A questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º do Código Civil

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    A questo da inconstitucionalidade da interpretao do

    artigo 66. do Cdigo Civil,

    no sentido de que o nascituro no titular de um direito

    vida, cuja ofensa deva ser indemnizada

    (Declarao de Voto Vencido do Juiz Conselheiro Joo Cura Mariano

    constante do Acrdo n. 357/2009 do Tribunal Constitucional)

    ()

    O artigo 66., do Cdigo Civil, sob a epgrafe Comeo da personalidade,dispe:1 A personalidade adquire -se no momento do nascimento completo ecom vida.2 Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seunascimento.

    No direito civil a personalidade jurdica traduz a aptido para se ser sujeitoautnomo de relaes jurdicas, com a inerente titularidade dos poderes eadstrio a vinculaes que essa qualidade envolve.

    Se o reconhecimento desta qualidade por uma determinada ordem jurdicaobedece s opes valorativas e culturais que nela prevalecem, tambm nodeixa de estar condicionado pelo papel do Direito como instrumento desatisfao de interesses humanos. Da que nem sempre a personalidade jurdica tenha sido reconhecida a todos os Homens (v. g. as sociedadesesclavagistas), assim como actualmente no uma condio exclusiva doHomem (v. g. as pessoas colectivas).O acrdo recorrido sustentou que o artigo 66., do Cdigo Civil, aorecusar aos nascituros concebidos personalidade jurdica, no permite queestes possam ser considerados titulares de qualquer direito antes do seu

    nascimento, incluindo o prprio direito vida.A fixao do momento da aquisio da personalidade jurdica no acto denascimento com a consequente excluso dos nascituros da condio de pessoa jurdica, j remonta ao direito romano (vide, sobre a condio dosnascituros no direito romano, Max Kaser, em Direito privado romano, pg. 101, da ed. de 1999, da Fundao Calouste Gulbenkian, e SANTOSJUSTO, em Direito privado romano I. Parte Geral (Introduo. Relaojurdica. Defesa dos direitos) , pg. 105 -107, da ed. de 2000, da Coimbra

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    Editora), sendo essa tambm a soluo da nossa tradio jurdica (vide,anteriormente ao Cdigo de Seabra, Borges Carneiro, em Direitocivil de Portugal, vol. I, pg. 65, da ed. de 1826, e Coelho da Rocha, emInstituies de direito civil portugus, Tomo I, pg. 35, 56., da 6. ed.,da Imprensa da Universidade), a qual veio a obter consagrao no artigo

    6., do C.C. de 1867 (vide, sobre este preceito, Dias Ferreira, em CdigoCivil Portugus anotado, vol. I, pg. 11 -13, da 2. ed., da Imprensa daUniversidade, Cunha Gonalves, em Tratado de direito civil, emcomentrio ao Cdigo Civil Portugus, vol. I, pg. 176 -182, da ed. de1929, da Coimbra Editora, e Lus Cabral de Moncada, em Lies dedireito civil, pg. 253 -257, da 4. ed., da Almedina). E apesar de serematribudos alguns direitos aos nascituros, num sinal que eles no deixam deter proteco jurdica, perfilhou -se o entendimento que a respectivaaquisio s se torna efectiva com o seu nascimento. Comoimpressivamente disse Cabral de Moncada (ob. cit. pg. 253), o homem

    s existe para o direito como pessoa, depois de ter nascido .O artigo 66. do C.C., resultante de anteprojecto apresentado por Manuel deAndrade (vide Esboo de um anteprojecto de Cdigo das Pessoas e daFamlia, no B.M.J. n. 102, pg. 153.), manteve -se nesta linha de pensamento, enunciando que a personalidade se adquire no momento donascimento (n. 1) e frisando que os direitos que a lei reconhea aosnascituros (v.g. nos artigos 952. e 2033., do CC) dependem sempre do seunascimento (n. 2). esta tambm a soluo dos sistemas jurdicos que nosso prximos (v. g. artigo 1, do C.C. Italiano, artigo 311, n. 4, do CCFrancs, artigo 30, do CC Espanhol, 1, do BGB, artigo 2., do CC

    Brasileiro).A interpretao do artigo 66., do CC, perfilhada pelo acrdo recorrido,negando a qualidade de sujeito de direitos ao nascituro concebido,corresponde leitura maioritria efectuada pela doutrina e a jurisprudncia(Antunes Varela, em A condio jurdica do embrio humano perante odireito civil, em Estudos em homenagem ao Professor DoutorPedroSoares Martnez, vol. I, pg. 631 -633, ed. de 2000, da Almedina, CastroMendes, em Teoria geral do direito civil, vol. I, pg. 103 -109, da ed. de1978, da AAFDL, Heinrich Hrster, em A parte geral do Cdigo CivilPortugus, pg. 293 -296, da ed. de 1992, da Almedina, Carlos Mota

    Pinto, em Teoria geral do direito civil, pg. 199 -202, Inocncio GalvoTelles, em Introduo ao estudo do direito, vol. II, pg. 165 -167, da 10.ed., da Coimbra Editora, Carvalho Fernandes, em Teoria geral do direitocivil, vol. I, pg. 193 -199, da 3. ed., da Universidade Catlica, RodriguesBastos, em Notas ao Cdigo Civil, vol. I, pg. 107 -108, ed. de 1987, doautor, Rita Lobo Xavier, em A proteco dos nascituros, em Brotria,vol. 147, pg. 176 -184, e Diogo Lorena Brito, em A vida pr -natal najurisprudncia do Tribunal Constitucional, pg. 121 -122, da ed. de 2007,

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    da Universidade Catlica), registando -se as opinies dissonantes daquelesque, apesar do disposto no artigo 66., n. 1, do CC, entendem que osistema jurdico acaba por reconhecer personalidade jurdica aos nasciturosconcebidos (Oliveira Ascenso, em Direito civil. Teoria geral, vol. I, pg.48 -55, da 2. ed. da Coimbra Editora, Menezes Cordeiro, em Tratado de

    direito civil portugus, vol. I, tomo III, pg. 293 -306, da ed. de 2004, daAlmedina, Pedro Pais de Vasconcelos, em Direito de personalidade, pg.104 -118, da ed. de 2006, da Almedina, rfo Gonalves, em Dapersonalidade jurdica do nascituro, na RFDUL, Ano 2000, pg. 525 -539, Leite de Campos, em Lies de Direito da famlia e das sucesses, pg. 511 -514, da 2. ed., da Almedina, e Stela Barbas, em Direito doGenomaHumano, pg. 235 -242, da ed. de 2007, da Almedina), ou uma personalidade jurdica parcial ou fraccionria (Rabindranath Capelo deSousa, em Teoria geral do direito civil, vol. I, pg. 265 -281, da ed. De2003, da Coimbra Editora, e Pereira Coelho, em Direito das sucesses.

    Lies ao curso de 1973 -1974, pg. 192 -193, da ed. pol. de 1992), ouainda que retroagem a personalidade jurdica do nascituro concebido aomomento da constituio do direito em causa (Dias Marques, em CdigoCivil anotado, pg. 23, da ed. de 1968, da Petrony).A opo pelo momento do nascimento, como marco certo, seguro,inequvoco e objectivamente determinvel a partir do qual se inicia a personalidade jurdica da pessoa, foi justificada pela voz autorizada deAntunes Varela com trs razes fundamentais:a) Por virtude da notoriedade e do fcil reconhecimento do facto donascimento, em contraste com o secretismo natural e social da concepo

    do embrio;b) Embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepo, aformao da pessoa, no fenmeno continuado e progressivo dodesenvolvimento psico-somtico do organismo humano, quanto s propriedades fundamentais do ser humano (a conscincia, a vontade, arazo) est sempre mais prximo do nascimento do indivduo do que dafecundao do vulo no seio materno;c) Olhando ainda ao fenmeno psico-somtico do desenvolvimento do serhumano, compreende -se perfeitamente que seja o nascimento, comomomento culminante da autonomizao fisiolgica do filho perante o

    organismo da me, o marco cravado n a lei para o reconhecimento dapersonalidade do filho. (na ob. cit. pg. 633).

    Rita Lobo Xavier (no est. cit.) acentuou a falta de autonomia biolgica esocial do nascituro concebido como razo preponderante para o DireitoCivil, enquanto disciplina positiva da convivncia humana elaborada numa perspectiva de autonomia da pessoa no desenvolvimento da suapersonalidade, no sentir necessidade de lhe atribuir personalidade jurdica.

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    Ser que nesta construo, em que no se reconhece personalidade jurdicaao nascituro concebido, a impossibilidade deste ser titular de um direitosubjectivo vida afronta o d isposto no artigo 24., da CRP?Conforme o Tribunal Constitucional j tem afirmado e aqui se reitera,apesar da vida em gestao ser um bem jurdico constitucionalmente

    protegido, compartilhando da tutela objectiva conferida em geral vidahumana, no possvel retirar daquele preceito um direito fundamental vida do nascituro concebido, tendo este por sujeito (vide os Acrdos n.85/85, 288/98 e 617/06, em Acrdos do Tribunal Constitucional, vol.5., pg. 245, vol. 40., pg. 7, e vol. 66., pg. 7, respectivamente).Esta posio pressupe que o ente humano, apesar de j concebido,enquanto no nascer no se inclui no uni verso dos cidados que integram acomunidade poltico -jurdica a quem reconhecida a titularidade dosdireitos subjectivos constitucionalmente consagrados, nos termos do artigo12., n. 1, da C.R.P.

    Mas o facto de se considerar que a vida intra-uterina uma das etapas davida humana abrangida pela exigncia da sua inviolabilidade reclama daordem jurdica infraconstitucional a adopo de medidas que a protejam etutelem.Est aqui em causa a dimenso mais importante da vida intra-uterina, que a da sua prpria existncia, importando desde logo verificar se o noreconhecimento pelo Direito Civil de um direito subjectivo vida donascituro concebido implica um dfice de tutela que ponha em causa agarantia de um nvel mnimo de proteco d aquele bem jurdico-constitucional.

    Independentemente do juzo que se efectue sobre a necessidade dainterveno dos meios tpicos de proteco dos bens jurdicosdisponibilizados pelo Direito Civil para proteco da vida intra-uterina,verifica-se que a interveno desses meios no est dependente de umreconhecimento de um direito vida do nascituro concebido.Como se tem constatado a melhor forma de proteger uma determinadaentidade no passa necessariamente por se lhe reconhecer subjectividadejurdica, mas sim pela respectiva elevao categoria de bem jurdico.Na verdade, na tutela de um bem jurdico como a vida intra-uterina, oDireito Civil disponibiliza no s a utilizao de medidas preventivas,

    intimaes de absteno e o recurso a aces inibitrias, mas tambmfaculta o instituto da responsabilidade civil, atravs do qual impe, a quemofenda bens tutelados pela ordem jurdica, a reconstituio da situao queexistiria, caso no se tivesse verificado o evento que obriga reparao oua indemnizao em dinheiro, quando aquela r econstituio no possvel.Neste caso, precisamente a possibilidade de aplicao deste institutoque est em causa.

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    Se a funo ressarcitria assume fundamental importncia naresponsabilidade civil, no deixa tambm de estar presente neste institutouma funo preventiva, em articulao com a finalidade reparadora (vide,sobre esta articulao, com perspectivas nem sempre coincidentes, PessoaJorge, em Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pg. 47

    -52, da reimp. de 1995, da Almedina, Carneiro da Frada, em Direito civil.Responsabilidade civil. O mtodo do caso, pg. 64 -65, da ed. de 2006, daAlmedina, Menezes Cordeiro, em Direito das obrigaes, 2. vol, pg.277, da ed. de 1980, da AAFDL, Jlio Gomes, em Uma funo punitiva para a responsabilidade civil e uma funo reparatria para aresponsabilidade penal, na RDE, Ano XV (1989), pg. 105 -144, PaulaMeira Loureno, em Os danos punitivos, na RFDUL, vol. XLIII (2002),n. 2, pg. 1093 -1107, e em A funo punitiva da responsabilidadecivil, pg. 380 -385, da ed. de 2006, da Coimbra Editora, e Mafalda MirandaBarbosa, em Reflexes em torno da responsabilidade civil, no BFDUC,

    vol. LXXXI (2005), pg. 511-600). constituio da obrigao de indemnizao pela leso de bens jurdicostambm presidem fins de proteco, procurando-se dissuadircomportamentos ofensivos desses bens, atravs da cominao da obrigaode reparao dos prejuzos causados. Perante a ameaa de uma obrigaode indemnizao tender-se-, ao agir, a observarem-se determinadosdeveres de cuidado de forma a evitar a causao de danos na esfera jurdicaalheia e nesse sentido esse desencorajamento funcionar como uma formade preveno de futuros comportamentos danosos.Ora, no absolutamente necessrio o reconhecimento da titularidade pelo

    nascituro concebido de um direito vida, para que o direito civil atribuaum direito de indemnizao pela morte do nascituro imputvel a terceiro(vide, neste sentido, Rabindranath Capelo de Sousa, em Teoria geral dodireito civil, vol. I, pg. 271 -272, nota 673, e Rita Lobo Xavier, na ob.cit., pg. 80, em que atribuem esse direito de indemnizao,respectivamente, s pessoas referidas no artigo 496., n. 2, do CC, e apenas me). A tutela de bens ou interesses jurdicos pelo instituto daresponsabilidade civil pode processar -se por formas diferentes das doreconhecimento de direitos subjectivos, conforme resulta do prprio artigo483., do CC, quando convoca a responsabilidade civil para intervir nos

    casos de violao de qualquer disposio legal destinada a protegerinteresses alheios (vide, neste sentido, Rabindranath Capelo de Sousa, emO direito geral de personalidade, pg. 192, nota 346, da ed. de 1995, daCoimbra Editora).Perante a leso de bens jurdicos no titulados, nada impede que se atribuaa determinados sujeitos jurdicos o direito a receberem uma indemnizao pelo dano provocado por essa leso. So casos em que, perante osentimento duma atendvel necessidade de pe rseguir, atravs do instituto da

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    responsabilidade civil, finalidades preventivas e punitivas, que previnam esancionem a leso de um bem jurdico, face inexistncia de um sujeito jurdico lesado, se atribui o respectivo direito de indemnizao adeterminadas pessoas, tendo em conta, designadamente, a especial relaoque tm com o bem lesado.

    O Direito Civil tem a maleabilidade suficiente para permitir esta soluo.Apesar de alguma atipicidade dogmtica, no , alis, indita a consagraode atribuio de direitos de indemnizao prprios a terceiros pela ofensade bens jurdicos dos quais no so titulares, independentemente destasoluo poder ser justificada como um caso de indemnizao de danosreflexos (v.g. a indemnizao pelo dano de morte atribuda aos familiares prximos da vtima, no respeitaria perda da vida por esta, mas sim perda do convvio com ela, que afectaria esses familiares).Por exemplo, o artigo 71., n. 2, ao remeter para o disposto no artigo 70.,n. 2, ambos do C.C., visto como conferindo um direito de indemnizao

    por ofensas aos direitos de personalidade de pessoas j falecidas, aocnjuge sobrevivo, ou qualquer descendente, ascendente, irmo, sobrinhoou herdeiro do falecido (vide, neste sentido, Castro Mendes, na ob. cit.,pg. 111, Rabindranath Capelo de Sousa, na ltima ob. cit., pg. 195 -196,Menezes Cordeiro, na ob. cit., pg. 463 -464, e Pedro Pais de Vasconcelos,na ob. cit., pg. 121).Tambm na indemnizao do dano de morte das pessoas nascidas, parasuperar o obstculo do lesado ter deixado de existir com o facto lesivo,parte significativa da doutrina e da jurisprudncia, interpreta o artigo 496.,n. 2, do CC, como atribuindo um direito prprio de indemnizao aos

    familiares da vtima a mencionados, pela pe rda da vida (vide, nestesentido, Pires de Lima e Antunes Varela, em Cdigo Civil anotado, vol.I, pg. 500, da 4. ed., da Coimbra Editora, Antunes Varela, em Dasobrigaes em geral, vol. I, pg. 630 -639, da 9. ed., da Almedina, e naR.L.J., Ano 123, pg. 189 e seg., Pereira Coelho, em Direito dasSucesses. Lies ao curso de 1973 -1974, pg. 167 -180, da ed. pol. de1992, Rabindranath Capelo de Sousa, em Lies de direito das sucesses,vol. I, pg. 288 -300, da 2. ed., da Coimbra Editora, Heinrich Hrster, naob. cit., pg. 303 -304, Ribeiro de Faria, em Direito das obrigaes, vol.I, pg. 493 -494, da ed. de 1990, da Almedina, Delfim Maya de Lucena, em

    Danos no patrimoniais, pg. 57 -72, da ed. de 1985, da Almedina, PedroBranquinho Ferreira Dias, em O dano moral na doutrina e najurisprudncia, pg. 53 -54, da ed. de 2001, da Almedina, e Eduardo dosSantos, em Direito das Sucesses, pg. 54 -60, da ed. da A.A.F.D.L., de2002. Interpretando este preceito no sentido de que este direito adquiridopor via sucessria pelos herdeiros da vtima, vide, VAZ SERRA, na R.L.J.,Ano 103, pg. 166 e seg., Ano 105, pg. 53 e seg., e Ano 107, pg. 137 eseg., Inocncio Galvo Telles, em Direito das sucesses. Noes

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    fundamentais, pg. 73 -77, da 4. ed., da Coimbra Editora, Lopes Cardoso,em Partilhas judiciais, vol. I, pg. 442 -444, da 4. ed., da Almedina,Leite de Campos, em A indemnizao do dano de morte, no BFDUC,vol. L, pg. 247 e seg., em A vida, a morte e a sua indemnizao, noBMJ n. 365, pg. 5 e seg., Menezes Leito, em Direito das obrigaes,

    vol. I, pg. 299 -302, da ed. de 2000, da Almedina, e Carvalho Fernandes,em Lies de direito das sucesses, pg. 63 -64, da ed. de 1999, da Quidiuris).E tal como possvel atribuir um direito de indemnizao pela morte de umnascituro concebido, de igual modo o Direito Civil permite que sejareconhecida, pelo menos me, legitimidade para accionar os demaismeios de tutela dos bens jurdicos que este ramo do direito disponibiliza,sem que se consagre um direito do nascituro vida. No se revelando, pois, que o reconhecimento deste direito subjectivo aonascituro concebido seja imprescindvel para que possa ser assegurada a

    proteco conferida pelos meios civilsticos de in terveno,designadamente a responsabilidade civil, no se pode considerar que ainterpretao civilista de que o nascituro concebido no titular de umdireito vida viole o disposto no artigo 24., n. 1, da CRP.Mas isso no significa que a recusa em atribuir um direito de indemnizaopela morte de um nascituro j no infrinja este parmetro constitucional porresultar num dfice de proteco ao bem vida.A deciso recorrida partindo da constatao de que os nasciturosconcebidos no eram titulares de um direito vida, concluiu que a mortedestes, em resultado de conduta de terceiro, no era indemnizvel.E

    sta posio seguiu na linha de anterior Acrdo do mesmo tribunal proferido em 25 -5 -1985 (publicado no BMJ n. 347, pg. 398), econtrariou a posio defendida por Rabindranath Capelo de Sousa (inTeoria geral do direito civil, vol. I, pg. 271 -272, nota 673), segundo oqual as expresses por morte da vtima e danos no patrimoniais sofridos pela vtima dos n. 2 e 3 do artigo 496. incluem, nasua letra eno seu esprito, a morte do ser humano concebido , pelo que por merasinterpretaes declarativa ou extensiva dos n. 2 e 3 do artigo 496.,parece -nos indemnizvel o dano no patrimonial dasupresso da vida doconcebido, tendo concludo que seria, alis, estranho que fossem

    ressarcveis os danos integridade fsica do concebido, particularmentequando este venha a nascer com vida, e j no o dano da sua morte, poisento seria premiado o assassino mais eficaz que causasse a morte doconcebido, face ao agressor que to s lhe produzisse danos corporais.Ser que o no reconhecimento de um direito de indemnizao pelo danoda morte de um nascituro concebido causa de um dfice de tutela da vidaintra-uterina, exigida pelo disposto no artigo 24., n. 1, da CRP?

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    Um suficiente cumprimento de um imperativo de tutela exige a adequaodos meios de proteco disponibilizados pela ordem jurdica ao tipo de bemjurdico a proteger. No necessrio que sejam mobilizados todos os meiosque a ordem jurdica possua susceptveis de fornecer uma forma de tutela vida intra-uterina, mas exigvel que estejam disponveis os meios

    adequados a garantir uma tutela minimamente eficiente deste bem jurdico.E este imperativo de tutela no tem como destinatrio apenas o legisladorordinrio, mas tambm o julgador na sua actividade de aplicao da lei.

    Como escreveu Claus -Wilhelm Canaris:A proibio de insuficincia no aplicvel apenas no (explcito)controlo jurdico -constitucional de uma omisso legislativa, mas antes,igualmente, nos correspondentes problemas no quadro da aplicao e dodesenvolvimento judiciais do direito. Pois, uma vez que a funo deimperativo de tutela de direitos fundamentais no tem, de forma alguma,

    alcance mais amplo no caso de uma realizao pela jurisprudncia do quepelo legislador, o juiz apenas est autorizado a cumprir esta tarefa porque, ena medida em que, a no o fazer, se verificaria um inconstitucional dficede proteco, e, portanto, uma violao do princpio da proibio dainsuficincia (In Direitos fundamentais e direito privado, pg. 124,da ed. de 2003, da Almedina).

    Da que o juzo de inconstitucionalidade por insuficincia de tutela de bemreconhecido pela perspectiva objectiva dos direitos fundamentais possarecair sobre um critrio normativo que fundamente deciso judicial.

    O Direito Penal , em regra, o ramo do direito infraconstitucional que,devido ao forte impacto dos meios repressivos que utiliza, revela maioreficcia na proteco dos bens jurdicos, devendo, contudo, apenas intervircomo ultima ratio. Apesar do Cdigo Penal vigente dedicar um captulo criminalizao dos actos contra a vida intra-uterina (captulo II, do Ttulo I,do Livro II), punindo a prtica do crime de aborto (artigos 140. e 141. doCP) e assegurando, assim, a melhor proteco jurdica quele bem jurdico,exclui dessa punio os actos meramente negligentes (artigo 13., do CP),pelo que, relativamente a este tipo de aces, onde se insere precisam ente asituaosub iudice, no possvel contar com este tipo de tutela.E

    ntendeu o legislador ordinrio, por razes de poltica criminal, que nestaforma especial do acto violador da vida intra-uterina, atenta a natureza e ahierarquia do bem jurdico protegido, no se justificava a interveno dodireito penal.Todavia, esta rea penalmente desprotegida no deixa de reclamar umatutela jurdica. Se o valor social deste bem jurdico possa no exigir que odireito penal o proteja de todo o tipo d e ameaas, j a ordem jurdica,encarada globalmente, no pode permanecer indiferente a qualquer acto

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    que atente contra vida intra-uterina, nomeadamente aos que resultem decomportamentos negligentes.Atento o mbito restrito dos domnios de interveno do direito disciplinare a falta de eficcia das medidas civilsticas de pura preveno face imprevisibilidade dos actos negligentes, no poder o instituto da

    responsabilidade civil deixar de ser recrutado para esta misso.E mesmo que seja possvel apontar a falta de eficcia preventiva daresponsabilidade civil perante a forte interveno da figura dos seguros nodomnio da responsabilidade por actos negligentes, a existncia de umaobrigao de indemnizar, mesmo que no afecte imediatamente opatrimnio do lesante, no deixar de sinalizar a reprovabilidade do acto.Alis, note -se que em dimenses menos exigentes deste bem jurdico, oinstituto da responsabilidade civil no tem deixado de intervir, tutelando, por exemplo, a integridade fsica do feto, ao reconhecer um direito deindemnizao por ofensas corporais. Fora das teias da construo

    dogmtica que fixa o incio da personalidade jurdica no acto denascimento, uma vez que nestes casos o feto ofendido consegue nascer,atribui -se -lhe o direito de reclamar uma indemnizao pelas ofensassofridas antes do nascimento, tutelando -se, assim, a sua existncia intra-uterina (vide, neste sentido, Antunes Varela, em A condio jurdica doembrio humano perante o direito civil, em Estudos em homenagem aoProfessor Doutor Pedro Soares Martnez, vol. I, pg. 633 -634, da ed. de2000, da Almedina, Carlos Mota Pinto, na ob. cit., pg. 201 -202, e CastroMendes, na ob. cit., pg. 108 -109).A no admisso do pagamento duma indemnizao compensatria da

    morte do feto, nas reas penalmente desprotegidas, como sucederelativamente aos actos negligentes, resulta, assim, num dfice de proteco que viola o princpio da suficincia de tutela, pela ausncia deoferta de meios jurdicos que defendam suficienteme nte o direito vidaintra-uterina.Da que se conclua que o critrio normativo de que a morte de um nascituroconcebido no um dano indemnizvel deva ser consideradainconstitucional, por violao do disposto no artigo 24., n. 1, da CRP.Alis, a reparao deste dano seria sempre obrigatoriamente indemnizvelface ao princpio estruturante do Estado de direito democrtico, consagrado

    no artigo 2., da CRP, do qual se colhe um direito geral reparao dosdanos, de que so expresso particular os direitos de indemnizaoprevistos nos artigos 22., 37., n. 4, 60., n. 1, e 62., n. 2, da CRP (videGomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pg. 206).Constituindo misso do Estado de direito democrtico a proteco doscidados contra a prepotncia, o arbtrio e a injustia, no poder olegislador ordinrio deixar de assegurar o direito reparao dos danosinjustificados que algum sofra em consequncia da conduta de outrem.

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    A tutela jurdica dos bens e interesses dos cidados reconhecidos pelaordem jurdica e que foram injustamente lesionados pela aco ou omissode outrem, necessariamente assegurada por um Estado de direito, exige ,nestes casos, a reparao dos danos sofridos, no constituindo a ausncia deum titular do bem ofendido obstculo intransponvel interveno do

    instituto da responsabilidade civil pelas razes acima explicadas.Por estas razes julgaria procedente o recurso interposto, declarandoinconstitucional, por violao do disposto nos artigos 2. e 24., daConstituio da Repblica Portuguesa, a norma do artigo 66., do CdigoCivil, quando interpretada no sentido de que a morte de um nascituroconcebido no um dano indemnizvel. Joo Cura Mariano.