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Livro uma Vida Incomum Como Qualquer Um

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para Felipe e Pedroe quem deseje

Copyright © 2012Luiz Fernando Sarmento

Ilustração CapaLuiz Fernando Sarmento

Diagramação e CapaPedro Sarmento

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S255v

Sarmento, Luiz Fernando

Uma vida em comum como qualquer um / Luiz Fernando Sarmento. - 1.ed. -

Rio de Janeiro : L. F. Sarmento, 2012.

264p. : 15 cm

Índice

ISBN 978-85-913883

1. Psicologia. I. Título.

12-4516. CDD: 150

CDU: 159.9

29.06.12 04.07.12

036637

uma vida incomumcomo qualquer um

Luiz Fernando Sarmento

Page 3: Livro uma Vida Incomum Como Qualquer Um

1. Fora de Ordem 10

2. Mamãe 25

3. Um quase nada de quase tudo 29

4. Redes 34

5. Agências de inFormações 52

6. Vários eu 58

7. Lembranças 65

8. Psi 82

9. Rotina 87

10. Incertas 93

11. Reflexos 98

12. Balanços 113

13. Programas de TV 121

14. Piripaco 127

15. Talvez 131

16. Outro dia, um como outro 134

17. Pausa 143

18. Juntomisturado 145

19. Manual de manutenção 158

20. Hoje, já passado 161

21. Insights? 165

22. Ficção, desarrumações 167

23. Sensação de juventude 169

24. Anotações 172

índice

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Aqui os tempos se misturam tanto quanto os assuntos.

Fim e meio não sabem onde começam.

Sorte de quem escolhe o que lê. E salta o que não lhe importa.

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1 fora de ordem

Tudo um tanto confuso, não sei direito quem sou, que faço. Só sinto, só penso. A novidade é que aqui e agora estou estru-turado, como desejei e produzi. Filhos cuidados, casa com cada coisa em seu lugar, despesas bási-cas de todo dia supridas – comida, condomínio, telefone, gás, luz, net-internet. Posso acordar e, em cada momento, escolher o que fazer da vida. Os desejos vão, vêm, se transformam. As variáveis que interferem nos meus desejos são inúmeras, inesperadas, fora do meu controle. O que é agora pode ser diferente depois.

Quase como rotina, cuido de mim; alongo ao acordar, cozinho, lavo, mantenho o básico. Cada dia tem sido outro. De duas em duas semanas um casal arruma o apartamento. Outros amigos e colegas copiam vídeos que realizei só ou em par-cerias, incluem na internet, compõem programas alternativos de TV. Participo de encontros de in-

teresse comum, ajo reativo ao processo de cada parceiro, despreocupado de tempos. Em relação ao bem-estar meu e do mundo, procuro distin-guir o que está ao meu alcance. Dentro de mim, cada vez mais tranquilo. Isto ontem, hoje de outro jeito, amanhã não sei.

Quero agora escrever, fora de ordem. Princípio, meio, fim se misturam. E, dependentes de minha memória, se perdem ou nem se completam. Ima-gino – e proponho agora – cada leitor, se houver, cuide editar o que leia. Escolho o mais próximo do que sinto síntese. Vez ou outra me repito, como pra recordar. Detalhes, aprofundamentos, talvez mais adiante.

Compartilhoo que, inda que verde, me faz bem e imagino pos-sa fazer a outro.

Se edito a prosa, encontro o verso. Se edito o ver-so, o hai-kai? Se edito o hai-kai, o silêncio. Nem tudo se resume a isto. Confesso, não sei direito o que é hai-kai.

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Em pleno vôo, a aeromoça orienta. Quando as máscaras caírem, primeiro cuide de você, depois dos outros, mesmo crianças. Analogia imediata, cuidarei melhor do outro, se antes cuido de mim. Como você pode cuidar de mim, se não cuida de você? A pergunta que fiz a um amigo, tenho feito ao espelho: como posso cuidar do outro, se não cuido de mim?

Tento inventar, descobrir, construir jeitos de rela-cionar-me que me supram. Aprendo que não pos-so dizer sim a algo que não está em mim.

Facilita minha vida quando separo a loucura do outro da minha loucura. Se a mim não me permi-to, a outros inibo. E vice versa. Quando não beijo, por exemplo, muitas vezes não suporto outros se beijarem. Muitos “não!” que me chegam, são “lou-curas” de outros.

Como Cacilda Becker, não tenho tido tempo pra lutar contra, só a favor. Como, talvez, Tom Jobim, aprendo que democracia é muito bom, inda mais se a pratico aqui com meus colegas de trabalho, lá em casa, com quem está ao meu alcance. Des-

cubro que meus pensamentos são escolhas mi-nhas. Que gentilezas têm me gerado gentilezas. E quanto mais me conheço, melhor vivo.

Na tentativa de tornar mais simples minha vida, aprendo que quanto menos tenho, mais leve me sinto. Um par de sapatos é suficiente, três me dão mais trabalho que um. Os objetos é que me têm, não eu que tenho os objetos. Carros dão traba-lhão. E plantas, animais: é o cachorro que me le-varia a passear, não eu a ele. Não posso deixar a casa sozinha se há plantas pra cuidar. Qualquer coisa que tenho, me dá trabalho. Um bibelô? Te-nho que espanar. Se tenho em excesso, trabalho em excesso. Sou assim quase escravo do que te-nho. Os objetivos também: pautam minha vida.

Mas meus filhos não são meus, quase sempre eu me guio pelos meus filhos. Sinto bem. Os saldos positivos da minha vida estão relacionados aos afetos. Aprendo que um meu capital básico são as relações que cultivo, os afetos que me envolvem. Que sonhar me faz bem: me orienta o que faça. E que há vazios em mim que só eu posso aprender a preencher.

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Alguma compaixão me nasce em relação a quem dedica a vida a acumular coisas e sentimentos, em tentativas de preencher vazios que em si mesmo desconhece. Aprendo que melhor aprendo, fazen-do. E que melhor ensino, sendo. E eu, que não consigo resolver esta pretensão de que sei um tan-to sobre quase tudo?

Como eu,imagino que uma mãe, um pai, professor, patrão, governante, sacerdote... desejam que um outro seja o que não é. Eventualmente inconscientes, projetam no outro seus próprios desejos. Nuns e noutro, quando cai a ficha – se cai – a consciência se dá, a compreensão se instala, o comportamento tende a mudar. Quando a ficha não cai, permane-cem – eternas? – incompreensões.

Livre associo,misturo de um tudo. Nas ruas, louras, louras, lou-ras. Chego mais perto, são negras as raízes dos ca-belos. As louras, na verdade, são morenas. Barbie, modelo de beleza, american way of life, é referên-cia. Nas falsas-louras nativas, talvez angústia por não serem semelhantes aos ídolos adotados.

Comunicação é meio, mesmo o meio sendo em si mensagem. O pri-meiro desafio que vivo é perceber o que meu próprio inconsciente tenta me comunicar. Apesar dos impedimentos por parte de ou-tras partes de mim. Fico atento aos sinais que me dão meus atos falhos. Ato falho não falha!

Conteúdos que me tocam me emocionam. Mi-nha memória afetiva, sinto, permanece. Minha memória racional me escapa. De que mesmo eu estava falando?

Quero aprender, como diz Simone de Beauvoir, a “viver sem tempos mortos”.

Concordo com Sérgio Mello: os planos funcionam, difícil é o cronograma.

Também com alguém, não me lembro quem: seja o que deseja ser.

De vez em quando me pego muito eficiente, no caminho errado. Perdi minha vida por educação. Foi Verlaine quem disse?

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Esta aprendi com Adalberto de Paula Barreto – a pergunta que antes, submisso, fazia a outros, ago-ra tenho perguntado ao espelho: que você quer que eu queira, pr’eu querer?

Aprendi e me tem feito bem: meu humor como indicador. Se estou de bom humor, estou bem. Se de mau humor, estou mal. Identifico-me com o que entendi do FIB, Felicidade Interna Bruta.

Meus filhos, meus amigos aprendem comigo mais pelo que sou do que pelo que falo. Vice versa, eu também.

Meus desejos me mobilizam. Eu me movimento a partir dos meus desejos. Desejos são básicos aos meus movimentos. Procuro descobrir quais meus desejos.

Tento construir, pelas ações, pontes entre desejos e práticas. Pra facilitar, só quando preciso, numa coluna listo as tarefas que julgo necessárias para a realização do desejo. Ao lado de cada tarefa, em outras 4 colunas, prevejo datas, custos, responsá-veis e anoto outras observações. Dentro de mim,

o conflito entre prever-planejar e não ter agenda, não limitar o futuro. Talvez eu possa planejar e adaptar à realidade o que antes previ.

Se não gozo quando transo, permaneço com uma vi-vacidade juvenil, o prazer permanece. O gozo já não é meta. A meta, se existe, é o prazer em cada momento.

Onde vai meu pensamento, vai minha energia. Aprendo escolher pensamentos.

De Freud entendi que muitos dos conteúdos dos sonhos estão relacionados a acontecimentos do dia anterior. Quando suporto alegria, antes de dormir, leio o que me faz sentir bem. Quando acordado, evito situações que me gerem senti-mentos desagradáveis.

Outros em outras épocas já descobriram um tan-to disto tudo. Esta memória coletiva onde está? Sei que quando relaxo, capto.

Volta e meia me pego, inconsciente, estragando prazeres: ao brigar com a namorada quando estava gostoso, ao chutar pe-

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dra quando a caminhada tava boa, ao detonar um trabalho que me trazia enlevo... Muitas vezes senti como insuportável a alegria. A minha, as de outros.

Percebi o mesmo em outros. Permaneço descon-fiado que isto se relaciona com minha cultura cristã, que proíbe emoções, prazeres – vide os 10 mandamentos e os 7 pecados capitais. Serei casti-gado – agora ou depois da morte – se transgrido alguma regra. Perdi minha inocência quando fui catequizado. Antes, em mim só existia um senso ético. Não existiam pecados mortais, veniais, in-fernos. A moral veio como doutrina.

Internalizei as regras e as consequências de transgressões: dentro de mim associo o prazer ao castigo. Logo que percebo prazer, lembro castigo. Evito castigos eliminando prazeres. Os prazeres se tornam então insuportáveis.

Agora, consciente, aprendo ser mais responsável por mim mesmo, minhas ações, minha vida. Sei que já não devo reclamar da pedra ao tropeçar nela. Eu é que não prestei atenção. Reclamo antes ao espelho.

Algumas vezes minha vida ficou sem sentido. Tanto fazia viver, morrer. Não cheguei a procurar a morte. Mas a vida tava sem gosto. A lembran-ça dos filhos me animava. Eu era resiliente e não sabia: vim do quase fundo do poço ao equilíbrio dinâmico de agora.

Antes dos 8 anos já sabia da proibição dos praze-res. Vivi prazer e medo em secretas descobertas infantis. E punhetas silenciosas das 2 da tarde au-mentavam culpas, pavores e rezas noturnas. Aos 14, no beco dos meninos, tive a sorte do acolhi-mento tranquilo naquele corpo diferente do meu. Aprendi a gostar de mulher.

Mas perdi mesmo a grande inocência quando so-fri o catecismo. Não sabia de pecados – mortais, veniais – e castigos. Ficou um medo enorme do inferno eterno, chamas que nunca acabam. Foi como um insight ao contrário, um indark.

Wilhelm Reich foi um choque bom. Perdi outra inocência, ganhei consciência: sou responsável por mim. Hoje leio sem ter que fazer provas. Só em boa companhia, adoro orelhas de livros, vejo

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trechos de Freud, Jung, Nise, Bubber, Moreno, Lobsang, Rajneesh, Lacan, Platão, Voltaire, Saint--Exupéry, Szasz, Chang, Capra, Moody, Rogers, Beauvoir, Lobato, Quino, Monroe, Veríssimo, Barreto, Cançado, Ferenczi, Angeli, Brunton, Eco, Laing, Freire, Ziraldo, Ludemir, Nietzsche, Feito-sa, Pessoa, Moraes, Pontes, Chacal, Robin... e por aí vou. Se entendo, ai, que bom. Se não, vou em frente, volto, folheio. Antes de dormir, então, lei-turas facilitam o sono, os sonhos. É uma forma de oração, cuidar do que me vai dentro.

As sínteses de Pontes, o Roberto: todo mundo é, todo mundo pode ser. E: o saber em todo ser. Mais ainda: amor e medo, emoções básicas.

Lembro a Chiquita Bacana de João de Barro: existencialista, com toda razão, só faz o que manda o seu coração. E talvez Sartre: não importa o que fizeram com minha vida. Importa o que vou fazer com o que fizeram da minha vida. E o título do livro póstumo de Winnicott: Tudo Começa em Casa.

Atos fractais,um pedaço representa o todo? Pequenos atos

têm me dado informações sobre quem os pratica. Quem joga na rua o lixo que tem na mão me infor-ma que não cuida dos outros. E talvez não cuide dos outros porque não aprendeu cuidar de si. Ima-gino: se não cuida de si, como cuidará de outros?

Mas, como diz Barreto, o Adalberto de Paula, só reconheço no outro o que conheço – tenho? – em mim. Pelo que percebo, outros pequenos atos me denunciam. Se jogo lixo no chão, se falo grosso, se furo fila, se bato em criança, se desperdiço água, se critico alegria, se rio das pegadinhas, da desgra-ça do outro...

Parece óbvio,mas só há pouco tempo constatei que meu humor tem sido meu melhor indicador: se estou de bom humor, estou bem.

Agora sei que só consigo comunicar-me com quem me escuta. E vice versa. A comunicação se dá quan-do entendo o que me foi dito. E sou entendido.

Eu me sinto bem com cada ato que realizo para difundir o que sinto me faz bem.

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Ouvi e concordo: minha saúde é coisa muito séria para ficar nas mãos de outros. Se não cuido de mim, quem cuidará? A autonomia que me permito, desejo a cada um que a deseje.

O sítio de mamãe chamava sossego. Era seu de-sejo. Sem saber disso, meu terapeuta Romel sin-tetizava em cumprimento: saúde, sucesso, sossego. Há espectadores que acreditam mais na TV que na realidade?

Em mim, é lento o processo de absorção de uma nova ideia, de mudança de comportamento. Há 7 anos desejo um sofá. Há 35 quero escrever um livro. Há 50 sonho ser dono do meu próprio na-riz. O que é novo me incomoda, me ameaça. Já desenhei o sofá, tento pela enésima vez escrever um livro, mas inda confundo meu nariz com o de outros.

Com defesas ativas como as minhas – que atra-palham a realização dos meus desejos originais –

imagino quantas inovações, descobertas filosóficas, tecnológicas, insights, invenções, criações... estão disponíveis para a humanidade e não nos chegam ao conhecimento.

Perceboque boa parte dos custos de empresas e empre-endimentos é gerada pelos controles. Controlar dá trabalho, dá despesas. Por outro lado, a neces-sidade de controles diminui quando confianças mútuas estão presentes. Nas relações pessoais, familiares isto é nítido.

Tenho certo que necessidades de controle di-minuem, se cultivadas relações de confiança. O medo gera controles. O amor gera confiança.

Percebo em minha prática individual que quando remunero satisfeito – financeira e emocionalmen-te – serviços que me são prestados, recebo de vol-ta empenho espontâneo, com envolvimento e boa vontade. Quando cuido do outro, o outro cuida de mim, naturalmente.

Admiro a inteligência dos empresários que repar-

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tem lucros com quem com eles trabalha. É na-tural que cada trabalhador reconhecido se sinta reconhecido. E, tanto como se fosse seu, passa a melhor cuidar de tudo ligado ao trabalho: seja de equipamentos e insumos, seja de relações huma-nas com o público, colegas, demais stakeholders.

Administrador, gerente que cuida de quem tra-balha próximo dorme tranquilo, vive melhor, tem assunto com os filhos. Não precisa esconder dos filhos malfeitos para os quais co-labore. Feitores – antigamente? – tinham esta função: obrigar ao outro fazer o que não quer. Administrador que age amorosamente tem retorno amoroso. Pare-ce complicado, mas é simples. É o tal do amor. O tao do amor?

2mamãe

Após a morte de mamãe, minhas irmãs sugeri-ram que eu escrevesse um necrológio. 1919. Nas-ce Heloisa. Vem para os Anjos, família grande numa Montes Claros criança. Amizades profun-das com primas vizinhas de quintais. Tudo tran-quilo neste porto protegido. 1928? Bum! Morre o pai, ficam sua mãe Antônia e 8 filhos. O avô pa-terno, Antônio, orienta, distribui. Cada filho um tio, um parente. 1934, de novo, seu mundo treme. Com a irmã Wanda, sós, vai pro lugar que não co-nhece, Salinas. Imagino inseguranças, saudades, solidões. Vive compaixões, compartilhamentos, cria vínculos. Aprende na vida, ensina no Grupo Escolar. Enamora Rodrigo.

1938, casa. Vêm quatro filhos. Cai a ficha, acredi-ta em si, toma as rédeas.

1948. Salinas fica pequena. Agora vejo, a história como se repete – pra abrir caminhos de liberda-de, distribui por um tempo os filhos: Lina fica

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com Wanda, Stella com tia Odília, Luiz com d. Rosinha. Rodrigo, o marido, cuida de si. Mamãe dá o salto. João vai junto. Belorizonte, Instituto de Educação, mergulha. Volta, respira, arruma as malas, barriguda de Heloisa Helena: volta às ori-gens, Montes Claros, 1951. O marido, é o possível, vai à luta em São João do Paraíso. Contribui de lá. Só com os filhos, a mãe, como defesa, controla. Tudo ou quase. Articula. Rodrigo regressa, a fa-mília recompleta. Sempre, dá aulas, educa. Nos intervalos, costura, remenda, orienta, organiza.

1954. Nasce o D. João Antônio Pimenta, Heloisa diretora, funda um Grupo Escolar. À noite dá aulas no Sesi. Por um tempo, acumula o Colégio Dioce-sano. Conhece, reconhece gente, constrói amizades. Cuida da família, corresponde aos que solicitam, dá as mãos, ensina, ensina, educa, educa, trabalha, tra-balha. Agora cuida também das normalistas: ensina a ensinar. Planta plantas, rega como planta e cultiva ideias, conhecimentos, relações. Solidária em mo-mentos necessários, fortalece o bem. Guarda confi-dências. Reflete, aconselha. Direto e reto. Não deixa para amanhã o que é de hoje. É consigo o que é com outros. Ama os próximos quase como aos filhos.

Delegada de ensino. Gosta. Conversas e conver-sas e decisões. Interage. Norte de Minas e capital. 42 municípios sob sua tutela. Viaja, vai, vem, vai, vem. Modera, modela, representa. Articula para tornar viável, realiza junto. Integra órgãos estadu-ais e cidades. Com a equipe, consensua. Assim, 50 anos de trabalho efetivo. E mais 18, aposentada, sutil nos afetos, atenta, pronta para escutar, pen-sar, falar, agir.

Em toda a vida, emociona-se com serenatas e boas conversas ao anoitecer. Tem mão boa para plantar. Cava, semeia, rega. Adora uma arruma-ção. Quem estiver perto entra na roda. Nos mo-mentos mais diversos, exercita a solidariedade, constrói vínculos, valoriza amizades.

2002. Gasto, o corpo cansa. Rápida como sempre, prevê, organiza, distribui o que suou. E vai. Mi-nha mãe permanece em mim, em nós.

Passado um tempo,quanto mais vivo, cultivo minha mãe boa. Caem em névoa os beliscões, os olhares determinantes, as limitações. Sinto que me compreendo quando

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compreendo mamãe. E olha que, raivoso, briguei com ela um mês antes de sua morte. Mamãe esta-va com câncer brabo, ali em órgãos que filtram, se espalhando. Num momento, ela, aos meus olhos, maltratou uma moça que dela cuidava. Eu – que nunca lhe havia falado grosso – fui duro, impulsi-vo, gritei com mamãe. Ela ali, me olhando estupe-fata, de baixo pra cima, da sua provisória cadeira de rodas. Nos dias seguintes, emudeceu comigo, não respondia a meus “benção, mamãe?”. Diante de minha insistência, foi clara: “Perdoar, perdôo. Mas esquecer, não esqueço.”.

Em relação a mamãe, não sei explicar direito, sei que meu coração está cada vez mais tranquilo. Desconfio que é porque fui sincero comigo mes-mo, com ela. Como fui pró-ativo em muitos mo-mentos que tomei a iniciativa do abraço, do beijo, da palavra doce. Parece que, como mamãe, sou assim, variado também em doce e amargo.

3um quase nada de quase tudo

Então ficamos assim: falo bem de você, você fala bem de mim.

Uma dificuldade enorme, aqui, de aceitar elogios e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sa-bendo que muito do que me move é minha pró-pria satisfação. E identificação. Relembro Marx, o Groucho: clube que me aceita como sócio eu não entro. Não deve prestar.

Sinal de saúde, me orgulho: não sei onde fica meu fígado.

Sujismundo era um personagem sempre rodeado de moscas, sujo, sujador. A campanha na TV foi eficaz: quem jogava papel na rua, se olhado como Sujismundo, se envergonhava, recolhia o papel, se recolhia. A atitude sujismundo gerava culpa e vergonha. A cidade do Rio ficou mais limpa por

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um tempo. Tive notícia também – salvo engano, ali pela Escandinávia – de anúncio audiovisual em que um carro passava excessivamente veloz e, plano seguinte, uma moça fazia um sinal para ou-tra moça – dedo indicador se aproxima de dedo polegar – sugerindo a pequenez talvez do pau do motorista. Anúncios que geram culpa e vergonha.

Imagino agora campanhas publicitárias positivas gerando satisfação e prazer, valorizando a afetu-osidade de quem contribui pruma vida coletiva melhor. É que, passado um tempo, meus convi-vas contemporâneos acreditam mais no que sou, no que faço, do que no que falo e não faço e não sou. Alegria gera alegria, gentileza gera gentileza. Exemplo de campanha assim, pra cima, relembro os conceitos de Pontes para divulgação de colônia de férias pra crianças numa favela: todo mundo é, todo mundo pode ser. O outro, este voltado para a universidade popular: o saber em todo o ser.

Agora eu sei. Cada ato talvez tenha um significado. Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo assim comigo, com o outro mais ainda. Sou então coerente quando jogo cigarro no chão, invado um

sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma palavra indelicada. Mas já sei que outros equilí-brios são possíveis, quando transcendo minha cul-tura masoque, cuido de outros ao cuidar de mim. Se não cuido de mim, como cuidarei de outros?

Tenho lembranças do século XIX, são reais. Na década de 40 do século XX, Salinas estava longe dos grandes centros. As modas che-gavam tempos depois. Sem rádio, televisão, jornal. As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os causos contados na porta de casa eram de mula sem cabeça, almas penadas. Os costumes eram antigos. No porão da sua casa, tia Odília guardava os ossos de seu pai, meu bisavô. Pra se pentear, ela subia num banquinho e só então soltava os cabe-los que chegavam ao chão. Fazia linguiça. Enfiava ingredientes na tripa de porco. Para socar, usava uma chave grande, antiga. E quando curioso eu perguntei: que é isto, tia?, ela – chouriço, menino.

Carrego dentro de mim o que então vivi. Carrego tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o hori-zonte mais próximo, tudo tão mutante.

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Repito e tento: separar o que é meu, o que do ou-tro, especialmente os sentimentos. E quanto aos objetos e moedas, mais do que possuo as coisas, são as coisas que me têm.

Wilhelm Reich me ensinou, na teoria e na práti-ca: meu corpo traz minha história. Quando faço o que gosto, sem perceber trabalho o tempo todo.

Quando cai minha ficha, vejo o mundo diferente.

Tento crescer, mas inda é difícil suportar alegrias. Tristeza é fácil, matava no peito todo dia.

Posso me comunicar com o mundo. Quando compartilho, me acalmo, melhoro.

Se não me permito, a outros inibo.

Dou o livro que gosto, nem sei o que o presentea-do deseja. Só dou o que tenho. Meu corpo hoje me fala, volta e meia me relem-

bra: se quero dormir bem, 5 horas antes já não como. Se como, regurgito, durmo sentado.

Nos sonhos realizo meus desejos?

Parece que quando vivencio situações sou quem melhor poderia conhecer estas situações que vi-vencio. Assim, talvez, potencialmente, seja eu quem melhor saiba das soluções das questões que vivencio. A consciência desta sabedoria talvez de-termine a possibilidade de ação transformadora em mim. Há expressões de outros – falas, atos, artes, escritos... – que me despertam consciências.

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ção de relações, vínculos, confianças, descobertas de interesse comuns – temáticos, territoriais... E trocas, construções de parcerias, realizações de objetivos comuns. Assim se formam capitais so-ciais. Trabalhos sociais e comunitários dependem diretamente da participação coletiva, de cada um.

Redes espontâneas: uma criança nasce, a tia te-lefona pra prima, que telefona pra avó, que fala pros netos, que espalham pros amigos... A rede nasce, cumpre sua função, desaparece. E reapare-ce quando necessária. Muitos agora sabem que a criança nasceu.

São inúmeros os tipos de redes: presenciais, virtuais, fomentadas, redes de redes. Redes são diferentes de cadeias. Redes pressupõem espon-taneidade, ausência de hierarquia. Cadeias não: têm gente que manda em gente. Redes quando se somam, se multiplicam. Multiplicam de tamanho quando se articulam com outras redes. Por exem-plo, quando se comunicam entre si – movidos por interesse comuns – setores públicos, setores pri-vados, movimentos populares.

4redes

Fecho os olhose respondo a mim mesmo: o que aqui procuro? O que aqui ofereço? Imagino agora que posso ex-pressar para todos: o que procuro e o que ofereço. Se este canal de comunicação se estabelece entre eu e outros, tendo cada um de nós esta liberdade de comunicação, estaremos em rede.

Sei, imagino que todos sabemos, que conheci-mento é poder. E compartilhar conhecimento é compartilhar poder.

Cássio Martinho me ensinou: rede é um esforço individual e coletivo de comunicação, um com-partilhamento de informações. Na rede, ausência de hierarquia, presença de iniciativa espontânea de quem participa. Eu praticava redes e não sabia.

Redes fazem parte de um processo que pode chegar a transformações individuais e coletivas. Comunicações entre pessoas possibilitam cria-

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Facilita a formação de redes presenciais a ausên-cia de discriminação de raça, crença, facção, parti-do político, ideologia, gênero, sexo... Também um espaço neutro, onde cada participante se sinta à vontade, seja evangélico, espírita, católico, budis-ta, maometano, taoista, ateu, agnóstico, duvido-so... Ou negro, branco, mulato, amarelo, albino, pobre, rico, remediado, democrata, liberal, socia-lista, anarquista, hétero, homo, bi, pan...

Expansões da rede são estimuladas quando dis-ponibilizadas informações básicas – lista de pre-senças, com telefones, e-mails... – tanto durante os encontros quanto logo depois virtualmente pela internet. Mais ainda se também distribuídos, para cada um e para todos, os classificados sociais, que são descrições das ofertas e procuras que aconteceram durante os encontros. Os Classifi-cados Sociais e as Listas de Participantes servem para facilitar contatos e intercomunicações. Ten-do estas informações em mãos, depende de cada um a iniciativa de contatar e articular parcerias.

E, naturalmente – base para relações humanas saudáveis – vínculos afetivos fortalecem redes.

Linha do tempoDesde cedo trabalho. Hoje vejo o que plantei – onde investi minha vida, meus tempos e energias – e, acredito, compreendo um tanto porque me sinto bem à medida que amadureço.

Em casa engraxava sapatos aos sábados, ajudava a passar a cera no assoalho, colaborava um pouco nos serviços domésticos. Aos 12, informalmente, vendi cestas de natal Titanus. Aos 16, dei aulas particulares de matemática. Aos 17 ou 18, pri-meira carteira assinada, auxiliar administrativo de uma distribuidora de bebidas. Em seguida, ou paralelo, não lembro, repórter policial do Jornal de Montes Claros. E fundei e publiquei, com amigos, o Setentrião, jornal distribuído gratuitamente.

Já na Universidade de Brasília, fui monitor de estatística. Nas férias estagiei em escritório de planejamento e elaboração de projetos. Dei au-las pela Fundação Educacional do Distrito Fe-deral, trabalhei no Ministério da Agricultura, no Fundo Federal Agropecuário, um pouco para o Ministério da Educação. Com parceiros, monta-mos uma pequena tecelagem de camisas de ma-

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lha. No Rio, agora no INCRA, participei de um grupo de trabalho que preparava uma reforma agrária: cuidei da seleção e treinamento de cap-tadores de dados relativos a parceiros, arrenda-tários, proprietários rurais...

Em Amsterdam, quase como umas férias, des-cobertas pra vida inteira, ampliação de visão de mundo. Em Londres fui modelo para desenhis-tas, operário de obra, porteiro e vendedor de sor-vetes num teatro, voluntário na feitura de pães integrais. De volta ao Rio, funções variadas em um punhado de longas-metragens. Assessorei a direção da Embrafilme e, ainda lá, cuidei por seis meses do programa Coisas Nossas, veiculado pela TV Educativa. Na Globo Vídeo fui gerente de marketing sem saber direito o que era. Pulei para novos negócios. Na Fundação Roberto Ma-rinho dei continuidade ao Vídeo Escola, projeto que escrevi – a pedido da instituição anterior – e gerenciei a implantação.

No correr da vida realizei registros em vídeo, espe-cialmente na área psi, que sempre me atraiu. Com Ralph Viana, Valéria Pereira e muitos voluntários

e parceiros ativos realizamos, no Parque Lage, o simpósio Alternativas no Espaço Psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Antes, durante anos, co-laborei com a Rádice, revista de psicologia. Um pouco com o Luta & Prazer, jornal libertário de espírito juvenil. Fui sócio de uma livraria, a Espa-ço Psi. Estive em Moçambique, como cooperante junto ao Instituto Nacional de Cinema.

Realizei e produzi, só ou com parceiros, algu-mas dezenas de vídeo-registros e documentários. Na maioria, singelos, focados mais nos conteú-dos que nas formas. Candomblé, Ilha Grande, Energia da Vida, Auto-hemoterapia, Aparelhos Orgônicos, Aids – Boas Notícias, uma série: Psi-coterapias Corporais. E Quilombo, Folhas Sa-gradas, Terapia Comunitária, outra série – Rio, Estado de Alegria. Também Artistas de Rua, Una Madre de Plaza de Mayo, Práticas Chinesas de Auto Cura...

Na década de 80, criei e experimentei um método, Videomobilização: os limites dos conteúdos eram nossos limites, a propriedade da imagem e do som era da pessoa objeto de gravação. Sugeríamos que,

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quando assistisse o que foi gravado – só ou em companhia do seu terapeuta – desse mais aten-ção aos sentimentos provocados pela sua própria imagem e sons. Compreensões mais profundas corresponderiam a insights tão desejados. Muitos dos clientes eram terapeutas.

O Sesc RioMergulhei no Sesc em 2.000. Éramos poucos mais de 400 para 3 vagas. 7 meses, o processo de seleção. Fui contratado como coordenador técni-co e locado no Sesc Ramos, ao lado do Complexo do Alemão. Minha função era cuidar da progra-mação, facilitar o trabalho de colegas que produ-ziam eventos, atividades sócio-culturais, esporti-vas, de lazer e promoção da saúde.

Quando cheguei, uma média de 150 pessoas fre-quentavam diariamente os espaços da unidade operacional. Quando sai dali pra trabalhar na sede, 1200 a 1500 pessoas diárias. Tudo mui-to em colaboração com os colegas da época que apoiaram transformações. Logo no início, com a intenção de desburocratizar, estudei os caminhos dos papéis. Na verdade, os caminhos desde a

ideia à avaliação, passando pelo consenso na pro-gramação, alocamento de recursos, preparação, contratações, realização, pagamentos... Criamos e implantamos ali uma metodologia que chamei de Sistema Sesc de Produção.

Processos e procedimentos se simplificaram e, com o tempo, natural e espontaneamente outras unidades operacionais do Sesc Rio adotaram a metodologia. Nela, o IBAS – Informações BÁ-Sicas – que nomeei em homenagem a Betinho, do IBASE, continha respostas às 7 perguntas básicas necessárias para a realização de eventos e atividades: o que, quando, porque, como, onde, quem, quanto. Criamos e distribuímos muitos e muitas folhetos e filipetas para os moradores da área, convites para frequentar o espaço. Experi-mentamos, junto a funcionários, um outro mé-todo que chamei de Rodízio Criativo. E criamos e implantamos as Redes Comunitárias, adotada posteriormente pela instituição como um todo. Ampliamos a atuação para fora do espaço físico do Sesc Ramos. Fomos até onde nosso público estava. Era o Sesc fora do Sesc. Tudo isto estimu-lado pela missão original do Sesc:

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“O bem-estar social dos comerciários e seus dependentes, através de serviços de caráter sócio-educativo nas áreas da Saúde, Cultura, Educação, Lazer e Esporte, com qualidade e efetividade. Bem-estar social é aqui entendi-do como o resultado de ações de uma estrutu-ra de atividades e serviços de cunho educativo que contribuem para a informação, capacita-ção e desenvolvimento de valores.

Os comerciários e seus dependentes repre-sentam o público prioritário do SESC-RJ na prestação de seus serviços, os quais são tam-bém extensivos à sociedade.”

Lembro que o Sesc faz parte do Sistema S – Sesi, Senac, Senai, Sebrae, Sest, Senat, Senar... Do que entendi, o Sistema S trabalha com dinheiro público e tem missões originais voltadas para o público, especialmente trabalhadores e seus de-pendentes. Em relação ao Sesc, especificamente, comerciários e seus dependentes podem frequen-tar gratuitamente suas dependências e usufruir dos serviços que as unidades operacionais do Sesc oferecem: eventos e atividades nas áreas de

esporte, lazer, sócio-educativa, turismo e saúde, como, por exemplo, assistência odontológica de boa qualidade.

Sou profundamente agradecido à instituição pela oportunidade de ali realizar trabalhos com o senso ético que carrego em mim. Porém, não me identifico com a orientação definida pela direção do Sesc Rio nos últimos tempos em que lá traba-lhei, em 2011.

VídeosJá na sede, no Flamengo, na Assessoria de Projetos Comunitários supervisionada por Gilberto Fugi-moto, planejamos e realizamos diversas ações co-munitárias, enormes e pequenas. Para difundir a metodologia encomendamos e orientamos a reali-zação do vídeo institucional Redes Comunitárias.

Um tanto pela importância daquilo que fazíamos, eu me propus realizar registros em vídeo, espe-cialmente de encontros de redes comunitárias. Comprei, com meus recursos, equipamentos – 2 conjuntos: câmeras, tripés, microfones direcio-nais, extensões... – e gravei. Gravei muito. Já no

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momento das edições, solicitei e recebi o apoio do Sesc, que pagou o trabalho de edição. Em contra-partida inclui nos créditos agradecimentos e auto-rizei copiagens para distribuição junto a pessoas e instituições interessadas na metodologia. A par-tir do movimento de cada um que se identificou – vivenciou e tomou conhecimento do novo jeito de se encontrar e objetivar conversas – as redes se ampliaram e se ampliam.

No Sesc criamos outros encontros. O METS – Movimentos Emocional e Transformações So-ciais, com Michel Robin, nos espaços do Centro de Movimento Deborah Colker – encontro-pes-quisa em busca de informações sobre mudanças individuais e coletivas. O LPS – Livre Pensar So-cial, com Gilberto Fugimoto – roda de conversa entre instituições interessantes e interessadas no bem estar social. O CCI – Comunicação Comu-nitária Interativa – roda de conversa entre pesso-as atuantes em comunicações comunitárias, com a participação de George de Araújo.

Os vídeos que realizei com o apoio do Sesc Rio estão disponíveis para que a instituição utilize em

benefício do público. Estão acessíveis no www.luizsarmento.blogspot.com e no www.videolog.tv/luizfernandosarmento. Disponibilizamos tam-bém pouco mais de 500 classificados sociais, um a um, no http://www.youtube.com/redescomuni-tarias. Tudo um tanto singelo.

Relações humanasincluem relações emocionais. O que me leva ou o que me impede relacionar com outro? Os METS foram encontros periódicos, às vezes esporádicos, que procuravam congregar quem considera desenvolvimento emocional como base para desenvolvimento humano e social. Demos um tempo nos METS quando conhecemos as TCs – Terapias Comunitárias, criadas por Adalberto de Paula Barreto. Nas TCs, teoria, metodologia e prática somam conhecimentos acadêmicos e populares. A TC é política pública no Brasil, hoje. Saiba + no www.abratecom.org.br, no www.luizsarmento.blogspot.com ou no www.videolog.tv/luizfernandosarmento

Os LPS – Livre Pensar Social – eram encontros voltados para reflexões e fomento de políticas pú-

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blicas. Articuladores, apoiadores e realizadores de projetos comunitários – sem compromisso con-clusivo ou deliberativo – compartilham ideias, in-formações e reflexões focadas em desenvolvimen-to humano, social, integral.

Antes, apoiado nas práticas por Lídia Nobre, a assistente social, criamos as Redes Comunitárias, onde cada participante tem espaço para falar do que oferece e do que procura em relação ao lugar que vive ou ao tema que lhe interessa.

Pra mim, redes comunitárias cuidam do objetivo. E terapia comunitária do subjetivo. Como tudo, ou quase, na vida, varia.

A ideia das Agências de inFormação deu motivo para que George de Araújo e eu, com apoio de Carolina Pelegrino e Andrea Medrado, reali-zássemos os CCI – Comunicação Comunitária Interativa, encontros de pessoas e instituições ativas e interessadas em levar e trazer informa-ções para quem não é escutado e para quem não é representado por mídias formais. É gente que trabalha com jornais, rádios, TVs comunitários,

folhetos, alto-falantes, comunicação popular. Gente que leva e traz informações e notícias, inte-rage com seu público. E que, nos encontros, refle-te sobre o que faz e comunica, conteúdo e forma.

Estes encontros muitas vezes foram sementes que geraram vínculos, parcerias e movimentos. Tudo em ondas, frutos de contribuições de cada um, de acordo com suas possibilidades e desejos.

Gravei em vídeo, com apoio de muitos, muitos destes encontros. Cada editor – criação e muito suor – deu personalidade a cada vídeo. Em sua maioria, os vídeos estão na internet.

Os ouvintes querem falar:todos sabemos que há gente procurando e ofe-recendo de um tudo. Quando se encontram e se entendem, se suprem. Quando não sabem um do outro, oportunidades desaparecem.

Início do milênio, Sesc Ramos, ao lado do Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Fórum Transformações Sociais – O que Pode dar Certo. Palestrantes experientes numa mesa,

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trezentas pessoas na platéia. Nem mesmo falas interessantes interessaram aos presentes. Em menos de uma hora, evasão. Das trezentas, somente umas cinquenta, sessenta ficaram.

Levamos o microfone ao público. Agarram, bo-tam pra fora: “o governo não presta...“. Muita gente na fila, todos querem falar. Eu, inseguro: “Peraí! Seja objetivo por favor: o que você veio procurar aqui? O que você veio oferecer? Dois minutos para cada um.”.

Pronto, surgiu o jeito, a metodologia. Convida-mos quem se interessasse para uma primeira con-versa, juntos. Em roda, os tratos iniciais - aqui, neste momento, somos iguais em direitos e de-veres. Encontro sem palestra nem eventos, só as falas individuais...

Cada um sintetiza quem-é-o-que-faz, se-repre-senta-uma-instituição, o que procura, o que ofe-rece. Tempo limitado, um-dois-cinco minutos, dependendo de quantos estão presentes e do tempo total que pretendemos estar juntos naque-le encontro.

É um desafio sintetizar, falar pouco e objetivamente. Aprendemos juntos. Para facilitar o controle dos tempos individuais, há encontros em que utilizamos uma ampulheta, outros em que batemos palmas no limite ou simplesmente avisamos, cordiais: tempo esgotado. Depois que todos falam, os interessados se deslocam para o café. E, ao redor da mesa, cada um aprofunda a conversa com aqueles por cuja oferta-procura se interessou. Trocam informações, ideias, se conhe-cem. Constroem parcerias.

Base das redes comunitárias, os encontros são voltados para a construção de realizações, para a prática de parcerias, através de pessoas repre-sentativas – interessantes e interessadas – de co-munidades e instituições privadas, públicas e do terceiro setor. De modo simples e objetivo, cada representante se apresenta e fala o que veio procu-rar e o que veio oferecer. Todos têm oportunidade de falar e ouvir. E, quando cada um sabe quem é quem, o espaço se abre para o aprofundamento de relações e formação de parcerias. Normalmente os encontros acontecem periodicamente – men-salmente, por exemplo – no mesmo local ou em

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espaços alternados. A metodologia naturalmente é adaptável a cada realidade. O importante é que gere os frutos desejados e possíveis.

Permanecem como memória os classificados so-ciais e a lista de participantes. Nos classificados, cada um descreve sinteticamente o que oferece, o que procura e dá seu nome, telefone, email. Estes dados são posteriormente digitados e disponibili-zados diretamente para cada um – via email – e quando possível para o público em geral, também virtualmente através da internet. Cópias xeroca-das podem ser distribuídas para os participantes de encontros posteriores. Estes classificados são cumulativos: a cada encontro, novas ofertas e pro-curas, relativas a novos e antigos interessados.

Rodízio criativo:imagine uma instituição de porte médio: empre-sa, serviço público, ong... Em consenso interno, trabalhadores de um setor liberam um ou mais do grupo, por um ou mais dias, para visitarem--estagiarem em outros setores. Os que permane-cem no setor original cuidam do cumprimento

do conjunto das suas obrigações normais. Esta a ideia básica.  Parece ser bom para a instituição – e para o traba-lhador e seu grupo – que cada um tenha o olhar do todo, além de capacitação aliada ao seu próprio desejo. E parece ser bom para cada trabalhador ter acesso a oportunidades que facilitem acrésci-mos a seus conhecimentos pessoais e profissio-nais. A prática tem ensinado o melhor caminho.

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5agências de

inFormações

Consciência É mais fácil eu compreender meus processos de transformações, quando reconheço e considero o que vai pelo meu inconsciente. Meus atos falhos me dão sinais. E o que eu compreendo em mim, talvez melhor compreenda no outro, nos outros. Reich, Freud, Jung me ensinam que eu, no correr da vida, adquiro e internalizo defesas. Elas têm a função de impedir incômodos, especialmente sentimentos.

Por outro lado, a construção de relações de con-fiança facilita comunicações mais profundas. As-sim, antes de entrar propriamente nos conteúdos, é necessário cuidar de mim, estabelecer aproxima-ções comigo mesmo. E depois com o outro. Como no namoro: há o olhar, a empatia, a delicadeza na aproximação, as identificações comuns, os sinais, o pegar na mão, a construção da relação.

As inFormações profundas somente chegam ao seu destino quando o destinatário está receptivo. Comunicar é uma arte.

Agências de inFormaçõesRetrato rápido: jornais pendurados nas bancas exibem quase sempre as mesmas notícias, escritas de forma um pouco diferentes. As fontes de infor-mações, parece, são as mesmas. No Brasil, umas poucas agências de notícias. Agências O Globo, Folha de São Paulo...?

Uma jovem conhecida, na primeira década do sécu-lo XXI, registrou que manchetes de grandes jornais de 27 cidades européias exibiam, no mesmo dia, fo-tos semelhantes sobre a mesmo assunto. Também lá poucas agências como fontes de informações. Reuters, UPI, France Presse, China Press...

Bom problema: como podemos contribuir para chegar a nós, à população, informações diversifi-cadas e com qualidade de conteúdo? É possível a realização de uma ou mais agências de inFormações independentes. Porém, estas

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novas fontes só fazem sentido se os conteúdos das inFormações a serem oferecidos contribuí-rem para o bem-estar – individual e coletivo – de quem as produza e de quem as receba.

De outro lado, observa-se,tudo potencialmente conspira a favor: conteú-dos, público, veículos, financiadores, apoiadores. Há conteúdos de qualidade ainda invisíveis para a maioria da população. Há veículos potencial-mente interessados em difundir estas inForma-ções. Há públicos potencialmente interessados nestes conteúdos. Há instituições potencial-mente apoiadoras e/ou financiadoras de agên-cias de inFormações voltadas para o bem-estar coletivo. Há pessoas e instituições animadas, in-teressadas em fazer circular estas inFormações. Como integrar estes conteúdos, veículos, públi-cos, apoiadores-financiadores, pessoas-institui-ções animadas?

A ideia é simplesUma agência, inicialmente com inFormações atemporais. Uma pessoa, um espaço, que pode ser residencial ou institucional. Um computador,

telefone, scanner, fax, internet, softwares que fa-cilitem acessos a veículos de comunicação.

Havia no mercado – há ainda? – empresas espe-cializadas que oferecem softwares e dados atuali-zados sobre veículos de comunicação de todo o Brasil – rádios, jornais, TV, revistas... Informam seus endereços físicos e virtuais, telefones, emails, nome de editores de áreas específicas e mais. Assessorias de Imprensa utilizam estes serviços, talvez saibam melhor de quem fornece dados e softwares. Como exemplos, a confirmar, o Comu-nique-se www.comunique-se.com.br, o Meio & Mensagem www.meioemensagem.com.br

Esta pessoa que se propõe ser um agente de in-Formações: contata e articula produtores de in-Formações atemporais, constrói um baú virtual de textos disponibilizáveis, contata e articula edi-tores e colunistas de veículos de comunicação em todo o país, oferece os textos do baú. Assim, trata e se relaciona com um conjunto de veículos que disponibilizam para seus leitores as informações originais que esta pessoa cuidou de produzir.

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Se há interação com os leitores, novas inForma-ções chegam às agências, realimentando o proces-so, dinâmico. Vão e vêm inFormações. Esta pessoa: ao aprender-fazendo, testa e recria--adapta à sua realidade uma metodologia singela que poderá ser compartilhada com instituições e pessoas ativas, interessadas em montar suas pró-prias agências para fomentar a difusão – através de veículos de comunicação já existentes – de in-Formações específicas atemporais. Na prática, o que agências de inFormações poderão oferecer: no mínimo, artigos e contribuições para pautas de veículos de comunicação já ativos.

Imagine agências independentes de inFormações focadas em conhecimentos de interesse público. Inu-meráveis. Só de pensar o que me interessa – e, acre-dito, também a muitos – sonho de estalo agências voltadas para educação, saúde, agronomia, alimenta-ção... Ou específicas para pais, para crianças, escolas... E para psicologia-psiquiatria-psicanálise, para oferta e procura de trabalhos, esportes, teatro, brincadeiras, voluntariado, solidariedade... Podem ser inForma-ções específicas. Ou gerais...

Imagino um mundo com inFormações variadas, de fontes diversas... que eu tenha prazer em saber e compartilhar com meus filhos, vizinhos, amigos, com o mundo ao meu alcance.

Vejo os jornaise me angustio com a constante escolha do Esta-do-polícia pela atuação mortal ao invés de utilizar inteligência e afeto. E me pergunto: que atuações benéficas estão ao meu alcance?

Ao meu alcance está cuidar de mim e das minhas relações com quem convivo: filhos, amigos, vizi-nhos, colegas de trabalho. Escutar um e outro que procuram por escuta, me colocar no lugar do ou-tro, seja próximo ou passante.

Cuidar de mim significa também mudar para o melhor programa, fugir da fofoca, escolher meus pensamentos. Lembro Wittgenstein, de quem penso que sei só isto: o pensamento é a linguagem.

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6vários eu

Sinto um pedaço do mundoOutra noite encontrei uma moça a chorar de dor. Está com medo de caminhar sozinha. Relata que alguém tapou sua boca, tentou estuprá-la. Ao re-agir, levou um paralelepípedo na cabeça, dói e dói. Quer ir ao pronto-socorro, quer fazer queixa à polícia. Não sabe escrever nem ler. Caminhamos de quase Parque Guinle até o Largo do Macha-do. Só consegui escutar e oferecer o da condução. Inda nervosa, inda com medo, toma o ônibus pro hospital. Um tanto de sua tristeza e impotência ficam comigo. Negra, pobre, gorda, catarro e tos-se, lágrimas, tristeza, raiva e rua como residência.

Relembro pra não me esquecerAquela de Adalberto de Paula Barreto: que você quer que eu queira preu querer? Toda vez que me lembro dela, lembro de meus momentos de sub-missão. Hoje sei que é uma pergunta que só devo fazer ao espelho.

Do que entendi de Freud, sonho com o desejo re-alizado. Em Interpretação dos Sonhos, ele fala de que, quando à noite come azeitonas ou algo sal-gado, vem sede durante o sono e tende a sonhar tomando algo que supra a sede que de fato sente. Quando acorda, acorda com sede. Mas sonha su-prindo a sede, realizando o desejo.

A comunicação se dá quando o outro entende o que falo. Alguém já disse algo como a comunica-ção se dá quando o outro entende.

As coisas me têm, mesmo que eu tenha as coisas. Se tenho um carro, um trabalho para mantê-lo. Se dois, mais trabalho. Se tenho um computa-dor, devo limpá-lo, espaná-lo. Ou trabalho eu ou quem eu trate para trabalhar por mim.

Ah, se eliminássemos os controles do mundo, quanto trabalho a menos, quantos recursos libe-rados. Talvez, lá no fundo, os medos sejam as ori-gens dos controles.

Aqui escolhas constantesentre prazer e dor. Treino esboço de sorriso, arris-co o palco que desejo. Tropeço, volto pro espelho,

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reclamo de mim mesmo. Como num bolero, dois pra frente, um pra trás.

Não me lembro quem me lembra: seja o mundo que você quer. Outros eusNo viver minha vida construo minha visão de mundo, que se transforma de acordo com o que vivencio.

Tem gente que sente que o mundo lhe deve. Acu-mula. Tem gente que sente que deve ao mundo. Se sacrifica. Tem gente que o mundo e o eu são um só. Compartilha com o outro que é eu. Ora é um, ora é outro. Como eu, ora sou um, ora outros.

Outra noite – que outro dia foi ontem – ainda incomodado com um documentário sobre a re-pressão de 40 anos de ditadura na Albânia, olhei no espelho. Eu tinha 18 anos quando militares tomaram o poder em 64. E 39 quando houve no-vamente eleições, mesmo que indiretas. Nestes 21 anos de minha juventude aprendi o medo de me expressar livremente. A quase paranóia, descubro

chateado, volta à tona volta e meia. Tanta coisa pra desaprender...

Olho pra trás, pra antes de mim e, um tanto inseguro, confirmo que o homem que domina outro homem está presente no decorrer dos tempos. Dominador e dominado se complementam, talvez co-responsáveis pela situação. Um age como se o mundo lhe devesse um tanto... e toma do outro como se fosse seu. Outro se submete, como sem saber do que é capaz.

Na tentativa de olhar com o olhar do outro – daque-le para quem o outro não tem valor – a associação que faço, imediata, é de que algo lhe foi tirado. Se na infância ele viveu em si, incompreendida, uma falta, ele quer agora isto e aquilo e mais. Aquela falta ge-rou uma necessidade constante de ser tapada, como se fosse um buraco “agora dentro de mim”. Sem cons-ciência da falta original, consome a vida em busca de poder, objetos e afins. Arrisco: se desmamado de repente, fica um vazio incompreendido?

A mesma falta afetou os afetos. Agora, uma busca constante de afetos perdidos, de reconhecimento. Não só isto, mas um tanto.

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Já o oprimido aprendeu desde cedo que não tem valor. Relembro Groucho Marx – clube que me aceita como sócio, não entro. Quem o aceita, não serve. Tão desvalorizado diante de si mesmo, como respeitar a quem o valoriza?

Ao contrário, parece que o complexo de inferiori-dade esconde o de superioridade. Ah, você pensa que sou fraquinho? Você não sabe como sou forte. Você vai ver! Me engano que gosto.

Reconheço este homem – um e outro – a partir do que me conheço. Antes desvalorizado ante mim mesmo, descubro pouco a pouco meus va-lores. Tanta vida aprendendo o que agora procu-ro desaprender. Tantas faltas sem sentido ago-ra se esclarecem, mesmo difusas. A alegria fica mais próxima, o poder menos necessário, obje-tos também. E estes menos dão menos trabalho, libertam-me.

Mas dói quando vejo recursos empregados pra suprir reconhecimentos e faltas, pra mostrar po-deres que nem são.

Pedaço de conversade rua, duas mulheres que passam: “...não viveu a vida, morreu cedo. Todo mundo se ajeitou.”

Civilização? Quanto tempo os vikings demora-ram pra se transformar em suecos? Mudanças de comportamento, do que tenho aprendido, mais se dão com o passar de anos. Às vezes na mesma geração, às vezes não.

Ferenczi pra Freud. Freud pra Ferenczi, corres-pondências. Papo reto, direto. Atos falhos expos-tos. Tudo com delicadeza. A dureza do dito agora espanta, em seguida aproxima. Auto-análises, ex-posições do confuso, da dúvida.

Ferenczi ama a mulher mais velha. Comparti-lham interesses intelectuais. Ela é quase comple-ta, só lhe falta juventude. Ferenczi analisa a filha da mulher que ama, contra-transfere, se apaixo-na. Pede ajuda, Freud analisa a moça. Os 4 sabem do triângulo familiar. Ferenczi dá razão à razão, transpõe a emoção. Amizades se constroem. A psicanálise se refina.

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Fofoca Esta ouvi do Dr. Fritz, em transe: João falou pro Pedro: quero lhe contar o que aconteceu com Joa-quim. Pedro perguntou: o que você vai me contar, é bom pro Joaquim? E João: não. Pedro continua: e pra você? João: não. Pedro, de novo: e pra mim? João: não, não é bom pra você também. Pedro arremata: então não me conte não.

De Agnès Jaoui, que exerce múltiplas funções, em matéria d’O Globo: Ser atriz e cantora é como ser criança, a gente brinca. Escrever é como ser adulto. E dirigir é como ser um pai ou uma mãe, você tem que prestar atenção a todo mundo. São profissões di-ferentes, por isso amo todas.

7lembranças

Escrevo para lembrar:olha eu aqui, existo. Também para me entender, a mim, a outros, ao mundo. Quero ser reconhecido, amado. Tenho medo do que não compreendo. O que não compreendo, no início, é difuso, confu-so. Não enxergo um palmo diante do nariz. Sin-to que viver é perigoso, mas não viver parece ser mais. Quando apalpo, ando, chego mais perto, a vista se acostuma à névoa, o mistério vai clarean-do, a compreensão substitui o medo, alguma or-dem se segue ao caos.

O tempo passa, a memória me trai, multiplicam--se os mistérios. Sessenta e um anos e permane-cem marcas infantis, desejos juvenis, dúvidas an-teriores a mim. Tem coisas que sinto que sei. Um tanto aprendi do que vivi. Outros tantos do que li, ouvi, encostei, cheirei, provei.

Agora a memória mais remota é porta de rua, gente grande conversando, eu com dois, três anos.

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Ficaram histórias de almas de outro mundo, mu-las sem cabeça, uma foto de uma morta num cai-xão. No berço, sombras. Os olhos fechados pra fugir dos medos. Tão apertados que distorceram – na segunda infância, sem enxergar direito, fui Luiz Ceguim.

Eu era pobre e não sabia. Não havia o que compa-rar, felicidade e infelicidade eram desconhecidas. Não havia rádio, telefone, televisão, internet, luz elétrica. Calorão tropical. Farinha na cuia pros que pediam esmola à porta. Água do pote pra be-ber. Chão de espécie de tijolo. Arroz, feijão, fari-nha, rapadura, carne seca. Gamela, pilão. Banana, melancia, manga. Café torrado, fogão a lenha. Ba-nho frio na bacia, toalha de saco. Roupa lavada no rio. Praça com cruzeiro, esquina de rua que leva ao cemitério, mortos que passam carregados em seus caixões. O vizinho que estudou muito e ficou doido. A tia mocetona, presa no quarto, canta ser-taneja se eu pudesse, se papai do céu me desse duas asas pra voar...

Hoje sinto que era rico e não sabia. Não sabia se eu era pobre ou era rico. Nem sabia o que era ser

rico ou ser pobre. Daquele tempo ficou em mim, forte, a memória afetiva. Já os fatos, como névoas.

Mamãe chegou a Salinas pra dar aulas,aos quinze anos. Papai já estava lá, amado e mi-mado pelo pai adotivo. Cheguei quando meu ir-mão e duas irmãs já tinham nascido. Mamãe aos vinte e sete, quando se percebeu grávida de mim, imagino o sentimento imediato: ah, não! Talvez só minha imaginação, não ter sido desejado no primeiro momento.

Soube por mamãe que, aos 29, cuidou cuidar da própria vida. Um filho em cada casa de amigo, o mais velho com ela, foi se capacitar em Belorizon-te. Isso facilitou a nossa mudança, dois anos de-pois, para Montes Claros, onde mamãe estava em casa, próxima a muitos dos seus catorze irmãos, parentes e amigos de infância.

De Salinas minha memória traz os cheiros, os sons, o sol, uns medos, uns deslumbramentos. Imagens das pernas de presos pra fora das janelas da cela, um clima de festa na feira dos sábados – bruacas, animais, sacos de grãos e farinhas, gente,

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muita gente. Eu num vai e vem, movimento no movimento. Panelas, boizinhos e cavalinhos de barro, colheres de pau, biscoito, requeijão, pão de queijo, tacho de cobre. Um bocado de mistérios.

Já em Montes Claros, medo mesmo tive no cate-cismo. Aquele inferno que nunca acaba, chamas eternas, pavores. E as dúvidas do que era pecado mortal, venial. Quaresma, panos roxos cobrem os santos, carne nenhuma à mesa. Os olhares tris-tes das imagens, os ferimentos de cristo. Os dez mandamentos, os sete pecados capitais. A proibi-ção do ócio, do sexo, da raiva, da alegria, das ex-pressões de emoções. Eu era pecador e não sabia. Antes eventualmente sofria, agora o sofrimento estava dentro de mim, constante.

À crueldade dos adultos se somou a das crianças. Mamãe definiu: brigou na rua, apanha em casa. Inseguro, provocado, tirava os óculos, fechava os olhos, dobrava o corpo e dava murros às cegas. Apanhava na rua, apanhava em casa. Até hoje não sei brigar.

Mas brincava de roda, pegador, seu rei mandou dizer. Ouvia serenatas, me lambuzava de manga, pipoca era uma festa. O cheiro que a chuva pro-voca na terra, finca, bilboquê, luta de espadas, pa-pagaio na linha, pé no chão. Latim, matemática, desenho, trabalhos manuais, português, geografia, religião, história. Um pouco de francês, inglês, co-ral. Recreio, trabalho na cantina. Férias. São João, passeios no mato, banho de rio. Tarzan, Mandrake, Fantasma, Cavaleiro Negro, Zorro. Matinê, seria-do, Rock Lane, Roy Rogers, Kung Fu. A boiada passando na porta de casa. Os compromissos es-colares, as obrigações caseiras – comprar o pão, en-graxar sapatos, passar cera no assoalho, arrumar a cama, levar e trazer o que for preciso, eventualmen-te buscar marmita. E olhares afetuosos de quem gostava de si. E de mim.

Permaneço criança,fantasiado de adulto. Sinto hoje minha criança presente em tudo o que sou e faço. Amadurecendo, aprendo agora gostar de mim. Reconheço – recor-do que fiz o melhor que soube, que pude em quase, se não todos, momentos da minha vida.

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Depois, horas dançantes, desejos fortes. Os apertos de mãos, o bate-coxas, os rostos colados, os beijos de língua, as mãos nos peitos. A iniciação no bequinho dos meninos, o risco, o frisson, o gozo rápido. Sempre presente, proibido – um tanto fora, um tanto dentro de mim – o sexo. Aos doze, para ganhar um pouco, vendi cestas de na-tal. Que alegria um dinheirinho fruto do meu traba-lho. Depois, lá pelos catorze, aulas de matemática pro filho do representante da Brahma na região, que me contratou depois como auxiliar administrativo. Fiz o segundo científico em Belorizonte, o primeiro e ter-ceiro em Montes Claros. Vestibular – não passei em BH – escolhi, mesmo sem saber o que era, economia e lá fui eu pra Brasília. Dei aulas de matemática à noi-te no Gama, fui monitor de estatística na UnB, esta-giário no Ministério da Agricultura, Socorro foi meu amor e com razão me deixou. Sai de dois serviços públicos, errei como pequeno industrial de malhas. Arrisquei o Rio.

Início dos anos setentaConjugado dividido em Copa, um karman-ghia, paquera aleatória diária, sexo como objetivo. Cul-

pas misturadas com prazeres. Trabalho no Insti-tuto de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, aqui responsável pela coordenação do treinamen-to e seleção de quem cuidaria de fazer os levanta-mentos de dados em campo.

O combinado era uma passiva reforma agrária, através da taxação progressiva tanto das pro-priedades menores, os minifúndios, quanto das propriedades maiores, os latifúndios. Maiores ou menores em relação à área definida em cada mi-crorregião como a suficiente para a sobrevivência e desenvolvimento econômico de uma família tra-balhadora. Levantamento feito, memória difusa, quem detinha o poder de assinar, decidir optou pela proteção aos latifúndios.

Larguei mais este serviço público, vendi o carro – já um fusca – e, com Ana, pegamos o navio em direção incerta, hippies sem saber que éramos. Uma semana em Barcelona, dez dias em An-dorra acolhidos por um índio peruano, um frio danado, atravessamos a Europa batendo a mão, carona pura até Amsterdam. Lá, centro da cidade, na redlight, mulheres na vitrine, encontramos um

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quarto bom, ambiente aquecido, chuveiro externo quentão, baratinho. Ana foi posar na escola de de-senho e pintura, eu aprender a bater perna.

O Kosmos, um choque. Centro cultural para jo-vens holandeses, financiado pelo governo, duas moedas pra entrar, de cara um salão grande, algu-ma fumaça com cheiro bom como os dos bolos e tortas, música suave, pessoas calmas espalhadas. Outra porta, um forno elétrico, barro à vontade para quem quisesse esculpir e levar. Depois um salão, cubos grandes em muitos níveis, espaço para apresentações de artistas passantes, asiáti-cos, europeus, africanos, latinos, americanos, de outros mundos. Desço escada, uma cozinha com aquelas comidas estranhas, cheirosas, leves, casei-ras, que depois descobri macrobióticas e naturais. Sauna grandona, homens e mulheres conversam e agem como se não estivessem nus. Tudo muito paraíso. Noutro lugar, à noite, o Paradiso. Coca e maconha oferecidos na calçada, música a mais moderna adentro. Corri da coca, medroso de me apaixonar. Aos meus olhos tudo muito leve, tudo muito puro. Alegria quase insuportável. Assim as portas se me abriram para outras janelas.

Antes, em Brasília, vislumbre de nova vida. 1965, dezoito anos, meus tempos e afazeres por minha conta. Duzentos e trinta professores demitidos, greve boa parte do ano na universidade. Estudos intercalados com aventuras. A população masculina predomina-va. Zona boêmia, rendez-vous só fora do distrito federal. Pegava carona, lá ia eu mendigar por amor, carinho, consideração. Bati errante, errado em portas erradas. Madrugadas frias, solidão.

Também por carência - necessidade de estar pró-ximo a colegas, de ser aceito - perdi no baralho muito de minhas mesadas. Já no segundo ano, mo-nitor de estatística na universidade, estagiário de economia no Ministério da Agricultura, professor de matemática para o ginasial de escola da Fun-dação Educacional do Distrito Federal. Em 66 já tinha um fusquinha. Em 67 completei rapidi-nho todas as matérias do currículo de Economia, fiz outras de Administração Pública enquanto esperava o tempo mínimo para me diplomar.

Muito jovem aprendi a ser bonzinho. Pra não apa-nhar, literal e simbolicamente. Como uma defesa

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diante do mundo. Meu humor era leve, brincava fácil. Cedo percebi que podia escolher meus ru-mos. Era só me responsabilizar pelos resultados do que fazia.

Atenção redobrada ao que acontecia fora e dentro de mim, ao que era real e ao imaginado. Medos antecedendo às decisões. Culpas depois das ações. A cada fugida da regra, da normalidade, medos e culpas e reflexões.

Erro e acerto, tateando atento, emimesmado. A regra de ouro presente: não fazer a outro o que não desejo pra mim. Como auto-referência, meu humor. Se bem-humorado, vale, valeu. Se mal, o que está ao meu alcance?

Adulto jovem descobri que quando alguém me diz não! devo rapidim verificar se este não é de quem diz ou é meu. Volta e meia querem cortar meu cabelo, mu-dar meu jeito, trocar minha camisa, que eu cons-trua uma pirâmide. Normalmente é problema de quem tem problema com seu próprio cabelo, seu

jeito, camisa. E de quem complica sua vida cons-truindo as pirâmides que inventa.

Agora mesmo agradeço oportunidade de me candidatar a recursos para realizar documen-tário que quero. O assunto, terapia comunitá-ria, me interessa profundamente. Mas me an-gustiam prazos, prestações formais de contas, limitações externas de conteúdos. Acordei já com o estômago contraído. Decido pelo que desejo e está ao meu próprio alcance, com meus recursos e tempos. Imediatamente meu corpo relaxa, meus pensamentos se aquietam, me acalmo.

Nada a ver, tudo a ver, uma quase dúvida: juven-tude é estado de espírito? E velhice?

Amsterdam se foi inesperadamenteA morte da mãe de Ana nos trouxe de volta. Fo-mos até Cádiz, atravessamos o estreito de Gi-braltar, Marrocos. Meu rabo de cavalo agora em coque, receio não ser aceito cabeludo em cultura estranha. Tetuan, o ônibus tosco pega e deixa pelo caminho gente, carga e animais. Punhais

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saem de djelabs para descascar frutas, cortar nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos trancos, Marrakesh.

No Zoco, mercado central, montes de castanhas, aquela música serpenteante vinte e quatro horas por dia. Gente que conversa pegando na gente. Um que passa com duas luvas de boxe à procu-ra de contendores que apostem no seu próprio taco. Às tardinhas, o mesmo personagem – aga-chado como seus espectadores – conta histórias como novelas.

Um menino me puxa e oferece atento a tudo – kif, kif, cinq dirrans! Compro aquela mão cheia de maconha - haxixe? - vou esgueirando pra pensão, aperto um baseado com alguns desconhecidos aventureiros espanhóis, fica tudo escuro de re-pente, perco a visão por catorze horas. Badtrip. Talvez decorrência daquele ácido potente que to-mei inocente no banheiro em Amsterdam, alguns dias atrás – fiquei então seis horas em orgasmo contínuo, e outras tantas em puro terror, a zanzar pelas ruas e canais da cidade estranha.

Na África a visão voltou, meus medos me fizeram limitar-me ao botequim frequentado por euro-peus errantes como eu. Enquanto Ana, como se estivesse em casa, já com vestimenta local, andava pelos becos a descobrir de um tudo da cidade e sua gente. Só Jung pra explicar esta memória an-cestral de Ana, nascida Aben-Athar.

Pegamos o destino errado, na volta Só homens no vagão, o chefe de trem sacou o pe-rigo e nos acomodou numa cabine isolada. Passa-da a noite em nebulosa direção, retomamos não sei como o caminho para Casablanca. Dali, Espa-nha, Portugal ainda salazariano, avião pro Brasil de Médici. Ou Geisel.

No Rio, busca de uma nova rotina, burocracias. Nos meses que antecederam a ida pra Europa morávamos sete numa casa, comunidade urba-na criada por nós – Ana, Paulo Cangussú e eu. Inicialmente três, colocamos anúncio em jornal, talvez Pasquim ou JB, e acolhemos quatro desco-nhecidos. Era tanto movimento que volta e meia dormíamos fora, em busca de sossego.

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Uma vez, em Ipanema, na praia, quando acordamos, Paulo, primo amigo comunitário original, deu por falta dos óculos. Procura dali e daqui, rastros de ratos nos levaram aos seus buracos. As lentes continham celulose, apetitosa pros roedores. Foram-se os óculos.

Outra vez abri a parte de cima do armário do meu quarto e, lá, numa sacola das Casas da Banha, daque-la de papel, maconha até o tampo. Surpresa que ex-plicou tamanho entra e sai de gente estranha. Talvez ali a gota d’água pra dissolver a casa e a comunidade.

1973Alugamos com Roberto Amaral um sala e quarto na Barra. Prédio com cento e quarenta e quatro pequenos apartamentos, só nós morando duran-te a semana. Água potável trazíamos de fora. Em busca de glória, dinheiro e de não sei mais de que, catálogo telefônico nas mãos, ofereci de porta em porta meu trabalho gratuito a produtoras de cine-ma. Memória insegura.

Um concunhado que era filho de uma prima de Lucy, mulher de Luiz Carlos Barreto, entrea-briu uma fresta. Barreto me acolheu, me deixou

à vontade. Durante três meses cheguei cedinho, sai noitinha, mexendo, escutando, atento. Espe-cialmente a partir de informações de Lucy, escre-vi um manual de produção de cinema, com tudo quanto é tarefa e controle. Frilança, fiz uma se-cretaria de produção d’A Estrela Sobe, de Bruno. Nelson Pereira dos Santos, talvez não se lembre, sem me conhecer, me marcou pela atenção com afeto. A produtora era um centro cultural, vaivém de gente diferente.

Dali fui segundo assistente de montagem de Es-corel e Amaury no Guerra Conjugal, de Joaquim Pedro. Na Mapa de Zelito, na Urca, rolava no fi-nal das tardes uma comida caseira deliciosa e à mesa sentavam os chamados senadores do cine-ma novo – Cacá, Leon, Jabor, além de Joaquim, Nelson, Zelito, e, olha a memória curta, talvez Glauber. Ali, acredito, o berço da Embrafilme.

No Largo do Machado encontrei Carlos Alberto Prates Correia. Carlos Alberto, minha referência amiga mais forte no cinema, me ensinou ser dire-tor de produção de seu filme Perdida, que arreba-nhou em Gramado a maioria dos kikitos daquele

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ano. E, na história da Embrafilme, único filme a devolver dinheiro não gasto do financiamento.

1976 De novo, navio mais barato que avião, doze dias no mar, Europa. Londres, rapidinho encontra-mos o porão certo da casa condenada. North Go-wer Street, pertinho da Union London University, a ULU, onde – para nosso fraco inglês não nos denunciar intrusos – calados entrávamos, calados almoçávamos e tomávamos banho.

Na casa comunitária da esquina da nossa rua aju-dávamos fazer pães integrais. Ana trazia doces indianos deliciosos do restaurante onde trabalha-va na cozinha. Eu, não sei como – imagino fazia mímicas – arrumava trabalho por telefone. Pulei de operário ajudante de obra para modelo de es-cola de desenho. Depois lanterninha e vendedor de sorvete no teatro da ULU. Lia as poesias de Mao em português, comia kebab, batia perna pelo centro da cidade.

Desconfiei serem agentes do DOPS os fotógrafos que clicavam em passeata de protesto contra Gei-

sel, em visita oficial a Londres. Medroso de não poder voltar ao Brasil, arrumamos rapidinho as malas e, seis meses após nossa chegada, voltamos de avião para casa.

Não sei agora a ordem das coisas. Na fronteira de Santa Tereza com o Silvestre, a Equitativa tinha um quê de paraíso – a floresta da Tijuca à jane-la, gente em busca alternativa como nós, aluguel barato de um apartamento velho por restaurar, uma pracinha com vista de cartão postal da baia da Guanabara.

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8psi

Wilhelm Reich foi um choqueAlmir, jornalista agitado, apresentou o Combate Sexual da Juventude, escrito na década de trin-ta para jovens alemães. Pela primeira vez, uma orientação sexual não moralista. Eu trazia em mim as culpas do catecismo, reforçadas pela leitu-ra do limitado Vida Sexual de Solteiros e Casados, de João Mohana, padre e médico. Que experiên-cias teriam homens com voto de castidade para dar orientações sexuais a inocentes crédulos?

Mergulhei, fui fundo em Reich, li A Função do Orgasmo, Revolução Sexual, Psicologia de Massas do Fascismo, Irrupção da Moral Sexual Repressiva, Escuta Zé Ninguém, Casamento Indissolúvel ou Re-lação Sexual Duradoura, Análise do Caráter. Para sentir, só me restava viver. O pecado seria não ex-perimentar. A regra de ouro permanecia: não faço a outros o que não desejo que façam a mim.

Romel Alves Costa, psiquiatra, também tinha

sido tocado por Reich. Experimentou técnicas te-rapêuticas com um colega, deixou o emprego no INSS, abriu espaço e colocou anúncio-tijolinho no Jornal do Brasil.

Lá fui eu, por cinco anos, muitas vezes por sema-na, hora marcada, nu de corpo e alma, me emo-cionar, tentar me sentir e me entender. Respiração e movimentos, atento. Volta e meia formigamen-tos. Se os suportava, vinham reflexos. Com os reflexos afloravam sensações, sentimentos, pen-samentos. A memória fazia presente o passado. Fichas caiam, compreendia dentro de mim, insi-ghts bem vindos. Movimentos de braços, pernas, pélvis, olhos... Em meu corpo, minha memória, minha história.

Na penumbra,seguia com os olhos a luzinha manuseada pelo tera-peuta. De repente, tantas vezes, lapsos. Quando dava por mim, estava em posição fetal, com lembranças re-motas de infância. Eu no berço, antes dos dois anos, os olhos muito apertados, um jeito de fugir daquele medo que as sombras me traziam. Medo de almas de outro mundo, mulas sem cabeça, defuntos.

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Descobri ali no consultório de Romel a origem de minha visão distorcida. De tanto apertar os olhos, acredito ter forçado a musculatura local a ponto de perder a elasticidade. Com os exercícios, pouco a pouco recuperei esta mobilidade muscu-lar. A lente direita de meus óculos diminuiu de quatro graus e meio para zero vírgula setenta e cinco. Depois de usar óculos por vinte e sete anos, passei três anos de cara limpa, enxergando tudo, suficientemente bem. Ao mesmo tempo, medos presentes, antigos e novos.

Passado um tempo, não suportei nem os medos nem as alegrias. Voltei a usar óculos, mas perdi outra inocência: sou responsável por mim mes-mo. Reclamo primeiro ao espelho.

Na Equitativa conheci Ralph VianaA Rádice já estava no sexto ou sétimo número. Era uma revista de psicologia com visão ampla. Trazia da Inglaterra a antipsiquiatria de Laing, da Itália o movimento antimanicomial de Basa-glia, apresentava Nise da Silveira e seu Museu de Imagens do Inconsciente, abria espaço para os argentinos, para a latinoamérica, pro universo

psi mundial. Além de Freud, Jung, Reich, Lowen, Alex Polari, outros visionários chegavam a quem abrisse suas páginas.

Meu coração se juntou às ondas. Me ajudei, aju-dando. Resumos de livros, administração, dis-tribuição, divulgação, próximo de quase tudo. Imagino: mesmo quem não foi saberá como eram maravilhosas as festas de Ralph quando se re-cordar das suas próprias melhores lembranças. Guerrilha cultural, jornais e revistas nasciam, cumpriam sua missão, eram colecionadas lá den-tro de quem lia. A Teoria Crítica mergulhava mais fundo. O Luta & Prazer era leve. O Espaço Psi, o Nexos, o Estar Bem, o Bem-estar..., como todos jornais, eram distribuídos gratuitamente.

E os simpósios? O Alternativas no Espaço Psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, cento e doze eventos em três ou quatro dias intensos. Em vários espaços, ao mesmo tempo, palestras, de-bates, vivências, intercalado com festas, recreios, namoros. Clima fraterno, solidário. Com zero ou quase de dinheiro, uma multiplicação de ajun-tamentos do que cada um co-laborava. Valéria

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Pereira, Ralph, eu – e muita gente, Sérgio, Dau Bastos, Viola, quem mais? – interagíamos com os voluntários.

Mas não éramos sós. Tarefas relacionadas, um a um definia o que se propunha realizar e em que prazo. Exercício de autonomia integrada. Rede sem sabermos que era rede. Parque Laje, eventos diferentes a cada duas horas em cada um dos oito espaços. Quem entrava se dirigia para o que esco-lhia. Foram, na verdade, mil e cem simpósios, um para cada uma das mil e cem pessoas presentes.

Os conteúdos, os jeitos de fazer se espalharam pelos brasis, adaptados às realidades locais. Hoje teses acadêmicas recuperam memórias, sopram novos movimentos libertários.

9rotina

Escrevo para me confortar,gostar de mim, alegrar com o que vivo e com o que vivi.

2011, até abril. Outro dia, quase rotina. O pri-meiro toque do celular-despertador tem sido às seis. Depois, seis e meia, seis e quarenta e cinco. Meia hora pra espreguiçar, obnubilado nesta né-voa da volta ao dia. Novo toque, se já não comecei, levanto as pernas pra cima, permaneço um pouco em cada posição, me dobro até os pés encontra-rem o espaço atrás de minha cabeça.

Ao mesmo tempo, entreabertos olhos, circulo o olhar exercitando a musculatura. Pernas pra cima de novo, depois, um pouco, me aperto em posição fetal, equilibro um tantinho as pernas no ar e me curvo pra frente, sentado, as mãos segurando os pés. Sento de novo, torço meu tórax prum lado, pro outro. Repito tudo.

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Levanto e faço a saudação ao sol, que Regina me ensinou. Duas vezes, intercalada com balançares de braços como li em Castañeda e como aprendi com Juracy Cançado. Rodo a cabeça, pra esquer-da, pra direita, como metaleiro em show. Antes, bem antes, em algum momento, quase sempre, um e outro movimento bioenergético – bater pernas e braços como neném, balançar meu corpo deitado como geleia, focar longe e perto... – da-queles que vivi com Romel.

Sei que o terceiro toque do despertador aconte-ce quarenta e cinco minutos depois do primeiro. Tomo um banho, faço um cafezinho, sento aqui por uma hora, uma e meia e me divirto em livre associação, se não inteira, quase. Tenho gostado de viver. Em casa não tenho remédios. Nenhum, me orgulho.

Almoço no Panela de Barro, comida leve, saladas e algo de soja ou queijo, eventualmente um arroz, feijão. De vez em quando um refresco de guaraná dito natural. E depois, descoberta, uma cocadi-nha de Minas, feita com ameixa ou abóbora. O vício, uns cafezinhos de máquina durante o dia, lá

onde também trabalho todo dia útil, pela manhã e à tarde, oito a dez horas.

2012, feiras às terças, às vezes aos sábados. Faço arroz, feijão pra três, quatro dias. Bem simples, só água e fogo. Preparo o almoço: na frigideira seca, terfal, um pouco de queijo curado, arroz, fogo baixo, tampo. Pico algo como salsa, cebolinha, coentro. Boto em cima do arroz. Do feijão já es-quentado, pego um pouco sem caldo, acrescento. Corto o inhame ou a batata baroa já cozida, co-loco na frigideira. Tudo quente, viro de uma vez num prato grande. Pronto meu almoço. Talvez uma couve esquentada na água. Com certeza, na mesa, pimenta malagueta. É minha refeição prin-cipal, no meio do dia.

Pela manhã, mamão, eventualmente junto com banana ou abacate. Durante o dia, quando dá vontade, corto laranjas em quatro, retiro a cas-ca com as mãos, uma delícia.

O fazedor italiano – aquele sextavado que já se tornou popular – me oferece café quente e novo umas três, quatro vezes ao dia. Água, va-

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rio, tomo pouco, sinto que deveria tomar mais um tanto.

Lavo mas não passo. Mantenho mas não varro. Molho as plantas. Cada dia tem sido novo dia. Gasto só o que tenho. Depois de 49 anos de traba-lho, salve o INSS, sou um aposentado, digamos, ativo. Mais foco no que sinto, no que penso, no que falo, no que faço. Aprendo atenção nos meus sentimentos, pensamentos, palavras e gestos. Im-pressionante como volta e meia me descubro co-locando pedras em meu caminho. Tropeço, dou aquela corridinha que o tropeço causa, às vezes caio. Aprendizado mais lento do que desejo. Mas, confesso, nisto dependo só de mim. Reclamações? Vou pro espelho.

Leio. Mergulho quando me toco. Alguns livros na cabeceira, minha mão vai instintivamente onde meu desejo da hora me leva.

Evito televisão. Só o necessário. Lembro Freud quando ele afirma que a maioria dos sonhos tem a ver com o dia anterior. Cuido de hoje pra ter bons sonhos.

Ah! E toma de tomar banho. Alterno frio e quen-te. Pouco sabão. Nos cabelos, neca de xampu e condicionador, só água. Nada radical, como com a comida. Em Roma, como os romanos. Quando visito minha família mineira, como carne, ovo fri-to, pão de queijo. Fantasio que sei o nome da gali-nha sacrificada, como talvez soubesse nos tempos de infância.

Limpo os óculos várias vezes ao dia. Sabão de coco e água, ficam transparentes as lentes. De duas em duas semanas um casal amigo, Jorge, o Russo – e Eliany – dá uma geral aqui em casa. Maravilha, um auxílio luxuoso.

Hoje mesmo – que já é passado – gravo aqui em casa, só, as apresentações que faço dos programas Saiba+ que têm ido ao ar pela TV Comunitá-ria do Rio. Tento torná-los atemporais, pra que possam ser veiculados em qualquer época. Os re-cheios são os vídeos-registros-documentários que realizei ou produzi, só ou com amigos e colegas. Imagino possam ser veiculados como programas de rádio, se não sem, quase sem alterações. Para gravar, sei apertar os botões básicos da câmera

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simples e boa que Elizeu me sugeriu. Já editar, não sei, sou suprido por profissionais amigos.

E escrevo, re-escrevo, de acordo com os sentimen-tos que variam em mim.

O FGTS que recebi quando fui demitido do Sesc Rio tem sido a base para as despesas extras, como a impressão do livro, a edição dos programas. Já financiou parte das despesas com um Blogspot onde reúno quase tudo que me exponho, textos e links. E a página que o Videolog me oferece, onde disponibilizo quase todos os vídeos. Já o desejado sofá, só quando entrar um dinheiro extra de um trabalho extra. A vida simples, mas boa, do dia-a--dia, o salário simples de aposentado garante.

10incertas

Por limitações humanas,quantas ideias, invenções, soluções simples foram e estão sendo deixadas de lado por cada um de nós? O que faz com que alguém acumule o que não necessita e que poderia ser útil para outros? O preenchimento de vazios dentro de si mesmos? Se vazios, que vazios seriam estes? Quais origens destes vazios individuais que talvez gerem tanto consumo, tanta necessidade de poder? Tenho fei-to a mim estas perguntas que faço a outros.

Pouco a pouco percebo como meus próprios va-zios estimulam meus comportamentos. Dói to-mar consciência do que sou, dissolver a imagem ideal que tenho de mim. Tranquiliza reconhecer meus limites, o que me falta. Facilita agir a partir do que disponho. Fico do meu tamanho.

Ligo a TV e alguém que não conheço me informa que preciso ter algo que antes des-conhecia. Tenho em mim agora uma necessi-

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dade. Se tenho recursos para supri-la, satisfa-ção momentânea. Se não, um sentimento de impotência, incompetência, outro vazio. Me faz mal, muito mal, esta publicidade do que não me faz bem... nem está ao meu alcance. Imagino crianças e adultos inocentes, a todo momento chamados para novas necessidades que não têm condições de adquirir. E que não suprem os afetos básicos, alicerces de bem--estar de fato.

Ronald Laing, em Laços, sintetiza: Mamãe me ama. Eu me acho bom. Eu me acho bom porque mamãe me ama. E, se mamãe não me ama, eu me acho mau.

Criança inocente – imagino como muitas – de-samores, desatenções alimentaram meus vazios. Descubro em mim, não tenho esta dúvida: os va-zios que vivi e não transcendi, repito diariamente nos meus sentimentos, pensamentos, palavras, gestos. Hoje, invertendo, talvez mamãe aqui signi-fique aquela mamãe que volta e meia tenho opor-tunidades de ser. Comigo, com o outro.

Compreendo ato falhocomo algo que – diferente da minha intenção consciente – espontaneamente penso, falo, faço. Desde, sem querer-querendo, chamar o outro pelo nome errado até pegar o caminho da casa da na-morada quando aparentemente intencionava ir para outro lugar. Assim, atos falhos me interes-sam, traduzem o que lá dentro – fora da consci-ência – guardo, retenho, sou.

PuloNo mundo, hoje, grande parte dos recursos são gastos em controles.

Mas, acredito, se responsabilidades e direitos – ganhos e perdas incluídos – são compartilhados com os trabalhadores de cada empreendimento ou instituição, naturalmente cada um cuida me-lhor do que também é seu. Neste cenário hu-manizado, os custos e os controles diminuiriam consideravelmente. A tendência, co-laboradora, o ganha-ganha. Talvez aqui uma contribuição para transcendência de crises econômicas. Na origem de tudo, o desejo de quem decide o que está ao seu alcance.

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Reflexões singelas como estas – quando o olhar para fora é voltado para dentro de mim – me aju-dam orientar meus caminhos. Atento ao que está ao meu alcance, reconheço o que falta e me falta, delimito, ajo, realizo.

Descubro na internetque existe uma rede de tecnologia social em que soluções inventadas são disponibilizadas gratuita-mente para quem deseje. A cisterna que o pedreiro nordestino construiu e que acumula água de chu-vas é referência. Cisternas semelhantes já minoram a falta d’água para centenas de milhares de famílias.

Imagino uma pequena mudança de atitude minha ou de qualquer um e de muitos: compartilho o que aprendi e me facilita a vida, torno minha vida mais agradável. Ofereço pelo prazer de dar. Co-migo isto se torna mais fácil quando me permito pequenos grandes prazeres. Ando descalço, espre-guiço, como com as mãos, digo uns sins, digo uns nãos. Abraço inteiro, brinco com o corpo, rio de mim, divago. Trabalho sem perceber: quando me dedico ao que gosto, 24 horas por dia estou atento sem saber. Livres associações são imediatas.

Sempre que mudo de trabalho me dá um medo danado. Depois de tantas mudanças aprendi que dá tudo certinho, sou capaz de aprender o que não acreditava possível. Sei também que quando trabalho com o que não me identifico, sofro, fico mal-humorado, chateio quem não tem nada a ver. E, quando me permito estar bem comigo, trato aos próximos como trato a mim. Fico bonito, me sinto assim. Mas – mesmo já sabendo tanto – vario.

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nham. Sirvo ao público com o melhor de mim. Sou um servidor público. A regra de ouro, presente, me tranquiliza: não faço a outros o que pra mim não desejo. Tudo ao mesmo tempo aqui e agora.

Se reclamasse, seria de barriga cheia. Não tenho um comprimido em casa, comida gostosa todo dia, banho quente ou frio, máquina de lavar, la-vanderia que leva e passa, arrumadores que var-rem e cuidam, vizinhos que me protegem, telefo-ne que funciona, eu desligado da tv. É meu, meu tempo. Preciso ser atento e forte, não tenho tempo de temer a morte, agradeço a Caetano. Desejo recu-perar meu humor primário. Entreabro a porta de minha segunda infância.

Eu também?Posso ter entendido Winnicott diferente do que escreveu. Arrisco. Ele fala da conveniência de uma moça querer ser uma mulher. E de um rapaz desejar ser um homem. Mas constata que não é sempre assim. Quando se considera o in-consciente e os sentimentos mais profundos, descobre-se facilmente um homem durão que-rendo muito ser uma moça. E uma adolescente

11reflexos

Há tempos, um dia qualquerOntem e hoje misturados: tempos fora de ordem, as datas variam nestes escritos. Falo de outros, falo de mim. Agenda tão cheia que não tenho tempo pra me aproximar de mim mesmo. Escondo-me de mim no trabalho, não me dou limites. Só posso reclamar ao espelho. Ajo como se não tivesse consciência. Apa-rente let it be, laissez-faire, deixa a vida me levar.

Terapia Comunitária me tocou, vou às aulas, pratico as rodas, decido internamente fazer um vídeo, es-tou em produção. Escrever como aqui me tem feito bem. Levanto cedinho, três, quatro vezes por sema-na, escrevo. Chega às minhas mãos uma transcrição da fala do Dr. Luiz Moura no vídeo Auto-hemotera-pia, já produzo a impressão de livreto, penso agora como fazê-los chegar a quem precisa e se interessa.

De segunda a sexta, dia inteiro no Sesc, cuidando do que me propus, burilando o que me decidiram. An-tecipo, proponho movimentos antes que me propo-

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com uma constante inveja dos homens. Isto pode estar escondido no inconsciente reprimido.

Me angustiocom os que perambulam sem tudo – afeto, traba-lho, comida, teto... Não sei o que fazer, dou um real aqui, um olhar ali, pago um prato. Muito de vez em quando quero saber, converso. Quando não suporto, mudo de calçada, o coração aperta-do, uma culpa danada.

Minha memória, alguém me diz, é de peixe, esque-ço nomes, fatos. O que me comprometo, anoto, agendo. Quase tudo é como se fosse a primeira vez.

Ajudo meus filhos quando cuido de minhas pró-prias angústias. Quando não transfiro meus dese-jos. Ajudo mais se consigo compreendê-los, aco-lhê-los e a mim, lembrar-lhes quem somos. Estas luzes são raras. O mais frequente, evito atrapalhá--los nas suas próprias buscas.

Quando estou equilibrado, aí sou bom. Suprido, escuto. Solidarizo, fortaleço. Enquanto não sou assim – aos meus olhos quase perfeito – me pro-

ponho ser. Pisco, tropeço em meus próprios bu-racos. Com dores, paro, sinto, reflito, experimento um passo atrás, pro lado, pra frente. Vivo como aprendo a dançar. Este outro meu capital, o que vivi, o que vivo.

Pausa pra escutar os homens do Bope que na rua em frente correm agora cantando canções de morte e guerra. Imagino se canções de ni-nar, de roda, de dança.

Antonio Faundez,em conversa com Paulo Freire, do que entendi, uti-lizava a filosofia como meio para analisar a situação política, a vida no mundo concreto. Estudava filoso-fia como uma maneira de se apropriar de conceitos, de capacidade crítica para entender a realidade.

Mais ou menos um diaUm dia destes. O avião ronca. Quatro da matina, cochilo, lembro da importância do som neste do-cumentário. A entrevista com Adalberto, a roda da terapia comunitária, as possibilidades de insi-ghts ao vivo, os depoimentos de quem viveu. Este o plano. Agora é com a realidade.

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Ontem dia inteiro de reunião com o UNICEF, focado no repensar o Encontros, experiência em que jovens de camadas sociais diferentes se re-únem e, desejo dos que promovem – Michel, Cláudia, Gilberto, Luciana, Charles, Fernando... – ampliam conhecimentos sobre si, o outro, o mundo.

Antes, cedinho, saudação ao sol, café, imeios, tele-fonemas, embalo livretos de autohemo, pra Gló-ria, por favor, despachar pelos correios. À noite converso com Elizeu sobre o roteiro que montou e a busca de financiamento da Fiocruz.

Arrumo a mala, molho as plantas, telefono, lavo e estendo a roupa, boto correspondência em dia, carrego as baterias das câmeras, tomo banho, como caqui e melancia e desço correndo pra en-contrar Michel no táxi que nos leva ao encontro de Hélio no aeroporto, rumo às Ocas do Índio, em Morro Branco, pertinho de Fortaleza. A caminho sinto falta das chaves de casa, telefono à uma da manhã pro Jorge. Descobre que algum outro vizi-nho já as trouxe, sãs e salvas, pra dentro.

À espera do embarque, entre conversas curtas, puxo uma, Hélio, cordialmente crítico, me lembra que sempre tenho uma solução pro mundo. Entalo. É verdade.

Ocas do Índio2008. Oito dias de frente prum mar morno e céu estrelado, tempo todo mais atento a mim e a ou-tros. Bioenergética cedinho, intercalo, intercala-mos razões e emoções, descobertas e compaixões, dores e prazeres. O clima é de reconhecimentos. Somos entre trinta e quarenta, agora mais que profissionais, pessoas. As noites são calmas, leves as comidas e os pensamentos. Cuidando de mim, aprendo um tanto cuidar de nós. Os que vivemos nos tornamos próximos.

Adalberto de Paula Barreto é o mestre, maestro. Sua Terapia Comunitária, já sabemos, facilita rapidinho solidariedades. Neste espaço, combinamos antes, cada um só fala a partir do que viveu, experienciou. Conselhos, julgamentos não valem. Todos têm oportunidade de se expressar. Quando cada um que deseja fala – das suas alegrias ou, mais comum, do

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que lhe atormenta –, todos escutam. É democratica-mente escolhido, para aprofundamento, o problema com o qual mais pessoas se identificam. Em busca de melhor compreensão, quem fica na berlinda dá mais informações e responde a perguntas. Contextualiza. Depois, em silêncio, ouve quem contribui com o re-lato de suas próprias vivências similares.

Emoções afloram, pipocam identificações, pesso-as se aproximam. Ao final, os que querem, falam do que levam desta roda. Muitas vezes conforto, tranquilidade, compreensões, auto-conhecimento e estima. Germinam vínculos, fortalecem-se laços, nascem e se realizam projetos voltados para inte-resses comuns ali descobertos.

Cultura, o que é?Antonio Faundez lembra Paulo Freire e se identifi-ca com o que ele dizia que descobrir uma cultura é aceitar outra cultura, tolerá-la. E afirma que a cultura é mais do que manifestação artística ou intelectual através do pensamento. Sua manifestação mais pro-funda está nos gestos simples do cotidiano, como os diferentes jeitos de comer, dar a mão, relacionar-se com o outro.

Eu próprio quando leio Faundez, o escuto im-pregnado de minha própria cultura. Já não é mais Faundez puro. Somos agora misturados, inclusive a Paulo Freire.

PossesTudo muito bem, tudo muito certo. Reconheço, já não tenho meu tempo. Descobri maduro que não sou eu que tenho as coisas, são as coisas que me têm. O carro que não tenho me obrigaria cuidá--lo, guardá-lo, emplacá-lo, mantê-lo. O animal que não tive me pede atenção, cuidados. O dinheiro requer guarda, controle. O que guardo nas prate-leiras, no guarda-roupas me pede limpeza, arru-mação. Tudo me pede tempo. Se não pede, toma. Hoje, ainda, como não tenho meu tempo, corro.

Na minha infância não soube de faltas até o momento em que, na cidade maior, vi a vitri-ne. Desejei o que não tinha. E por muitas ve-zes me angustiei por não me suprir das novas necessidades criadas. Só agora compreendi que o que aparentemente possuo é que me possui. Minhas posses me aprisionam.

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Foi bom tê-las – estas coisas que me têm – e agora deixá-las a uma e outra. Por mim, hoje, só escreveria, filmaria. Muito do que me impede é minha carência, que me faz querer ser reconheci-do, admirado, mesmo eu sabendo que – se minha auto-estima depender do olhar de outros – posso eu próprio não me reconhecer. Como diz o Adal-berto, o que você quer que eu queira, pra eu querer?

Winnicott dedicou a vidaà pediatria e à psicanálise, especialmente a infantil. Fez, nos últimos anos de vida, palestras para os públicos mais diversos.

Tudo Começa em Casa é o título do livro póstumo que contém estas palestras. Cada capítulo se en-cerra em si mesmo. Sua leitura tem me facilitado a vida, um tanto pela melhor compreensão de mim mesmo, outro tanto pela compreensão do outro, mamãe inclusive. E meus lados mãe, pai, filho.

Livre pensar,levitação de tempo e espaço. Ausência de nada, presença de tudo. Pulsação, inspiração, expiração. O fio invisível que me abre o fluxo.

LimboEu, 65, de repente mudança de referências. Me desculpo, confundo, misturo vida e trabalho, constante busca, antecipação de futuro – experi-mento já desejos pro futuro. Utilizo indicadores: tranquilo humorado me sinto no caminho certo. Se não, que realizo para novo equilíbrio?

Algo clareia: aprender a viver – tranquilo humo-rado – com o que está ao meu alcance?

FicçãoA busca-em-ação, a buscação é descoberta, expe-rimentação, sim e não. Olho pra trás, domina a memória enevoada. Quando emergem lembran-ças, as felizes sobressaem. Tudo muito variado, umas vezes assim, outra incorporado.

E eu,aqui, em qualquer momento, impregnado de mim. Confuso e lúcido. Em conversa cifrada co-migo mesmo, num misto de coragem e medo. Meu universo pulsa, sou centro e partícula, sou todo volume e não sou. E a prática de realizar: sonhar, lembrar, uma história, um plano passo a

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passo, fazer passo-a-passo. Primeiro a estrutura – o lugar de morar, a saúde para cozinhar, lavar não passar, a feira, o mercado, o pequeno conserto, a manutenção, cada coisa tem seu lugar. Aos que frequentam, livre estar e cada coisa volta pro seu lugar. + a destinação dos objetos acumulados que me tornam um carregador do que possuo. As cai-xas numeradas. E alimentação de processos que dependem de outros.

Antes a ruptura. A palavra já não mais presa, a consciência serena, a ética como o básico. A se-gunda carta aberta, o email geral: compartilho as perguntas que me faço, as respostas que me dou. A primeira, aos mesmos contemporâneos da instituição, sugestões para a prática interativa de transmissão de conhecimentos que a lei determi-na e os recursos estão aqui. Esta gera uma chama-da de atenção formal. A outra, a demissão.

Dor e prazer. Alegria também pela alforria, raiva pela cegueira do outro, tristeza pela recusa e falta. Diluiu? Evaporou? Passado um tempo, já é passa-do. E neste enorme cenário em vivo, tenho focado no que me mantém tranquilo, também procuro

mel dentro do azedo. Dos bônus, o fundo de ga-rantia, uma segurança. O plano de saúde mantém o custo, cumpre a lei.

Então! Estrutura, a casa prontaQue mais? Com método, cada tarefa agendada. Pesquisa do necessário, separação de documen-tos, reprodução, consulta a quem sabe como é o processo todo. Contagem do tempo das contri-buições, marcação apresentação. Um dia após 65 anos, entrevista, papéis corretos, direitos garanti-dos, aposentadoria.

Orçamento responsável: despesa nunca maior que receita. Adapto-me, camaleão. Vida mais simples, comida saudável, nova rotina que nem sei. Permanecem a saudação ao sol, os primeiros movimentos bioenergéticos. Simplifico o vestuá-rio. Estou organizado.

Aposentadoria, plano de saúde, objetivos alcança-dos. O plano funcionou, o cronograma diferente do previsto. Cuido da legalização da morada.

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TostãoDe novo, quando leio, entendo do meu jeito. E arrisco. O jogador, pensante, filosofa. Lembra da solidariedade e da impossível liberdade total so-nhada por Sócrates, o do Platão. A utopia como referência, alimentação do desejo. Inalcançável. A lembrança de Tostão me anima, faz bem. Sonho, sem me limitar ao possível.

NarcisoOlho no espelho e me surpreendo, tão jovem e com estas marcas... E é eu.

InsightO mundo muda quando cai a ficha. Quando o que compreendo me toca emocionalmente, minha vida ganha novo sentido. Mudaram meus desejos atuais quando me toquei que muitas das minhas necessidades recentes de poder – e dinheiro e ob-jetos – estavam relacionadas a afetos que desejei e não tive na minha infância. Tenho me sentido melhor quando hoje procuro suprir diretamente os afetos que hoje desejo.

Primeiro,aprendi do que vi, ouvi, tateei, cheirei, botei na boca e senti. Desde criança transformei-me no que me foi apresentado como modelo.

Estou fundamentalmente impregnado de in-formações que, no correr da vida, recebi tanto da escola, igreja, família quanto dos meios de comunicações e dos que estão ao meu redor. Eu mesmo colaboro para a manutenção da moral atual, quando nos atos e encontros de toda hora transmito meus preconceitos aos meus filhos, amigos, vizinhos, colegas de tra-balho. Enfim: o homem que sou hoje é fruto do que antes senti, aprendi. O homem que serei amanhã deverá ser fruto do que hoje aprendo e sinto.

O que percebi em mim, percebo em outros. Ma-puto, 1981, foi quando isto ficou claro pra mim. Desde então faz parte de minha visão de mundo.

Desisto de mim ou de você? O que é bom pra nós – pra mim, pra você – de-fine o que podemos? Descomplicando, talvez já

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saibamos como tornar possível nossa relação: respeitar-me a mim e à outra, ao outro. Quero, por exemplo publicar o que escrevo, inda mais quando escrevo o que sinto. Me limito, me emu-deço ou faço o que desejo? Desisto de mim ou de você? Ou não desisto e realizo meu desejo, independente de você? Amor implica em depen-dência? Ou ao contrário? Amor não como pri-são, mas como estímulo à liberdade? Vice versa? Eu aqui com meus sentimentos.

12balanços

PresenteTempos passados, semana dessas... A semana co-meça, dois dias e já me canso do trabalho que não escolhi. Me pego ansioso em relação ao que me propus: realizar o vídeo Terapias Comunitárias e escrever um livro. Tenho tido prazer em levantar cedo e escrever sem compromisso. Gravar situ-ações emocionantes também é prazeroso. A an-siedade, desconfio, vem da inclusão de limitações ao tempo. Determinar datas me obriga a cumpri--las. E aí, já sei, minhas escolhas perdem sentido. Que fazer?

Uma primeira opção é respeitar os tempos na-turais, meus e dos outros. Uma série de tarefas preparatórias antecede gravações. Depoimentos conceituais, opiniões, visões do método, da sua aplicação, eficiência, eficácia, já colhi suficientes – com a ajuda de Michel, Naly, Carolina, outros colegas do curso de formação. Agora são neces-sárias rodas de TC. Fiz os primeiros contatos

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com terapeutas, os equipamentos de gravação estão comigo, as autorizações de imagem e som estão impressas, prontas para preenchimentos e assinaturas, está à mão o dinheiro necessário pras despesas de transportes e pequenos gastos. Posso agendar com quem deseje. E articular com Elizeu ou Jun Kawaguchi ou Jorge uma segunda câmera.

Em busca de financiamento, Elizeu preparou as informações e deu entrada na Fiocruz. Neste ca-minho, nos colocamos como parceiros, intencio-namos construir juntos direção, roteiro, produ-ção. Está prevista resposta em trinta dias. Outra trilha é a minha usual. Planejo, mesmo sa-bendo que a realidade será diferente. Nos meus tempos – com o apoio de um amigo aqui, um voluntário ali, prestadores de serviços acolá – ar-ticulo, produzo, gravo, oriento a transcrição, de-cupagem, roteiro, edição. Então, matriz, capa e rótulos prontos, encomendo cópias e parceirizo distribuição caseira.

Deu certo assim com o Energia da Vida, o Apare-lhos Orgônicos e, maior sucesso, com o Auto-He-

moterapia, Contribuições para a Saúde – Conversa com Dr. Luiz Moura. Permanecem prontos à es-pera e em busca de seus públicos o Candomblé, o Ilha Grande, o Práticas Chinesas de Auto-Cura, os Psicoterapias Corporais, o Energia Orgônica e Saú-de Pública. Como todos são atemporais, em algum momento, acredito, passarão em tv aberta. Quem participou das feituras – Victor, Ipojucan, Bruno, Pedro Farias, Bel, Raul, Sônia, Pedro Sarmento, Fran, Elizeu, Félix, Katty, Christiane, Thiago, Rudá, Oscar, Grasiela, Thamires, Mejia, Phillip, Gilberto, Ana, Regina, Rafael, Pavel, Caetano, Lucas... tanta gente – gostará.

Quanto ao livro,estamos aqui, nesta brincadeira eventual ou de quase todo dia. Fiquei surpreso e satisfeito com o livreto que produzi com o conteúdo da entrevista feita por mim e Ana com Dr. Luiz Moura, a capa com design de meu filho Pedro, ilustração de Fran Junqueira, a experiência de Leandro Godoy. Ficou bonito, atraente mesmo. Estou satisfeito também com meu prefácio. O livreto me estimula este livro. Pensei uma parte subjetiva, outra objetiva. Mas, como Lennon já disse, a vida acontece enquanto a

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gente planeja. Tudo muda num instante.

Aliás, como sou o que aprendi, li, escutei..., toda ou quase cada letra – palavra, oração, frase... – que escrevo merece citação de quem a inventou, descobriu, idealizou. Porém, ai, porém, sinto, as ideias estão no ar. É só relaxar que elas chegam, pra mim, pra outros. A quem pertencem? E o tal do inconsciente coletivo? É certo falar é meu? É ético possuir direitos autorais?

Pra parte objetiva pensei descrever o que criei, co-inventei e entendo prático. A metodologia de redes comunitárias e que mais?

ImagineUm espaço onde, em roda, se encontrem mora-dores de comunidades populares menos favore-cidas, além de pessoas e instituições interessadas no bem-bom de todos. Naquele momento, um de cada vez se apresenta e sinteticamente diz o que oferece, o que procura.

Quando todos sabem o que cada um procura e o que cada um oferece, a roda se desfaz. E, na-

turalmente, cada um se aproxima daqueles com quem se identifica, em busca de mais informações e construção de parcerias.

Imagine ainda que estas ofertas e procuras decla-radas em cada encontro sejam escritas e distribu-ídas, para que outras pessoas, mesmo se não esti-veram presentes, possam participar.

Imagine também que você possa compartilhar co-nhecimentos que você adquiriu no correr da vida. Por exemplo, como voluntário, ensinando o que sabe a quem procura por este saber. Ou que aque-le objeto - que você guarda e não é mais útil para você - possa ser utilizado por outros. Um carrinho de bebê, um cobertor, um móvel, uma ferramenta. Imagine que você possa entrar na roda, estando lá ou, incógnito, via internet.

RedesBase das Redes Comunitárias, os encontros pre-senciais são voltados para a prática de parcerias entre quem deseje. Moradores – a grande maio-ria de comunidades populares – e pessoas liga-das a instituições privadas, públicas e do terceiro

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setor, além de profissionais autônomos e volun-tários. E curiosos.

De modo simples e objetivo, cada um dos presen-tes, representantes de instituições e de comuni-dades, se apresenta e fala do que veio procurar e do que veio oferecer. Todos têm oportunidade de falar e de ouvir. E, quando cada um sabe quem é quem, o espaço se abre para o aprofundamento de relações e formação de parcerias.

Para facilitar articulações entre todos, cada um recebe – impressa ou virtualmente – uma rela-ção atualizada de participantes, com endereços, telefones, e-mails. E os Classificados Sociais, que descrevem sinteticamente o que é oferecido, o que é procurado. A cada novo encontro, estas listas são acrescidas, atualizadas, compartilhadas.

SóO passado volta e meia presente. Dia destes... Acordei com este sentimento que traduzo solitu-de. Sou responsável pelas minhas atitudes. Como naquele símbolo das olimpíadas, o desenho que

imagino de relações ideais se compõe de círcu-los parcialmente superpostos, cada círculo re-presentando uma pessoa. Os interesses comuns são representados pelas áreas comuns. As áreas externas aos entrelaçamentos correspondem aos interesses específicos de cada um. Ali sou só, ali vive minha solitude.

Quando respeito meus interesses específicos, fica mais simples respeitar os dos outros. Mas quando não me respeito, lá vem raiva, culpa, contenção, tristeza. E pra evitar estes sentimentos tão chatos, me afasto, acabo por evitar contatos mais profun-dos. Aí é solidão.

A compaixão que mereçovem de quem procura olhar com meus olhos. E vice versa. Sinto assim quando experimento o olhar do outro. Contraditoriamente, ou não, em busca de crescimento, quando necessário ofereço ao próximo a crueza do que percebo. Na verdade, desconfio, só exponho incômodos a quem de al-guma forma me interessa. Se não – inconsciente? – a indiferença e o esquecimento prevalecem.

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Entre os efeitos de minhas neuroses está um tan-to a impaciência, às vezes a indelicadeza. Pero, mineiramente, aprendo evitar confrontos. Tenho constância no respeito a tratos.

E, tentando enfrentar culpas apreendidas em mi-nha infância, experimento cada vez mais suportar prazeres. E pra evitar obstáculos, contorno mon-tanhas. Um passo atrás, dois à frente, quase um bolero, estes tempos. Se consciente e forte, esco-lho o que pode dar certo.

Volta e meia, quando em conflito, acordo à noite, suo, sofro. Não gosto. Prefiro viver com quem me identifico, troco. Isto significa critérios, valoração. São escolhas.

13programa de tv

Imagino umNo palco, tudo muito simples. Pessoas em roda, vieram pela oportunidade de compartilhar ques-tões de todo dia. Falar, ouvir, sempre a partir do que cada um viveu. As frases, é combinado, são na primeira pessoa, começam com Eu. A metodolo-gia pode ser, por exemplo, a da Terapia Comuni-tária. Como ela, há outras maneiras de facilitar expressões mais profundas e estimular solidarie-dades. Isto acontece todo dia e nós temos acesso.

Imagino outro. Outro ambiente. Central do Bra-sil, por exemplo. Um palhaço faz a pergunta que deve ser respondida em um minuto pelo passante. O que você pode fazer para melhorar suas relações com sua família?

Esta pergunta – e outras, diretas – estimulam respostas relacionadas a experiências pessoais. O espectador, na medida em que se identifique com o relatado, tenderá a também se questionar.

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E quando cai a ficha... muda a visão de mundo... e o mundo muda.

Dois câmeras atentos a si e ao outro. Os sentimen-tos inesperados que afloram devem ser suporta-dos, focados, gravados. Para que os espectadores tenham também possibilidades de se identificar com estes sentimentos, perceberem que não são só seus, solidarizar-se com os que sentem. Nas-cem vínculos entre quem vê e sente e quem origi-nalmente vive e sente.

Toda semana os câmeras gravam, os espectadores interagem sentimentalmente. Ambos, além dos protagonistas, podem se desenvolver a partir da consciência do que sentem, do que são. E quando caem as fichas – quando cada um se compreende um tanto, emocionalmente – espaços se abrem para o entendimento de causas de comportamen-tos atuais. E, no tornar-se consciente – a perda da inocência –, possibilidades de transformações.

Nenhuma velocidade estonteante, são outras as sensações. O caminho é emocionante, pra quem se permite, atento, sentir. Ao fim de cada

encontro, cada um carrega consigo o que sen-tiu, vivenciou. E, no cotidiano, sua memória emocional o acompanha, estimula a consciên-cia dos seus sentimentos, pensamentos, pala-vras, atos. E aquele antes espectador tende a desvendar caminhos, a dar passos como prota-gonista de sua própria vida. Isto acontece todo dia. Faltam os câmeras e aqueles que realizam e veiculam programas de TV.

Sonhei uma multidão- 400 pessoas? - disponível para uma brincadeira de crescimento.

Sugeri de imediato que cada um de nós, a partir deste momento, só falássemos o que porventura fosse bom pra si mesmo, pra quem escutasse ou para aqueles a quem a fala se referisse.

E ofereci escolhessem. Vivenciarmos juntos uma sessão de terapia comunitária. Ou, divididos em grupos de até 40, fizéssemos rodas onde cada um pudesse em 1 ou 2 minutos falar do que oferecia e do que procurava aqui, agora.

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Eu poderia facilitar um encontro ou outro. Acordei.

EntrevistasO repórter, aqui, é produtor, observador. O en-trevistado é convidado a falar para outro, alguém que faz parte do público a quem se destinam as informações que oferece. O entrevistador, agora, é leigo, curioso. O inesperado: a entrevista se trans-forma em conversa, entrevistador e entrevistado se alternam. O entrevistado encontra a linguagem do público. O público agradece.

Focos nos conteúdosComo convidada, aquela pessoa especial, cuja fala corresponde às suas ações, ao que é. Como entre-vistadora, aquela pessoa interessada. Estão próxi-mas, o que permite o tom de voz normal. A convi-dada fala diretamente para quem a entrevista. No meio, atrás ou ligeiramente de lado, voltada para a convidada, uma câmera ligada está esquecida, não há operador. No quadro, cabeça, ombros, talvez os gestos das mãos. Microfone direcional, de la-pela? Quando reproduzida na tela, a entrevistada estará olhando diretamente para os espectadores.

Sensação de proximidade. Quem ouve atento, se comove, compreende, internaliza novos conheci-mentos, se sente mais inteiro que antes.

Somos todos artistas?Aconteceu no Teatro Carlos Gomes. Quem es-teve presente nunca será o mesmo. Saiu mais vivo que entrou. Pura promoção de saúde. Bom negócio pra todo mundo. Ficou gravado só nos corações. Pode acontecer toda semana? Gravar também audiovisual, passar na televisão?

Assisti outro dia um programa ganha-ganha. Criação coletiva, com dedos do Pontes, o Rober-to – o saber em todo ser. E de Vitor, o Pordeus, o médico-ator. O artista-facilitador, Vitor, cede espaço para quem chega mais. Facilita, estimu-la a expressão do outro. No palco, auxiliares são receptivos. Os músicos intercalam popular e clássico, vinhetas criam climas. O público espelha o apresentador, acolhe e é acolhido. Palco e pla-teia interagem, trocam de lugar naturalmente.

Na plateia, no palco, roupas, chapéus, acessórios estão disponíveis, espalhados por todos lugares,

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acessíveis a quem deseja, somos todos artistas. O público-artista, na maioria, da periferia do Rio. Na programação, ciência e arte dialogam, conversam como se fosse comigo. Na produção, tudo junto e misturado, pessoas ativas de comunidades popu-lares, de serviços públicos, de ONGs, voluntários.

Outro programa assim, produzido por quem de espírito semelhante – Pordeus pensador ativo, in-clusive – foi o Loucura Total, no Instituto Nise da Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Até hoje não sei quem era público, quem era médico, doido ou paciente. Música, letra e festa da melhor qualidade. Não ficou dúvida: somos todos iguais.

Em programas assim, o fim é o bem-estar. A for-ma e o conteúdo são meios. Quantos mais sin-gela a forma, menos chama a atenção sobre si. A forma, aqui, se torna mensagem. Reafirma o fim, a função do próprio conteúdo. O pensamento, o sentimento é a linguagem. O meio, a mensagem.

14piripaco

Mais passadoOutro dia. Sinto o lábio superior, à direita, como que levemente anestesiado. Mesmo es-tranho, não esquento. Uma e outra vez o olho direito embaça, lacrimeja.

Dois ou três dias assim, estou num almoço amigo, uma amiga me fala que um lado do meu rosto está diferente do outro. Os presentes se ligam. Cláu-dia insiste, vamos à emergência do hospital São Lucas. Sala de espera cheia, receio de AVC ou algo assim, priorizam meu atendimento.

A médica me examina em pé, solicita ali mesmo exames. Já sentado, uma auxiliar retira meu san-gue, instala o pinga-pinga do soro. Próximo pas-so, tomografia. É tarde de domingo, movimento crescente na emergência. Um dedo quebrado, o excepcional em crise, um letárgico em cadeira de rodas, outro que já chega morto, uma idosa à procura de escuta, todos em busca de cuidados e

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afetos, os nove boxes cheios, os espaços de espera também. A médica me diagnostica, talvez para-lisia parcial periférica. Causas ainda indefinidas. Receita o que considera necessário, me orienta para um neurologista. Anoitece, saio confortado com o atendimento, me senti cuidado. Na segunda, no lusco-fusco da madrugada re-lembro e faço, como exercícios, movimentos com os olhos e músculos. Telefono pros bem próxi-mos, tranquilizo, me emociono, agradeço acom-panhamentos, disposições e disponibilidades. Já com os resultados da tomografia e do sangue, neurologista. Sangue bom – todos os indicado-res de acordo com as referências. Resultados nor-mais, reflexos também. Aventa causas possíveis. Meu plano de saúde facilita, o médico solicita outros exames. Chegou a noite. Tomo um açaí na lanchonete, vou pra casa.

Terça, enquanto marco exames, me fortaleço. Au-to-hemoterapia, 5 milímetros retirados do meu braço e aplicados imediatamente na nádega. Jun, acupuntor amigo, pesquisa oriente e ocidente, traz informações, também aventa causas, me faz

perguntas. Faz sentido: um choque térmico talvez tenha sido provocado por aquele vento forte do ventilador novo que mantive ligado ao meu lado direito enquanto utilizo em casa o computador. Jun define uns poucos pontos, aplica. Na terceira agulha durmo profundamente. Acordo uma hora depois, sonolento, vou com ele à portaria, regres-so direto pra cama.

Quarta, cedinho, experimento... e já consigo fazer o que antes não conseguia. O olho direito abre e fecha, sozinho, ao meu comando. O sorriso ago-ra menos torto. Terceiro e último dia da minha licença, escondo minha agenda e, um tanto cul-pado, aprendo relaxar. Alguma certeza, mais que os remédios receitados e – lidas as bulas – criti-camente não acolhidos, redescubro, meu melhor remédio sou eu. Quero saúde, me cuido.

Quinta e sexta pela manhã a bioenergética facial agora diária, a saudação ao sol – ioga singela. Pra movimentar a área da boca mastigo chicletes como nunca desde terça. A alimentação permane-ce saudável. Água – que tomo pouco diariamente – agora um litro e meio.

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Eu, que me orgulho de não ter comprimidos em casa – nem mercúrio cromo – procurei semana passada um gastroenterologista, atraído pelas orientações que deu ao meu filho mais novo e em busca de mais informações sobre minha já incor-porada prisão de ventre (associo: mau-humor, enfezado, fezes). Dr. Hélio me falou da água, das fibras. Pressão 11x7, batimentos 60. Tudo bem pros meus quase 63 anos. Quando soube que fu-mei brabo dos 10 aos 50, sugeriu exames: raios-x, sangue, ultrassonografia prostática. Os resultados dizem que está tudo certinho. Também tenho me cuidado, especialmente com o que aprendi com mamãe, Ana, Regina e Romel. Alimentação leve, bebidas – álcool, refrigerantes – só eventualmen-te. Todo dia, ou quase, 15 minutos de ioga, respi-ração mais funda, movimentos bioenergéticos, al-guns quarteirões a pé. Mas se subo escadas, arfo: sequelas da Souza Cruz, a que fabrica morte por meio de cigarros.

Falo pra mim: moral da história, a vida é curta, curta a vida, tento curtir a vida. Maior obstáculo, as culpas sem sentido.

15talvez

Abstraio o tempoAntecipo o futuro, vivo agora o que desejo. Mas hoje foi ontem:

hoje tento separar minhas neuroses das de ou-tros. Não posso viver o que não é meu. Isto tem sido aplicado no meu dia-a-dia atual. No trabalho especialmente. É que a instituição em que vivo está confusa, insegura. Não tenho informações suficientes para avaliar. Quando falo eu talvez re-presente nós.

Sei que os dirigentes não tomam conhecimento do que realizo. E assim não recebo reconheci-mento. Como tenho estado seguro em relação ao que crio e faço, vou em frente. Arrisco. A ética me guia. A missão da instituição me facilita: trabalho pelo bem-estar de menos favorecidos, articulo re-des comunitárias, fomento circulação de informa-ções de interesse coletivo.

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Talvez algumas causas da insegurança institucio-nal estejam na sua cúpula. Tudo talvez: briga de cachorro grande pelo poder? Que inclui interfe-rir no cotidiano e no futuro de mais de mil fun-cionários, no destino de centenas de milhões de reais – dinheiro público – disponíveis anualmen-te, na utilização da infraestrutura física e técnica construída nos últimos sessenta anos. Periga a credibilidade, interna e externa.

A rádio-corredor traz notícias, saiu ontem o di-retor-geral, entra o terceiro deste ano. Neste mais de 8 anos aqui, não conheço um funcionário pró-ximo que tenha tido acesso humanista ao presi-dente. Um e outros funcionários são demitidos. Tudo isto sem nenhum comunicado ao conjun-to dos que trabalham. Se as avaliações são pelos erros, “melhor nada fazer”. A sensação é de des-proteção, menosprezo. Parece que a insuficiente inteligência emocional da cúpula estimula o de-sequilibro do corpo da instituição. Interrupção brusca de projetos, ausência de definições, corte nas comunicações humanas são base para insegu-rança e desmotivação crescente.

Ficam dúvidas: como pode um diretor geral com formação em finanças – pressupõe-se interesse prioritário pelo lucro financeiro – cuidar de uma instituição cuja missão visa lucro social? Como pode uma instituição com fins sociais ter um fabricante e comerciante de bebidas alcoólicas como seu presidente?

Talvez até estejam sofrendo lá em cima. Nem posso ser solidário se nada sei. Talvez não saibam que sua função é servir ao público, facilitar o tra-balho dos que comandam.

Talvez, também, esta insegurança coletiva esteja contribuindo para o afloramento de doenças em outros, como em mim.

E talvez um ou outro – cada um dos funcioná-rios? – não esteja exercendo a responsabilidade incômoda de expressar juntos seus incômodos.

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oito, a roda se amplia. O cheiro da fruta, os tons amenos das vozes, o sentarmos no chão, cada de-talhe contribui um tanto pra estarmos à vontade. Chegam mais duas e são acolhidas.

Quem deseja propor uma brincadeira leve, rápida? Um fala o próprio nome e o nome de outro que conhece e está na roda. O que foi nomeado fala seu próprio nome, diz quem o nomeou anterior-mente e acrescenta o nome de outro que também está na roda. E assim por diante, sempre repetin-do todos os nomes já falados e acrescentando ou-tro. Um esquecimento aqui, uma ajuda ali, todos ou quase todos memorizaram os nomes de todos ou quase. Antes houve consenso, não precisáva-mos saber o que cada um faz, de onde veio. Está-vamos à procura do que somos.

Alguém se lembra das combinações da Terapia? Falar a partir da própria vivência, a partir do Eu. Não vale julgar nem dar conselhos. É um espa-ço para compartilhar questões que afligem ou alegram cada um. Não é um lugar para segredos: segredos não compartilhamos. É um espaço de escuta – um fala de cada vez, outros escutam. Se

16outro dia,

um como outro

Pela manhãEsta semana enviei convites virtuais pra todos que estão no catálogo do meu email Yahoo. Te-rapia Comunitária quase todas as sextas. Michel, com quem faço dupla normalmente, está fazendo oficinas do Rio Abierto na Rússia. Levanto cedi-nho, pernas pra cima, saudação ao sol, no cami-nho compro tangerinas, tomo café com leite, pão com manteiga.

No espaço parceiro – o Centro de Movimento Deborah Colker – duas moças já chegaram. Va-mos pra sala, conversamos um pouco, falo das redes comunitárias, do sempre presente emocio-nal como pano de fundo, dos encontros METS – Movimento Emocional e Transformação So-cial –, da dica da Maria Teresa Maldonado sobre Adalberto e a metodologia que construiu. Outras pessoas chegam, já somos sete, mais um pouco,

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alguém se lembra de uma música – ou provérbio, ou causo ou piada – pede licença e apresenta... Po-demos combinar assim? Se um de nós se esquece do combinado, lembraremos...

Imagino que outros, como eu, se acalmam ao to-marem antecipadamente conhecimento da pauta. Todos confirmam, querem saber. Sintetizo a se-quência, prevejo o tempo que estaremos aqui. E início a próxima fase: Quem deseja compartilhar algum incômodo ou alguma alegria?

Uma mulher compartilha. Aposentou-se há dois meses, está em processo de busca de satisfação maior no viver... Anoto, sintetizo o que compre-endi e lhe pergunto se esta síntese traduz o seu sentimento. Depois de duas ou três tentativas, chegamos: O que vou fazer agora de minha vida?

Cada um de cada vez, os que desejam, fala um tanto do que lhe incomoda e, com o auxílio de um ou outro, constrói uma síntese da sua questão. Outra mulher se pergunta como praticar sua teo-ria. E o resumo: Angústia pela procura de satisfação em minha vida. E mais outra fala do Medo de sair

da zona de conforto e ser feliz com coisas novas.

Alguém, 45 anos, filha mais velha dos seis filhos, única solteira e que permanece em casa: Sofro com a dificuldade de relacionamento com minha mãe. Os rostos e movimentos à volta expressam identifica-ções. Outra se expõe: Não consigo não atender às ne-cessidades da minha mãe. E mais outra: Como preser-var meu espaço, tendo que agora cuidar da minha mãe?

Entramos na fase da escolha do tema que juntos cuidaremos. Cada um pode votar somente uma vez. O tema escolhido será aquele com quem mais de nós se identificar neste momento. Relembro todas as sínteses das questões apresentadas. Você pode votar em qualquer tema, inclusive o que você própria apresentou. E repito um a um, para vota-ção. O tema é escolhido: Sofro com a dificuldade de relacionamento com minha mãe.

Agradecemos àquelas que expuseram seus sofri-mentos, lembramos que, se desejarem, poderão reapresentá-los nas próximas rodas. E que esta-mos disponíveis para conversas individuais, logo após o presente encontro.

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Pedimos então a quem nos trouxe o tema esco-lhido que nos conte mais sobre seu sofrimento. E ela detalha, focada em seus próprios sentimentos. Perguntas são feitas, em tentativas de despertar, em nós todos, compreensões mais profundas. Sua emoção estimula que nos aproximemos, fechan-do bem a roda. Alguém sugere e, abraçados, ba-lançando, cantamos juntos uma cantiga de mãe, e mais uma.

Lançamos uma pergunta-chave, procurando am-pliar o tema: Quem de nós sentiu dificuldades em relacionamentos com pessoas próximas... e pode con-tribuir expondo o que aprendeu desta vivência?

Uma participante conta sua história, suas dificul-dades com a mãe, as transformações do relaciona-mento após conversas sinceras, o alívio.

Outra da roda fala de si, da mãe solteira em am-biente religioso conservador, do casamento ne-cessário, do padrasto bruto, de sentir-se ameaça-da por abuso, de não sentir-se amada pela mãe, da sua própria dificuldade em conversar com ela e das mudanças positivas no relacionamento que

ocorreram a partir da saída da casa materna. E como esta nova situação facilitou aproximações e reconhecimentos.

Mais alguém relata a satisfação da mãe, de origem humilde, com a formação universitária da filha, ao mesmo tempo em que ainda a via como a garota de quinze anos que andava com ela de braços da-dos. Fala das diferenças e dos transtornos. E de como as conversas francas facilitaram o aprofun-damento das suas relações. E uma mulher fala do que viveu e aprendeu.

O clima de agora já é diferente do início. Os olha-res são mais ternos. Há algo como solidariedade no ar. Somos vários, como se fôssemos também um.

Levantamos e, à pergunta Que estou levando da-qui?, uma fala do sentimento de solidariedade, outra de amor, outro de algum alívio de culpa, e mais outra de como se sente bem em estar aqui... Alguém inicia A minha mãe, é mãe soltei-ra... mamadeira, todo dia... trabalha como empa-cotadeira, nas Casas Bahia. O ritmo chega aos corpos, uma ciranda é lembrada, dançamos em

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roda... e com calma nos despedimos, cada um de um e outro.

Emoções de todo diaÀ tarde, Jun e o filho, Mitsuhito, chegam alguns minutos depois das três. Apresento superficial-mente as câmeras gravadoras e lá vamos de táxi em direção à casa de atendimento comunitário aos pés do Turano, no Rio Comprido. Mitsu prepara sua câmera fotográfica, Jun a dvcam, eu a também pequena hdv. Converso com duas es-tudantes de psicologia. E com nossa anfitriã, que todo dia ativa a casa. Chegam algumas senhoras moradoras da comunidade... Depois Alex e San-dra, responsáveis neste dia pela Terapia Comuni-tária. Somos em torno de dez pessoas.

Entre os problemas, a votação maior definiu o escolhido. Uma senhora, em lágrimas, relata seu sofrimento com as vidas de seus dois filhos. Um, na ilegalidade, foi morto pela polícia. O mais novo, preso por motivos semelhantes, não retor-nou à prisão quando foi liberado para visitar sua família. Permanece ilegal. Enquanto preso, a mãe, mesmo passando constrangimento, o visitava o

tanto permitido. Ela sofre também por não ser reconhecida e valorizada pelo filho vivo.

Ao final, como tenho vivido em sessões de tera-pia comunitária, os abraços, olhares e conversas traduzem os sentimentos, a solidariedade. A mãe sofredora se declara confortada, mais animada. Vamos em paz.

No dia seguinteNa minha formação, uma vez por mês participo de uma intervisão, sábado inteiro. Pela manhã, muitas vezes, um convidado fala sobre algo novo para nós. Anteontem conheci um tanto de Equipe Reflexiva, uma ideia e prática original de Thomas Andersen. Do que entendi, enquanto uma família é atendida por um terapeuta, outros terapeutas observam em silêncio e refletem. Os dois grupos trocam de posi-ções, se a família deseja. Os que observavam falam entre si das suas percepções, enquanto a família agora os observa. Finalmente os membros da família fazem seus comentários. É um processo reflexivo.

À tarde, roda de terapia comunitária. Alguém apresenta sua dificuldade quanto à presença de

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público nas rodas que realiza. Outra fala da sua dificuldade no relacionamento com a filha adoles-cente. Esta última foi o tema escolhido, houve um maior número de pessoas que, por se identifica-rem com ele, nele votaram.

A mãe detalha, responde a perguntas, se emocio-na. Fala da sensação de perda do amor materno, da vontade de matar, intercala choro e desabafo. Depois, em silêncio, escuta experiências compar-tilhadas por uma ou outra mãe presentes. Duas filhas contam, sob outro ângulo, o que viveram de semelhante. Por duas vezes, dor de barriga, a mãe na berlinda vai ao banheiro. O corpo fala. Volta, escuta, compreende um tanto, sorri entre lágri-mas, se acalma.

Na roda de despedida, músicas e o que levo daqui. Olhares complementam as palavras. Os gestos expressam afetos. Mais próximos do que antes, nos despedimos com abraços.

17pausa

HorizontesLá na frente, como me vejo? Fecho os olhos, me sinto adolescente. Abro, a imagem me choca, um velho. Quem é este homem maduro, enrugado? Sei que agora não me reconheço ao espelho.

HojeOu ontem, amanhã, o tempo se dilui em minha memória frágil. Meu sofrimento hoje é alguma tristeza difusa, talvez profunda atrás deste meu fa-zer vídeo, fazer livro, fazer encontros de terapia, fa-zer, fazer. Talvez esta irritação na garganta expresse o incômodo que sinto e do qual não me aproximo.

Se a vida, o mundo, é um palco enorme, em cada espaço algo acontece. Como atos de teatros. Aqui e ali um nascimento, uma morte, uma dança, tiro-teio, um canto, um olhar, um desvio, choro, sorri-so, arrepio, descanso, tensão, medo, uma criação, destruição, solidão, um conforto, desconsideração, solidariedade.

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Quando sou o ator, tenho escolhido neste palco o bem-estar que suporto. Quando espectador, uma vez visto, internalizo, não releio notícias, desgraças. Minha referência tem sido meu humor. Se bem hu-morado, é por aqui. Se mal-humorado, não. Tenho cuidado de me compreender. Já sei que meu gosto pelo outro passa pelo meu gostar de mim.

Em casa, nenhum remédio. Nem comprimido, além da Maravilha Curativa que cicatriza, nenhum. Muito de vez em quando, como estes últimos dias, um sinal. Como esta irritação de garganta, um iní-cio de catarro, remelas ao acordar. Talvez meu cor-po expresse algum sentimento contido. Desconfio de tristeza. Há alguns dias, a maior parte de mim não deseja encontrar-se com ela.

18juntomisturado

Simples assimHomens hipnotizados passam agora correndo em frente. Cantam firmes, uníssonos. Dentre os ver-sos escuto ...É a vontade de matar... Escolheram a morte como meio. Pra deles me defender, tento en-tendê-los, olhar com seus olhares. Sinto medo dos seus medos. Pressinto que por medo, atiram. Suas ações nascem das pressões que internalizaram – as ordens, os castigos, suas missões – e do medo de sofrerem. E ainda ganham medalhas e parabéns.

São, somos, sou o mesmo guerreiro de ontem e de hoje. Têm, temos, tenho um tanto da idade da pedra. Repetem, repetimos, repito os bárbaros, do-mino mundos e perco guerras no interior de mim mesmo. São, somos, sou semelhante a soldados hu-nos, persas, egípcios, romanos, espanhóis, ingleses, alemães, americanos. Seus, nossos, meus medos têm raízes em minha infância, são reforçados na adolescência, enrijecidos agora adulto. Seus, nos-sos, meus horizontes são curtos. Imagino a atenção

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constante, o inimigo em cada lugar, cada desco-nhecido uma possível vingança. Quando matam, matamos, mato o outro, mato um tanto de mim. E não percebem, não percebemos, percebo. Como quando elevam, elevamos, elevo o outro, a mim elevo. Parafraseio Laing. Alguém me ama, me acho bom. Alguém não me ama, me acho mau. E lembro Lennon, all we need is love. Love is all we need.

Empírico, sei, quem apanha em casa é quem mais briga na rua.

Tudo começa em casa: Winnicott tinha razão?

Perguntas que me faço...Em cada outro, um pedaço de mim?Em cada pessoa, um tanto da minha pessoa?

Quando percebo algo no outro, é algo que já conheço? Em mim? Livre arbítrio, o que é em mim? Pratico?Ética, o que é em mim? Quando não fui ético?Afeto, o que é em mim?

Sou afetuoso com quem desejo?O mundo anda enquanto paro?

E o amor, o que é o amor?Como descrever o gosto da banana? E o gozo, pra quem não gozou? E o amor, se só vislumbro?

Desconfio que estou amando quando desejo para o outro o que, lá no meu profundo, desejo pra mim. Se é assim o amor, meu amor é nosso amor. Meu amor é como um reflexo. Sou espelho do que recebo e percebo. Sou amado pelo que ofereço.

Talvez eu saiba o que o amor não é. Não possuo nem sou possuído. Não limito nem sou limitado. Meu amor não é excludente. Amo um e uma e amo outros. Amo a mim, amo aqueles que dese-jam pra mim o que desejam – lá nos seus profun-dos – pra si mesmos.

Só amo outro quando amo a mim. Sou dou o que tenho.

Anos depois, leio Contardo Caligaris e me iden-tifico: Eu não tenho ciúme. Se alguém que eu amo

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me deixa por outro, eu me desespero como todo mun-do. Mas se alguém que eu amo, sei lá, está viajando, continua me amando, mas tem a oportunidade de se divertir com outro parceiro por um par de dias ou de semanas, eu fico feliz por ela.

Pergunta que, sei, só devo fazer ao espelho: que você quer que eu queira, para eu querer?

E o livro?Alguém já disse que o escultor, pra realizar sua obra, vai retirando do objeto bruto o que está em excesso. Constrói pela retirada. Disseram tam-bém que escrever é cortar palavras. Tentei. E foram tantos cortes que a prosa tomou forma de poesia. A poesia, cortada, virou o que? Haicai? Mas se enxuto este que imagino haicai, sobra o silêncio. Agora tento de novo, cortando menos, na espe-rança que cada leitor edite. Assim como acontece comigo, fico de cada leitura somente com o que me toca.

O que posso me dizer?Quanto mais maduro, melhor me sinto. Sou centro do meu universo. A vida é um fluxo variado. Cuido

de mim. Meu humor é um indicador. Quanto mais faço o que quero, melhor pra todos.

Ando cheio de sabedoria. Quando tropeço, duvi-do. Se atento, aprendo. Desatento, tropeço de novo...

E o Tao Te King?Eu gostaria de ser sábio a ponto de conhecer a mim mesmo. Tão forte que capaz de me domi-nar. Rico, rico de viver contente. E terno, eterno, transcendente da morte.

E sofrimentos?Eu sofro porque desejo? Eu desejo porque sinto falta? Minhas faltas onde nasceram? O que eu ti-nha que não tenho?

Cinema e vídeoNa década de 70, operário de cinema, exerci fun-ções variadas. Como voluntário, no escritório dos Barreto, atento ao tudo novo, bolei e pratiquei controles administrativos. Depois, em Perdida, de Carlos Alberto Prates Correia, aprendi direção de produção. Generoso, Carlos Alberto abriu portas e janelas. Pratiquei assistência de montagem com

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Amauri Alves e Eduardo Escorel, no Guerra Con-jugal, de Joaquim Pedro. Cada corte, muito traba-lho manual.

Frequentei anos a Mapa, produtora de Zelito Viana, desde os tempos da Urca. Na Embrafilme fiquei à disposição de Roberto Farias e, no setor de rádio e televisão, sob o olhar da Martha Alencar, dirigi – hoje sei, sem estar preparado – o Coisas Nossas, programa com exibição de documentários veiculado pela TVE. Lá, por um ou poucos dias, fui assistente de som do Jorge Amado, documen-tário de Glauber Rocha. Participei também da sua montagem, também como assistente. Glauber chegava, orientava Carlos Cox – o montador – e voltava depois. Os neurônios da memória salti-tam. Fiquei sem voz ao dar de cara com Caetano no corredor. E, tão fã, ao invés de me aproximar de Gil, fotografei. Tive uma câmera VHS, daquelas ligadas por um fio à unidade de gravação. Minhas mãos eram muitas para – simploriamente, apaixonadamen-te, inocentemente? – produzir e gravar o que me atraia. Cenas familiares, movimentos e, no campo

psi, vivências, simpósios, depoimentos, entrevis-tas. Com dinheiro curto, me limitei ao possível. Utilizava copiões – cópias para trabalho, feitas a partir das fitas originais – para assistir repeti-damente o que havia gravado. Selecionava, rotei-rizava. Alguns documentários ficaram prontos. E cópias, feitas por empresas especializadas. A capa, embalagem, distribuição, presenteios e ven-das, mão-a-mão apoiado por amigos. Um tanto assim até hoje.

Sempre me propus conteúdos atemporais. Com-preendi que qualidades técnicas contemporâneas estavam fora do meu alcance. As formas, as mais simples. Câmera na mão ou fixa. Cortes secos, fa-des out e in.

Comprei uma Canon 16mm, emprestei. Roubada no local da filmagem, fui ressarcido em prestações mensais. De outra vez pedi a um amigo que es-tava vendendo sua própria câmera que também vendesse a minha SHVS. Um comprador se in-teressou, propôs depositar o valor. Voltou com o recibo do banco, levou a câmera. O cheque depo-sitado era roubado... Sonhos interrompidos.

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Tempo passado, mergulho na terapia comunitá-ria. Horas e horas de gravação, agora com uma HDV Canon pequeninha, sugerida pelo Elizeu Ewald, pioneiro em tecnologias virtuais. Medos semelhantes aos de trinta anos atrás se aproxi-mam de mim. Mas aprendi que prazos me angus-tiam... e já não me imponho datas nem socieda-des. Está quase se tornando um prazer, o fazer. Aprendo.

RicoO que desejo pra mim é o que desejo pra ti. Eu, aqui, agora no processo de aprender a estar con-tente. Rico por viver contente. Este o desejo.

Decisões IndecisasGostei da ideia. Decretos pessoais. Avalio melhor que ninguém meus próprios desejos e viabilida-des. Determino a mim o que faço ou não. Come-ço pequeno. Hoje fico mais meia hora em casa pra escrever.

Cumpro a missão da instituição que me contrata – contribuir pro bem-estar dos menos favoreci-dos. Coincide com o que desejo, me alegro: inda

me pagam pra trabalhar no que gosto. Tenho este olhar internalizado como sentimento. Faço o bem, não olho a quem, mesmo fora da hora. No banho, na cama, no trabalho, na rua, em qualquer lugar – quando relaxo – fica tudo um tanto mais claro, as soluções se desvendam. Estou tranquilo. Uma contabilidade cósmica indica justo equilíbrio.

EscolhasOs custos de controles invadem orçamentos. Controle significa instrumento de domínio. Con-troles me enfraquecem. Mas quando eu gosto do que faço, faço o que gosto, pra que controle?

Imagino-me suprido, desde aquela explosão de afetos que me gerou. Papai e mamãe se olham e seus olhares são ternura e tesão. Calmamente se sentem, se tocam, têm o tempo como amigo. Mer-gulham no barato que vivem, se babam, se riem, arrepiam. O prazer toma conta, gozam. Passa um tempo... E lá venho eu, energias misturadas, em-brião, parte de cada um.

Cresço cuidado, descubro o mundo, me cui-do e partilho. Desejos e sentimentos vêm e vão.

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Aprendo transformá-los e a mim, como cachoei-ra em luz, ventos em ondas, trovões em matérias. Compreendo lá dentro, desfaço mal-entendidos, me supro cada buraco em cada momento. Não carrego vazios. Nada possuo além de mim mes-mo. Sou inteiro. Componho o mundo, sou parte e sou todo. O que percebo fora é o que reconhe-ço porque sou. Não desejo possuir o que é parte de mim.

Sou também vegetal quando como. E sol quando me esquento e brilho. E o ar que respiro, a água que bebo. Internalizo e reflito o olhar, a emoção, o pensamento que recebo.

Produzo o que preciso, supro outros como sou e fui suprido. Pertenço ao mundo sem ser possuído. Decreto pessoal: sou livre.

VagoTudo me leva a crer que o mundo será o mesmo sem mim. Já meu mundo existe em mim, sou cen-tro do meu universo. Só me resta viver.

É tão bom estudar sem ter que fazer provas, escrever

despreocupado de notas. Mas como não ferir aquele a quem minha escrita porventura se refira?

Sentimentos de tristeza me assaltam se me toco do que fiz no impulso, como ontem, quando pressionei um jovem mendigo aidético: se é lá sua terra, se é lá que tem tratamento gratuito, volte pra lá. Constante no diálogo uma mistura de minha impotência e raiva, atrás do meu aparente afeto e desprendimento.

Saquei que associar alegria a castigo me dificulta viver o prazer. Agora todo dia enfrento medos e culpas. Quando venço, rio, me alegro, gozo.

Outras vezes, quando transo, cultivo o pra-zer d’agora, evito o orgasmo. Permane-ce um quente no corpo, uma animação su-til, ausência de ânsia, pronto pra outras. Um tanto tantra. A meta, se existe, é o prazer du-rante, não o orgasmo ao final.

Por outro lado, esta sensação dejavu volta e meia me lembra do que antevi. Pressinto o que vem. Sinto uma ponta de tristeza quando com ironia

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sou chamado de poeta, filósofo, doidão. Sinais que estimulei defesas, não fui entendido. Sei que o sonhar, o imaginar – mesmo não conscientes – antecedem em mim cada realização. Meu mun-do é feito a partir de meus sonhos, imaginações. Sonhos podem ser leves. Se pesados, pesadelos. Como escolher sonhos leves?

Se durmo de barriga cheia, é batata, pesadelos. Mas com a digestão já tranquila – e a cabeça no travesseiro, os olhos fechados –, se me volto pra agradáveis lembranças, imaginações prazerosas, batata!, leves sonhos. Toda noite – só quando consciente do que faço – escolho.

Perdi minha vida por educação. Verlaine? Algumas vezes leio só passando os olhos, outras tento en-tender tudo. Se atento demais, fico tenso, vou e volto, às vezes entendo, fica ou não fica. Tenho me permitido ler mesmo sem entender tudo. Sinto que mais que só algo permanece. Salteio páginas de Freud, me atenho ao que me toca. Passo os olhos em quase tudo que me cai em mãos.

Já não sei de quem vieram – se de um ou outro, ou desconhecido ou de mim ou de nenhum – estes entendimentos que já fazem parte de mim. Já fo-lhetos, folheio. E se uma palavra, uma frase, uma ideia me desperta um sentimento, vem a curiosi-dade, leio. E quando me toca, cresço. Dos livros, também, adoro orelhas: às vezes fico só nelas.

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Dados de realidade, nem eu nem ninguém que conheço tem só as qualidades que me atraem. Sempre uma mistura de atrações e recusas. Sinto também que não devo, antes de conhecer, definir a quem procuro. Devo então permanecer atento aos sinais em mim. Os batimentos do coração, as li-vres associações, os atos falhos, os sentimentos. Se quero e me permito despertar variações, já sei, um filme bom, uma festa, alguns arriscos. Reconheço, dá trabalho me manter vivo como me gosto.

Ao editorImaginei um espelho como capa do livro. E as páginas iniciais brancas, como um caderno novo disponível pro leitor. O formato, de bolso. Ou aquele que facilita xerox? Letras de forma e ta-manho que facilitem a leitura. Aquele papel meio amarelo claro. Textos enxutos, conteúdos e esti-los variados, mistura de subjetivo e objetivo. Ora ficção, ora realidade. Entrelinhas que estimulem atenção. Em algum momento a sugestão: leia aos poucos, em momentos calmos. E > é permitido acrescentar, reproduzir e distribuir para fins humanitários. Um livro como um meu retrato, o meu eu idealizado.

19manual de manutenção

Se a vida é uma escola, qual meu dever de casa? Realizar meus desejos, ser sincero comigo, respei-tar meus sentimentos? E na relação de namoro, casamento?

Hoje uma tristeza que freia. Só, sinto falta do aconchego, do calor, da doçura. Da calma, do prazer que acalma. Sinto um desejo difuso, não é claro o que desejo. Tento pelas bordas, pinço en-tão o que não desejo – ser alvo de ciúmes, hora marcada pra tesão, ser cobrado pelo que não sou nem me comprometi.

Clareia um pouco, sei que quero do bom que pro-vei, usufruí. Ser desejado pelo que sou, como dese-jo pelo que é. O mel do beijo quente, ativo. O arre-pio do olhar, do toque. A sensação de eternidade, ausência do tempo. A pulsação, em que do nada me espalho em ondas. Nestes momentos, memó-ria e futuro ausentes, só presente o presente.

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Imaginei um livro como movimento. E um leitor que simplesmente leia. Ou – se lhe convier – ao se identificar, amplie, invente, acrescente e assine, multiplique, distribua, de acordo com seus dese-jos e possibilidades.

Gosto muito de uma regra de ouro, faça ao outro o que deseja para si.

20hoje, já passado

PedaçosNão sei definir direitinho meu estado civil. Há momentos em que sou maridão. Feira juntos, dis-ponível na manutenção da casa, furadeira empu-nho, retratos na parede, qual chá hoje? Relatos ao telefone, TV cedinho, só vou se você for, o que você quer pra que eu queira. Canso, sensação de aprisio-namento, de viver uma vida que não é minha. Gota d’água, me rebelo. Volto pra minha base solitária, repito, invento, reinvento rotinas. Viro namorado, duas vezes por semana. Cinema, passeio, cada um cuida do que se propõe, volto aos meus projetos, escrevo, gravo, alguns encontros com amigos. Em intervalos, sentimentos de solidão.

#Tudo muda a cada instante, também sei. Não sei definir com precisão minha profissão. Leio com frequência. Na cabeceira literatura psi, romances, esporadicamente livros técnicos, revistas. Jornal, uma vez por semana? Vejo um bom filme, leio

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algo que me fica, sei de uma notícia interessável, falo com um e outro, reproduzo, distribuo, imeio. Penso como rede. Raciocínio inverso, a partir dos objetivos, planejo de lá pra cá. Há muito tempo tinha vergonha de falar o que pensava. Terapia, convivência com gente mais resolvida que eu, leituras, dois passos pra lá, um pra cá, ampliei no meu tempo minhas limitações, comecei a me expressar. Hoje primo por livres associações, ora foras, ora dentro em cheio. Se me incomoda o incômodo de outros, tento distinguir o que é meu, o que é de outros. Sei que me sinto vivo quando vivo o que escolho, o que sou eu.

#Um ontem, gravei em Barra do Piraí um encontro de terapia comunitária. Paula, a terapeuta. Praça principal, gente mais velha, o tema escolhido foi a preocupação com os filhos, mesmo os já adultos. É um que bebe e fuma, outro que anda de moto-cicleta, chega tarde e assim vai. Uma senhora se emociona ao relembrar a recente morte, AVC, de pessoa próxima. Alguém inicia uma música, abra-çam-se em roda, balançam enquanto cantam, tro-cam olhares compreensivos, ternos. Um ou outra

que permanecia mudo se expressa, ainda tímida, voz baixa, bota pra fora o que lhe incomoda. Uns quantos chegaram solitários, partem agora um tanto solidários. Sexo não tem idade. Sexualidade.

#Semanas passadas. Vem se acumulando uma sen-sação de excesso de compromissos comigo mes-mo. Iniciei semana passada o que imagino uma série de entrevistas. Luiz Soares é um morador de Manguinhos, comunicador ativo, leva-e-traz informações que beneficiam os que ouvem, nos encontros comunitários que participa. Já o vi, dis-creto, atento, em meio a muitos, nos cantos das telas, em três documentários recentes que assisti.

Segunda por volta das nove nos encontramos aqui em casa, de frente um para o outro, um em cada cadeira, uma câmera nele, outra em mim. Fala do que é, do que faz, dos planos. Invertemos, ele me entrevista, conto o que imagino sou, faço, da terapia comunitária. Trocamos de cadeira de novo, ele desfia realizações que têm dado certo em comunidades menos favorecidas, frutos de inicia-tivas de moradores locais. Aventamos também

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entrevistá-los aqui, nas semanas vindouras. En-trego as fitas gravadas, brutas, para ele. Mostrará para amigos da TV Comunitária – canal fechado da net – com a intenção de, juntos, editarem e veicularem. Dois dias depois já me informa en-controu interessados e que em vinte e cinco dias terá resposta.

Anteontem contei para Evandro Ouriques, da Escola de Comunicação da UFRJ. Combina-mos entrevista daqui a duas semanas. Antes eu já havia comprado alguns equipamentos comple-mentares, alternativos, baratos: dois rolos de chro-makey, duas luminárias-tipo-panelas de alumínio, lâmpadas fluorescentes e mais umas coisinhas pra montar um estúdio caseiro aqui no que é meu teto. Busquei dicas com quem sabe. A câmera dvcam de Michel permanece comigo, Pedro meu filho me informa dos softwares, Jorge Rodrigues ternamente se oferece e constrói os materiais que tenho me permitido aceitar. Como uma sopa de pedras. Sementes de programas de tv?

21insights?

Volta e meia meu corpo me avisa pr’eu me cuidar. Bom menino, quando escuto meu corpo, relaxo sem culpa. Meu corpo é, às vezes, uma mãe...

Tenho me sentido no limbo. Sabe o que é limbo? No catecismo, quando perdi minha inocência, aprendi que o limbo é aquele lugar pra onde vão os anjinhos, as crianças que morrem sem batismo. Lá, do que entendo, é vazio, é um nada. Meu lim-bo atual é este não saber quem sou, onde estou, de onde vim, pr’onde vou, que desejo. Como não sei, permaneço...

Minhas realidades pouco a pouco se enevoam... e eu gosto. Não sei descrevê-las, tudo um tanto difuso. Sigo a intuição, quase o impulso, mesmo sabendo que não sei. Tá vendo? - brincadeira - imagino além de mim, outros. Os objetos têm perdido antigos sentidos de suprirem vazios. Saem os objetos, ficam os vazios, pelo menos não

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me engano. E o melhor, tenho me sentido melhor. Paralelo, o pique corporal diminui, os desejos, a ansiedade também. Serei o santo que desejei ser quando perdi a inocência no catecismo?

Pois é, sinto que a vida é o que sinto. Volta e meia me pergunto o que está ao meu alcance... e me sur-preendo com o que posso fazer por mim mesmo. Esta foi mais uma vez em que perdi outra inocên-cia: se não cuido de mim, quem cuidará? Quando tento olhar com os olhos de quem me cuidou ou cuida, minha mãe por exemplo, desconfio que o outro - ela - vive tantas questões pessoais que não conseguiu resolver... Quando, assim, sinto com-paixão por ela, me permito compaixão por mim mesmo. Se minha mãe foi não perfeita - nem meu pai, meus modelos - como eu?

Aí então me pergunto: o que está ao meu alcance fazer por mim? Viver contente? Rio, rio, rio... e não sei por que. Acho que tou no caminho cer-to. Tudo muito novo, pra mim, isso de alimentar alegria. Rio de mim? E se rio do outro, no fundo rio de mim?

22ficção, desarrumações

Falo das qualidades do produto, desperto seu desejo. Omito quanto ganharei de você pelo que agora lhe vendo. Sou esperto, mais ainda porque lucro muito. E você ainda me valoriza pelo que acumulo. Deseja ser rico como eu.

Já nem preciso de tanto. Gasto muito de mim na conservação do que estoco. Nem tenho prestado atenção nestas contradições que o excesso me pro-voca. Ser rico dá trabalho. Fico de olho em outros que agirão como eu se tiverem oportunidade. Gen-te que volta e meia muda as regras. Ou transgride. Eu mesmo tomo minhas providências, quando a lei não é suficiente. Não tenho muitas dúvidas.

Insônia, gastrite, hipertensão, estas dores é que me atrapalham. E os pesadelos, os sobressaltos? Não tenho podido usufruir do que possuo. Tanta gente próxima pelo que tenho, que já nem sei quem me ama pelo que sou. Minha prática em mentir nos negócios é que me protege um pouco: reconheço

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logo quem também mente. Mas não tenho amado, desaprendi reconhecer quem me ama.

Tem também estas coisas que acontecem e não entendo. Lembro uns pedaços do que sonhei esta noite. Uma mistura de quente e frio, vendavais, maremotos, calmarias. Túneis, desertos. Névoas e sol a pino. Ora era eu o ator, ora desconhecidos. Minha mulher me disse que suei, gritei, chorei e ri. Tinha pela frente uma encruzilhada quando acordei com o toque dela. Ficou esta dúvida do que fazer com minha vida. Ai que saudades de minha inocência.

23sensação de juventude

Isto de sensação de vitalidade, sinto que tem a ver com minha constante tentativa de fazer o que meu coração diz. Desde que me lembro. Mudanças de rumo, cidade, profissão, um tanto incompreendido, outro tanto aceito. Agora mes-mo, estável na multiplicidade do que faço, inven-to, uma recorrente vontade de simplificar o ser e o fazer. Neste agosto de 2008, crente na criação de um sistema mutante de comunicação, de um lado ligado numa rede autônoma de agências de inFormações – jajá me explico – e de outro, sob o mesmo guarda-chuva, em plena produção de uma série de classificados sociais em vídeo. Além das Terapias Comunitárias, rodas práticas e vídeos. Tudo considerando o processo que vai da ideia à interação, passando pela preparação, produção, gravação, edição, divulgação, veiculação, retorno. Considerando os recursos que disponho ou te-nho acesso. Tudo muito singelo.

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Sou uma peça de movimentos de pessoas com de-sejos comuns. Funciono a partir da participação de quem deseja e toma iniciativa de contribuir com o que escolhe. Tudo muito aparentemente confuso como qualquer movimento, onde equilíbrios se dão de maneira dinâmica, em espiral, em ondas que vêm e vão, desaparecem e renascem. Caos que antecede ordem que antecede caos. Movimento talvez semelhante ao que compreendo como tese, antítese, síntese. Sem metas quantificadas, só ob-jetivos difusos, uma vez que, se sei, talvez saiba um pouco do que não sei, do que não desejo. Aspiro este bem-estar que volta e meia sinto, indefinível como o gosto do pequi e como a sensação que me inclui no todo. Assim, nestes momentos, quando desejo pra mim, desejo pra todos. Que não são to-dos, é todo, é um, também eu.

Os produtos carregam as intenções, são partes dos gestos. Parece confuso e é, enquanto não se torna claro, o que depende de quem vê. Também assim, cada olhar determina a realidade que lhe corresponde. Até onde agora enxergo, a aceita-ção de mim como sou – com as diversidades dos meus instantes – pode ser caminho para a acei-

tação do outro? Este outro que faz parte do todo do qual também participo. Se me aceito, tendo a aceitar ao outro.

A livre associação me leva à dica de Gentileza, o homem > Gentileza gera Gentileza.

Mas sou muito prático. Quando relaxo e me vêm ideias, se uma ideia me toca, fica. Se desejo, ra-ciocínio ao inverso. Relaciono o que é necessá-rio para realizar o que agora é desejo. Decupo em tarefas o que me leva à sua realização. Abro colunas numa tabela. Além das tarefas, avento os tempos, os custos, quem poderia se interessar por realizar uma e outra, anoto observações. Dá mais certo quando trabalho partes do meu ego, já que lá mais fundo permanece um orgulho si-lencioso pelo que contribuí.

Domingo chuvoso, escolho agora entre ler Caeta-no Veloso – Verdade Tropical – e me mover para rever Pedro, meu filho. Bom problema esta esco-lha, ambos me surpreendem, confortam, alegram.

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24anotações

00Em algum momento passado, remoto e recente, cada letra, espaço, palavra, frase daqui. Em algum mo-mento presente, já no futuro, mistura de tempos.

01Quando escrevo, me organizo. Lembro o que sin-to. Expresso meu mundo. Aprendo a me compre-ender, me aceitar. Facilita aceitar o outro, diferen-te de mim e um tanto semelhante. Escrever é um risco. Arrisco.

02Wilhelm Reich me ajudou a eu próprio me com-preender, me aceitar, me desenvolver. O Combate Sexual da Juventude me ajudou desculpabilizar--me em relação ao sexo. A Função do Orgasmo me ensina como pode ser o processo. A Análise do Carater me dá métodos de me cuidar. Tudo, na-turalmente, do jeito que entendo a cada releitura.

03A cartas trocadas por Ferenczi e Freud me ensi-nam da amizade. Em cada consideração, algo que um oferece ao outro e a mim.

04Freud se humaniza quando se expõe. Isto de in-consciente e consciente me faz pesquisador de mim mesmo. Quanto mundo reconheço em mim.

05Compreendi melhor Laing, a pessoa, no seu Fatos da Vida. Sua dedicação ao acolhimento do outro faz sentido com o que ele próprio viveu. Antes ele tinha me tocado com o Laços. Ele fala de mim quando fala do outro. Os chamados loucos têm um tanto de mim. Eu tenho um tanto dos loucos. Acredito que como todos, ou quase todos, nós.

06Winnicott dedicou a vida à pediatria e à psica-nálise. Tudo Começa em Casa é composto por palestras que fez durante a vida. Cada capítulo se completa em si mesmo. É um livro póstumo. Mamãe já morreu, mas hoje aprendo a melhor

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compreendê-la e amá-la com o que Winnicott me oferece.

A comunicação permeia todo o fazer. Sua insu-ficiência interfere nas relações. A partir daqui in-terfere em tudo. A comunicação se dá com o ou-tro e, indo fundo, consigo mesmo. O pensamento já é mensagem.

Quando há realização de desejo de compartilha-mento de informações, as comunicações se ini-ciam. Quando eu próprio entendo o que comu-nico – e o outro também – as comunicações se animam. Quando eu entendo o que o outro me comunica, as comunicações se completam.

07Bubber me ensinou que quando vejo uma árvore e percebo suas características – o caule, as folhas, as raízes, as flores... – a árvore está fora de mim, é um isto. Mas quando eu sinto a árvore, a árvore sou eu, somos eu-tu. Eu-tu é um livro de Bubber.

08Tostão me surpreende quando escreve sobre fu-

tebol. Ali o futebol representa a vida. Tostão bate bola com insights.

09Ludemir mergulha onde vive e relata. Conheço um pouco de favela também através do que es-creve. Sou um tanto favelado, somos semelhantes pelos sentimentos.

10Outro tanto de favela conheço através d’As Cores de Acari, de Marcos Alvito. Aparentes pobrezas escondem riquezas. Lembro Adalberto de Paula Barreto, que, em relação à Europa, fala dos favela-dos existenciais. Lá, riquezas aparentes escondem pobrezas emocionais. Em muito, desconfio, fave-las e europas se complementam. Talvez aprendam uns com outros. Só questão de desejos e gestos.

11Em Por Uma Pedagogia da Pergunta, Antonio Faundez conversa com Paulo Freire. Diz que a cul-tura não é apenas uma manifestação artística ou intelectual que se expressa através do pensamento. A cultura se manifesta nos gestos mais simples do

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cotidiano. Cultura é comer de maneira diferente, é relacionar-se com o outro de maneira diferente. 12Mirian Goldenberg, na Folha de SP, diz que seus “...pesquisados apontam três ingredientes no casa-mento: amor, paixão e amizade. O amor aparece como um sentimento amplo e difícil de ser definido. É diferente da paixão, inicial e provisória, que se transforma em amor ou acaba.”.

13Procuro me conhecer? Atento, tento, ao senti-mento, ao pensamento, à palavra, à obra?

14David Bornstein, em Como Mudar o Mundo, es-timula quem tem ideias inovadoras focadas no bem-estar coletivo.

15Já Charles Feitosa, em Explicando Filosofia com Arte, trata de questões profundas de uma manei-ra tão acessível... e quando a gente menos espera se vê refletindo sobre o todo, o nada, o essencial.

16Gosto da superfície, de orelhas de livros, mas eventualmente mergulho, me aproximo do meu próprio inconsciente, do inconsciente de outros, do inconsciente coletivo, que está aqui e ali e não sei direito o que é. Carl Gustav Jung me ajuda, permanece vivo. Tanto através de Nise da Silvei-ra, que escreveu Jung, Vida e Obra, quanto através de suas Memórias, Sonhos e Reflexões e d’O Ho-mem e Seus Símbolos, finalizado poucos dias antes de sua morte. Jung dedicou a vida à compreensão dos sonhos, dos mundos interiores.

17Thomas Szasz me ensinou a cuidar de tratos. Nem me lembro como, mas ficou em mim um tanto de sua A Ética da Psicanálise.

18Eu era pobre e não sabia. Na minha infância, den-tro de mim, não soube de faltas até o momento em que, na cidade maior, vi a vitrine. Desejei o que não tinha. E por muitas vezes me angustiei por não me suprir as novas necessidades criadas.

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Demorei meia vida para compreender que o que aparentemente possuo é que me possui. O carro me pede manutenção, taxas, estacionamento, gaso-lina, óleo. O cachorro solicita atenção, alimentação, passeios, cuidados. Minhas posses me aprisionam.

19 Surpreendi-me com o que Freud diz, em cartas, a Ana, sua filha. Meus preconceitos o colocavam transcendendo o humano. E ele se mostra gente um tanto como a gente.

20Sonhei uma escola de desenvolvimento. Ela se concretiza onde se realizam aprendizados de de-senvolvimento integral – econômico, emocional e mais. Aprendizes interagem com mestres onde os conhecimentos estão. Mestres, naturalmen-te - nos momentos que também aprendem - são aprendizes. Aprendizes, naturalmente - nos mo-mentos que ensinam - se tornam mestres.

21Gentileza gera gentileza. Aprendo toda hora: quando sou gentil, quando são comigo gentis.

22Anotações para um manifesto em favor de infor-mações saudáveis: todo dia, ou quase, nas bancas, os mesmos jornais diferentes, as mesmas notícias semelhantes entre si. Isto aqui no Brasil. Isto na Europa. Talvez em todo o mundo. Como fontes, três ou quatro ou poucas mais agências de notí-cias, quando não uma só. CNN, Reuters, UPI, France Presse... Aqui, agências O Globo, Folha de São Paulo... Em que posso contribuir para me-lhorar, diversificar visões de mundo?

23 Passado recente, 2009: eu, sessenta e dois anos e nove meses. O horizonte mais perto. Cálculo otimista, sessenta por cento da vida já vivida. A intenção, há alguns meses, era só gravar vídeos e escrever. Tenho mais gravado que escrito. Giro em torno de encontros de redes comunitárias e de rodas de terapia comunitária. Gravei, com apoio de muitos, muitos destes encontros. Caetano Dable transcreveu um tanto. Pedro Sarmento criou vinhetas. Cineastas amigos editam – Elizeu Ewald, Félix Ferreira, Katty Cuel, Alberto Mejia, Roberto Pontes, Phillip

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Johnston, Chris Agnese, Thiago Catarino, Tainá Diniz – um vídeo cada um de cada vez. Pedro realiza o design do DVD. Mejia e Phillip cuidam da veiculação na TV Comunitária do Rio de Janeiro. Rudá Almeida inicia o Youtube. Oscar Pereira, o Oscardigital, complementa e am-plia pro Videolog. Glória, Jorge dão força. Russo, Eliany cuidam da casa. Combinamos cuidar das falas e atos editados como gostamos que cuidem de nós. Evitamos constrangimentos, procuramos contribuir para o gosto de cada um por si mesmo. Os custos são limitados aos recursos disponíveis. Há intenção de que os vídeos possam ser úteis em qualquer época – são atemporais.

O presente está assim. Já prontos o Terapia Co-munitária – Conversa com Adalberto de Paula Barreto. E os Classificados Sociais de São Gonça-lo, Tijuca, Ramos, São João de Meriti, Niterói, Madureira, Vila Aliança, Expo Brasil. Os Livre Pensar Social relativos ao Desenvolvimento Local e à Sociedade que Desejo. Em edição o Rede Co-munitária de Cultura de Minas Gerais, o Rede de Cultura de Santa Catarina, os Classificados Santa Luzia, o Contribuições para a Plataforma Urbana

do UNICEF, o Vila Aliança, o Terapia Comunitá-ria – 4 Varas. Auto-Estima e o Retalhos, com de-poimentos de terapeutas comunitários. Os custos integrais dos Terapia são meus. O Sesc contribui para a edição dos relativos a Redes e Livre Pensar. Tudo singelo. Mais que documentários eu cha-maria de falas-úteis.

24Depois que papai e mamãe morreram, tenho sido meu próprio filho. 252006, 3 ideias possíveis.

a) Agências de Notícias: textos simples, pe-riódicos ou não, atemporais, são disponibili-zados-oferecidos a veículos de comunicação - jornais, revistas, rádios, tvs - de todo o país. Em médio prazo, também a outros países de língua portuguesa e espanhola. Temas, como exemplos, sobre comportamento, desenvolvi-mento integral do ser humano, boas notícias, brincadeiras passo a passo, provocações de insights. E mais, textos instigantes de reflexão,

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destinados especificamente aos mais variados públicos: pais, crianças, professores, empresá-rios, babás, políticos, funcionários públicos, profissionais de saúde...

Podem ser formatados, ou não. Se sim, por exemplo, em cadernos-tipo-cultura, com espaços para inserções publicitárias locais. Podem, ou não, ter um ético patrocinador--cliente que arque com as despesas básicas e, em contrapartida, tenha sua inserção publici-tária ética presente nos veículos que aceitem os produtos intelectuais oferecidos.

b) BRincadeiras: saem brinquedos, entram brincadeiras. Novas, antigas. Jogos cooperati-vos, integradores, por faixas etárias e interge-racionais.

Um primeiro dvd com, digamos, 60 minutos, atemporal, com 30 brincadeiras apresentadas de forma que quem vê aprende e entra e faz.

400 mil cópias, destinadas a cerca de 400 mil escolas hoje existentes no Brasil. Oferecidas

por uma instituição, Petrobrás Distribuidora, por exemplo. Parceria com os Correios, que entregará o dvd em cada escola. Já disponível, pesquisa bruta com centenas de brincadeiras.

c) Povo da Rua: redes de interessados em se aproximar, cuidar de moradores de rua, con-siderando, cada um, seu desejo-competência--possibilidade. Da higiene à alimentação, da educação à transformação. A metodologia dos encontros pode ser semelhante à das re-des comunitárias: em roda, o que cada um oferece, o que cada um procura. É bom saber o que um morador de rua deseja. Se deseja açúcar, quem sabe aceite o mel que não co-nhecia.

26Como limite, internalizo uma regra de ouro: não faço a outro o que não desejo me façam.

27Sou melhor escutado quando falo do que vivo. Sou menos escutado quando falo o que outro deve ser, fazer.

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28Tenho tido o maior cuidado com minhas expec-tativas, especialmente em relação a outro. Se não falo da minha expectativa para o outro, como o outro saberá da expectativa que tenho em rela-ção a ele?

29O que em mim dá certo? O que posso melhorar?

30Filme bom é aquele que assisto e saio melhor que entrei. Quando entro um e saio outro. Pra quem gosta de emoções: As Canções, de Eduardo Cou-tinho. E A Música Segundo Tom Jobim, de Nel-son Pereira dos Santos e Dora Jobim. E Habemus Papam, de Nino Moretti. E Uma Longa Viagem, de Lúcia Murat. E Paralelo 10, de Sílvio Da-rin. Tantos filmes que me fizeram bem...

31É orgulho, eu sei. Quando alguém na rua me escolhe pra pedir um apoio, imagino que viu qualidades em mim que eu próprio não percebo.

Aprendi com um amigo a facilitar a vida de artistas que, também na rua, facilitam a minha com sua arte.

32Em terapia, nos anos 70, Romel me sugeriu: per-ceba o que sente quando a transa finda. E como seu corpo se comporta. Descobri que, junto com culpa, minha pélvis se contraia, impedia o fluxo normal de energia, de sangue. Neste ambiente fragilizado qualquer bichinho fazia a festa. Gono-cocos, estafilococos se alternavam. Estas doenças venéreas sumiram da minha vida quando passei a cuidar dos meus medos, culpas e corpo.

33Desconfio que roupas – especialmente as peças íntimas – feitas com materiais inorgânicos difi-cultam a circulação de energia, fragilizam defesas do organismo. Falas no vídeo Energia da Vida contribuem para este entendimento.

34Cada unidade de trabalho incorpora procedi-mentos administrativos próprios. Algumas criam

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soluções criativas e desburocratizadoras. Outras ainda não.

Trocas de know-how informais são riscos de solu-ções desconhecidas.

35Quem participa dos frutos do seu trabalho cuida do trabalho como se fosse seu. E é.

36Ser ético é um estado de espírito?

37A existência de uma instituição pública só é pos-sível pelo que já tem: base política que possibilita base financeira, base física e, o próprio fim e meio, base humana.

Quando a ética está presente, estas estruturas possibilitam um cotidiano que inclui cuidados com os recursos, com os conteúdos, com os públi-cos e com quem cuida. Todos ganham.

38Conteúdos inadequados estimulam inclusões so-ciais subordinadas a culturas retrógradas. Vide, por exemplo, grande parte dos programas de TV.

39De outubro de 2000 a maio de 2011 trabalhei no Sesc Rio. Em momentos inseguros, me pautei pela sua missão, vigente quando fui contratado. E com a qual me identifiquei.  Na tentativa de manter-me saudável, procurei a todo momento separar minha loucura da do ou-tro. Um tanto porque o que faz me sentir ame-açado – e posso por isto adoecer – é ter minha vida pautada por quem não me conhece e nem eu próprio conheço.  Escrevo isto, confesso, para manter-me vivo. Sei que quando a boca cala, o corpo fala. E quando a boca fala, o corpo sara.

40Agosto 2009. Ahora, além de las redes comunita-rias, las terapias comunitarias. Gravo algumas en-

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trevistas, reuniões... e uma ou outra vai pro youtu-be e pra canais comunitários de tv. Uma ideia anda me rondando, estamos devagarzinho experimen-tando. Michel tem viajado bastante pelo mundo, grupos com homens especialmente... Auto-hemo volta e meia faço: o movimento se espalha pelo mundo. Já há no youtube versão em espanhol. E logologo em inglês e esperanto. Tudo por iniciati-va de um e outro que tem se beneficiado.

No meio destes ventos, intuitivamente vou me or-ganizando pra não ter mais agenda. É o que desejo, acordar e descobrir o que fazer ou não. Saúde boa, um pouco de ioga diária, alimentação mais pra leve. Filmes, mais as comédias. Enfim, vida boa...

41Do que me lembro, por orientação e insistência do meu querido dentista, tomei alguns compri-midos quando do implante de quatro dos meus dentes. Mas, fora isto, há mais de 10 anos não uso remédio alopático, de farmácia. Em casa, nem mercúrio cromo. Gripe, passa longe. Dor de cabeça, estresse, pânico... só sei de escutar.

Exceção, A Maravilha Curativa tenho em casa.

De um lado, procuro separar as loucuras que são minhas das loucuras que são do outro. Ou as res-ponsabilidades que são minhas das que são de outros. Já não carrego nos ombros o que indepen-de de mim. Sou só solidário.

De outro, nos últimos anos, uns meses sim, ou-tros não, reforço minha imunidade ao retirar um pouco de sangue de minha veia e aplicar em meus músculos. Nenhuma contraindicação. Só saúde. É a auto-hemoterapia.

42Me interesso pela articulação de uma rede de vei-culação de informações estimuladoras de cresci-mento emocional. Tenho, na verdade, visto como folhas em branco de caderno novo estas oportuni-dades que, à primeira vista, parecem problemas...

43Estive em Vila Aliança ontem de novo. Impres-sionantes os helicópteros blindados sobrevoan-

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do a comunidade, enquanto embaixo viaturas da polícia e homens a pé buscavam seus alvos. Doze carros da imprensa acompanhavam a invasão. O morador mais próximo: lá vão os urubus.

Nossa reunião de planejamento de Desenvolvi-mento Local de Vila Aliança acontecia paralela e, conforme o local dos confrontos mudava, mu-dávamos de sala. Sei que não sou de heroísmos, nem intenciono. Mas tudo isto reforça em mim o valor do que fazemos, cuidando das plantinhas aqui dentro e lá fora. Mas aprendi que só posso dar o que tenho...

44Julho de 2011. Imagino. Cada encontro como uma página em branco. Confesso que – mesmo cuidando das minhas expectativas – imagino cada um de nós fazendo espontaneamente o que está ao próprio alcance.

Imagino cada um selecionando o melhor dos con-teúdos que deseja comunicar ao mundo. Imagino este conteúdo sintetizado, em respeito à inteligên-cia e ao tempo seu e dos leitores. Imagino este con-

teúdo chegando a cada um de nós, a partir da ini-ciativa de quem cuidou de sua qualidade integral.

Imagino agora cada um de nós compartilhando este conteúdo com quem poderá dele se benefi-ciar. Imagino cada novo leitor se beneficiando desta inFormação que lhe chega através de cada um de nós.

Imagino este leitor sendo agora um de nós. Ima-gino que também ele, como cada um de nós, se-lecionará o melhor dos conteúdos para comparti-lhar com o mundo.

Imagino que somos agora – cada um e todos que assim desejem – uma agência individual-inde-pendente de inFormações.

Imagino eu, você, nós enlevados com o que sen-timos ao aprender estas novas qualidades que eu, você, nós interativamente nos compartilhamos.

Imagino isto já.

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45O texto Visão de Mundo é o reconhecimento do meu eu. À procura de visões parceiras, comparti-lhei aleatoriamente no início: xeroquei, email-ei. Visão de Mundo foi, no momento em que escrevi, meu espelho. Hoje imagino minha visão ampliada.

O texto Redes Humanitárias Comunitárias teve a intenção de sistematizar, do meu jeito, a me-todologia que por acaso criei. Estimulado pelos resultados de sua aplicação em Ramos – lá com o apoio essencial da prática da assistente social Lí-dia Nobre – me aproximei de Gilberto Fugimoto, responsável pela Assessoria de Projetos Comu-nitários. Gilberto, estudioso de redes, acolheu a mim e à metodologia e, juntos com cada colega que se animou, ampliamos o campo de atuação.

46Sobre redes. Encontros de Redes Comunitárias acontecem periodicamente em unidades operacio-nais do Sesc Rio. Uma rede de artistas de rua se ex-pande e já abrange quase todos os estados do Brasil. Em Minas, também recriando a metodologia que utilizamos, nasceu a Rede Comunitária de Cultura.

Em Vila Aliança, em Bangu, no Rio, projetos estão sendo realizados a partir da união de re-cursos  – humanos, materiais, espirituais – que encontros de pessoas e instituições facilitam. In-clusive um Fórum de Desenvolvimento Comunitá-rio. É a inteligência coletiva em funcionamento.

Não sei de outros encontros – utilizando meto-dologias de redes – que estejam sendo realizados em outros territórios. Ou focados em temas es-pecíficos.

Realizamos vídeo-registros de encontros de rede realizados em Minas, Vila Aliança, Cuiabá, São João do Meriti, Niterói, São Gonçalo. E, além de Santa Luzia, no centro do Rio, nos bairros de Ramos, Tijuca, Centro, Madureira, Engenho de Dentro... Outros registros em vídeos, ainda sobre redes, de palestra de Augusto de Franco e conver-sa entre Cássio Martinho, Célia Schlithler, Gil-berto Fugimoto e eu.

Também fizemos vídeos que documentam um tanto o que vem acontecendo no Quilombo São José, em Valença. E sobre o Fado de Quissamã. E

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Talvez seja necessária esta clareza de objetivos – e um texto que descreva o que objetivamos, texto de preferência conciso e também claro e objetivo. Assim, se entrarmos em movimento, entraremos com clareza de finalidade.

Como vejo, tenho dúvidas. Posso contribuir, mas neste momento estou sem pique-motivação para me envolver profundamente.

Eu normalmente não lutaria contra o CFM. Eu não o considero competente para decidir sobre minha vida. Focaria, por exemplo, nos resultados positivos da auto-hemoterapia... e dirigiria as inFormações mais para as pessoas que necessitam do que para as instituições que se negam ouvir-nos.

48Sobre o julgamento do Dr Luiz Moura no CFM. Aprendi que só consigo comunicar-me com quem me escuta. E vice versa. Entendo que não ouvem, se órgãos que opinam (como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA ou o Conselho Federal de Medicina –

sobre a Ilha Grande. E sobre o Candomblé. E sobre a Auto-hemoterapia. E sobre psicoterapias e tera-pia comunitária...

Ao olhar para trás, tenho prazer. Compartilho o que aprendi. A difusão do que lhe toca está ao alcance e depende da iniciativa de cada um, a partir do seu de-sejo: http://luizsarmento.blogspot.com.br/

47Tenho dúvidas se me empenho agora na divulga-ção de algo. Divulgar que texto? Seria um mani-festo? Qual o objetivo da divulgação: esclarecer a quem deseje? Gerar movimento em defesa da auto-hemoterapia e do Dr. Luiz Moura?

É o momento de valorizarmos decisões do CFM - Conselho sobre o qual tenho dúvidas das inten-ções e qualidade? Seria focado na auto-hemote-rapia ou no Dr. Luiz Moura? Dr. Luiz deseja este movimento em seu favor?

O que penso neste momento é na necessidade de definir objetivos claros, em favor dos quais nos mobilizaríamos e estimularíamos movimentos...

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CFM) se recusam a tomar conhecimento de pes-quisas recentes – como a do Dr. Flávio Alves Lara, a do Dr. João Veiga, a da Telma Geovanini – e de pesquisas anteriores, como a do Dr. Jesse Teixeira. Se, além disto, estes mesmos órgãos se recusam a considerar o que a população beneficiada fala com suas práticas e resultados, entendo que estes órgãos públicos falham. Vejo aqui um estímulo para que eu próprio deci-da sobre minha saúde e faça por ela o que percebo como melhor. A autonomia que me permito, de-sejo a cada um que a deseje. Por outro lado, hoje acredito que mudanças se dão, muitas vezes, uma geração depois.

Acupuntura, homeopatia demoraram muitos anos para serem aceitas formalmente, no Brasil, como medicinas. E olha que homeopatia tem 200 anos e a acupuntura cerca de 5.000. E a medicina ayurvédica, mais antiga ainda? E as medicinas indígenas, africa-nas, da Oceania e de outros pedaços do mundo?

Imagino que há muitas outras descobertas e in-venções que podem facilitar nossas vidas – na área da saúde e em outras áreas – e que não che-gam a nosso conhecimento.

Mesmo assim percebo que pouco a pouco a auto--hemoterapia ganha espaço.

Daí esta sensação boa que estamos no caminho certo, ao fazermos cada um o que deseja e que está ao próprio alcance. E divulgarmos o que per-cebemos como bom para nós mesmos.

Até há pouco fui o tempo todo cartesiano. Isto ou aquilo. Aprendi com um amigo mais velho – 90 anos – que facilita quando é isto e aquilo. Assim se somam iniciativas.

Re-escrevo isto estimulado pela mobilização em defesa de Dr. Luiz Moura e da auto-hemoterapia. Este movimento todo, espontâneo, tem trazido alegrias pra tantos de nós...

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49Dúvidas. Que nome dar a este livro? Passou pela cabeça:

Título com. Minha vida é cada canal que cli-co - escolho um tanto quem sou. Outros es-critos. Não sou eu que tenho os objetos, os objetos é que me têm. Meu umbigo. Ideias, desejos & movimentos... Hoje, já passado. Perguntas que me faço. Livre pensar. Um quase nada de quase tudo. Vários eu. Talvez de interesse. Palavras à procura de imagens. Palavras à procura de sentimentos. Letras à procura de músicas. Se sinto, se penso, que faço?. Redes, ideias & movimentos...

E mais:O que está ao meu alcance. Subjetivo?. Sai-ba+. Aposentado. Cidadão do mundo. O que vai pela cabeça. Meu lugar no mundo. Quem lava minha roupa? Gavetas na memória. No-vidades e repetições. Falhas memórias.

50Ideias aqui expostas podem ser utilizadas livre-mente para fins humanitários. Naturalmente só posso oferecer o que está ao meu alcance, ideias que sejam consideradas minhas, se é que prevale-ce isto de propriedade de ideias.

51Hoje me sinto um cidadão do mundo.

52Cheguei em Brasília em 1965. Lembro – a memória pode ser falha – duzentos e tantos professores fo-ram mandados embora da Universidade de Brasília. Uma greve longa já no primeiro ano de faculdade. Morei em casa pública ocupada por nós estudantes. Um mundo novo, esta cidade nova, com gente de to-dos os lugares. Uma vida juvenil, agitada. Zona bo-êmia só fora do Distrito Federal, era a lei. Um passo além da fronteira, uma pequena vila com prostitutas. Na minha solidão, uma garrafa de Martini debaixo do braço, em finais de semana, numa aventura, pé na estrada, pegava caronas. Lá quase implorava pelos favores gratuitos de quem vendia o prazer. Quando acolhido, um paraíso neste oásis de solidão.

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Joguei o que não tinha, perdia minhas mesadas mensalmente no carteado. Só trinta anos passa-dos vim saber que talvez houvesse roubo no jogo. Parei quando, pra pagar o que perdi e não tinha, comprei à prestação um jogo de pneus pro carro de quem ganhou.

Em casa chegamos a fazer o jogo da garrafa. Em roda, uma garrafa era girada no centro. Quando parava, a boca apontava quem deveria tirar uma peça de roupa.

Uma fome danada, uma vez comemos de nos far-tar numa pizzaria almejada. Sobrou pra mim cor-rer por último. Sorte que estava com botas. Gar-çons atrás, me enfiei no mato. Brasília tinha mato.

Uma boa moça – Batalhão foi o apelido agrega-do ao nome – nos acolhia em seus braços com carinho. Num mato, um amigo se alegrou com seus gemidos. Findo o amor, era um espinho o motivo dos ais.

Que bom antes da aula, cedinho, ter dinheiro pra comer 7 pães com manteiga com café-com-leite.

Que chato, ao voltar pra casa – já morando em alojamento no campus – ser obrigado a marchar feito barata tonta. Eram os soldados se divertindo. A UnB toda rodeada por militares armados, um a cada poucos metros, em todo o seu perímetro.

Fui preso uma vez, junto com duas dezenas de co-legas, como represália pela retenção – sequestro, aprisionamento? – de um policial por estudantes ativos. Foi um dia só. Na prisão, quem pedia pra fazer necessidades voltada apanhado.

Morri de medo. Só passei a ver militares com ou-tros olhos quando, em Moçambique, vi soldados conversando naturalmente de mãos dadas com civis.

53Dr Fritz colocava critério: esta história que você vai me contar sobre o Pedro, faz bem a mim? E a Pedro? E a você? Se não faz bem, não me conte.

54Dou razão a Cacilda Becker: só tenho tempo para lutar a favor.

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55E esta vontade de acordar sem ter agenda, a vida atenta como um laissez-faire?

56O que são erros pra um, talvez acertos pra outro?

57Quando minha auto-estima está presente, lem-bro a sorte de quem me tem. 58Dentro do fogo, só vejo chama. Se saio fora, vejo o incêndio. Se apago o fogo, sobram cinzas, em-baixo brasas. Se sopra outro vento, voltam as cha-mas. Se aprendo, já não me queimo.

59Palestra boa é aquela que vira conversa e pode-mos todos participar. Uma fala de 10 minutos já é suficiente para apresentar conteúdos, ideias. E o tempo que nos resta aproveitamos bem, conver-samos sobre o que realmente nos interessa, a cada um dos presentes. Tudo mutável, inclusive regras, como é a vida.

60Somos todos inteligentes. Uns têm facilidade com matemática, outros com línguas, uns são genera-listas, outros cientistas. Alguns têm inteligência concreta, outros abstrata. Uns são inteligentes nas emoções, outros são duros, duros. Inteligên-cia mesmo, sinto, exercito quando utilizo minha inteligência para facilitar o estar contente.

61Uma fala, já sei, pode ser fora de ordem. Cada um edita, coloca em sua própria ordem, de acordo com suas prioridades conscientes... ou não.

62E se em encontros cada um se apresentasse, eu também, expressando o que é - ou sente que é -, não o que faz? Esta aprendi com Michel.

63Sonhos, ideias, reflexões antecedem ações. Caos antecede ordenação. O emocional como pano de fundo. Atos falhos não falham. Insights abrem outras janelas.

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64Reflexões. Dou o livro que gosto, não o que o ou-tro deseja. Só dá quem tem. Se não me permito, a outros inibo.

65 Pra facilitar minha prática, não me canso de lem-brar o dito que penso ser de Tom Jobim: democra-cia é muito bom. Lá em casa pratico todo dia.

66Que sociedade desejo? Quando converso sobre isto com quem intenciono ser parceiro, fico im-pressionado como somos diferentes. Foco no que somos e no que desejamos em comum.

67Do que entendi, eficiência se refere a quando faço bem o que me proponho. Eficácia é quando há resultados. Efetividade é quando os resultados permanecem, frutificam.

68Facilita uma parceria, quando descobrimos inte-resses comuns. A imagem que vem: sabe o símbo-

lo olímpico, composto por aquelas argolas entre-laçadas? Imagine que parte de uma argola – que me representa – superpõe parte de outra argola, que representa você. Esta área que é comum às duas argolas representa o que temos em comum. Já a parceria acontecerá em função da iniciativa de cada um de nós e do nosso consenso.

69Cada um de nós tem algo a oferecer e procura por algo. Há pessoas que oferecem o que outros pro-curam e vice versa. Questão agora de se encon-trarem. Assim se formam casais, comunidades, sociedades, redes.

70Quando chego na hora ao encontro, estou dizen-do: eu te respeito, eu me respeito. Quando chego atrasado, desconfio de mim: será que me sinto su-perior ao outro? E, se sim, que complexo de infe-rioridade escondo neste aparente sentimento de superioridade?

71Quando falo e não escuto, é que não quero ouvir?

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Neste momento, estou fechado em mim? Não me interessa o outro?

72Em algum momento, quando eu ainda no Sesc, escrevi como lembrança:

Nestes momentos de incertezas, desconfio que a necessidade que sinto de ser solidário é a contrapartida que ofereço por necessitar de solidariedade. Tudo isto relacionado ao medo de deixar o Sesc, onde, identificado com sua missão, ganho para trabalhar em benefício de menos favorecidos.

Quem não conhece o que faço, não valoriza o que faço, não me reconhece. E vice versa, uma vez que também eu não conheço o que fazem os que se propõem pautar minha vida e as vi-das dos que aqui trabalham. Nesta crise, opto por me orientar pelo meu senso ético e pela missão original da instituição. Procuro pres-tar serviços em favor do público que, direta ou indiretamente, me remunera para dele cuidar.

Dói entrar no espaço do Sesc-Senac Flamen-go e ver um evento caro, sobre Coco Chanel, sendo preparado para um público limitado. Como a do Senac, a missão original do Sesc se dissolve. E o foco já não é o seu público, os comerciários e seus dependentes. Freio o impulso de demitir-me quando faço as con-tas mensais da sobrevivência. Decido então continuar aplicando meu tempo de trabalho no que meu senso ético me orienta. Minhas ações se guiam pela missão original ampliada: utilizando o que está ao meu alcance, no meu campo de poder, cuido em contribuir para o bem-estar dos comerciários, seus dependen-tes. E das comunidades populares onde vive grande parte das suas famílias.

Assisti à transformação da Globo Vídeo num departamento da Som Livre. Ali a intenção era claramente diminuir custos, racionalizar negócios. Ali, nas empresas Globo, a ideolo-gia era a do lucro.

Já o Sesc objetiva lucro social. Não entendo quando agora se fala do Sesc como empresa,

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quando ações priorizam a visibilidade mais que os conteúdos.

73Rede, vivência agora. Desafio: saber e expressar objetivamente o que faz, procura, o que oferece. Já sabe? Escreva em mínimas linhas. Depois, num minuto, na fala, sintetize na essência: o que faço, o que ofereço, o que procuro.

Imagine encontros de pessoas: interessadas num mesmo tema. Ou habitantes de um mesmo ter-ritório. Cada um – entre aqueles que desejam – fala objetivamente o que oferece, o que procura. Isto num tempo limitado, combinado em função do número de pessoas e do horário de término do encontro. Todos sabem agora de cada um dos que falaram. Recreio – um café, um lanche? Cada um que deseja conversa com quem deseja, reflete, define, articula parcerias. Perde-se o controle, as redes se espalham.

74Aqui, a questão básica é comunicação. Como sa-ber do outro, que faço para outros saberem de

mim? Num mundo onde cada um, eu falo por mim, sente necessidade de se expressar. Eu tam-bém quero falar. Estamos na fase da fala?

75Fórum ou palestra. Interatividade ou atividade? Palco tipo italiano ou arena? Roda ou auditório? Epa! Se substituo neste parágrafo o ou por o e... de maneira que as comunicações se deem, cada um do seu jeito. O que importa é o processo como resultado. E resultado bom é quando me sinto bem e os outros também.

76Das coisas objetivas algo sei. Como cada um de nós sabe do seu equilíbrio. Ou faz, como me pego, me engano, faço que não sei? E as coisas subjeti-vas antecedem às objetivas? Objetos, por exem-plo, nascem de desejos?

77A emoção equilibra com a razão?

78Uma ponte entre a ideia e a realização é o plane-

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jamento. E, pra mim, ele anda bastante quando consigo responder a 7 perguntas básicas: o que, porque, quem, quando, como, onde, quanto ...

Antes de mergulhar nos fazimentos, pra facilitar, gosto de montar um quadrinho com 5 colunas. Na primeira coluna, as tarefas. Na segunda, quem se responsabiliza por cada uma. Na terceira, até que data. Na quarta, o custo de cada tarefa. Na quinta, observações.

Ordeno então as tarefas pela ordem das datas. E no dia-a-dia vou à luta. Lembro que quanto mais deta-lhadas as tarefas, mais possibilidades de acertos.

79Adoro xerocar, distribuir textos que me tocam. Tem um, não sei o autor:

As crianças aprendem aquilo que vivemSe uma criança vive criticada, aprende a condenarSe uma criança vive com hostilidade, aprende a brigarSe uma criança vive envergonhada, aprende a sentir-se culpada

Se uma criança vive com tolerância,aprende a ser toleranteSe uma criança vive com estímulo, aprende a confiarSe uma criança vive apreciada, aprende a apreciarSe uma criança vive com equidade, aprende a ser justaSe uma criança vive com segurança, aprende a ter féSe uma criança vive com aceitação, aprende a respeitar-seSe uma criança vive com aceitação e amizade, aprende a encontrar o amor no mundo 80Criança, a Alma do Negócio é um documentário sobre publicidade, consumo e infância. Quem as-siste, amplia o olhar. Está em www.youtube.com/playli

st?list=PLE2ABADAEF30E4007

81Já o livreto Por Que a Publicidade Faz Mal para Crianças está em www.alana.org.br/banco_arquivos/Ar-quivos/downloads/ebooks/por-que-a-publicidade-faz-mal--para-as-criancas.pdf

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Outras informações e muitos caminhos se abrem a partir do Instituto Alana, que cuida d’A união da educação, da cultura e da assistência social para o desenvolvimento da cidadania e da qualidade de vida de todos nós. www.alana.org.br

82Tiro por mim. Demoro anos para modificar algo que me facilite ampliar minha zona de conforto. Alterações de comportamento, os mais velhos sa-bem, demoram uma geração ou mais. Mas vale a pena plantar o que me faz bem e a outros, acom-panhar o crescimento, usufruir dos frutos.

83O Jornal do Commercio, de 17 de dezembro de 1836, anuncia:

Comprão-se escravos com officios e sem elles, escravas com prendas e sem ellas, tanto para a Cidade como para fora; na rua detraz do Hospicio n. 81.

Vende-se huma preta com huma cria de 3 mezes, muito carinhosa para crianças, e com

leite; e hum preto da roça, sabendo fazer fari-nha e derrubar mato, e o mais serviço, de 23 annos, muito robusto; no Campo da Honra, lado da Rua do Conde n. 63.

Vende-se um preto padeiro, na rua do Sabão n. 118.

Precisa-se alugar hum bom cozinheiro, no hotel de Johnston; na rua do Ouvidor n. 215.

Aluga-se na rua do Lavradio n. 90, huma pre-ta boa ama de leite.

Vende-se huma preta de nação, que engom-ma, cozinha e lava, tudo com perfeição, e cose alguma cousa; na rua de S. Pedro n. 183.

Vende-se um moleque de 16 a 18 annos de idade; na praia dos Mineiros n. 79.

84É comum eu sair de encontros com mais dúvidas do que no início.

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85Mamãe dizia: quando um não quer, dois não bri-gam. Contribuiu pr’eu ser assim, pacifista como penso que sou. Antes, apanhei muito, nesta de não entrar na briga. De não querer, querendo? 86As gargalhadas de papai soam dentro de mim até hoje. E sua solicitude, senso ético, bom humor. Era pródigo, deu muito do que tinha. Não sabia, do que sei, fazer um café, fritar um ovo. Mas co-mia bem, era um bom garfo. Numa época, cada garfada uma pimenta malagueta. Gostava de fa-zendas, bois, de vacas. E de mulas, éguas, cava-los. Muito mais de mulher. Imagino que um bom amante, tão delicado com elas, eu imagino. Lem-bro de papai, me alegro. Sou um tanto ele.

Sou um tanto também mamãe, que pegou as rédeas da casa quando eu era inda pequenini-nho. Mamãe gostava de conversar. Articulava bem. Não me lembro de mamãe com abraços. Lembro dos chás, das gemadas que me curavam nas minhas febres. E das decisões decididas. Se enternecia com uma serenata, com uma mesa

farta, marido e filhos servindo-se, supridos de falas e comidas.

Meu irmão morreu cedo, aos 41, 42. Era o mais velho de nós cinco. Inteligente pra caramba, pri-meiro lugar até o fim do científico. Depois, oito anos pra fazer um curso de engenharia que pedia quatro. Divertiu pra valer em Ouro Preto. Joga-va sinuca, ganhava com frequência. Quando já empregado na CBA, subiu rápido pra chefia de departamento. Enviava uma boa parte – acho que um quarto – do seu salário pra mim, quando eu estudava em Brasília e ainda não trabalhava. Lembro dele me levar junto pra peladas da infân-cia: primeiro pras peladas de futebol, depois pras peladas da zona. Era puro amor fraternal e eu não sabia. Dá saudades.

Stella me antecedeu na chegada ao mundo. Lina veio antes de Stella, depois de João Porphírio. E Heloisa Helena se juntou a nós depois de mim. João foi pra fora, pra universidade, quando eu tinha 11 anos. Só nos vimos esporadicamente por uns tempos. Convivi com Lina, Stella, Ló diariamente até meus 16 anos, quando fui fazer

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o segundo ano do científico em Belo Horizonte. Voltei, fiz o terceiro em Montes Claros. E aos 18 anos fui pra Brasília, fazer Economia, que até hoje não sei direito o que é. Novinho, eu queria ir jun-to com os mais velhos pros bailes que não podia. Mas tive um bom período de festas, descoberta de outros mundos, logo adolesci. Tinha hora pra voltar, no início. Depois os tempos se alargaram.

A visão de mundo de mamãe facilitou nossa vida familiar. Avançada pro seu tempo, moças e moços tinham os mesmos direitos em casa. E cada um tinha seus deveres. Aos sábados eu engraxava os sapatos, Eventualmente ajudava a encerar a casa. Mas não só.

Tive um berço bom, sinto-me amado.

Stella, Lina, Ló, permanecemos amigos durante nossa vida. Temos sido solidários. É prazeroso nos encontrarmos. Conversamos de um tudo, recorda-mos, nos atualizamos, jogamos buraco, comemos, passeamos. Aprendemos desde cedo o respeito pelo jeito de ser de cada um. Me sinto em casa em suas casas, tenho gosto. São portos afetivos.

De Vera com João, veio Roberta. De Magda com João, nasceram Ludmila e Rodrigo Luiz. De Lina e Paulo vieram Paulinho, Cláudia e Juliana. De Stella e Alceu, Marina e Lucas. De Ló e Carlos Alberto, Pedro Gustavo, Ana Julieta, Maria Elisa e João Luiz. De Ana comigo, Felipe. Com Vânia, tivemos Pedro. Regina e eu nos cultivamos. Antes, com Ricardo, Regina teve Gabriela, André, Rafael.

Cláudia e Iesus tiveram Iesinho e Larissa. Heitor e Heloisa nasceram de Clarice e Paulinho. Rober-ta e Laércio tiveram Clara, Heloisa e João. Leoni-ce e Rodrigo Luiz tiveram Guilherme e Bárbara. Juliana e Marcelo tiveram Luiza. Felipe casou com Vanessa, Marina casou com Carlinhos, Ga-briela casou com Bruno, André noiva Amanda, Rafael namora Cássia. Iesinho está com Zhairah. Pedro namora Irene, Lucas namora Isabela, João Luiz namora Elena, Lili namora Pedro Henrique. Cada um do seu jeito. Uns ou outras talvez te-nham amores que não conheço.

87Jogador de futebol: cada bola que chega, um novo problema para ser resolvido rapidamente.

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88Instituições são compostas por pessoas as mais diversas. Umas com umas características, outras com outras. Ando refletindo sobre comporta-mento, o meu, o de outros.

Tenho vazios que levo desde muuuuuito tempo atrás... e tenho descoberto que muitas das mi-nhas carências atuais têm que ver com estes va-zios antigos.

Imagino que pessoas que roubam ou mesmo que acumulam coisas e sentimentos talvez tenham, por exemplo, sido desmamados cedo. Ficou aque-le vazio “que não sei o que é, só sinto...”. E aquele sentimento que “o mundo me deve... e tomo do mundo o que o mundo me deve...”. Enfim, pessoas que sentem que o mundo lhes deve.

Chutando, se psicopatia define aqueles que não têm remorso, não sentem culpa... e com isto, na-turalmente sofrem sem saber “com este vazio que não sei de onde vem...”, tendo a sentir medo e, con-traditório?, compaixão.

Enquanto isto, como diz o cantador popular, a cada passo que dou o mundo muda de lugar. 89Aqui em casa, quase sempre há água no fogo, prum café ou prum feijão.

90O presente passa. Em relação ao outro, de um lado muitas e boas satisfações. Leveza no trato, profundidade nos assuntos, comida e diversão saudáveis. De outro, cada vez mais frequentes e intensas, crenças e interesses diferentes. Temos, boa parte do tempo, conversas repetidas, círcu-los viciosos. Sofremos. Copos cheios, gotas de irritações, transbordes. Vaivém agudo. Relem-bro, quando o passado era presente, o que senti, refleti, me escrevi. Histórias se repetem, dife-rentes, semelhantes. A imagem, espirais como retratos de repetições, mas novidades. Nas novi-dades, outros ciclos despontam, agora virtuosos. Como na história bíblica, vacas magras interca-lam gordas vacas.

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91Tenho outros lados. Sou um tanto Tarzan, Man-drake, Super-homem. E São Francisco, Reich, Rajeneesh, Freud, Laing, Jung. Sou meu irmão, minhas irmãs. Meus filhos e eu somos um tanto um e outro. Sou papai, sou mamãe. Algo fica em mim de quem me emociono.

92Tão bom ler sem ter que fazer provas. Relaxo e gosto.

93Pedro fala: muita gente reclama de falta de tempo. Pra mim é falta de organização. Eu complemento: também falta de se dar limites.

94Compartilhar sentimentos, conhecimentos e ob-jetos têm me trazido sentimentos, conhecimentos e reconhecimentos.

95Botar em prática minhas sacações - insights? - tem sido trabalhoso, pero gratificante. A vida com me-nos tem sido mais livre, melhor.

96Tive sacações com sacações de outros. Sem a cer-teza das autorias, relembro.

O tempo não para. Cazuza

A mente se move e se move e a energia vai onde  o pensamento vai. Dito chinês

Por princípios, eu luto. Dionino Colaneri

Relações de confiança são base para formação do Capital Social. Gilberto Fugimoto

Conhecimento se origina da experimentação. Lou Marinoff

Uma verdade científica não triunfa porque se consiga convencer a seus opositores e fazer que vejam as coisas com clareza, mas sim porque os opositores acabam por morrer e surge uma nova geração que se familiariza com a nova verdade. Max Planck

Conhecimento é poder. Francis Bacon

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Sobre si mesmo, seu corpo, sua mente, o indiví-duo é soberano. John Stuart Mill

Não vemos as coisas como elas são. Nós as ve-mos como nós somos. Anais Nin

Os planos funcionam. O problema é o cronograma. Sérgio Mello

Só quero saber do que pode dar certo. Caetano Veloso

Como posso dizer sim a algo que não está em mim? Regina Rodrigues Chaves

Complexidade: ao invés de isto ou aquilo, isto e aquilo. Mário Magalhães Chaves

97Tomo tento do meu tamanho quando lembro do que entendi do que Alvin Toffler escreveu – e eu soube através de Carl Rogers, no seu livro Grupos de Encontro. Para o homem, uma das questões bá-sicas de agora e do futuro é a rapidez com que o organismo humano pode adaptar-se à velocidade

de mudanças provocadas pela tecnologia. Toffler refere-se a isto como um choque futuro e sugere que pessoas terão colapsos ao tentar adaptar-se às inacreditáveis mudanças operadas.

Ele fala que, se o homem existe há cinquenta mil anos, este tempo corresponde a aproximadamente oitocentas gerações de sessenta e tantos anos. Seis-centas e cinquenta destas gerações foram vividas nas cavernas. Há apenas setenta gerações surgiu a escrita e foi possível a comunicação de uma geração para outra. E só há seis – ou sete? – gerações che-gou a palavra impressa. O motor elétrico há duas – ou três? – gerações. E a maior parte do que hoje usamos no dia-a-dia foi construída no presente.

Eu sinto em todos meus sentidos o desenvolvi-mento tecnológico contemporâneo. Já o desenvol-vimento emocional, aqui e ali, num ritmo menor. Como se afetos se retraíssem para dar lugar ao corre-corre tecnológico. Será isto um colapso?

Pois sei em mim que a internalização de senso ético está ligada diretamente às práticas das afetividades.

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98Se a luz que vejo de uma estrela foi emitida há algum tempo significa que vejo o que foi emitido no passado... vejo no presente o passado.

Da mesma forma, o gesto que faço agora poderá ser visto pelos que estejam naquela mesma estre-la, daqui a algum tempo?

Esta luz da estrela caminha de lá pra cá? Esta imagem do meu gesto caminha daqui pra lá? Es-tas memórias que andam – a luz, o gesto – são os tais registros akháshicos?

99Quando me desequilibro me sinto adoentado, penso em auto-hemoterapia. Se mais intenso, peço atenção do Jun Kawaguchi, amigo e acupun-tor. Paralelo, bebo mais água, como mais leve. E descanso e respiro, descanso e respiro...

Prefiro ir a médicos quando estou saudável. Fico mais de igual pra igual, troco ideias, informações, eventualmente afetos, criamos vínculos. Promovo minha saúde quando me cuido, caminho um tan-

to, como o que me faz bem, convivo com quem me sinto à vontade, faço o que desejo, cuido do outro como de mim. E escolho o que sinto, penso, falo, faço.

100Nos jornais, entrelinhas são atos falhos?

101Eu desejo porque sinto falta? A falta que sinto é como um buraco de onde foi retirado algo que eu tinha? Se sou suprido, permanece o desejo?

102Volta e meia me faço perguntas. Por isso tanta in-terrogação? Ou interrogações já existiam, antes mesmo das perguntas?

103Construo meu futuro presente em cada ato de agora? Não vislumbro meu futuro se não sei do meu presente?

104Esta contabilidade cósmica, que sinto, existe?

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Não preciso, então, anotar débitos e créditos?Posso parar de controlar?

105Antecipo para hoje o que desejo no futuro? Expe-rimento um tanto do futuro agora?

106A propaganda é feita de metáforas? Parábolas também são feitas com metáforas?

107Mudanças radicais passam não pela razão, mas pelos sentimentos? Pela fé, por exemplo?

108O sentimento define o comportamento? A cultu-ra define a moral? Comportamento, combinação de sentimento e razão?

109Já assisti palestras sobre sexualidade que só mos-travam doenças. Já li textos que condenam o sexo. Fiquei com medo. O que me salva é o que apren-do com quem vive bem sua própria sexualidade.

110A pílula foi um marco. Antes, o medo de engravi-dar alimentava o medo de transar. Depois, a ale-gria de transar alimentou a alegria de viver.

111O movimento hippie ampliou meu mundo. Tudo tão novo e tão simples. A comida, a música, a ati-tude, o amor.

112O viagra inda é um mistério. Funciona, mas não sei se causa efeitos colaterais.

113De tempos em tempos, uma praga delimita, dá limites. Recentes, tuberculose, sífilis, gonorreia, hiv, hpv. Tantos amores contidos, interrompidos...

114Ser fiel a mim e ser fiel ao outro? Como posso combinar o futuro se o futuro é mistério?

115A fé vem da vivência? Tenho fé quando experi-

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mento? Tudo num átimo, o tempo todo fora e dentro se misturam?

116Aprendo, delimito a realização de meus desejos ao considerar o sentimento do outro.

117Alimenta minha alegria passear no Boitatá. Tam-bém fico contente no ambiente do Céu da Terra. E na Orquestra Voadora, no Maracutaia, na praça São Salvador. Em cada bloco de carnaval, um mo-vimento, uma sabedoria própria.

118Que é mesmo livre arbítrio?

119O amor será assim, uma amostra do paraíso? Gente como eu, em estado de alegria? O tempo vira agora, o espaço é aqui, serenidade e eu somos um só?

120Na vida, a síntese do desejo é estarmos contentes?

121Lembra aquela história do pescador? Vilazinha do interior, beira de rio, o pescador adormece, o peixe morde, a vara treme. O turista vê: vou mexer com este caipira. Pega a vara, pesca, pesca, pesca.

Acorda o pescador, aponta o cesto cheio: olha o que você perdeu! Inda zonzo do cochilo, o pesca-dor: o que? O turista: os peixes, olha o tanto. O pescador: pra que? O outro: pra vender, ganhar dinheiro. Fazer o que você gosta. O pescador: mas já tô fazeno...

Eu me sinto assim, nesta fase que curto enquan-do é. Eu, satisfeito comigo, desejos ausentes, tento atento viver contente. Difícil é suportar a alegria. Tristeza era fácil, matava no peito todo dia.

122Entre graves e agudos, este jeito de escrever. Crônicas breves?

123O que sou hoje é o que construi antes em cada ato passado. Mas vivo mesmo só o presente.

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124Vestidos. Saias em casa? Serão frescas, arejarão meu corpo? Práticas, as saias? E o olhar do outro? E eu me olhar com saias? Só mudo e escondido?

Se em relação a saias sou assim, como serei em relação a cada possibilidade de prazer?

125Os pecados mortais, os pecados veniais. O pra-zer perde espaço. Um aprendizado, estar contente agora, aqui. Já o futuro, noutro lugar: ali, é misté-rio, é novo. Só saberei ao experimentar.

126Relembrando Laing, o Ronald, quero agora in-vestigar como aqui cheguei, o que faço neste mun-do, porque eu, nós aqui nos encontramos, quem somos. Mas antes, treinar alegria.

127Muita coisa já esqueci, um tanto de livros que li. Algo do DNA de lá passou pro DNA de cá. Sou assim um saldo do que me entra, do que me sai.

Da soma do que permanece, ora as células, ora os conhecimentos, os sentimentos, as memórias.

128Estou grávida de me tornar mais inteira. O pensa-mento é a linguagem, o meio é a mensagem. Estas ideias vieram de outros que não eu. Imagino flu-tuantes. De repente atraídas, se tornaram insights. Agora são também minhas. Compartilhadas, per-manecem sem donos, mesmo sendo suas, minhas, deles, nossas.

129Falsa memória, lembro de encontros comigo em que eu não estava lá. Presentes só na memória. De fato, talvez só desejos.

Lembro de fatos imaginados. Brinco com esta memória que me supre, me torna quem não sou. Conto só pra mim.

130Separações na minha vida: as que me lembro, car-rego comigo. São aparentes separações?

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131O que escrevo, se já sei, é mais uma recordação.

132Sinal de saúde, não sei onde fica meu fígado.

133Sou imaturo no que sou ignorante. Quanto mais ignoro o que sinto, mais verde sou.

134Hoje distribuímos quentinhas que Regina, Bru-no e Vera produziram. Os olhares, as palavras de quem, com fome, recebia, enterneceram nossos corações. Dar traz prazer.

135Sexo: as dúvidas de meu avô permanecem geração após geração. Na infância, sexo um mistério. Na adolescência, sexo um segredo. Na fase adulta, que faço com meu tesão por gente que não devia? Maduro, acalma-se um tanto. Morto, ausência de libido, ausência de conflitos.

136Fui outro dia a um hospício. No palco, na pla-teia, não tinha ideia: quem era público, cuidador ou louco. Loucura total, ali, era o mesmo que sanidade total. Percebi que em mim tenho um tanto de cada, sou normal.

137Robert A. Monroe, em Viagens Fora do Corpo, en-sina passos pra viajar. No meio do caminho, me deu um medão danado. Não fui.

138Quando solto um pum alto, ai que vergonha. É que, sem querer, relaxei. Estou à vontade.

139Relaxo? Se divago, sonho. Se sonho... Mas o so-nhar não antecede toda realização? 

140Que faço pra atrapalhar minha própria vida?

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141Repito o mesmo drama do ano passado. Fui ao Boitatá, bloco bom, praça XV. Cheguei, procurei minha carteira, cadê? Fui à delegacia de polícia, bem atendido, fiz o registro de ocorrência. Furto? Outras pessoas, mesma hora, mesma delegacia, situa-ções semelhantes: furto. Agora me preparo pra contac-tar CEF, CPF, carteiras de identidade e motorista, cartão do Sesc, cartão da AMIL, cartão Metrô, cartão Riocard. Toda vez que tropeço numa pedra, reclamava. Hoje reclamo da pedra, mas antes de mim: não prestei aten-ção. Sei agora, sabia antes, não devo levar meus prin-cipais documentos prum lugar com riscos de furto. Penitência:  procedimentos necessários para co-municar a cada órgão público correspondente aos documentos perdidos, furtados. Domingo de car-naval, vou... O telefone toca.

142Eta mundo bom. O círculo virtuoso toma assento. Sem a carteira que ontem perdi – furtaram? – no mesmo dia tomei providências relativas a alguns

documentos e hoje me preparei para cuidar dos outros. Trim, trim trimmmmm:.. Da mesma vez que no ano passado... Alô! Encontrei sua carteira!

Lembrei do que entendi do filme Dúvida. Uma freira faz comentários sobre a vida sexual de um padre. O boato se espalha. Cai a ficha, a freira procura o padre, pede perdão. O padre: perdôo. Mas antes, sabe um travesseiro com penas? Chegue na janela, solte as penas ao vento, depois recolha pena por pena...

Pronto, estou recolhendo as penas. Reforcei minha visão de mundo. O mundo tá ruim e tá bom, vi-cioso e virtuoso, depende um tanto do meu olhar... E dos olhares de outros com quem me identifico...

143Labirinto. Tristezas se aproximam. Tudo um tan-to embaralhado. O primeiro pensamento é fuga. Perdido nestas emoções, procuro, procuro, não encontro responsáveis fora de mim. Sem limites entre eu e o mundo. Telefono a cada outro, escu-to impaciente, não ouço o que desejo. Se não sei pr’onde ir, não vou? Respiro, me acalmo.

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144Gera trabalho para outros - terá dificuldade em sua autonomia futura? - a criança que não apren-deu ajudar na manutenção da casa: lavar pratos, roupas, arrumar cama e mesa, varrer, ir à feira, ao supermercado, à padaria, ao banco, fazer um café, encher o filtro, limpar a geladeira, cozinhar...

145Roberto, o Pontes, conversa livre, saca: amor e medo, afetos básicos. Bate no meu peito, direto à compreensão. Mais próximo do início, o fio de meada: amor e medo. Antes, inda mistério.

146Perguntas que me faço: imagine... Qualquer um, eu, você como eu, diante de si mesmo, a se fazer perguntas.

Sou diferente do que deveria ser? Devo limitar-me à ética?Aprendo fazendo? Ensino sendo?

O sofrimento que gero em mim é fronteira, é limite?

Em mim, onde está minha alegria?Se contente, o que me facilita estar, permanecer? Em que me impeço?Que faço pra atrapalhar minha própria vida?

O que está ao meu alcance?O que, em mim, alimento?Que sei que não sei?Que sinto que sei?

Afeto, berço de ética?Humanidade, prioridade?O pensamento vem do sentimento?Onde nasce o que sinto?

Moral é o que aprendi?Ética é o que sinto certo?Moral varia em cada cultura?Ética é uma sabedoria que não sei de onde veio nem quando?Ética é deus em mim?

Quanto mais pergunto, menos sei?Quanto mais aprofundo, mais mistérios, mais perguntas?

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Ausência de memória diminui os desejos?Menos desejos, menos angústias?

O que é público, o que é privado?O que me permito, o que a outros inibo?

O que está em meu poder de realização, o que depende de outros?O que cabe a mim, o que cabe ao outro? Sentir, sacar, refletir?A realidade determina a ordem dos passos?Ética é pressuposto? Sou do jeito que gosto?

E se o suficiente impera, que faço com meus tempos, minha vida?

Afinal, quem está paciente? O médico, o doente?

Escolho o que penso, falo, faço?E o que sinto, que desejo?

Cuido de mim?Que está ao meu alcance?Em mim, onde está minha alegria?

Onde vai meu pensamento, vão meu sono, meus sonhos?

Pensamento não se mede, vai além das distâncias, ignora o tempo?Sentimentos interferem em pensamentos?

O que me alegra?O que, semelhante ao meu desejo, o outro deseja?

Que relações cultivo? O que me impede ser quem desejo?Meus medos de que?

Louco vive o que sente?Saudável é palpável?

Sou melhor que o outro? Pior?Comparo porque me falta?

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O que me permito, o que a outros inibo?O que posso? O que não?O que cabe a mim, o que cabe ao outro? A realidade determina a ordem dos passos?

147O futuro é meu desconhecido. Sou o que hoje sou, a cada futuro que adentro encontro o novo. Sou neste momento experimentador. Tento, tro-peço, aprendo.

148Quando me repito, recordo, me educo. Tudo ten-tativa. Como naquele jogo, batalha naval. Volta e meia tiro n’água. A diferença é quando acerto. Ganho e ninguém perde.

No meu manual tem: inspirar, expirar, respirar. Atentar ao que sinto, ao que penso, falo, faço. Aprender a compreender, aceitar a mim, ao outro. Exercitar o afetuoso, comigo e ao redor. Separar minhas loucuras das loucuras do outro. O humor como indicador: se de bom humor, estou bem. Se não, que faço?

149Já no ventre, talvez antes dele, o básico individu-al e coletivo satisfeito: que mais cada um de nós necessitará? 

150Tento, aprendo o virtuoso, singelo, belo, conten-te? Escolho o que penso, escolho a palavra, sele-ciono o que faço? Que desejo?

151Sinto que cuidar de mim faz bem a mim e a quem ao redor.

152Governar. Cada vê mais admiro Dilma. Se é tão difícil administrar minha casa, imagino um país, onde os moradores têm livre arbítrio e caracteres variados. E uns têm ética dentro de si e outros não.

153Ditadura. Aprendi lá em casa: reconhecer que errei me faz melhor. Desconfio de mim quando não reconheço meu próprio erro. Se reconheço, cresço. Se não reconheço, erro de novo. Confiarei

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mais, mesmo em quem errou, se reconhece seus erros. É errado colaborar com ditadores. A dita-dura foi um erro. Qualquer ditadura: em mim, em casa, no trabalho, no país.

154Para estar assim, do jeito que me gosto, demorou tan-to. Antes só soube ser do jeito que outros queriam.

155O que me incomoda no outro é o que sinto em mim. Pretensioso, julgo o outro pelo que sinto. Não falo dele, falo de mim.

Tenho um padrão, minha voz me trai. Desejo ser o modelo, desejo ser aceito, reconhecido. Tudo um tanto por causa deste vazio que não conheço. E quando conheço, não entendo.

156Ralph Viana definiu: sério alegre. E foi e mais as Alternativas no Espaço Psi – Psicologia Psiquia-tria Psicanálise. Parque Lage, fronteira dos anos 70 e 80, mais de mil eus se encontram num peda-ço do futuro à procura de si e de nós. Cada eu faz

seu passeio, seu mergulho, escolhe uma e outra e mais outra das mais de cem vivências, palestras, debates, performances... Arte, ciência, espiritu-alidade, dúvidas misturadas como são. Lapso, a memória afetiva se abstrai do tempo. Ali está aqui. Somos espaço, eu e lá. Me incluo no mundo, sou o mundo, represento o todo. Um homem co-mum, como cada um.

157Penso na pior hipótese antes de iniciar uma com-pra, uma venda, um trato, um contrato. Penso em soluções caso aconteça a pior hipótese. Se perma-neço tranquilo, sabedor que há saídas saudáveis, dou cada passo. Aprendi que dá muito trabalho corrigir ignorâncias.

158O que uma arquiteta arquiteta? Tetos?

159Domino mundos e perco guerras no interior de mim mesmo.

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160Tudo me leva a crer que o mundo será o mesmo sem mim.

161Olho no espelho e não reconheço o velhinho. Sou eu.

162A morte é também uma escolha?

163O conteúdo da programação é a essência. O con-teúdo da comunicação é a essência. O conteúdo do afeto é a essência. O jeito de afetar, essencial.

164O homem ideal acrescenta conteúdos consisten-tes em qualidade ao que vive. É cuidado. E cuida de quem cuida.

165Pessoas que trabalham a favor são fontes de mo-vimentos libertários. Algumas dão chão: cuidam da administração, criam condições para o traba-

lho de outras. Outras pesquisam, imaginam, pro-põem e produzem produtos geradores de trans-formações. Umas levam as informações onde o povo está.

É mais simples como aqui parece. A base são as pessoas. Motivadas, a insegurança – o tititi – de-saparece, a paz reina. Informadas, todas sabem do que acontece. Pessoas como eu se transformam em realizadores. E outros, se interessados, ten-dem a se qualificar como multifuncionais. Como potencialmente somos todos.

166Cuidados com quem cuida: pessoas são a base de funcionamento de instituições. Parece fundamen-tal o estímulo à auto-estima de cada um dos que trabalham com o público, de forma que cada vez mais todos tenhamos prazer no que fazemos.

Isto significa facilitar o crescimento humano, a melhoria de qualidade de vida de cada funcioná-rio acolhido no seio da instituição, inclusive atra-vés do acesso a informações consistentes.

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167Estímulo à pró-atividade: o gostar de si mesmo – fundamental para gostar espontaneamente de ou-tros – implica em ter consciência de que realiza trabalhos de qualidade, é útil e necessário. A experiência nos diz: quem gosta do que faz di-ficilmente necessita ser controlado. No máximo, acolhido, respeitado, orientado. Este respeito se traduz em decisões e atos que considerem huma-namente cada pessoa pelo que é e realiza.

168Cuidados com as expectativas. Oferece quem tem. Como diria Rodrigo Fonseca, o sociólogo: vaca não dá coca-cola. Não devo esperar coca-cola de uma vaca, que já me mostrou que dá é leite.

169Mesmo que os ditos superiores de cada um te-nham – em princípio – uma visão do conjunto, cada realizador de tarefas pode contribuir para decisões acertadas, uma vez que – também pres-suposto – é cada funcionário quem deve melhor saber do seu ofício.

170Talvez seja verdade que se a fé vem da experiência - como preconiza corrente de teologia contemporânea - a vivência-experiência, se consciente, aprofunda o saber.

171Humor estável é sinal de inteligência emocional?

172Os mesmos fatos, visões diferentes. É assim em relação à própria criação do universo, da terra, do homem. Ser ou não ser, passam os séculos, ao fundo permanecem esta e outras questões.

Cada homem, do seu jeito, cultiva – ou não – sua própria evolução, em tentativas de viver melhor. A soma destas revoluções individuais se traduz na evolução da humanidade como um todo.

A memória nos lembra da nossa história recente: vida rural, industrial, pós-industrial. Agora globali-zação, fase de stresses, tendências desumanizadoras. Indivíduos, bairros, cidades, países fortes e fracos - é olhar ao redor - destinam recursos para as armas.

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Volta e meia, implosões de insatisfações que – juntas – se traduzem em conflitos coletivos, guer-ras. A vida, breve: tempo curto para lutar contra.

O buraco – quase sempre – mais embaixo. O in-consciente individual e coletivo – parece – induz nossas ações.

Por outro lado, olhando bem, sinais de vida no planeta Terra. A favor do homem.

Também aqui, cada ato se traduz no resultado. Cabe a cada um de nós, no que pode neste barco, refletir, nortear seus atos. Parece poesia, pode ser também ato, fato.

173Quando ouço uma boa gargalhada, lembro papai. Ou quando alguém é prestativo.

174Winnicott: a essência da democracia repousa no homem comum, na mulher comum, no lar comum.

175Freud: No exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade destinada a apaziguar desejos não gratificados – em primeiro lugar, do próprio artista e, subsequentemente, de sua assistência ou espectadores.

176Ser livre não significa fazer tudo que desejo, mas se-guir as regras que eu escolho. Alguém me acertou. Foi Kant?

177Bilhete prum amigo: inda não aprendi falar com cal-ma, entre tantas coisas que inda não aprendi. Já entre o que aprendi, aprendi um tanto escutar meu corpo. Meu corpo me dá prazeres, me sugere limites.

Outro dia fique três horas na cadeira do dentis-ta. Anestesiado, meio dopado com um calmante brabo. Fiquei cinco dias quieto, sopa, água, suco, sono, leitura. Recuperei o equilíbrio, voltei ao tra-balho, produzi mais tranquilo.

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Sem querer querendo, costumo dar conselhos. Con-traditório, tenho dificuldades em ouvir conselhos.

Do amigo, procuro respeitar suas decisões. E de-sejo contribuir pra suas alegrias. Me alegro com sua alegria. Por respeitar-lhe, agora me calo. Mas saiba que desejo fazer o que está ao meu alcance, em favor do nosso bem. Por favor me fale o que deseja falar. Aprendo também que a vida terna me faz a vida melhor.

178Respondo rápido a perguntas que me faz, por email, uma estudante de psicologia:

a. Porque escolheu este campo da psicologia para atuar?Sou um curioso. Leio sem ter que fazer pro-vas: não sou profissional do ramo. Adoro insi-ghts. Queira ou não, todo homem navega em áreas psis quando interfere em emoções, nas suas próprias e nas do outro.

b. Quais as dificuldades encontradas?Em mim, minhas próprias resistências, meu

conforto arraigado. Em um ou outro, ausên-cia de consciência, base, como afetos, da ética. 

c. Como é realizado seu trabalho neste local?Rodas de conversas, com base na metodolo-gia das Terapias Comunitárias - que não são psicoterapias. Isto do lado, digamos, subjeti-vo. Do lado objetivo, através da metodologia das Redes Comunitárias.

d. Quais as diferenças da atuação em sua área da teoria para a prática?Quando penso, elaboro, escrevo, considero meu mundo, minhas regras, minha cultura, minhas referências. Quando em comunida-des menos favorecidas, o mundo é outro, são outras as regras, culturas, referências. 

e. No seu ponto de vista a psicoterapia corporal pode ser um tipo de psicanálise?São, digamos, métodos que se complementam. Aprendi com Wilhelm Reich - e em mim, pela prática da terapia reichiana - que, como todos?, carrego minha história de vida no meu corpo. Quando mexo no meu corpo, mexo em minha

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memória afetiva e desperto lembranças e emo-ções a elas associadas. Atos, digamos, psicanalí-ticos me facilitam a compreensão emocional do que vivo.

f. O que você acha da Psicoterapia Corporal em grupo?Quando percebo no outro vivências, questões semelhantes às minhas, aprendo que minhas questões não são só minhas, não estou só nes-tes mistérios. Gente encontrando com gente é pura humanidade. 

179Quando Glauber falou “Nonatinho, treme a câme-ra, treme a câmera...”, compreendi que também eu poderia gravar. O jeito era linguagem, o que se-ria errado poderia ser o certo. Zequinha Borges, anos depois, foi direto quando eu, inseguro, lhe pedi mais uma vez para registrar em vídeo o que eu desejava: “Porra, Luiz. Vai à luta, filma você, ar-risca.”. Arrisquei, errei, tropecei, acertei. E assim vou, neste equilíbrio em risco.

180A palavra enfezado vem de onde? Cheio de fezes, enfezado?

181Ações, imagino, funcionam assim. Acionistas, fa-zemos uma vaquinha pra investir num negócio. Somos, juntos, donos do negócio. Qualquer lu-cro que o negócio der, vem pros donos das ações. Mesmo que o negócio seja lá nos confins do mun-do e vivamos aqui, no coração do que nomeio civi-lização. Muitas vezes o fim do mundo é aqui. E os acionistas estão lá, nos primeiros mundos. Parte do nosso trabalho compõe o lucro de acionistas que não conhecemos. É justo?

182Só agora, aos 65, reconheço qualidades de mamãe, de papai. Compreendo, amadureço. Surpreso, quando minhas qualidades são tão cedo reconhecidas.

183Na beira dos 66 anos, me sinto bem. Os exames comprovam.

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Teste ergométrico > cinecoronariografia, não. Precordialgia, nenhuma. Aptidão respiratória, boa. Tomografia da coluna > escoliose, sinais de artrose lombar. Tomografia dos seios da face: es-pessamento mucoso no seio maxilar direito, des-vio do septo nasal.

Exame de sangue > normais as hemácias, he-moglobina, hematócrito, anisocitose, leucócitos, basófilos, eosinófilos, neutrófilos, bastões, seg-mentados, linfócitos. Monócitos, 11%, quando o normal seria entre 2 e 10%. Plaquetas, 155, quan-do o normal seria entre150 e 450. Colesterol, 172. Triglicerídeos, 78. Colesterol HDL, 51. Coleste-rol LDL, 105. Colesterol VLDL, 16. Colesterol NÃO HDL, 121. Índice de Castelli I, 3,4. Índice de Castelli II, 2,1. Antígeno superficial de Hepa-tite B, não reativo. Anticorpos contra o antígeno superficial de Hepatite B, não reativo. Pesquisa de anticorpos para Hepatite C, não reativo. Anticor-pos IgG anti-herpes simplex, reativo. Anticorpos IgM anti-herpes simplex, não reativo. Antígeno prostático específico, 3,12. Relação PSA livre/PSA total, 0,22.

Sinto que devo diminuir ovos e queijo. E assistir a mais comédias, namorar mais, caminhar diariamente.

184Aprendi: quando facilito o trabalho do lixeiro, porteiro, carteiro, cozinheiro, feirante... – e de nós todos, que entre nós nos cuidamos – facilito também a minha vida. Quando cuido do outro, o outro – do jeito que sente, que sabe, que pode – cuida de mim.

185Só o essencial é essencial? Quem, o que é essencial em minha vida?

186Elaboro um projeto quando respondo às pergun-tas, básicas: o que, por que, quem, como, onde, quando, quanto. Planejo a realização quando rela-ciono as tarefas necessárias para alcançar o que de-sejo. Se as tarefas estão numa coluna, crio outras quatro colunas ao lado. E numa anoto até que dia, noutra quem é responsável, em mais outra quanto custa e numa última escrevo as observações.

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187Será?

Resistências ao sonhar e refletir desconside-ram as origens do fazer.

Práticas comprovam que resultados são efe-tivados e multiplicados quando ações são so-nhadas, sentidas, pensadas com antecedência.

Há espaço para ética individual. A pessoa que se cultiva ética, pratica suas escolhas do que pensa, do que fala, do que age.

Pessoas que em si cultivam ética têm empatia por quem também.

Uma instituição se torna ética quando se compõe por pessoas que se cultivam éticas.

Fica mais claro quando a ética está presente. Visões de mundo se ampliam. Saques, insi-ghts, compreensões palpitam. Palpita vida.

Controles se tornam desnecessários quando a

ética está presente. São naturais as relações de confiança e afetos.

Conteúdos são função das visões de mundo, tan-to de quem cria quanto de quem facilita, realiza.

Quando me identifico afetivamente com o que faço, trabalho é prazer.

Quando o trabalho é um prazer, eu sou o tra-balho. Sou soluções.

188Quando me deixo isolar pelas tarefas do dia-a--dia, minhas reflexões se ausentam, me acomodo.

189Como imagino comum, não sei da importância do que faço. Descubro nos frutos.

190Construção da doença. Hoje vejo a morte – ou a vida – como escolha, em cada ato que faço a favor ou contra mim. Agradeço a quem me facilita estar vivo. A mim, que fiz, faço – e fui, sou – o que soube, sei ser.

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191Numa livraria, mundos. Em cada um, nas linhas e entrelinhas, no dito e no não dito, pontas como de icebergs. Desisti de compreender tudo. Já bas-ta o mundo que sou.

192Nunca tive um time de futebol de coração. Mas adoro jogadas bonitas.

193Tento me limitar. Sou pouco pro que desejo. Mas conversar, topo.

194 Tudo novo. Tentativas, tropeços, bambeios, apru-mos e de novo. Sinto que a direção permanece. Aprendo?

195Tudo o que desejo imagino tão pouco. Talvez seja muito. Desacelero?

196Volta e meia, mexidas. Cada vez não fazer me atrai mais. Quero me guiar pelo que vivo no caminho.

197Entre o desejo e a realização tenho gasto um tanto de mi vida.

198Quando feliz, lembro a sorte que tenho em desejar quem me deseja.

199Volta e meia penso como desejo viver no futuro, o que não vivo hoje mais o que já gosto. Hoje pro futuro penso ser disponível o tempo todo pra esco-lha que me enleva. E assim gravar, escrever quando desejo. Antes, as relações com quem vivo, convivo.

200 Aprendo quando presto atenção no que penso, no que sinto, falo, faço. Só sinto se presto atenção. Se sinto – e não presto atenção – imagino presente, na memória inconsciente. o ausente no conscien-te. Um baú, em algum lugar de mim.

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201 Filosofar é... pensar fora de mim? Pensar dentro de mim? E pensar liga em que com sentir? Ou é só livre pensar?

202 As coisas práticas: trazer a garra, prender o aba-jour à prateleira de cima. Apoiar a venda do apar-tamento da amiga, acompanhar a compra do ou-tro. Interagir na diagramação do livro, articular a impressão, facilitar a distribuição. Há uma lista mutável. Cada objetivo, um conjunto de tarefas. Defino prioridades, relaciono as tarefas e, nos seus tempos, cada objetivo se realiza ou se transforma.

203Lia O Cruzeiro. Copacabana, beleza, aventura, alegria. Desejava vir pra cá, estudar no Pedro II, morar no Rio. Eu, 14 anos, ali em Montes Claros, 1960. 1971, cheguei. Almejava dinheiro, mulher, glória. Agora sinto saúde, sossego e meu sucesso é outro. Lá fundo, desconfio era este meu desejo. E não sabia.

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Este livro foi impresso no inverno de 2012,

pela LGN Art Visual Ltda, Rio de Janeiro, Brasil.

Papel de miolo Pólen 70g/m2 e papel Duo Design 250 g/m2

Distribuição

LGN Art Visual Ltda

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