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1 A QUALQUER UMA Tradução MAURICIO PARONI DE CASTRO, Auxiliado por Matheus Parizi - Daramaturgia sobre o texto de LUIGI PIRANDELLO “Como você me quer – Com tu mi vuoi” conjunta com Sergio Yamamoto para o Atelier Manufactura Suspeita Cartaz na entrada do teatro. "Penso que a vida seja uma comédia muito triste, posto que trazemos em nós, sem meios de saber como, por que, ou de quem, a necessidade de enganar-nos continuamente com a espontânea criação de uma realidade (cada um a sua e jamais a mesma para todos), que aos poucos se revela vã e ilusória. Quem entendeu o jogo não consegue mais se enganar; entretanto, quem não consegue enganar a si mesmo não pode mais ter gosto nem prazer pela vida. Assim é. A minha arte é eivada de compaixão amarga por todos aqueles que se enganam; mas esta compaixão não pode não estar acompanhada de uma feroz irrisão do destino, que condena o homem ao engano. Essa é, em resumo, a razão da amargura da minha arte, e também da minha vida".

A QUALQUER UMA

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Tradução MAURICIO PARONI DE CASTRO, Cartaz na entrada do teatro. 1 A Demente Drammatis Personae Ato primeiro Jovens Bocci Bruno Pieri Greta, sua filha. Carl Salter, escritor. Inês 2

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A QUALQUER UMA

Tradução MAURICIO PARONI DE CASTRO,

Auxiliado por Matheus Parizi - Daramaturgia sobre o texto de LUIGI

PIRANDELLO “Como você me quer – Com tu mi vuoi” conjunta com Sergio

Yamamoto para o Atelier Manufactura Suspeita

Cartaz na entrada do teatro.

"Penso que a vida seja uma comédia muito triste, posto que trazemos em nós,

sem meios de saber como, por que, ou de quem, a necessidade de enganar-nos

continuamente com a espontânea criação de uma realidade (cada um a sua e

jamais a mesma para todos), que aos poucos se revela vã e ilusória. Quem

entendeu o jogo não consegue mais se enganar; entretanto, quem não

consegue enganar a si mesmo não pode mais ter gosto nem prazer pela vida.

Assim é. A minha arte é eivada de compaixão amarga por todos aqueles que

se enganam; mas esta compaixão não pode não estar acompanhada de uma

feroz irrisão do destino, que condena o homem ao engano. Essa é, em resumo,

a razão da amargura da minha arte, e também da minha vida".

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Drammatis Personae

A Qualquer Uma

Carl Salter, escritor.

Greta, sua filha.

Bruno Pieri

Bocci

TiaLena

Tia Salésia

Inês

A Demente

Jovens

O primeiro ato, em Berlim, na casa do escritor Carl Salter; os outros dois em

uma mansão em Udine; dez anos depois da I grande guerra.

Ato primeiro

Luz sobre uma cadeira de rodas, empurrada por um desconhecido. Música de

cabaré. Black-out.

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Luz sobre Bruno, ao telefone, que fala com Bocci.

Bruno - O horror que devem ter feito com ela os soldados que invadiram a

mansão... É mais de anos que dura essa loucura... É ela mesmo? Berlim?

Lógico, ela só podia ter parado aí, onde mais? É muito provável. Dançarina de

cabaré? Caída na noite... Fica na cola dela, entendeu? Eu vou imediatamente...

É, não a aborde até eu chegar aí. Mas não a perca de vista nunca. Tem muita

gente que tem o interesse de que ela seja declarada morta... Ela não voltou

justamente por ter medo de não ser mais a mesma para mim, depois do que

aconteceu... Mas é o contrário, precisamos dela viva, aqui, ela exatamente

como era antes daquele horror.

Tango. Berlim. Casa de Salter. No pátio, A Qualquer Uma dança um tango

lascivamente, em meio a alguns jovens embriagados. A Qualquer Uma tem

trinta anos, bela, bêbada, elegante. Veste um vestido quase transparente.

Salter – Ela está no meio eles, dá pra ver pela janela. Carrega um pequeno

revolver na mão.

Greta – O quê que você tem aí no bolso?

Salter (escondendo) – Nada – olha aqui, te proíbo de ficar com eles.

Greta – E o que você vai fazer?

Salter – Não sei. Isso tem que acabar.

Greta – Como acabar? Você está louco?

Salter – Vou ficar escondido. Vai até a porta pra ouvir se ela vem sozinha.

Espera. Ouço ela gritar.

Greta – Talvez esteja se despedindo.

Salter – Está todo mundo bêbado. E tem alguém que os está seguindo.

Greta – Dá aqui esse revolver!

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Salter – Não, não vou usar. Só fico com ele assim, no bolso.

Greta – É uma arma, dá aqui!

Salter – Não me aborreça! Ao está ouvindo a baderna?

O salão é invadido por jovens bêbados, com A Qualquer Uma.

A Qualquer Uma – Não, chega, chega! Não quero mais! Fora! Assim não é

mais brincadeira!

Um jovem -... Uma última dança... A saideira...

A Qualquer Uma – Solta! Solta!

Bocci – Chega! Chega! Ela está pedindo!

Salter – Fora! Fora da minha casa!

Um jovem – Vamos beber mais! ... quero violência!

Outro jovem – Foi ela que convidou a gente!... Todo mundo pelado!

Greta – Isso é uma agressão! (abraçando A Qualquer Uma) Vem, vem!

A Qualquer Uma (entrando no salão) – Agora só me faltava o teu abraço!

Salter – Vou por vocês pra fora a tiros!

Bocci – Fora! Fora! Fora!

Jovem – Elma, quero a tua mãozinha!

Greta – Que nojo!

Fecham a porta.

Salter – O que é que eles queriam?

A Qualquer Uma – O de sempre... Safados... Me fizeram beber muito...

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Salter – Outra baixaria. Os vizinhos vão reclamar de novo!

A Qualquer Uma – Mande-me embora, já te disse!

Greta – Não, Elma!

A Qualquer Uma – Já que é baixaria...

Salter – Basta não sair mais com eles!

Pausa.

A Qualquer Uma – Pois eu vou é sair com eles. Olha só, vou atrás deles!

Bocci – Senhora Lú!

A Qualquer Uma – Mas quem é o senhor, afinal? Pode-se saber?

Salter – Isso! Por que o senhor seguia todo mundo, que eu vi?

A Qualquer Uma – Há varias noites, como um guarda-costas.

Greta – Você nem sabe quem é esse sujeito?

Bocci – É lógico que a senhora sabe muito bem quem sou, senhora Lú.

Greta – Lú?

A Qualquer Uma – Sim, exatamente, assim: “senhora Lú, senhora Lú”,

seguindo e chamando, sempre atrás de mim.

Bocci – E a senhora sempre se voltando, porque é a senhora Lú!

Greta – Mas...

A Qualquer Uma – Naturalmente, ouvindo chamar a gente se volta...De noite,

e ainda mais com essa cara de tira... Tira particular?

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Bocci – Sim, particular. A senhora interpreta... não sei que papel aqui, mas é a

senhora Lú.

Greta – Ó, mas isso é um absurdo, de verdade!

A Qualquer Uma – E ele não tem a menor dúvida, dá para acreditar?

Bocci – Ponho as minhas mãos no fogo.

Salter – O senhor tem mãos de reserva em casa?

Bocci – Não senhor, tenho só estas e as aposto.

A Qualquer Uma – Que eu seja a senhora Lú?

Bocci – Lúcia Pieri.

A Qualquer Uma – O quê? Não ouvi!

Bocci (desafiando) – Eu disse Lúcia Pieri. E o marido da senhora, Bruno Pieri,

está aqui!

A Qualquer Uma (senta-se estarrecida) – Meu... marido?

Bocci – Sim senhora. Bruno está aqui em Berlim.

A Qualquer Uma – O que é que você está dizendo? Aqui, onde?

Salter – Ele está jogando verde.

Bocci – O seu marido está em Berlim, chamado por mim.

A Qualquer Uma – O senhor é louco!

Bocci – Ele chegou hoje de noite da Itália.

Salter – O marido dela morreu há quatro anos!

A Qualquer Uma (involuntariamente) – Isso não é verdade!

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Bocci – Pois ele está logo ali, no Hotel Éden.

A Qualquer Uma – O senhor pare com essa brincadeira de “meu marido”! Eu

não tenho marido! Quem foi que o senhor chamou?

Salter (para A Qualquer Uma) – Então ele ainda está vivo?

Bocci – Está, e aqui perto! Aqui está o telefone...

(A Qualquer Uma gargalha)

Salter – Que estória é essa?

A Qualquer Uma – Que agora tenho um marido logo ali, no Éden, não ouviu?

E que posso chamá-lo por telefone quando quiser.

Salter – Ouça meu senhor, não é o momento, nem para mim, nem para ela, de

continuar com essa comédia!

A Qualquer Uma (a Salter, como querendo brincar mas ao mesmo tempo

desafiar) – Espera aí...

Pausa.

...E se eu fosse ela de verdade?...

Salter – Ela quem?

A Qualquer Uma – Essa senhora Lú, que este homem reconhece com tanta

segurança como sendo eu. O que você teria a dizer?

Salter – Que é uma comédia de mau gosto.

A Qualquer Uma – E a tua, é o quê?

Salter – A minha que?

A Qualquer Uma – A tua comédia. Por acaso você me conhece mais do que

ele?

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Salter – Eu te conheço mais do que você mesma.

A Qualquer Uma – Então, fique quieto, que eu não quero me conhecer tão

bem assim!

Salter – Muito cômodo não ser responsável pelo que você faz!

A Qualquer Uma – Ao contrário, querido: indispensável, para poder suportar

aquilo que os outros me fazem.

Bocci – Lindo!

Salter – Como lindo?

Bocci – O jeito que ela respondeu, depois de tudo o que a vida lhe fez.

A Qualquer Uma – Imagine se eu quisesse me conhecer um pouco, ser

“alguém” também para mim. (Para Salter). Ser esta senhora Lú, por exemplo,

para esse homem. (Para Bocci). O senhor me diga se agora eu poderia

suportar viver aqui com esse sujeito. (a Greta) Greta, diz você como eu me

chamo.

Greta – Elma.

A Qualquer Uma – Elma, entendeu? Nome árabe. Sabe o que significa?

água... água... Mas aqui me fazem beber muito vinho. Meu Deus, mais de duas

garrafas... (a Greta) Se você me desse alguma coisa para comer... Minha

cabeça tá rodando...

Greta – É pra já. (sai)

Salter – O senhor faça o favor de entender que errou e de ir embora já.

A Qualquer Uma – Deixa ele, é um conhecido meu...

Bocci – Senhora, seu marido...

A Qualquer Uma – Não telefone ao meu marido, isso não.

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Salter (violentíssimo) - Chega com esse marido! Você me disse que ele

morreu faz quatro anos.

Bocci – A senhora mentiu.

A Qualquer Uma – Obrigada por essa afirmação.

Salter – Você mentiu.

A Qualquer Uma – Menti, sim! Eu agradeço ao senhor pela satisfação de ter

afirmado tão fortemente o meu direito a mentir, dada a vida que eu levo. (a

Salter) Você quer me cobrar à conta das minhas mentiras? Então apresenta as

contas das tuas.

Salter – Eu nunca te menti.

A Qualquer Uma – Você? Mas se não fazemos outra coisa!

Salter – Nunca menti pra você.

A Qualquer Uma – Você tem o desplante de me dizer isso?

Salter – Chega!

A Qualquer Uma – Você mente pra você mesmo, com essa sua sinceridade

nojenta, porque nem é verdade que você é tão mau assim. Console-se,

ninguém mente totalmente. Quatro anos atrás, querido, pode ter morrido

“alguém”, talvez um meu marido; e alguma verdade, portanto, pode existir,

como em todas as estórias que as pessoas contam.

(a Bocci) Mas isso não quer dizer que meu marido esteja aqui, vivo – pelo

menos para mim. Era, no máximo, o marido de alguém que agora não existe

mais! Na verdade, é um pobre viúvo. Quer dizer, alguém morto enquanto

marido. Conte-nos a estória, já que o senhor veio até aqui, pode ser

interessante. Assim vamos poder conhecer alguma verdade sobre essa senhora

Lú, que seria eu. (a Salter) Escuta, escuta.

Bocci – Deixe-me falar a sós com a senhora.

A Qualquer Uma – A sós?! Aqui, diante dele, eu quero que ele saiba, que não

existe mais nem segredo nem pudor.

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Salter – Como os animais.

A Qualquer Uma – Isso mesmo, só que os animais pelo menos são naturais.

Salter (irônico) – Sabedoria do instinto.

A Qualquer Uma – Enquanto na humanidade o medo, caro senhor – natureza é

loucura: triste até a morte, e também muito nojenta. Ainda bem que a razão

serve de camisa de força. (aceita um sanduíche de Greta) Ah, bem, você

achou? Desculpe, estou com uma fome...

Greta – Olha, a tua manga...

A Qualquer Uma – Rasgada? Devem ter sido aqueles cachorros.

Greta – Acho que só descosturada.

A Qualquer Uma – Sabe que hoje consegui não quebrar a garrafa. Acho que

fiquei bem longe deles. (com elegância, tira os sapatos e joga sua estola aos

pés de Bocci) Dá licença? (meio dançando e cantando) Tairirararari...

tairirararati... Viu? Ficava assim, meio longe. (retoma a estola e depois

devolve a Bocci) Obrigado. A senhora Lú, desculpe se isso ofende o marido,

dançar desse jeito, sabe?

Bocci – Mais a senhora faz assim, mais eu me convenço que a senhora é a Lú.

Como é que a senhora quer que eu não a reconheça?

A Qualquer Uma – Eu? E mudei?

Bocci – Mudou sim, como todos mudam; mas bem pouco, com tudo aquilo

que deve ter passado.

A Qualquer Uma – Sabe que o senhor me interessa muito? É sim, passei de

tudo foi agora, com esses dois. Se soubesse que coisas!

Salter – Chega! Você não tem vergonha?

Greta – Ela tem razão, pobre criatura. (vai abraçá-la)

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A Qualquer Uma (saindo do abraço) – Greta, por favor!

Salter – Deixa ela em paz! E chega de bancar a boba com esse pijama. Vai

dormir!

Greta – Você é quem devia ter vergonha, não ela.

A Qualquer Uma – Não vamos começar de novo.

Salter – Já disse, vai , vai embora!

A Qualquer Uma – Sim, sim, vai. Vai querida, vai me preparar outro

sanduíche, tá, querida?

Greta – Você vem comer lá?

A Qualquer Uma – Só se não tentar me beijar. Você sabe que eu tenho nojo

disso.

Salter ri ferozmente.

Greta – Canalha!

A Qualquer Uma – Pára de rir! Só podia acontecer comigo: uma tem ciúme do

outro.

Greta (suplicante) – Elma, não fala assim!

A Qualquer Uma – Ah querida, Oxalá não fosse verdade. Mas olha pra ele.

Salter – Olha que eu não vou me controlar mais.

A Qualquer Uma (a Bocci, cruel) – Não lhe dê importância... Muito bem, eu

sou a amante desse sujeito aqui. A sua mulher não quer dar o divórcio –

mandou a filha do ex-casal pra afastar o pai de mim. Mas a filha também fica

atrás de mim. (para Greta) Sim querida, pior que ele, me desculpa dizer, ele é

velho, mas pelo menos é homem.

Greta (denuncia o pai) – Te aviso que o revólver no bolso dele é pra você.

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A Qualquer Uma – Revólver?

Salter não responde. Pega o revolver e coloca em cima da mesa do lado d A

Qualquer Uma.

Salter – Está aqui, à disposição.

A Qualquer Uma – Obrigado. Carregado?

Salter – Carregado.

A Qualquer Uma (pegando a arma) – Pra mim ou pra você?

Salter – Para quem você quiser.

A Qualquer Uma (colocando a pistola na frente de Bocci) – Viu? Tragédia!

Salter – Pare de falar com estranhos. Fale comigo. Fixamos a decisão pra esta

noite. Fingindo que esqueceu? Saiba que eu não.

A Qualquer Uma – Decisão assim? (olha pro revolver)

Salter – Estou pronto para tudo.

A Qualquer Uma pega a arma e aponta para Salter.

A Qualquer Uma – Quer que eu te mate? Saiba que não me custa nada.

(abaixa a arma) Estou tão cansada de tudo... Mas te dou – olha: um beijo na

testa. (beija-o na testa) Diz pelo menos obrigado... (entrega-lhe a arma) Toma

querido; mate-me você, se quiser.

Greta – Olha que ele te mata mesmo!

A Qualquer Uma – Pode me matar. Quando não agüentamos mais... se pelo

menos ele tivesse coragem pra isso... De verdade, meu senhor, não agüento

mais... Estou louca de fome; peço um pedaço de pão, e o que me oferecem é

um revolver; e o senhor me chama de “senhora Lú”. É realmente engraçada

essa noite.

Salter (a Bocci) – O senhor está intimado a sair da minha casa.

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Bocci – Não saio, porque estou aqui pela senhora e não pelo senhor.

Salter – A senhora está na minha casa, é minha hóspede.

A Qualquer Uma – È verdade. Mas posso muito bem convidar a ficar alguém

que diz que me conhece.

Bocci – Além disso, o senhor trata os hospedes com o revolver na mão?

Salter (parA Qualquer Uma) – Não nesse momento em que temos que nos

explicar muitas coisas. (a Bocci) O senhor entendeu que deve ir embora?

Bocci – Sim, mas com a senhora.

A Qualquer Uma – Muito bem: vou com o senhor.

Salter – Você não sai daqui.

A Qualquer Uma - Você pode me impedir disso?

Salter – Posso impedir sim.

A Qualquer Uma – À força?

Salter – Sim, se você quiser sair com o primeiro que aparece.

Bocci – Eu não sou o primeiro que aparece.

A Qualquer Uma – Solte-me!

Salter – Não!

A Qualquer Uma – Quero ir embora com ele.

Bocci – Não seja violento com a senhora.

Salter – O senhor aqui é um intruso. Ela não o conhece realmente.

Bocci - Não que ela não me conheça, não quer me conhecer!

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A Qualquer Uma (numa resolução extrema) – Eu o conheço! É um amigo do

meu marido. E agora me larga!

Salter – Mas se até agora você estava rindo de uma comédia...

A Qualquer Uma – Não queria ser reconhecida.

Bocci – A senhora acha que o seu marido não saiba.

A Qualquer Uma – Ele não pode saber, ele não pode saber.

Bocci – Ele sabe de tudo, tinha testemunhas lá.

A Qualquer Uma – Lá aonde? Quando?

Bocci – Na mansão, dez anos atrás, onde infelizmente...

Salter – Mansão? Fala, fala, que mansão?

A Qualquer Uma – A minha. (a Bocci) Diga quais testemunhas. Joga na cara

desse covarde que se aproveita do estado desesperado em que me encontrou

aqui.

Bocci – O jardineiro ouviu os seus gritos.

A Qualquer Uma – Sim... por isso consegui ficar viva.

Bocci – Como a senhora poderia ter se defendido sozinha? Vimos o horror das

ruínas das nossas terras invadidas...

A Qualquer Uma – Ah, a invasão... (a Salter, triunfante) Viu, viu?

Salter – Sim, você me falou da invasão...

A Qualquer Uma – Eu sou Veneta!

Bocci – Bruno Pieri, oficial, seu marido, voltou da guerra. E naquela mansão

reduzida a um monte de escombros, não encontrou mais qualquer traço de sua

mulher, Lúcia Pieri, com quem se casara um ano antes.

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A Qualquer Uma – Bruno...Ele me chamava de Lú ... Me chamava de Lú...

Bocci – Ele deduziu o que os soldados inimigos fizeram com ela. Ele

enlouqueceu, senhora, enlouqueceu. A senhora não pode nem imaginar as

pesquisas que ele fez nos primeiros anos, supondo que a ralé do exército

inimigo, retirando-se em fuga, a tivesse raptado.

A Qualquer Uma – Rapto, rapto.

Salter – Espera, eu devo ter lido essa estória...

Bocci – O senhor deve ter lido nos jornais.

Salter – Sim, anos atrás.

Bocci – O marido a mandou publicar.

A Qualquer Uma – Eu, certamente, não a li.

Salter (para A Qualquer Uma) – A tua é toda uma impostura. (a Bocci) Sim...

mas parece que a mulher em questão foi achada, louca e sem memória, numa

cadeira de rodas, em Viena, Um meu amigo psiquiatra me confirmou

isso.(ParA Qualquer Uma) Você está misturando o teu caso com essa estória e

quer fazer essa estória passar por tua?

Bocci – É ela a senhora Lú.

Salter (com mais desprezo ainda) – Você?

A Qualquer Uma – É ele que afirma isso. Ele, que me conhece há muito

tempo, enquanto você me conhece só há poucos meses.

Pausa.

Salter – Acabei com o meu casamento por você.

A Qualquer Uma – Foi a tua loucura que acabou com o teu casamento.

Salter – Mas quem foi que me fez perder a cabeça?

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A Qualquer Uma – Você é que quis perder a tua ficando do meu lado.

Salter – ...Pelas tuas transgressões.

A Qualquer Uma – Ah, meu querido, essa é a profissão de mulher, que a

minha vida me impôs. Você não acabou de ouvir o que fizeram comigo?

Salter – Pare de uma vez por todas de se valer do engano com o qual este

senhor se obstina a persistir.

Bocci – Eu não me engano por nada.

A Qualquer Uma – Imagine se eu não aproveito disso. (a Bocci) O senhor é

um presente dos céus para mim. Por favor, fale de meu passado. Eu era tanto

uma outra que parece que estou sonhando.

Salter – Olha que você não pode se livrar de mim dessa maneira... Depois de

me fisgar como me fisgou.

A Qualquer Uma – Eu, fisgar?

Salter – É, você!

A Qualquer Uma – Fisgar? Você devia ter se visto melhor. Num certo sentido

é verdade, mas quem me enganou foi você.

Salter – Eu?

A Qualquer Uma – Enganou, sim, porque achei que você era só um bufão,

mais você era mais que isso; você virou um palhaço insuportável.

Insuportável.

Salter – Você não tem paciência com nada.

A Qualquer Uma – Você tem coragem de dizer isso? Eu tive paciência sim,

muita, e tua filha é testemunha. (a Bocci) Sabe, um escritor descolado que...

Salter – Eu te proíbo de falar de mim.

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A Qualquer Uma – Então porque acabou de por na berlinda o teu casamento

destruído?

Salter – Pra que você tenha um mínimo receio de desfazer-se de mim dessa

forma.

A Qualquer Uma – Medo você quer dizer.

Salter – É, medo.

A Qualquer Uma – Eu nunca tive esse medo.

Salter – Deveria ter.

A Qualquer Uma – Porque você tem um revolver no bolso? Olha, vamos

tentar esta estória: eu vou embora com este homem. Lú vai sair por aí, como

quando era uma menina inocente. Aí você pega o revolver e me mata, de

brincadeira. Está bom assim?

Salter – Não me inspire.

A Qualquer Uma – Eu aceito. (pega no braço de Bocci) Vamos.

Salter pega o revolver.

Bocci (pondo-se no meio) – Não, assim não, minha senhora.

A Qualquer Uma – Eu já estive no a guerra, posso morrer muito melhor agora!

Além disso, ele devia se matar também... só que não tem coragem.

Salter – Você sabe muito bem que eu tenho.

A Qualquer Uma (a Bocci) – Eu posso é pisar nesse cara... naquele canto, ali,

com os pés, feito pano de chão.

Salter – Eu não sou esse comediante que você acha que eu sou palhaço.

A Qualquer Uma - Que cara de pau, não é comediante... Diz, Greta, se não é

verdade que ele se separou da tua mãe porque ela sempre jogava na cara dele

não ser sério o suficiente pra ser um escritor de verdade?

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Greta – É verdade.

A Qualquer Uma – Você nega que se comportava como um comediante

quando eu te conheci?

Salter – Era para esconder aqui dentro o tormento de uma vida impossível.

A Qualquer Uma – E sou eu que tem que fazer com que a tua vida seja

possível? Eu, com essa tua filha que... Não me faça falar.

Greta – Elma, não! Por favor!

A Qualquer Uma – Sai! Eu vou dizer!

Greta – O quê?

A Qualquer Uma – O que vocês me fazem.

Greta – Eu?

A Qualquer Uma – Você, todos, não agüento mais, isso aqui é vida de louco.

Eu estou cheia até o pescoço, com o estomago embrulhado, vinho, loucos que

riem, o inferno à solta, espelhos, copos, garrafas, corridas, vertigem, baladas,

quem tem convulsão, quem dança, quem se amontoa na orgia, tudo o que é

vício junto, longe de qualquer lei da natureza; não tem mais nada além da

obscenidade raivosa de não poder se satisfazer nunca.

(indicando Greta) Olha se aquilo ali é cara de ser humano? Olha pra ele lá, lá!,

com aquela cara de morto, aquele monte de vício verminado nos olhos!, olha

pra mim, vestida assim, pro senhor que quer parecer um detetive, pra esta

casa, pra qualquer Lugar, pra toda esta cidade, a loucura, a loucura!

(indicando Greta de novo) Essa aqui de noite, não sei mais nada, eu estava na

balada, vai saber que cena foi com o pai dela! Ela tem um arranhão aqui, da

testa até a bochecha (mostra seu rosto a Bocci), olha bem, a cicatriz ainda está

fresca.

Salter – Não fui eu!

Greta – Sou eu que faço isso em mim mesma, ela não acredita.

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A Qualquer Uma – Eu não sei de nada, eu não estava... Eu chego bêbada,

lógico, derrubo garrafas nos pés... depois bebo mais, aí danço (mostra a

estola). Viu?, é a minha dança mais famosa, lógico, fico bêbada toda noite,

não sei nunca quem me leva pra cama.

Greta (se atira nela) – Elma, eu te imploro, chega!

A Qualquer Uma (livrando-se dela) – Deixa eu falar! – ele tinha saído...

Greta – Mas o que você vai dizer? Está louca?

A Qualquer Uma – As loucas tem o privilegio de poder gritar a todo mundo

certas coisas. (Salter sorri) Olha só, ele ri... Como riu no dia seguinte quando

quis saber... Tudo é nada, aqui.(indica ao pai a filha com o rosto escondido)

Mas olha aí, isso é... nada.

Salter – É remorso de ter traído quem a mandou aqui: a mãe dela.

Greta – Não está certo, não está certo!

A Qualquer Uma – É meu direito falar e essa aqui grita que não está certo: eu

tenho que fugir de todo mundo! De todo mundo, de mim mesma, fora! Fora,

fora! Não posso mais continuar com isso, com esta...

Bocci – Compete à senhora se reapropriar da própria vida.

A Qualquer Uma – Da minha própria vida? Qual vida?

Salter (com ironia feroz) – A vida da senhora Lú, com seu marido e sua

mansão, já se esqueceu?

A Qualquer Uma – Sim, já me esqueci! (a Bocci, com maneira contrária)

Aquele homem, no Veneto, ainda procura sua mulher, mesmo depois de dez

anos?

Salter – A sua Lú?...

Bocci – Sim, senhora, (a Salter) a sua Lú. (para A Qualquer Uma) E tem

muito herdeiro que tem interesse em que ela seja tida como morta.

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Salter – Quem? Quem tem esse interesse? Você devia saber. Fala, fala!

A Qualquer Uma – Eu não sei de nada! Estou justamente perguntando a ele.

Como é que ele pode acreditar que a mulher está viva se nunca voltou pra ele?

Bocci – Ele supõe que depois de tudo que aconteceu a ela...

A Qualquer Uma -...aquela que ele está procurando não pode mais existir

como antes!

Bocci - Talvez não tenha voltado justamente por isso.

A Qualquer Uma - Então ele ainda acredita que ela possa vir ser a mesma?

Bocci – Porque não, se ela quiser?

A Qualquer Uma – Depois de dez anos, depois de tudo o que lhe aconteceu, a

mesma? É louco? E a prova de que isso é impossível é que ela não voltou

mais.

Bocci – Mas eu lhe digo, se a senhora, agora, quiser...

A Qualquer Uma – Se eu quero? Eu quero fugir de mim mesma!... Não ter

mais lembrança de nada, de nada, esvaziar-me de toda a minha vida. Olha para

este corpo, somente este corpo, que o senhor diz que é o corpo dela, parece

com o dela? Eu não me sinto mais, eu não me quero mais, eu não conheço

mais nada, eu não me conheço mais, meu coração bate e eu não sei, eu respiro

e eu não sei, estou viva e não eu sei... Um corpo, um corpo sem nome, à espera

de alguém que o tome!

Pausa.

Muito bem, quero! Sim, se ele me recriar, se ele der de novo uma alma a este

corpo, que é o corpo da sua Lú... então, que o tome, que o tome! E que ponha

dentro dele as recordações dela, as suas, de uma vida linda, linda, uma vida

nova... Eu sou uma desesperada!

Bocci – Vou chamá-lo imediatamente!

Salter – O senhor não vai chamar ninguém à minha casa.

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A Qualquer Uma – Eu vou chamar.

Salter – Eu chamo então. E veremos.(sai)

A Qualquer Uma – Chama, quem é que vai chamar?

Bocci – O que é que ele vai fazer?

Greta (que saiu também para ver o que o pai fazia volta e grita horrorizada) –

Não! (e volta aterrorizada; ouve-se um disparo de revolver) Papai! Papai! Meu

Deus!

Bocci (sai) – está caído!

A Qualquer Uma – Matou-se!

Vão ao corpo de Salter, ferido no peito.

Greta – No Coração, no coração!

Bocci – Não morreu. O coração está ileso.

Greta – Ah, sangue na boca!

Bocci - ... raspou o pulmão.

A Qualquer Uma – Levanta a cabeça dele.

Greta - Devagar! Sou eu, papai, papai, devagar, devagar... é a tua Greta

papai... Aqui, aqui, isso, o travesseiro...

A Qualquer Uma – Precisa chamar um médico, rápido

Bocci – Eu vou.

Greta – Fala, fala, o que você quer falar, papai? (para A Qualquer Uma) Está

olhando para você.

A Qualquer Uma – Não é grave... Rápido, vamos chamar um médico...

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Greta (a Bocci) – Tem um aqui no prédio.

A Qualquer Uma – Mora no andar de baixo.

A Qualquer Uma – Eu vou chamar, precisa ser atendido imediatamente.

Greta - É melhor ir para um hospital já.

Bocci – Vou providenciar o transporte.

Greta – Sim, imediatamente. Chama uma ambulância.

Bocci – A senhora venha comigo agora.

Greta – Elma, Elma, vem cá!

A Qualquer Uma – Não, onde você quer que eu vá agora?

Bocci – Venha, senhora Lú...

Greta - Elma!

A Qualquer Uma – Tá ouvindo? Me chama de Elma.

Bocci – Vou chamar o seu marido, além da ambulância. (chama uma

ambulância, e Bruno, em desparte) Senhor Bruno, corra aqui, com o carro,

corra, não dá tempo de lhe explicar nada agora.

Greta (ParA Qualquer Uma) – Você nem pense em ir embora.

Bocci – Ele a ameaçou a noite inteira.

Greta – Justamente por que ela ameaçava ir embora.

Greta – Elma, ele está chamando, ele precisa de você agora.

A Qualquer Uma (A Bruno) Vai, vai. (a Greta) Eu já vou, vou me livrar

daquele homem...

Page 23: A QUALQUER UMA

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Greta (incerta) – Você vai embora...

A Qualquer Uma – Não, já volto, já volto... Vai, não deixa ele sozinho. (Greta

sai. Sozinha, A Qualquer Uma fecha os olhos) Um corpo sem nome! sem

nome!

Luz cai em resistência, enquanto volta o tango e todos repetem “Um corpo

sem nome! Sem nome!”, ao se trocar, cada um assumindo a personagem que

vai interpretar nas cenas seguintes. Quando o palco está completamente

escuro, sobe a música tecno. Sobe a Luz, e um strip tease dos atores se

desenrola, que revela os homens vestidos de Lú, como no retrato (de Lú, um

falso De Chirico com o rosto de manequim de alfaiate), que foi colocado no

fundo do palco, enquanto as mulheres interpretarão as duas tias. A atmosfera

é de uma balada selvagem. Aos poucos, a música perde volume, até ficar

distante, como uma daquelas discos de interior, ao longe da mansão. As tias

jogam gamão. Mas têm óculos espessíssimos, reconhecem muito mal o que

vêem. Uma trapaceia a outra.

Page 24: A QUALQUER UMA

24

ATO SEGUNDO

Tia Salésia – Já te explico como fazer.

Tia Lena – Não explique nada.

Tia Salésia – Eu quero explicar.

Tia Lena – Não enche!

Pausa. As duas limpam os seus óculos. Esse será um tic recorrente nelas.

Hoje vai acabar tudo. Os acordos para a escritura e a herança vão ser

acertados. Ainda bem que Bruno teimou mesmo que a nossa Lú não estivesse

morta.

Tia Salésia – Você se esquece que Bruno, sem vínculo com essa sua Lú não

seria mais nem nosso parente, enquanto Inês ainda continuaria como nossa

sobrinha.

Tia Lena – Ansiosa para que a irmã fosse declarada morta e herdar tudo.

Pausa.

Olha aí a nossa Lú!

Entra A Qualquer Uma vestida exatamente como no retrato colocado na sala.

As duas limpam os óculos.

Tia Salésia – Exatamente igual ao retrato!

A Qualquer Uma – Vim me comparar. Tenho que atuar esta comédia.

Tia Lena – Comédia?

A Qualquer Uma – Morta, depois de dez anos... Nunca se sabe... é melhor

começar desde o início... Quem vem além da minha... A minha irmã Inês?

Page 25: A QUALQUER UMA

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Tia Salésia – Acho que vem um advogado, toma cuidado.

Tia Lena – Cuidado com o quê? Ela o conhece, não como cunhado... Era um

amigo de Bruno... E não era advogado, era detetive.

A Qualquer Uma – Iiii, o Bruno tem tantos amigos. Não sou obrigada a

conhecê-los todos...

A Qualquer Uma – É o Bocci.

Tia Salésia – Não sei se está na cidade.

A Qualquer Uma – Está, está. Eu disse a Bruno para trazê-lo. Sou eu quem

quer o Bocci. (se compara ao retrato) Perfeito, não é mesmo?

Tia Salésia (Limpa as lentes) – Parece saída dele.

Tia Lena (Limpas as lentes) – Se bem que eu nunca achei que aquele retrato

parecesse muito com você.

A Qualquer Uma – Não? Mas Bruno me disse que foi feito a partir duma

fotografia. Com todas as indicações dadas por ele ao pintor.

Tia Salésia – Bom, agora podemos ver se realmente parece com você (Limpa

os óculos). Exatamente, tal e qual! Olha aí!

Tia Lena – Os olhos... (Encara A Qualquer Uma. Limpa as lentes) Olha aí, os

seus verdadeiros olhos, como sempre eu vi: são estes – e não aqueles ali

(Aponta para o retrato).

A Qualquer Uma – Você sempre viu esses olhos em Lú? (Apontando para os

próprios olhos)

Tia Lena – Sim, estes!

Tia Salésia – E não são os mesmos?

Tia Lena – Que os mesmos! Estes são os mesmos, não aqueles ali, meio

verdes.

Page 26: A QUALQUER UMA

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Tia Salésia – Que verdes! São azuis!

A Qualquer Uma (a Tia Lena) – verdes para você (A Tia Salésia), azuis para

você. E cinzas, atrás de cílios pretos, para o Bruno. (olha para o retrato) Além

disso, tem a obra do pintor “os verdadeiros olhos de Lú”.

Tia Salésia (Limpa as lentes) – Eu não estou errada. Ele era um amigo fraterno

do teu pai... Você tem os mesmos olhos que ele.

Tia Lena (Limpa as lentes) – A sua irmã Inês é que tem os olhos do pai. Você

tem os olhos da tua mãe, acredite. Cresci junto com a tua mãe, primas

homônimas, eu e a pobre Tia Lena, imagina se eu não sei.

Tia Salésia ri.

Tia Lena – Ri, ri...

A Qualquer Uma – Por que está rindo?

Tia Lena – Porque os rapazes quando nos viam juntas, nós, as duas primas...

Tia Salésia -... chamavam-nas “a Tia Lena bonita e a Tia Lena feia”.

Silêncio.

Tia Lena – Você é o retrato da tua mãe. Ela era exatamente como você quando

morreu.

Tia Salésia - Era totalmente outra.

Tia Lena – Ufa!

A Qualquer Uma – É exatamente esta a comédia que eu vou interpretar: como

você me vê e como me vê a Tia Lena, e como pudesse, depois de dez anos,

reconhecer uma desaparecida depois que um inteiro regimento inimigo passou

por cima dela. Mas antes preciso que vocês me expliquem qual é a verdadeira

situação de Bruno em relação a estas terras e a esta mansão.

Tia Salésia – Situação? Você não sabe?

Page 27: A QUALQUER UMA

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A Qualquer Uma – Não, não sei. Falou de direitos negados... Mas estava tão

inseguro.

Tia Lena – A tua volta...

Tia Salésia - ... acaba de uma vez com qualquer litígio.

A Qualquer Uma - A declaração de morte ainda não foi anulada?

Tia Lena – Saiba que há muitos interesses no meio disso...

A Qualquer Uma – Mas não me foi dito nada!

Tia Lena – Teus interesses também...

A Qualquer Uma - Não tenho nenhum interesse!

Tia Salésia – Como não?

A Qualquer Uma – Ah não, vou logo avisando, que se tem interesse no meio

eu não me presto a isso. Por que se eu tivesse...

Pausa.

... Seria indigno, indigno. Vou trocar de roupa.

Tia Lena – Mas, já? Espere o acordo.

A Qualquer Uma – A declaração de morte está correta. Correta!

Tia Salésia – Com, correta?

A Qualquer Uma – Correta. Eu disse isso ao Bruno e ao Bocci! Vocês

esperaram a Lú por dez anos. Vocês a viram voltar? Não! E por qual razão ela

não voltou mais? Precisa de tanta imaginação? Morta! Morta, ou como se

estivesse morta para a vida que ela viveu aqui antes. Morta para cada

lembrança daquela vida que não quis mais levar, mesmo se estivesse viva.

Tia Salésia – Mas se agora você voltou...

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A Qualquer Uma – Sem saber desses interesses, e sem saber que seria

obrigada a representar este papel repugnante! Eu voltei pelo Bruno! Eu fiz isso

somente pelo Bruno! Deixei bem claro que, vindo pra cá, ninguém deveria

pretender ser reconhecido por mim; nenhuma lembrança, nem de antes nem de

depois.

(Troca de atores)

No começo, eu não quis nem ver vocês, que já viviam aqui com o Bruno.

Tia Salésia – De fato, ficamos aqui mais de três meses esperando para te ver.

A Qualquer Uma – Ele tinha que ter me dito, ele tinha que ter me dito! Eu não

teria vindo.

Tia Salésia – Você pode imaginar o que ficou desta mansão e estas terras?

Ruína! Tudo devastado.

Tia Lena – Enquanto tudo estava destruído e devastado, entendeu, ninguém

pensou em declarar a tua morte. O apetite nos parentes nasceu depois que

Bruno reconstruiu tudo com a reparação de guerra.

Pausa.

A Qualquer Uma – Sem o meu reaparecimento Bruno teria perdido tudo?

Tia Salésia – Tudo.

A Qualquer Uma – E Bocci sabia de tudo isso quando veio a Berlim me

pegar?

Tia Lena – Como quer que ele não soubesse? Foi um escândalo.

Tia Salésia – Não se falou em outra coisa por aqui.

Tia Lena – Mas agora se acabou tudo, chega! Não falemos mais.

A Qualquer Uma – Não, com o que quer que eu me incomode?

Page 29: A QUALQUER UMA

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Tia Lena – Veja: tudo formalidade. Você figurava como morta e agora precisa

que você figure como viva.

A Qualquer Uma – Eu não sabia de nada disso.

Tia Lena – Você tem que pensar que ele não quis disputa com a tua irmã.

Tia Salésia - Você tem que considerar a curiosidade que se reacendeu com o

teu reaparecimento, depois de dez anos. Aquilo que se pensa e aquilo que se

diz...

A Qualquer Uma – Imagino, imagino.

Tia Salésia – Dizem de tudo.

A Qualquer Uma - E dizem também que ele passou por cima de mim mesma

porque eu era útil ficando aqui?

Tia Lena – Quem imagina uma coisa dessas? Ninguém.

A Qualquer Uma – Diga a verdade Tia Salésia, dizem isso?

Tia Salésia - Sim, dizem.

A Qualquer Uma – Então posso imaginar as suspeitas que recaem sobre mim.

Ah, tudo sujo, tudo encardido, uma intriga imunda de interesses.

((Tia Lena, enfezada, o encara, sem os óculos)) – Bruno não tem culpa.

A Qualquer Uma – Penso o que quiser, a partir do que Bruno fez.

Silêncio.

(troca de atores)

Tia Salésia (Limpa as lentes) – Chegou gente.

Tia Lena (Limpa as lentes) – Já?

Tia Salésia - É Bruno.

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Tia Lena – Ah, parecia...

Tia Salésia (Limpa os óculos) – O Bocci está com ele.

A Qualquer Uma – O que é que eles estão fazendo?

Tia Lena (Limpa os óculos) – Bruno está lendo uma carta.

Tia Salésia (Limpa os óculos) – Bocci está indo embora com a carta.

A Qualquer Uma – Não, Tia Salésia corre, chame-o, eu quero que ele venha

aqui!

Tia Salésia (saindo pro jardim) – Bruno? Bocci? Aqui, aqui! O senhor também

Bocci. Aqui!

Entram Bruno e Bocci.

Bruno – O que é que você quer de Bocci agora? Deixa ele ir embora, por

favor.

Bocci – Boa noite senhora. Sim, é melhor que eu vá embora logo.

Bruno – Isso mesmo, e impeça a todo custo...

A Qualquer Uma – O que?

Bocci – Chegou outra carta.

A Qualquer Uma – Salter?

Bocci – Senhora, ele se aproveita de não ter morrido e quer se vingar.

A Qualquer Uma – O que é que você está dizendo?

Bruno – Vai, vai, não perca tempo!

A Qualquer Uma – Espera, eu quero saber. Dá essa carta!

Page 31: A QUALQUER UMA

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Bruno – Mas a carta não é nada, se fosse somente isso... Por favor, Tia Lena, e

você também Tia Salésia.

Elas saem.

A Qualquer Uma – Por quê? O que é que há?

Bruno – Logo hoje, logo hoje... isso virou uma perseguição.

A Qualquer Uma – O que foi que ele escreveu?

Bruno – Escreveu? Mais que escreveu, ele está vindo.

A Qualquer Uma – Aqui?

Bruno – É, aqui. E não está sozinho.

A Qualquer Uma – Com a filha?

Bruno – Que filha... Desmascarar você, diz ele!

A Qualquer Uma – Desmascarar-me?

Bocci – Aquela ameaça que ele fez...

A Qualquer Uma – Que ameaça? Não me lembro.

Bocci – Quando disse de ter lido nos jornais...

A Qualquer Uma – Ah, a estória...

Bocci – Lembra que ele falou de um amigo psiquiatra?

A Qualquer Uma – Mas o que diz aquela carta afinal?

Bruno – Anuncia que hoje mesmo ele chega aqui com provas.

A Qualquer Uma – Provas?

Bruno - Uma demente na cadeira de rodas.

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A Qualquer Uma – E isso prova o quê?

Bruno – Que Lú é aquela demente na cadeira de rodas, e não você. E a traz

aqui. Entendeu, agora? Ele escreveu várias vezes. Acho que a gente fez mal

em não responder.

A Qualquer Uma – Por que você nunca me disse nada?

Bruno - Por que é que eu deveria dizer a você que fui chamado para ver uma

outra Lú...?

A Qualquer Uma – Eu teria aconselhado você a ir.

Bruno – E o que iria melhorar ver uma aleijada rindo feito uma demente?

A Qualquer Uma – Como é que você sabe que ela faz isso?

Bocci – Ele mandou uma fotografia dela. Sorte que ele não teve a idéia de

comunicar à Polícia.

A Qualquer Uma – Você tem essa fotografia?

Bocci – Não aqui comigo. Acredite... não era para dar qualquer importância...

Eu teria respondido, mas ele (indica Bruno), diante da intimação...

A Qualquer Uma – Que intimação?

Bocci –... A intimação contida na carta...

A Qualquer Uma – Eu venho a saber somente agora. Eu tinha o direito de

saber – fotografia, Intimação. Que intimação?

Pausa.

Bruno - Eu, enquanto marido, depois de ter te reconhecido como a Lú, não

posso trazer à tona uma outra... seria falsidade ideológica. E ainda por cima

deveria mostrar tal fotografia aos demais parentes da desaparecida para

reconhecimento oficial...

Page 33: A QUALQUER UMA

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A Qualquer Uma – Agiu igual a um avestruz que esconde a cabeça na areia.

Pausa.

Eles vão chegar mais cedo ou mais tarde... parece que você está embaixo de

uma casa que desmorona. Ou que te falte a terra sob os pés.

Pausa.

Bruno – Pra você não é nada eles chegarem aqui na presença de todos com

provas?

A Qualquer Uma – Você tem medo dessas provas? De que ela não seja eu, que

ela seja ela?

Bruno – Não porque isso seja verdade, mas por outros interesses.

A Qualquer Uma (irônica) – Ah, que os seus parentes queiram jogar com a

dúvida pelos interesses deles?

Bocci – Exato. A senhora não pensa isso?

A Qualquer Uma – Mas se impedirmos isso hoje, não poderemos impedir

amanhã. É uma ameaça que eles poderão fazer sempre, mesmo se me

reconhecerem como Lú. Seria pior se eles quiserem um dia validar aquelas

provas.

Bruno – Como, pior?

A Qualquer Uma – Pior. Eles a reconheceriam com base naquelas provas,

admitidas como indiscutíveis, enquanto aqui estou eu, sem provas, eu e basta,

que poderiam querer excluir à primeira vista.

Bocci – Acho difícil.

A Qualquer Uma – Ah, é só querer... Provas materiais, eu não tenho.

Bocci –... Nem precisa.

Page 34: A QUALQUER UMA

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A Qualquer Uma - Não precisa? É facílimo duvidar, meu caro Bocci. Olha, eu

poderia enumerar todas as razões para duvidar de mim mesma... (olha para

Bruno com desprezo) Você acha que você não perderia nada de qualquer

jeito?

Bruno – O que é que você está dizendo?

A Qualquer Uma – Quero dizer: nada daquilo que mais te preocupa neste

momento.

Bruno - Não, não, não. Me preocupa neste momento o escândalo inevitável

que vai surgir. Já se falou muito da vida que tivemos aqui quatro meses,

isolados.

A Qualquer Uma – Console-se, querido. Na pior das hipóteses, você teria se

enganado.

Bruno – O que é que você está dizendo, enganado?

A Qualquer Uma – Que a Lú fosse eu! E não perderia nada, porque o engano

teria sido “com a minha impostura”, como aquele Salter vai sustentar.

Bruno – Mas de que engano você está falando? Você está louca? Que engano?

Que você é Lú?

A Qualquer Uma – Lú, sim, fica tranqüilo (indica o retrato) aquela ali (ri). O

senhor é testemunha, Bocci, que eu fiz de tudo para não ser vitima de uma

suspeita – e declarada “impostura”. Mas não há de ser nada, estou aqui, pronta

para responder. Mas olhe lá, para responder somente por mim, não mais por

você. Porque eu me enganei também, sabia?

Bruno – Você?

A Qualquer Uma – Sobre você, e quanto! (a Bocci) Vai, vai, Bocci, eu tenho

que falar com Bruno.

Bruno – Eles devem estar chegando.

(Troca de atores)

Page 35: A QUALQUER UMA

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A Qualquer Uma –. Quem vai fazer o jogo sou eu. Você não tenha medo de

que eles atuem. Eu! Já estou tomada pelo papel. E será um espetáculo (peça)

terrível para todos, até para mim mesma. Bastará poucas palavras.

Bocci - Então, se a sua irmã chegar eu a trago aqui.

A Qualquer Uma – Sim, aqui. Estou pronta, já disse. É inútil. Vai! (Bocci sai.

Ela declara a si mesma, com força.) Inútil, inútil. Os fatos devem ter razão.

Terra, terra... Com a alma, dá pra sair, por um momento, de tudo aquilo de

mais horrível que a sorte te reservou. Voar, recriar em si mesma um papel para

a vida; Mas quando tem que descer na realidade, tem que descer para trombar

de novo nos mesmos fatos que entortam, que batem, que sujam, que

esmagam a mesma vida e o mesmo papel recriado... (a Bruno) Interesses,

atritos, disputas... Você sabia muito bem que eu ignorava tudo, mas não

importa mais... Eu quero só te dizer isso: eu fiquei aqui com você quatro

meses, Olhe-me! (pega Bruno pelo braço) Aqui nos olhos, dentro! Estes olhos

nunca mais viram por mim, nunca mais foram meus olhos. Nem mesmo para

ver a mim mesma. Eles foram teus, sempre, para que destes olhos teus

nascesse o meu próprio papel, exatamente como você me via! Aquele jeito em

todas as coisas. Na vida, como você via! Eu vim para cá, dei-me inteira a

você, inteira; disse “estou aqui, sou tua; em mim não há nada, nada mais de

meu, faça-me você como você me quer! Você me esperou por dez anos, faz de

conta que não foi nada! Venho aqui de novo, por você; não mais por mim, não

mais por tudo aquilo que aquela mulher naquele papel pode ter passado na

vida dela; não, não, nenhuma lembrança dela. Assumo as tuas lembranças, as

lembranças de como ela foi pra você! Lembranças vivas em mim, vivas da tua

vida, do teu amor, das primeiras alegrias que ela te deu”. Quantas vezes eu

não te perguntei “assim? Assim?” , alimentando-me da tua alegria em ver meu

corpo que sentir como você queria!

Bruno (como Louco) – Lúcia! Você é a Lúcia!

A Qualquer Uma – Ta bom, eu, Lú! Eu sou Lú! Esta aqui! Eu! Eu! Não aquela

(indica todos e o retrato) que foi, e talvez nem ela mesma soubesse, hoje

assim, amanhã como os acasos da vida faziam...

Pausa.

Ser? Ser não é] nada! Ser é se fazer! E eu me fiz ela! –você não entendeu

nada!

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Bruno – Entendi, sim!

A Qualquer Uma – O que foi que você entendeu? Se eu senti as tuas mãos

procurarem aqui (indica um ponto da cintura), sei lá, alguma marca de

nascença ali... Não a encontrou, não? E por causa daquela marca que você não

encontrou, eu não seria mais a Lú? Não é mais verdade? Não posso ser a Lú?

Pois desapareceu. A marca desapareceu. O que é que se pode dizer contra

isso? Eu não quis mais que ela estivesse lá e fiz de tudo para que ela

desaparecesse. Eu sabia que você a procurava. Não procurava?

Bruno – Sim!

A Qualquer Uma – Viu? E para impedir que outros pudessem encontrá-la eu

fiz com que ela desaparecesse. Mas você está horrorizado com a possibilidade

de que minha irmã Inês queira encontrar a marca para uma constatação legal;

e que não queiram acreditar naquilo que eu disse. (Ah, é grave, uma marca

daquelas como pode ter desaparecido?) Vão interpelar a semiótica! Tanto mais

que essa pobre demente que está chegando – tudo é possível –, (a Salter) pode

ser que ela tenha uma marca exatamente igual. Ela sim e eu não! Seria a mais

clara das provas! Coitado do Bruno! Tão preocupado com as provas e

documentos que poderão ser apresentados. Calma, eu sou Lú! Nova! Você

quer tantas coisas! (desespero da atriz) Vindo aqui eu não quis nada, nada,

nem sequer viver por mim, respirar este ar por mim, tocar uma coisa com

qualquer sentido que fosse meu, deste corpo. Eu me dei viva pra você,

acreditei que você tivesse esperado apaixonado a tua mulher por dez anos,

para poder reviver eu também um vida pura, depois de tanta náusea! E isso é

tão verdadeiro que diante de todos, (público) contra qualquer prova, até contra

você, sim, até contra você, se você for obrigado a não me reconhecer para

salvar os teus interesses, eu teria a coragem de gritar que Lú sou eu – eu –

porque aquela ali (indica o retrato) não pode estar viva sem mim!

Bruno - Já está aqui! Ela chegou. Sua irmã chegou. (joga as roupas para

Fernanda ou a puxa para dentro já vestida)

A Qualquer Uma - Você a recebe! Não posso mais agora me apresentar assim,

eu já volto. Está indo embora, aquela Lú, está indo embora...

Bruno – Lú...

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A Qualquer Uma – Sim, Lú.

ATO TERCEIRO

Mansão, vinte minutos depois. Final do entardecer.

Bruno (a Tia Lena) – Que é que ela quer enfim? Disse que vai descer?

Bocci – Sim, ela disse “to indo”, mas...

Bruno – Mas?

Bocci – Estava ali no meio de suas roupas, com as malas abertas...

Bruno – Malas?

Bocci – Talvez procurando... Ou recolocando, não sei... (pausa)

Inês – Não é que... Quer ir embora?

Bruno – Que ir embora! (para Tia Lena) E você não perguntou por quê? (aos

outros) Disse que queria se trocar...

Bocci –...E como se trocou! Estava tão bonita!

Bruno – E daí?

Bocci – Que é que você quer que eu fale? Está com o rosto aceso, nervosa...

Quase me empurrou pra fora do quarto: “Diz que eu agora estou indo...”.

(Pausa. Ouve-se a disco)

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Inês - Como se avista bem o campo daqui... Aquelas luzes...

A noite estava tão tranqüila...

Bruno (para Tia Lena, baixinho) – Como é que ela estava?

Bocci – Chorou, acho. Está muito agitada. Explica-se. A idéia de rever a

irmã.

Bruno – Quem te diz que isso tem a ver com a irmã? Ela falou claramente

comigo e com você! O problema dela é comigo.

Bocci - Ela disse até que está certo aquilo que você fez com ela – que mais

você quer? – e que ficaria feliz se pudesse dispor de tudo isso aqui e entregar

tudo para a irmã!

Pausa.

Só pra dizer agora qual é o sentimento dela! E tem mais, ela diz, que a irmã,

depois de dez anos...Não ela jamais vai entender que nós não quisemos fazer

alguma coisa contra ela...

Bruno – O que parece que ela não queira entender é somente aquilo que a

família fez contra mim.

Pausa

É melhor esclarecer a vontade dela para mim também. Digo, para eu mesmo

ver claramente. Nem sei onde gostaria de estar neste momento... (para Tia

Lena) Ela falou com você, o que é que ela tem contra mim? Será que ela

suspeita...?

Bocci – Sim, é isso, acredite, é isso! Ela disse que, se tivesse sabido que

estava no meio de uma disputa de interesses... todas as disputas se encerraram

com a sua volta! Disse isso a ela.

Inês - Então, é normal que não queira ver ninguém, principalmente a irmã!

Mas... Imagine! Somente Deus sabe quantas lágrimas chorei. (se comove)

Bruno – Parece que de lagrimas você entende bem. Você não tem nada com

isso. Aqui se trata de outra coisa, não entendeu? Eu não disse que ela não

queria, eu disse que ela não podia.

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Inês – Não podia, não podia de verdade. No começo não podia ver ninguém. É

preciso pensar o quão terrível foi o que aconteceu àquela pobrezinha. O

horror do passado...Voltar aqui... Ela pode fazê-lo somente por amor a você,

não é Bruno... Soube que ela não queria, que foi forçada (Bruno a encara

muito mal) Sim, ela disse que foi forçada. (pausa; para Bocci) Mas ela

suspeita de alguma coisa?

A pergunta soa estranha e provoca um outro silêncio.

Bruno – Que eu a tenha forçado a voltar porque precisava dela pra competir

com a família pela herança?... Realmente ela não queria vir... Acredito que

ela tenha essa suspeita, porque eu, lá, na Alemanha, para convencê-la a voltar

e vencer esse horror do passado do qual você fala, Inês... Talvez também o

horror de revê-la (eh, levemos em conta o tipo de vida que ela levava lá,

depois do inferno da sua desgraça e mesmo assim decidida a não voltar

mais)... Principalmente a idéia de rever a irmã... Ela me fez prometer que ela

não teria revisto ninguém... “Tenho uma desculpa para que você não a veja”.

Foi o que eu disse.

Esta, a desculpa desses interesses de herança. E ela não deu importância a

esta questão de interesses, se não como desculpa para não rever essa família.

Eu estava certo que depois, passado um primeiro momento, mais calma,

inserida de novo na sua vida de antes, enfim, com o tempo, ela teria

conseguido vencer aquela resistência.

Pausa.

Então, eu a teria forçado (!)... Se isso é forçar... Nunca, jamais eu lhe fiz

qualquer pressão! Mas desta situação se deveria sair de uma vez, não?

Encontrei-me obrigado a convencê-la que aquilo deveria cessar, a discussão

sobre herança, que até então havia sido somente uma desculpa... E tanto mais

se ela mesma manifestou que contra você ela não tem nada... Isso: se ela quis

se livrar daquela desculpa, eu não sei!

(breve pausa)

Fico muito secado que neste momento pareça que eu esteja me desculpando

perante você...

Suspeita de mim...

Como se eu não tivesse ficado sozinho, no meio da família toda, acreditando

que ela não estivesse morta! Tão certo que não economizei um centavo para

reconstruir tudo isso aqui para ela! Digam por que eu fiz isso? Não fui um

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louco, pra ver toda a família querer arrancar tudo de mim? Então pode ser que

depois de tudo, tenha nascido em mim um certo rancor natural, não nego. E

defendi!() os meus interesses, além do meu sentimento, não é um delito...

(percebe que nesse momento está se justificando e não consegue não

confessar. Pausa).

Tudo isso é uma coisa... Uma coisa realmente desconcertante... Quando nasce

a suspeita... Que tudo aquilo... Se está mal quando se pensa que... Agora... À

luz daquela suspeita... Possa parecer... (com raiva) Mas o que é que ela está

fazendo ainda lá dentro?

Bocci – Tenha paciência. Ela quer se acalmar...

Inês – Se não quer descer... acho inútil ficar aqui esperando.

Bruno – Mas ela deveria saber que daqui a pouco... Tia Lena, por favor, diga

em meu nome que se lembre bem quem está para chegar. É preciso que ela

venha.

Bocci – Já estão aqui. (Limpa os óculos, surpresa)

Inês - Tem também uma deficiente, parece. Estão ajudando-a a descer do

carro. Que estória é essa? Olha... Que medo!

Entra Salter com a demente na cadeira de rodas. Pausa.

Inês (Limpa os óculos) – Como? Chama Lena?

Pausa.

Inês – Está chamando! Tia Lena.

Salter – A senhora é da família? Chama-se Lena?

Inês – Não, minha tia.

Salter (A Bocci) – Ouviu? Ouviu? Tem uma pessoa da família que se chama

Lena! Outra prova, outra prova! Eu sabia disso.

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Bocci – Ela simplesmente balbucia o tempo todo. Não está chamando

ninguém.

Inês - Quem é o senhor?

Bocci – Este é o escritor Carl Salter.

Salter – Olhe para ela, senhora. Está aqui!

Inês - O quê que o senhor está dizendo? Quem?

Salter – Será possível que não lhe diga nada?

Inês – Não... O que? O quer que me diga?

Bocci – Que a sua sobrinha é esta!

Inês – Deve ser louco esse aqui também.

Salter – Eu a trouxe até aqui... Olha, não é uma prova? É possível que vocês

não vejam essa prova? Ela chama por Tia Lena! A tia!

Inês – Não, não é possível!

Salter – A senhora não a reconhece? Olhe-a nos olhos. Como é que não a

reconhece?

Tia Lena – O que o senhor quer que reconheça? Quem devo reconhecer?

Salter – Eu tenho documentos, tenho provas...

Tia Lena – Que provas? Mostre-as.

Bocci – Mas isso é impossível!

Tia Lena – Penso que a nossa Lú está lá em cima!

Salter – Eu conheço muito bem quem está lá em cima.

Tia Lena – O senhor conhece...?

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Tia Lena - O senhor a conhece melhor que eu? Eu sou a irmã.

Salter (indicando a Demente) – A sua irmã é esta aqui! Esta aqui!

Tia Lena – Que nada esta aqui!

Salter - tenho provas e documentos...

Tia Lena – O quê é que está dizendo, provas? De verdade...? Tem somente

uma maneira... Existem as autoridades competentes!

Bocci – Eu sei porque o senhor insiste com esta encenação!

Salter – Justa vingança e punição.

Inês – De resto, importa até um certo ponto o por quê o este senhor o tenha

feito. Mostre já e aqui, se é que existem essas provas e documentos! Porque

nós não queremos que entre nós alguém se aproveite dessa sua vingança ou

punição!

Bocci – Já estava previsto, sabia?

Salter – O que é que o senhor está dizendo? Quem poderia ter previsto uma

coisa dessas?

Bocci – Não – digo que o senhor poderia aproveitar-se.

Inês – Mas ninguém deve se aproveitar disso. (a Salter) Olha aqui, eu – todos

– olhamos essa coitada que o senhor trouxe e não a reconhecemos.

Salter – Porque já reconheceram a mulher que está lá em cima?

Inês – Não, eu não!

Salter – Como, não a reconheceu?

Inês – (... ver no texto anterior)

Salter –

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Inês –

Salter - Claro – porque não podem... O sangue... Só de imaginar um contato

insuportável até para si mesma... Experimenta agora senhora, que a senhora

vai sentir também falar o próprio sangue... (indica a demente)

Inês – Por favor!

Salter - Se na senhora a piedade pudesse vencer o horror – e, olhe para ela, dez

anos... Todas as ofensas... A guerra... A fome...Eu conheço aquela que está lá

em cima e que passa por esta. Olhem bem para esta aqui... Olhem por baixo

das alterações e das vicissitudes. Ela tem os traços...

Inês – Onde? Que está dizendo?

Salter – Os olhos se não estivessem tão apagados...

Bocci – Mas nem sonhando – outro traço – talvez um pouco a cor.

Salter – Enlouquecida há nove anos... Foi encontrada com um velho casaco de

fuzileiro austríaco toda em farrapos, mas com uma marca.

Inês – Onde foi encontrada? Que marca?

Salter – Em Linz.

Inês – Que marca? Aquele casaco?

Salter – Do regimento ao qual o fuzileiro pertencia. O regimento tinha estado

aqui mesmo!

Bocci – Ah, aqui? Durante a invasão? E o que é que isso prova? Ela podia

receber o casaco em Linz como esmola de um fuzileiro que esteve aqui

durante a invasão.

Salter – E chama por Tia Lena. Ouviram? Por quê? Sobrou-lhe de fixo

somente esse nome. (para Tia Lena) Mas a senhora que diz que é a irmã...

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Inês vencendo o horror pega com as mãos a cabeça da demente e chama:

Inês – Lú! Lú! Lú! Lucia.

A demente continua impassível. Enquanto isso A Qualquer Uma entra seguida

pro Bruno. A duvida é geral.

A Qualquer Uma (para Bruno) - Tente chamá-la você também.

Salter – Ah, chegou.

A Qualquer Uma – Cheguei.

Inês – Lú...

A Qualquer Uma – Espera, acendam a luz – aqui se vê muito mal.

Inês – Lú...

A dúvida aumenta.

Tia Lena – Você pensa realmente...?

A Qualquer Uma – Eu segurei o Bruno e a mim própria lá em cima de

propósito. Pra dar tempo ao senhor de dar o seu golpe. Reconheço a sua

loucura; somente uma pessoa como o senhor poderia ser capaz de cometer

uma palhaçada atorz dessas: trazer aqui... (Põe a mão no rosto da demente)

A Qualquer Uma – Lena?

Bocci – Isso já foi esclarecido.

A Qualquer um – O que é que já foi esclarecido?

Inês – Que não está chamando Tia Lena.

Bocci – É uma ladainha, uma ladainha que diz sempre.

A Qualquer Uma – a prova de que essa tal de Tia Lena não sou eu, não é? É

natural e vejo como agora me está olhando.

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Tia Lena – Como te estou olhando?

A Qualquer Uma – Você também?

Pausa.

A Qualquer Uma – E até o senhor Bocci.

Bocci – Nada disso, ninguém ainda reconheceu! (uma frase que não entendi)

E a tua própria irmã pode ter que...

A Qualquer Uma – Sim, ela chamou-me de Lú duas vezes.

Bocci (a Salter) – O senhor ouviu?

A Qualquer Uma (nunca levando Salter a sério) – Ah não, ele não. Não presta

nada nele. De resto, é o mais perdido de todos.

Bruno – Perdido? Estou é impressionado com a prepotência dele, que ousou,

ele sim, aproveitar-se.

A Qualquer Uma – esteja certo de que nem ele se aproveitará. (olha para

Salter) Nem de mim nem desta coitadinha (indica a demente).

Salter – Acreditei ser a minha obrigação –

A Qualquer Uma - trazê-la aqui –

Salter – Sim. Para puni-la!

A Qualquer Uma – Punir-me?

Salter – Sim, pelo que fez! Eu me arrisquei morrer por você. E assim você

pode vir aqui, enganando todo mundo.

A Qualquer Uma – Eu não enganei ninguém.

Salter – Repita.

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A Qualquer Uma – Calma, calma você!

Pausa.

Já chega eu. (a Salter) Com a minha “impostura”, certa? Deu provas? Como?

Assim? Com essa coisa essa palhaçada que você encenou aqui?

Pausa.

Mas vocês conseguiram: agora a dúvida de fato surgiu aqui dentro.

Tia Lena – Em quem? Agora?

A Qualquer Uma – Digam que não surpreendi vocês.

Tia Lena – Mas se nós não a reconhecemos...

A Qualquer Uma – Não importa.

Bocci – Fique certa senhora, aposta que nem ele mesmo acredita.

A Qualquer Uma – não importa (indo à direção de Salter) Veja de que espécie

estranha que deve ser essa minha “impostura”, se eu, logo eu, fiz reparar como

todos vocês me olharam assim que eu desci. Somente como argumento forte

contra a duvida que surgiu no senhor.

Bocci - Eu juro que em mim não surgiu dúvida alguma.

A Qualquer Uma – Surgiu, surgiu, e para se acertar observou e me fez

observar que ela me chamou de Lú duas vezes.

Boci-Desculpa, qual dúvida a senhora quer que me tenha surgido por...?

(indica a demente).

A Qualquer Uma – Não, por mim! A mais natural das dúvidas, assim que eu

apareci de repente, perdidos como vocês estavam, e ele (indica Salter) teve

imediatamente a dúvida oposta, sim, ao ouvir-me chamar “Lú” porque ainda

nunca tinha me visto. Natural, natural,... Qualquer certeza pode vacilar assim

que a mínima dúvida surge e acaba fazendo com que não acreditemos mais

como antes.

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Salter – Você mesma admite, portanto, que pode não ser a Lú?

A Qualquer Uma – Admito outra coisa. Admito que Lú também pode ser esta

(indica a demente) se eles quisessem acreditar assim.

Tia Lena – Mas nós não acreditamos.

Salter (indicando primeiro A Qualquer Uma e depois a Demente) – É, porque

você se parece e aquela ali não.

A Qualquer Uma – Ah não, isso não. Não porque me pareço. Aliás, eu mesma

disse a todos que não é prova de nada a minha semelhança, a semelhança pela

qual todos vocês acreditaram conhecer-me. Cheguei a gritar “mas como é

possível que uma pessoa estuprada por uma guerra e depois de dez anos

continuar a ser a mesma” seria, se tanto, o contrario: uma prova de que não

sou eu.

Pausa.

Não é verdade? Uma prova de que não posso ser eu. (a Salter) Viu? Tem ainda

quem pense isso somente agora.

Bruno – Parece que você está fazendo de tudo...

A Qualquer Uma – Mas se até você concordou!

Bruno – Eu?

A Qualquer Uma – Você! Você!

Bruno – Quando?

A Qualquer Uma – quando nos convém acreditar – que ser sempre a mesma

no tempo é uma prova contrária e, portanto, Lú pode ser esta desgraçada

exatamente porque não se parece mais com a Lú.

Bruno – Isso é mau gosto.

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A Qualquer Uma – Devo justificar a minha impostura somente a ele (indica

Salter).

Bruno – Como assim? Fazendo você mesma duvidar de mim?

A Qualquer Uma – Assim, assim, porque eu queria que todos, sim, duvidem

de mim, para ter pelo menos a satisfação de ficar sozinha e acreditar somente

em mim! (mostrando a demente) Vocês não a reconheceram. Talvez porque é

irreconhecível? Porque olhando-a, não parece com ela mesma? Porque não

trouxeram a vocês provas suficientes? Não, Não. Só porque vocês acham que

não podem acreditar. Está tudo aí.

Pausa.

Ummonte de desgraçados voltaram assim (indica a demente) depois de anos,

sem aspecto algum, irreconhecível, sem memória – e os papéis de irmãs,

esposas, mães – mães! – foram disputados assim “é meu”, “não, é meu” – não

porque assemelhasse a eles, não (o filho de uma pessoa não pode parecer com

o filho de uma outra pessoa!), mas simplesmente porque eles assim

acreditaram! Quiseram acreditar! E não existe prova contrária que agüente

quando se quer acreditar. Não é ele? E para determinada mãe sim, é ele! O que

importa que não seja, se aquela mãe o cria com todo o seu amor? Contra

qualquer prova ela acredita, sem qualquer prova ela acredita. Em mim, talvez,

sem provas, vocês não acreditaram?

Bocci – Mas porque é a senhora, e não tem necessidade de provas.

A Qualquer Uma – Não é verdade! (para Bruno) Fica tranqüilo querido, que

não lesarei os teus interesses, muito pelo contrário, se eu tento demonstrar que

na verdade Lú pode ser isso (indica a Demente). Levantaram-se tantas

suspeitas! Porque fiquei aqui fechada por quatro meses sem querer ver

ninguém.

Bruno – Mas todos entenderam a razão.

A Qualquer Uma (para Tia Lena) – Menos os “malvados”, né?(para Bruno) O

mal é você quem afirma. (pausa) Precisa de muito para suspeitar que eu tenha

estado aqui comodamente por quatro meses preparando-me a construir aquela

(indica o retrato).

Bruno – Eu não disse!

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A Qualquer Uma – Teria dito, mas olha que agora eles escutam a mim. (a

Salter) Uma disputa de interesses entre eles. Pode-se fingir que não

lembramos de mais nada. Pode-se fingir também ter perdido completamente a

memória aos poucos e fabricar uma memória nova. (a Bocci) Para ele (indica

Bruno) é necessário o tempo de reconstruir a mansão destruída. Pois bem, o

tempo para mim também, para reconstruir-me, pedra sobre pedra, como a

mansão: e a piedade das lembranças da pobre Lú, transplantadas em mim pelo

tempo de realimentá-las para voltarem a florescer, até o ponto de poder

receber convenientemente uma irmã, e poder conversar, por exemplo, de

quando éramos pequenos, de quando brincávamos, mesmo que órfãs as duas,

criadas pelos tios... Reduzir-me, reduzir-me enfim a ponto de parecer “saída

daquele retrato ali” como disse a Tia Lena, copiado até na roupa.

Pausa.

Inês – Copiado?

A Qualquer Uma - Sim, eu tinha me vestido exatamente como naquele

retrato. Mas fui me trocar, porque realmente me pareceu demais. (silêncio)

hein? Suspeitou também disso, Bruno?

Bruno – Eu?

A Qualquer Uma – Sim. E agora tem o terror de que esta imagem (indica a si

mesma) seja verdade.

Bruno – Mas que verdade? Vocês acreditam nessa verdade?

A Qualquer Uma – Acreditam. Porque é – é a verdade – a verdade dos fatos:

ele acredita que eu seja uma impostora. (indica Salter).

Bocci – O que é isso, senhora!

Inês – como é possível?

Bruno - Isso é uma vingança contra mim mais feroz do que a vingança dele

(indica Salter).

A Qualquer Uma – Não é minha! São os fatos que se vingam, querido. São os

fatos. Você não quis vir aqui diante da minha irmã? Eu não posso aceitar nos

fatos o reconhecimento dela. Você devia ter me reconhecido sozinho, e

desinteressadamente. O meu papel aqui não é o de vir receber uma herança,

isso seria uma mentira, coisa que jamais pensei em fazer; que não posso fazer.

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Essa seria a encenação que ele diz. Se te serve que não te pareça uma vingança

então, diante dos fatos, acredite agora.

Bruno – Em quê devo acreditar?

A Qualquer Uma – A esta (indica novamente a si mesma) minha impostura.

Que mais você quer?

Bruno (exasperado) – Você faz isso para me testar! Você está fazendo tudo

isso pra me testar.

A Qualquer Uma – Não!

Bruno – Sim, é para testar.

A Qualquer Uma – Pergunte-se então se não é uma nova manobra a tua.

Bruno – Que manobra?

A Qualquer Uma – Fazer pressupor que eu esteja testando.

Bruno – Não.

A Qualquer Uma – Não? Então acredite! E digo que - no fato - vocês todos

podem acreditar - sim, sim - acreditar nele (indica Salter) e dar razão a ele –

razão em tudo! – até que essa coitada é a verdadeira Lú! Olhem pra ela!

A Qualquer Uma - Ouviu? Chama você, tia Lena! Por que não querem

acreditar? Não? Chamar Tia Lena assim? Com esse sorriso? Nenhuma voz

pode alcançá-la. (falando com a demente) Chama, vai saber de qual momento

longínquo... Feliz... Da tua vida... No qual você ficou suspensa... Lá... Não vê

mais nada... Ninguém pode te dar mais nada... Piedade? Pra que te serve? Os

cuidados que se possa tomar com você... Feliz de você neste teu sorriso, você

está salva, imune... (a Salter) Para que você trouxe aqui esta coitada? (para Tia

Lena) Ah, você chegou perto?

Inês – Não, não...

A Qualquer Uma –... Isso fica aqui... Enquanto eu digo a ele (encara Salter)

uma outra coisa: você, além de péssima pessoa, deve ser um péssimo escritor.

Salter – Pode ser. Por quê?

A Qualquer Uma – Tudo o que escreve deve ser só uma encenação para você.

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Salter – Ah!

A Qualquer Uma - Não deve ter colocado nunca nada dentro da sua

literatura... Nem coração nem sangue, nem nervos, nem sentimentos.

Salter – Nada?

A Qualquer Uma – Nada do que escreveu deve ter nascido de um tormento

vivo, de um desespero verdadeiro, de necessidade de vingar-se da vida, da

vida como ela é – como aos outros, os acasos que o fizeram – criando uma

outra vida melhor mais bonita, como teria que ser, como gostaria que fosse! E

porque você é assim, porque me conheceu (três meses...) como eu poderia ser

com você, a minha vida também é uma impostura?

Salter – Você colocou sentimento nela?

A Qualquer Uma – Diga-me porque teria feito outra coisa.

Salter – Para se livrar de mim.

A Qualquer Uma – Eu poderia me livrar de você sem enganar um outro.

Salter – Acho que você acabou de me confessar que enganou.

A Qualquer Uma – Muito bem! Você acha que eu enganei?

Salter – Pode ser que essa confissão forçada tenha seus fins.

A Qualquer Uma – Que fins?

Salter – Algum interesse...

A Qualquer Uma – Também? Se vê que você joga escrevendo só para ganhar

alguma coisa.

Pausa.

Quer ver como se joga grátis? Eu vou jogar só pra você. Ninguém se aproveita

disso. Falo da minha impostura, senhor Salter. Segundo as desgraças, veja

bem: pode-se cair assim (indica a demente) quando acontece de cair nas mãos

de um inimigo que nos destrói. Na época, bonita... Jovem... Raptada aqui,

sozinha nesta mansão... Destruição da carne, com os horrores de praxe, e

rasgo da alma, até deixá-la louca e reduzida assim, com retorno impossível.

Ou pode-se cair sofrendo as mesmas humilhações e rasgos gradualmente, até

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enlouquecer, mas encontrando por exemplo na loucura uma inspiração de

vingança contra o próprio destino... No horror de quanto lhe foi feito. A

sensação de ter ficado tão suja a ponto de ter asco e arrepio somente de pensar

a voltar à vida de antes.

Salter – Você está jogando pesado.

A Qualquer Uma – Espera, eu digo a vida de antes, por exemplo, aqui, nessa

mansão onde, fresca como uma flor, e límpida – límpida – aos dezoito anos...

Ao lado da irmã, sem querer deixá-la, não porque não amasse o noivo, mas

porque naquela primeira noite, não sabendo nada...

Tia Lena (comovida) - Lú!

A Qualquer Uma – Não! Espera, espera!

Bruno (com alegria triunfante) – Como você sabe disso, se não fui eu quem te

disse?

A Qualquer Uma (o encara) – Ninguém me disse isso. (olha para Tia Lena)

Não, nem Tia Lena, não... Imagine uma coisa tão intima (e eu lembrei de

propósito) não podia ter me dito em confidência entre irmãs, senão quem

realmente disse não é verdade?

Inês – sim! Sim!

A Qualquer Uma (a Bruno; volta como a Elma do começo) – Você procurou

mal a Lú. Você reconstruiu a mansão dela, mas nunca procurou bem, se entre

as pedras e a desordem da destruição, alguma coisa dela, da sua alma tivesse

sobrado... Alguma lembrança realmente viva – pra ela! Não para você! – por

sorte fui eu quem encontrou isso!

Bruno – O que é que você pretende dizer?

A Qualquer Uma (não lhe responde; a Salter) - Entendeu? Então, encardida, a

ponto de não poder se limpar mais, fora com o mais estúpido daqueles

oficiais, (exatamente como eu te contei na Alemanha) fora, primeiro em

Viena, por anos na bagunça do desabamento da guerra; depois em Berlim,

naquele manicômio, se vê numa noite num teatro em Barth, aprende-se a

dançar, a loucura se ilumina, aplausos, delírio, não se vê mais a razão de tirar

as roupas coloridas da loucura, depois sair na praça, nas ruas, com essas

roupas, nas boites, sem roupa, no meio dos idiotas descolados das baladas, é,

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senhor Salter, até que não se vira uma pessoa como você, lúgubre,

insuportável, e até que não acontece de repente, quando menos se espera (a

Bocci) uma pessoa que passa do lado serpenteando como um diabo, e te

chama “senhora Lú”, “Senhora Lú o seu marido está aqui pertinho; se quiser

eu o chamo”. Meu Deus, acreditei que ele procurasse uma pessoa que não

podia existir mais. Uma pessoa que somente dentro de mim entendesse que se

podia encontrar viva para que se refizesse, não como ela se queria, que por si

só não se queria mais, mas como você a queria! (a Salter; muda

completamente) Fora! Fora! Fora! Você veio me punir pela minha impostura?

Tem razão. Sabe até que ponto se pretendia chegar com aquela impostura? A

ponto de fazer-se reconhecer pela minha irmã, minha cunhada, irmã do meu

marido, que estou vendo hoje pela primeira vez na minha vida!

Inês – Lú, o que é que você esta dizendo?

A Qualquer Uma – Como é verdade que eu nunca estive aqui antes que ele me

trouxesse.

Bruno (gritando) – Você sabe muito bem que não é verdade!

A Qualquer Uma – É verdade! É verdade!

Bruno – Você quer que se acredite!

A Qualquer Uma – Sim, porque eu gosto que vocês acreditem que eu seja Lú.

Pausa.

Mas a Lú agora vai embora. A Lú volta pra balada.

Bruno – Quê?

A Qualquer Uma – Vou-me embora com ele (indica Salter). Volto pra

Berlim.

Bruno – Você não sai daqui!

A Qualquer Uma – Já te disse que você procurou mal a Lú. Olha, querido, que

lá em cima você deixou cair, sem perceber, uma porta jóia de sândalo com

alguns insetos de prata incrustados. Tia Lena me recordou que aquela caixinha

Lú a tinha conservado por ser de sua mãe. Sabe o que eu encontrei dentro

daquela caixinha? Um pequeno bloco de notas de Lú onde estavam as palavras

ditas entre a irmã e ela no dia do casamento. Esse bloco é meu. Trago-o aqui

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comigo. Estranho, até a caligrafia parece minha. (ri) Outra coisa: não se

esqueça de fazer a irmã procurar essa coitadinha aqui do lado.

Inês – Sim, uma pinta.

A Qualquer Uma – Vermelha? Achou? Verdade?

Tia Lena – Mas não vermelha. Preta. E não exatamente do lado.

A Qualquer Uma – No bloquinho está escrito que é do lado, como uma

joaninha (para Bruno) Viu? Ficou preta... Mudou de Lugar... Mas está lá...

Outra prova que é ela! Acreditem, acreditem que é ela!(A Bocci) O senhor,

Bocci, providencie o envio de minha bagagem. (a Salter) O carro está lá fora?

Vou embora vestida assim mesmo!

Salter – Assim mesmo, vamos, vamos.

Correm para fora.

Bocci – Hei, e nós?

Bruno (como todos) – Como, assim?

Saem com vozes confusas e concitadas. Ela dança com a venda, junto a

Salter, exatamente com o mesmo desenho do principio do ato primeiro. Fica

só a cadeira da Demente e Tia Lena, incerta.

Tia Lena (quase sem voz) – Lú...

PANO