A Punição Do Escravo Negro Segundo Os Escritos Jesuíticos

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    A PUNIÇÃO DO ESCRAVO NEGRO SEGUNDO OS ESCRITOS JESUÍTICOS

    Rodrigo de Sá Netto* 

    Resumo:  O artigo pretende demonstrar a vinculação entre as técnicas de controle sobre os

    escravos prescritas pelos escritos jesuítas no Brasil colonial, fundadas sobretudo na punição

    física, e a prática penal, igualmente baseada no castigo corporal, vigente na Europa até o final

    do século XVIII, quando essa mentalidade penal será questionada em favor de métodos mais

    sutis e preventivos de punição e controle, como descrito por Michel Foucault.Palavras-chave: Jesuítas - escravos - punição

    Abstract: The article intends to show the link between the technics of control on the slaves

    prescribed by the jesuitic writings in the colonial Brazil, based mainly in the physical

    punishment, and the penal practice, equally based in the corporal punishment, valid in the

    Europe until the end of the XVIII century, when this penal mentality was questioned in favour

    of more preventive and subtle methods of control and punishment, as described by MichelFoucault.

    Keywords: Jesuits - slaves - punishment 

    A gestão do trabalho escravo no Brasil colonial, se concretamente era tida como

    questão de foro pessoal cabendo a cada senhor resolvê-la como melhor lhe conviesse, não foi

    assunto negligenciado pelos jesuítas que se dispuseram a pensá-la pautando-se, sobretudo,

    numa moral religiosa. Seus textos, localizados temporalmente em princípios do século XVIII,

    estampam táticas de controle do escravo que refletem o momento histórico de sua produção,

    obedecendo a uma lógica punitiva vinculada ao "direito penal real" (HESPANHA, s/d: 239) e

    onde a punição corporal aparecerá como principal meio de repressão e controle, atuando por

    via do medo suscitado pelo exemplo e da memória do sofrimento físico. Pretendo mostrar

    como as técnicas violentas prescritas pelos jesuítas no controle do trabalhador escravo

      Técnico em Assuntos Culturais do Arquivo Nacional/ Mestrando em História pela

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

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    ligavam-se à prática penal europeia então vigente, marcada pelas formas físicas de punição

    características daquilo que Foucault (1996: 86) chamou de "sociedades penais", ou seja, as

    sociedades onde o exercício de poder sobre os seus membros se dá através da punição,

    geralmente corporal, das infrações já cometidas. Essa forma de poder irá perdurar até finais

    do século XVIII, quando irá se consolidar na Europa, ainda segundo Foucault (1996: 86), a

    era da "ortopedia social" onde o poder se manifestará não mais por via da simples punição

    sangrenta dos crimes, mas pretenderá, através de "uma rede de instituições de vigilância ecorreção" (FOUCAULT, 1996: 86) direcionar as ações individuais para fins úteis e corrigir

    suas potencialidades para o crime pretendendo suprimi-lo antes mesmo que aconteça

    (FOUCAULT, 1996).

    Como os escritos que brotaram nos primeiros anos da colônia não problematizaram a

    escravidão, podemos situar a tomada de consciência por parte dos letrados coloniais sobre a

    questão da melhor gestão da escravatura a partir de meados do século XVII, período que

    marcaria uma nova fase na apreciação do cativeiro, quando o assunto despontará como objeto

    de reflexões mais aprofundadas. Essa guinada fica evidente em alguns sermões do padre

    Antônio Vieira, no Compêndio Narrativo do Peregrino das Américas  de Nuno Marques

    Pereira, nos escritos Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas,  Economia

    Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, assinados pelos jesuítas André João Antonil e

    Jorge Benci, e no  Etíope resgatado empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado,

    que, apesar de não ter sido escrita por um jesuíta, mas pelo padre secular Manoel Ribeiro

    Rocha, também iremos tratar aqui por manter semelhanças com a literatura jesuítica nas

    técnicas punitivas que prescreve. 

    É possível que o maior enfoque conferido ao tema apenas a partir dessa data se ligue à

    escalada de complexidade da colonização, trazendo à luz desafios que, na percepção arguta de

    alguns letrados, demandavam a atenção dos colonos, sendo esta a posição defendida por

    Ronaldo Vainfas (1986). Nesse quadro de "amadurecimento de contradições sociais inerentes

    à situação colonial" (VAINFAS, 1996: 85) estaria inserido o problema da gestão do

    trabalhador escravo negro que passou a receber maior atenção de uma elite intelectual

    resumida, naquele momento histórico, aos jesuítas. Ainda para Vainfas essa guinada

    corresponderia a uma "inflexão" (VAINFAS, 1986: 87) da ideologia escravista no Brasil,

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    porque a partir desse momento os escritos devotados ao tema passariam a veicular "projetos

    de controle social" (VAINFAS, 1986: 87), exibindo também crescente preocupação com os

    motins e rebeliões dos cativos.

    Por outro lado, também pode ser que esse fenômeno se prenda a razões internas à

    própria Companhia de Jesus na conjuntura do final do século XVII. Tal é a hipótese levantada

    por Rafael de Bivar Marquese (2004), que associa o surgimento desses escritos às

    dificuldades enfrentadas pela ordem religiosa em seu embate com os proprietários de terra, aquem seus textos eram direcionados. Assim, os atritos com a camada senhorial, questionadora

    dos privilégios conferidos aos religiosos, como a dispensa no pagamento dos dízimos, teriam

    inspirado esses textos, pensados como uma resposta aos fazendeiros neles retratados como

    maus gestores de seus escravos, havendo, por isso, "se afastado dos preceitos da moralidade

    católica." (MARQUESE, 2004: 51).

    O teor dessa censura, de cunho moral e religioso, serve para ilustrar em que bases a

    argumentação jesuítica se firmava. A referência primeira, de onde eram retirados exemplos

    que legitimassem a escravidão e que servissem de parâmetro para se balizar a relação entre

    escravo e senhor, era o próprio texto bíblico complementado, segundo Marquese (2004: 23)

    por escritos gregos e romanos sobre agronomia e o governo da casa. Enfim, uma ética

    eminentemente cristã, traduzida no que Marquese (2004: 23) chamou de um "discurso bíblico

    das obrigações recíprocas", sustenta esses textos que pretenderam regular a prática da

    escravidão na colônia, sendo possível dizer que eles representem uma “teoria cristã do

    governo dos escravos”, (MARQUESE, 2004: 17), ou mesmo um "projeto escravista cristão"

    (VAINFAS, 1986: 93).

    Em suas linhas, a escravidão é não apenas legitimada como também tida como obra

    pia, idealizada como uma empresa de salvação de almas ao subtrair o negro da África pagã

    para cristianizá-lo. Ao mesmo tempo, a questão da punição surge como medida disciplinadora

    visando, além da maior aplicação ao trabalho, à correção espiritual dos negros, afeitos, nessa

    ótica, ao ócio pecaminoso, sendo o castigo entendido como uma obrigação dos senhores, a

    quem cabia zelar pelo encaminhamento das almas sob sua responsabilidade. Assim, quando

    seguisse uma certa concepção de justiça que esses jesuítas tanto se preocuparam em formular,

    o castigo seria uma condição tanto para a justificação do cativeiro como para a prosperidade

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    dos negócios coloniais, constituindo, dessa forma, importante elemento na correta gestão da

    mão de obra escrava. 

    Mas a que tipo de castigo esses textos se referem? Nesse ponto os letrados religiosos

    são unânimes, a punição corporal aparece como a tática preponderante de controle e

    repressão. Esse castigo deveria ajustar-se, ainda, a uma moralidade cristã, recorrendo os

     jesuítas com frequência ao texto bíblico de onde eram extraídos exemplos que balizassem a

    sua prática.Sabe-se que, corriqueiramente, o castigo do escravo na colônia fundava-se na

    violência física geralmente praticada em público, muitas vezes nos incontáveis pelourinhos

    encontrados ainda em algumas das mais antigas cidades brasileiras, tendo chegado aos nosso

    dias, também, um farto acervo de objetos de tortura voltados para o castigo do escravo

    remanescentes daquela era. Nos textos, longe de estar relacionada ao abuso senhorial, a

    violência física surge como procedimento punitivo recomendável, e se eles denunciam o

    excesso de violência empregado pelos senhores nas punições, o fazem por questões

    relacionadas à dosagem dessa violência e à falta de cuidado na aplicação das penas. Nessa

    ótica, a punição deveria ser sim física e dolorosa, mas precisava se ater à sua dimensão

    pedagógica, tendo como meta a "correção" do escravo e não a sua incapacitação ou

    aniquilação física, precisando o castigo ser "moderado pela razão e não temperado pela

    paixão" (BENCI, 1977: 156).

    Em sua essência, entretanto, o castigo pregado se vincularia estreitamente às práticas

    punitivas típicas da tradição legal europeia que vigorou até o final do século XVIII, quando as

    técnicas punitivas relacionadas ao Antigo Regime foram duramente questionadas por um

    movimento de reforma do direito surgido no âmbito do processo revolucionário daquele

    século.

    Em linhas gerais, nessa antiga prática penal o sofrimento físico tinha enorme

    importância, sendo a sua intensidade a variável a ser manipulada no ajuste do castigo ao

    delito, um castigo, segundo Foucault (2009: 36), baseado "na arte quantitativa do sofrimento"

    e que, além da gravidade do crime, também se media pela posição social do criminoso e suas

    vítimas, e era acrescentada de uma parcela representativa do poder soberano ofendido

    (FOUCAULT, 2009).  Nesse quadro, a punição significaria não só a reparação do prejuízo

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    trazido ao reino, mas, sobretudo, a afirmação da força maior do monarca frente ao criminoso,

    assimetria de poder ritualizada em espetaculares punições públicas com o papel de manifestar

    a supremacia do poder soberano. Ao mesmo tempo, essa encenação punitiva, procurará a

    "correção" do faltoso através da memória do sofrimento, pretendendo também desencorajar a

    reprodução do delito pelo horror que desperta (FOUCAULT, 2009), sendo que, neste

    contexto, mesmo que algumas penas não corporais, como a multa ou o degredo, fossem

    comuns, elas ainda assim "tinham como acessório alguma pena física" (FOUCAULT, 2009:35).

    Hespanha (s/d), entretanto, tende a relativizar na prática a violência da legislação penal

    monárquica, pelo menos em Portugal. Para o estudioso o castigo sangrento tinha aplicação

    muito esporádica, sendo que a dureza das Ordenações, que previam a pena de morte para

    extensa gama de delitos, cumpriria o papel de dar funcionamento a uma "dialética do terror e

    da clemência" ( HESPANHA, s/d: 248), onde a rigidez da lei daria relevo à piedade do rei,

    fornecendo ao soberano a oportunidade de surgir como generoso distribuidor do perdão. Ao

    mesmo tempo, o peso da lei ficaria notadamente estampado no código legal, constante ameaça

    de punições terríveis vinculando uma imagem, por este lado, do Rei enquanto " justiceiro"(

    HESPANHA, s/d: 248) e, por outro, na medida em que a ameaça da punição sangrenta pouco

    se cumpre, de "pastor"( HESPANHA, s/d: 248) e "pai" (HESPANHA, s/d: 248). Na minha

    opinião, não fica claro na argumentação de Hespanha, no entanto, como a ameaça da punição

    se fixaria nas consciências dos súditos sem o exemplo visual do castigo público, sobretudo na

    sociedade portuguesa do século XVII, abordada pelo estudioso, onde a difusão e o acesso ao

    texto legal entre a população, num contexto marcado por alto grau de analfabetismo, era

    difícil.

    Seja como for, o atrelamento dos textos brasileiros a mentalidade penal que vigorava

    na Europa do século XVII e de boa parte do XVIII, pelo menos no âmbito do texto jurídico, é

    facilmente verificável. Neles a violência física é o castigo invariavelmente prescrito, dada a

    sua importância no quadro jurídico da época, a condição social inferior do negro e a evidente

    impossibilidade de aplicação das penas não corporais os escravos. Assim, Jorge Benci (1977:

    126) frisará a necessidade "da vara e do castigo" para a correção dos "imprudentes e maus",

    recomendando que a punição correta, ministrada por "senhores prudentes e discretos"

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    (BENCI, 1977: 162) consista de "açoites ou de ferros" (BENCI, 1977, p. 162). Dirá ainda

    Benci (1977: 162): "Primeiramente, obrando o servo contra o que deve, deveis usar dos

    açoites", acrescentando que, nos casos em que eles não bastassem, sempre se poderia recorrer

    aos ferros "prendendo-o ou com grilhões, ou com correntes" (BENCI, 1977: 164-165), técnica

    que, longe de se aproximar da prisão contemporânea, é ainda uma forma essencialmente física

    de punição por objetivar a imobilização do corpo e a dor dela decorrente. Essa natureza

    corporal do castigo é reforçada por Antonil (2007: 91) que recomenda "chegar-lhes com umcipó às costas com algumas varancadas", definindo a punição ideal como "açoites moderados,

    ou com os meterem uma corrente de ferro por algum tempo, ou tronco." (ANTONIL, 2007:

    102), e o mesmo parecer encontramos nos posteriores escritos do padre Manoel Ribeiro

    Rocha, onde o castigo correto é definido como "palmatória, disciplina, cipó e prisão"

    (ROCHA, 1992: 97). Em suma, a crença de que a melhor forma de controle do

    comportamento do escravo fosse a violência física fica bem sintetizada, novamente, em Benci

    que, pregando que se evite as injúrias, forma infrutífera e mesmo pecaminosa de punição,

    alude Salomão, para quem "o servo não pode ser ensinado com palavras" (BENCI, 1977:

    152), apontando, em seguida, o castigo como meio correto de fazê-lo.

    Mas se a punição era indiscutivelmente física, a sua dosagem foi motivo de debate. Os

    textos jesuíticos condenam de forma unânime os excessos cometidos no castigo, advogando

    que a punição deveria ser moderada e aplicada com método, sendo sempre proporcional em

    intensidade ao delito cometido, e nessa proporcionalidade transparece, novamente, o vínculo

    entre o castigo aqui formulado e a prática punitiva europeia anterior ao século XVIII. Isso é

    notável em Rocha (1992: 98), para quem a quantidade da punição "deve-se proporcionar, e

    medir pela maioria, ou minoria da culpa" e em Benci (1977: 125) que pregava a aplicação de

    um castigo "acomodado a sua culpa", ao mesmo tempo em que recomendava, em alguns

    casos, o fracionamento da pena, isso porque, dizia ele, "pode haver nos escravos delitos tão

    graves e atrozes, que mereçam muito maior número de açoites" (BENCI, 1977: 163-164),

    cabendo, entretanto, evitar que a punição custasse a vida ou incapacitação do punido que

    personificava, ao mesmo tempo, investimento em dinheiro necessário de preservar e homem

    que cumpria "corrigir". 

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    Mas esse castigo, corporal e ajustado quantitativamente ao delito, pretende inibir

    determinado comportamento através da lembrança da dor, experimentada pelo punido, e do

    horror do espetáculo punitivo testemunhado pelo público (FOUCAULT, 2009). Esse efeito

    "pedagógico" da punição física é registrado por Rocha (1992, p. 90), segundo quem, para o

    escravo indócil, "será necessário, para o corrigir, que a repreensão vá acompanhada, e

    auxiliada também com castigo" e por Benci (1977, p. 125), que prescreve a punição corporal

    para que o escravo "se não acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo"acrescentando que essa punição serve, ainda, "para que não tornem a cometer os mesmos

    erros, pelos quais são castigados" (BENCI, 1977, p. 161), e que "os açoites são medicina da

    culpa" (BENCI, 1977, p. 164). Já a sua força exemplar transparece em Benci (1977, p. 161)

    que, comentando a eficiência dos açoites e correntes, assevera: "basta só que os veja o servo,

    para que se reduza e meta a caminho e venha à obediência e sujeição de seu senhor". Essa

    eficácia do exemplo punitivo, os jesuítas sabiam, tinha como fundamento o medo, já que,

    diria Benci (1977, p. 127 e 139), "nenhuma coisa aos homens dá mais ousadia para

    delinquirem e soltarem a rédea aos vícios, do que saberem que não hão de ser castigados seus

    delitos." e "não temendo pois o servo o castigo, como há de deixar de fazer sua vontade?" O

    medo e a dor surgem, enfim, como pilares do castigo, chegando Benci (1977, p. 139) a citar

    como um dos problemas da punição desregrada a diminuição de sua eficácia pela capacidade

    do cativo de se acostumar a ela, tanto mentalmente, pois "pouco a pouco lhe perde o medo e o

    temor", quanto fisicamente, pois sua pele calejada dos açoites dificultaria o expediente de lhe

    infligir dor.

    Acredito, porém, que um outro importante aspecto identificado por Foucault (2009)

    na prática punitiva da Europa monárquica esteja embutido nos textos: o significado da

    punição tanto de reparação do prejuízo trazido ao reino como de afirmação da força maior do

    poder soberano. Segundo Foucault (2009, p. 49), nessa concepção jurídica, o crime

    corresponderia à uma ofensa pessoal ao Rei, sendo que este, ou "aqueles a quem ele delegou

    sua força" desempenharão uma justiça que irá se apoderar do corpo do faltoso "para mostrá-lo

    marcado, vencido, quebrado." Ora, no Brasil colonial a monarquia portuguesa delegava

    inúmeras atribuições aos particulares, sendo comum, entre os poderosos, a prática da justiça

    privada, fato endossado pelos textos jesuíticos que reconhecem o direito senhorial de castigar.

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    Sendo a desobediência escrava uma afronta ao senhor e causadora de prejuízo aos negócios

    coloniais, acredito podermos interpretá-la, por extensão, como uma afronta também ao

    monarca, que delegou ao colono parcela do seu poder, e prejuízo ao reino, cuja prosperidade

    dependia da economia colonial. Neste aspecto penso ser ilustrativa uma passagem onde Benci

    (1977, p. 167), defendendo que se entregue à justiça oficial o escravo merecedor da pena

    capital, afirma que o argumento frequentemente colocado a sua prescrição é o de que isso

    "não diz bem com a nobreza e fidalguia do senhor", confirmando o entendimento dos colonosde que a aplicação da justiça aos escravos era atribuição sua.

    Procurei mostrar, em suma, como nos trabalhos jesuíticos o castigo físico, mesmo que

    complementado pela doutrinação religiosa, desponta como artifício fundamental no exercício

    de poder sobre o escravo. Essa técnica de poder se ligaria à legislação penal, ancorada na

    violência corporal, que é típica da sociedade europeia do Antigo Regime, fato visível, no caso

    português, nas frequentes penas sangrentas previstas pelas Ordenações. Sendo assim, nos

    textos jesuíticos, como na prática penal europeia que lhe era contemporânea, segundo

    Foucault (1996), o poder agia sobre o delito já acontecido, na forma da punição exemplar e

    nela esgotando-se, investindo na dor causada sobre o punido e no medo despertado na platéia,

    artifícios dos quais dependia no seu objetivo de desencorajar o crime. Textos posteriores

    versando sobre a administração dos escravos, entretanto, surgidos já no contexto da Ilustração

    portuguesa e no panorama de reforma do direito e contestação das formas físicas de punição,

    esboçarão uma ruptura com a estratégia de dominação visível nas páginas jesuíticas, buscando

    meios de controle menos violentos e mais sutis e preventivos que pretenderão manipular o

    comportamento do cativo para fins úteis aproximando-se, ainda que de forma tênue, da nova

    modalidade de controle individual inaugurada pelo século XVIII batizada por Foucault (2009:

    133) de "disciplinas".

    BIBLIOGRAFIA:

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