
significa; "1. Cargo e antigo tratamento honorífico. 2. Função, honraria, título ou cargo que
confere ao indivíduo uma posição graduada (...). 3. Autoridade moral; honestidade, honra,
respeitabilidade, autoridade. (...). 4. Decência; decoro (...). 5- Respeito a si mesmo; amor-
próprio, brio. (...)¨43
A dignidade é qualidade moral que, possuída por alguém, serve de base ao
próprio respeito em que é tida44
Quando o direito interno inclui a dignidade entre os fundamentos que
alicerçam o Estado Democrático de Direito, estabelece á dignidade da pessoa como "fonte
ética" para os direitos, as liberdades e as garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e
culturais. É o que afirma Jorge Miranda:
A Constituição, a despeito do seu caráter compromissório, confere uma 42 ZISMAN, Célia Rosenthal. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: IOB Thomson, 2005. p.19. 43 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 682, (verbete dignidade.) 44 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 20. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 267 (verbete dignidade).
27
unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, proclamada no art. 1o, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado. Pelo menos, de modo directo e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas.
Mas quase todos os outros direitos, ainda quando projectados em instituições, remontam também à idéia de protecção e desenvolvimento das pessoas. A copiosa extensão do elenco não deve fazer perder de vista esse referencial. (...) Para além da unidade do sistema, o que conta é a unidade da pessoa. A conjugação dos diferentes direitos e do preceitos constitucionais, legais e internacionais a eles atinentes torna-se mais clara a essa luz. O 'homem situado' no mundo plural, conflitual e em acelerada mutação do nosso tempo encontra-se muitas vezes dividido por interesses, solidariedades e desafios discrepantes; só na consciência da sua dignidade pessoal retoma unidade de vida e de destino.45
Salvador Vergés Ramírez, ao conceituar o alcance da dignidade do homem,
expõe que esta seria a pedra angular do edifício dos direitos humanos, e assim, teria função de
dar suporte e coesão aos direitos humanos. Segundo ele:
El alcance de la dignidad del hombre representa como la piedra angular del edificio de los derechos humanos. Primero, merced a su función de dar soporte y cohesión unitaria a los derechos humanos. Segundo, en virtud de la conexión interna que tienen entre sí aquélla con éstos. La razón, que conforma este alcance, es el carácter original de la dignidad: la manera de ser y también de obrar del hombre. Así, por lo que a su ser respecta, el punto central se halla configurado por su «autoconciencia». El hombre es el único ser del mundo que se auto posee, en virtud de su condición racional. Kant reserva la expresión de la «dignidad» para el hombre. Escribe textualmente: «La dignidad del hombre, como naturaleza racional», le diferencia de todos los demás seres de la naturaleza20. Coherente con su teoría de la dignidad del hombre, sostendrá además que solamente la persona es autónoma. No podemos, sin embargo, suscribir la proposición de Kant cuando afirma: ¨La autonomía es el fundamento de la dignidad de la naturaleza humana y de toda naturaleza racional.46
Assinalar-se-á quatro momentos fundamentais nesse percurso: o Cristianismo;
o iluminismo-humanista, com a obra de Giovanni Pico de La Mirandola; a obra de Immanuel
Kant e o influxo dos horrores da Segunda Guerra Mundial.
O conceito de dignidade já há muito tempo é associado ao conceito de
liberdade ou de igualdade. Desde quando Giovanni Pico de La Mirandola escreveu sua obra
¨A dignidade do homem¨, em 1486, já se associava dignidade à liberdade.
Para Giovanni Pico, a liberdade não é um simples instrumento de luta contra
45 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3 ed. Coimbra: Coimbra, Tomo IV, 1998. p. 166 e 167. 46 RAMÍREZ, Salvador Vergés. Derechos Humanos: Fundamentacion.. Madrid: Tecnos , 1997. p. 84.
28
forças adversas. É, sobretudo, um princípio positivo de ação sobre a realidade. Assim se
preserva o sentido original da liberdade como propriedade excelsa do ser humano, e dessa
propriedade, o homem terá que se valer sempre para afirmar a própria dignidade ao longo de
sua existência.
O maior mérito desta conceituação de liberdade reside nos seus aspectos de
abertura e risco. Independente de qualquer fator externo, a liberdade dispõe do poder de
eleger para o homem seu modo de ser.47
O antropocentrismo presente nessa obra de Giovanni Pico de La Mirandola não
era novo para a época a qual foi escrita a mesma, já tendo ele sido celebrado por outros
autores, como Petrarca, Leonardo Bruni e Gianozzo Manetti, mas Pico se diferencia deles no
que tange ao seu texto, que embora faça alusões à ¨ratio theologica¨, a par da ¨ratio
philosophica, não estabelece entre elas a relação de subordinação, dependência, de causa e
conseqüência entre criador e criatura, como acontecia habitualmente. Por isso, as teses de
Pico foram consideradas heréticas por Inocêncio VIII, tendo sido o autor absolvido apenas
pelo sucessor, o Papa Alexandre IV48.
Em 1788, Kant, através da Crítica da Razão Prática reassentou a questão em
novas bases. Para ele, no mundo social existem duas categorias de valores, sendo elas o preço
e a dignidade. O preço representando um valor exterior, de mercado, e sendo manifestação de
interesses particulares, enquanto a dignidade é representada por um valor interior, moral, e de
interesse geral. Assim, as coisas em geral tem um preço; e as pessoas, dignidade. O valor
moral se encontra nessa concepção infinitamente acima do valor de mercadoria, porque não
admite ser substituído por equivalente. Assim, o homem não pode ser transformado em meio
para alcançar fins particulares ou egoístas, e em conseqüência, a legislação elaborada a
vigorar no mundo social deve levar em conta, como finalidade suprema, a realização do valor
intrínseco da dignidade humana.
Segundo Ana Paula de Barcellos, ¨nada obstante os vários retrocessos
históricos, a concepção kantiana de homem continua a valer como axioma no mundo
ocidental, ainda que a ela se tenham agregado novas preocupações, como a tutela coletiva dos
interesses individuais e a verificação da existência de condições materiais indispensáveis para
o exercício da liberdade¨49.
47 MIRANDOLA, Pico Del. A digidade do Homem. Tradução de Luiz Ferracini. Campo Grande: Solivros Livraria e Editora Ltda, 1999. 48 Ibid. p. 25. 49 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 107.
29
Outro momento marcante no percurso histórico da noção de dignidade da
pessoa humana é a revelação dos horrores da Segunda Guerra Mundial, que transtornou
completamente as convicções que até ali se tinham como pacíficas e "universais". A terrível
facilidade com que milhares de pessoas não apenas alemãs, diga-se, mas de diversas
nacionalidades européias abraçaram a idéia de que o extermínio puro e simples de seres
humanos podia consistir em uma política de governo válida ainda causa impacto.
Hannah Arendt analisando a crise do Estado contemporâneo, que permitiu o
surgimento de Estados totalitários, demonstra que numa estrutura burocrática de governo e de
dominação, apoiada em uma ideologia e no terror, os padrões morais e as categorias políticas
tradicionais se enfraquecem, permitindo-se às mais gritantes ofensas à dignidade da pessoa
humana. Segundo seu relato, durante a Segunda Guerra Mundial, até mesmo as próprias
vítimas acabavam por perder a noção do valor inerente à pessoa humana, como demonstrava a
prática, até certo ponto comum, dos próprios líderes das comunidades judaicas negociarem a
libertação de judeus "mais cultos" ou "importantes", em troca de judeus "comuns".
A análise do fenômeno totalitário permite então visualizar que neste tipo de estado
criam-se as condições para se considerar os seres humanos supérfluos, em franco desrespeito ao
valor da pessoa humana. Na verdade, o totalitarismo retira do homem a sua condição humana,
tratando-o como um ser descartável que pode ser trocado, substituído ou igualado a uma
coisa50.
A reação ao nazismo e dos fascismos em geral levou, no pós-guerra, à
consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor má-
ximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos
internacionais.
Nesse contexto, surge a necessidade de se recuperar os mecanismos que afastem a
perspectiva totalitária. A solução seria, para Hannah Arendt, recuperar a pluralidade do espaço
público da palavra e da ação, permitindo o pleno exercício da criatividade de cada ser humano.
Para ela a liberdade e a palavra não seriam coisas dadas, mas deveriam ser construídas a partir
da manutenção, e porque não dizer promoção, de um espaço público democrático, que permita
o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas51.
A partir do termino da Segunda Guerra Mundial e especialmente após a criação
da ONU, a discussão a respeito dos direitos humanos ou fundamentais tomou uma nova
50 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1983. 51 Ibid.
30
dimensão. No âmbito internacional, Declarações e Pactos sobre esses direitos foram firmados,
bem como Organizações e Cortes criadas para protegê-los.
Como visto, hoje não mais se pode utilizar o conceito do Giovanni Pico de La
Mirandola como era exposto naquela época, já que a dignidade do homem não mais pode ser
ligada tão intimamente apenas à liberdade, sendo hoje uma qualidade moral que possuída por
alguém serve de base ao próprio respeito com que é tida. Existe então um determinado grau
de respeitabilidade mínima, consistente na própria consideração de sua existência por parte
dos semelhantes.
A respeitabilidade mínima em relação ao homem não depende, portanto, de
seus feitos, ou ainda, de sua idade, condição social, ascendência ou grau de hierarquia. refere-
se a tratamento digno, ao qual qualquer pessoa tem direito, no plano universal.
A idéia de direitos fundamentais congrega os direitos sociais, econômicos e
culturais. A noção de mínimo existencial, que será desenvolvida posteriormente, nada mais é
que um conjunto formado por uma seleção desses direitos, tendo em vista principalmente sua
essencialidade, dentre outros critérios.
2.2- Relação do princípio da dignidade da pessoa humana com outros princípios
constitucionais
Segundo Célia Rosenthal Zisman52 a dignidade da pessoa depende da proteção
e da garantia dos direitos fundamentais, sendo que tais direitos não são absolutos. Trata-se de
três ordens de direitos, que tutelam a liberdade, a segurança e a autonomia da pessoa frente ao
poder estatal e aos demais membros do corpo social.
Cada uma dessas ordens de direito tem princípios que lhes são em maior grau
ou em menor grau afetos. Assim, a dignidade da pessoa humana, que é dependente dos direitos
fundamentais, tem uma relação direta com outros princípios, que tutelam os mesmos direitos
dos quais a dignidade da pessoa humana é dependende. Não há dignidade da pessoa humana
sem que os direitos fundamentais sejam assegurados.
São essenciais à dignidade para a mencionada autora: o direito à vida, à
igualdade, à liberdade psíquica (liberdade de expressão do pensamento e das opiniões, de 52 ZISMAN, Célia Rosenthal. O princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: IOB Thomson, 2005. p. 27
31
escolha religiosa, sexual, política, profissional, entre outra), à liberdade física, à integridade
física e à psíquica (que dependem do direito à segurança), à propriedade, a penas não-
degradantes, à qualidade de vida (não se tolera a fome, a negligência do Estado em matéria de
educação, o abandono).
O substrato material da dignidade pode então ser desdobrado em quatro
postulados básicos: 1) sujeito moral, que reconhece a existência de outros iguais a ele, 2)
sendo estes outros merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que o sujeito
moral é titular; 3) dotado de vontade livre, de autodeterminação; 4) é parte do grupo social,
em relação ao qual tem garantia de não vir a ser marginalizado.
Desses quatro postulados se extraem os princípios jurídicos da igualdade; da
integridade moral e física; da liberdade e da solidariedade.
São precisamente estes princípios, substituindo apenas o da integridade moral e
física pelo principio da capacidade contributiva, que serão analisados agora, por manter estes
princípios, conforme já explicado, relação com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Antes, porém, deve ser ressaltado que existe a possibilidade de haver conflito
entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, cada uma amparada por um desses
princípios, portanto conflito entre princípios de igual importância hierárquica. Nesse caso,
usando a medida de ponderação, deve ser considerado o objetivo a ser alcançado, e este já é
pré-determinado em favor do princípio da dignidade da pessoa humana. Essa, dignidade, vem
à tona no caso concreto, se bem feita a ponderação.
a) Princípio da igualdade
Segundo Sérgio Abreu53, as Constituições americana de 1787 e francesa de
1793, inauguram o constitucionalismo moderno erigindo o princípio jurídico-político,
denominado princípio da igualdade ou princípio da igualdade perante a lei. Tal princípio
ligado à Déclaration des droits de 1'homme et du citoyen de 1789, foi formalmente aportado
na Constituição Americana de 1787. É certo que a Constituição de 1787 se limita a abolir os
títulos de nobreza (artigo Ia, secção 9, in fine): "Nenhum título de nobreza será concedido 53 ABREU, Sérgio. In Os Princípios da Constituição de 1988, Manoel Messias Peixinho et al orgs. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.253.
32
pelos Estados Unidos, nem pessoa alguma exercendo emprego de interesse ou confiança
debaixo da autoridade dos Estados Unidos, poderá aceitar sem consentimento do congresso,
gratificação, emolumento, emprego ou título, seja de que natureza for, de qualquer rei,
príncipe, ou estado estrangeiro".
Nas Constituições dos Estados pertencentes aos Estados Unidos, ao ser
sistematizado o princípio da igualdade, assinala-se os seguintes pontos principais: a) os
homens nascem livres e iguais; b) não consideração dos serviços feitos ao público; c) não são
admitidas diferenciações nobiliárquicas; d) ao direito de igualdade corresponde um dever ou
obrigação de igualdade. Assim é o tratamento dado por exemplo nas Constituição do Estado
da Carolina do Norte, de 1971; e de Massachusetts, de 1780.
Segundo Martin de Albuquerque, "as três primeiras aportações consubstanciam
o cerne da doutrina que será, anos mais tarde, postulada nas declarações de direitos e
constituições francesas, não cabendo, pois, à França a glória da primeira consagração
constitucional do princípio da igualdade. Cabendo-lhe tão somente, o enunciado que, por mais
conhecido, se tornou mais fluente"54.
O itinerário do princípio da igualdade aporta na afirmação dos direitos
humanos. As camadas sociais relegadas a indigência e a vulnerabilidade - por debilidade
econômico-social e por sofrerem permanente violação de direitos fundamentais - merecem
proteção particularizada de acordo com a Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993).
Por essa razão, a tarefa do jurista é " impor a igualdade de todos no tocante à sua qualidade de
seres humanos, à dignidade humana, aos direitos fundamentais e às restantes garantias
legalmente vigentes de proteção".35 Daí, decorre a urgência na superação das desigualdades
sociais.
Para J.J. Gomes Canotilho, este princípio, o da igualdade é um dos que
estruturam o regime geral dos direitos fundamentais55.
Aduz ele que esse princípio condensa um grande conteúdo, citando a igualdade
na aplicação do direito e na criação do direito; o princípio da igualdade e igualdade de
oportunidades; a igualdade perante encargos públicos; e a igualdade e os direitos de
igualdade. Para ele,
o princípio da igualdade é não apenas um princípio de Estado de direito mas
também um princípio de Estado social. Independentemente do problema da
distinção entre ¨igualdade fáctica¨ e ¨igualdade jurídica¨ e dos problemas
54 ALBUQUERQUE DE, Martin. Da igualdade. Coimbra: Almedina, 1993. p. 50. 55 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 4ªed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 416.
33
económicos e políticos ligados à primeira (ex.: políticas e teorias da
distribuição e redistribuição de rendimentos), o princípio da igualdade pode e
deve considerar-se um princípio de justiça social56.
A igualdade, enquanto igualdade de oportunidades, conexiona-se, por um
lado, com uma política de ¨justiça social¨ e com a concretização das imposições
constitucionais tendentes a efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Por
outro, ela é inerente à própria idéia de igual dignidade social (e de igual dignidade da pessoa
humana).
Na verdade, trata-se de imperativo de justiça social, na medida em que é
necessária a igualdade de oportunidades para que aqueles que nascem em condição já
desigual (nascem miseráveis, por exemplo) possam competir/ conviver com um mínimo de
dignidade com aqueles que nascem em condições melhores.
É a aplicação da igualdade em seu sentido positivo que baliza
concretamente a adoção de medidas tendentes a preservar e promover a dignidade da pessoa
humana. Isso porque "o ser humano não pode ser desinserido das condições de vida que
usufrui, e, na nossa época, anseia-se pela sua constante melhoria e. em caso de desníveis e
disfunções.
b) Princípio da solidariedade
No pensamento ocidental, a idéia de solidariedade não é nova. A origem da
idéia de solidariedade teria duas vertentes intelectuais: o estoicismo e o cristianismo
primitivo. Os juristas romanos também utilizavam a palavra solidariedade para designar o
laço que une os devedores de uma soma, de uma dívida, cada um sendo responsável pelo
todo: era a responsabilidade in solidum, a responsabilidade solidária57.
A modernidade, através das declarações de direitos, vai colocar na ordem do
dia as idéias de "caridade" e de "filantropia". O dever de prestar ajuda àqueles que passam
necessidade é preocupação da Revolução Francesa que, depois de algumas hesitações no
início e antes da reação termidoriana, colocavam o direito ao socorro público. Foi preciso
esperar o artigo 21 da declaração francesa de 1793, para ver o reconhecimento da necessidade
56 Ibid., p. 420. 57 FARIAS, José Fernando Castro de. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, p. 188.
34
da ajuda social: "os socorros públicos são uma espécie de dívida sagrada. A sociedade deve a
subsistência aos infelizes, seja lhes dando trabalho, seja assegurando os meios de existência
àqueles que não podem trabalhar". Logo, existe na declaração francesa um direito fundado na
justiça social.
A noção de "dever de assistência" forma-se gradual e progressivamente no
curso do século XIX. Comte já sustentava que as divisões profissionais, as que delimitam as
competências e todas as relações sociais, engajavam fisicamente e moralmente o indivíduo
frente à coletividade humana. Para Comte58, cada cidadão constitui realmente um funcionário
cujas atribuições mais ou menos definidas determinam as obrigações e as pretensões.
A idéia de direito referida a uma individualidade hipostasiada e
descontextualizada era, para Comte, muito abstrata para conceber as transformações sociais. E
através das noções de "dever social", de "dívida social", que Comte pretende dar conta da rede
de relações sociais e da solidariedade concreta que perpassa a sociedade. Para Comte, é no
equilíbrio de deveres, num "exercício escrupuloso de funções sociais", que se constitui um
espaço de liberdade coletiva.
A Constituição, ao estatuir os objetivos da República Federativa do Brasil, no
art. 3, I, estabelece, entre outros fins, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Ainda nesse mesmo art. 3, no inciso III, há uma outra finalidade, que completa e melhor
define a anterior: a erradicação da pobreza e da marginalização social e a redução das
desigualdades sociais e regionais. Estes objetivos foram destacados, no Texto Constitucional,
no Título I, denominado "Dos Princípios Fundamentais" e, a sua essencialidade (ou
fundamentabilidade) faz com que desfrutem de preeminência, seja na realização pelos
Poderes Públicos e demais destinatários do ditado constitucional, seja na tarefa de interpretá-
los e, à sua luz, interpretar todo o ordenamento jurídico nacional59.
A experiência jurídica do direito de solidariedade pretende ser uma experiência
histórica, ativa, aberta, criadora e recriadora. O mundo comum implica a constatação de que
não há liberdade sem solidariedade, e não há solidariedade sem liberdade60.
O sistema pluralista que atualmente a nossa sociedade adota, é um sistema que
se impõe como conseqüência direta de uma nova solidariedade social e do alto grau de
complexidade da sociedade contemporânea, no qual o Estado e o direito oficial não podem
58 COMTE, Augusto. Sistema de Política Positiva. In: PEREIRA, Aloysio Ferraz. Textos de Filosofia Geral e Filosofia do Direito. Tradução de Aloysio Ferraz Pereira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. 59 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da solidariedade. In Os Princípios da Constituição de 1988, Manoel Messias Peixinho et al orgs. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 168. 60 FARIAS, José Fernando de Castro. A Origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 281.
35
assumir o papel de únicos centros criadores de decisão político-jurídica.
Esse pluralismo jurídico implica na reestruturação da esfera pública, e essa
reestruturada pelo espaço social, constitui a referência de um mundo comum, no qual a
formação da identidade não admite o esmagamento do outro. A criação de uma identidade faz-
se no reconhecimento da pluralidade e da heterogeneidade, na convivência com o outro.
Para resumir a lógica do direito de solidariedade, ela representa uma prática
jurídica que busca a conciliação do coletivo e do individual, representando a tentativa de
resolução de um dos problemas fundamentais da sociedade contemporânea: o ajustamento da
liberdade do homem à autoridade não mais somente do Estado, mas de todos os grupos
sociais aos quais pertence o indivíduo.
Assim, está intimamente ligado o princípio da solidariedade com o princípio da
dignidade da pessoa humana, já que esta, a dignidade, acaba por depender da solidariedade
(conciliação do coletivo com o individual).
c) Princípio da liberdade
Liberdade, para Alberto Nogueira61, é a fruição do ser livre, até onde o direito
possa assegurar. O binômio integra, em última análise, o direito da liberdade, assim
entendido, o de exercer, no conjunto das relações sociais, de agir nos limites próprios e dos
outros.
A liberdade não termina nos limites do outro. Ela convive com o outro e se
multiplica, somando-se "ao outro" e ao "coletivo". A liberdade é ter o direito de ser livre "dos
outros".
Para Paulo Bonavides62, não se pode falar validamente sobre a liberdade em
sua dimensão contemporânea sem uma referência aos vínculos que ela tem com a organização
do Poder numa determinada sociedade, e a partir daí é possível, determinar, fora de uma esfera
puramente abstrata, as diversas posições teóricas que em distintas épocas se formaram para
explicar o laço de conexão da liberdade com o Homem, o Estado e o meio social.
Foi Montesquieu63, sábio nesse tocante ao dizer que "a liberdade é o direito de
61 NOGUEIRA, Alberto. Jurisdição das liberdades públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.164. 62 BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 212. 63MONTESQUIEU. "O Espírito das Leis". São Paulo: Abril Cultural, 1979, Coleção Os Pensadores. “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem (...) se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas
36
fazer tudo que as leis permitem". Com estas palavras, ele vinculou indissociavelmente a
liberdade ao Direito. De tal sorte que, onde não houver o primado da ordem jurídica, não
haverá liberdade.
A liberdade historicamente libertou o homem da legislação do absolutismo. A
revolução dessas idéias fez da liberdade o valor supremo da convivência humana.
Vinculada com a democracia, a liberdade é, a grande couraça protetora da
sociedade para o exercício dos direitos que garantem a dignidade da pessoa humana.
A liberdade é um direito que serve de fundamento a toda a ordem social, sendo
um dos pressupostos fundamentais da sociedade justa e do progresso e o valor supremo da
democracia, que representa a garantia de outros direitos fundamentais e a realização, mais
plena possível, de todas as valiosas singularidades de cada ser humano, de cada cultura, de
cada povo.
Luis Recaséns-Siches64 exalta os direitos fundamentais, afirmando que "os
chamados tradicionalmente direitos individuais são, em essência (ainda que não de modo
exclusivo), direitos de liberdade, de estar livre de agressões, restrições e ingerências indevidas, por
parte de outras pessoas, mas de modo especial por parte das autoridades públicas. Os direitos
individuais vão significar um não-fazer dos outros indivíduos, mas principalmente por parte do
Estado".
Existem vários tipos de liberdade, entre as quais listamos: 1) A liberdade
individual, que pode ser subdividida em: a) a autonomia do indivíduo, com a liberdade de ir e
vir, e a proteção da vida privada; b) a liberdade de escolha do indivíduo, com a liberdade de
consciência e a livre disposição de si; 2) As liberdades coletivas, com: a) a liberdade de se
agrupar, dentre essa a liberdade de fazer associações; b) a liberdade de imprensa; c) A
liberdade de religião (a liberdade dos cultos)65.
Existem várias formas de abusos contra a liberdade, dentre as quais: a) a
usurpação, como fizeram e ainda fazem os tiranos e ditadores de ontem e de hoje; b) a
manipulação, como tem sucedido com propagandas falsas (oficiais e privadas), campanhas
falaciosas (sobretudo as de natureza eleitoral e sobre certas políticas públicas) de finalidade
ilusória; c) o abuso, em dupla modalidade, ativo e passivo. Abuso contra a liberdade
proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder” . ”É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode constituir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido o que não se deve desejar” . 64 SICHES, Recasens. Tratado General de Filosofia del Derecho. México: Porrua, 1978.
65Para mais informações acerca do assunto, ver MORANGE. Jean, in DIREITOS HUMANOS E LIBERDADES PÚBLICAS. Tradução: Eveline Bouteiller. Barueri: Manole, 2004.
37
(restrições desnecessárias adotadas por entidades oficiais, e mesmo privadas). Dentre os
inumeráveis exemplos: proibições de toda sorte, notadamente em detrimento da liberdade de
menores e de outras categorias "carentes" (dependentes físicos, loucos e deficientes mentais,
"etnias" protegidas, como os índios, ciganos, drogados, e tantos outros). Na forma passiva,
abuso de liberdade, a ausência de atuação protetiva e promotora da liberdade pelos que
tenham o dever legal e moral de fazê-lo.
Esse princípio da liberdade aqui descrito, tem conexão direta com o princípio
da dignidade do homem, pois o homem que tenha dignidade é hoje, acima de tudo, um
cidadão, e esta cidadania que é tão singular ao homem, ocorre em virtude de sua índole social,
cimentada no direito da igualdade e na liberdade, um parecendo exigir o outro.
Assim, é impossível a descriminação da liberdade humana, por razão social, já
que representaria a negação da própria humanidade. A concepção que deve ser defendida é a
do homem livre por natureza, e assim sendo, um homem digno.
Fazem parte da liberdade humana a liberdade de consciência e de religião, o
direito de intervir na vida pública, subdividindo este no direito de ser parte ativa (votar) ou
passiva (ser votado), o direito a reunir-se e ter sua livre expressão social, e o direito ao livre
exercício de uma profissão (desde que preenchido os requisitos exigidos para a profissão
escolhida).
Trata-se pois de princípio de natureza social, com estreita ligação com o
princípio da dignidade da pessoa humana66.
d) Princípio da capacidade contributiva
Segundo Fernando Aurélio Zilveti67, a definição do princípio da capacidade
contributiva como consiste em:
¨O princípio segundo o qual cada cidadão deve contribuir para as despesas públicas na exata proporção de sua capacidade econômica. Isso significa que as despesas públicas devem ser rateadas proporcionalmente entre os cidadãos,
66 Para ver mais sobre o assunto: RAMÍREZ, Salvador Vergés. Derechos Humanos: Fundamentacíon. Madrid: Tecnos, 1997. p. 163-180. 67 ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p.134.
38
uma vez que estes tenham, potencial ou efetivamente, usufruído a riqueza garantida pelo Estado. Também aceita-se como definição do princípio da capacidade contributiva: a divisão eqüitativa das despesas na medida da capacidade individual de suportar o encargo fiscal. Serve esse princípio de instrumento para realizar a igualdade na tributação, atribuindo tratamento desigual aos desiguais, segundo a capacidade individual para arcar com o ônus tributário, daí ser o princípio da capacidade contributiva considerado um corolário do princípio da igualdade.¨
A capacidade contributiva foi historicamente afirmando-se na doutrina e na
jurisprudência como um princípio jurídico de grande valor no debate maior da igualdade em
geral e, especialmente, da igualdade na tributação.
Os opositores à validade da capacidade contributiva como princípio jurídico o
atacam na sua essência, e dizem ser a capacidade contributiva um conceito vazio, dependente de
outros conceitos para ter alguma aplicação, que pode ser utilizado da maneira que se queira.
Dentre os opositores brasileiros, destaca-se a crítica de Paulo de Barros
Carvalho68, para quem esse princípio não teria vingado na dogmática jurídica. Para o autor,
diante das incertezas de conteúdo que permitem, na mesma medida de uma utilização
imprescindível, certa manipulação, o princípio não prosperara.
Corrente doutrinária favorável à sua validade procura justificar o princípio da
capacidade contributiva com a teoria do mínimo existencial, pois seria tarefa do Estado Social
prover o cidadão com as suas necessidades básicas de sobrevivência, além de eliminar as
desigualdades e os preconceitos. Por essa teoria, deve-se tratar de definir, primeiramente, quais
são as necessidades básicas de cada cidadão, para dar ao legislador os meios objetivos de
respeitar o princípio da capacidade contributiva, quando da elaboração da norma fiscal.
Para uma divisão de cunho didático sobre a capacidade contributiva, pode-se
separar a capacidade contributiva em subjetiva e objetiva. A primeira, também chamada de
relativa, toma o indivíduo como sujeito apto ou não a contribuir com as despesas do Estado. A
segunda, também chamada de absoluta, toma as manifestações objetivas de riqueza das
pessoas, opondo ao legislador o dever de graduar a tributação segundo tais demonstrações de
aptidão.
Segundo Edilson Pereira Nobre Júnior69, ¨o ordenamento pátrio não esteve
à margem da preocupação com a prudência na imposição fiscal. A Constituição Imperial
de 1824, impregnada de forte dose do liberalismo à época predominante, dispunha, 68CARVALHO, Paulo de Barros, Sobre os princípios constitucionais tributários, in Revista de Direito Tributário (RDT) n° 55, p. 153. 69JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre. Princípio constitucional da capacidade contributiva. Porto Alegre: Sérgio António Fabris, 2001. p.25.
39
no seu art. 179, XV, que ¨ninguém será exempto de contribuir para as despesas do Estado
em proporção dos seus haveres¨70
. Foi a primeira vez que constou, anda que de forma
rudimentar, o principio da capacidade contributiva na Constituição do Brasil.
2.3- Noção do mínimo existencial
Entre as necessidades e direitos, há uma relação mediada pela prova de uma
exigência forte e, aqui, as necessidades seriam argumentos em favor de um tipo de pretensão
que, em determinados pressupostos, pode traduzir-se em um direito. As necessidades podem
desempenhar um papel importante na fundamentação dos direitos humanos, porém não é
possível conceitualizar os direitos humanos como necessidades básicas protegíveis. Os meios
de satisfação devem ser articulados através de normas vinculativas.
Portanto, a existência de necessidades básicas não satisfeitas é um forte
argumento para a existência de direitos à sua satisfação. Porém, direitos à satisfação dessas
necessidades devem ser buscados em normas que prescrevem direitos fundamentais, em
especial nos direitos fundamentais sociais.
No Brasil, o conceito de necessidade encontra abrigo expresso em algumas
normas.
Pelo nosso Supremo Tribunal Federal, embora monocrático, é digno de nota o
despacho exarado pelo Ministro Celso de Mello na ADPF 45, no qual, além de tecer
considerações sobre a reserva do possível (que será objeto de estudo em capítulo seguinte),
reconhece a ¨necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da
intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial¨:
Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor
dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo
consubstanciador do "mínimo existencial' viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades
70 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao24.htm>. Acesso em 10 nov. 2006
40
positivas (Direitos constitucionais de segunda geração)71
Ou seja, tem ligação direta o conceito de mínimo existencial e a possibilidade
de se concretizar os direitos à satisfação das necessidades básicas.
Para concretizar esse mínimo existencial, é necessário que exista a
possibilidade de se realizar os direitos sociais, que irão garantir cumprimento as necessidades
básicas, ou ainda que as pessoas possam por conta própria poder arcar com a garantia de suas
necessidades básicas.
2.4 - Os mínimos e básicos sociais
Ao se analisarem os direitos fundamentais sociais, previamente devem-se
discutir as seguintes questões complexas e instigantes: no constitucionalismo brasileiro, o
conteúdo dos supramencionados direitos refere-se ao mínimo ou ao básico social? Quais os
riscos de não se delimitar a opção do constitucionalismo brasileiro no que tange à
configuração jurídica dos direitos fundamentais sociais?
Desse modo, para se enfrentar as questões propostas, principia-se
demonstrando que a idéia política dos mínimos sociais não passou indiferente pela literatura
liberal. O liberalismo econômico clássico defendeu a noção subjetiva de interesses a ser
configurada de acordo com as medições autônomas do mercado e das escolhas individuais.
O próprio Hayek72, cujo nome liga-se academicamente à defesa dos postulados
neoliberais, referia-se à concepção do mínimo social, desde que não ultrapassasse os
contornos da sobrevivência física. Friedman73, defendendo em igual medida as bases do
neoliberalismo, limitava os encargos do governo, na área social, ao suplemento da caridade
privada e das atribuições das famílias, ou seja, a idéia de mínimo social encontra respaldo na
literatura liberal e neoliberal, sendo configurada como opção estranha ao dever jurídico do
Estado, o que endossa, bem por isso, exclusivamente o sentido moral, seletivo e residual da
prestação. Destituídas do conteúdo de direito, as prestações dos mínimos sociais, no interior
do neoliberalismo, passam a ser recebidas como favores precários que impõem uma série de
71BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo. Brasília, 26 a 30 abr. 2004, n°. 345. DJU de 4 maio 2004. Disponível no site: www.stf.gov.br. Último acesso em 10 jul. 2006. 72 HAYEK, F. A . Individualism and Economic Order. Chigago: University of Chigago press, 1980. 73FRIEDMAN, Milton. Tyranny of the Status Quo. San Diego, New York, and London: Harcourt Brace Jovanovich, 1984
41
rituais de obediência e comprometimento para os que os recebem.
Mas nem todos os autores trabalham com essa nomenclatura de ¨mínimos
sociais¨. Alexy74 ressalta a existência de mínimos existenciais, enquanto direitos fundamentais
sociais. Afasta-se, por conseguinte, da concepção de mínimos sociais defendida por liberais clássicos e
neoliberais. No Brasil, por exemplo, Torres75 analisa o mínimo existencial, que, para o autor, não se
confunde com os demais direitos sociais, enquanto direito fundamental e não como dádiva do Estado.
Nesse sentido, exemplifica: "E o direito à moradia é fundamental ou social? No que concerne aos
indigentes e às pessoas sem-teto, a moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial e
tornando obrigatória a prestação do Estado. Já as moradias populares ou a habitação para a classe média
se tomam direitos sociais, dependentes das políticas públicas e das opções orçamentárias"76 (grifo na
obra). Assim, como dito, o autor não compartilha a noção de mínimos sociais, enquanto favores ou
obrigações morais. Aproxima-se, bem por isso, das concepções de Rawls. Já Barcellos77, analisando a
eficácia jurídica dos princípios constitucionais, especialmente o da dignidade humana, entende que o
mínimo existencial, constante da Constituição de 1988, inclui: "[...] os direitos à educação
fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à justiça".
Ressalta a autora: "Para quem vive no absoluto desamparo e ignorância, a distância que o
separa da dignidade, ainda que em seu conteúdo mínimo, é todo o caminho de volta à sua
própria humanidade".78
De qualquer forma, pode-se classificar as necessidades como básicas, ou como
intermediárias, seguindo a linha de Doyal e Gough79. Assim teríamos como necessidades
básicas a saúde e a autonomia.
Logo, necessidade básica seria, em primeiro lugar, alimentação nutritiva e água
potável. Para tentar concretizar e acolher estes, a Constituição Federal de 1988, estabelece,
dentre os objetivos fundamentais da República brasileira, a erradicação da pobreza e a
redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3o, III) e ao atribuir ao sistema único de
saúde competência para (art. 200, IV e VI, respectivamente) "participar da formulação da
política e da execução das ações de saneamento básico" e "fiscalizar e inspecionar alimentos,
compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo 74ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p.482 75TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Volume III, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 168. 76 Ibid., p. 194. 77BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.305. 78Ibid., p.308. 79DOYAL, Len e GOUGH, Ian. Theory of Human Need. Basingstoke: Macmillan, 1991. Para ver mais a respeito do tema, LEIVAS. Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp.123-136. (Capítulo V do livro do LEIVAS).
42
humano". O próprio contorno constitucional do salário mínimo (art. 7o, IV) contempla
também as necessidades concernentes à alimentação.
Outra necessidade básica é a Habitação adequada. Doyal e Gough80 entendem-
na como a moradia capaz de propiciar abrigo diante das adversidades climáticas, dos riscos
epidemiológicos e patogênicos, dotada de saneamento básico, sem lotação excessiva. Tal
direito básico está disposto na Constituição Federal de 1988, no art. 6o, que consagra a moradia
enquanto um dos direitos fundamentais sociais.
Outro direito social mínimo (básico) é o de cuidado com a saúde. A
Constituição de 1988, de acordo com o que se defende aqui, estabelece a saúde preventiva e
curativa enquanto direito fundamental que deve ser assegurado a todos, conforme as
condições fáticas existentes. Os pobres não podem ter seu direito à saúde e, por conseguinte, à
vida, restrito apenas às ações preventivas, tanto assim que a Constituição estabelece, como um
dos objetivos da Seguridade Social, a universalidade da cobertura e do atendimento e, no
interior do seu art. 196, fixa: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação".
Não são coisas distintas os mínimos e os básicos sociais, trata-se da mesma
coisa. O direito que é social mínimo, é um direito social básico; e aquele direito social básico
deve ser o direito social mínimo a ser respeitado, sendo pois duas denominações atualmente
usadas para definir a mesma coisa.
2.5 Os diferentes parâmetros do mínimo existencial
O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade
moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação,
independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto
com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência.
Partindo da premissa de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir
80DOYAL, Len e GOUGH, Ian. Theory of Human Need. Basingstoke: Macmillan, 1991. p.196.
43
de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no
tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo
existencial. Embora haja visões amplas a respeito do alcance elementar do principio, há
razoável consenso de que ele inclui os direitos a renda mínima, saúde básica, educação
fundamental e acesso à justiça.
Logo, a pergunta é: mas o que é esse mínimo existencial e qual seu fundamento? Os
liberais que dedicam-se responder a esta questão, procuram derivar diretamente o mínimo
existencial de uma idéia teórica de dignidade do ser humano, como pré-condição da fruição da sua
liberdade. Daí os direitos que seriam plenamente assegurados, seriam os direitos individuais, os
direitos políticos e os direitos sociais que, prontamente, podem ser exigidos do Estado. Seriam apenas
aqueles direitos sociais, econômicos e culturais básicos que representam pré-condição da fruição da
liberdade. Parece que esta é uma idéia que não encontra, no plano teórico do direito, fundamento
suficiente para se implementar. Logo, na busca de fundamentação deste mínimo de prestações sociais
e econômicas positivas do Estado deve ir além dos patamares sugeridos.
Assim surge a idéia de direitos sociais mínimos prontamente exigíveis do judiciário
ligados necessariamente à constituição de uma cidadania, como um conjunto de seres moralmente
autônomos, aquilo que Dworkin81 chama de "agentes morais independentes". Não basta o Estado
assegurar o direito à liberdade, ou o direito ao voto. É preciso que o Estado assuma compromissos
mínimos no plano da formação da cidadania, no plano da educação, no plano da saúde, no plano da
assistência, para que mais que meros números, nos processos de deliberação coletiva, os cidadãos tenham
condições de deliberar, efetivamente, para atuarem como agentes morais independentes.
Ocorre que esses direitos sociais mínimos tem um custo, e isso de acordo com o
Estado seria impedimento para a realização deles já que não existe recursos disponíveis para a
realização de tudo. Trataremos desse assunto mais adiante, ao abordarmos a questão da reserva do
possível.
Mas o fato é que o problema do mínimo existencial se confunde logicamente
com a questão da pobreza. Há um direito às condições mínimas de existência humana digna
que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais
positivas, e neste prisma há que se distinguir entre a pobreza absoluta, que deve ser
obrigatoriamente combatida pelo Estado, e a pobreza relativa, ligada a causas de produção
81 O autor (Dworkin, 1996, p. 26) sustenta a idéia : “A genuine political community must therefore be a community
of independent moral agents. It must not dictate what citizens think about matters of political or moral or ethical
judgment, but must, on the contrary, provide circumstances that encourage them to arrive at beliefs on these matters
through their own reflective and finally individual conviction”. Freedom’s Law. The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
44
econômica ou de redistribuição de bens, que será minorada de acordo com as possibilidades
sociais e orçamentárias.
Logo, cabe concluir que as escolhas da alocação de recursos devem ser
efetuadas em favor daqueles que são mais pobres.
Conforme a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): "Toda
pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e
o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência
médica e para os serviços sociais necessários" (art. 25), e esse parece ser o objetivo: assegurar
esse patamar de vida, que garantiria uma vida digna. (ou pelo menos, menos indigna do que a
que as vezes grande parcela da população leva).
Para Krell82,
o referido "padrão mínimo social" para sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso à uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia; o conteúdo concreto desse mínimo, no entanto, variará de país para país. A ideia do mínimo social se manifesta também nos diversos projetos de lei municipais a uma "renda mínima necessária à inserção na sociedade"
Em seguida serão apresentados dois parâmetros para o mínimo existencial: o
primeiro parâmetro, o direito a um salário, que não deveria ser considerado salário mínimo,
mas que deveria ser suficiente para a pessoa ter direito a um nível de vida capaz de assegurar
a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário,
a moradia, a assistência médica e para os serviços sociais necessários.
Assim concluímos que quanto mais ¨presente¨ o Estado, quanto mais
prestações positivas existirem por parte do Estado a favor daqueles que são os pobres, menor
seria a exigência desse salário, já que o Estado proveria com parte das necessidades, tais como
saúde, como moradia (através de financiamentos populares), entre outros.
E o segundo parâmetro é um aplicável para aqueles que não são pobres, e
assim podem arcar com os custos de manutenção de planos de saúde, e de outras despesas,
que seriam de obrigação do Estado caso fossem esta parcela da população necessitada, ou
seja, aqueles que não foram contemplados nas ¨escolhas trágicas¨ feitas pelo Estado.
Esse segundo parâmetro é o do imposto de renda, que só é devido a partir de
quando existe a capacidade contributiva, que nada mais é do que a existência de um dever de
82KRELL, Andréas J. Direitos Sociais e Controle Kudicial no brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio fabris Editor, 2002. p. 63.
45
solidariedade (dever de contribuir) existente a partir de um determinado ponto. Esse ponto é o
limite daquilo que a pessoa deveria ter para ser capaz de realizar contribuição sem que
houvesse prejuízos graves para sua própria vida e de sua família, considerando essa uma vida
digna.
Analisaremos agora cada um dos dois parâmetros propostos, a começar pelo
salário mínimo,e após comentaremos a questão da renda mínima:
46
CAPÍTULO TERCEIRO: A ANALISE DOS DIFERENTES PARAMETROS DE
MÍNIMO EXISTENCIAL
3.1- O Salário Mínimo.
3.1.1 O Salário Mínimo: Apontamentos sobre o tratamento na ordem internacional e
nacional
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) acumula uma longa tradição de
estabelecimento de convenções sobre o salário mínimo. A primeira, sobre a fixação de salários
mínimos na indústria, data de 1928. Em 1970, foi aprovada uma convenção mais abrangente, a
de n.° 131, versando sobre a fixação de salários mínimos, especialmente nos países em
desenvolvimento.
De acordo com este instrumento normativo, os países membros da OIT que o
ratificarem ficam obrigados a "estabelecer um sistema de salários mínimos que proteja todos
os grupos de assalariados cujas condições de trabalho forem tais que seria aconselhável
assegurar-lhes a proteção" (art. 1). Os salários assim fixados "terão força de lei e não
poderão ser diminuídos" (art.11), sendo seu valor baseado "nas necessidades dos
trabalhadores e de suas famílias, tendo em vista o nível geral de salários no país ", bem como
"o custo de vida " e "fatores de ordem econômica, inclusive as exigências de desenvolvimento
econômico, a produtividade e o interesse que existir em atingir e manter um alto nível de
emprego"
Depreende-se das recomendações da OIT que, em primeiro lugar, não é
obrigatória a fixação de um único salário mínimo, mas de um sistema de salários mínimos para
grupos de trabalhadores. Em segundo lugar, a OIT associa o salário mínimo ao atendimento
às necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Finalmente, há a recomendação
expressa de que a fixação do salário mínimo deve ser realista, no sentido de levar em conta a
distribuição salarial do mercado, a produtividade do trabalho e o custo de vida.
47
Quadro ISituação dos países da OCDE (Organização para a cooperação e desenvolvimento
econômico) em relação à fixação de salário mínimo nacional.
Forma de determinação
Número de países
Países
Lei 14 Canadá, República Tcheca, França, Hungria, Japão, Coréia do Sul, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Reino Unido
Negociação Coletiva
2 Bélgica, Grécia
Comissão tripartite prevista em lei
2 México, Turquia
Não fixa salário mínimo
11 Austrália, Finlândia, Irlanda, Suécia, Áustria, Itália, Suíça, Dinamarca, Alemanha, Islândia, Noruega.
Fonte:OCDE[1997]
3.1.2 breve histórico da legislação
O salário mínimo foi instituído no Brasil em 14 de janeiro de 1936, por meio da
Lei n.° 185, sendo definido à época como a remuneração mínima capaz de satisfazer as
necessidades normais de todo trabalhador adulto em relação a alimentação, habitação,
vestuário, higiene e transporte. Visando estabelecer o valor monetário da menor remuneração
legal, a Lei n.° 185/36 previa a criação de Comissões Regionais do Salário Mínimo, as quais
incumbiria avaliar as condições e necessidades normais de vida nas diferentes regiões do país,
com base em um censo sobre as condições econômicas locais e os pisos salariais efetivamente
praticados pelo mercado83.
As várias Comissões deveriam então determinar as cestas regionais de bens e
serviços que corresponderiam a um padrão minimamente aceitável para o trabalhador adulto, em
cada um dos cinco grupos de dispêndio acima mencionados.
Em virtude da realização desse levantamento técnico a regulamentação da Lei
n.° 185/36 se deu mais de dois anos depois de sua publicação, por meio do Decreto-lei n.° 399,
de 30 de abril de 1938, com a fixação dos valores regionais do salário mínimo obedecendo a
uma metodologia que associava a despesa necessária ao atendimento dos requisitos
83PAES, Eduardo. Salário Mínimo: combatendo desigualdades. Rio de Janeiro: Mauad, 2002. p. 41.
48
nutricionais mensais de um trabalhador adulto (a chamada ração essencial) aos demais gastos
vinculados, naquela faixa de rendimentos, a transporte, habitação, vestuário e higiene.
Naquela época, e para ilustrar, o Decreto-lei n.° 399/38 estabelecia que a ração
essencial diária de um trabalhador do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, consistia em 200g
de carne, 1 copo de leite, 150g de feijão, l00g de arroz, 50g de farináceos, 200g de batata,
300g de legumes, 4 pães, 20g de café, 3 frutas, l00g de açúcar, 25g de banha de porco e 25g de
manteiga, capazes de fornecer-lhe 3.457 calorias diárias84.
A primeira fixação dos valores dos salários mínimos regionais só veio a
acontecer em 1o de maio de 1940, por intermédio do Decreto-lei n.° 2.162. O maior salário
mínimo regional, correspondente ao do Distrito Federal, foi então estipulado em 240 mil réis e
passou a vigorar em 1o de julho daquele ano.
O número de salários mínimos regionais foi diminuindo ao longo do tempo, e, em
maio de 1983, foi reduzido a apenas dois valores, fixados para dois grupos de estados. Um ano
depois, o valor do salário mínimo foi nacionalmente unificado. O princípio da unificação nacional
foi, finalmente, consagrado pela Constituição de 1988, que também introduziu outras
modificações importantes na política de fixação do menor piso legal de salários85.
O inciso IV do art. 7 da Constituição Federal estabelece que todo trabalhador
tem direito a:
salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.
Além de fixar como norma a unificação do salário mínimo em nível nacional, o
constituinte de 1988 estipulou quatro outros mandamentos, que passaram a diferenciar o
conceito do salário mínimo quanto à legislação que criou o menor piso legal de salários no
Brasil.
Em primeiro lugar, o valor do salário mínimo deixaria de atender apenas às
necessidades de um trabalhador adulto e, conforme o preceito constitucional, deveria passar a
ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família. Em segundo
lugar, o escopo das necessidades vitais básicas foi ampliado: dos cinco itens previstos na Lei
84Ibid., p. 42. 85Ibid., p. 42.
49
n° 185, de 1936, o salário mínimo deveria passar a ser fixado em montante suficiente para
permitir o acesso do trabalhador e de sua família a nove grupos de bens e serviços (passou da
ração básica, transporte, habitação, vestuário e higiene, para moradia, alimentação, educação,
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social; sendo portanto incorporado
neste ponto a moradia, a educação, o lazer, e a previdência social). Em terceiro lugar, a
Constituição Federal estabeleceu a necessidade de reajustá-lo periodicamente, de forma a
preservar-lhe o poder aquisitivo. Em outras palavras, determinou-se que seu valor deveria ser
corrigido por algum índice que refletisse as variações do custo de vida, provavelmente das
famílias de baixa renda.
Finalmente, o constituinte buscou proibir que o salário mínimo viesse a ser
utilizado como um parâmetro para a fixação dos demais salários, ou, ainda, como indexador para
outros tipos de contratos na economia.
3.1.3- Salário mínimo como parâmetro para o mínimo existencial
O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade
moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua simples existência no mundo. Essa dignidade
relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de
subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma
dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais.
Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua
indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se
sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado
pelo mínimo existencial. Embora haja visões mais ambiciosas do alcance elementar do
principio86, há razoável consenso de que ele inclui os direitos a renda mínima, saúde básica,
educação fundamental e acesso à justiça.87
Lembramos que no caso do estado mínimo, ou seja, do estado que não é
provedor de assistência médica pública adequada, que não é provedor de serviços sociais
86Como, por exemplo, a que inclui no mínimo existencial o atendimento às necessidades que deveriam ser supridas pelo salário mínimo, nos termos do art. 7, IV, da Constituição, a saber: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social." 87BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002., p. 247 e ss.
50
mínimos, o salário que a camada mais pobre da população recebe terá que ser direcionado,
ainda que em parte, para suprir com essa parte que seria obrigação do Estado.
Podemos dizer que quanto menor o tamanho do Estado (enquanto Estado-
Provedor), maior será a importância do salário mínimo para assegurar aquelas condições
mínimas de uma vida digna para aqueles que o percebem.
Assim, na conjuntura atual, quem recebe um salário mínimo não assegura com
este o patamar para o mínimo existencial, pois que este não é suficiente para arcar com as
necessidades básicas vitais. O fato de receber um salário mínimo, que deveria ser suficiente
para atender às necessidades vitais básicas com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social, não implica que estas necessidades estarão
automaticamente satisfeitas. O existir de dispositivo constitucional a respeito do tema por si
só não assegura o cumprimento do mesmo, caso não sejam adotadas medidas que visem
assegurar esse dispositivo, e é exatamente isso que se prega, ou seja, a adoção de tais
medidas. É necessário que o mínimo existencial seja levado a sério, assim como de resto,
devem todos os direitos serem levados a sério.
3.1.4- As políticas universalistas de renda mínima.
Antes de adentrarmos no tema, cumpre diferenciar, na ótica do senador
Eduardo Suplicy88, a renda básica de cidadania, que é o consiste em prover a todos o direito
inalienável de participar da riqueza da Nação através de uma renda básica que, na medida do
possível, seja suficiente para atender às suas necessidades vitais. Ou seja, todos, sem exceção
iriam ter essa renda básica de cidadania89, mas aqueles que tem melhores condições iriam
88Eduardo Suplicy em entrevista à ¨Agência Senado de Notícias¨. Disponível em <http://www.senado.gov.br/ comunica/agencia/entrevistas/not06_.htm>. Acesso em 29 nov. 2006. 89Lei No 10.835, de janeiro de 2004: ¨Art. 1o É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.
§ 1o A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população.
§ 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias.
§ 3o O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e mensais.
§ 4o O benefício monetário previsto no caput deste artigo será considerado como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas.
51
colaborar proporcionalmente com mais do que os que não tem.
Tal renda básica de cidadania seria um aprimoramento dos programas que
visam a garantir a renda mínima, tais como os que foram introduzidos no Brasil, sobretudo
nos anos 90, como o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação, o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (Peti), o seguro-desemprego, até chegar ao Bolsa- Família.
E é a renda básica de cidadania que o Senador Eduardo Suplicy prega no seu
livro ¨Renda Básica de Cidadania - a Resposta dada pelo Vento"
Essa renda básica de cidadania, pelo Suplicy apregoada não é mais do que em
verdade assegurar o pagamento do salário mínimo a todos, considerando-se o salário mínimo
previsto na Constituição, e não o que na realidade é pago.
Esse conceito de renda básica da cidadania está então interligado com o
conceito do salário mínimo, já que ambos envolvem o valor suficiente para atender as
necessidades vitais, diferenciando-se daquele por ser um ¨algo a mais¨: mesmo recebedo um
salário mínimo, a pessoa receberia ainda a renda básica de cidadania.
Ou seja, receberia nesse caso duas vezes aquele valor que seria o suficiente
para arcar com as necessidades básicas vitais.
Melhor faria se fosse dada efetividade ao salário mínimo, tornando esse capaz
efetivamente de prover tudo que consta no dispositivo Constitucional, e não ter sido criada
mais uma lei visando a garantir renda no patamar daquilo que seria suficiente para atender as
necessidades básicas vitais. A impressão que se passa é a de que houve um reconhecimento de
que efetivamente o salário mínimo não atende as necessidades básicas vitais, e de que não
existem empregos suficientes para que todas as famílias possam receber ao menos um salário
considerado mínimo. O grande risco da lei já em vigor é o de efetuar pagamentos sem que
seja necessária nenhuma contrapartida. Assim, se uma pessoa não trabalha efetivamente, ela
receberá a ¨renda básica de cidadania¨ e continuará recebendo tal renda independentemente de
estar se qualificando para competir no mercado de trabalho, ou de simplesmente ter desistido
Art. 2o Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita observância ao disposto nos
arts. 16 e 17 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal.
Art. 3o O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União para o exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art.
2o desta Lei.
Art. 4o A partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei relativos aos planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias deverão especificar os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à execução do Programa.
Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação¨.
52
de competir no mercado de trabalho90.
Já com relação as políticas universalistas de renda mínima estas certamente
interferem no mínimo existencial, já que os programas sociais implantados interferem nas
prestações positivas que são devidas pelo Estado, e estas compõe juntamente com o salário
mínimo e com a garantia de que atingido um determinado patamar, não será a pessoa
subtraida de seus bens de modo a ficar sem aquilo que seja suficiente para garantir sua própria
dignidade, a dimensão do mínimo existencial.
3.2 – O imposto de renda e o mínimo existencial familiar
Para Ricardo Lobo Torres, o imposto de renda não incide sobre o mínimo
existencial familiar, podendo a imunidade se expressar sob a forma de isenção da faixa
mínima de renda, abatimento para os filhos e de isenção para os velhos. Essas imunidades
funcionam freqüentemente como mecanismo de compensação das prestações positivas estatais
representadas pelas subvenções ou pela entrega de bens91.
Fixa como parâmetro do mínimo existencial familiar o mínimo imprescindível
à sobrevivência do declarante e de sua família, pois trata-se de imunidade do mínimo
existencial, que embora apareça em lei ordinária, remonta a fontes constitucionais.
Assim, esse imposto, o de renda, não incide sobre as quantias necessárias a
90Para melhor enteder o tema, abaixo segue trecho da entrevista do Senador Eduardo Suplicy para a ¨Agência Senado de Notícias¨: Agência Senado: Pelo seu raciocínio, então, não haveria risco de a garantia dessa renda básica estimular a ociosidade... Eduardo Suplicy: Precisamos pensar que todas as pessoas realizam, normalmente, atividades produtivas, econômicas, úteis, importantes para a humanidade. Desde as mães que amamentam seus bebês, os pais e mães que cuidam da alimentação e do desenvolvimento de suas crianças ou pessoas que precisam cuidar de seus pais e avós. Quantos de nós também não dedicamos atividade e energia, muitas vezes sem remuneração, a associações de bairros, igrejas, partidos políticos, diretórios acadêmicos? Tudo isso demanda tempo e dedicação. Na verdade, há muitas atividades realizadas pelas pessoas que não são reconhecidas pelo mercado. Deveríamos pensar ainda que há um princípio constitucional sobre o respeito à propriedade privada. Isto significa que uma pessoa que detém uma fábrica, uma fazenda, um restaurante, um imóvel, um título financeiro, tem o direito de receber juros, lucros e aluguéis. Mas eu lhe pergunto se, por acaso, está dito na Constituição que uma pessoa, para receber os rendimentos do capital, precisa estar trabalhando e demonstrar que seus filhos estão na escola. Ora, se nós asseguramos aos mais ricos o direito de receber rendimentos sem exigências como essas, porque não estender a todos, ricos e pobres, essa mesma garantia e o direito de sermos sócios minimamente de uma Nação como a brasileira? Afinal, houve milhares de pessoas que trabalharam muito tempo sem qualquer retribuição justa pelo seu trabalho, como os escravos, e tantos que aqui progrediram pelo progresso tecnológico e pela riqueza natural, coisas cujos direitos deveriam ser estendidos a todos. 91TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Volume III, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 190.
53
subsistência dos dependentes, que são dedutíveis da base de cálculo.
Da mesma forma que o imposto de renda não incide sobre o mínimo
imprescindível à sobrevivência por se tratar de imunidade sobre o mínimo existencial, não
deveria haver incidência de impostos sobre a moradia para as moradias de pessoas de baixa
renda, dos favelados, dos idosos proprietários de um único imóvel que tenham proventos
significativos e de outras pessoas em alguma situação semelhante.
Não se trata de norma de "competência", portanto, que poderia ser modificada
diretamente pelo constituinte derivado; tem-se in casu, limitação constitucional ao poder
de tributar, impedindo, por leitura inversa, qualquer espécie de tratamento menos favorável ou
mais gravoso. E mesmo sem lei complementar que o diga, isso não é um programa, mas sim um
dever que se impõe ao Estado, de garantia à manutenção do "mínimo existencial".
3.2.1 O Imposto de renda e o princípio da capacidade contributiva
Relembrando a definição de capacidade contributiva, segundo Fernando Aurélio Zilveti92, a definição do princípio da capacidade contributiva como consiste em:
¨O princípio segundo o qual cada cidadão deve contribuir para as despesas públicas na exata proporção de sua capacidade econômica. Isso significa que as despesas públicas devem ser rateadas proporcionalmente entre os cidadãos, uma vez que estes tenham, potencial ou efetivamente, usufruído a riqueza garantida pelo Estado. Também aceita-se como definição do princípio da capacidade contributiva: a divisão eqüitativa das despesas na medida da capacidade individual de suportar o encargo fiscal. Serve esse princípio de instrumento para realizar a igualdade na tributação, atribuindo tratamento desigual aos desiguais, segundo a capacidade individual para arcar com o ônus tributário, daí ser o princípio da capacidade contributiva considerado um corolário do princípio da igualdade.¨
Exemplo de imposto que exige obediência ao princípio da capacidade
contributiva é o IR (imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza) da pessoa física.
E, para isso, deverá ser progressivo. É o que estabelece o art. 153, § 2, I, da CF: "o imposto
previsto no inciso III (imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza) será informado
pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei".
Este inciso encerra uma norma cogente, isto é, de observância obrigatória. A lei
92ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São Paulo : Quartier Latin, 2004. p.134.
54
poderá regular o modo pelo qual se dará a progressividade no IR. Mas não poderá anular esta
exigência constitucional.
Quem, com efeito, tem rendimentos mais expressivos deve ser pro-
porcionalmente mais tributado, por via de imposto sobre a renda, do que quem tem
rendimentos menores. Não nos parece excessivamente arrojado sustentar que, em função
deste art. 145, § 1a, da Lei das Leis, quem tem parcos rendimentos, apenas suficientes para
sobreviver (digamos, ganha o salário mínimo), está imune a tal tributação. Por quê?
Simplesmente porque o assalariado mínimo, por injunção constitucional, ganha o mínimo
indispensável para manter-se e a seus familiares. Sendo assim, não tem capacidade
contributiva e nada lhe pode ser retirado, nem mesmo a título de imposto sobre a renda.
Roberto Quiroga Mosquera93, foi ao ponto:
Nas dobras dos princípios fundamentais e basilares acima comentados é que se revela a necessidade de se dar ao cidadão brasileiro condições mínimas de existência, isto é, supri-lo de bens materiais que atendam às suas necessidades básicas e que lhe permitam assegurar a vida, a saúde, o bem-estar, a dignidade e a liberdade. Dar condições mínimas de existência consiste, outrossim, em não tributar os valores recebidos e utilizados na consecução desse objetivo. O mínimo vital, portanto, é insuscetível de tributação.
À tributação por via de imposto de renda não deve tocar ao mínimo vital do
contribuinte, isto é, aquela porção de riqueza que lhe garante, e a seus dependentes, uma
existência digna de um cidadão.
Aires Barreto,94 tecendo críticas a nossa legislação de Imposto de Renda, é
firme em suster que somente se poderá falar em capacidade contributiva a partir da garantia
de integridade do montante mínimo indispensável à satisfação das necessidades primárias do
cidadão (alimentação, saúde, transporte, lazer e higiene).
A esse respeito, José Maurício Conti é incisivo:
E inconstitucional a tributação exercida sobre determinada manifestação de capacidade econômica de um contribuinte que o atinja naqueles recursos que destinaria às suas necessidades básicas, imprescindíveis à garantia de sua sobrevivência. Os recursos destinados a atender estas finalidades, se somente para isso são suficientes, não revelam capacidade contributiva. Revelam
93MOSQUERA, Roberto Quiroga apud CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 89. 94BARRETO, Aires. Capacidade contributiva - progressividade. Revista de Direito Tributário. São Paulo, a. 15, n. 58, p. 176-178, out./dez. 1991.
55
apenas uma capacidade econômica mínima, não permitindo que dela sejam extraídos quaisquer valores destinados a compor a arrecadação do Estado, pois estar-se-ia atingindo alguém sem capacidade contributiva alguma - violando, pois, o princípio constitucional95
Ainda dentre os escritores nacionais, manifestam-se favoráveis a que a
arrecadação de tributos não possa desrespeitar um padrão mínimo de existência Alexsander
Roberto Alves Valadão96 e José Marcos Domingues de Oliveira, despertando atenção para a
observação deste, dirigida a asseverar que a garantia desse padrão mínimo não atinge apenas
as pessoas físicas, mas, de modo igual, as pessoas jurídicas, haja vista estas terem, para o seu
bom funcionamento, de fazer frente a dispêndios mínimos operacionais e de produtividade.
Na Alemanha, onde a capacidade contributiva não é acolhida às expressas,
informa-nos Ernesto Benda97, passou-se a entender, após a superação da anterior orientação do
Tribunal Constitucional, que o art. 1.1, da Lei Fundamental de 1949, impõe, além da
perspectiva do indivíduo não ser arbitrariamente tratado, um respeito cada vez maior pela sua
sobrevivência. Assim, de acordo com tal preceito, afigura-se inadmissível que o administrado seja
despojado de seus recursos indispensáveis à sua existência digna, de sorte que a intervenção
estatal na propriedade, pela via fiscal ou não, não deverá alcançar patamares capazes de privá-lo
dos meios mais elementares de subsistência. O seu pensar pode ser sumariado na seguinte
passagem:
O art. 1.1 impõe, em todo caso, que não se despoje o indivíduo dos recursos indispensáveis para uma existência digna. A intervenção estatal na propriedade privada, digamos, por exemplo, por via fiscal, nunca deveria ir tão distante como para privar aquele de seus mais elementares fundamentos de existência.
Tem-se então a fixação de um limite mínimo, abaixo do qual, a tributação não
poderia operar seus efeitos e esse limite mínimo é precisamente o limite do mínimo para uma
existência com dignidade. (mínimo existencial)
95CONTI, José Maurício. Princípios tributários da capacidade contributiva e da progressividade. São Paulo: Dialética, 1997. p. 53 96ALVES VALADÃO, Alexsander Roberto. Capacidade contributiva e taxa. Curitiba: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, a. 30, n. 30, p. 314. 1998. 97Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernesto et all. Manual de derecho constitucional, Madri: Marcial Pons, 1996. p. 126.
56
3.3 Conexão do mínimo existencial com o imposto de renda
Diante da importância do mínimo existencial como meio essencial de apuração
da capacidade contributiva do cidadão, é necessário elaborar os elementos capazes de definir
o que vem a ser o mínimo existencial de um cidadão. Como entendia Rui Barbosa98, poderia
estabelecer a divisória, aquém da qual principiasse a renda reservada aos recursos de primeira
necessidade que seria isenta de impostos,e a renda livre, que teria a carga dos impostos.
É crucial definir o que é essencial para um indivíduo, como membro de dada
sociedade, num dado momento histórico, para a sua sobrevivência e, se for o caso, de sua
família, de forma que, a partir daí, poderia ser identificada a sua capacidade contributiva. Poder-
se-ia, numa primeira análise, tentar quantificar esse mínimo existencial em um percentual da
renda do contribuinte, um valor convencionalmente estabelecido como essencial para o
sustento do cidadão e de sua família.
Determinar o mínimo existencial além do qual pode o contribuinte pagar
impostos é uma tarefa política. Quanto à renda mínima, esta pode ser fixada politicamente, sem
critério objetivo. Não obstante, deve ser observada, preferencialmente, a reserva legal na
determinação do mínimo existencial, do ponto de vista econômico-financeiro e tributário, pois,
contrário senso, o contribuinte estaria sujeito à discricionariedade da administração, facultando
o arbítrio, como observa Gilmar Mendes99, que entretanto, comete um exagero ao afirmar que a
ruptura com a reserva legal permitiria que a administração agisse contra os direitos
individuais, desvinculada da Constituição. Ora, como ele mesmo defende, os limites da
administração estão na própria Carta e ao Poder Jurisdicional compete controlar os abusos.
Por meio de quadros fornecidos por um censo demográfico e social, compete
ao legislador conhecer os custos necessários para a sobrevivência de um cidadão e de sua
família. Tais custos representam as despesas próprias da alimentação, vestuário, higiene,
saúde, educação e lazer. Esses custos básicos para a sobrevivência digna do cidadão deveriam,
por força das diversidades econômicas e sociais, ser apurados regionalmente. Assim, ao final
do levantamento realizado pela pesquisa, teríamos vários mínimos existenciais para as
diferentes regiões analisadas. O legislador fiscal analisaria, então, esse censo social, tomando,
98BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Relatório do Ministro da fazenda, v. XVIII, 1891, Tomo III, Edição do Ministério da Educação e Cultura, 1949. p. 63. 99MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 183.
57
principalmente, os indicadores de renda, e o orçamento familiar, nos mais diversos segmentos
econômicos da sociedade. Dentre aqueles, segundo os resultados do censo, com renda
suficiente para fazer frente ao mencionado orçamento, o legislador fiscal graduaria, então, a
tributação segundo a capacidade contributiva.
O mínimo vital do cidadão e de sua família é garantido pela Constituição
brasileira, principalmente, nos artigos que tratam dos direitos fundamentais, do trabalho e dos
direitos sociais. Tal aplicação parte de um processo administrativo que propicie boas escolas,
bons hospitais, eficiente administração financeira, junto com uma política social que erradique
a miséria. O direito ao mínimo existencial seria oponível à administração, obrigada a efetivar
esse direito sem custo para o cidadão e, caso haja a omissão da administração, pode o cidadão
exigir a prestação por meio do controle jurisdicional.
Como já foi dito, o conceito de mínimo existencial está ligado a outro conceito,
o da renda disponível. A renda disponível é o resultado da equação, segundo a qual seja
possível extrair da renda ganha o mínimo existencial necessário para o homem e sua família.
A concretização do mínimo existencial, calculado de modo que atenda a
capacidade contributiva do cidadão, evita tributar quem não reúne condições mínimas de
subsistência. De outro modo, a tributação tende a agravar o problema da pobreza, impedindo
que o pobre possa adquirir bens e fazer parte do mercado consumidor. Essa visão
econômica de Buehler100 procede, principalmente, se analisada nos países, como o Brasil,
onde sequer os direitos sociais básicos são atendidos.
Vejamos: um casal com dois filhos economicamente inativos, que tenha uma
renda mensal única, de R$ 2.100,00 (US$ 1.000, aproximadamente), deve custear seu mínimo
existencial, arcar com gastos relativos à saúde e educação (uma vez que o Estado não cumpre
esse papel, integralmente), e, ainda, paga imposto de renda, pois tem rendimento acima da
tabela de isenção, caso a fonte seja única para um dos consortes. O resultado dessa conta,
afinal, é negativo, pois o que poderia restar, se respeitado o mínimo existencial, social e fiscal,
é plenamente consumido. Desse modo, nos países pobres, não só a classe baixa, mas também
a assim chamada classe média, não é capaz de adquirir condições de participar da mobilidade
social segundo suas próprias aptidões, o que atenta contra os princípios da democracia.
Mas além do conceito de renda disponível, no qual está englobado o valor
percebido mensalmente pela família a título de salário, incluindo ai o salário mínimo, e o
100BUEHLER, Alfred G. Public Finance. Nova York: 1948. p. 330.
58
valor incidente sobre essa renda a título de imposto, deve-se também para uma quantificação
mais precisa do mínimo existencial verificar os serviços disponibilizados pelo Estado
(prestações positivas do Estado), na medida que em sendo esses serviços prestados de forma
satisfatória, diminuirá a necessidade de renda disponível para arcar com aquilo que seria o
mínimo para uma existência digna.
Logo, a renda superior ao patamar mínimo para uma existência digna deve ser
tributada, e esse patamar é variável de acordo com aquilo que o Estado oferece efetivamente
como prestação positiva.
É necessário que seja praticada justiça na tributação, por meio do respeito aos
direitos individuais, dentre eles a capacidade contributiva, buscando a determinação precisa
da renda líquida, além do mínimo existencial pessoal e familiar. Isso tudo representa a essência
do direito do contribuinte à justiça fiscal no Estado de Direito.
Tal justiça não é feita atualmente, e cabe aqui uma breve crítica à legislação
atual do imposto de renda brasileiro, que limita a dedução do que constitui "despesas com
educação". A referida restrição do Fisco subverte o conceito de despesa e de renda líquida.
Deturpa o conceito de mínimo existencial sem qualquer justificativa, e deixa transparecer sua
óbvia intenção de garantir uma maior tributação das pessoas físicas.
Seria aceitável que o legislador brasileiro definisse aquilo que pode ser
entendido como educação, para evitar, assim, uma interpretação amplificada do conceito por
parte do contribuinte, no afã de evitar o imposto de renda. A imunidade do mínimo
existencial, com relação ao imposto de renda, poderia definir melhor mínimo existencial, se
estabelecesse um valor de dedução por filho ou dependente, acrescido no caso de deficiência
física ou mental, além de estabelecer um valor, não uma idade, para isenção do idoso.
Aplicam-se, na Itália, duas técnicas para atender ao princípio ora estudado: a dedução
(despesas médicas) e o desconto (despesas pessoais)101.
101SERRANO, Fernando Antón, Derecho Comparado: Panorâmica General in El Mínimo Personal y Familiar en el lmpuesto sobre La Renda de las Personas Físicas, obra coletiva coordenada por MARTÍN, Javier Femández. Madri, 2000, p. 55-70. ¨Na Alemanha, a legislação do imposto de renda permite uma dedução básica de 6.763 euros, para contribuintes individuais, duplicada para as declarações conjuntas, admitindo uma dedução adicional, ainda, por filho, de 135 euros para os dois primeiros, de 153 para o terceiro e de 178 para o quarto. Na Áustria, a dedução básica é de 610 euros, progressivamente decrescente, na proporção do aumento da renda.; aumenta-se a dedução, ainda, para cada filho menor, em 130 euros; para as famílias monoparentais, a dedução aplicável é de 363 euros. Na Bélgica, a dedução por casal é de 4.065 euros e, para os solteiros, de 5.156 euros, limitadas a uma renda determinada, as deduções por filhos vão desde 1.090 euros até 10.213 euros. Nos Estados Unidos, a redução básica do contribuinte depende de seu status, de modo que cônjuges em declaração conjunta têm uma dedução básica de 6.982 euros; separadamente, deduzem 3.491 euros; animo de família mantendo ascendentes ou descendentes, deduz 6.157 euros; solteiros, 4.169 euros; filhos incluídos nas declarações de seus
59
Entretanto, além disso, são necessários mecanismos de quantificação e avaliação
de tais necessidades, que permitam atender aos contribuintes, genericamente e, também, quando
for o caso, especificamente. Como exemplo desses mecanismos, podemos mencionar o sistema
dual, que permite a redução na base de cálculo de valor determinado e um valor relativo à
subvenção dos filhos; além da dedução dos gastos domésticos, das despesas extraordinárias,
dos gastos com formação profissional, do gastos com o tratamento de enfermidades, dos gastos
com o sustento de doentes.
Cabe relembrar: o legislador fiscal deve distribuir a carga tributária isentando o
mínimo existencial do cidadão e de sua família.
O direito constitucional do contribuinte deve conter o poder de tributar do
Estado, ativamente, por meio de ação, pelo controle difuso de constitucionalidade (mandado
de segurança, por exemplo), e pelo controle concentrado (a ação direta de
inconstitucionalidade; ADIN, por exemplo). O papel do controle jurisdicional é de reprimir o
abuso do legislador tributário que desrespeite o mínimo existencial e, portanto, a capacidade
contributiva do cidadão.
Embora a Constituição brasileira atual não traga mais o mínimo existencial de
maneira expressa, como na Carta de 1946 (mesmo que restrita ao imposto de consumo), o faz
indiretamente, ao determinar a graduação dos impostos de acordo com a capacidade
econômica do contribuinte (artigo 145, § 1o). Nesse sentido, temos observado nas leis do ICMS
isenções para os produtos da chamada cesta básica; no IPTU, para as casas até determinado
tamanho; no ITR, para as pequenas-propriedades rurais, desde que a família trabalhe nela.
Obriguem-se o legislador, o intérprete e o destinatário, a respeitar o mínimo existencial no
lançamento tributário.
pais, 678 euros¨
60
CAPÍTULO QUARTO: A CONCRETIZAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL
A máxima da economia de que há necessidades e desejos ilimitados e recursos
limitados continua válida. Assim, uma ponderação de ordem fática que é preciso enfrentar diz
respeito à disponibilidade, ou não, de recursos para atender às prestações positivas que se
concluiu podem ser exigidas judicialmente. O debate em torno dessa dificuldade foi batizado
com a expressão "reserva do possível" e tem sido popularizado, em boa parte, pelo empenho
da Administração Pública em divulgá-lo e argüi-lo nas mais diversas demandas, a pretexto do
sempre iminente apocalipse econômico. Nada obstante a utilização exaustiva do argumento
pelo Poder Público, que acabou por gerar certa reação de descrédito, é preciso não ignorar o
assunto, sob pena de divorciar o discurso jurídico da prática de tal forma que o jurista pode até
prosseguir confiante, quilômetros de distância, até olhar para trás e para os lados e perceber
que está sozinho. O assunto será abordado de forma pormenorizada a seguir.
4.1- A reserva do possível: as prioridades orçamentárias
A apuração da eficácia jurídica das normas é um trabalho quase
exclusivamente de hermenêutica jurídica. Torna-se agora imperioso examinar alguns
elementos não propriamente jurídicos que, ainda assim, poderão exercer considerável
influência sobre a construção da eficácia jurídica das normas em questão. É nesse contexto que
se insere o estudo da reserva do possível, cujos pontos principais vão aqui apenas
esboçados102.
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da
limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por
eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível significa que,
para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado; e em
última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta; é importante lembrar que há um
102 Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema, veja-se TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação — imunidades e isonomia. 1995, p. 129 e ss; GRAU, Eros Roberto. Despesa pública — conflito entre princípios e eficácia das regras jurídicas — o princípio da sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário e o princípio da legalidade da despesa pública. RTDP N 2, p. 140e-ss; Gustavo Amaral, Direito, escassez e escolha — em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas; e Flávio Galdino, Direitos não nascem em árvores, mimeografado, 2000.
61
limite de possibilidades materiais para esses direitos. Em suma, pouco adiantará, do ponto de
vista prático, a previsão normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não
houver recursos para custear a despesa gerada por determinado direito subjetivo103.
O tema da reserva do possível, embora não tenha recebido atenção específica
da doutrina brasileira até a década de 90, não era totalmente desconhecido internamente. Suas
aparições mais freqüentes relacionavam-se com os limites dos direitos sociais,
tradicionalmente considerados como direitos positivos, isto é, direitos que demandavam ações
do Estado, que, por sua vez, custavam dinheiro104. Na ausência de um estudo mais
aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque
assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos
sociais. A iminência do terror econômico, anunciada tantas vezes pelo Executivo, cuidava de
reservar ao Judiciário o papel de vilão nacional, caso determinadas decisões fossem tomadas.
A nova amplitude que a discussão a respeito do custo dos direitos e da reserva
do possível vem assumindo trouxe à luz algumas visões interessantes e pouco exploradas do
tema. A primeira delas corresponde à percepção de que não é possível estudar o direito de
forma isolada. Isso é ainda mais verdadeiro quando se cuida de direitos a serem custeados pelo
Estado, uma vez que, na interessante expressão de Flávio Galdino, "direitos não nascem em
árvores, nem caem do céu"105. Como já se referiu, a melhor técnica legislativa e a melhor
hermenêutica não poderão fazer surgir os recursos que por acaso inexistam.
Em segundo lugar, percebeu-se, especialmente a partir da publicação de The
cost of rights, que os direitos sociais não são os únicos a custar dinheiro, e esse é um ponto
fundamental. Também os direitos individuais e os políticos demandam gastos por parte do
Poder Público. São necessários recursos públicos, e.g., para a manutenção da polícia e dos
bombeiros, cuja função principal é proteger não apenas a vida, mas também a propriedade,
direito tipicamente individual. Boa parte de toda a atuação do Poder Judiciário; que implica
em gastos, lembre-se; destina-se à proteção dos direitos individuais, como a propriedade,
diversas formas de expressão da liberdade, a honra, a imagem etc. O cadastramento eleitoral e
a realização de eleições, para não alongar os exemplos, também dependem de recursos
103 CANOTILHO, J. J. Gomes. Metodologia Fuzzy y Camaleones Normativos en la Problemática Actual de los
Derechos Economicos, Sociales y Culturales. Derechos y Libertades 6, p. 42, 1998 apud Ricardo Lobo Torres. O Mínimo Existencial, os Direitos Sociais e a Reserva do Possível. In: Antônio José Avelãs Nunes; e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (org.). Diálogos Constitucionais: Brasil-Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 453 104 Luís Roberto Barroso já apontava a dificuldade na primeira edição do seu O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 4 ed, 2000, p. 109, nos fins da década de 80. 105 GALDINO, Flávio. Direitos não nascem em árvores. mimeografado, 2000.
62
públicos.
Assim, a diferença entre os direitos sociais e os individuais, no que toca ao
custo, é uma questão de grau, e não de natureza, ou seja, é mesmo possível que os direitos
sociais demandem mais recursos que os individuais, mas isso não significa que estes
apresentem custo zero. Desse modo, o argumento que afastava o atendimento dos direitos
sociais pelo simples fato de que eles demandam ações estatais e custam dinheiro não se sustenta.
Também a proteção dos direitos individuais tem seus custos, apenas se está muito acostumado
a eles.
Se tem custos para a realização, deve ter recursos para a realização dos direitos
prestacionais positivos (os conhecidos direitos sociais), mas esses recursos não existem de forma
ilimitada para garantir a ampla efetivação desses direitos. Assim introduz-se ao problema da escassez
de recursos.
Em todas as situações em que há escassez de recursos e demandas ilimitadas
coloca-se a questão da prioridade; do mesmo modo, as limitações orçamentárias e as limitações
dos recursos existentes na própria sociedade demandam escolhas, o que na doutrina americana
se chamaria de "escolhas trágicas", conforme a obra clássica dos professores Guido Calabrese e
Philip Bobbit106. Estas escolhas trágicas em países emergentes, em países em desenvolvimento
se tornam ainda mais trágicas, num quadro em que pode-se dizer que toda decisão relativa à
alocação de recursos públicos leva, necessariamente, a uma decisão implícita de "desalocação". Em
outras palavras, decidir num país emergente quem vai receber educação implica, a decidir quem não
vai ser educado.
Assim está estabelecida a relação entre a escassez relativa de recursos e as
escolhas trágicas que haverão de ser feitas. Decidir investir os recursos existentes em
determinada área significa, ao mesmo tempo, deixar de atender outras necessidades, ainda que
a opção de abandonar um campo específico não tenha sido consciente.
A questão é extremamente complexa, pois exige o estabelecimento de
prioridades e de critérios de escolha caso a caso, que poderão variar no tempo e no espaço, de
acordo com as necessidades sociais mais prementes: por que aplicar os recursos na despoluição
da Baía de Camburi e não na pesquisa científica sobre doenças tropicais, ou na expansão da
rede de ensino médio? Além de decidir em que gastar, é preciso também saber quanto deverá
106
Calabrese, Guido and Bobbitt, Philip. Tragic Choices. New York: W. W. Norton, 1978
63
ser investido em cada uma das áreas escolhidas, já que as alternativas envolvem não apenas o
binômio investir/não investir, mas também investir menos/investir mais, de modo a tomar
viável o atendimento de um maior número de necessidades. Por que razão, por exemplo, se
deve proteger restritamente, em toda sua extensão, o direito de propriedade, e abandonar
completamente determinados direitos sociais por falta de recursos?
Por outro lado, a questão pode ser examinada a partir de um outro ângulo, que
proporciona uma percepção complementar do tema. Embora a idéia da escassez de recursos
possa parecer verdadeiramente assustadora, é preciso recolocá-la em seus devidos termos.
Isso porque, em primeiro lugar, afora países em que os níveis de pobreza da população sejam
extremos, faltando mesmo capacidade contributiva, os Estados têm, em geral, uma capacidade
de crédito bastante elástica, tendo em vista a possibilidade de aumento de receita. Em um
curto espaço de tempo, pouco mais de um ano no caso brasileiro, a autoridade pública tem
condições técnicas de incrementar suas receitas, com a majoração de tributos, por exemplo.
Em suma, a limitação de recursos existe, ainda que esse limite não esteja tão
próximo como muitas vezes se quer fazer acreditar. Qual a conclusão afinal a ser extraída dos
elementos apresentados e qual sua repercussão sobre tudo o que se vem desenvolvendo nesse
estudo?
Como várias vezes já se referiu até aqui, o Estado de direito constitucional
significa que a ação do Poder Público está subordinada, isto é, juridicamente vinculada, aos
termos da Constituição Federal. Isso não quer dizer que as iniciativas e os atos das
autoridades já estejam inteiramente predeterminados pela Carta, mas certamente significa que
tudo o que a Constituição dispõe haverá de ser cumprido e respeitado pelos poderes
constituídos.
Pois bem. A gestão de recursos financeiros envolve sempre dois tipos de ação: a
obtenção e o dispêndio. Não é diferente com os recursos públicos. A apuração de recursos
pelo Poder Público é tema amplamente regulamentado pelo direito constitucional, desde as
clássicas limitações ao poder de tributar, até as modernas regras que regem o endividamento
público. Em resumo: para a apuração de receitas, o Estado deverá obediência às normas
jurídicas pertinentes. E o que dizer da despesa?
Ora, a despesa pública é exatamente o mecanismo pelo qual o Estado, além de
sustentar sua própria estrutura de funcionamento, procura realizar seus fins e atingir seus
objetivos. Do ponto de vista formal, as despesas públicas deverão estar previstas no
64
orçamento, nos termos constitucionais e legais; mas o que deverá constar do orçamento? Em
que se deverá investir? Em que os recursos públicos deverão ser aplicados? Com muito maior
razão, também o conteúdo das despesas haverá de estar vinculado juridicamente às prioridades
eleitas pelo constituinte originário. Explica-se melhor.
A Constituição, como já demonstrado, estabelece metas prioritárias, objetivos
fundamentais, dentre os quais sobreleva a promoção e preservação da dignidade da pessoa
humana e aos quais estão obrigadas as autoridades públicas. A despesa pública é o meio hábil
para atingir essas metas. Logo, por bastante natural, as prioridades em matéria de gastos públicos
são aquelas fixadas pela Constituição, de modo que também a ponta da despesa, que encerra o
ciclo da atividade financeira, esteja submetida à norma constitucional.
Mas imaginar que a influência da Constituição no que diz respeito aos gastos
públicos se limitaria à formalidade de sua previsão orçamentária seria ignorar por completo a
natureza normativa da Carta e dos fins materiais por ela estabelecidos. Tal concepção
provocaria, ainda, uma partição inteiramente sem sentido na atividade financeira do Estado: a
apuração das receitas, especialmente no que diz respeito ao direito tributário, estaria
submetida aos comandos constitucionais, mas as despesas não107.
Se é assim, e se os meios financeiros não são ilimitados, os recursos
disponíveis deverão ser aplicados prioritariamente no atendimento dos fins considerados
essenciais pela Constituição, até que eles sejam realizados. Os recursos remanescentes
haverão de ser destinados de acordo com as opções políticas que a deliberação democrática
apurar em cada momento. No caso brasileiro, a essa conclusão se chega igualmente em
decorrência de um conjunto de compromissos internacionais assumidos formalmente. Com
efeito, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção
Internacional sobre o direito das crianças e também o Pacto de São José de Costa Rica obrigam os
Estados signatários a investirem o máximo dos recursos disponíveis na promoção dos direitos
previstos em seus textos.
Note-se que aplicar prioritariamente os recursos no atendimento dos fins
constitucionais ou o investimento do máximo dos recursos disponíveis não significa aquilo que
os Estados arbitrariamente entendam deva ser aplicado para esse fim, ou aquilo que sobejar
(se sobejar). Bidart Campos anotou bem o ponto:
107 CAMPOS, German J. Bidart. El orden socioeconomico en la Constitución. 1999. p. 353
65
Para comprender-lo, se há de partir de un principio elemental, cuales de que
los derechos sociales son derechos humanos y, como tales, gozan de una
prioridad imperativa y exigible que implica el deber de asignar-les el máximo
posible de recursos, no con un tope arbitrariamente cuantificado por el
voluntarismo del estado, sino con el que una escala axiológica señala como
necesaria y debida, dentro de lo disponible y posible. Es verdad que no se
puede marcar rígidamente con una cifra inamovible el máximo de recursos
disponibles. Lo que si se puede y se debe es resuponer que el máximo disponible
es el máximo que razonablemente surge de una evaluación objetiva, con la
que al distribuir los ingresos y los gastos de la hacienda pública se prioriza lo
más valioso y se escalona, a partir de allí, lo menos valioso. 108
Em resumo, a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se
pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido
judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por
outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para em seguida
gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é
exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.
A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular,
pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de
partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção
dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos
fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial) estar-se-ão estabelecendo
exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se
poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá
investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades
orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.
Somente quando nem sequer as prioridades possam ser atendidas é que pode-se
falar na reserva do possível, e então, reconhecer a limitação fática decorrente da reserva do
possível. Assim, os direitos fundamentais sociais podem ter um peso maior do que o princípio
da competência orçamentária do legislador, pois estes podem ser prioridades, e o são, já que
trata-se de parte integrante da dignidade humana, consistente segundo o art. 1 da Constituição
Federal de 1988 em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e sendo
instrumental importante a concretização destes para assegurar um dos objetivos fundamentais
da República, qual seja ¨reduzir as desigualdades sociais¨. (art. 3, Constituição Federal de
1988).
108 CAMPOS, German J. Bidart. El ordem socioeconomico en la Constitucion. 1999, p.343.
66
Em virtude das prioridades, passa a existir uma necessidade de motivação e controle
dos critérios de escolha, uma vez que as prioridades devem ser respeitadas. Observe-se que não existe
nesse campo uma prioridade que seja factível apenas para uma pessoa, ou seja, caso o critério de
escolha seja realizado em favor de uma determinada pessoa, todas as outras que estão ou possam vir a
estar em situação igual devem ser atendidas.
O critério de escolha proposto é o das prioridades, e nessa ótica, prioridade deve ser
considerada como aquilo que é fundamental, e assim sendo, sob o prisma constitucional, deve ser
considerado prioridade o mínimo necessário para uma existência digna.
Segundo Ana Paula de Barcellos109,
há um núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira tão fundamental que sua existência impõe-se como uma regra, um comando biunívoco, e não como um princípio. Ou seja: se tais condições não existirem, não há o que ponderar ou otimizar, ao modo dos princípios; a dignidade terá sido violada, da mesma forma como as regras o são. Para além desse núcleo, a norma mantém a sua natureza de princípio, estabelecendo fins relativamente indeterminados, que podem ser atingidos por meios diversos, dependendo das opções constitucionalmente legítimas do Legislativo e Executivo em cada momento histórico.
Para referida autora, o núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa
humana funciona como se regra fosse. Não há ponderação possível com relação a esse núcleo,
ou as condições desse núcleo existem, ou não existem. Se não existirem, ele já será violado.
Segundo Ana Paula de Barcellos110, as normas-princípios sobre a dignidade da
pessoa humana são as de maior grau de fundamentalidade na ordem jurídica como um todo, a
elas devem corresponder as modalidades de eficácia jurídica mais consistentes. No caso, e em
especial, a positiva ou simétrica, e não apenas, as modalidades interpretativa, negativa e
vedativa do retrocesso, cuja capacidade de aproximar a eficácia jurídica do efeito isolado da
norma é muito mais limitada. Deve este núcleo ser realizado, e é ele uma prioridade. Tão
somente após a realização das prioridades é que poderão ser alocados recursos para aquilo que
não é prioridade.
Posição diferente é a defendida por Leivas111, para quem o direito ao mínimo
109 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 193-194 110 Ibid., p. 203. 111LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.132-133.
67
existencial possui a natureza de princípio constitucional, pois entende este autor que somente
pode-se partir de regras constitucionais estatuídas diretamente no texto constitucional, e dá
como exemplo de direito fundamental social com natureza de regra o direito à educação
fundamental.
O importante nesse tocante é saber que o direito ao mínimo existencial faz
parte do princípio da dignidade da pessoa humana, como seu núcleo, e portanto, é exigível
como princípio, e deve ter a sua eficácia assegurada, de forma simétrica.
Segundo Krell112,
o condicionamento da realização de direitos econômicos, sociais e culturais à existência de "caixas cheios" do Estado significa reduzir a sua eficácia a zero;
a subordinação aos "condicionantes econômicos" relativiza sua universalidade, condenando-os a serem considerados "direitos de segunda categoria"
Krell ainda expõe que não podemos aceitar a cautela de partes da doutrina e da
jurisprudência na construção de direitos subjetivos na base de certos preceitos constitucionais.
Assim, ao Poder Judiciário cabe o controle das razões dadas pelo Estado para as suas
escolhas, ¨fazendo a ponderação entre o grau de essencialidade da prestação e o grau de
excepcionalidade da situação concreta, a justificar, ou não, a escolha estatal¨113, de forma que não
sejam esses direitos condenados a serem considerados direitos de ¨segunda categoria¨.
4.2 – A garantia da dignidade da pessoa humana sob aspecto privatistico
Não é apenas por via prestacional, conforme tratamos, que o Estado confere ao
indivíduo o seu direito a uma vida digna, mas sim também através de normas que acabam por
traçar uma garantia patrimonial mínima inerente a toda pessoa humana, que integra a
respectiva esfera jurídica individual ao lado dos atributos pertinentes à própria condição
humana, isto é, existe um patrimônio mínimo indispensável a uma vida digna e este não pode
ser retirado em hipótese alguma, pois a sua proteção está acima do interesse de eventuais
112 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Kudicial no brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio fabris Editor, 2002. p.54. 113 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.208.
68
credores.
Segundo Luiz Edson Fachin114, a existência digna é um imperativo que se
projeta para o Direito na defesa de um patrimônio mínimo.
Cita o referido autor115 como regra que exemplifica tal pensamento, por
exemplo o limite da doação inserido no artigo 548 do Código Civil Brasileiro de 2002: ¨é
nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência
do doador¨. Tal é um limite a doação intervivos, que não permite a redução do patrimônio do
doador de modo a não ter como subsistir.
Além dessa regra, existe a do bem de família (arts 1711 a 1722, do Código
Civil de 2002). Cita Fachin as palavras de Álvaro Villaça de Azevedo116: ¨Realmente, o
legislador institui-o como se pudesse ele dar a todas as famílias, indistintamente, o mínimo
necessário à sua existência condigna, por meio de bens imóveis, privilégio tão só de
algumas¨.
Mas não são só os dois institutos, existem outros que também asseguram a
tutela de um patrimônio mínimo, suficiente para uma vida digna, e assim o é por exemplo, a
regra de não incidência da penhorabilidade sobre os bens utilizados para trabalho, que acaba
tutelando a pessoa em si mesma, ou a impenhorabilidade dos alimentos.
Regra mais clara é a da não penhorabilidade da pequena propriedade rural (art.
649, inciso X, do Código de Processo Civil). Tal propriedade é direito fundamental do
indivíduo, e merece proteção, pois é desdobramento do princípio da dignidade da pessoa
humana relativo àqueles que retiram seu sustento da terra e dela dependem117.
Mas além das regras descritas, na ordem jurídica brasileira ocorre a incidência
direta dos direitos individuais nas relações entre particulares, e não apenas o Estado, mas
também as pessoas e entidades privadas encontram-se diretamente vinculadas à Constituição,
não dependendo isso de normas editadas pelo legislador118
Essa possibilidade de vinculação não exclui a obrigação de aplicação das
regras de Direito Privado, mas impõe que estas sejam interpretadas no sentido que mais
favoreça a garantia e promoção dos direitos fundamentais.
114 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 01. 115 Ibid., p. 94. 116 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Apud FACHIN, Luiz Edson, Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar,2006. p. 161. 117 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 224 118 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p.297.
69
A teoria fundada no liberalismo clássico, segundo a qual os direitos
fundamentais apenas e exclusivamente representam direitos de defesa contra o Estado não
mais tem respaldo na Alemanha, mas continua até ao menos o ano de 2003 prevalecendo na
doutrina e jurisprudência Suiça119.
Já no Direito Brasileiro a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas é direta e imediata, tendo em vista a moldura axiológica Constitucional, que é
intervencionista e social, com grande elenco de direitos sociais e econômicos (arts. 6 e 7,
Constituição Federal de 1988).
Ressalte-se que a interpretação das normas infraconstitucionais tem que passar
necessariamente por uma filtragem constitucional120, até para que essas normas se tornem
compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual.
Até direitos sociais fundamentais tem sua eficácia estendida para uma esfera
privatística em alguns casos, como por exemplo, quando no art. 194 a Constituição Federal de
1988 estabelece que ¨a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos á
saúde, à previdência e à assistência social¨, e no art. 205, a mesma Constituição dispõe que a
educação ¨é um direito de todos e dever do Estado e da Família¨, determinando ainda que esta
deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.
Ainda, no art. 227, a Constituição Federal atribui não somente ao Estado, mas
também à família e à sociedade, o dever de assegurar à criança e ao adolescente o gozo de
seus direitos fundamentais, o mesmo ocorrendo com relação a pessoas idosas, conforme art.
230, da Constituição.
Assim, temos a concepção de que, ao lado do dever primário do Estado de
garantir os direitos sociais, é possível também enxergar o dever secundário da sociedade em
assegurá-los.
As relações privadas são desenvolvidas sob a égide da Constituição, e não
estão isentas da incidência de valores constitucionais, que acabam impondo valores de justiça
nos quais existem a idéia de solidariedade.
Tal ocorre em parte em virtude da impossibilidade de atender todas as
demandas relevantes (mas que devem ser atendidas em uma escala de preferência conforme
são prioridades ou não), e assim, procura-se encontrar outros co-responsáveis que possam
119 Ibid., p.226-227 120SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional: Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.
70
contribuir para garantir as condições mínimas para os excluídos, não por caridade ou
filantropia, mas no cumprimento de deveres juridicamente exigíveis121.
121 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.337-338
71
CONCLUSÃO
Para uma existência digna é necessário ter concretizado o mínimo existencial,
núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana.
Tal princípio se relaciona com outros, como o princípio da liberdade,
envolvendo ai a liberdade de associação, de manifestação, de religião, de votar e ser votado.
Impossível uma vida digna sem que exista a liberdade, mormente porque a liberdade se
relaciona diretamente com a vida social. O homem só existirá como ser social se houver
liberdade.
Também se relaciona com o princípio da igualdade, pois somente com a
igualdade é que ocorrerá a mudança nas condições sociais existentes, assegurando uma vida
digna (igualdade de oportunidades, por exemplo).
Com o princípio da solidariedade tem intima ligação, e à dignidade acaba por
depender da solidariedade (conciliação do coletivo com o individual).
Já com relação a capacidade contributiva tem intima ligação o princípio da
dignidade da pessoa humana, já que o princípio da capacidade contributiva constitui uma
proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana, na medida que veda a tributação
daqueles que não tem capacidade econômica para tal.
A existência de necessidades básicas (necessidades mínimas, que compõe um
mínimo necessário para a existência) não satisfeitas é um forte argumento para a existência de
direitos à sua satisfação e os direitos à satisfação dessas necessidades devem ser buscados em
normas que prescrevem direitos fundamentais, em especial nos direitos fundamentais sociais.
Assim, um dos parâmetros para quantificar o mínimo existencial é o de
prestações realizadas pelo Estado (através dos Direitos prestacionais). Mas tal parâmetro não
é único: existe também o de renda disponível, que envolve diretamente a questão do salário,
que teria que ser em um padrão mínimo para satisfazer as necessidades básicas, e o da não
incidência de tributação caso tais necessidades não estejam satisfeitas (o Estado não pode
tributar na renda alguém que não tem as suas necessidades básicas atendidas, ainda mais se
considerarmos que parte do dever de fornecer o suprimento de tal necessidade é do próprio
Estado). E ainda, deve tributar na renda aqueles que tem suas necessidades mínimas
atendidas, visando a distribuição de uma parte desse ¨plus¨.
Assim, temos que para quantificar o que seria um mínimo existencial de uma
forma mais apurada, é necessário que sejam levados em consideração o conceito de renda
72
disponível; os Direitos Sociais fundamentais a serem fornecidos pelo estado; e ainda a
incidência ou não de tributação sobre a renda disponível.
Além disso, há de se observar que no fornecimento dos direitos sociais que são
devidos pelo Estado não é cabível pura e simplesmente a alegação de que não existem verbas,
pois na medida em que estes direitos são prioridades, devem ser atendidos como tais, ou seja,
antes daquilo que não é prioridade.
Ainda, se não houver a possibilidade de atendimento, ocorre hoje de o Estado
dividir o ônus com a sociedade, envolvendo esta no dever que originariamente era seu,
tornando-a co-responsável. Assim sendo, vimos que o mínimo existencial deve ser concreti-
zado, de forma a garantir uma existência digna.
Cumpre ressaltar que além da concretização desse mínimo, existem regras
exigíveis entre os particulares (de incidência entre particulares) que visam a manutenção
daquilo que seria o mínimo necessário para uma vida digna. Assim o Estado procura
preservar, em relações privadas, através de normas, um certo patrimônio mínimo que
eventualmente o particular tenha adquirido.
73
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