A PSICANÁLISE SOB O RISCO DA DEMÊNCIA.pdf

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    PSIC. CLIN., RIODEJANEIRO, VOL.15, N.2, P.X Y, 2003

    185ISSN0103-5665

    PSIC. CLIN., RIODEJANEIRO, VOL.20, N.2, P.185 198, 2008

    185ISSN0103-5665

    A PSICANLISESOBORISCODADEMNCIA

    Andr Quaderi*Traduo de: Bianca Novaes

    RESUMONossa pesquisa comea por uma aposta pascaliana sobre a existncia de um sujeito

    na demncia, existncia negada na maioria dos trabalhos sobre a demncia ou pelo menosbastante explcita clinicamente. A anlise dos trabalhos sobre as perturbaes da lingua-gem demonstra uma recusa em reconhecer as possibilidades de comunicao e de relaocom os dementes. As pesquisas reduzem as dimenses pragmticas do discurso de Austin eas anlises do sujeito da enunciao de Benveniste e de Bakhtin, provocando uma destitui-o do demente do campo da fala. Ns propomos uma nova anlise do paciente demente,sublinhando sua existncia na fala. Atravs de um dirio clnico que cartografa diferentesmodos de abordagem dos dementes, propomos um mtodo de trabalho com esse tipo depaciente. Ns analisamos algumas produes, certamente reduzidas, dos dementes comoautnticas formaes do inconsciente, tal como as concebem Freud e Lacan. Nossa pro-posta articula-se em torno das abordagens clnicas de Ferenczi e Winnicott, apresenta tc-nicas relacionais a partir de um cuidado materno e de um fluxo de compaixo. Uma ticavem luz, tomada do referencial analtico.

    Palavras-chaves:demncia; psicanlise; psicopatologia; sujeito; fala; inconsciente.

    ABSTRACTPSYCHOANALYSISUNDERTHERISKOFDEMENTIAOur research starts with a type of Pascals bet: the existence of a subject inhabited by

    speech within dementia. Analysis of various works on speech defects shows a lack of knowledgeregarding the communication possibilities of these individuals. Research leaves out Austins

    pragmatic dimensions, Benvenistes overhangs and Bakthins analysis, and therefore dismissesthe demented person from the field of speech. We offer a new analysis of the demented patientwhich underlines his existence within the speech area. Helped by Freud and Lacans unconscious

    * Mestre de Conferncias em Psicopatologia Clnica (Universit de Provence).

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    development and by a clinical diary (which will map-make the various caring approachesof the demented person) we offer a clinical method. Developed around Ferenczi and Winnicottsclinical perspectives our work presents relationship techniques based upon mothering-type

    care and compassionate flow. An ethical path then appears, not opposed to an analyticalreferential.

    Keywords: dementia; psychoanalysis; psychopathology; subject; speech; unconscious.

    A APOSTANOSUJEITODADEMNCIA

    A psicanlise desenvolve, h mais de 100 anos, um mtodo de cuidado ps-quico. Os novos horizontes desde Freud so mltiplos. Muitos psicanalistas se

    aventuraram alm da relao clssica div-poltrona. Entretanto, zonas inteiras dopsiquismo permanecem desconhecidas. O psicanalista sem div, como dizia tojustamente Paul-Claude Racamier (1970), um personagem que, no contextoinstitucional onde se situa o cuidado de pacientes em grande dificuldade psquica,se pe a transpor metodicamente o que ele compreende graas ao conhecimentopsicanaltico e ao que ele intimamente reteve da experincia da psicanlise(Racamier, 1970: 5). Numerosos, com efeito, so os pacientes que sofrem psiqui-camente e que, entretanto, escapam aos recursos prprios situao psicanaltica.

    uma espcie de aventura para um psicanalista e um modo de se extrair da situ-ao propriamente psicanaltica. Para libertar-se do mtodo, aventurar-se nas zo-nas onde os conceitos vm luz medida do avano clnico, so necessrios aud-cia e rigor. Em situao de sofrimento psquico extremo, ento importante falarde algo alm da teoria de pacientes, de pessoas. Sem div, para retomar a metforade Racamier (1970), e fora de nossas poltronas, fomos ao encontro de pacientesacometidos pela doena de Alzheimer e por patologias semelhantes.

    O trabalho com pacientes acometidos por patologias neurovegetativas comoa demncia de tipo Alzheimer necessita de uma reordenao dos conceitos e dosmtodos de trabalho, levando o psiclogo clnico aos extremos da relao huma-na. Evidentemente, um a priori se impe a todo clnico: a aposta na presena deuma vida psquica no demente (Messy, 1992). Esse postulado se apresenta comoum elemento fundamental daquilo que pode promover uma interlocuo entre odemente e o clnico.

    Um sentimento misturando pavor e solido toma conta de todo terapeutaem um novo campo clnico. Sem referencial terico (e, ento, sem identidade nosentido de Fedida, 1992), o deserto metodolgico1se abre diante do psicanalista.No nvel metapsicolgico, e sempre no campo do envelhecimento, o paradigmaestrutural na lgica lacaniana foi desenvolvido por Jacques Messy (1992). Segun-

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    do ele, o processo de envelhecimento induz um estgio de espelho invertido. Aferida narcsica do ideal do eu provoca a criao de um eu feio (moi hideur).Assim, ressurge de maneira prevalecente no envelhecimento o Hilflosigkeit(a per-da da ajuda, do apoio sobre o objeto de amor primrio) (Assoun, 2003). As fun-daes psquicas so assim abaladas pelos golpes de perdas. Parece-nos importantesublinhar que suas teorias no conduzem elaborao de uma prtica clnicacoerente. Saudamos, todavia, aqui, o notvel trabalho de Jean-Marc Talpin (2005)no livro coletivo Cinq paradigmes cliniques du vieillissement [Cinco paradigmasclnicos do envelhecimento], que tenta elaborar um lao entre metapsicologia emtodo clnico na velhice. Nosso projeto aqui desdobrado vai dedicar-se a desen-volver uma abordagem clnica original da pessoa acometida pela doena de

    Alzheimer e por doenas semelhantes a um estado grave. ento um prolonga-mento desse trabalho que tentaremos aqui.

    Nenhuma orientao h, na abordagem desses pacientes, nas produes te-ricas essencialmente calcadas sobre um aspecto metapsicolgico. A aposta pascalianadesempenha j um primeiro lance, criando uma possvel explorao de um novocampo praxeolgico da psicanlise. , ento, a uma heurstica em curso que essaaposta louca conduz. Segundo Aulagnier (1975), duas possibilidades se oferecemaos praticantes diante de um novo campo. A primeira consiste em nada mudar o

    modelo analtico que d conta dessa relao com a pessoa (aqui, o demente). Asegunda leva a reconhecer o que, no nvel da demncia, o modelo analtico deixafora de campo, reconsiderando as noes de sujeito (je) e a funo do discurso.

    DEFINIODADEMNCIA

    A Organizao Mundial de Saded como definio (quase idntica quelado DSM-IV) da demncia:

    Alterao progressiva da memria e da ideao suficientemente marcada porprejuzo, desde ao menos seis meses, e perturbao de pelo menos uma dasfunes seguintes: clculo, juzo, alterao do pensamento abstrato, praxias,gnosias ou modificao da personalidade (Hazif-Thomas, Hazif-Thomas &

    Arroyo-Anllo, 1999: 74).

    O recurso previamente enunciado na aposta pascaliana impe-se diante detantas patologias que acometem o sujeito. O sujeito demente no se reconhece

    mais nele nem em seus prximos, verdadeiro morto-vivo para os seus, que vmnele, ao mesmo tempo, um ser amado e um outro estranho2. O demente ignora

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    que demente e, devido s perturbaes da memria, ele prprio esquece suasperturbaes. Ele s fala raramente, acometido por afasia e agnosia. Para entrarverdadeiramente em relao com ele, o clnico ento constrangido, por sua trans-ferncia, a crer no carter humano da demncia, pois lhe parece impossvel crerem outra coisa. Essa crena se coloca por obrigao moral, induzindo logicamentea considerar a palavra do demente como elemento de verdade. Fala-ser (parltre)no falando quase nada, o demente representa uma fronteira, aquela da compre-enso do humano e da teoria analtica.

    O SUJEITOANALTICO

    A definio analtica de um sujeito para Lacan impossvel de isolar dalinguagem e de sua estrutura, remetendo ao uso do significante. Esse ltimo assimse define, segundo Lacan: nossa definio do significante (no existe outra) : umsignificante aquilo que representa o sujeito para outro significante (Lacan, [1960]1966: 819).

    Lacan introduz, ento, um lao entre o sujeito, o inconsciente e o significante.Ele afirma:

    Mas a novidade da anlise, [...] justamente isto, que alguma coisa pode sesustentar na lei do significante, no apenas sem que esta comporte um saber,mas dela o excluindo expressamente, dela se constituindo como inconsciente,ou seja, como necessitando em seu nvel do eclipse do sujeito para subsistircomo cadeia inconsciente, como constituindo o que h de irredutvel, no fundoda relao do sujeito ao significante (Lacan, [1959-1960] 1986: 143).

    Como ento falar de sujeito na demncia no sentido analtico do termo, umsujeito do inconsciente?

    Lacan, seguindo Freud, vai utilizar, para delimitar o sujeito, a construo dapalavra familionrio como uma condensao acompanhada da formao deum substituto,significando a vida psquica inconsciente. Freud, e Lacan ([1957-1958] 1998) o retoma tal qual em seu seminrio sobre as formaes do inconsci-ente, prope o esquema seguinte: famili ar

    mili onrio

    faMILIonRIO

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    Essa figurao determina os mecanismos de condensao e de transforma-o, exprimindo um sentido que escapa conscincia. O familionrio , ento,o testemunho de uma vida psquica. Por ocasio de numerosos encontros, partici-pei, com a condio de abrir e sustentar a demanda na entrevista com o demente,do aparecimento de uma condensao similar, sinal da continuidade de uma vidapsquica na demncia. Por exemplo, uma paciente no cursodeuma entrevistaverbaliza: eu sou uma velha soeurcire3, eu tenho coisas horrveis em minha cabe-a.Para mim, esse surgimento assinala a presena de mecanismos idnticos aofamilionrio, permitindo sublinhar a presena no curso de uma entrevista deuma vida psquica, aqui inconsciente, no sentido de Lacan, no demente.

    Isso conduz, legitimamente, a reproduzir o esquema de Freud:

    So(eu) rSor (ci) re

    SoeRciRE

    Uma outra paciente, no cursodeuma entrevista, me dir: eu soupleureuse4,querendo exprimir eu no sou mais heureuse5, o que pode ser significado da

    maneira seguinte:

    je ne suis plus heureuse [eu no sou mais feliz]pleureuse [chorosa]

    JE SUIS PL EUREUSE [eu sou chorosa]

    Essa eliso da negao [ne] e do fonema us [de plus] sublinha aperformance

    do dizer em um ato que, ao mesmo tempo, significa a ausncia de felicidade e aslgrimas correlatas. Verdadeiras construes do inconsciente, esses dois neologis-mos tornaram para mim a fala do demente mais clara. A operao de sentidonasce de minha interpretao e, ento, de uma transferncia inaugural. Totalmen-te siderado por essas produes dos pacientes, me percebi como aquele que fazemergir sujeito e, nesse sentido, talvez um outro, tesouro de significantes? A ques-to permanece em suspenso, mas sublinho que o sujeito na demncia dependeirrevogavelmente do outro para sustentar seus enunciados, e de um Outro para

    produzir significantes existenciais. A idia pascaliana de aposta inicial, ato funda-dor de encontro, torna-se pouco a pouco um ato relacional especfico de umainesperada estranheza.

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    DIRIOCLNICO

    A partir dessa etapa essencial, um dirio se desenvolve para cartografar ocampo clnico que se descobre. Dou testemunho, assim, em filiao direta aodirio clnico de Ferenczi, da experimentao de uma nova abordagem dessaspessoas. O dirio clnico enumera mais de 30 situaes diferentes, das quais no possvel restituir aqui o conjunto. Para ilustrar essa zona do campo particular-mente cruel do sentimento de nada presente na abordagem da demncia, apresen-to um exemplo de meus primeiros desgostos. Essa entrevista ocorre no incio demeu trabalho, antes de qualquer elaborao da aposta pascaliana.

    Clnico: Bom dia, Senhora, como vai?Sra. Forge: Bem, muito bem.Clnico: Onde voc est aqui?Sra. Forge: Onde eu moro, em St. Eugne, l que eu moro. Voc conhece?Clnico: No.Sra. Forge: Ah, mas bom, como St. Eugne, h uma igreja, casas... Eu voucom os meus pequenos (a meia-voz: St. Eugne em St. Eugne que eu moro).Clnico: Como se chamam seus pequenos?

    Sra. Forge: Tem uma que uma mocinha, de 13 anos, um de 12 anos. Eu oslevo ao mar. Em St. Eugne h um mar, uma praia muito bonita, grande, e ascrianas brincam na praia. E, depois, eu tenho Frdrique.Clnico: Ela mora onde?Sra. Forge: Colmar, voc conhece?Clnico: No. Aqui voc est na Casa de Retiro.Sra. Forge: St. Eugne, em St. Eugne que eu moro, minha filha vem mebuscar...

    Essa entrevista foi uma das mais dolorosas, eu me senti intil e desarmadodiante da demncia. Minhas intervenes eram desajeitadas, desadaptadas,deslocadas, eu sentia uma compaixo que eu fazia calar. Esse limite que eu meimpunha era para mim diretamente determinado pela tcnica de no-interven-o, dessa neutralidade prpria ao clnico. Searles (1981) analisa essa anestesia desentimentos da maneira seguinte:

    Funcionar segundo esse esprito de abnegao a norma para os mdicos de

    outras especialidades representa aqui, na prtica da psicoterapia e da psican-lise, uma defesa inconsciente do terapeuta que lhe evita claramente muitos as-pectos essenciais dele mesmo e do paciente (Searles, 1981: 399).

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    Se no coloco em causa essa assero todo clnico pde verificar sua opera-cionalidade nas curas clssicas , uma questo brota: possvel o encontro com odemente fora de um investimento diferente do clnico? Como explicar, ento, essesentimento de abatimento que me oprimiu muito tempo aps essa entrevista?Pode-se mesmo falar de entrevista diante daquilo que parece ser um automatismomental? Era de minhas intervenes carecendo de compaixo, de sinceridade, queeu me sentia culpado. Raramente me senti to margem do problema, sem laocom a paciente, nem mesmo um lao linguageiro. Eu no compreendia nada,estava desesperado, melhor, no me compreendia em minha identidade. Nessaentrevista, estou num rio e o paciente num outro e nada permite nos encontrar,pior ainda, a tcnica, em lugar de facilitar a expresso, me impedia de agir segun-

    do meu impulso. Desses efeitos (contra) transferenciais, a partir dessa ancoragem,o que eu podia fazer?

    Eu me obstinei, entretanto, obstinao diretamente induzida pela apostapascaliana, mas tambm por essa dvida contrada cuja reparao tentei fazer noincio desse trabalho. Um clnico, referindo-se psicanlise, no pode se furtar escuta e muito menos s palavras do paciente, inclusive do demente.

    De uma clnica impossvel s variveis infinitas do possvel o passo semnti-co simples, mas me demandou anos de esforos, principalmente para desaprender

    umaprxis analtica de neutralidade. Nisso, a definio do instante de dizer, se-gundo Del Volgo (1997), que delimita o encontro clnico reduzido a uma oualgumas entrevistas em um instante de breve encontro (Del Volgo, 1997: 27),me parece eficiente. Diferentemente das situaes descritas em seu livro, minhaprtica se define a partir desses breves encontros que a memria deficiente dodemente reconduz como estranhamente nova.

    OSFUNDAMENTOSDACLNICAANALTICADADEMNCIA

    O prprio da clnica analtica da demncia seria abord-la fora de todo saber(semiolgico e outros). Assim como o neurtico, o demente seria colocado emum a priori (Lacan emprega as palavras idias pr-concebidas) do desejo. Odemente encontra, ento, um lugar de sujeito no discurso do Outro. A modalida-de metodolgica modifica-se por causa dessa articulao subjetiva, lembrando aaposta pascaliana. Essa ltima, ato tico e fundamental, torna-se, como vimos,preliminar indispensvel s entrevistas e motor do processo de subjetivao da

    relao. A praxeologia da demncia se constri assim.O conjunto no sem conseqncias tcnicas e nem deixa de colocar novosproblemas. Certamente, isso pode funcionar, mas sob condio, aquela do saber

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    louco do clnico que sabe o que bom para o paciente demente. Esse ltimoestando na incapacidade de nomear seu desejo, de a se reconhecer, o clnico,propondo uma, ou para ser mais preciso, vrias possibilidades de nominaes,que lhe permite ento apreend-lo. O desejo ser aqui compreendido como deixaradvir um discurso no qual o demente possa se reconhecer, tom-lo como delemesmo.

    O alcance de Eros, ainda que escape, no se faz segundo a deciso do clnicoe muito menos por um dispositivo tcnico, mas pela posio intrapessoal, queLacan nomeia desejo do analista. Este ltimo permite deixar desenvolver a trans-ferncia atravs do sujeito desejante. Esse dispositivo visa anlise daquilo que buscado nessas entrevistas com o demente, a saber, questionar o desejo do clnico

    em sua aposta pascaliana. Nosso propsito, agora que chegamos a esse estgio dopercurso, ser identificar o que operacional na clnica do demente.

    O que ocorre no desejo do analista diferencia-se de um objetivo de cura, masno se separa de uma relao transferencial e, por isso mesmo, situa-se no interiorde um dispositivo praxeolgico. A terminologia desejo no desejo do analistano permite dispensar totalmente a intersubjetividade, mas, ao contrrio, permitemostrar que esse desejo faz funcionar um discurso no qual um sujeito, e no umobjeto, pode advir. A partir desse ponto preciso, parece possvel afirmar que o que

    faz funcionar a interlocuo com o demente provm dessa aposta louca, apostapascaliana que cria, no momento mesmo em que se enuncia, o sujeito. Nossaconvico agora se desenvolve em torno da aposta pascaliana como uma autnticaregra praxeolgica na clnica da demncia. Em outras palavras, a aposta pascalianafunciona identicamente ao processo da regra fundamental da clnica do neurti-co. Essa aposta tica aparece como uma autntica e primeira regra da clnica dodemente, lugar de nascimento de um desejo do clnico no sentido de Lacan, masintrincado patologia demencial das perturbaes dos enunciados.

    WINNICOTT, HOLDING, COMPAIXO

    Winnicott ([1952] 1969) no hesitou em trabalhar com pacientes difceisem uma clnica densa e rude. o testemunho de uma de suas analisantes quemostra a generosidade, a riqueza e a extrema engenhosidade desse clnico e so-bretudo a similaridade de sua prtica com a de Ferenczi. Em Um tmoignage[Um testemunho], uma analista inglesa, Margaret Little (1986), narra sua

    experincia analtica com o Doutor W. Por exemplo, diante do terror, pnico edas angstias de sua paciente, Winnicott passar horas a lhe segurar a mo,interpretar os medos como um novo nascimento, velar por suas frias para

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    evitar riscos suicidas (prtica no muito afastada da disponibilidade de Lacan,que dava um nmero de telefone para ser contactvel Roudinesco, 1993), ahospitalizar e ir visit-la regularmente. Little articula a prtica de seu analistaem torno dos trabalhos sobre o holdingtomado metafrica e literalmente (Little,1986: 466), mantendo a situao clnica em suas mos e segurando as mos desua paciente. Sempre segundo Little, Winnicott, no nvel de apoio, assumiatoda a responsabilidade para dar ao paciente a fora do eu que esse ltimo nopodia encontrar nele mesmo. Mais tarde, Winnicott deixava entrever a sua pa-ciente o que a anlise exigia dele... ele devia suportar a angstia, a culpa, ador e o sofrimento, a incerteza e a fraqueza, a impotncia, ele devia suportar oinsuportvel (Little, 1986: 488).A convergncia com Ferenczi aqui incontes-

    tvel em sua percepo da compaixo e da simpatia que cura. Winnicott, queLittle ilustra em sua relao de maternagem (Little, 1986: 484), simbolizaria oclnico que Ferenczi esperava ver advir? Como o hngaro, Winnicott6ia casade sua paciente quando esta estava muito doente. Assistimos, na leitura dessanarrativa, criao de uma praxeologia de um clnico que inventa a anlise comsua paciente. No devemos deix-lo nos guiar sobre essa via certamente angus-tiante, na qual a tcnica faz corpo com o clnico, como Gori e Hoffman (1999)o entendem, no sentido do mtodo?

    CLNICADADEMNCIAEHILFLOSIGKEIT

    Eis agora um exemplo clnico no qual, finalmente desembaraado de mi-nhas roupagens tcnicas habituais, eu me entregava s conseqncias de minhaaposta pascaliana. Nessa entrevista, estava presente uma jovem estagiria psiclo-ga. Sra. Porte est sozinha, deitada ao longo de sua poltrona, as mos sobre suacabea, mergulhadas em seus cabelos. Quando entramos, ela no reage, s mos-

    trar o rosto quando nos aproximamos dela o suficiente para que ela sinta nossapresena atravs de nossa voz.

    Clnico: Bom dia, Sra. Porte, como vai voc hoje?Sra. Porte: Bom dia, Senhor.Eu lhe aperto a mo (eu aponto e fao-a estender a mo estagiria)Sra. Porte: Bom dia, Senhora. Oh! voc tem as mos frias, isso vai me aquecer.

    A paciente est com o nariz escorrendo, pego um leno e lhe asso o nariz.Aproveito para lhe tomar as mos e lhe acariciar o rosto. Eu lhe estendo tam-bm um leno. Tudo isso lhe falando pelos gestos que executo.Sra. Porte: Oh! muito obrigada por isso, vou coloc-lo em minha bolsa.

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    Ela hesita, eu a guio para colocar o pacote em sua bolsa. Eu lhe tomo a mo, acoloco sobre minha face e lhe falo de maneira suave, mas com forte intensida-de, lhe perguntando como ela vai.

    Sra.Porte: Eu a no vejo, eu no vejo nada a desde ontem, uma semana... Oh!eu estou farta, eu sou uma velha carroa.Clnico: Eu lhe digo rindo: e quem puxa a carroa?Sra.Porte: Oh! se algo puxa no sou eu, a juventude, que est a como vocs, a(aponta a estagiria) e a (me aponta).Nesse momento, ela toma as mos da estagiria e diz:Sra. Porte:A juventude tem as mos frias... Ento o trabalho como vai?

    A estagiria e eu mesmo respondemos: Sim, vai tudo bem.

    Sra.Porte: importante isso para que o trabalho v bem.Ela me mostra sua boca para comer.Sra.Porte: Oh! e depois no bom, eu tenho dor nos olhos, eu quero partir fazdois anos que eu estou l, eu quero partir. Oh! estou farta de mim, eu queropartir os ps na frente7(ela imita, fazendo o gesto de ps na frente).Clnico: o qu? Eu no compreendo.Sra. Porte: o crculo onde voc coloca os ps na frente e a cabea atrs (elaimita com suas mos) eu creio que possvel colocar a cabea tambm na frenteenfim eu no sei. Eu no vejo a, eu tomei caf da manh l, caf com leite, caf.Trocaram as camas, mas no trocaram os lenis. Ela aponta sua cama.

    Massageei a paciente, pois ela comeava a repetir de maneira idntica suafala. Ela recusa sempre, no incio, a massagem e a aceita no fim. Ela me agradeceagora no final da entrevista, vrias vezes, e me pede para voltar, o que totalmentenovo.

    Seu agradeo por sua visita, isso faz passar o tempo, seu pedido de que nsvoltemos me questionam. Intil pensar essa expresso como uma simples forma

    de polidez. O que endereado ao clnico deve ser compreendido, desde Ferenczi,atravs do quadro transferencial. Essa mulher me ensina o alvo de minha visita,me agradecendo, ela admite que houve um antes e um depois. Levando em consi-derao o que se sabe da demncia e de sua percepo desorientada, o agradeci-mento da visita tem um efeito transferencial sobre mim. Enfim, o uso da metforaos ps na frente testemunha a meus olhos o fala-ser (parltre) existente apesar dademncia. O sujeito persiste com a condio da assinatura do Outro.

    O projeto ento produzir efeitos de fala pela posio subjetiva do clnico

    (maternal, desejante fundado sobre uma dinmica de amor). No artigo Psicose ecuidados maternos, Winnicott ([1952] 1969) articula ao estado de dependncia

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    da criana, de aflies primitivas tais como Freud poderia defini-las com o concei-to de Hilflosigkeit, o papel da me, no nos gestos precisos, mas no ambiente quecompensa essa aflio. Essa abordagem parece complementar ao percurso tcnicode Ferenczi em sua pesquisa sobre o cuidado materno, que ele ope frieza daposio do analista clssico. O cuidado materno no est exclusivamente no gestotcnico de alvio (relaxamento, gestos afetuosos, dar de comer, etc.) de nossa clni-ca (idntica nisso quela de Ferenczi). O cuidado materno est tambm e podeestar sobretudo na criao de um ambiente de linguagem.

    O AMBIENTESIGNIFICANTE: UMCUIDADOMATERNO

    Jacques Hochmann (1994) com sua coletnea La Consolationque me levaa reconsiderar o ambiente para uma abordagem da demncia de outra maneiraque apenas sob o aspecto da arquitetura e das estimulaes cognitivas. Os estudossobre a abordagem da demncia falam de arquiteturas profticas, ou seja, porta-doras de inteno, mas omitindo um ponto essencial: o ambiente significante, ainstituio mental para retomar a denominao de Hochmann.

    A proposta, para torn-la mais clara, , ento, uma nova abordagem da de-mncia, certamente dual, na discursividade, mas tambm potencialmente esten-

    dida a outros atores dos cuidados de uma Casa de Retiro clssica e, seguramen-te, das unidades de Alzheimer. A equipe poderia criar um ambiente verbal,permitindo ao demente viver e existir no discurso de significantes ambientais. Aproposta no se limita de forma alguma a uma sistematizao autoritria, masantes a um ambiente tal como Hochmann define para as crianas autistas atravsdo conceito de alvio.

    CONCLUSO

    Se a psicanlise no for portadora desse discurso metonmico e metafricopara a demncia, ento ningum o far, nisso reside sua responsabilidade.

    A psicanlise baseia sua teoria sobre a linguagem e seus avatares metonmicose metafricos, induzindo principalmente as formaes do inconsciente, o fantas-ma e a castrao. Todo praticante , ento, logicamente conduzido a se proporcomo um clnico produtor de metfora e metonmia, esperando delas produzirefeitos de fala.

    Essa hermenutica considera o demente em perptuo estado de demanda,complexa e dificilmente inteligvel, demanda no de cuidado, mas demanda a serno outro. Existir de outra maneira que no por cuidados veterinrios, existir no

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    desejo do outro, o tempo da vrgula da palavra, espao pusilnime se nele est,mas do qual por vezes se alimenta.

    No conhecer minha prpria humanidade seno reconhecendo aquela demeu irmo demente, eu marco a ao de um desejo e seus alvos inconscientes,produzindo minimamente um novo espao para viver, frgil e parcial, reduzido aesses instantes de falas, ato fundador de existncia.

    Escutar os dementes e suas crises existenciais na imediatidade de seu vivido,certamente suposto para ns (a prova faz falta), um ato tico no sentido analticodo termo: no derrogo do lugar que ocupo, aquele da e endividao perptua doclnico (no sentido de Aulagnier, 1975) diante de seu paciente que ignora o comoda relao. A aposta pascaliana ento evoluiu bem desde o incio desse longo

    trabalho clnico. Da simples hiptese fundada sobre uma noo moral, suapertinncia tanto no nvel da gramtica quanto do sujeito do inconsciente irrompe.Essa aposta constrangeu meu corpo, proibindo de embarcar numa terra clnicatotalmente fria, dura, rida, extrema, mas no desrtica de conceitos. Para acabar,a aposta pascaliana encerra em si mesma, como uma tica que me ultrapassa,aquela da psicanlise, universal e insupervel. Em uma via nova, mas na qual asiniciativas se multiplicam, na qual as necessidades so imensas e as pesquisas tor-nam-se inumerveis, asseguramos que o futuro est amplamente aberto, tal como

    termina o prembulo de Racamier (1970) no seu livro sobre o psicanalista semdiv. Eis-nos nesse estado na abordagem dos pacientes dementes.

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS

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    Lacan, J. (1957-1958). Le sminaire, Livre V, Les formations de linconscient. Paris: Seuil,1998.

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    NOTAS

    1 Teorias explicativas da demncia existem (Ploton, 1996; Maisondieu, 1996; Le Gous, 1991),

    mas no h mtodo clnico.

    2 Marie Trintignant (1997) em seu livro Ton chapeau vestiairedescreve esse estado de maneirapungente. Eu no citarei dele seno algumas linhas: No se compreende sua estranha doen-

    a. Ela no mais, nada alm disso [...] Lilou no v o Outro, ela. Ou ainda, se esqueceu, voc.

    Eu no sei (Trintignant, 1997: 105).3 N.T.: Soeurcire a condensao da palavra soeur, que significa irm com a palavra sorcire,

    que significa feiticeira.4 N.T.: Pleuresediz-se de algum que est prestes a chorar ou que acaba de chorar, algo como

    chorosa.5

    N.T.: Heureuse significafeliz.6 Winnicott ([1947] 1969) d testemunho desse tipo de prtica em um outro artigo sobre o

    dio.

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    7 N.T.: A paciente imita o gesto de colocar os ps na frente, mas ao se expressar verbalmente

    utiliza antes de ps na frente o verbo partir, construindo uma expresso francesa (partir les

    pieds devant) que significa sair de casa no caixo.

    Recebido em 13 de dezembro de 2007Aceito para publicao em 08 de maio de 2008