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A questão da longevidade saudável após processos
de reestruturação: o caso RFFSA/ALL
Luiz Eduardo Gonçalves Tiecher
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto COPPEAD de Administração
Mestrado em Administração
ORIENTADORA: DENISE FLECK, Ph.D.
Rio de Janeiro – Brasil
2009
A questão da longevidade saudável após processos
de reestruturação: o caso RFFSA/ALL
Luiz Eduardo Gonçalves Tiecher
Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto COPPEAD de
Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Ciências (M.Sc.).
Aprovada por:
___________________________________________ - Orientadora
Profª. Denise Lima Fleck, Ph.D. (COPPEAD, UFRJ)
___________________________________________
Profª. Ursula Wetzel, D.Sc. (COPPEAD, UFRJ)
___________________________________________
Prof. Adriano Proença, D.Sc. (DEI/UFRJ)
Rio de Janeiro – Brasil
2009
FICHA CATALOGRÁFICA
Tiecher, Luiz Eduardo Gonçalves.
A questão da longevidade saudável após processos de reestruturação: o caso
RFFSA/ALL / Luiz Eduardo Gonçalves Tiecher. Rio de Janeiro, 2009.
xvi, 315 f.: il
Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, Instituto COPPEAD de Administração, 2009.
Orientadora: Denise Lima Fleck
1. Processos de reestruturação. 2. Longevidade saudável da firma. 3. Indústria
logística e ferroviária. – Tese. I. Fleck, Denise Lima (Orientadora). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto COPPEAD de Administração.
III. Título.
AGRADECIMENTOS
É difícil resumir, em alguns parágrafos, o papel que algumas pessoas
tiveram em uma trajetória que para mim foi tão árdua e realizadora. O mestrado e a
sua evidência maior de conclusão, essa dissertação, são projetos planejados alguns
meses antes de iniciarem e que não teriam chegado ao fim sem o apoio das
seguintes pessoas.
Ao meu pai que desde o começo sabia da importância do projeto para mim e
como isso seria custoso. Nunca deixou sentir-me desamparado ou mesmo
incomodado de que eu não poderia absorver ao máximo o que essa experiência
teria a me oferecer. E nos momentos mais difíceis, quando todos achavam que era o
“fim do jogo”, ele era o primeiro a agir como se nada tivesse acontecido, a fazer-me
acreditar que era apenas o fim do primeiro tempo e que ainda tinha muito jogo pela
frente. Como sempre fez na minha vida.
À minha mãe, que serviu como maior exemplo de inspiração e superação,
tendo concluído seu curso de mestrado alguns meses antes em condições muito
mais adversas que as minhas. Mais que isso, conseguiu ser um orgulho para sua
orientadora e para toda a família.
À minha namorada, Fabrícia, incentivadora maior de tudo que faço em
qualquer dimensão: profissional, acadêmica e pessoal. Seu amor incondicional, sua
compreensão e envolvimento despertaram sentimentos que até então não tinha tido
a oportunidade de sentir: companheirismo e completude. Penso que foi o incentivo
dela e a visão apurada sobre como o curso se inseria nos meus projetos que fez
com que eu tomasse a decisão final de entrar nessa escola.
Ao Seu Nélio, Dona Elma, que sempre me acolheram e compartilharam
tristezas e felicidades que tive nesses anos juntos com a Fá como se já fosse parte
de todos. Ainda nesse ramo da família, à Fernanda e ao Bruno por abrir o coração
dessa linda família e insistir em ensinar o quanto antes as duas flores mais lindas do
mundo, Gabriela e Giovana, a falarem tio Duda.
A minha estimada orientadora. Sua presença durante todo curso foi motivo
de inspiração por ter sempre a atitude mais correta e justa possível, sempre
mantendo como direcionamento o trabalho árduo, as metas ambiciosas e vivo o
desejo de fazer um trabalho do qual se orgulhar.
Ao Marcelo Soares, turma 2006, que fez por mim muito mais do que até um
grande amigo faria. Abriu todas as portas, possíveis e impossíveis, na ALL, me
ofereceu sua casa em minhas visitas à Curitiba e sempre fez isso com um enorme
sorriso no rosto.
A todos os entrevistados por disponibilizarem seu tempo e compartilharem
suas experiências, as quais serviram como base de grande parte das informações
necessárias para esse trabalho. Principalmente à Melissa Werneck e Luiz Henrique
Hungria pelo envolvimento que demonstraram com a empresa e importância que
perceberam na minha pesquisa.
Aos meus parceiros de pesquisa, Paula Fava, Luiz Gustavo, Renato e
Gustavo, por suas valiosas contribuições ao longo de todo processo. Eles
compartilhavam seus conhecimentos e se interessavam pelo meu trabalho quando já
não tinham tempo nem mesmo para suas próprias dissertações. Também aos
orientandos da área da turma 2005 e 2006 que fizeram o mesmo por nós todos.
Aos meus colegas de classe por todas as prazerosas experiências que me
proporcionaram, fosse no Mangue, nas salinhas, nos churrascos, no Plebeu, nos
trabalhos em grupo em suas casas. Em especial lembrar do suco de limão pela
manhã do Gustavo e da Fernanda, do bolo de cenoura com chocolate do final da
tarde com a Natalie, e das cervejas à noite com Edson e Cesar Martins, além das
discussões sobre consultoria com o Rafael Stille e Marchesini e sobre como mudar o
nosso país com o Ricardo.
Aos funcionários do Coppead por todo apoio e gentileza acima de qualquer
expectativa durante o curso, principalmente a Cida, Simone, Lucianita e Fátima. O
Coppead faz jus ao seu nome em grande parte por causa da dedicação dessas
pessoas. Também relembro da Adriana, Raquel e Martinha que, apesar de não
serem funcionárias Coppead, fazem parte do dia-a-dia e não deixaram que eu, ou
qualquer outro aluno, se descuidasse com a alimentação.
Aos professores Celso Lemme e Sérgio Abranches por também se tornarem
exemplos de grandes intelectuais comprometidos com o ensino e desenvolvimento
de novos gestores no país mais conscientes do seu papel e da sua responsabilidade
na sociedade e no ambiente.
Aos meus irmãos por escolha, Leo, Henrique e Fabinho que corriam atrás da
minha presença mesmo quando eu mal tinha tempo para mim mesmo. As jogatinas
menos freqüentes durante o curso se tornaram também muito mais valiosas.
Ao grande Sassa que me conhece como ninguém e foi muito importante
para manter vivo meus valores e crenças. Tais aspectos foram necessários para
conseguir concluir o curso e a dissertação plenamente satisfeito com a realização
dos meus objetivos e com a sensação de dever cumprido.
A todas as outras pessoas que de alguma forma contribuíram para que
concluísse esse projeto de vida. Muito obrigado, espero não decepcioná-los e
entregar à sociedade aquilo que me foi confiado.
7
RESUMO
Tiecher, Luiz Eduardo Gonçalves. A longevidade saudável após processo de reestruturação: o caso RFFSA/ALL, Orientadora: Denise Lima Fleck. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2009. Dissertação (Mestrado em Administração)
As décadas de 80 e 90 foram marcadas por grandes mudanças no papel do
Estado na economia dos países. As políticas neo-liberais do período incentivaram a
redução da participação dos governos em empresas públicas e o aumento da
competição em diversos setores, dando origem a uma grande onda de aquisições de
empresas por todo o mundo. Nesse contexto bancos de investimentos ampliaram
suas receitas, financiando e prestando serviços de consultoria. Porém, ao mesmo
tempo em que existiram casos de sucesso de empresas adquiridas, também
existiram muitos fracassos.
A América Latina Logística é um caso de aquisição por banco de
investimento surge do processo de privatização do sistema ferroviário brasileiro no
ano de 1997. Nos anos anteriores à compra, a Rede Ferroviária Federal era
deficitária e as condições operacionais ruins. Comprada por um grupo de
investidores liderados pelo banco GP Investimentos, em pouco mais de 10 anos
tornou-se um dos principais operadores logísticos da América do Sul.
Esta pesquisa buscou entender de que maneira a ALL e seus novos donos
fizeram essa transição, bem como as possíveis implicações para a longevidade
saudável da organização. O estudo utilizou como principal referencial teórico os
arquétipos de sucesso e fracasso organizacional (Fleck, 2006) e adotou como
método o estudo de caso e a abordagem histórica.
As evidências sugerem que a organização percorreu sua trajetória em três
fases após a privatização: a primeira focada na gestão das folgas organizacionais; a
segunda investindo na diversificação e sistematização; e a terceira na manutenção
das características das fases anteriores. Identificou-se que essas escolhas
trouxeram conseqüências positivas para o crescimento, desenvolvendo traços
empreendedores consistentes e capacidade de aprendizado, mas que a capacidade
de inovação e de aprovisionamento de recursos humanos não evoluíram da mesma
forma. O modo de respostas não se adaptou ao novo contexto, quando já havia mais
recursos disponíveis. O referencial teórico sugere que novos padrões de resposta
sejam adotados para lidar com os novos desafios do crescimento.
8
ABSTRACT
Tiecher, Luiz Eduardo Gonçalves. Healthy longevity after turn around process: the RFFSA/ALL case, Supervisor: Denise Lima Fleck. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2009. Thesis (Master in Business Administration)
The 80's and 90's were marked by great changes in the role of governments
in the economy of the countries. The neo-liberal policies of the period encouraged
the reduction of government participation in public companies and increased
competition in several sectors, resulting in a great wave of takeovers around the
world. In this context investment banks have increased their revenues, providing
financing and advisory services. There were several cases of success, but also a lot
of failure from these acquisitions.
América Latina Logística arises from the privatization process of Brazilian rail
system during 1997. In the years before the auctioning, Rede Ferroviária Federal had
losses for several years and was in bad operational conditions. Bought by a group of
investors lead by GP Investments banking, in 10 years it became one of the main
logistic operators of South America.
This research tried to understand in which way ALL and its new owners
made this transition, and also possible implications to the healthy longevity of the
firm. The study used as theoretical framework the archetypes of organizational
success and failure (Fleck, 2006) and adopted case study and historical analyses
methods.
Evidences suggest that the organization went through this trajectory in three
phases after privatization: the first one, focusing on improvement of organizational
slack management; the second, investing on diversification and systemization; and
third, protecting the same characteristics of previous phases. It was identified that
these choices brought positive consequences to the maintenance of growth,
developing consistent entrepreneurs traits and learning capability, but innovation and
human resources provisioning didn’t evolve in the same way. The response mode
which made it survive remained, even when there were more resources available.
The theoretical framework along with the different context in which it is nowadays,
suggest the adoption of response patterns different from the actual ones.
9
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas.
ACT – Automação do Controle do Tráfego.
ADR – American Depositary Receipt. Em português, Documento de depósito
americano.
AENFER – Associação de Engenheiros Ferroviários.
AmBev – American Beverage Company. Em português, Companhia Americana de
Bebidas.
ANTF – Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários.
ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres.
ANUT - Associação Nacional dos Usuários de Transporte de Carga.
ATC – Automatic Train Control. Em português, controle automático de trens.
ALL – América Latina Logística.
BACEN – Banco Central do Brasil.
BAH – Booz Allen Hamilton.
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.
BF – Brasil Ferrovias.
BNDE – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, posterior BNDES.
BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social.
BM&F – Bolsa de Mercadorias e Valores Futuros.
BOVESPA – Bolsa de Valores do Estado de São Paulo.
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
CCP – Controle de Circulação de Pátios.
CEL – Centro de Estudos em Logística.
CFN – Companhia Ferroviária do Nordeste.
CLM – Council of Logistics Management. Em português, Conselho de Gestão em
Logística.
CNT – Confederação Nacional do Transporte.
COPPEAD – Instituto COPPEAD de Administração da UFRJ.
CSN – Companhia Siderúrgica Nacional.
CTC – Centralized traffic control. Em português, controle de tráfego centralizado.
CVM – Comissão de Valores Mobiliários.
CVRD – Companhia Vale do Rio Doce.
10
DNIT – Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes.
DOT – Departament of Transportation (of United States of America). Em português,
Departamento de Transportes (dos Estados Unidos da América).
EBITDA – Earnings Before Interesting, Tax, Depreciation and Amortization. Em
português, Lucro antes dos juros, impostos, depreciação e amortização.
EUA – Estados Unidos da América.
EVA – Economic Value Added. Em português, valor econômico adicionado.
FCA – Ferrovia Centro Atlântico.
Finame – Programa de Financiamento de Máquinas e Equipamentos.
FSA – Ferrovia Sul Atlântico.
FGV – Fundação Getúlio Vargas.
FEPASA – Ferrovias Paulistas Sociedade Anônima.
Ferroban – Ferrovias Bandeirantes.
Fipe – Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.
GP – Garantia Partners. Em português, Sociedade Garantia.
GPS – Global Positioning System.
GE – General Eletric.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
ICC – Interstate Comerce Comission. Em português, Comissão de Comércio
Interestadual.
ILOS – Instituto de Logística.
IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas.
IPO – initial public offering. Em português, oferta pública inicial [de ações].
LBO – Leverage Buy-out. Em português, compra alavancada [de ações].
LTL – Less Than Truckload. Em português, menos do que a carga de um caminhão.
MBA – Master in Business Administration.
MBR – Minerações Brasileiras Reunidas.
OBC – On Board Computer. Em português, computador de bordo.
OCDE – Organization for Economy Co-Operation and Development. Em português,
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
PCP – Planejamento e Controle da Produção.
PDV – Programa de Demissões Voluntárias.
PIB – Produto Interno Bruto.
PN – Passagem de nível.
11
PND – Programa Nacional de Desestatização.
PUC – Pontifícia Universidade Católica.
RFFSA – Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima.
RIA – Relatório de Informações Anuais.
RTF – Regulamento dos Transportes Ferroviários.
SEST – Secretaria Especial de Controle das Estatais.
SIGO – Sistema de Informações Gerenciais para Operação.
SIMEFRE – Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos
Ferroviários e Rodoviários.
SOL – Sistema de Operações Logísticas.
Terlogs – Terminais Logísticos.
TL – truckload. Carga de caminhão.
TKU – Tonelada por quilômetro útil.
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
UniALL – Universidade Corporativa da ALL.
UP – Unidade de produção.
WH – Westinghouse.
12
LISTA DE TABELAS
Tabela 2-1: Antecedentes da Desinstitucionalização. ............................................... 45
Tabela 2-2: Arquétipos, desafios e respostas. .......................................................... 50
Tabela 2-3: Possíveis classificações quanto ao tipo de folga.................................... 65
Tabela 3-1: Tipos de Perguntas Utilizados na Pesquisa. .......................................... 70
Tabela 5-1: Evolução do controle acionário do GP Investimentos na ALL. ............. 127
Tabela 6-1: Lista de Dimensões para Análise. ........................................................ 228
Tabela 6-2: Fases da evolução da indústria logística. ............................................. 270
Tabela 6-3: Ofertas de valores mobiliários da ALL registradas na Bovespa. .......... 274
Tabela 6-4: Características do Grupo GP. .............................................................. 303
13
LISTA DE FIGURAS
Figura 2-1: Trajetória da GE: crescimento, estagnação e turnaround. ...................... 29
Figura 2-2: Exemplo de trajetória e fases do turnaround. ......................................... 41
Figura 2-3: Desenvolvimento do caráter organizacional. .......................................... 44
Figura 2-4: Modelo de Requisitos de Propensão à Longevidade .............................. 47
Figura 2-5: Mecanismo de auto-reforço do crescimento contínuo. ............................ 51
Figura 2-6: Motor de co-evolução aplicado à firma. .................................................. 52
Figura 4-1: Evolução da indústria de transporte nos Estados Unidos e no Brasil. .... 86
Figura 4-2: Densidade da malha ferroviária Brasil e Estados Unidos. ...................... 87
Figura 4-3: Mapa ferroviário brasileiro. ...................................................................... 95
Figura 4-4: Tamanho da frota e produção anual de vagões. ..................................... 95
Figura 4-5: Histórico de operações de aquisição de empresas. .............................. 117
Figura 5-1: Evolução das receitas com mercadorias da RFFSA/PIB. ..................... 121
Figura 5-2: Evolução da produção da RFFSA comparada ao PIB. ......................... 122
Figura 5-3: Evolução do lucro líquido/PIB da RFFSA. ............................................. 123
Figura 5-4: Evolução da dívida pública total/PIB. .................................................... 123
Figura 5-5: Evolução do Lucro/PIB das principais concessionárias ferroviárias...... 124
Figura 5-6: Evolução da Receita/PIB das principais concessionárias ferroviárias. . 125
Figura 5-7: Evolução da produção comparada ao PIB. ........................................... 125
Figura 5-8: Posição de cada fase no continuum dos arquétipos. ............................ 126
Figura 5-9: Evolução dos traços por fases. ............................................................. 128
Figura 5-10: Análise da Fase Final (1980 a 1996) da RFFSA. ................................ 132
Figura 5-11: Análise da Fase de Reestruturação (1997 a 1999) da FSA. ............... 143
Figura 5-12: Análise da Fase de Organização (2000 a 2004) da ALL. .................... 150
Figura 5-13: Evolução do perfil etário dos funcionários da ALL. ............................. 155
14
Figura 5-14: Produção por empregado por unidade de negócio. ............................ 168
Figura 5-15: Análise da Fase de Crescimento (2004 a 2008) da ALL. .................... 170
Figura 5-16: Principais movimentos de expansão. .................................................. 170
Figura 5-17: Evolução da Receita/PIB por Unidade de Negócio. ............................ 172
Figura 5-18: Evolução da Dívida Líquida sobre EBITDA ......................................... 178
Figura 5-19: Participação das principais contas do DRE. ....................................... 194
Figura 5-20: Evolução do valor da remuneração variável. ...................................... 200
Figura 6-1: Evolução da Receita/PIB e do PIB. ....................................................... 207
Figura 6-2: Posição competitiva dos modais. .......................................................... 255
Figura 6-3: Estrutura Societária do Grupo América Latina Logística. ...................... 273
Figura 6-4: Volume de operações no mercado financeiro. ...................................... 274
15
SUMÁRIO
1 Introdução .................................................................................................... 19
1.1 Contexto ....................................................................................................... 19
1.2 Objetivo ........................................................................................................ 22
1.3 Organização ................................................................................................. 24
2 Revisão Bibliográfica .................................................................................... 26
2.1 Trajetórias Organizacionais .......................................................................... 28
2.1.1 Crescimento ................................................................................................. 29
2.1.2 Declínio ........................................................................................................ 32
2.1.3 Estagnação .................................................................................................. 34
2.2 Mudança Organizacional .............................................................................. 36
2.2.1 Reestruturação ............................................................................................. 37
2.2.2 Formação e Transformação do Caráter ....................................................... 41
2.3 Arquétipos de Sucesso e Fracasso Organizacional ..................................... 45
2.3.1 Processos .................................................................................................... 49
2.3.1.1 Crescimento e renovação ......................................................................... 49
2.3.1.2 Manutenção da integridade ....................................................................... 52
2.3.2 Desafios ou traços........................................................................................ 53
2.3.2.1 Empreendedorismo ................................................................................... 53
2.3.2.2 Navegação no Ambiente ........................................................................... 56
2.3.2.3 Gestão da Diversidade.............................................................................. 58
2.3.2.4 Aprovisionamento de Recursos Humanos ................................................ 60
2.3.2.5 Gestão da Complexidade .......................................................................... 62
2.3.2.6 A Questão da Folga Organizacional ......................................................... 63
3 Método ......................................................................................................... 67
16
3.1 Definição do tema, da pergunta e do objeto de pesquisa ............................ 67
3.2 Estratégia de Pesquisa ................................................................................ 70
3.3 Organização da Pesquisa ............................................................................ 71
3.4 Delimitação da Unidade de Análise.............................................................. 72
3.5 Coleta de dados ........................................................................................... 73
3.5.1 Entrevistas ................................................................................................... 73
3.5.2 Análise de arquivos ...................................................................................... 74
3.5.3 Indicadores ................................................................................................... 76
3.6 Registro dos dados ...................................................................................... 78
3.7 Análise dos dados ........................................................................................ 79
4 Histórico ....................................................................................................... 81
4.1 Antecedentes da indústria de transportes de cargas ................................... 81
4.2 O contexto da formação da ALL ................................................................... 86
4.2.1 Antes da privatização da RFFSA ................................................................. 86
4.2.2 A privatização ............................................................................................... 88
4.2.3 Depois da privatização ................................................................................. 92
4.2.4 A reestruturação do setor ............................................................................. 93
4.3 Histórico da América Latina Logística .......................................................... 96
4.3.1 Diagnóstico da Malha Sul ............................................................................. 96
4.3.2 Buscando o reequilíbrio operacional e financeiro ......................................... 98
4.3.3 As sementes da nova cultura ..................................................................... 103
4.3.4 Empresa nos rumos e crescendo: preparando o terreno para sair ............ 109
4.3.5 Caminhando com as próprias pernas......................................................... 113
5 Análise ....................................................................................................... 120
5.1 Síntese da Reestruturação ......................................................................... 121
17
5.1.1 Posição no continuum ................................................................................ 126
5.1.2 Evolução dos traços ................................................................................... 128
5.2 Descrição dos Arquétipos .......................................................................... 131
5.2.1 Fase 1 – Pré-compra (1980 – 1996) .......................................................... 131
5.2.1.1 Navegação no Ambiente ......................................................................... 132
5.2.1.2 Gestão da Diversidade............................................................................ 134
5.2.1.3 Aprovisionamento de Recursos Humanos .............................................. 136
5.2.1.4 Gestão da Complexidade ........................................................................ 138
5.2.1.5 Gestão da Folga Organizacional ............................................................. 139
5.2.1.6 Empreendedorismo ................................................................................. 141
5.2.2 Fase 2 – Reestruturação (1997 – 1999) ..................................................... 142
5.2.2.1 Gestão da Folga Organizacional ............................................................. 143
5.2.2.2 Aprovisionamento de Recursos Humanos .............................................. 145
5.2.2.3 Gestão da Diversidade............................................................................ 146
5.2.2.4 Gestão da Complexidade ........................................................................ 147
5.2.2.5 Navegação no Ambiente ......................................................................... 147
5.2.2.6 Empreendedorismo ................................................................................. 148
5.2.3 Fase 3 – Crescimento (2000 – 2004) ......................................................... 149
5.2.3.1 Gestão da Complexidade ........................................................................ 150
5.2.3.2 Aprovisionamento de Recursos Humanos .............................................. 153
5.2.3.3 Gestão da Diversidade............................................................................ 156
5.2.3.4 Empreendedorismo ................................................................................. 160
5.2.3.5 Navegação no Ambiente ......................................................................... 165
5.2.3.6 Gestão da Folga Organizacional ............................................................. 167
5.2.4 Fase 4 – Pós-venda (2004 – 2008) ............................................................ 169
18
5.2.4.1 Empreendedorismo ................................................................................. 170
5.2.4.2 Navegação no Ambiente ......................................................................... 179
5.2.4.3 Aprovisionamento de Recursos Humanos .............................................. 187
5.2.4.4 Gestão da Diversidade............................................................................ 193
5.2.4.5 Gestão da Complexidade ........................................................................ 198
5.2.4.6 Gestão da Folga Organizacional ............................................................. 202
6 Considerações Finais ................................................................................. 206
6.1 Sugestões para pesquisas futuras ............................................................. 212
Bibliografia............................................................................................................... 215
Anexo I – Respostas estratégicas a pressões institucionais ................................... 225
Anexo II – Lista de Dimensões de Análise .............................................................. 228
Anexo III – Adaptações ao Sistema de Registro de Dados ..................................... 233
Anexo IV – Os modos de transporte de cargas e suas características ................... 235
Anexo V – Antecedentes e evolução do transporte de cargas ................................ 237
Anexo VI – Trechos de uma apresentação de Recrutamento ................................. 271
Anexo VII – Estrutura societária da ALL S.A. .......................................................... 273
ANexo VIII – Dados sobre o Mercado Financeiro Brasileiro ................................... 274
Anexo IX – Histórico do Grupo GP Investimentos ................................................... 275
19
1 INTRODUÇÃO
1.1 CONTEXTO
Entre 2007 e 2009 a economia global foi afetada por uma das maiores crises
econômicas desde a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929. Os especialistas
atribuem a causa raiz do problema à bolha imobiliária americana, mas o sistema
financeiro e a falta de regulamentação daquele país foram os responsáveis em
transformar a bolha em uma crise (International Monetary Fund, 2009). Uma parte
não regulada do sistema financeiro americano tinha uma fortíssima relação com a
economia real e, ao comporem suas carteiras de investimento com títulos
imobiliários sem uma avaliação correta dos riscos envolvidos, a transmissão da crise
financeira para a economia foi natural.
A crise foi realmente sentida quando alguns símbolos da força desse
sistema financeiro foram abalados: todos os principais bancos de investimento
americanos estavam falidos em um curto espaço de tempo com a depreciação
brusca de suas carteiras e o seu alto nível de alavancagem financeira. Destes
bancos, Lehman Brothers foi o primeiro a cair, abrindo processo de falência, e outros
como Merrill Lynch passaram por processos de troca de controladores, emitindo
novas ações para poderem sair da condição de insolvência.
O governo americano, também como uma resposta às possíveis
conseqüências da crise, moldou a consolidação do sistema orientando os bancos de
investimento a serem incorporados por bancos comerciais, com ativos em caixa
disponíveis para aumentar a solvência das empresas e adquiriu grande parcela das
ações emitidas. Uma das preocupações era que tais bancos, com participação em
diversas empresas da economia real, contagiassem as empresas ainda saudáveis.
Nos últimos 30 a 40 anos, fundos de investimento tiveram um papel
relevante na história econômica americana, ainda que eles existam há mais de cem
anos. Além de ter se mostrado um negócio altamente lucrativo, alguns
(www.PrivateEquityCouncil.org) argumentam que tais fundos, em especial os
chamados private equity, são responsáveis pela recuperação de empresas da “velha
economia” com baixo desempenho e pelo desenvolvimento de novos negócios que
empurram a inovação tecnológica do país, mais conhecidos como venture
capitalists. Outros relembram que essas firmas foram responsáveis pela falência de
negócios promissores com os excessos cometidos, principalmente na década de 80.
20
Nessa época, os fundos de investimentos apostavam na composição de um
conjunto de negócios estáveis e geradores de caixa. Eles financiavam a compra com
empréstimos, faziam ofertas hostis para os acionistas de empresas com
desempenho inferior do ponto de vista do mercado financeiro e vendiam as partes
que não eram interessantes, aquelas que exigiam investimentos. Por sua vez
saldavam a dívida dos empréstimos e ficavam somente com a parte que gerava
caixa, este utilizado para realizar novas e maiores aquisições.
Grande parte dos casos resultou em desinvestimentos em um curto espaço
de tempo com perdas relevantes para os acionistas e o fracasso de negócios até
então lucrativos. Além disso, muitos gestores adotaram estratégias perigosas para
se proteger das aquisições hostis, como a elevação do seu grau de endividamento
sem necessidade, justamente para aumentar o custo de uma possível aquisição.
A partir de 2000, private equities se diferenciam dos fundos de investimento
alegando que seus prazos de maturação de investimento são mais longos, por
possuírem ativos reais e porque o lucro estaria na venda de um negócio renovado
como um todo e não na venda de suas partes. Portanto, é necessário que suas
empresas sejam promissoras para que os compradores tenham interesse no ativo
(www.PrivateEquityCouncil.org). Outro argumento atual é a maior participação e
envolvimento na gestão da empresa adquirida.
No Brasil existem algumas empresas do gênero. A grande maioria dos
bancos de investimento foca suas atividades na compra e venda dos mais variados
ativos, obtendo lucro com as flutuações de preço na bolsa de valores brasileira, e no
financiamento de grandes operações. Os private equity no Brasil, em geral, estão
vinculados a outras grandes empresas, principalmente bancos. Uma das exceções é
o chamado GP Investimentos cujo principal negócio é gestão de fundos para compra
e venda de controle de empresas. Foi fundada por sócios do extinto Banco Garantia,
um banco de investimento vendido ao Credit Suisse, grupo financeiro suíço.
Desde meados da década 1980, Lemann1, um dos fundadores do GP, vem
liderando operações de aquisições notórias no mercado. Dentre elas se destacam: a
Ambev, detentora de uma parcela altíssima do mercado de bebidas, em especial
cervejas; e Lojas Americanas, grande varejista também em canal eletrônico.
1 Vale ressaltar que não há relação entre o previamente citado Lehman Brothers.
21
Outro caso de destaque é a América Latina Logística, uma empresa de
transporte de cargas ferroviário com outras operações relacionadas na indústria2
logística e atuação nos países do Cone Sul. Durante o processo de privatização das
ferrovias brasileiras, o grupo GP, juntamente com outros investidores, deu o maior
lance pela Malha Sul da RFFSA, conjunto de estradas de ferro na Região Sul. Eles
assumiram a gestão, implantaram diversos métodos de administração, venderam
parte de seu capital em processos de ofertas públicas de ações e trocaram outra
parcela com fundos de pensão para adquirir outra ferrovia.
Nesse período diversos indicadores financeiros das organizações adquiridas
seguiram uma linha de crescimento e as operações se expandiram para outros
países, regiões e negócios, principalmente através de aquisições. Além da
semelhança no processo de expansão, se atribui grande parte do sucesso das
operações3 aos métodos de gestão implantados. Contudo, tais métodos são também
razão de questionamentos, principalmente devido à natureza altamente competitiva
das práticas transmitidas do banco para outras operações. Além disso, no portfólio
de empresas adquiridas também existem negócios que não evoluíram da mesma
maneira, ou mesmo declinaram, como a participação na Artex, fabricante de tecidos.
Tanto nos EUA quanto no Brasil, existem casos de aquisição por fundos de
private equity com evolução positiva de vários indicadores, como receita e lucro,
tanto para os bancos, quanto para as empresas adquiridas. Mas também existem
em ambos os países casos de trajetórias declinantes. Esses diferentes resultados
colocam em dúvida a influência desse tipo de operação na saúde das organizações
adquiridas e, conseqüentemente, da utilidade dessas operações para a sociedade.
As críticas e questionamentos aos processos de aquisição hostil americana,
assim como aos métodos empregados pelo GP Investimentos no Brasil, fazem mais
sentido principalmente para aqueles que não atuam no mercado financeiro. Do
ponto de vista de banqueiros, investidores e traders, ações de empresas são ativos
como petróleo, café, dólar e títulos, todos negociáveis e sujeitos a flutuações nos
preços e possíveis fontes de ganhos especulativos. Por outro lado, para gestores,
2 O termo indústria será utilizado nesse texto com o significado de setor econômico específico podendo ser atribuído também a empresas de serviços, evitando a associação comum com empresas que possuem operações industriais.
3 Aqui adota-se o conceito de sucesso como alcance dos objetivos. No caso, uma compra e venda de controle com lucro para o banco de investimento.
22
clientes e sócios, as empresas muitas vezes fazem parte de sua história, onde a
identidade com a empresa se confunde com a identidade do indivíduo, e a
permanência da instituição e de suas pessoas é mais importante do que uma
oportunidade de vender algo com um preço superior ao valor investido acrescido de
juros.
Se por um lado ponderamos que os fundos de investimento podem colocar o
bem da firma adquirida em segundo plano, por outro podemos pensar o mesmo de
seus gestores. Enquanto investidores podem querer utilizar a firma para obter lucro
no processo de compra e venda, os executivos podem querer manter a firma sob
seu controle para permanecerem em seus cargos com altas remunerações. A
questão a se ponderar aqui é em que medida uma aquisição por um novo grupo
controlador, incluindo bancos de investimento, não poderia ser a melhor opção para
a firma adquirida.
1.2 OBJETIVO
O assunto vai além da sobrevivência das organizações. Entre apoiar ou não
a utilidade do papel transformador dos fundos de investimento para a sociedade, há
que se considerar se a organização será capaz de tornar-se mais forte no futuro
para competir no seu ambiente. Justamente porque, imaginando-se a hipótese de
uma empresa alvo de aquisição, se pode supor que ela esteja fragilizada. Ser alvo é,
no mínimo, um indício de dificuldades, mesmo que temporárias. Se a autonomia é
um elemento importante para a sobrevivência das organizações (Pfeffer & Salancik,
1978), a possibilidade de mudança de controle é uma situação crítica.
Nesse ponto, apesar de uma total perda de autonomia poder significar a
morte de uma empresa, há que se considerar que depois da aquisição muitos
elementos formadores da organização ainda permanecem vivos, como a sua cultura
e seus stakeholders. Por outro lado, ninguém sugeriria que uma empresa morreu ao
perder um grande cliente se houver outros que ainda a sustentem. As aquisições de
empresas podem ser uma solução compensadora para a parte da organização que
sobrevive. Se adotarmos uma perspectiva institucional e considerarmos que outras
organizações, como governos, clientes e fornecedores, também fazem parte da
firma (Selznick, 1957), a aquisição pode significar a manutenção de parte dessa
estrutura ao invés da falência total, bem como a redução dos prejuízos dessas
outras partes.
23
Alguns autores (Davis & Stout, 1992) também argumentam que a existência
de um mercado funcional de controle corporativo contribui para a mudança
organizacional e desafia o domínio das metáforas de adaptação e seleção como as
únicas possíveis explicações dentro da Teoria da Organização para a mudança nas
organizações. A aquisição e a mudança de controle podem ser o estopim necessário
para evitar uma morte certa por conflitos entre as coalizões existentes. Tais conflitos
às vezes impedem a evolução da organização, pois só permitem a manutenção de
um estado de subsistência, criando uma organização que falha permanentemente
(Meyer & Zucker, 1989)
Quando private equity e aquisições são temas de pesquisa, em geral a
abordagem é mais voltada para o campo de estudo das finanças e, algumas vezes
no caso das aquisições, também se relaciona a área da estratégia. No campo da
mudança organizacional o tema aquisição é comumente analisado sob a importância
dos processos de integração pós-aquisição. Grande parte dessas abordagens
confina-se a prazos relativamente curtos quando se pondera a contribuição desses
eventos e processos para toda a vida de uma organização.
O objetivo desse estudo é contribuir para as discussões sobre o sucesso4 no
longo prazo das organizações analisando um caso específico de transformação
organizacional iniciado por uma aquisição em um processo de privatização. A
pergunta geral de pesquisa busca entender como os interesses de um fundo de
investimento em um processo de aquisição, transformação e venda de
empresas, afetam as organizações adquiridas. Ainda que se possa concordar
que as motivações atuais dos fundos de investimento são de prazo mais longo do
que as motivações do passado, estas ainda não estariam suficientemente alinhadas
com o interesse pela sustentação no longo prazo. Dessa forma, a pergunta se torna
mais específica e o interesse estará concentrado em identificar quais foram as
conseqüências do processo de transformação comandado pelo GP para a
construção da longevidade saudável da ALL? Analisando a fundo um caso
específico contribuímos para a melhor compreensão da questão geral.
4 Alguns dos conceitos utilizados na introdução de maneira abrangente, como sucesso e longevidade saudável, serão detalhados e definidos posteriormente ao longo do texto.
24
1.3 ORGANIZAÇÃO
Este estudo está organizado em seis capítulos. O capítulo atual apresenta a
introdução da pesquisa, contextualizando as questões de interesse, seus objetivos e
sua estrutura.
Dada a contextualização e apresentação do problema de pesquisa, a
Revisão de Literatura, o segundo capítulo, é iniciada. Começa-se pela discussão e
conceituação das possíveis trajetórias organizacionais: declínio, crescimento e
estagnação. Dadas essas trajetórias, discutem-se as mudanças de trajetória
apresentando alguns conceitos relacionados, tais como: mudança organizacional,
institucionalização (Doyle, 1994; Selznick, 1957) e turnaround (Robbins & Pearce II,
1992). Por fim, retorna-se à questão da longevidade através da revisão dos
arquétipos de Fleck (2006), sua relação com a trajetória de crescimento e formação
de traços organizacionais.
O capítulo seguinte se refere à descrição do método de pesquisa e parte da
re-apresentação da pergunta de pesquisa. A pergunta nos orienta a discutir o objeto
de estudo e as possíveis estratégias de pesquisa utilizáveis. O estudo de caso e a
perspectiva histórica são apresentados como as estratégias escolhidas, assim como
os motivos por trás da escolha. Tais motivos incluem principalmente a natureza
processual do objeto do estudo e a preferência por uma pesquisa que traga
resultados prescritivos ao invés de resultados preditivos, visando adaptar-se às
dificuldades inerentes aos estudos dos campos sociais (Fleck, 2003).
Posterior ao método de pesquisa será apresentada a forma como os
conceitos foram operacionalizados no estudo. Indicadores de crescimento, definição
de traços organizacionais e arquétipos estão entre os principais conceitos. Além da
relevância da operacionalização dos conceitos, está a conexão entre os mesmos.
Os arquétipos se baseiam na identificação de traços organizacionais através de
certos padrões definidos na literatura. Os traços, por sua vez, dependem da
identificação de práticas institucionalizadas e assim por diante até que tal
concatenação alcança as informações coletadas.
O quarto capítulo tem por objetivo contextualizar o histórico das
organizações envolvidas, com os de suas indústrias e das economias envolvidas.
Tratará de maneira sintética a história da RFFSA e ALL, todas com principal foco de
atuação no Brasil, e o cenário político-econômico anterior e posterior ao processo de
25
privatização.
O quinto capítulo, a análise, executa a operacionalização descrita no
método. O objetivo é apresentar as práticas institucionalizadas identificadas, assim
como dos fatos que subsidiam tais elementos. Será argumentado como tais práticas
se posicionam no espectro de possíveis respostas aos desafios do crescimento.
Contudo, antes de apresentar as práticas de interesse, será descrito o processo de
transformação, citando suas motivações, etapas e ações sob a ótica dos desafios à
longevidade saudável (Fleck, 2006). Não é feito juízo de valor ou classificação
quanto ao estado geral da organização com relação à propensão à longevidade,
uma vez que esse é o objetivo do seguinte e último capítulo, Conclusão.
O capítulo final aborda as conclusões a cerca do estudo, respondendo às
questões propostas, bem como discutindo propostas para futuras pesquisas. Serão
sintetizados os efeitos positivos, ou seja, os elementos institucionalizados que
contribuem para a longevidade, e os efeitos negativos. A organização será
classificada dentro dos possíveis arquétipos identificados na revisão de literatura. Os
anexos ao final do texto trazem maiores detalhes sobre os dados analisados e sobre
a história da indústria e da empresa, em especial tópicos sobre a história do GP
Investimentos e sobre a evolução da indústria logística americana, pela sua
relevância como indicadora de tendências no mundo todo, inclusive Brasil.
26
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
A academia continua a se perguntar como se determinam os caminhos pelos
quais se deve gerir uma organização. Partindo-se de conceitos abstratos, é possível
compreender aspectos gerais sobre as decisões tomadas pelos gestores
organizacionais. Contudo, ao se discutir em detalhes tais conceitos, fica mais
complexo determinar critérios que definam se tais decisões são as mais corretas.
Sucesso é um desses termos complexos que ajuda a determinar uma
direção inicial para a discussão. Como saber se determinada organização alcançou
o sucesso? Diferente de analisar o resultado para um objeto de análise menor, como
uma nova política promocional que possui limites temporais e objetivos claros,
avaliar o sucesso organizacional depende de um horizonte de tempo virtualmente
infinito e reúne uma gama de objetivos muitas vezes de difícil avaliação de
realização. Um objeto de estudo desse gênero exige que se questione sobre
sucesso em condições adequadas, por exemplo, com um prazo condizente.
Uma abordagem possível relaciona sucesso com desempenho. Alguns
autores (Doyle, 1994; Brealey & Meyers, 2003) referem-se aos aspectos financeiros
(como lucro e retorno) como critério fundamental do sucesso, mas indicadores
operacionais (como volume produzido) e comerciais (como vendas) também são
comumente associados ao conceito. Mais que uma análise absoluta, dizer que uma
determinada gestão foi de sucesso implica uma avaliação relativa aos competidores
e ao próprio passado da organização. Já o sucesso do ponto de vista do
desempenho comercial implica um volume (ou receita) de vendas maior que o de
seus competidores e/ou do que os anos anteriores. Tal abordagem retrata o quanto
a organização absorve de recursos do seu ambiente (Pfeffer & Salancik, 1978).
Uma abordagem mais qualitativa e de difícil mensuração considera aspectos
mais subjetivos das organizações. Autores (Barnard, 1938) ponderam que a
longevidade, uma existência longa e duradoura, é o objetivo final das organizações e
a sua busca constante já seria suficiente para determinar o sucesso. Assim, quanto
mais velha a organização, mais longeva e, portanto, maior o seu sucesso. Essa
existência longeva surge da realização e renovação contínua de objetivos a serem
perseguidos. Também existem aqueles (Doyle, 1994; Cyert & March, 1963; Pfeffer &
Salancik, 1978) que relataram o papel fundamental que a relação entre a firma e os
diversos atores relevantes à sua existência têm sobre o sucesso das organizações.
27
Esses argumentos contribuem para um conceito de sucesso menos estático
e mais dinâmico, em oposição ao fracasso, que pode ser identificado com o fim da
existência de uma organização5. Por isso, muito mais do que apenas considerar o
lucro e receitas crescentes, ao questionar o sucesso da organização também é
preciso analisar em que medida ela está dedicando esforço para manter-se legítima
em seu ambiente e não descuidar das necessidades futuras em troca de um
sucesso momentâneo. A disponibilidade de recursos, de maneira geral, pode refletir
a saúde da organização, mas não é suficiente para representar o sucesso. Assim, o
sucesso organizacional pode ser entendido como a longevidade saudável6, ou quão
longa e ausente de dificuldades foi, é e será a vida da organização.
Dada a extensão temporal na qual as organizações podem ser analisadas e
o conceito de sucesso organizacional descrito, compreender os fenômenos
relacionados requer uma abordagem longitudinal. Portanto, o primeiro tópico deste
capítulo trata das trajetórias das organizações, de como podemos interpretar o
caminho histórico percorrido por elas. Crescimento, declínio e estagnação são
discutidos à luz de dimensões quantitativas e qualitativas.
Em seguida, conectando-se ao caso em questão, apresentam-se referências
na literatura sobre mudança organizacional, em especial as mudanças de trajetória e
a transformação organizacional. A primeira considerando indicadores quantitativos
das organizações, especificamente a mudança de trajetória declinante para trajetória
crescente, ou o chamado turnaround. A segunda mais orientada à discussão de
mudança em aspectos qualitativos das organizações, apresentando também os
aspectos de formação de traços.
Por fim, entendendo-se um pouco mais sobre trajetórias e mudanças,
aborda-se um modelo de referência para analisar como a formação de certos traços
organizacionais contribui para a construção da longevidade saudável. Discute-se em
maior detalhe cada traço e seus componentes a fim de oferecer insumos para
posterior operacionalização dos conceitos apresentados.
5 Não está no escopo desse estudo considerar organizações que possuam em seu objetivo um fim já declarado desde sua concepção como, por exemplo, o diretório de uma campanha política.
6 O termo saudável, “emprestado” da medicina, significa mais do que a ausência de doenças e dificuldades, mas o completo bem-estar físico, mental e social. Tal associação é de difícil tradução para o objeto organização, mas conjuga fielmente a ideia de interesse, equivalendo-se a uma maior chance de sobrevivência.
28
2.1 TRAJETÓRIAS ORGANIZACIONAIS
O termo trajetória transmite a ideia de trajeto e de tempo, uma seqüência de
passos tomados ou que virão a ser tomados. Existem palavras semelhantes que
podem sugerir nuances de interpretação diferente, como o termo evolução. Esse
termo é utilizado muitas vezes conotando progresso, ou uma trajetória positiva, mas
cientificamente, evolução nada mais é do que a história contada com suas
mudanças e relações causais.
Ao se analisar a trajetória de uma organização, é preciso considerar que tal
caminho pode ser visto de diferentes maneiras. A trajetória de um carro é uma
medição física e passível de representação por dimensões espaciais. Já a de uma
pessoa, também pode ser analisada espacialmente, mas não é incomum descrevê-
la através de dimensões não materiais, como acadêmica, profissional ou social.
Além disso, a trajetória (física ou não) pode tomar diferentes direções e
sentidos ao longo do tempo. Existe uma associação natural de trajetórias
ascendentes de certos indicadores a algo positivo para as organizações. Porém,
assim como uma pessoa que evolui profissionalmente com dificuldades no campo
social pode se “sentir incompleta”, uma organização deveria ponderar que
dificuldades surgem com o incremento significativo de seu tamanho. Dessa forma,
uma mudança de trajetória em determinada dimensão de análise vista como
negativa pode ter uma contribuição significativa para a saúde geral da organização
ao corrigir outras dimensões.
Um exemplo (Figura 2-1) é a reformulação pela qual a General Eletric
passou na década de 80, conglomerado americano com negócios principalmente em
energia, infra-estrutura e finanças. Dentre outras políticas adotadas por Jack Welch,
então CEO, foi sair de negócios onde a companhia não era capaz de estar nas duas
primeiras posições de mercado. Assim, apesar da queda de receita que seguiu nos
anos seguintes, a lucratividade da empresa manteve-se em patamares elevador e, a
partir daí, foi capaz de focar esforços no fortalecimento e renovação de
competências. Foi uma questão de tempo até recuperar o ritmo anterior de
crescimento nas receitas.
Portanto, crescimento, declínio e estagnação nas organizações devem ser
analisados sob um conjunto de variáveis amplo, pois nem sempre são aquilo que
parecem ser a primeira vista. Os tópicos a seguir detalham melhor quais aspectos a
29
literatura sugere que sejam considerados para essas possíveis trajetórias.
Figura 2-1: Trajetória da GE: crescimento, estagnação e turnaround.
Fonte: (Fleck, 2006)
2.1.1 Crescimento
Analisaremos inicialmente este tópico através de duas abordagens: uma
qualitativa e outra quantitativa. Após a sua apresentação, uma breve introdução de
causas e conseqüências do crescimento será feita. O tópico será concluído com a
descrição das formas pelas quais o processo é analisado na literatura, com especial
atenção para os modelos de ciclo de vida e as críticas a esses modelos, que dão
origem a outras abordagens.
Crescimento quantitativo está relacionado com o aumento de tamanho da
organização. Indicadores comumente utilizados para medir o tamanho de uma firma
são: número de funcionários, volume de vendas, receita, lucro, LAJIDA (lucro antes
de juros, impostos, depreciação e amortização, em inglês EBITDA), ativos, valor de
mercado, dentre outros. Contudo, cada um traz vantagens e desvantagens como
medidor e, geralmente, é importante analisar mais de um ao mesmo tempo para
poder se chegar a conclusões pertinentes sobre o crescimento organizacional.
Fleck (2001) discutiu como medir tamanho e crescimento e concluiu que
indicadores como receita/PIB e lucro/PIB são vantajosos sobre outros métodos. Seu
argumento consiste no fato de que o crescimento relativo ao crescimento econômico
é corrigido automaticamente para a inflação e é comparável ao longo do tempo,
entre firmas e entre indústrias. Outro artigo (Whetten, 1987) já havia relatado
também a importância de medir o crescimento relativo, sugerindo que o crescimento
30
poderia ser interpretado de maneira diferente se analisado dentro de populações
específicas, como uma indústria ou nicho.
Alguns autores (Penrose, 1980; Chandler, 1977) consideram que
determinadas indústrias não estão propícias a formação de grandes empresas
devido à presença de alguns fatores restritivos de tamanho. Parte desses fatores é
exógena à organização, definida pela indústria a qual pertence ou pelo mercado
onde atua, mas estes acreditam que fatores endógenos são mais relevantes para
limitar o tamanho organizacional. Outros (Starbuck, 1965; Pfeffer & Salancik, 1978)
propõem que há um limite natural para o tamanho a partir do qual as desvantagens
de ser maior superam as vantagens. Sugerem, por exemplo, que organizações
muito grandes têm sua capacidade de mudança reduzida pelo excesso de
burocratização, um efeito comumente relacionado com o processo de crescimento.
Outra linha de pesquisadores (Cyert & March, 1963; DiMaggio & Powell,
1983; Selznick, 1957) pondera o crescimento através da perspectiva da
institucionalização, com uma abordagem qualitativa da trajetória das firmas. Tais
autores baseiam-se na formação de comportamentos nas organizações como
parâmetros de análise e evidências de evolução. A vantagem dessa perspectiva é
que está diretamente relacionada com as decisões tomadas pelos gestores,
diferente da perspectiva quantitativa. Os números refletem nada mais do que essas
mesmas decisões. Essa lógica, baseada no aprendizado seqüencial, é uma das que
explica a burocratização como elemento restritivo do crescimento. A burocratização
é a sistematização de práticas e, se por um lado torna a organização mais eficiente,
por outro restringe sua capacidade de resposta.
Quanto às razões pelas quais as organizações crescem, Whetten (1987)
resume a três fatores causais: (1) como resultado da satisfação da necessidade de
venda de seus produtos e serviços; (2) como facilitador da dinâmica interna da
organização; e (3) como atenuador da incerteza e dependência externa. Chandler
(1977) por sua vez, sugeriu que as firmas possuíam basicamente dois tipos de
motivações para o crescimento: (1) produtiva, visando à melhor utilização dos
recursos existentes e/ou ganhos de escopo e escala; e (2) defensiva, cujo objetivo é
proteger determinado domínio de mercado. Fleck (2001) complementou a visão de
Chandler ao adicionar os conceitos de expansões híbridas e expansões nulas. A
primeira tratando-se de um movimento com ambos os motivos de Chandler e a
segunda uma expansão onde nenhuma das duas motivações de Chandler é
31
alcançada. Por fim, Penrose (1980) citou que existem líderes organizacionais cuja
motivação para crescer é formar um império ao invés de torná-la longeva e que o
crescimento advindo da primeira motivação não seria saudável para a firma.
De maneira geral, o crescimento é descrito (ou modelado) na literatura como
um processo evolutivo. A base de parte deles é o modelo do ciclo de vida, uma
analogia com a evolução de indivíduos de sistemas orgânicos, como os seres
humanos. Por esse modelo, cada organização possui algumas fases características
pelas quais passará ao longo de sua existência. Dois autores resumiram os modelos
até então existentes em quatro estágios: empreendedor; coletividade; formalização e
controle; e elaboração e estrutura (Quinn & Cameron, 1983 apud Whetten, 1987).
Dentre as principais críticas a essa modelagem do processo de crescimento
está o fato de que em geral se baseiam num conjunto de passos lineares e
seqüenciais. Outro ponto importante é que tais ciclos possuem uma lacuna crucial
quando comparados com os equivalentes para seres vivos: os modelos
organizacionais se encerram na maturidade da organização enquanto que os
biológicos se encerram com declínio e morte. Greiner (1998), por exemplo, também
sugeriu que as organizações possuem fases em seu processo evolutivo. Contudo,
elas se defrontam com períodos de crise que, se não superados, podem levar ao
declínio. Além disso, ponderou que tais fases não são facilmente determinadas uma
vez que durante a transição de fases, características de ambas as fases se
sobrepõem.
O grande mérito do modelo de ciclo de vida é que oferece uma visão
qualitativa da forma como as organizações evoluem. Essa visão permite aos
gestores agir sobre as causas reais ao invés de debater sobre resultados. O modelo
supracitado, por exemplo, discute os desafios que cada fase apresenta, as
respostas prováveis e como tais respostas levam a uma seqüência de novos
desafios e respostas. Sua suposição é que “o comportamento dos indivíduos é
determinado primariamente por eventos e experiências passadas, ao invés do que
vem à frente” (Greiner, 1998, p. 55). Ele também introduz no seu modelo a ideia de
configuração, ou seja, uma combinação de possíveis escolhas coerentes entre si de
um conjunto de variáveis relevantes.
Mintzberg (1985) também sugeriu olhar as organizações através de
configurações e explicou como tais configurações podem evoluir através de uma
perspectiva política. Posteriormente (Mintzberg, 1991) utilizou a ideia de
32
configurações para uma perspectiva estratégica das firmas. Ele definiu configuração
como “qualquer forma de organização que é consistente e altamente integrada” (p.
56). Esse autor preferiu associar às suas diferentes formas diferentes pressões
pelas quais as organizações passam ao longo de sua história. Ao invés de focar seu
modelo numa seqüência provável, ele colocou que as organizações podem assumir
a mesma forma em diferentes momentos. Por exemplo, a forma empreendedora
pode ser assumida em start ups ou durante turnarounds, duas situações em que as
organizações sofrem pressões por um direcionamento único, segundo ele.
2.1.2 Declínio
Estruturalmente, declínio compartilha inúmeras características com
crescimento, pois ambos são vistos aqui como trajetórias. Ambos são analisáveis
tanto quantitativamente quanto qualitativamente. Também se aplica com qualidade a
abordagem do ciclo de vida, ainda que a literatura existente para declínio seja muito
mais restrita. Diferenças surgem principalmente quando analisadas as causas e
motivações, mas a apresentação desse tópico será semelhante a do anterior.
Semelhante à trajetória de crescimento, os indicadores de tamanho também
são comumente utilizados para analisar e identificar o declínio. Dessa forma, os
mesmos índices descritos anteriormente se aplicam à análise do declínio. As
vantagens que se adquire com um tamanho maior começam a desaparecer quando
o declínio está em vigor. As conseqüências também são opostas. Por exemplo, ao
invés de dar oportunidades de crescimento profissional para seus recursos
humanos, o declínio aumenta a competição interna, geralmente lesiva à firma. A
redução na disponibilidade de recursos eleva o grau dos conflitos e escolhas
passam a ter que ser feitas em condições de emergência, não dando espaço para
análises mais profundas.
A princípio, o declínio sob o ponto de vista quantitativo, envolve mais
atenção dos gestores do que outras trajetórias. Identificar redução de tamanho pode
significar que qualquer que seja a causa do problema, esta já ocorreu (ou continua
ocorrendo) há algum tempo e, por esse motivo, é mais difícil de ser revertida ou
respondida do que se fosse antecipada. Além disso, como responsáveis pelos
resultados, suas carreiras ficam em risco nessa situação.
O declínio parece possuir uma correlação mais forte e clara com a análise
quantitativa, mas também se permite uma abordagem qualitativa. Uma antítese ao
33
exemplo de Jack Welch citado anteriormente, é o da Hanson Plc, conglomerado
britânico que viu todos os seus indicadores de tamanho crescendo com a sua
estratégia de aquisições através de endividamento e asset stripping. Porém, estava
ficando cada vez mais fragmentada à medida que empresas e culturas distintas
eram incorporadas ao conglomerado, porém enfatizando a total descentralização. A
trajetória teve seu fim em 1996, quando foi repartida em quatro empresas, devido,
principalmente, a falta de perspectivas de criação de valor para os acionistas, pois já
não havia empresas candidatas à aquisição do tamanho que o conglomerado havia
alcançado e os negócios já controlados eram apenas geradores de caixa.
Dantas (2007) descreveu a revisão de Weitzel & Jonsson (1989) sobre
declínio, onde os últimos constataram que esta trajetória era descrita como: uma
redução de algum indicador de tamanho da organização, como força de trabalho,
participação de mercado, ativos, etc.; um estágio no ciclo de vida da organização;
estagnação interna ou ineficiência; fracasso em reconhecer sinais internos ou
externos de alerta sobre mudanças necessárias para manutenção de
competitividade; fracasso em realizar adaptação ou mudança para enquadrar-se às
demandas do ambiente externo.
Weitzel e Jonsson (1989) descrevem o processo de declínio também através
de um modelo de ciclo de vida. Em sua sugestão, o processo possui cinco etapas -
cegueira, inércia, ações falhas, crise e dissolução - e cada uma exige diferentes
respostas e exibe diferentes características. Como atestado anteriormente, o
fracasso, em oposição ao sucesso, é claramente identificável e está representado
através do último estágio desse processo, a dissolução.
O declínio surge do descompasso entre o que é esperado e o que é
praticado pela organização. A formação de seu conjunto de comportamentos estaria
evoluindo em uma direção diferente daquela na qual estaria mais adequada ao seu
meio. Dessa maneira, as possíveis causas do declínio são: uma mudança no
ambiente; mudança nas demandas internas; falta de capacidade de adaptação; ou
baixa capacidade de influenciar o seu meio.
Oliver (1991) foi mais abrangente ao focar seu estudo na compreensão das
diversas possíveis respostas a pressões institucionais, mas identificou os mesmo
elementos anteriores entre o rol de possíveis respostas. Isso significa que a baixa
capacidade em qualquer uma delas reduz as chances de sobrevivência da
organização.
34
Os autores Weitzel e Jonsson (1989) fizeram questão de destacar que o
processo de declínio pode surgir em qualquer etapa da história da organização,
inclusive nos primeiros estágios. Referiram-se a Stinchcombe (1965) e seu conceito
de deficiência das inovações7, o qual explica as altas taxas de fracasso de novas
organizações, como um exemplo para esse argumento. Já Greiner (1998) pondera
que justamente as respostas necessárias para superar uma fase do crescimento são
as causadoras dos desafios de uma fase seguinte. O ciclo de vida de declínio de
Weitzel e Jonsson (1989), portanto, não só complementa as etapas dos modelos de
ciclo de vida, em especial o de Greiner (1998), como também explica como o
combate às causas do declínio contribuem para o crescimento.
Declínio pode ser definido como: um estado no qual as organizações entram
quando falham em antecipar, reconhecer, evitar, neutralizar ou adaptar a pressões
internas e externas que ameaçam a sobrevivência no longo prazo (Weitzel &
Jonsson, 1989).
Essa definição é incompleta em alguns sentidos. Primeiro, ao não declarar
explicitamente que tais falhas devam ocorrer constantemente. Um único evento de
não antecipação não indicaria declínio. As organizações passam por períodos de
ajustamento e tais períodos não constituem declínio. Segundo, considera que tais
competências só são relevantes ao declínio quando aplicadas a ameaças à
sobrevivência no longo prazo. Contudo, se a falta de capacidade de adaptação é
identificada após uma tentativa frustrada de adaptação deliberada, independente da
criticidade da adaptação, isso sugeriria certa fraqueza nessa competência,
considerada condição necessária à sobrevivência no longo prazo.
2.1.3 Estagnação
A grande maioria dos autores define estagnação como a primeira fase do
declínio. Justifica-se o seu detalhamento em separado porque é um bom
determinante de mudança de trajetória. Dadas as discussões anteriores sobre
abordagens quantitativas e qualitativas, é preciso destacar que uma trajetória de
estagnação poderia ser aceitável em condições adversas, como crises econômicas.
Indicadores de declínio devem ser diferenciados de simples ajustes a
7 Tradução livre da expressão “liability of newness”.
35
mudanças ambientais ou da consolidação de ganhos organizacionais (Weitzel &
Jonsson, 1989). Reduções de tamanho não diminuem necessariamente a habilidade
de uma organização sobreviver, mas a perda de capacidade competitiva certamente
o faz. Geralmente, estratégias de corte de custos ou a saída de mercados podem
ser impropriamente vistas como declínio e, por isso mesmo, desconsideradas como
opções viáveis para evitar a perda da competitividade no longo prazo.
Contudo, da mesma forma que condições ambientais como crises não são
permanentes, a estagnação aceitável deve ser vista igualmente. Assim, a trajetória
de estagnação contribui ao sugerir uma explicação alternativa para os modelos de
ciclo de vida que não são capazes de prescrever o tempo de permanência em cada
fase, indicando que organizações estagnadas por muito tempo na verdade estariam
entrando em um processo de declínio. Por outro lado, permite abordar a análise de
trajetórias organizacionais através de uma perspectiva de longo prazo, não se
contendo a mudanças temporárias nos indicadores de tamanho.
Dentro do processo de declínio, Meyer e Zucker (1989) identificaram
organizações que sobreviviam por anos a fio em um estado de fracasso
permanente, não evoluindo na direção da dissolução final, mas também incapazes
de retornar a um estado saudável. Eles sugeriram que essa situação é fruto, por um
lado, de conflitos entre as partes interessadas que impedem que mudanças sejam
realizadas, mas que por outro, sustentam a organização, pois ainda servem aos
interesses, mesmo em condições de baixa eficiência.
A falta de habilidade em mudar é resultado da inércia e alguns autores
(Starbuck & Hedberg 1977; Nystrom & Starbuck 1984; Sull, 1999) sugerem que a
semente dessa inércia é plantada durante o crescimento e sucesso temporário das
firmas. As razões para a inércia podem ser explicadas por (Sull, 1999):
• O desejo pelo sucesso é substituído por uma devoção ao status quo;
• A orientação estratégica da empresa pode cegá-la às transformações que
ocorrem no ambiente externo e interno;
• Quando uma empresa obtém sucesso, seus processos ganham vida
própria e se transformam no objetivo final e não no meio para alcançá-lo;
• O relacionamento com as partes interessadas da empresa pode criar laços
fortes a partir de seu sucesso, porém podem limitar suas ações de mudança;
• Empresas de sucesso costumam transformar valores em dogmas, criando
regras rígidas e regulamentações que dificultam mudanças.
36
Por sua vez, Whetten (1987) comenta que organizações de sucesso se
tornam confiantes em excesso em sua habilidade de dominar o mercado. Assim,
perdem sua capacidade de antecipar problemas e só respondem a uma perda de
competitividade quando se encontram em uma situação de crise, sendo necessário
adotar medidas extremas desnecessariamente. Ele comentou que tais organizações
faziam parte de uma segunda possível explicação para o declínio. Em geral se
tratavam de instituições maduras, que mantinham taxas de crescimento modestas e
constantes, mas que haviam perdido sua capacidade de responder rapidamente a
mudanças ambientais.
Apesar das diferentes definições para fracasso, a menor adaptabilidade e a
redução da quantidade de recursos que absorvem parecem ser consenso entre os
que estudam o fracasso das empresas como características diretamente
relacionadas ao processo de declínio (Mellahi e Wilkinson, 2004). Obviamente, é
necessário olhar ao mesmo tempo ambiente e práticas gerenciais para compreender
completamente as causas do aparente declínio quantitativo e julgar corretamente em
que medida esse declínio atinge a trajetória de longo prazo das organizações.
2.2 MUDANÇA ORGANIZACIONAL
Até agora as trajetórias foram objetos isolados, ainda que em alguns
momentos fosse citada a relação entre elas. A discussão anterior sobre trajetórias
organizacionais estabeleceu forte relação com a avaliação qualitativa da evolução
das organizações. Tal abordagem mostrou-se mais coerente com uma visão de
longo prazo das organizações e do seu sucesso.
O tópico atual discutirá algumas abordagens para a compreensão dos
processos relacionados com a mudança das organizações. Assim, conhecendo as
trajetórias e as relações causais dos processos de crescimento, declínio e
estagnação, os praticantes da área de administração podem atuar mais facilmente
para corrigir a direção que suas firmas tomam. Duas perspectivas serão
apresentadas: a primeira considerando o chamado turnaround, um processo de
mudança específico na trajetória organizacional de declínio para uma de
crescimento, em geral sob o ponto de vista quantitativo e de curto prazo; a segunda
analisando, no longo prazo, os aspectos relativos à formação, evolução e revolução
do caráter organizacional, ou o conjunto de traços que definem a “personalidade”
cada organização (Andrade Filho, 2003).
37
2.2.1 Reestruturação
O termo em inglês turnaround é abrangente também no que tange o período
de tempo analisado. Algumas vezes entende-se que a recuperação de um curto
período de declínio já é considerado um turnaround8. Porém o uso mais comum é
quando turnaround refere-se à mudança de trajetória de uma firma que apresenta
um declínio consistente e/ou ameaçador.
O termo reestruturação é utilizado com sentido semelhante. Assim como no
caso da palavra turnaround o seu uso abrange desde reorientações estratégicas em
momentos confortáveis até respostas a crises severas, mas em geral está associado
diretamente com as estratégias adotadas como: reorganização de portfólio,
demissões e mudança de estrutura de capital (Bowman & Singh, 1993). Por sua vez,
o termo turnaround denota claramente a ideia de mudança de trajetória e, por isso,
será utilizado prioritariamente.
Juntamente com o forte movimento de aquisições e formação de
conglomerados da década de 70 no mercado norte-americano, a literatura
acadêmica investiu no estudo do processo de mudança de trajetória de
organizações em declínio. Diversos autores (Bibeault, 1982; Hofer, 1980; Robbins &
Pearce II, 1992) se dedicaram a codificação de procedimentos para executar as
operações de transformação, visando fundamentalmente à mudança no
desempenho financeiro e operacional.
Nesse contexto, as estratégias de turnaround em geral eram vistas como
conseqüência natural dos processos de aquisição de empresas. Contudo a grande
maioria dos autores descreve seus procedimentos independentes da situação de
controle da organização. Ou seja, qualquer organização, recentemente adquirida ou
há muitos anos independente, pode precisar e iniciar um processo desse tipo. Afinal,
nenhuma companhia é imune a tempos difíceis (Hofer, 1980). Mais que isso, os
casos estudados muitas vezes vinham de mudanças no corpo executivo das
organizações e não no grupo de acionistas, ocasionadas pela ameaça iminente à
sobrevivência da firma. Esse tipo de estratégia é sugerido como a principal
alternativa quando uma empresa alcança a fase da crise no processo de declínio
8 Por exemplo, Robbins e Pearce II (1992) operacionalizaram seu conceito de turnaround num prazo de dois anos consecutivos de declínio com posteriores dois anos consecutivos de crescimento.
38
(Weitzel & Jonsson, 1989).
Hofer (1980) classifica de maneira detalhada as possíveis orientações de
processos desse gênero. Há duas grandes categorias de turnaround no nível de
unidades de negócio9: estratégico e operacional. O primeiro se divide com relação à
permanência ou não no mesmo negócio e a profundidade da mudança da posição
competitiva. Já o segundo pode enfatizar a melhoria das receitas, custos, ativos ou a
combinação destes. Apesar da classificação, tal separação na prática não é simples,
uma vez que alterações em uma dimensão podem envolver modificações na outra
para que sejam mais efetivas.
Ele complementa dizendo que no segundo caso qualquer ação deve ser
considerada para ajudar a alcançar as metas, fazendo sentido ou não para a
estratégia de longo prazo. Mas Weitzel e Jonsson (1989) ponderam que os objetivos
do turnaround não podem ser focados apenas na sobrevivência de curto prazo, pois
são esses objetivos que determinam os tipos de reduções a serem feitos. A
diferença entre as opiniões está na identificação da causa da necessidade de
mudança: enquanto os dois últimos referem-se a períodos de grave crise, o primeiro
classifica diferentes métodos para diferentes situações.
Além de diferentes causas, os processos podem possuir também diferentes
objetivos, ainda que o contexto seja o mesmo: transformar uma trajetória de
desempenho declinante em uma crescente. Por exemplo, quando uma companhia
adquire outra pode estar buscando criar valor através da identificação de sinergias
ou através da reestruturação do negócio adquirido e valorização dos ativos
(Chatterjee, 1992). Em ambos os casos processos de turnaround podem ser
iniciados. Porém, no primeiro a mudança contribuiria para a integração e para o
crescimento no longo prazo e o segundo tende a focar na valorização das ações.
Porter (1987) também relatou empresas que adotam uma estratégia de crescimento
baseada na aquisição e reestruturação de empresas com problemas.
O processo de turnaround é aqui interpretado contendo quatro grandes
etapas: (1) constatação, onde é exigida da organização alguma atitude para
responder a uma situação crítica; (2) análise, na qual se identifica a situação atual e
possíveis caminhos para saída; (3) reequilíbrio financeiro-operacional, no qual se faz
9 A perspectiva de executar o turnaround em uma unidade de negócio é diferente de se tentar realizar o mesmo em uma corporação com várias unidades.
39
os cortes e saídas necessários à sobrevivência; e (4) recuperação, onde se fortalece
a posição remanescente após os cortes. Estudos que possuem mais etapas por
vezes descrevem o mesmo processo, porém em um nível de análise mais baixo,
oferecendo mais detalhes sobre o passo a passo mantendo um foco maior em
alguma das etapas, como a de reequilíbrio, às vezes chamada de desinvestimento10.
A primeira etapa é o início do processo de reestruturação. Alguma parte
interessada que detém maior poder ou o comum acordo entre várias partes, percebe
a situação crítica e a ameaça à sobrevivência. O primeiro passo referido na literatura
consiste em instituir uma nova liderança (Weitzel & Jonsson, 1989; Mintzberg, 1991;
Hofer, 1980). Os fundamentos por trás da renovação do quadro executivo citados
em geral são: centralização decisória; consolidação de objetivos e direção;
demonstração pública de cenário de mudança das práticas; instituir poder para
mudar. Se essa etapa for mais influenciada pelo desejo de manutenção do caráter
do que pela necessidade de fortalecimento, a inércia do comportamento da
organização afetará a qualidade do diagnóstico da fase seguinte e diminuirá a
legitimidade da ação. Por exemplo, um turnaround operacional pode ser escolhido
quando uma readequação estratégica é necessária.
A segunda fase, Análise, ao ponderar a situação corrente a partir de um
novo ponto de vista (por exemplo, do novo executivo) busca identificar o grau de
severidade da crise, assim como reavaliar a posição competitiva nos diferentes
negócios ou mercados de atuação. O declínio e a situação de crise sugerem
escassez de recursos (Weitzel & Jonsson, 1989) e o grau de severidade da crise
indica quão escasso de recursos a organização está. A reavaliação da posição de
saúde estratégica e operacional (Hofer, 1980) indicará as áreas que tem maior
condição de contribuir para a sobrevivência e aquelas que menos contribuem.
Claramente os negócios mais fracos e mais distantes do contexto do plano
de reestruturação, ainda que promissores no futuro, em geral são descartados.
Alguns estudos abordam critérios de seleção e priorização de tais desinvestimentos.
Esta é uma etapa de identificação e projeção de recursos disponíveis, recursos
10 Tradução livre de retrenchment.
40
ausentes, desperdícios e folgas organizacionais11. Às vezes o início do processo é
tardio demais e a organização já alcançou um estágio onde não se enxerga outra
solução senão a liquidação devido à falta dos recursos necessários para a mudança.
A terceira fase é a etapa de reduções propriamente dita. É o momento onde
os conflitos são mais intensos e os riscos são maiores. Nenhuma das partes
envolvidas quer sair perdendo e as negociações são difíceis: varejistas não reduzem
suas margens, fornecedores não aumentam o prazo de pagamento e sindicatos não
querem demissões. Os riscos são maiores porque os planos até então só existentes
no papel possuem falhas e pode haver retaliações das partes prejudicadas. Além
disso, a forma como a estratégia deliberada é executada tem conseqüências para a
qualidade da etapa seguinte. Por exemplo, ao desistir de um negócio na ponta da
cadeia produtiva através de um spin-off a organização ainda mantém certo controle,
mas não capitaliza financeiramente pela saída como seria no caso de uma venda.
Uma atividade associada a essa etapa é a definição de novas práticas de
gestão, outra fonte de conflito. A implantação dessas práticas pode se dar nessa
fase ou na fase seguinte. Se as práticas e crenças institucionalizadas forem
identificadas como parte da causa do declínio, a organização poderá sofrer um
choque cultural se resolver enfrentá-las. Da mesma maneira que a alta gestão às
vezes não é capaz de mudar seus hábitos para evitar a crise, o mesmo pode
acontecer com o resto dos funcionários e uma nova onda de cortes e renovação se
segue. Obviamente, uma das conseqüências desses cortes é a perda de recursos
valiosos involuntariamente, seja porque bons funcionários ou fornecedores procuram
outras empresas, seja porque houve erro na escolha dos recursos eliminados.
Por fim, na quarta fase, investem-se os recursos obtidos na fase anterior na
formação ou no fortalecimento das vantagens competitivas da parte da empresa que
permaneceu. Novamente, dependendo da severidade da crise, pode ser que os
cortes sejam na verdade apenas um redirecionamento de recursos não tão radical.
O resultado da fase anterior pode ser considerado a estagnação da trajetória
declinante de desempenho, enquanto que essa fase constitui o momento onde serão
executadas as ações que permitem uma trajetória de crescimento do desempenho.
11 Folga organizacional são recursos atuais ou potenciais disponíveis, incluindo pessoas, capital, legitimidade, dentre outros. Uma discussão mais aprofundada será apresentada posteriormente.
41
Devido ao papel de “carrasco” assumido pela nova gerência na fase anterior, às
vezes um novo gestor é chamado para assumir a empresa após esta reorganização.
Esta fase demonstra que, diferentemente das reestruturações, um processo
de turnaround envolve mais do que reequilibrar finanças ou operações. Para que
uma ação de inflexão de trajetória de desempenho traga resultados duradouros é
preciso que a etapa de redução de tamanho considere as necessidades futuras e as
causas-raiz que levaram ao declínio.
Assim como os modelos de ciclo de vida apresentados anteriormente, as
etapas do processo de turnaround não são completamente separadas umas das
outras. Dependendo de cada caso, a sobreposição das atividades descritas em cada
fase é maior ou menor. A figura a seguir exemplifica as fases do processo
analisadas sob a ótica de uma trajetória organizacional.
Figura 2-2: Exemplo de trajetória e fases do turnaround.
Fonte: autor.
2.2.2 Formação e Transformação do Caráter
No início de suas vidas, as firmas não possuem história, somente seus
indivíduos, e para cada estímulo que recebe, uma resposta é definida. Contudo, à
medida que o tempo passa, tais respostas passam a constar no rol de soluções da
0
2
4
6
8
10
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14
16
18
20
1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000
Ind
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de
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o
Ano
Exemplo de trajetória e fases do turnaround
Declínio Estagnação Crescimento
Reequilíbrio
Recuperação
Constatação eDiagnóstico
42
organização e toda vez que o mesmo estímulo ou outro semelhante surge, a
tendência natural é que se utilize o conjunto de respostas existentes. Assim, com o
tempo, as organizações acumulam aprendizado e experiência, características que
denotam a sua evolução.
Esses padrões de resposta são: (1) históricos, visto que refletem o
desenvolvimento histórico de cada firma; (2) integrados, dado que se repetem ao
longo do tempo; (3) funcionais, uma vez que ajudam na adaptação da firma às
pressões externas e internas; (4) dinâmicos, à medida que novas respostas podem
ser criadas para atender a novas políticas e demandas. Esse conjunto de
características é o que define o caráter organizacional (Selznick, 1957).
O processo pelo qual se forma o caráter organizacional ocorre como
conseqüência da aceitação de compromissos irreversíveis. São escolhas feitas em
processos de decisões críticas que não permitem aos gestores voltarem atrás, a não
ser à custa de conflitos e crises. Cada decisão crítica envolve o equilíbrio e a
negociação de interesses dos grupos que formam as organizações. Esses
momentos surgem ao longo do tempo e, a cada decisão tomada, menos espaço há
para caminhos alternativos. Quanto menor a abertura para que a organização
responda a estímulos, mais definido está o caráter organizacional. O caráter é uma
identidade própria, pois é resultado da história específica de cada organização.
A construção do caráter organizacional é evidência de que certa firma está
se tornando uma instituição: ela deixa de ser uma ferramenta e se torna fonte de
integração de grupos, de satisfação de indivíduos e oferece garantias para seus
membros. Os padrões de resposta das organizações são identificados por Selznick
(1957) como evidências desses processos de institucionalização e de infusão de
valores. Segundo o autor a institucionalização é “o processo que ocorre em uma
organização ao longo do tempo, refletindo sua história particular, as pessoas que
nela estiveram, os grupos que incorpora e seus interesses comuns e a forma como
se adaptou ao ambiente”.
Ao assimilar determinada escolha ao seu caráter, a organização reforça
suas práticas para agir de acordo com seus valores. Crenças e valores são
percebidos como esquemas interpretativos compartilhados pelos membros da
organização (Oliver, 1992). Essa defesa dos valores desenvolve competências que
capacitam a organização a ser cada vez mais eficiente naquele aspecto. Como
crença coerente dos grupos que compõem a organização, os valores são elementos
43
que ajudam a mantê-la unida. Mais que isso, dota a organização da capacidade de
sobreviver além das pessoas que a compõem, passando suas características de
geração para geração.
Contudo, essa especialização tem como conseqüência a redução da
capacidade de executar outras atividades. Selznick (1957) apresentou como os
partidos políticos americanos desenvolvem a capacidade de absorver rapidamente
novas ideias e forças sociais, mas incapazes de garantir a execução de suas
demandas dado o baixo envolvimento a organização. Em oposição, o partido
comunista bolchevique possuía um alto grau de envolvimento de seus membros
devido à sua natureza de berço de combate pelo poder, mas que posteriormente
dificultou a capacidade de absorver novas ideias. Assim, ao mesmo tempo em que a
institucionalização fortalece e desenvolve certas competências e a habilita a ser
mais eficiente em certos modos de resposta, ela também cria dificuldades à
sobrevivência da firma ao trazer limitações de resposta.
O conceito de competências dinâmicas (Teece, Pisano, & Shuen, 1997), que
objetivou identificar a fonte da vantagem competitiva (Porter, 1985) sustentável,
também está fortemente fundamentado no papel que a evolução histórica e decisões
passadas têm na capacidade de formação e renovação de suas forças.
Andrade Filho (2003) simplificou o conceito de caráter organizacional
resumindo este ao conjunto de traços que uma organização possui. Por sua vez,
definiu traço organizacional como “uma característica adquirida pela organização ao
longo de sua existência, seja no início ou não de sua formação, resultante de um
processo de institucionalização”. Fleck (2004) definiu traço como um comportamento
consistente que a organização exibe ao longo do tempo. Para ela, é um tipo de
resposta da empresa a um desafio gerencial associado ao processo de crescimento
organizacional (Andrade Filho, 2003). A Figura 2-3 caracteriza o processo de
formação de traços e do caráter.
Essa análise sugere que quanto mais longa a existência de uma firma, maior
a tendência de que ela tenha se desenvolvido como uma instituição e cada vez mais
rígido seu caráter se tornaria. Nesse caso, alterações no ambiente institucional ou
na força das coalizões internas (Cyert & March, 1963) seriam eventos certos de
ocasionar declínio organizacional devido à incompatibilidade da organização com o
meio em que vive.
44
Figura 2-3: Desenvolvimento do caráter organizacional.
Fonte: (Andrade Filho, 2003).
Da mesma forma que existem processos que infundem práticas e valores,
também existem aqueles que os transformam ou anulam. A esse fenômeno,
denominamos deinstitucionalização, que se refere a “perda de legitimidade de uma
prática ou procedimento como resultado da contestação da organização ou falha na
reprodução de ações previamente legitimadas ou dadas como certas” (Oliver, 1992).
A presença desse conceito no contexto da evolução organizacional contribui para
complementar os teóricos da institucionalização com relação à explicação dos
motivos pelos quais certos comportamentos organizacionais não persistem ao longo
do tempo. Mais que isso, se torna um fundamento importante para compreender
como as organizações mudam seu caráter e seus comportamentos.
Selznick (1957) destacou o papel que a liderança institucional tem na
formação do caráter. Ele sugere que tais líderes são mais importantes para a
sobrevivência da organização em momentos críticos e que, uma vez
institucionalizados os modos de respostas e critérios de decisão, a firma possui os
meios necessários para sobreviver. Determina as seguintes funções para eles: (1)
definir a missão e papel institucional; (2) incorporação institucional de propósito; (3)
defender a integridade institucional; e (4) organizar conflitos internos. Essas
responsabilidades envolvem a constante reavaliação das demandas internas e
externas e o seu re-balanceamento.
O líder pode ser uma fonte de mudança, apesar de sua responsabilidade
45
como defensor dos valores. Ele pode enxergar dentro da organização o surgimento
de contestações e rejeições às práticas antigas e agir para renová-las ou protegê-las
dependendo do seu diagnóstico. Pode existir, por exemplo, um novo equilíbrio de
poder dentro da organização que exige a redefinição de seus valores. A adoção de
uma nova prática pode envolver diferentes níveis de contestação das práticas
correntes. Quanto maior a divergência entre o novo e o velho, mais difícil, custoso e
arriscado se torna o processo.
Elementos que pressionam a mudança do caráter também podem surgir
externamente à organização. Teóricos do novo institucionalismo atribuem ao
ambiente institucional a razão pela qual as organizações adotam certas práticas.
Assim, da mesma maneira que as pressões exercidas por competidores, clientes e
fornecedores podem sugerir determinado comportamento em uma época, alguns
eventos podem remodelar o comportamento de uma parte do campo e refletir em
conseqüências para o comportamento da organização.
A seguir um resumo sobre pressões relacionadas à mudança do caráter das
organizações.
Tabela 2-1: Antecedentes da Desinstitucionalização.
Fonte: (Oliver, 1992).
2.3 ARQUÉTIPOS DE SUCESSO E FRACASSO ORGANIZACIONAL
O modelo de arquétipos de sucesso e fracasso organizacional (Fleck, 2006)
é coerente com a literatura apresentada e com o tema em questão. Ele absorve, ao
mesmo tempo, tanto a abordagem quantitativa de trajetórias, quanto e,
principalmente, a abordagem qualitativa. Além disso, é construído sobre os pilares
da literatura que analisa o sucesso e crescimento organizacional (Chandler, The
Visible Hand, 1977; Penrose, 1980; Barnard, 1938), o fracasso e declínio (Weitzel &
Nível de Análise Pressões Políticas Pressões funcionais Pressões sociais
Crescente crise de
desempenho
Mudança na utilidade
econômica
Fragmentação social
crescente
Interesses internos
conflitantes
Crescente especificidade
técnica
Continuidade histórica
decrescente
Crescente pressão
tecnológica
Crescente competição por
recursos
Mudanças nos valores e
regras institucionais
Mudança na dependência
externa
Eventos e dados
emergentes
Crescente desagregação
estrutural
Organização
Ambiente
46
Jonsson, 1989; Meyer & Zucker, 1989), institucionalização (DiMaggio & Powell,
1983; Cyert & March, 1963; Oliver, Strategic Responses to Institutional Processes,
1991), arquétipos organizacionais (Mintzberg, 1991; Miller & Friesen, 1978), além de
outros autores. Por fim, é coerente porque se propõe a analisar as condições
necessárias para a longevidade saudável. Assim, é mais útil para a prática da
gestão empresarial e conclusivo para a academia ao oferecer um resultado
prescritivo ao invés de preditivo. Essa é uma grande vantagem para abordar temas
das ciências sociais, pois em geral as variáveis envolvidas estão em grande
quantidade e muitas são desconhecidas.
Seu estudo original partiu da comparação entre a história da General Eletric
(GE) e da Westinghouse (WH), duas companhias americanas centenárias,
inicialmente do setor industrial elétrico, que tiveram destinos bem diferentes.
Enquanto a primeira sempre apresentou crescimento, a segunda terminou sendo
partida e vendida para diferentes empresas no final do século XX. Suas pesquisas
identificaram um conjunto de traços organizacionais diametralmente opostos que
justificam em grande parte suas diferentes trajetórias. Como resultado, a autora
sugeriu um modelo de requisitos para a longevidade saudável, definindo um
referencial de padrões de respostas que contribuem para o sucesso no longo prazo
e outro que dirige a organização para o fracasso. Esses padrões são chamados de
desafios ou traços organizacionais.
Fleck (2006) sugere que todas as organizações habitam um continuum de
possíveis estados de propensão a dois arquétipos ideais extremos: um de
propensão à autodestruição e outro de propensão à auto-perpetuação. Como
estados ideais, as firmas nunca serão definitivamente auto-perpetuáveis ou
autodestrutivas. A classificação nesses arquétipos depende de quão próximo os
padrões de respostas de cada firma estão daqueles identificados pela autora.
Respostas positivas sugerem a auto-perpetuação por aproximarem a organização
das condições necessárias ao sucesso no longo prazo e as negativas sugerem a
auto-destruição por aproximarem a organização do declínio e fracasso.
Diferentes respostas para o mesmo desafio podem e coexistem
temporalmente. Os traços organizacionais formados não seguem o padrão formado
nas empresas de referência e por esse motivo um comportamento pode ser às
vezes positivo e às vezes negativo dentro de um desafio. Além disso, os desafios
possuem sobreposições de eventos que normalmente os caracterizam e a resposta
47
dada pela organização a esses eventos pode ser positiva sob o prisma de um
desafio, mas negativa sob o prisma de outro.
Figura 2-4: Modelo de Requisitos de Propensão à Longevidade
Fonte: Fleck (2006) apud Dantas (2007).
A
Figura 2-4 demonstra as relações existentes entre os desafios propostos
48
por Fleck (2006) e os principais processos identificados por ela como condições
necessárias a longevidade saudável e sucesso no longo prazo.
Uma adaptação ao modelo de Fleck (2006) foram feitas para esse estudo.
Primeiro, um estado intermediário entre o arquétipo de auto-destruição e auto-
perpetuação foi criado, nomeado arquétipo de sobrevivência. Tal possibilidade já
havia sido ponderada em estudos anteriores (Rodrigues, 2005; Oliveira, 2006) em
seu método de análise, classificando as respostas para cada desafio em termos de
intensidade, definindo uma descrição específica para cada nível de intensidade.
O novo arquétipo aqui proposto, de sobrevivência, também é um arquétipo
ideal, na medida em que idealiza um conjunto de características, assim como os
arquétipos originais. Contudo, diferente destes, pois não se trata de extremos, mas
justamente de uma condição intermediária. Ao invés de combinações de respostas
que aproximam a organização de um dos pólos, o arquétipo sugere um conjunto que
afasta a organização dos pólos. É um arquétipo de negativas: a organização
sobrevivente é não auto-destrutiva e/ou não auto-perpetuável.
Tal arquétipo contribui também para preencher uma dificuldade
metodológica: muitas vezes a análise dos fatos sugere conclusões divergentes
sobre o mesmo desafio no mesmo período de tempo. As conclusões alcançadas por
outros estudos que utilizaram o mesmo modelo se basearam na avaliação, conjunta
ou individual, de freqüência, intensidade e criticidade.
Outro aspecto importante é que o arquétipo resultante da análise é sempre
uma fotografia da organização. Assim como os outros dois, esse também pode
sugerir uma tendência de comportamento futuro baseado no histórico, mas não o
garante. Estudos anteriores utilizando o mesmo modelo (Dantas, 2007; Oliveira,
2006; Rodrigues, 2005) descreveram as organizações através de trajetórias e
enquadraram-nas, fase a fase, em diferentes combinações dos dois arquétipos
originais. Tal recorrência de método corrobora a interpretação dos arquétipos como
temporalmente estática, ainda que fruto e objeto de uma análise processual.
A literatura sugere a existência de padrões de caráter organizacional que
descrevem a firma em um estado intermediário. Porter (1985) utilizou o termo “stuck
in the middle” para definir as organizações que não optam nem por uma estratégia
de custos ou de diferenciação, as duas únicas possíveis, segundo seus estudos.
Whettel (1980) por sua vez cunhou o termo “decline as stagnation” para descrever
organizações que possuem nenhuma ou baixas taxas de crescimento. Ambos
49
sugerem que tais modos de resposta podem ser considerados pelos gestores
suficientes para a sobrevivência da organização, mas que são padrões que colocam
em risco a vida da organização no longo prazo por não contribuírem para o seu
fortalecimento. Isso ocorre porque o ambiente no qual a organização está inserido
está em constante mudança devido aos interesses de outros personagens:
governos, clientes, fornecedores e competidores (Barker III & Duhaime, 1997).
Se associarmos o arquétipo do sucesso a uma trajetória de crescimento e o
arquétipo do fracasso a uma trajetória de declínio, é natural supor que haveria um
arquétipo equivalente para a trajetória de estagnação. O arquétipo de sobrevivência
se torna, portanto, um padrão identificável dos pontos de inflexão de trajetórias
organizacionais.
É importante ressaltar que se por um lado um estado de estagnação é visto
como um sinal de declínio, por outro também poderia ser percebido como um sinal
de crescimento. Depende da situação anterior, do histórico. Empresas que sejam
classificadas como sobreviventes após um longo período de sucesso, certamente
deveriam se preocupar. Contudo, ser sobrevivente após estar próximo à falência
certamente é algo positivo. Dessa forma, entender e identificar uma organização em
estado de sobrevivência contribui para a identificação antecipada de dificuldades,
como também para discussão de caminhos para evitar o fracasso final.
A Tabela 2-2 apresenta a síntese e definição de cada desafio dentro de cada
arquétipo modelado.No tópico a seguir é apresentado em detalhe cada um dos
processos identificados, assim como os desafios compilados por Fleck (2006).
2.3.1 Processos
2.3.1.1 Crescimento e renovação
Meyer e Zucker (1989) demonstraram como organizações podem existir
anos a fio em situações críticas. Contudo, também demonstraram que sob essas
condições as organizações são frágeis e a firma se torna incapaz de responder a
pressões externas. O crescimento organizacional tem um papel fundamental na
longevidade das organizações. Mais que viver por muitos anos, o crescimento
contínuo auxilia na construção de uma história saudável para as firmas.
50
Tabela 2-2: Arquétipos, desafios e respostas.
Fonte: adaptado pelo autor a partir de (Fleck, 2006).
Arquétipo Auto-destrutiva Sobrevivente Auto-Perpetuante
Descrição
Ações que implicam diretamente
na ameaça à sobrevivência da
organização, piorando sua
condição de vida, enfraquecendo-
a em sua capacidade de
responder aos desafios.
Ações de manutenção das
condições de vida, não havendo
interesse ou recursos para
melhorá-las, mas também sem
reduzir a capacidade existente
de respostas.
Ações que favorecem
diretamente a melhoria das
condições de vida da organiza-
ção, principalmente no longo
prazo, tornando-a cada vez mais
forte para superar os desafios
que possam surgir.
Desafio Descrição Auto-destrutiva Sobrevivente Auto-Perpetuante
Sedentária Esportista Amador Campeão olímpico
Destruição de valor na organi-
zação, seja pela má avaliação de
expansões ou uma posição
excessivamente defensiva,
perdendo ou fugindo de
conflitos competitivos.
Esporádicos serviços empre-
endedores, a organização
mantém posições de mercado e
desenvolve um crescimento
incremental, com baixo risco e
retorno, ou então saltos de
crescimento não consistentes.
Criação de valor pelo desenvol-
vimento de novos negócios e
mercados ou ampliação das
vantagens competitivas em
posições existentes, dispondo
constantemente de serviços
empreendedores.
Cega e surda Rápida e pragmática Visionária e nunca satisfeita
Ausência de preocupação com a
legitimidade ou respondendo de
maneira inadequada às
demandas dos stakeholders.
Na grande maioria das vezes
está atenda às demandas e
oferece respostas adequadas.
Porém, está sempre sob pressão
um pouco mais forte de algum
stakeholder.
Envolvimento direto e constante
na melhoria das relações com os
stakeholders, antecipando suas
demandas e aumentando sua
legitimidade em todas as
dimensões.
Seguidor Gestor Líder
Redução da capacidade decisó-
ria das pontas ou péssimo
controle sobre as unidades.
Desperdícios pela manutenção
de estruturas idênticas desne-
cessárias e ausência de conhe-
cimentos diversificados.
Mantém sua capacidade de
coordenação assim como seus
relacionamentos, buscando
reequilibrar sempre que as
expansões reduzem esses níveis.
Construção de novos laços que
fortalecem a integridade da
empresa e aproveitam sinergias
existentes ou know-how
diversificado. Aumento da
qualidade da autonomia,
reduzindo o esforço de controle
Perdido Executor Planejador
Recorrentemente faltam à
organização os recursos
necessários, sejam eles em
quantidade ou em qualidade. Os
talentos fogem da organização e
cria-se um círculo vicioso de
baixa capacitação e qualificação.
Oferece recursos semelhantes
aos existentes e geralmente
atende a demanda. Os níveis de
qualificação evoluem em um
ritmo incremental. Os talentos
ficam sob condições de
incerteza, havendo espaço de
crescimento para poucos.
Provisão antecipada de recursos
qualificados, e desafio constante
ao patamares de desempenho.
Os talentos buscam a
organização, pois as
oportunidades de crescimento e
desenvolvimento são muitas
Secretário Analista Gênio
Baixa capacidade na resolução
de problemas, seja pelo baixo
grau de sistematização ou pela
disponibilidade de
conhecimento. As soluções em
geral são insuficientes, gerando
retrabalho.
Boa capacidade de resolução de
problemas dentro de um escopo
definido. Capaz de resolver
novos problemas. Contudo, a
absorção e a disseminação do
aprendizado é difícil.
Implementa a solução suficiente.
Alta capacidade em
sistematização e disseminação,
além de possuir escopo
abrangente de soluções. Em
geral implementa a melhor
solução, causando reflexos
positivos em outras dimensões
além daquela analisada.
Haiti Brasil Mina de Salomão
Ausência de recursos
qualificados, margem
operacional deteriorada,
imagem abalada, dependência
de atores externos para financiar-
se, recursos alocados para
apagar os incêndios
Recursos humanos sob medida,
margens equivalentes às
praticadas no mercado, manu-
tenção de sua imagem, financia-
se para a manutenção, aplica-
ção em projetos de longo prazo
somente quando necessário
Constante disponibilidade de
recursos altamente qualifi-cados,
margens operacionais acima da
média do mercado,
credibilidade, capacidade de se
financiar, investimentos em
projetos e recursos com retorno
no longo prazo
Aprovisionamen
to de Recursos
Humanos
Constante fornecimento
à firma dos recursos
humanos qualificados
Gestão da
Complexidade
Gerenciamento de
questões complexas e
resolução de problemas
com complexidade
crescente, evitando
riscos à existência da
organização
Gestão da Folga
Gerenciar a produção e o
uso de folga para
promover o crescimento
constante e manter a
integridade da
organização
Empreendedoris
mo
Promoção contínua do
empreededorismo
através do fomento ao
desejo da firma de
promover expansões
auto-reforçantes que
criam valor previnindo a
super-exposição ao risco
Navegação no
ambiente
Lidar com múltiplos
interessados da
organização para
asegurar captura de valor
legitimidade
organizacional
Gestão da
Diversidade
Sustentação da
integridade da firma em
face de crescente
rivalidade e conflito
organizacional
51
O processo contribui para a longevidade principalmente quando o
crescimento surge de um ciclo auto-reforçado. É através desse tipo de crescimento
que os movimentos de expansão (Chandler, 1977) geram novos recursos, em
maiores quantidades ou em melhor qualidade, que oferecem à firma uma gama cada
vez maior de caminhos. Fleck (2003) definiu essas opções através de um
mecanismo de auto-reforço do crescimento contínuo, representado a seguir.
Figura 2-5: Mecanismo de auto-reforço do crescimento contínuo.
Fonte: (Fleck, 2003)
A autora sugere que, a partir de um desequilíbrio entre a capacidade da
firma e a demanda existente, a firma decide investir em novas atividades. Com o
sucesso nessas novas empreitadas a firma adquire novos recursos que causam um
novo desequilíbrio dando origem a um novo ciclo. Esse mecanismo foi exemplificado
através de quatro possíveis motores utilizados pelas firmas:
(1) inercial, decorrente da replicação das operações visando atender uma
demanda gerada pela difusão dos benefícios oferecidos pela firma;
(2) inovação, ocasionado pela criação de soluções para os desafios
existentes e identificação de novos trade-offs;
(3) horizontal, surgindo da aquisição de competidores mais fracos e da troca
de vantagens competitivas; e
(4) diversificação relacionada, onde através da transferência de recursos
sub-utilizados para atividades correlatas a firma descobre e adquire recursos
diferentes dos que existiam previamente.
Outro processo identificado pela autora como condição necessária à
formação das grandes empresas e, como conseqüência, parte do processo de
crescimento, está relacionado ao comportamento da indústria onde a firma atua. Na
verdade também trata-se de um motor que é aplicável nas relações entre partes e
todo. A firma é uma parte do todo indústria, assim como unidades de negócio são
52
partes que compõem o todo firma e assim por diante. O esquema a seguir
representa esse motor e seus principais elementos.
Figura 2-6: Motor de co-evolução aplicado à firma.
Fonte: (Fleck, 2003).
Sua argumentação segue a seguinte lógica. A partir da cooperação entre as
firmas pertencentes a uma mesma indústria, certo grau de padronização surge. A
partir dessa padronização uma série de dificuldades para a operação de todas as
firmas é eliminada, por exemplo, reduzindo os preços de equipamentos vendidos por
fornecedores. Esses elementos que outrora diferenciavam as firmas agora as
tornam homogêneas. Dessa igualdade surge a necessidade de diferenciar-se
novamente, provocando um novo nível de competição entre as firmas. Aplicado ao
par firma-empregados, a padronização e competição entre empregados cria uma
fonte de crescimento para a firma.
Assim, crescendo e renovando-se constantemente a firma desenvolve uma
propensão à longevidade saudável.
2.3.1.2 Manutenção da integridade
O sucesso gera o fracasso (Starbuck, 1965). Apesar do crescimento ser uma
condição necessária para a longevidade saudável, ele também traz potenciais
ameaças para a firma. Fleck (2006) identificou pelo menos cinco conseqüências
negativas. Devido ao crescimento diversas pressões à integridade se acentuam:
maior rivalidade; menor cooperação; fraca capacidade de coordenação; avaliação
incompleta das situações; e recrutamento ruim.
Essas pressões fortalecem a formação de grupos internos e os distanciam
uns dos outros. À medida que a firma perde a sua capacidade de atender a
diferentes anseios das diferentes coalizões que a constituem, ela passa a não ter
53
mais utilidade para eles. Em vista da possível perda de seus benefícios, as coalizões
passam a adotar medidas menos sadias para resolver suas diferenças. Os conflitos
podem ameaçar a manutenção da firma como uma única entidade e forçá-la a
dividir-se e a deixar de existir.
O crescimento também favorece a formação de novos grupos, pois ao
crescer precisa se diversificar, não somente em termos de mercados e produtos,
mas também em termos funcionais. Departamentos de menor importância passam a
deter poder e desejo em influenciar o destino da organização.
Fleck (2003) também identificou um processo necessário à existência
continuada, além da questão do crescimento e mais relacionada à manutenção da
integridade. Ela extraiu da literatura a importância que a carreira vitalícia dos
empregados tinha na qualidade dos investimentos da organização. Em companhias
onde os gestores possuem compromisso de longo prazo com a firma, os
investimentos terão como objetivo a existência continuada da firma, uma vez que
eles dependem de sua existência no futuro distante para realizar seus anseios.
2.3.2 Desafios ou traços
O comportamento da organização só existe e só pode ser descrito através
das ações e comportamentos dos indivíduos que a compõem e agem em nome dela.
O comportamento do indivíduo pode influenciar o comportamento organizacional,
mas à medida que certos valores são institucionalizados ao longo do tempo, é cada
vez menor o efeito que um indivíduo qualquer pode causar sobre o comportamento
adotado coletivamente. Na verdade, é justamente o oposto que ocorre: a influência
que a organização causa no comportamento do indivíduo é cada vez maior.
Conforme descrito anteriormente, o modelo de arquétipos aqui utilizado se
baseia no conceito de traços organizacionais e refere-se aos comportamentos
adotados pela organização, não por seus indivíduos. Assim, todos os traços e
posteriores análises buscam descrever o comportamento do objeto de estudo
“organização”, mesmo que só seja possível identificá-los e operacionalizá-los
através da análise das ações empreendidas por seus indivíduos.
2.3.2.1 Empreendedorismo
Para desenvolverem a propensão a longevidade saudável é condição
necessária, segundo Fleck (2006), o contínuo crescimento e renovação da
54
organização. Isto porque as vantagens que constrói, com o tempo, começam a se
deteriorar frente ao desenvolvimento de competidores, fornecedores e clientes em
um ambiente competitivo.
Para ser capaz de ter uma posição vantajosa constantemente, a firma deve
possuir serviços produtivos (Penrose, 1980) específicos necessários para o
processo de crescimento. Penrose (1980) classifica tais serviços em
empreendedores e gerenciais. Os serviços gerenciais são as funções executadas
pelos recursos da organização para administrar e coordenar o dia a dia da operação,
mantendo os níveis correntes de produção. Os serviços empreendedores são
aquelas contribuições à firma relacionadas à absorção e criação de novas ideias,
principalmente quando relacionadas ao processo produtivo, ampliando a capacidade
produtiva. São vários os serviços que contribuem para essa renovação, mas
segundo a autora quatro são essenciais:
Ambição – é o desejo constante em se alcançar níveis de lucratividade
maiores do que aqueles até então alcançados, mesmo que para tanto seja
necessário aumentar o esforço, o risco ou o investimento. Penrose (1959) destaca a
diferença entre firmas empreendedoras que desejam formar impérios e aquelas que
têm boa índole em sua busca12 e que somente os últimos produzem um efeito
duradouro no crescimento das organizações;
Levantamento de financiamento – Trata-se da capacidade de levantar
recursos para investir em novos empreendimentos até o momento em que possua
tamanho e posição onde possua acesso mais fácil a recursos financeiros. Envolve a
habilidade em criar confiança junto a possíveis investidores e financiadores.
Segundo Penrose (1959), sempre existirá fontes de financiamento para investir em
negócios lucrativos e, baseando-se nessa visão, uma empresa com esse serviço
empreendedor disponível não estará condicionada a situações de mercado para
crescer;
Julgamento empresarial – Trata-se do interesse e habilidade da firma em
coletar informações para ser capaz de considerar corretamente o impacto dos riscos
e incertezas envolvidos em seus planos. O serviço existe em uma organização
quando se nota nos passos de expansão o desejo de se conhecer os riscos e
12 Empire-builders versus Good-will builders.
55
incertezas envolvidos em cada novo passo, assim como a intenção de reduzir sua
probabilidade ou impacto sempre que possível;
Versatilidade – Trata-se da capacidade de investigar caminhos para a
expansão onde não é óbvio para a maioria das pessoas, além da capacidade de
investigar as possibilidades de novos serviços provenientes de recursos produtivos
já existentes. Uma organização versátil é capaz de enxergar além de suas fronteiras,
encontrando maneiras criativas de empreender.
Outro aspecto relevante dentro do desafio de empreendedorismo é a
motivação existente nos movimentos de expansão empreendidos pela organização.
Chandler (1997) sugere que, ao exercer movimentos produtivos de expansão, que
prezam pela geração de economias de escopo, de escala e de velocidade, as
organizações estão mais propensas a criar um ciclo de reforço contínuo de
crescimento. Por outro lado, os movimentos de expansão defensivos, aqueles cujo
objetivo é reduzir incertezas e proteger negócios existentes, têm um impacto
momentâneo no processo de crescimento e não geram um ciclo de auto-reforço.
Fleck (2006), por sua vez, complementa a visão do autor, definindo a
existência de dois outros tipos de expansão: a híbrida e a nula. A primeira se refere
aos movimentos exercidos pelas organizações que geram economias ao mesmo
tempo em que protegem os domínios existentes. Já os movimentos de expansão
nulos não geram efeitos, nem pelo lado do aumento das economias, nem pela
proteção ou redução da incerteza. Assim, expansões nulas estão comumente
associadas aos anseios dos construtores de impérios, citados anteriormente, e
constituem, na prática, um grande desperdício de recursos.
Tais movimentos contribuem de maneira significativa para entender os
processos de crescimento e manutenção da integridade da firma. Chandler (1977)
discute a existência de algumas maneiras de se exercer os movimentos de
expansão:
Produtividade e eficiência – Trata-se dos movimentos de expansão que
liberam recursos operacionais para que sejam investidos em atividades de longo
prazo. São movimentos de expansão que, através do incremento no volume
produzido, por exemplo, aumentam a eficiência da produção;
Internalização de transações (vertical) – Trata-se dos movimentos de
expansão com o objetivo de aumentar o valor criado pela empresa substituindo de
56
maneira mais eficiente as relações de mercado ou outros atores do ambiente
econômico. Um segundo objetivo possível é ter maiores garantias de um fluxo
contínuo de operação, seja de fornecimento (upstream) ou consumo (downstream);
Novos mercados e produtos (diversificação) – Trata-se dos movimentos de
expansão com o objetivo de aumentar o valor criado pela empresa, através: (1)
ganhos de escala, escopo e velocidade; (2) redução dos custos unitários pela
melhor utilização da infra-estrutura administrativa. Ou seja, para que se trate
realmente de um movimento de expansão produtiva devem existir sinergias entre os
negócios atuais e os novos;
Mercados e produtos correntes (horizontal) – Trata-se dos movimentos de
expansão com o objetivo de criar valor fazendo mais do mesmo ou manter o valor
criado pela empresa protegendo os mercados onde atua.
Chandler (1977) e Fleck (2006) sugerem que algumas dessas maneiras
estão mais associadas a determinados movimentos, mas que tal associação não
constitui uma relação necessária. Aquisições de empresas dentro da mesma
indústria, por exemplo, estão mais associadas aos movimentos de expansão
defensiva, pois em geral buscam proteger a firma das pressões da competição.
Contudo, as duas empresas envolvidas na compra podem ter grau de presença
complementar em mercados distintos não permitindo, portanto, fazer uma
associação direta de que toda aquisição dentro de uma mesma indústria é
necessariamente um movimento de redução da competição.
Assim, entre seus movimentos de expansão e suas intenções, associadas
aos serviços disponíveis internamente para manter o crescimento e renovação
contínua, a organização é mais capaz ou menos capaz de criar valor em uma base
regular, favorecendo e fortalecendo sua posição competitiva (Porter, 1980) no longo
prazo.
2.3.2.2 Navegação no Ambiente
A organização empreende e, para que os recursos utilizados nesse
empreendimento não sejam desperdiçados, ela precisa proteger os ganhos
auferidos do empreendimento para que outras organizações não capturem esse
valor. É uma postura pró-ativa na sua relação com o meio onde está inserida. Além
disso, ao empreender, ela naturalmente busca direcionar-se para onde foram
57
identificadas as melhores oportunidades, onde pode criar mais valor com os
recursos disponíveis (Penrose, 1980). Também deve atuar, sempre que possível, no
ambiente para propiciar condições favoráveis às suas atividades, maximizando o
valor retido a partir dos benefícios gerados por elas (Pfeffer & Salancik, 1978).
Comportamentos auto-perpetuáveis favorecem atividades empreendedoras
que criam valor e atividades de navegação que protegem o valor criado. Já um
comportamento de crescimento momentâneo favorece a captura de valor de outras
fontes que não a própria capacidade de empreender ou a criação de valor sem a
devida proteção. Um comportamento autodestrutivo, por outro lado, não desenvolve
a capacidade de criar valor constantemente nem a de proteger o que foi criado.
As organizações respondem também às pressões institucionais, demandas
por adequação ao ambiente institucional, além das pressões competitivas (Porter,
1980) mais facilmente compreendidas. Isso ocorre devido à necessidade por
estabilidade e legitimidade, equilibrando expectativas dos seus constituintes
externos com seus próprios interesses (Doyle, 1994).
No que tange o alcance da legitimidade da organização na sociedade, a
navegação no ambiente se trata da adequação na escolha de respostas estratégicas
às pressões institucionais exercidas pelo ambiente (Oliver, 1991), buscando
preservar sua integridade e permitindo o crescimento e renovação contínua. Avaliar
a qualidade das respostas estratégicas implica em identificar as dimensões que
definem o tipo de pressão exercida e as condições nas quais a organização se
encontra (o que quer e o que pode fazer) para tomar decisões entre aceitação,
negação e influência nas pressões por conformidade.
Oliver (1991) classificou as respostas estratégicas tanto quanto a sua
natureza (de uma resposta mais reativa até respostas mais pró-ativas) quanto aos
critérios que determinam qual seria o tipo de resposta mais provável de acordo com
a situação. No primeiro caso, quanto à natureza, a autora definiu cinco grupos:
Aceitação, Comprometimento, Evasão, Confrontação, Manipulação. Três respostas
compõem cada um. Tais respostas podem ser vistas em detalhe no Anexo I.
Fleck (2006), por sua vez, reagrupou essas respostas em três tipos: (1)
moldagem do ambiente, que englobam as táticas de desafio e manipulação; (2)
neutralização das pressões, equivalente as estratégias para evitar as pressões; e (3)
ajuste, equivalente a aceitação e comprometimento. Na sua visão, a organização
deve, sempre que possível, atuar sobre o ambiente onde vive (antecipando ou
58
modificando pressões institucionais) e, quando necessário, evitar o enfrentamento e
adaptar-se às pressões para manter as condições de existência.
Dado que a aceitação de algumas pressões é obrigatória, é necessário
entender quais características podem facilitar a compreensão das escolhas feitas
pelas organizações. As dimensões preditoras do tipo de resposta que a organização
possui, conforme a visão de Oliver (1991), são 10 no total, divididas em cinco grupos
contendo cada um duas dimensões, detalhadas no Anexo I.
Para entender a resposta que a organização dará a determinada pressão
institucional, Oliver (1991) sugere a análise conjunta desses fatores para
compreender a racionalização que está por trás da escolha das respostas
estratégicas. Fleck (2006), por sua vez, entende que o uso adequado de todas as
estratégias representa uma resposta positiva ao desafio da navegação, juntamente
com o monitoramento constante do ambiente.
Faz sentido, portanto, que as organizações desenvolvam competências para
torná-las capazes de interpretar adequadamente as situações e de reduzir a
necessidade de escolha de trade-offs entre a sua legitimidade perante os seus
stakeholders, a sua eficiência econômica e o controle sobre seu direcionamento
futuro. Quanto mais consciente sobre as pressões exercidas e sobre as
conseqüências de suas respostas, mais provável será o uso adequado das
estratégias. Além disso, quanto mais cedo forem identificadas essas pressões e
quanto maior for a autonomia da organização, maior será a possibilidade de atuar no
ambiente em seu favor.
2.3.2.3 Gestão da Diversidade
Uma organização pode ser entendida como uma coalizão (Cyert & March,
1963) de grupos ou pessoas que possuem, ao mesmo tempo, alguns objetivos
coerentes entre si e outros completamente divergentes. É a coesão de objetivos que
permite que tais organizações sejam formadas, mas é a existência de diferenças de
opinião e desejos que pressiona a fragmentação da instituição, principalmente
através do conflito. Muitas vezes esses grupos são agentes externos como
fornecedores e clientes que também devem ser administrados com cautela devido à
dependência dos recursos por eles fornecidos (Cyert & March, 1963).
A busca por eficiência no uso dos recursos pode ser alcançada em
detrimento do controle, aumentando a autonomia das partes para que identifiquem o
59
uso mais adequado dentro de suas perspectivas. Além disso, a autonomia reduz a
necessidade de recursos gerenciais alocados na administração dos negócios,
traduzindo-se em ganhos de escala. Contudo a autonomia deve ser administrada de
maneira que evite conseqüências negativas à integridade da firma. A falta de
controle pode transformar a organização em uma coleção de partes que não
desfruta de nenhum ganho de sua existência conjunta ou mesmo constituir objetivos
tão opostos que não permitam a sua coexistência construtiva.
A organização enfrentará ao longo de sua história, inevitavelmente,
situações onde precisará utilizar capacidades em coordenação, seja na resolução de
situações de conflito ou na identificação da melhor forma de equilibrar autonomia e
responsabilidade, principalmente porque à medida que cresce se torna mais diversa
e mais complexa, gerando mais oportunidades de conflito e necessidade de
autonomia. Portanto, as dimensões a seguir relatam os principais aspectos que
devem ser considerados na gestão da diversidade:
Resolução de conflitos – refere-se à forma como a organização resolve seus
conflitos e rivalidades, permitindo ou não a manutenção de direcionamentos
divergentes sobre aspectos relevantes da natureza da organização;
Estruturas integradoras – formação e dedicação de recursos para funções
organizacionais tais como: comitês permanentes, forças-tarefa, departamentos de
integração (aquisições, processos, recursos). A existência de tais estruturas permite
um maior grau de alinhamento entre as atividades desenvolvidas pelas partes que
compõem a organização e a identificação de oportunidades de criação de valor
através do compartilhamento e intercâmbio de recursos;
Qualidade da autonomia – trata-se do grau de liberdade e abrangência com
que as unidades da organização tomam decisões, dependendo da distância para o
topo, do grau de independência de suas escolhas e do tipo de responsabilidade que
unidades de negócio e unidade corporativa desempenham.
O desafio é maior quando considerada a pressão exercida pelo processo de
crescimento, pois a contratação de novos recursos, ainda que selecionados de
maneira a preservar a homogeneidade dos mesmos, sempre trará um grau mínimo
de heterogeneidade. Para tanto a organização deverá ser capaz de desenvolver
processos que utilizem, da melhor maneira possível, os recursos que dispõe,
fortalecendo os relacionamentos entre esses recursos sob três aspectos:
Compartilhamento – uso compartilhado, incluindo o uso simultâneo ou
60
rotativo, de recursos equivalentes entre as partes tais como: instalações, pessoal,
processos, produtos e serviços que a empresa oferece, aspectos da cultura (mitos),
reputação e serviços internos;
Intercâmbio e combinação – intercâmbio (troca/alocação temporária) de
recursos heterogêneos diversos tais como: de instalações, pessoal, produtos e
serviços que a empresa oferece, aspectos da cultura (mitos), percepção de
ameaças, reputação e serviços internos;
Homogeneização – padronizar recursos (cultura, processos, equipamentos,
etc.) obtendo ganhos de escala, escopo e velocidade, além de torná-los raros e
difíceis de imitar devido às idiossincrasias inerentes a sistemas sociais complexos.
2.3.2.4 Aprovisionamento de Recursos Humanos
Vários autores (Chandler, 1990; Fleck, 2006; Penrose, 1980)destacam que
um dos principais recursos necessários para o crescimento da organização é a
existência de um corpo administrativo experiente. Chandler (1990) descreveu que
uma das principais ações desenvolvidas pelas empresas gerenciais13 que
entenderam rapidamente a lógica do capitalismo moderno foi o intenso investimento
na formação de recursos humanos que pudessem proporcionar uma forte
coordenação administrativa.
Essas empresas possuíam uma hierarquia de gerentes assalariados
coordenados por um conselho de diretores. Através dessa hierarquia, formada por
diversos escalões gerenciais, a organização promovia objetivos de longo prazo para
os profissionais que faziam parte da organização, pois estes passaram a ter como
meta pessoal permanecer e crescer dentro da firma, construindo uma carreira e
galgando as posições superiores. Assim, a firma criava uma relação de necessidade
de sobrevivência mútua e conseguia incorporar em sua orientação os anseios
desses administradores (Chandler, 1992).
Os investimentos em recursos humanos que podem proporcionar uma forte
coordenação administrativa foi uma das condições necessárias para o sucesso das
grandes firmas gerenciais.
“Uma vez que as modernas empresas industriais foram estabelecidas, os gestores encarregaram-se do resto. Logo quando os investimentos inter-
13 Do original em inglês “Managerial enterprise”.
61
relacionados em produção e distribuição foram realizados e o time gerencial foi recrutado, organizado e treinado, as habilidades críticas necessárias ao crescimento contínuo e à performance de sucesso em empresas e indústrias nas quais os mesmos operavam, tornaram-se mais gerenciais do que empreendedoras ou financeiras.” (Chandler, 1990, p. 598).
Penrose (1980) também destacou a importância e definiu as dimensões
essenciais para avaliação da qualidade dos serviços gerenciais disponíveis à
organização, resultante da existência do corpo de executivos profissionais das
firmas, descritos a seguir:
Experiência – Trata-se dos conhecimentos adquiridos pelo corpo gerencial
com relação ao negócio e as relações internas do grupo de administração. É a curva
de aprendizado dos profissionais com relação a como agir dentro da empresa e nos
mercados onde atua;
Relacionamentos interpessoais – Trata-se do tempo e da proximidade com
que gestores trabalham juntos. Quanto mais tempo e mais próximos, mais forte a
relação, levando a um maior nível de confiança e cooperação, condição necessária
para permitir a existência de atividades de planejamento extenso;
Planejamento – Refere-se à disponibilidade de recursos gerenciais para o
desenvolvimento dos planos necessários para a realização de movimentos
estratégicos, além da operação diária.
Essas características só são possíveis através do desenvolvimento
adequado dos recursos disponíveis internamente, pois são características que não
são facilmente absorvidas a partir do mercado e demoram muito até serem
produzidas. Entre as formas de construir essa adequação e manter a qualidade dos
recursos estão:
Avaliação – uso de ferramentas de avaliação que permitam a identificação
de pontos de melhoria e nivelamento;
Renovação e intercâmbio – capacidade de renovar seus recursos na medida
em que se torna necessário adaptar-se às mudanças do ambiente e da
complexidade da empresa;
Desenvolvimento e formação – Trata-se da criação dos recursos adequados
à organização, com experiência no negócio e nas relações interpessoais existentes
na firma.
A disponibilidade desses recursos humanos gerenciais e outros recursos
especializados é um fator determinante principalmente para evitar descontinuidades
62
no processo de evolução das organizações. Segundo Penrose (1980): “a quantidade
máxima de expansão será determinada pelos serviços gerenciais disponíveis para a
expansão em relação à quantidade destes serviços demandados pela própria
expansão” (p. 200).
A disponibilidade pode ser vista através de três dimensões:
Antecipação – Prover a organização com um fluxo contínuo de serviços
produtivos, reduzindo a incerteza e a dependência do ambiente em prover recursos
valiosos;
Retenção – Permite a sustentação das vantagens competitivas alcançadas,
pois gestores experientes são recursos valiosos, imperfeitamente imitáveis e
imperfeitamente substituíveis. A perda de recursos desse gênero trata-se de
desperdício no investimento do desenvolvimento dos mesmos;
Sucessão – reflete a preocupação da organização em estar preparada para
eventuais perdas, permanentes ou temporárias, dos recursos humanos, seja por
dificuldades na retenção de seus talentos, pela saída inevitável como aquelas que
decorrem de aposentadorias ou acidentes, ou pela própria ascensão profissional de
seus executivos.
Portanto, a gestão desse desafio envolve a capacidade que a firma
desenvolve de fornecer os serviços gerenciais, na quantidade, qualidade e tempo
necessários para manter o seu ritmo de crescimento. Isso sem colocar em risco a
existência da firma por possíveis fontes de fragmentação futura devido a respostas
emergenciais às demandas por recursos.
2.3.2.5 Gestão da Complexidade
É na gestão da complexidade que se concentram as questões relativas à
administração das conseqüências do crescimento, em especial na capacidade da
firma de aprender e na forma como resolve seus desafios. Nesse sentido, entende-
se que a forma como a firma lida com esse desafio reflete na capacidade da mesma
em responder a todos os outros desafios, pois trata-se da qualidade do processo de
institucionalização. Por esse motivo também engloba a capacidade de
“desaprender”, sendo capaz de desconstruir premissas antes válidas sempre que
novas informações surgem.
63
Para Fleck (2006) trata-se da capacidade que a organização desenvolve em
resolver problemas complexos, questões onde existe uma grande quantidade de
variáveis dependentes umas das outras. A organização deve desenvolver meios
para melhor responder a esse desafio sob três aspectos:
Amplitude da busca – envolve a busca por soluções em outras áreas além
da diretamente relacionada ao problema, contribuindo para a identificação de
soluções mais adequadas, seja através de formas mais eficientes de resolver o
problema ou mesmo através da antecipação das conseqüências da adoção de
determinada solução. Por vezes uma busca mais ampla é resultado não só do
comportamento da organização, mas também da limitação de tempo ou da
disponibilidade ou qualidade dos recursos;
Aprendizado – refere-se ao lócus final do resultado do processo de
resolução de problema, com posterior explicitação do conhecimento e disseminação.
Ao final de um processo de resolução de problemas, na medida em que a
organização consegue explicitar o conhecimento adquirido e disseminá-lo, a
organização poderá resolver de forma mais eficiente ou mesmo aumentar o nível de
qualidade da resposta sem desperdiçar recursos;
Forma da busca – requer procedimentos sistemáticos de recolhimento de
informação, análise, critérios de decisão, tomada de decisão e implementação.
Assim, a qualidade da resposta para cada desafio é impactada pelos
sistemas que foram desenvolvidos para aquele tipo de questão, pela importância e
capacidade da organização em buscar e sugerir formas diferentes e também do
quanto a organização consegue absorver para si o aprendizado desenvolvido por
seus profissionais.
2.3.2.6 A Questão da Folga Organizacional
A definição mais adotada para folga organizacional é a adotada por
Bourgeois III (1981), descrita da seguinte forma: “a folga é o ‘colchão’ de recursos
reais ou potenciais que permitem à organização adaptar-se com sucesso à
mudança, através do fornecimento de meios para adequar estratégias ao ambiente
externo” (Sender, 2004).
A definição possui duas dimensões importantes: primeiro, refere-se e
descreve um objeto, o recurso organizacional; segundo, considera relevante o tipo
de uso que pode ser dado a esse recurso como fundamental para a sua definição.
64
Vários autores que complementam essa visão sobre folga definem mais
especificamente os diferentes usos possíveis para os recursos organizacionais
sobressalentes que os caracterizam como folga, contrapondo-se com certos autores
que mantém o foco sobre os recursos em si. Por exemplo, Nohria & Gulati (1995)
“definem folga como conjunto de recursos em uma organização em excesso ao
mínimo necessário para um dado nível de produção” (Sender, 2004).
Uma definição levada ao extremo considera que determinado recurso só
pode ser considerado folga quando da sua identificação e aplicação pelos gestores
(Sharfman, Wolf, Chase, & Tansik, 1988). Nesse mesmo estudo diferenciou-se entre
folgas organizacionais e amortecedores organizacionais. O primeiro é uma entidade
física que é capaz de proteger a organização de variações internas e externas,
usado quando há conflitos de demanda externa. O segundo é composto por
sistemas intangíveis que só protegem a organização de flutuações externas, usado
em condições de alta dependência de recursos (Sender, 2004). No modelo de
arquétipos, a folga organizacional é “composta por todo tipo de recurso que excede
o que é necessário para que a firma opere em um determinado nível de
desempenho” (Fleck, 2006).
O fato da literatura acadêmica apontar para a identificação do uso dado aos
recursos disponíveis como fator fundamental na definição de folga organizacional,
contribui para a visão do autor de que sua consideração no modelo de arquétipos de
Fleck (2006) sugere uma elevação do elemento dentro do modelo a desafio.
Sender (2004) identificou na literatura três naturezas de folga: (1) recursos
humanos, disponíveis além do mínimo necessário; (2) recursos financeiros, com
liquidez e sem previsão de uso nas atividades correntes da empresa; e (3) recursos
físicos, produtos e equipamentos relacionados ao processo produtivo em quantidade
acima da suficiente para atender o volume conhecido. Contudo, seu estudo tinha
como base a possibilidade de dimensionamento (quantificação) dos recursos
considerados como folga. Recursos não quantificáveis, porém, também são
relevantes para o processo de crescimento e manutenção da integridade da firma,
tais como: reputação, tecnologia, marca e relacionamentos.
De certa forma, a opção pela adoção apenas de recursos quantificáveis
como possíveis naturezas para a folga poderia fazer sentido dado que recursos
como pessoas e dinheiro são empregados no desenvolvimento de folgas como
tecnologias e marca. Porém, é justamente esse processo de mutação e a
65
disponibilidade específica desses tipos que caracteriza a grande funcionalidade da
folga no modelo de arquétipos. Dado esse argumento, os recursos físicos apontados
por Sender teriam seu lugar questionado como possível natureza de folga
organizacional, afinal assume-se que boa parte deles são facilmente comprados ou
vendidos e convertidos em folga financeira e vice-versa.
A autora também resumiu em quais tipos a folga organizacional poderia ser
classificada. Também são três, todos variando quanto à facilidade de acesso que a
organização possui aos recursos ali enquadrados. O quadro abaixo resume os
diferentes tipos dentro da classificação.
Tabela 2-3: Possíveis classificações quanto ao tipo de folga.
Fonte: (Sender, 2004).
Finalmente, precisamos conhecer o papel que a folga pode assumir nas
organizações, pois é este parâmetro que define a qualidade da gestão da folga
organizacional na evolução da firma. Se o uso dos recursos excedentes ao nível de
desempenho desejado for utilizado em condições semelhantes àquelas sugeridas
pela literatura, então a firma tenderia a um arquétipo de auto-perpetuação.
Novamente utilizando o estudo de Sender (2004), foram sugeridos os
seguintes fins para a folga dentro das organizações: (1) estimulando o
comportamento criativo e a inovação no contexto da renovação da firma; (2)
influenciando o comportamento da organização na busca por soluções; (3)
estimulando ou garantindo a possibilidade de crescimento; (4) apoiando a gestão de
coalizões e resolução de conflitos; (5) ajudando na resposta e adaptação a
mudanças no ambiente competitivo; e, finalmente, (6) desmotivando os funcionários
quando da sua ausência.
A organização que administra a folga de maneira a contribuir para a sua
auto-perpetuação é aquela que consegue manter um equilíbrio entre disponibilidade
66
e uso da folga. O equilíbrio deve coexistir com níveis elevados de ambos. Por fim,
ela também evita desperdícios dos recursos existentes mesmo nas aplicações
relacionadas ao uso da folga, como por exemplo, ao perder a disciplina no processo
de experimentação de novas tecnologias.
67
3 MÉTODO
Apesar da estrutura de uma pesquisa ser definida pela sua pergunta, tal
objeto nem sempre é o primeiro elemento a ser definido. A pergunta de pesquisa
pode surgir de um tópico ou tema de interesse que, por diferentes meios, dá forma e
conteúdo ao objetivo do estudo a ser trabalhado. Também se engana aquele que
considera que toda pesquisa necessariamente só poderá desenvolver uma revisão
de literatura dada à existência de uma pergunta. Muitas vezes a revisão de literatura
pode apresentar novas considerações com relação ao tema e a pergunta, que levam
o pesquisador a reformular seu questionamento.
Essa argumentação pode seguir para outros elementos da pesquisa. Por
mais que determinada pergunta encontre forte fundamento na literatura existente, o
estudo pode ser inviabilizado devido a dificuldades metodológicas relacionadas.
Novamente, em nome da construção do conhecimento, o cientista precisa adaptar-
se às suas condições de contorno e redesenhar o seu estudo. Até a conclusão do
estudo pode modificar o que foi anteriormente definido: se as conclusões a cerca de
uma hipótese não se confirmam, seria aceitável a redefinição do estudo com a
comparação entre hipóteses, se ainda coubesse considerações sobre recursos
investidos e escopo.
O capítulo de Método está organizado da seguinte maneira. Primeiramente
apresentará o caminho percorrido entre o tema e a definição do problema (ou
pergunta) de pesquisa, demonstrando também o papel que o objeto de pesquisa
teve nesse processo. Em seguida descreverá quais estratégias de pesquisa foram
adotadas e as motivações para tal escolha. Em seguida será debatido o desenho
definido para o estudo e informações relativas à coleta de dados. A forma com que
se fez a análise de dados e a posterior conclusão a partir dessas análises são os
tópicos que encerram esse capítulo.
3.1 DEFINIÇÃO DO TEMA, DA PERGUNTA E DO OBJETO DE PESQUISA
Essa pesquisa surgiu do interesse do pesquisador pelo tema da longevidade
saudável organizacional e das fusões e aquisições de empresas. Conduto, o fio
condutor que conectava os dois assuntos e daria forma à dissertação exigiu um
longo processo de ida e vindas em todo o processo de pesquisa.
Os estudos anteriores sobre a longevidade saudável das organizações
(Andrade Filho, 2003; Dantas, 2007; Davidovich, 2003; Fleck, 2006; Grigorovski,
68
2004; Ludkevitch, 2005; Moraes, 2004; Oliveira, 2006; Rodrigues, 2005) possuem
diferenças relevantes com relação à pergunta de interesse. Contudo, todos, além de
alinhados com relação ao tema supra-citado, eles também estavam alinhados
quanto à estratégia de pesquisa mais adequada, no caso, o método do estudo de
caso14. Por fim, todos sugeriram também um conjunto muito semelhante de critérios
para a escolha do objeto de pesquisa, no caso, uma organização. Esses últimos
critérios podem ser assim resumidos a partir dos estudos citados:
Longevidade da empresa: há quantos anos a empresa em questão está no
mercado. Empresas antigas sugerem que ela obteve sucesso na manutenção de
sua integridade;
Posição de mercado favorável: histórico consistente de desempenho
positivo. A saúde financeira e operacional por um longo período é um forte indício de
qualidade na gestão da organização;
Transparência da administração da empresa: evidenciada pela existência de
relatórios de administração abertos e publicáveis, seja para acionistas ou para órgão
de controle. Favorece a qualidade da conclusão da pesquisa, uma vez que fornece
ao pesquisador maior número de evidências;
Acessibilidade das informações: disponibilidade de informações em
quantidade suficiente sobre a empresa em questão através da internet e meios de
comunicação aberta como jornais e revistas, mas principalmente através de
entrevistas. Argumento semelhante ao anterior, porém contribuindo mais para a
interpretação das relações implícitas dos eventos identificados;
Aspectos de interesse relevante: existência de características relevantes ou
peculiares que contribuam para a construção do conhecimento. Oferece relevância
acadêmica, condição necessária para obtenção do título de mestre.
Por outro lado, o tema de fusões e aquisições também sugeria alguns
critérios de pesquisa. Apesar da forte correlação do tema com a área de finanças e
pesquisas qualitativas, também é ampla a quantidade de estudos na área de
estratégia e comportamento, em geral com pesquisas qualitativas. A principal
dificuldade é o acesso às informações relevantes, impondo escolhas difíceis.
14 Os aspectos técnicos que apoiam o seu uso recorrente serão abordados no tópico seguinte do Capítulo de Método, Estratégia de Pesquisa.
69
Primeiramente processos de aquisição de empresas geralmente envolvem
certo grau de renovação de pessoal na empresa adquirida. Isso prejudica o
equilíbrio entre pontos de vista sobre o processo e como foi executado. Além disso,
por ser um evento geralmente esporádico na vida de uma organização, é difícil
identificar os responsáveis e as pessoas envolvidas no processo. A companhia
como um todo é afetada, mas poucos são aqueles que conhecem as motivações por
trás das mudanças. Isso sugere que as pesquisas sobre o assunto sejam realizadas
o mais próximo possível da ocorrência do evento. Esse aspecto é menos relevante
quando analisado do ponto de vista das implicações econômico-financeiras da
operação, uma vez que as análises estatísticas podem ser feitas a qualquer tempo
dado que a grande maioria das informações relevantes é registrada.
Por outro lado, operações como essas possuem natureza estratégica
competitiva. A compra de uma firma implica no reposicionamento de competidores,
fornecedores, governos e clientes e faz parte de planos maiores. Uma nova situação
de forças e pressões surge no ambiente e o controle de informações é rígido. Essas
condições sugerem que a pesquisa seja realizada o mais distante possível da
ocorrência do evento para que se tenha apoio dos gestores. Essa dualidade também
não é fácil de ser resolvida porque cada aquisição possui seu próprio tempo de
integração e implicação competitiva. O principal elemento para definir o objeto de
pesquisa é justamente a disposição da organização em colaborar.
A busca por empresas com disponibilidade para o estudo terminou com a
abertura da América Latina Logística (ALL) para que fossem feitas visitas e
entrevistas em sua sede. Outro fator que colaborou para a escolha da ALL durante a
fase de levantamento de empresas candidatas, foi a alta disponibilidade de
informações sobre os setores nos quais a empresa atuava (ferroviário, transporte de
cargas, e logística). Além da diversidade de estudos técnicos, científicos e
jornalísticos, a existência de associações de profissionais e órgãos de
regulamentação aumentava essa disponibilidade. A privatização e o envolvimento do
Grupo GP Investimentos, banco de investimentos brasileiro de grande notoriedade,
trouxe certa curiosidade à pesquisa e colaborou para a sua relevância. Em contra
partida: o histórico da organização era curto (10 anos) se comparado com os
estudos anteriores, apesar de bastante positivo com relação ao seu desempenho; e
sua sede fica em Curitiba, o que dificultava a presença física do pesquisador a fim
de pesquisar documentos internos ou públicos locais e realizar entrevistas.
70
A evolução da coleta de dados sobre o caso e da revisão da literatura trouxe
novas perspectivas sobre a pesquisa e passaram a sugerir que a relevância do
estudo estaria na discussão mais aprofundada do processo de transformação e
mudança da organização. De um lado estaria o banco de investimento com objetivos
claros de retorno sobre o investimento e do outro o questionamento sobre a
qualidade de sua intervenção no que tange as conseqüências para a vida da
organização adquirida após a sua saída. Assim, o tema turnaround, uma intervenção
na organização com o objetivo de mudança de trajetória de desempenho declinante
para uma de crescimento, foi incorporado à pesquisa.
Assim surge a pergunta de pesquisa: Como o processo de transformação
comandado pelo GP na Malha Sul da RFFSA influenciou a construção da
longevidade saudável da ALL?
3.2 ESTRATÉGIA DE PESQUISA
Yin (1989) sugere a análise de três condições para determinar o tipo mais
adequado de estratégia de pesquisa a ser utilizada: (1) o tipo de pergunta; (2) o grau
de controle que se possui sobre os eventos comportamentais; e (3) o foco em
eventos contemporâneos ou passados.
Tabela 3-1: Tipos de Perguntas Utilizados na Pesquisa.
Fonte: Yin (1989) apud Dantas, 2007.
Ainda segundo Yin (1989), “perguntas do tipo ‘como’ e ‘por que’ são mais
explanatórias e (...) lidam com conexões operacionais que precisam ser
acompanhadas ao longo do tempo” (p. 18). Esse é o caso em questão, onde a
trajetória da organização, abordando tanto as escolhas gerenciais como as
influências ambientais, é utilizada como evidência para entender o efeito sobre a
71
capacidade contemporânea da organização em responder aos desafios da
longevidade.
Como a própria palavra “trajetória” já sugere, o estudo é construído através
de uma perspectiva longitudinal dos fatos e relatos coletados. Assim, a estratégia
histórica também se aplica a esse estudo. Sua função é organizar as evidências de
diversas fontes primárias e secundárias de maneira que permita a síntese do
contexto e do objeto de estudo. Yin (1989) já havia relatado que as estratégias de
estudo de caso e histórica compartilhavam as mesmas técnicas de coleta de dados.
Contudo, duas fontes de evidências são mais comumente identificadas nos estudos
de caso: observação direta e entrevista sistemática.
Essa pesquisa possui aspectos: (1) descritivos, ao apresentar toda a história
envolvendo diferentes setores relacionados à logística; (2) explanatórios, ao buscar
explicações do tipo causa e efeito; e (3) exploratório, por utilizar um referencial
teórico ainda em construção.
Tais características também contribuem para a argumentação da escolha
dos métodos citados. Ao utilizar uma teoria em construção (o modelo de arquétipos
de sucesso e fracasso organizacional) busca participar da sua evolução. O uso de
estratégias e métodos de pesquisa semelhantes aos utilizados em estudos
anteriores, além de aproveitar o aprendizado já alcançado, também facilita a sua
contribuição para a teoria, adicionando mais conhecimento a essa linha, permitindo
estudos comparativos futuros.
3.3 ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA
Além da revisão de literatura e discussão do método de pesquisa, as
seguintes atividades foram realizadas: coleta de dados sobre as indústrias de
transporte de cargas e logística, brasileira e americana, de trens e caminhões, e em
detalhe da empresa estudada, ALL; leitura do material coletado e registro dos
aspectos de interesse; classificação e análise dos registros; e finalmente síntese dos
dados coletados e da análise realizada.
Essa pesquisa adotou uma abordagem de “ajustes recorrentes”, ou seja, a
seqüência de atividades de pesquisa não era composta por etapas lineares e
fechadas em si, mas sim retro-alimentadas pelas etapas seguintes. Cada vez que se
adquiria certo conhecimento sobre determinada questão, itens anteriormente
definidos passavam por revisão. Por exemplo, a importância da história da indústria
72
logística só foi identificada quando algumas análises sugeriam que as decisões
tomadas pela ALL foram baseadas no que havia ocorrido anteriormente com as
ferrovias no mercado norte-americano. Foi necessária uma nova rodada de coleta e
leitura para retomar a análise com novas influências.
Esse tipo de método, sugere-se, é mais eficiente para a incerteza associada
à pergunta central de pesquisa, como relatado anteriormente. Isso porque não
obrigava o pesquisador a um levantamento exaustivo de uma questão que pudesse
não estar conectada com o todo. Assim, à medida que se avançava sobre a história
da indústria e da empresa e sobre as análises, certos caminhos eram guardados
para possíveis detalhamentos. Se informações posteriores remetessem a esses
registros, retornava-se para trabalhar e incluir a questão onde fosse necessário.
3.4 DELIMITAÇÃO DA UNIDADE DE ANÁLISE
A unidade principal de análise desse estudo é a organização e é esta
definição que dá os contornos da atividade de coleta de dados (Yin, 1989). No caso
em questão trata-se da América Latina Logística. Ela está organizada como uma
holding e é composta por unidades de negócio juridicamente independentes, porém
administrativamente dependentes. Dentre as principais unidades de negócio estão:
ALL Norte, ALL Paulista, ALL Intermodal e ALL Tecnologia. Todas as empresas nas
quais a ALL S.A. possui controle acionário são parte da unidade de análise.
A partir da pergunta de pesquisa e de outros critérios importantes (como a
acessibilidade dos dados), esse estudo está concentrado no que ocorreu com a
empresa nos anos anteriores à sua criação até os dias de hoje. As fases definidas
para esse estudo, apresentadas com mais detalhe adiante, incluem as duas
décadas anteriores ao processo de privatização da malha ferroviária brasileira, os
anos em que o GP Investimentos comandou o processo de turnaround e os anos
seguintes à redução de participação acionária direta do GP na ALL. A unidade de
análise foca então o período de tempo que compreende os anos de 1980 e 2008.
A organização, dentre outras abordagens adotadas nesse estudo, é uma
coalizão de grupos ou pessoas que possuem objetivos, coerentes e divergentes
entre si (Cyert & March, 1963). Assim, outras organizações que possuem de alguma
forma interesse na firma são consideradas parte do estudo. Porém a sua utilidade
está limitada às pressões exercidas por essas outras organizações, que têm poder
explanatório das ações empreendidas pela empresa foco. Portanto, esse estudo
73
limita-se a identificar como esses outros atores explicam os questionamentos
levantados sobre a empresa foco e não tem por objetivo conhecer a sua história. Um
exemplo da importância da análise de outras organizações para compreender a
organização em análise, é o papel do GP Investimentos, um dos principais
acionistas do grupo de controle por muitos anos, na determinação das ações a
serem empreendidas no processo de turnaround.
O contexto no qual a empresa-foco está inserida abrange: o mercado
brasileiro e americano; a política e economia brasileira e argentina; o setor de
transporte de cargas ferroviário e rodoviário; e a indústria logística. Alguns desses
temas estão delimitados pelo período de tempo definido anteriormente, mas outros
não. Certas questões, como a evolução da indústria de transporte de cargas norte-
americana, possuem grande relevância para explicar a evolução ocorrida no Brasil,
porém ocorreram em um período de tempo anterior.
3.5 COLETA DE DADOS
A coleta de dados se baseou em três métodos principais: entrevistas; análise
de arquivos; e indicadores. Cada um é detalhado a seguir.
3.5.1 Entrevistas
As entrevistas foram realizadas com funcionários e ex-funcionários,
totalizando 25 pessoas. Apesar desse aspecto não ter sido uma peça fundamental
do método adotado, as pessoas foram selecionadas de maneira que fosse possível
ter acesso ao mais diverso grupo possível. Os critérios utilizados foram: área de
trabalho (RH, TI, operação, etc); nível organizacional (gerente, diretor, etc); local de
trabalho (Argentina, estação ferroviária, sede, etc); e tempo de empresa.
Foram feitas duas visitas de uma semana cada à sede da empresa em
Curitiba, totalizando 22 entrevistas, uma em Março e outra em Abril de 2008. As
restantes foram realizadas no Rio de Janeiro em Fevereiro e Julho. Todas as
entrevistas foram presenciais, uma vez que a interação pessoal proporcionava ao
pesquisador a melhor interpretação das reações e respostas dos entrevistados.
Além disso, estar presente no local de trabalho dos entrevistados facilitou a
adaptação do entrevistador às agendas dos entrevistados. As entrevistas levaram
em média 45 minutos, com entrevistas de 15 minutos até entrevistas com duas
horas de duração. Sempre que possível as entrevistas foram gravadas e transcritas
74
para posterior referência. Seis entrevistados solicitaram que não fosse gravados.
Um roteiro de entrevista semi-estruturado foi adotado. Dentre os principais
temas abordados pelo roteiro estavam: conhecimento da trajetória profissional do
entrevistado; identificação de fatos históricos relevantes da organização; motivações
por trás das decisões da organização; pontos de vista de diferentes grupos sobre
certos eventos; críticas e elogios dos funcionários à empresa sobre diferentes
aspectos. Algumas perguntas recorrentes nas entrevistas eram: conte sobre a sua
história profissional na ALL; qual a função da sua área na organização; como
ocorreram os processos de aquisição. Perguntas abertas forneciam a possibilidade
de uma abordagem histórica e com menor grau de interferência do pesquisador.
Esse roteiro, contudo, não estava completamente determinado à priori,
sofrendo adaptações ao longo de cada entrevista. À medida que fatores chaves da
literatura revista eram identificados, o pesquisador direcionava a sessão para se
aprofundar nos tópicos de interesse. Os motivos foram os seguintes: (1) nem todos
os entrevistados eram capazes de fornecer informações relevantes sobre todos os
aspectos de interesse; (2) a grande maioria das entrevistas não foi agendada
previamente e o entrevistador só descobria características sobre o entrevistado
durante a entrevista; (3) cada entrevista possuía seu próprio limite de tempo, por
vezes não permitindo que todo o roteiro fosse abordado; (4) o aspecto anterior exigia
do pesquisador um julgamento de prioridade de tema durante a execução da
entrevista.
3.5.2 Análise de arquivos
Da mesma maneira que as entrevistas, os arquivos coletados deviam
fornecer insumos principalmente sobre a história da companhia. Também era
possível que motivações por trás de algumas decisões surgissem, fosse através da
própria explanação por executivos ou mesmo pela identificação de pressões
exercidas por outros atores do ambiente: competidores, associações, governos,
agências reguladoras, etc.
A grande maioria das fontes utilizadas foi acessada por meio eletrônico.
Esse foi um aspecto positivo da curta história da organização, pois grande parte do
de sua história foi formada durante o grande desenvolvimento dos computadores
pessoais e da internet nas últimas duas décadas. Mais recentemente, a difusão do
uso da tecnologia de escaneamento está permitindo a distribuição por meio
75
eletrônico de documentos históricos mais antigos. Um exemplo nessa pesquisa foi o
acesso aos relatórios dos processos executados pelo CADE para avaliar os
aspectos competitivos das privatizações.
Foram acessados diferentes tipos de documentos: publicações
acadêmicas15 (artigos científicos, teses, dissertações e monografias); publicações
técnicas (revistas e pesquisas setoriais, artigos de consultorias e centros de
pesquisa); publicações institucionais (relatórios anuais de empresas, órgãos
governamentais, associações de classe); e publicações comerciais (matérias de
jornais e revistas, livros, entrevistas). Bases de dados foram fundamentais nesse
levantamento, pois permitiram a organização e a filtragem de um conteúdo amplo.
As principais bases utilizadas foram: (1) Factiva, do jornal americano New
York Times, uma base que consolida uma grande quantidade de publicações
comerciais de vários países, inclusive Brasil. Permite a filtragem de matérias por
período e por empresa. Maior abrangência para notícias brasileiras a partir de 2002.
Acesso disponibilizado por uma das universidades associadas ao Coppead através
do programa de intercâmbio; (2) Editora Abril, responsável pelas revistas Veja,
Exame e Você S.A, publicações de grande circulação nacional relacionada a
negócios. Acessado através da conta disponibilizada pela biblioteca do Coppead; (3)
Editora Globo, responsável pelo jornal O Globo e pelas revistas Época e Época
Negócios, também de grande circulação nacional. Acessado através da conta
disponibilizada pela biblioteca do Coppead; (4) Revista Ferroviária, publicação
especializada no setor ferroviário, mas que também abrange questões sobre
logística. Acesso adquirido por cadastramento do pesquisador no endereço
eletrônico da Revista Ferroviária.
Outras fontes de pesquisa disponibilizadas pela biblioteca do Coppead
foram: Exame Maiores e Melhores; Balanço Anual da Gazeta Mercantil; Revista
Tecnologística; bases de periódicos ProQuest e Business Source Premier. Além das
fontes já citadas, as seguintes instituições forneceram documentos: ANTF; ANTT;
ANUT; BID; Banco Mundial; BOVESPA; CADE; CEL (atualmente ILOS); CNT; CVM;
DNIT; BNDES; IPEA; Ministério dos Transportes; e Ministério do Planejamento. A
15 As publicações acadêmicas referidas aqui envolviam os temas citados anteriormente na unidade de análise contribuindo para a descrição da evolução da organização e não para a revisão de literatura.
76
grande maioria está disponível nos sites das instituições.
Por fim, as visitas presenciais para realização de entrevistas também
renderam acesso a documentos publicados internamente como apresentações
institucionais, revistas internas, organogramas e estrutura de metas.
3.5.3 Indicadores
Os indicadores aqui classificados constituem uma classe específica de fonte
de dados devido à sua natureza quantidade em oposição à natureza qualitativa da
análise de arquivos, apesar de ambos às vezes serem descritos conjuntamente. Isso
ocorre porque muitas vezes a fonte é a mesma. O BNDES, por exemplo, publica
relatórios que descrevem a dinâmica de indústrias, mas também apresenta tabelas e
gráficos de indicadores financeiros, econômicos e produtivos dessas indústrias.
Contudo, é importante identificar o papel que os indicadores em geral assumem.
Nos estudos sobre longevidade, as trajetórias traçadas pelas organizações
têm sido representadas através do desempenho ao longo do tempo. Essas
trajetórias são geralmente utilizadas como indícios de tendências de crescimento e
declínio ou para identificar pontos de transição. Alguns indicadores são mais
genéricos e utilizáveis para representar praticamente qualquer organização e
indústria, tais como o PIB ou número de empregados. Outros são mais específicos,
como volume transportado, liquidez corrente ou valor dos ativos. Assim, esse tópico
visa descrever os principais índices utilizados nessa pesquisa.
O tamanho, conforme foi apresentado na Revisão Bibliográfica, é central
para essa pesquisa. O índice aqui adotado segue o descrito anteriormente por Fleck
(2001). Esse estudo utilizou como principal referencial de tamanho e de
desempenho aqueles propostos por Dantas (2007), conforme descrito a seguir:
- Tamanho ano i = (Receita Líquida ano i ÷ PIB Brasil ano i) X 100
- Desempenho ano i = (Lucro Líquido ano i ÷ PIB Brasil ano i) X 100
Esses indicadores contribuem para a análise comparativa tanto intra-
organizacional, avaliando a firma como unidade em evolução, quanto inter-
organizacional, avaliando frente aos seus competidores. A comparação de trajetórias
entre concorrentes já foi utilizada em pesquisas anteriores para sugerirem
proposições iniciais para estudo (Fleck, 2001; Ludkevitch, 2005; Rodrigues, 2005).
Estudos anteriores tiveram dificuldade com indicadores macro-econômicos,
77
como o PIB. Contudo, dado o foco temporal da unidade de análise, esses dados são
mais estáveis. O PIB também está disponível por grandes agregados econômicos e
setores da economia. No caso em questão, existe uma conta específica para
transporte de cargas e outra para ferrovia. Outros indicadores importantes foram:
investimento estrangeiro; exportações; e importações.
Apesar de se ter disponíveis informações tanto sobre a receita líquida16,
quanto sobre a receita bruta para as empresas do setor, é importante destacar a
preferência deste pesquisador pelo primeiro, pois o indicador minimiza o efeito que a
operação em diferentes regiões e indústrias pode ter sobre a interpretação da
trajetória. Contudo, diferenças na política fiscal podem ser fontes importantes de
vantagem competitiva. Por isso, é necessário controlar o uso desses dados com
informações sobre essas políticas. Por exemplo, na Argentina existem subsídios
para a compra de combustíveis para o transporte de cargas rodoviário, o que afeta a
competição entre trem e caminhão.
Outros índices de tamanho também foram coletados tanto para a empresa-
foco quanto para principais concorrentes e indústrias correlatas (transporte de
cargas ferroviário e rodoviário). Os principais foram número de funcionários e volume
transportado, mas a quantidade de certos ativos como locomotivas, vagões e
extensão da linha férrea também tiveram papel importante. O indicador de volume
mais conhecido é TKU, ou tonelada por quilômetro útil, e equivale à soma de todo
volume de cargas transportado multiplicado pelo trecho percorrido. Por exemplo,
uma tonelada transportada por um quilômetro equivale a 1 TKU. 100 toneladas por 1
quilômetro ou 1 tonelada por 100 quilômetros, ambos equivalem a 100 TKU.
Índices para a indústria logística ainda são de difícil mensuração, pois suas
atividades ainda não são claramente identificáveis e não existem estatísticas oficiais
(entenda-se, oferecidas e/ou coordenadas pelo governo brasileiro). Normalmente
são uma composição de outras atividades como transporte e estocagem. Ainda,
indicadores sobre transporte o rodoviário possuem menor confiabilidade dada
algumas questões regulatórias, como a falta de registros oficiais sobre transporte de
cargas próprias e o alto índice de sonegação fiscal de motoristas independentes.
Ainda foram consideradas análises sobre a evolução da produtividade das
16 Receita líquida = receita bruta – impostos.
78
empresas. As principais relações de produtividade foram: receita/empregados;
volume transportado/empregados; volume transportado/ativos; acidentes/volume
transportado; e volume transportado/tamanho da malha.
Como foi citado anteriormente, em geral não houve muita dificuldade para
conseguir informações para o período de tempo de maior interesse, os últimos 10
anos. Isso porque a indústria ferroviária tem uma forte estrutura de regulamentação
se comparada com outros setores, principalmente a partir do processo de
privatização. Mesmo assim, dados mais antigos sobre o transporte ferroviário
também estavam acessíveis, porém normalmente só em publicações impressas,
como o Anuário Estatístico do IBGE, disponível na biblioteca do Coppead.
As principais fontes desses indicadores foram: ALL; ANTF; ANTT; BACEN;
Banco Mundial; BOVESPA; CEL; CVM; Economática; Eurostat; Fipe; IBGE; IPEA,
Nações Unidas; Revista Ferroviária.
3.6 REGISTRO DOS DADOS
À medida que as informações foram coletadas elas foram sendo registradas
e classificadas em um banco de dados. Foi utilizado como ferramenta de registro e
de análise o banco de dados desenvolvido por Ricardo Dantas17 em seu trabalho de
dissertação no curso de Mestrado do Coppead/UFRJ, apresentado em 2007.
Baseado no software Microsoft Access18, seu principal objetivo foi dar maior
capacidade de armazenamento e organização aos fatos e relatos levantados
durante a coleta de dados. Um objetivo secundário à época do desenvolvimento era
permitir que pesquisas sobre o mesmo tema pudessem ser compartilhadas em um
repositório de dados único, facilitando o desenvolvimento futuro de pesquisas que
utilizassem como método de estudo a comparação entre casos.
A ferramenta foi desenvolvida para apoiar cinco etapas na pesquisa: (1)
cadastramento das proposições teóricas (Yin, 1989); (2) cadastramento dos fatos;
(3); classificação dos fatos; (4) detalhamento dos fatos; (5) classificação dos
detalhes; e (6) análise conjunta dos detalhes dos fatos por item de classificação.
Dessas seis, os itens 2, 3 e 4 referem-se ao registro dos dados, enquanto os itens 5
17 Detalhes sobre o sistema utilizado podem ser vistos em (Dantas, 2007). 18 Uma discussão mais profunda sobre os benefícios e dificuldades encontradas no uso do
sistema pode ser vista no Anexo III – Adaptações ao Sistema de Registro
79
e 6 referem-se à análise dos dados, debatidos no tópico seguinte deste capítulo. A
lista de proposições teóricas utilizadas cadastradas no banco de dados está
disponível em detalhes no Anexo II – Lista de Dimensões de Análise.
De maneira simplificada, o processo de registro dos dados passava pela
leitura do material recolhido, identificação de trechos aderentes à literatura e a sua
inserção no banco. Cada registro podia ser um parágrafo ou frase e cada um era
classificado quanto as seguintes características: unidade de análise da qual tratava
(pessoa, firma, indústria, etc); período temporal em que ocorreu; e fonte. Em seguida
esse registro poderia ser detalhado em uma ou mais partes. Algumas vezes alguns
registros já eram classificados com relação às proposições teóricas classificadas.
3.7 ANÁLISE DOS DADOS
A análise dos dados segue o método de equiparação de padrões, no qual
várias partes de informação sobre o mesmo caso podem estar relacionadas a
alguma proposição teórica (Yin, 1989). A partir da literatura revisitada foram
extraídas proposições teóricas, as quais definiram os padrões a serem comparados.
Essas proposições, aqui definidas como dimensões de análise, foram organizadas
em classes, a saber, os desafios de Fleck (2006), e utilizadas para classificação dos
dados levantados. As proposições identificadas, assim como a estrutura de classes
e sua descrição, estão disponíveis no Anexo II – Lista de Dimensões de Análise.
A análise compreendia três etapas: (1) classificação dos registros nas
dimensões de análise, justificando a escolha; (2) análise conjunta dos itens
identificados para cada dimensão de análise: e (3) síntese de cada conjunto.
Cada registro poderia ser associado a nenhuma, uma ou mais de uma
análise. Registros sem associação nenhuma poderiam ser relevantes para a síntese
da história. Registros com mais de uma associação poderiam remeter a mais de
uma proposição teórica. Cada associação possui uma justificativa, desenvolvendo
as motivações que levaram àquela interpretação pelo pesquisador. Em seguida,
esses registros foram reorganizados de maneira a serem lidos em conjunto,
determinados pela classificação que cada um recebeu.
A partir da reorganização o pesquisador sintetizava as informações
buscando identificar a coerência entre elas e a existência ou não de um padrão de
respostas em cada desafio. Esse padrão de resposta surgia: (a) da freqüência com
que certa proposição teórica era identificada; (b) da sua classificação como positiva
80
(resposta associada ao pólo de auto-perpetuação), negativa (associada ao pólo de
auto-destruição) ou nula (associada ao arquétipo de sobrevivência); e (c) das
justificativas apresentadas, campo responsável por manter em evidência o contexto
de cada associação. Tais conjuntos traduzem o padrão de comportamento da
organização, constituindo-se, finalmente, nos traços organizacionais. A síntese de
cada fase e desafio era comparada com a descrição dos traços de cada arquétipo.
Aquela que mais mantivesse semelhança com a síntese determinava a classificação
da resposta ao desafio naquela fase. Esse resultado é apresentado graficamente no
capítulo de Análise, usando as cores verde, amarelo e vermelho para destacar os
arquétipos de auto-perpetuação, sobrevivência e auto-destruição respectivamente.
As fases foram determinadas: (1) pela data de privatização; (2) pela
identificação de um padrão de respostas indicando o foco de atenção da gestão
durante o processo de turnaround; (3) pela participação acionária do grupo GP na
ALL. A primeira fase é chamada de Pré-compra, referente àquele conjunto de ativos,
pessoas, crenças, valores e processos que compunha a Rede Ferroviária Federal,
demonstrando quais traços a definiam. A segunda fase é chamada de
Reestruturação e é a primeira etapa da transformação da ALL. Inicia-se em 1997
com as estratégias de turnaround sob coordenação do GP, voltado para o equilíbrio
financeiro-operacional até 1999. A terceira fase é chamada de Crescimento e
equivale à quarta etapa dos processos de reestruturação, voltada para a construção
de uma trajetória ascendente de desempenho, ocorrendo entre 2000 e 2004. A
última fase, Pós-venda, refere-se ao período no qual a participação do GP no
controle acionário passou a ser muito menor quando comparado com o dos demais
sócios. Compreende os anos 2004 a 2008.
Assim, as três primeiras fases ajudam a contextualizar e justificar em parte
as ações empreendidas e a quarta fase traduz o legado do envolvimento do GP na
sua administração. A resposta à pergunta de pesquisa é apresentada a partir da
comparação entre as fases, demonstrando como a organização está preparada para
enfrentar os desafios à longevidade saudável e como ela chegou a essa situação.
81
4 HISTÓRICO
Esse capítulo apresenta o histórico da empresa estudada, abordando
também o contexto no qual está inserida. Seu objetivo é permitir a contextualização
necessária para a compreensão do capítulo seguinte, Análise.
Inicialmente uma breve apresentação dos antecedentes da indústria será
apresentado. Trata-se da formação da indústria de transportes e logística no mundo
e, em especial, nos Estados Unidos. Também apresenta as principais questões
sobre a formação ferroviária e de transporte de cargas no Brasil e como esta evoluiu
até o início da década de 90.
Em seguida o contexto será apresentado e refere-se à: (a) evolução política
e econômica brasileira desde a metade da década de 90; (b) evolução das indústrias
de logística, transporte rodoviário e ferroviário de cargas desde a metade da década
de 90. Na última parte será descrita a história da América Latina Logística desde a
preparação da Malha Sul da RFFSA, em 1996, até o final de 2008, data em que se
encerrou a coleta de dados.
Uma versão mais completa e detalhada pode ser vista no Anexo V –
Antecedentes e evolução do transporte de cargas. Além disso, antes dos anexos é
apresentado um glossário com termos específicos dos setores de transporte,
logística, ferrovia e mercado financeiro.
4.1 ANTECEDENTES DA INDÚSTRIA DE TRANSPORTES DE CARGAS
O transporte de cargas existe praticamente desde que as sociedades
humanas desenvolveram o comércio. Durante milhares de anos a locomoção de
objetos para comercialização ficou restrita ao uso de carroças, movidas por força
animal, e barcos, movidos por força eólica ou humana. Soluções tecnológicas para
ajudar nesse transporte também são antigas e evidências sobre métodos como o
uso de caneletas para manter rodas dentro de um caminho foram encontradas nos
vestígios da civilização grega.
As grandes embarcações representaram uma mudança importante no
cenário econômico mundial no século XIV, capacitando os navegadores a alcançar
distâncias longínquas e carregar muito mais carga em um espaço de tempo muito
menor do que as rotas existentes. Uma nova tecnologia bem diferente do paradigma
existente até então surgiu no final do século XVIII. Trilhos feitos de ferro foram
utilizados para movimentar carroças em uma curta rota pré-determinada. Menos de
82
uma década depois, o caminho para o surgimento das ferrovias estaria pavimentado
com o desenvolvimento do motor a vapor.
Juntos, trilhos de ferro e motor a vapor, tiveram o mesmo papel inovador que
as grandes embarcações do século XIV. Capacitaram os industriais da Inglaterra,
onde essas tecnologias surgiram, a transportar muito mais produtos a uma
velocidade muito maior entre regiões até então inacessíveis para tais volumes. A
adoção desses conceitos ocorreu por volta de 1830 e foi muito rápida no mundo
todo. No Brasil, a primeira ferrovia seria concluída somente em 1854. Mas foi nos
Estados Unidos onde ela quebrou inúmeros limites tecnológicos e desafios.
Sua adoção e expansão nesse país foram apoiadas por diversos fatores. A
formação mais recente do estado norte-americano em comparação com os países
europeus e a expansão territorial para o leste, além da disposição financeira do
governo e de investidores britânicos e do desenvolvimento econômico do país
aumentando o fluxo de importações e exportações foram questões macro-
econômicas importantes para o processo. Contudo, Chandler (1977) identificou
fatores intrínsecos à indústria e às firmas que a compunham que permitiram a
formação das primeiras grandes firmas gerenciais.
O uso e o investimento em novas tecnologias ampliavam cada vez mais a
capacidade de tráfego das locomotivas, vagões e linhas. Atividades associativas,
entre profissionais do ramo e entre as próprias empresas, permitiram a padronização
dessas tecnologias e aumento da eficiência de todo o sistema. Estruturas gerenciais
profissionais aumentavam em nível equivalente a capacidade de administração e
controle de todo o sistema, cada vez mais complexo e dinâmico. Gestor e investidor
se especializaram e a firma passou a ser uma fonte de segurança no longo prazo
para o primeiro e um ativo a ser negociado para o segundo. Tudo isso, fez das
ferrovias americanas serem de longe as maiores organizações até então existentes,
lidando com volumes financeiros, de produção e controle nunca antes vistos.
No Brasil o desenvolvimento havia sido muito mais lento. Conflitos políticos
mal resolvidos, situação econômica mais frágil, relações trabalhistas antiquadas,
baixo desenvolvimento tecnológico e características geográficas e demográficas
bastante específicas atrasariam a ampliação da malha ferroviária.
Esse ciclo alcançou seu apogeu no final do século XIX. Havia em torno de
320 mil quilômetros de vias férreas nos Estados Unidos em 1900. Não havia mais
espaço para manter as taxas de crescimento até então vistas e a cooperação deu
83
lugar a uma competição acirrada. Um forte processo de consolidação se iniciou e as
ferrovias passaram a deter ainda mais poder econômico. Devido ao alto grau de
concentração e participação na economia passaram a exercer grande pressão sobre
clientes, fornecedores e empregados. Com isso, o governo americano interveio e
formou a Interstate Commerce Commission (ICC), órgão federal responsável pela
regulação de toda a indústria.
Preços e horários para cada rota passaram a ser publicados oficialmente e
freqüentemente. A comissão tinha poder para fiscalizar e reprimir as práticas ilegais.
Enquanto isso, a tecnologia de motor evoluía, principalmente a partir da invenção do
motor à combustão. O motor a vapor já era utilizado com outros fins e havia sido
testado em carruagens, mas foi o motor a combustão que propiciou o nascimento de
mais uma forma de transporte: o rodoviário. Contudo, esse setor não evoluiria da
mesma maneira que as ferrovias. Ainda não havia organizações dispostas ou
capazes de criar a infra-estrutura, de estradas e postos de combustíveis, necessária
para a difusão do seu uso no transporte de pessoas e de cargas. Porém, não
demoraria mais do que duas décadas para que produtos como concreto, borracha e
diesel atingissem os patamares de eficiência necessários para que o transporte
rodoviário tomasse uma grande parcela do transporte ferroviário.
As duas grandes guerras seriam vetores de mudanças drásticas nas
condições de uso de caminhões e ferrovias. Sob pressões de escassez de recursos
e envolvido em uma guerra do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos
precisavam encontrar os meios mais eficientes para transportar seus homens e
insumos de guerra. O caminhão e as estradas encontravam sua função, indo
rapidamente onde as ferrovias demorariam anos para chegar. Durante a guerra,
nenhum país podia se dar ao luxo de esperar. Por outro lado o exército americano
também investia na construção do conhecimento necessário para administrar os
novos desafios na administração de materiais e transportes.
Após a Segunda Guerra Mundial, o ambiente de negócios seria
completamente distinto daquele onde surgiram as ferrovias. A guerra havia
modificado a estrutura de produção e distribuição dos países e as estradas haviam
tido um papel crucial na capacidade de integrar o país. Novas tendências de
consumo surgiam como aumento no nível de urbanização e a demanda por novos
produtos. Por outro lado, as empresas detinham novos conhecimentos sobre a
oferta: a logística surgia como forma de reduzir custos baseada no avanço da
84
tecnologia computacional. Esses e vários outros fatores levaram a uma drástica
redução do papel das ferrovias na economia dos países.
O Brasil dessa vez seguiria as tendências mundiais. O desenvolvimento
rodoviário inicial seria uma resposta à quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, que
havia reduzido a demanda global por café e a integração nacional substituía esse
mercado. Posteriormente, os governos do pós-guerra incentivariam o uso das
rodovias como forma de integrar o país e melhorar sua capacidade defensiva, mas
também estaria incluído dentro de um programa desenvolvimentista para o país.
Assim como em outras partes do mundo, o Estado ampliara sua presença na
economia e no Brasil isso se traduzia na criação de grandes empresas estatais. As
ferrovias brasileiras, depois de sucessivos períodos de lucratividade e falência,
seriam integradas sob a Rede Ferroviária Federal S.A., com o objetivo de compor
um sistema ferroviário nacional único e integrado.
O crescimento americano visto por duas décadas, baseado no crescente
consumo interno e na demanda dos países favorecidos pelos planos de
desenvolvimento do pós-guerra começaria a fraquejar. Os Estados Unidos já não
eram tão competitivos e o Japão despontava como potência econômica mundial
capaz de tirar dos Estados Unidos a liderança global. A solução americana para
essa situação foi encontrada na onda neoliberal da década de 70 e 80. O seu
princípio geral era de que a iniciativa privada poderia ser mais eficiente e benéfica
para a sociedade do que o Estado em várias dimensões econômicas. A influência
dessas políticas seria sentida sobre países do mundo todo, com incentivos a
abertura de suas economias. Nesse momento surgiam então novas propostas para
o papel do Estado na regulamentação das relações comerciais.
Os Estados Unidos passariam por um forte processo de desregulamentação
dos transportes, aumentando enormemente a concorrência entre empresas e
modais. Muitas empresas faliram nesse período e o Governo interveio em alguns
casos, como na aquisição de uma grande ferrovia, posteriormente repassada à
iniciativa privada. Na Inglaterra e em outros países seriam criadas diferentes
propostas para passar os ativos e responsabilidades para o capital privado,
operações que passaram a ser conhecidas como privatizações.
No Brasil a influência das políticas liberais demorou mais de 20 anos para
serem absorvidas. O país ainda precisava passar pelo fortalecimento de movimentos
democráticos, pois era difícil para o regime da época conceber um modelo onde o
85
Governo não detinha controle. Aos poucos esse regime foi cedendo até que na
década de 80 o país retornou às condições democráticas plenas.
Nesse processo, a crise do petróleo da década de 70 influenciou na medida
em que aumentou significativamente as taxas de juros cobradas sobre o capital. O
Estado brasileiro que havia financiado seu crescimento com o capital internacional,
viu sua produção ser corroída por um forte processo inflacionário. O país passaria
por várias tentativas de reestruturação na década de 80, mas somente a partir do
Plano Real, adotado em 1994, seria possível voltar a níveis inflacionários que não
impedissem o crescimento do país.
A crise financeira do país das décadas de 80 e 90 seria um dos principais
fatores que fundamentariam a adoção no Brasil de algumas das políticas neoliberais
propostas na década de 70 no mundo. O país ampliaria a abertura econômica e a
privatização da grande quantidade de empresas públicas teria finalmente o mínimo
de apoio necessário para que ocorresse. Além disso, foi em grande parte através
dessas operações que o Estado conseguiu contornar a crise financeira que assolava
o país há anos, obtendo dinheiro para pagar suas dívidas.
As privatizações no mundo atingiam, em sua grande maioria, setores
relacionados à infra-estrutura: empresas de transporte, de telecomunicações e de
energia estavam entre os ativos de maior interesse e responsáveis pelos maiores
volumes de investimento. Diferentes países adotaram diferentes modelos para
diferentes setores e em épocas diferentes. Como se tratava de um processo nunca
antes realizado, havia pouco conhecimento sobre as conseqüências da adoção de
um tipo de prática ou outra. Enquanto alguns países decidiram manter a participação
do Estado nessas empresas, outros diziam ser necessária a completa ausência
deste. Enquanto alguns países organizavam a divisão das responsabilidades por
serviços outros sugeriam a divisão por mercados. Mesmo quando estratégias
idênticas eram adotadas, as condições políticas e econômicas de cada país
influenciavam de forma diferente os efeitos dessas estratégias. Por exemplo, as
privatizações do Leste Europeu, países em transição entre comunismo e
capitalismo, tiveram conseqüências completamente distintas das privatizações
ocorridas na América Latina, países em industrialização.
O Brasil também adotou diferentes estratégias para diferentes setores.
Apesar das fortes críticas, o processo de privatização brasileiro foi considerado por
alguns bastante benéfico para o país. As condições de infra-estrutura melhoraram
86
permitindo novos níveis de capacidade de escoamento da produção agrícola ou
maior integração das comunicações. O país aumentou sua inserção nos mercados
globais, tanto em commodities minerais e agrícolas, como em setores mais
estratégicos, como a produção de aviões. Contudo, nem todas as empresas tiveram
sucesso nesses novos empreendimentos.
A seguir é apresentado um quadro comparativo da evolução das indústrias
de transporte de carga nos Estados Unidos e no Brasil no último século.
Figura 4-1: Evolução da indústria de transporte nos Estados Unidos e no Brasil.
Fonte: compilado pelo autor.
4.2 O CONTEXTO DA FORMAÇÃO DA ALL
4.2.1 Antes da privatização da RFFSA
Em 1995 a malha ferroviária brasileira era constituída por 26 mil quilômetros
e 133 bilhões de TKU. A Rede Ferroviária Federal respondia por mais de 22 mil
quilômetros, mas por apenas 50 bilhões de TKU. O resto estava sob coordenação
da CVRD. Para comparação, nos Estados Unidos havia 286 mil quilômetros e quase
dois trilhões de TKU (North American Transportation Statistics, 1996). A diferença na
18201830
1840
1850
1860
1870
1880
1890
1900
1910
1920
1930
1940
1950
1960
1970
1980
1990
2000
2010
EUA BRASIL
Formação das ferrovias
Formação das ferrovias
Crescimento das ferrovias
Cooperação das ferrovias
Competição das ferrovias
Regulamentação das ferrovias
Formação do rodoviário
Crescimento do rodoviário
Estagnação das ferrovias
Crescimento das ferrovias
Formação do rodoviário
Estagnação das ferrovias
Investimentos no rodoviárioSurgimento da
logísticaDesregulamenta
ção
Consolidação das indústrias
Crescimento da logística
Estatização
Investimentos no rodoviário
Crise financeira
PrivatizaçãoLogística
87
densidade dos dois sistemas pode ser vista na figura abaixo.
Figura 4-2: Densidade da malha ferroviária Brasil e Estados Unidos.
Fonte: (Confederação Nacional do Transporte, 2002)
As características dos traçados das linhas da RFFSA eram em geral
deficientes, repercutindo de forma importante, particularmente nos corredores de
exportação. As estradas foram construídas nas regiões Sudeste e Sul em áreas
montanhosas, com curvas de pequenos raios e rampas fortes, exigindo obras de
arte especiais de difícil e onerosa arquitetura. Essas condições impactavam no
desempenho operacional, pois restringiam o tamanho dos trens e sua velocidade.
Além disso, a situação dos ativos (não só via permanente e super-estrutura,
mas também material rodante) era deplorável. Isso ocorria devido: (1) o investimento
dos primeiros anos do regime militar não foi equivalente ao tamanho e às
necessidades da malha estatizada; (2) a crise financeira do país resultou em
drástica redução no volume de investimentos; (3) os investimentos seguiam a lógica
sazonal dos mandatos presidenciais (Vencovsky, 2006). As tecnologias utilizadas na
operação, há anos haviam parado no tempo em grande parte da malha. Os sistemas
eletrônicos de licenciamento utilizados em larga escala em outros países só estavam
presentes em menos de 4% da malha. O vandalismo só piorava o quadro.
Tais características reduziam o desempenho operacional também devido ao
alto índice de acidentes. Além de ocasionarem a perda das cargas e de vidas
humanas, também impediam o uso das linhas por vários dias. Completando o
quadro, as várias linhas regionais eram muito pouco integradas, dificultando o
transporte de longas distâncias. Por exemplo, as regiões Sudeste e Nordeste
possuíam apenas uma conexão férrea.
A situação da malha em geral era bastante ruim, mas os subconjuntos
tinham comportamentos extremos. Por exemplo, a malha da região Sudeste
88
correspondia a 31% de toda extensão e 70% das cargas, enquanto que a região
Nordeste tinha 30% da malha e 4% do volume. Essa disparidade era conseqüência
do papel da RFFSA em absorver e manter estradas falidas para evitar a degradação
econômica de regiões dependentes dessas linhas. Outro exemplo é que apenas 20
clientes representavam 72% da receita de toda a Rede. Isso acontecia
principalmente devido ao perfil de cargas onde quase 50% do volume transportado
pelas ferrovias brasileiras eram de minério de ferro. Essas diferenças refletiam no
interesse do setor privado em cada malha.
Analistas interessados nesses ativos destacavam aspectos positivos na
possível participação na privatização. Havia a expectativa de que o negócio tinha
alto potencial de crescimento principalmente devido à probabilidade de modificação
da matriz de transportes brasileira. Num país de dimensões continentais como o
Brasil, a ferrovia possuía somente 20% da parcela de mercado de cargas de longa
distância enquanto que nos EUA esse número chegava a 80% (Confederação
Nacional do Transporte, 2002). Supunha-se que investimentos em tecnologia e
gestão, além do novo ambiente regulatório e econômico que surgiria, reverteriam o
quadro operacional e tornariam o negócio bastante lucrativo. Por outro lado,
algumas empresas, como produtores de minério, sabiam que deter controle sobre o
transporte ferroviário era um aspecto estratégico de seus negócios.
4.2.2 A privatização
O processo de privatização da malha ferroviária brasileira inicia-se em 1990
com a inclusão da RFFSA no programa de privatização pelo governo federal. O
BNDES, na qualidade de gestor do programa de desestatização, abriu licitação em
1992 para contratar as empresas que iriam estruturar a privatização. Estas deveriam
considerar desde as características do processo de transferências de ativos e
passivos, até os critérios de acompanhamento que se seguiriam ao processo de
privatização, passando pelo modelo de leilão e critérios para divisão da malha.
Entre 1992 e 1995, o setor ferroviário passou por uma revitalização, ainda
que não tão profunda. O governo iniciou um conjunto de melhorias, sob orientação já
do primeiro grupo de consultores. O governo realizava reformas operacionais,
tornando a RFFSA mais atrativa, tais como: garantia de preservação da relevância
do modo ferroviário na matriz; linhas de crédito para investimentos; regulação da
concorrência; redução do contingente de funcionários através de um programa de
89
demissões voluntárias (PDV); e assunção dos serviços de grande parte das dívidas.
O Regulamento dos Transportes Ferroviários (RTF), publicado às vésperas
do primeiro leilão, ainda deixava de fora questões relevantes, tais como: liberdade
para desativação de linhas antieconômicas; liberdade tarifária; e tráfego mútuo. Essa
ausência não era suficiente para eliminar o interesse privado. Já havia uma grande
evolução quando comparadas as regras do setor datadas de 1963, desenhadas para
uma indústria monopolizada, com cargas avulsas e passageiros, tarifas publicadas e
horários pré-determinados. Além disso, era omissa sobre a competição com outros
modos de transporte, em particular o rodoviário.
O novo RTF destacava-se sugerindo o formato futuro da divisão da malha:
(1) dividia a malha em seis lotes (Sul, Sudeste, Centro-Leste, Oeste, Nordeste e o
trecho isolado Tereza Cristina); e (2) reestruturava a RFFSA no modelo de
organização por linha de negócio de transporte de cargas monolítico, englobando
todas as funções necessárias ao transporte em uma única entidade19;
Diante desse cenário, foi apresentado pelo Governo Federal o conjunto de
critérios do leilão e da concessão de cada malha, dos quais podemos destacar20:
a) Prazo da concessão seria de 30 anos, renováveis por mais 30;
b) Participação máxima de cada acionista em até 20% do capital votante,
evitando que aquela malha ficasse restrita ao interesse de um acionista
controlador;
c) Pagamento à vista de 20% do valor mínimo e do prêmio se houvesse;
d) Manutenção de um número mínimo de empregados da Rede;
A primeira malha a ser leiloada foi a Malha Oeste, que possuía quase 2000
quilômetros de linha férrea em bitola métrica, ligando o norte de São Paulo ao sul de
Mato Grosso. Essa malha também possuía concessão para construção de outras
vias alcançando Amazônia e Pára. O consórcio denominado Ferrovia Novoeste S.A.
venceu em Março de 1996 e assumiu a operação definitivamente quatro meses
depois. Dentre os seus principais acionistas estavam: Noel Group, um banco de
investimento americano que já atuante em ferrovias americanas; Brazil Rail Partners,
um fundo liderado pelos bancos Chase Manhattan e Bank of America; e Western
19 A Inglaterra, por exemplo, desenvolveu um modelo onde as funções de administração da malha e de transporte de cargas não podem ser exercidas pela mesma empresa.
20 Para maiores detalhes consultar (Sousa & Prates, 1997).
90
Rail Investors, subsidiária integral de outro banco de investimento americano. O
consórcio superou a proposta realizada por um grupo de investidores nacionais,
dentre os quais destacavam-se a CVRD e os bancos Bozano Simonsen e Icatu.
A Malha Centro-Oeste foi a escolha seguinte no processo de privatização,
ocorrendo em junho de 1996. Tratava-se de mais de oito mil quilômetros de estrada
de ferro, onde 98% era em bitola métrica, estendendo-se entre do estado do Rio de
Janeiro até Sergipe, passando por Minas, Espírito Santo e Bahia. Entre os principais
acionistas do grupo vencedor estavam: Railtex International; Varbra (controlada da
GP Investimentos); duas grandes indústrias brasileiras atuantes na região (CSN e
Tacumã, da CVRD); e a Lachmann e a Interférrea, transportadoras brasileiras. Havia
também outros fundos, um americano (Ralph Partners – Global Environment Fund,
composto por diversas grandes empresas americanas, entre elas a GE) e dois
fundos brasileiros (Gruçaí – também do GP – e Judori Participações – controladores
da Cimento Tupi e da Companhia Industrial de Peças para Automóveis).
Esse mesmo grupo com pequenas alterações21, também seria o responsável
pela compra da Malha Sul, que se estendia do Rio Grande do Sul, conectada à
Argentina, até encontrar-se com as linhas do sul de São Paulo. Eram em torno de
6500 quilômetros de linhas em bitola métrica. Esse foi o quarto leilão, realizado no
em Dezembro de 1996, iniciando as operações três meses depois.
Na época em que se realizava o leilão da malha sul, a operação da malha
sudeste já estava sob jurisdição privada. Essa malha ferroviária era responsável
pelo tráfego de cargas nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo,
com a maior parcela de volume e de faturamento da antiga Rede Federal, mesmo
com apenas 1700 quilômetros de linha. Havia trechos recentemente construídos,
além de ter toda sua estrutura em bitola larga. O consórcio vencedor era
fundamentalmente composto por mineradoras e siderúrgicas (CAEMI e CSN). Havia
também dois fundos de pensão, ligados às empresas anteriores, um banco
(Bradesco) e novamente a Lachmann e a Interférrea. O grupo superou as propostas
feitas pela CVRD e pela CSX, uma ferrovia americana. A partir de então nascia a
MRS Logística.
No mesmo período, foi leiloada a Ferrovia Paraná Oeste, construída no
21 As mineradoras não faziam parte e os percentuais de participação eram razoavelmente diferentes, com uma grande parcela de controle para o Grupo GP Investimentos.
91
começo da década de 90, tendo iniciado as operações em 1996 ainda sob domínio
público. O consórcio vencedor dos 250 quilômetros de malha que ligava as regiões
produtoras de grãos desde a fronteira em Foz do Iguaçu chamava-se Ferropar. Em
seguida haveria a privatização de uma pequena rede em Santa Catarina, chamada
Tereza Cristina, com menos 200 quilômetros de linha, para um consórcio formado
por empresas produtoras da região.
Somente no meio de 1997 a Malha Nordeste seria leiloada. Com mais de
quatro mil quilômetros de bitola métrica presente em todos os estados do Nordeste,
menos Bahia e Sergipe, passaria para o controle da Vale, da CSN e de dois fundos
de investimento nacionais (Taquari e ABS).
Em 1997 também, o Estado de São Paulo entregou a sua empresa de
transportes ferroviários como pagamento de parte de sua dívida com o Governo
Federal. Mais um ano se passaria até que a FEPASA também fosse privatizada. O
consórcio vencedor da malha de dois mil quilômetros no estado de São Paulo era
formado por alguns fundos de pensão (Previ, Funcef), um banco americano (Chase
Manhattan), por uma construtora (Constran) e pelo mesmo consórcio que havia
investia na Ferronorte, uma concessão ferroviária realizada no fim da década de 80.
Podemos classificar os novos donos da malha brasileira nos seguintes
grupos: bancos de investimento, fundos de pensão e clientes (mineradoras,
siderúrgicas e transportadoras de cargas). Apesar de alguns dos bancos possuírem
experiência de investimento em outras ferrovias pelo mundo, somente o terceiro
grupo possuía real conhecimento técnico suficiente sobre o negócio ao mesmo
tempo em que conhecia também as características do mercado. Não demoraria
muito para que a estrutura de controle das concessões mudasse, principalmente em
razão dos resultados financeiros e operacionais. As concessões que se destacaram
na realização das mudanças necessárias foram as concessões Sul e Sudeste.
No primeiro ano após a conclusão de todas as operações de privatização da
malha brasileira, algumas reestruturações foram concebidas. A ALL passaria a deter
25% do capital da Ferropar. A mesma empresa passaria a deter o direito de
passagem pelo período da concessão da Ferroban em um trecho no sul de São
Paulo. Outros trechos da Ferroban seriam entregues também tanto para a FCA
quanto para a MRS.
92
4.2.3 Depois da privatização
Com as concessões das malhas ferroviárias à iniciativa privada, os cofres
públicos deixaram de ser onerados devido aos déficits anuais da operação da
RFFSA. O governo, por sua vez, passou a arrecadar mais com os pagamentos
trimestrais efetuados pelas empresas pela concessão e arrendamento dos bens.
Entre 1994 e 1996 a RFFSA acumulou prejuízos da ordem de R$ 2,2 bilhões; já
privatizada, entre 1997 e 2006, gerou R$ 6,8 bilhões entre impostos, concessões e
arrendamentos (Vilaça, 2008).
A política macroeconômica adotada pelo governo brasileiro no início dos
anos 90, e principalmente com a adoção do Plano Real, levaram a um aumento na
demanda das ferrovias, mas não a um movimento equivalente na oferta. A situação
financeira do país ainda era difícil e as privatizações tinham o duplo papel de
redução dos déficits do governo e geração de caixa para pagamento dos serviços da
dívida. Assim, as fontes de financiamento eram um tanto limitadas na época: os
principais investidores eram estrangeiros; os fundos de pensão de grandes estatais;
e o BNDES.
Embora o transporte ferroviário esteja estreitamente relacionado à atividade
econômica, ele se compõe no Brasil basicamente da movimentação de cinco grupos
de produtos: minérios de ferro, granéis agrícolas para exportação, combustíveis,
produtos siderúrgicos e cimento. Na maioria dos sistemas ferroviários dos países
desenvolvidos ou em desenvolvimento, existe grande predominância de alguns
produtos no total da carga. Entretanto, em nosso país há uma concentração
exagerada: os produtos citados já alcançaram 90% da carga e somente o minério de
ferro já representou 70% do volume transportado.
No período pós-privatização enquanto algumas concessionárias começam a
investir na expansão de suas cargas para além dos produtos que eram
transportados na época estatal, outras buscavam diferentes formas de renovar os
ativos em péssimo estado de conservação. A EFVM, da Vale, inaugura em 1998 o
seu Terminal de Produtos Diversos, com berço exclusivo para grãos para o
embarque de soja no Porto de Vitória. A MRS, por sua vez, instalou uma rede de
fibra ótica em toda a sua malha. Já a Ferronorte adquiriu 50 locomotivas de última
geração e vários vagões, ao mesmo tempo em que continuava expandindo a malha
para o interior do país na direção de Cuiabá.
93
Contudo, o cenário geral era de recuperação de ativos e aumento da
produtividade através de tecnologia e melhoria da gestão. Novas empresas,
algumas por funcionários que aderiram ao PDV, passaram a prover o serviço de
desenvolvimento de sistemas, manutenção ou consultoria. Era um novo e grande
mercado que se abria, pois a RFFSA, como empresa pública, possuía ainda um
baixo grau de terceirização.
Nos primeiros anos após a privatização a responsabilidade pela
regulamentação do setor ficaria sob responsabilidade do Ministério dos Transportes
através da Secretaria de Transporte Terrestre. Essa entidade passou a determinar e
acompanhar as metas de produção e de redução de acidentes dos concessionários,
assim como de seus planos de investimentos. A RFFSA, por outro lado, regulava a
qualidade do serviço e recebia pelo contrato de concessão dos bens arrendados,
além resolver ainda as pendências jurídicas. Em Julho de 2001 seria finalmente
assinada a lei que criaria a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), a qual
começaria suas operações em fevereiro do ano seguinte.
4.2.4 A reestruturação do setor
A ANTT seria a responsável por colocar em prática o Plano Nacional de
Revitalização das Ferrovias. O principal objetivo do plano era colocar em prática as
diversas promessas do governo para tornar o setor mais competitivo. Uma das
principais foi transferência de trechos das concessionárias de maneira a favorecer
os corredores de transporte de carga do país.
Foi a partir dessas operações que surgiu a holding Brasil Ferrovias, que
passou a deter o controle sobre as concessões da Ferronorte, Novoeste e Ferroban,
um complexo de ferrovias responsável pelo escoamento da produção agrícola do
centro-oeste brasileiro. Um pouco mais ao norte do país, a ANTT costurou um
acordo entre CSN e CVRD para que ambas descruzassem as suas participações
nas ferrovias FCA e CFN que dificultavam o aumento dos investimentos e o
decorrente turnaround das operações. Isso iria se refletir ainda na reformulação da
forma de tarifação para os sócios da MRS. Além disso, instituiu regras mais claras
com relação ao não cumprimento das metas, definindo multas.
A partir de então o país encontraria uma situação econômica e financeira
bastante favorável e os investimentos passariam a ocorrer em diversos setores de
produção. A Vale, numa estratégia global de consolidação da indústria de minérios,
94
adquiriu as Minerações Brasileiras Reunidas, a qual detinha 20% do capital votante
da MRS que, somado ao quase 20% da própria Vale, fariam dela a principal
acionista dessa ferrovia também.
Na contra-mão dos resultados positivos das outras concessões, Ferropar e
Brasil Ferrovias continuavam sofrendo ano a ano com resultados cada vez piores.
Essas ferrovias disputavam na justiça alguns processos contra o governo alegando
que o contrato de concessão havia sido firmado sob condições de mercado
diferentes. As condições atuais, decorrente do processo de abertura de mercado do
setor de óleo e gás, tornavam o equilíbrio econômico do negócio inviável.
A Brasil Ferrovias passaria por mais uma reestruturação societária em 2005
com mudança na participação dos sócios, principalmente com a entrada do BNDES
devido à inadimplência do grupo com relação a vários financiamentos. O processo
de consolidação da indústria alcançaria em 2006 o estágio que manteria até 2008,
quando a ALL adquiriu a totalidade das ações da Brasil Ferrovias através de uma
troca de ações com seus controladores.
Essa fase também veria o renascimento da indústria ferroviária nacional,
com a compra de novos vagões e obras de infra-estrutura e ampliação da malha.
Dois foram os motivos: (1) novas fontes de financiamento surgiram por parte do
governo, mas também em larga escala pela iniciativa privada para a aquisição de
vagões; e (2) os espaços para crescer com uso de tecnologia e aumento de
produtividade já possuíam um retorno de investimento, no mínimo, compatível com o
investimento em expansão. Clientes das ferrovias e empresas de leasing de ativos
industriais foram os principais atores na compra e aluguel de vagões e na
construção de ramais ferroviários.
Movimentos mais significativos na ampliação da malha ficaram restritos ao
capital público, mas surgiram em escala relevante. A Ferrovia Norte-Sul, ligando o
centro ao norte do país através dos estados de Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará,
sairia definitivamente do papel com o leilão de um de seus trechos, vencido pela
Vale. Também seriam ampliados os investimentos na Ferronorte, em direção ao
Mato Grosso e da Transnordestina, integrando o interior do Nordeste. Abaixo o
mapa das concessões brasileiras e dos projetos existentes. Em seguida, um gráfico
apresentando o tamanho da frota de vagões e volume de produção no Brasil nos
últimos anos.
95
Figura 4-3: Mapa ferroviário brasileiro.
Fonte: Plano Nacional de Logística de Transporte, Ministério dos Transportes – 2007.
Figura 4-4: Tamanho da frota e produção anual de vagões.
Fonte: compilado pelo autor. Relatórios Anuais de Acompanhamento das Concessões, ANTT.
8691297 1283
748294
2.028
4.502
7.500
3.589
1.165
65.337 65.337 65.524
69.37667.795
62.932
74.400
90.119
87.073 87.008
0
1000
2000
3000
4000
5000
6000
7000
8000
9000
0
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
60.000
70.000
80.000
90.000
100.000
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Produção Frota
96
4.3 HISTÓRICO DA AMÉRICA LATINA LOGÍSTICA
4.3.1 Diagnóstico da Malha Sul
Após o governo federal divulgar seu plano para privatizar o setor ferroviário,
Alexandre Behring começou a analisar a possível participação no portfólio de
investimentos do grupo dos ativos das diversas malhas da RFFSA. Ele havia
entrado no banco de private equity GP Investimentos um ano antes, logo após
concluir seu MBA na Inglaterra. A empresa havia sido fundada há pouco tempo
pelos ex-donos do Banco Garantia, vendido ao Credit Suisse durante a crise
econômica deflagrada pelas bolsas do sudoeste asiático22.
Esses sócios já tinham bastante experiência em processos de aquisição de
empresas e turnaround, com alguns dos principais casos de sucesso no Brasil, tais
como Lojas Americanas e Brahma. Segundo o endereço eletrônico da empresa em
200123, o objetivo da empresa era “a busca de ganhos de capital elevados através
da aquisição de participações de controle, ou de investimentos acionários com
significativa influência na administração, em companhias que mostrem um grande
potencial de crescimento de seu valor de mercado.”
A malha que viesse a ser adquirida seria mais uma empresa a compor a
primeira carteira de investimento (GPCP I) formada em 1994 com recursos de
investidores estrangeiros institucionais. Essa carteira, na época da avaliação das
ferrovias, incluía empresas como ShopTime (primeiro canal de televisão doméstico
de compras), PlayCenter (um dos maiores parques de diversão do Brasil) e Artex
(uma das maiores fabricantes de produtos de cama, mesa e banho)24. Apesar da
estratégia deliberada de controle sobre a gestão da empresa adquirida, em
nenhuma dessas operações o GP se tornou o único sócio. Havia sempre alguma
empresa com conhecimento específico do setor: no ShopTime havia a Globo
Participações; e na Artex, havia a Coteminas. Não seria diferente para o caso das
malhas ferroviárias brasileiras.
Para ter esse conhecimento no setor ferroviário, foi convidada a empresa
RailTex International a partir do contato de Carlos Alberto Sicupira, sócio fundador
22 Para mais detalhes sobre o GP Investimentos ver Anexo IX. 23 O endereço eletrônico www.archive.org mantém guardadas várias versões de diferentes
páginas web ao longo do tempo. 24 Retirado do site www.gpinvestimentos.com.br, acessado em 05/04/2008.
97
do GP, com um colega de turma de seu curso de MBA em Harvard em 92. A
convidada havia sido constituída em 1977 e era formada por técnicos e gerentes de
longa data oriundos das grandes ferrovias americanas. Bastante reconhecida por
seu presidente e fundador, Bruce Flohr, inicialmente alugava locomotivas e vagões,
mas expandiu suas operações para as ferrovias com uma estratégia de takeover e
turnaround de sucesso. Adquiria ferrovias que operavam em estados onde não havia
sindicatos; oferecia salários inferiores, porém altas remunerações variáveis;
mantinha um foco em vendas para clientes que ficavam entre cinco e dez milhas de
distância da ferrovia; e utilizava locomotivas usadas o invés de comprar sempre
novos equipamentos25.
O grupo GP acreditava que a única maneira de se fazer dinheiro em private
equity no Brasil era adicionando valor ao negócio através da gestão direta das
operações, pois outras opções como LBO’s eram inviáveis à época, dado o nível
incipiente do mercado de capitais, mas também fornecia excelentes oportunidades,
dada a evolução do arcabouço político-econômico brasileiro. Por isso a análise do
negócio envolvia a busca por informações da operação, dos mercados e não
somente informações financeiras. Foi formado um time com 20 técnicos da RailTex
sob a coordenação de Behring e Sérgio Pedreiro, outro associado da GP que havia
sido recentemente contratado após seu MBA em Stanford. Segundo Behring:
“O transporte por ferrovias possui uma demanda dormente... A chave para o aumento de receitas no negócio era pegar a parcela de mercado de caminhões. O crescimento não dependeria de padrões macroeconômicos favoráveis. Ferrovias, quando bem administradas, possuem um monopólio natural com vantagens estratégicas de custos sobre caminhões e são imunes a competição global.” (Sull, Martins, & Silva, 2004)
O processo de due diligence realmente levantou a existência de uma grande
demanda reprimida, principalmente junto aos clientes existentes. As empresas dos
setores de produtos agrícolas, cimento, madeira e combustíveis representavam 30%
da carteira e 80% das receitas na Malha Sul. A grande maioria dos clientes só não
transportava mais carga por ferrovia devido aos seguintes fatores: não havia
capacidade; as linhas estavam em péssimas condições; a freqüência de transporte
era baixa; e a qualidade do atendimento era ruim.
Mesmo depois de já ter participado e ganho o leilão da Malha Centro-Leste
25 Para mais detalhes sobre a RailTex ver (Sull, Martins, & Silva, 2004).
98
com um consórcio bastante semelhante, o grupo conseguiu adquirir a malha sul com
um prêmio de 38% sobre o valor mínimo. Contudo, no caso da Malha Sul conseguiu
um acordo melhor com seus sócios onde pode assumir a direção do negócio.
O contrato de concessão previa que 20% do valor mínimo mais o prêmio
fossem desembolsados no ato da aquisição e o restante seria pago ao longo do
prazo de concessão, com dois anos de carência. A nova empresa se chamaria
Ferrovia Sul Atlântico, ou FSA. Os ativos arrendados eram em sua grande maioria
locomotivas, vagões e imóveis (estações, prédios administrativos e armazéns). Além
disso, havia também os equipamentos utilizados ao longo da via férrea como
sistemas elétricos de controle e a rede de transmissão.
No intervalo de três meses entre o leilão e o início das operações, o
conselho de administração e a diretoria foram formados. A composição era de três
representantes do grupo GP (Alexandre Behring, Sérgio Pedreiro, e José Carlos
Sicupira), três representantes dos fundos investidores e outro da RailTex, um
executivo de uma outra aquisição desta última na África do Sul.
Como primeiro presidente, foi escolhido José Paulo Alves, que havia
recentemente deixado a presidência da Minerações Brasileiras Reunidas S.A., uma
empresa do grupo CAEMI, que por sua vez era um dos controladores da MRS. Além
de principal executivo, ficou responsável também pela administração das operações
e da área comercial. Pedro Paulo Oliveira Almeida estava “emprestado” do grupo
GP desde que a compra havia sido anunciada. Ele foi o responsável pelo
planejamento e do downsizing que se seguiria, sendo então diretor de recursos
humanos e relações institucionais. Um terceiro executivo ocupava o cargo de diretor
financeiro.
4.3.2 Buscando o reequilíbrio operacional e financeiro
A função desse grupo nos nove meses que se seguiram foi implementar
uma forte redução de custos e de pessoal. A força de trabalho já havia sido reduzida
de aproximadamente 12.000 para 6.300 pelo PDV do governo, mas o novo grupo
reduziu novamente para aproximadamente 3.500 funcionários. Essa redução tinha
como meta muito mais equilibrar a capacidade de produção com a demanda do que
contribuir para o aumento da eficiência. O objetivo era também transmitir uma
mensagem clara para a força de trabalho e para o mercado: a lógica do negócio se
tornara definitivamente a lógica privada.
99
Naturalmente essa quantidade de demissões trazia impactos significativos
para a operação. Houve basicamente três reflexos para compensar a falta de
quadro: aumento significativo da carga de trabalho dos funcionários que ficaram;
terceirização de inúmeras atividades, principalmente através das empresas abertas
por ex-funcionários da Rede; e investimento em tecnologia operacional. Por
exemplo, a instalação de computadores de bordo permitiu que as locomotivas
fossem conduzidas por um único maquinista e a localização por GPS reduziu a
necessidade de agentes de estação para indicar disponibilidade de via. Tais
tecnologias já vinham sendo utilizadas com muito sucesso há alguns anos nas
ferrovias da Estrada de Ferro Vitória-Minas e Carajás, administradas pela Vale,
assim como nas frotas de caminhões de algumas poucas empresas.
Depois que grande parte do trabalho de reestruturação e corte foi realizado
no ano de 1997, começava a se planejar como executar a administração do negócio
em uma nova fase. Assim como havia ocorrido em outras aquisições do grupo GP, o
analista responsável pelo processo de avaliação da aquisição se tornava o
presidente da empresa adquirida. Behring era essa pessoa e antes de assumir, José
Carlos Marreco, consultor em logística e ex-Diretor de Transportes da CVRD,
assumiu a presidência interinamente pelo período de seis meses.
Enquanto Marreco era presidente, Behring buscou seus pares no GP para
entender o que fizeram nas aquisições. Marcel Telles, ao assumir a Brahma, e
Carlos Alberto Sicupira, nas Lojas Americanas adotaram um conjunto semelhante de
práticas. Valorizavam o papel dos recém-formados, implantaram um sistema de
remuneração variável agressivo e forçavam o conflito com funcionários de baixo
desempenho. Também colocaram um sistema de metas desdobradas associado a
um orçamento base zero e construíam um ambiente onde os escritórios eram
abertos, com no máximo meias baias dividindo o espaço entre áreas. Por fim,
destacaram a importância de exibir publicamente o desempenho de cada um, em
especial dos principais executivos.
Behring e o conselho formariam agora um quadro de executivos mais
completo que iria auxiliá-lo na administração da empresa dali por diante. Raimundo
Pires Martins da Costa foi mais um executivo trazido da Vale, onde atuava como
gerente de operações ferroviárias. Sua função na FSA seria Diretor de Operações.
Pedro Paulo permaneceu na posição e, para assumir a área comercial, foi convidado
Walter Luis de Souza, diretor comercial de uma transportadora rodoviária mineira.
100
Souza montou uma nova equipe comercial trazendo seis novos funcionários.
Completando o quadro de cinco profissionais, foi chamado Alceu Duilio Calciolari,
para ser Diretor Financeiro, cargo que ocupava anteriormente em uma grande
empresa de fundição. O conselho permanecia sem muitas alterações.
O novo grupo executivo iniciou suas atividades em Julho de 1998. Nos
primeiros 10 dias na posição de novo presidente, Behring e Almeida executaram o
ajuste fino do downsizing iniciado por Alves. Entrevistaram 150 gestores, escolhendo
30 que fariam parte da equipe responsável pela mudança cultural. Aqueles que,
segundo eles, não conseguiriam fazer a transição, foram demitidos ou alocados em
posições menos proeminentes. Esses 30 gestores avaliariam a situação da
companhia e decidiriam como seriam realizadas as reduções de custo projetadas
em cada uma de suas áreas. Uma segunda rodada de demissões coordenada por
eles levou o quadro funcional a menos de 2400 funcionários ao final do ano de 1998.
Nesse mesmo ano, a primeira turma de trainees começava a assumir as
posições gerenciais da empresa. Esses profissionais, juntamente com alguns
gerentes da Rede Ferroviária que sobreviveram ao processo de demissão,
ocuparam o espaço e receberam grandes desafios. Nessa época chegava à
empresa um novo funcionário, recém-graduado mestre em administração pela
Universidade de Warwick, Inglaterra. Bernardo Vieira Hees foi um dos primeiros
brasileiros a ser financiado pela Fundação Estudar, uma organização sem fins
lucrativos criada pelos donos do GP, cuja missão declarada é “colaborar com a
educação e formação de futuros líderes brasileiros, por meio da concessão de
bolsas de estudo”.
O período ainda era de dificuldades financeiras. A aquisição havia
consumido R$90 milhões do capital investido na privatização. Os processos
trabalhistas decorrentes da demissão em massa, por sua vez, totalizavam
aproximadamente R$40 milhões. Eram previstos investimentos da ordem de R$100
milhões em ativos frente a um faturamento de R$200 milhões/ano e um caixa de
R$30 milhões. Além disso, os ativos eram arrendados da RFFSA e, portanto, não
podiam ser dados como garantia para empréstimos junto às instituições financeiras,
restando o uso de notas promissórias, contas cauções e o uso dos próprios ativos
adquiridos como garantias. O GP estava restrito na sua capacidade de angariar mais
fundos para esse projeto, pois já se negociava a compra de linhas na Argentina.
Um dos principais financiadores dessa fase em todas as ferrovias foi o
101
BNDES. Contudo, o empréstimo com as taxas bastante atrativas do banco26, era de
baixa flexibilidade: o financiamento era restrito a projetos alinhados com as políticas
públicas; só podiam compor até 60% do capital necessário; deviam ser gastos na
indústria nacional; e os fornecedores eram pagos diretamente pelo próprio BNDES.
Segundo o principal executivo financeiro, o Unibanco também esteve
presente nessa fase inicial realizando empréstimos para diversas ferrovias, mesmo
sob condições adversas. O banco fez parte de algumas das concessionárias
formadas para os processos de licitação. Com a ALL, firmou contratos com
vencimento em 18 meses, para projetos que previam geração de caixa somente no
quarto ou quinto ano. Ou seja, já era sabido que seria necessário rolar a dívida
criada naquele momento. Era necessário financiar um projeto de longo de prazo com
recursos de curto prazo. Sérgio Pedreiro descreve a percepção da alta gestão:
“O único risco que tínhamos era o financeiro. Não havia risco de mercado porque o mercado estava muito forte. Não havia risco tecnológico, pois a probabilidade de surgir uma tecnologia nova em termos de transporte era baixa, até no médio prazo.” (Pedreiro, 2008)
Calciolari, o Diretor Financeiro, definiu um processo de orçamento que
restringia os investimentos a projetos que gerassem aumento imediato de caixa
como forma de reduzir a dependência de fontes externas de financiamento. Eram
aplicadas quatro regras aos projetos: (1) deviam eliminar gargalos que impediam o
crescimento das receitas; (2) aqueles que geravam caixa mais cedo eram preferidos,
mesmo se o valor presente líquido não fosse o maior entre as possibilidades; (3)
opções que solucionavam rapidamente os problemas eram preferidas àquelas que
exigissem um prazo maior; e (4) a reforma de ativos era preferida à aquisição de
novos equipamentos e materiais.
Os executivos se referiam a essas práticas como “estratégia vietnamita”.
Alguns exemplos são: a compra de locomotivas usadas da África e a reforma de
outras da frota morta; expansão dos tanques de combustíveis das locomotivas; uso
de locomotivas com problemas de tração como geradoras de energia; e uso de
trilhos bons de estacionamentos para substituir os trilhos das linhas principais.
A questão financeira estava diretamente relacionada com os objetivos
26 Em 1997, os juros através do Finame – programa do BNDES de financiamento para aquisição de equipamentos – eram próximos a 15% a.a. enquanto que as taxas de mercado eram próximas de, pelo menos 30% a.a.
102
operacionais. Sem aumentar o volume transportado o negócio não seria viável. A
maior dificuldade para poder transportar mais carga naquela época era a limitação
na disponibilidade de ativos: simplesmente não havia vagões e locomotivas
suficientes em condições de operação. Era preciso não só ter mais ativos, como
também produzir mais com esses ativos. Acima de tudo, os investimentos seriam
voltados para aumentar o nível de utilização que, na época estatal estavam na faixa
de 70% (mais de 20% dos vagões estavam inutilizados e dos vagões que rodavam,
os níveis de uso eram inferiores a 90%).
Ainda que a demanda estivesse acima da capacidade, a qualidade dessa
demanda não era a desejada. A maioria dos clientes havia se acostumado com a
baixa confiabilidade das operações ferroviárias da Rede Federal, com atrasos e
perda de cargas devido ao grande número de acidentes. Dessa maneira, a ferrovia
era utilizada quando outros meios estavam com a capacidade esgotada ou quando
tais empresas haviam, de alguma forma, conseguido superar todas as dificuldades
para que fossem atendidas, sendo servidas quase que por direito.
Do lado da organização da operação, Raimundo Costa, optou por modificar
a divisão por função da época estatal por uma divisão por unidades de produção e
de negócio, semelhante à utilizada em ferrovias nos EUA e à estrutura das ferrovias
adotada por ele na Vale. Antes, a área de operações da Rede Ferroviária Federal
dividia-se em funções como Via Permanente, Produção, Mecânica e Automação
onde cada uma mantinha suas próprias estruturas ao longo da malha e possuía
seus próprios ativos. A operação comercial por sua vez sempre foi centralizada na
sede da Rede, que ficava no Rio de Janeiro.
Com a reorganização, essas áreas funcionais passaram a existir dentro de
unidades de produção (UP). Cada UP responsabilizava-se por uma região e pelos
ativos que ali trafegavam, como se fossem mini-ferrovias, provendo todas as
condições necessárias para a realização de um fluxo: linha, locomotiva, vagão,
maquinista e carga. A UP Curitiba, situada na sede, também tinha o papel de atuar
como uma unidade corporativa que integrava e coordenava as práticas de operação.
Para cada uma foi escolhido um gerente de UP com responsabilidade sobre os
resultados da sua unidade, mas também com autonomia para buscar novas cargas
e para gerenciar os ativos ali disponíveis e seu orçamento.
103
4.3.3 As sementes da nova cultura
O grupo controlador acreditava numa mudança cultural forte baseada no
mesmo modelo adotado em outras aquisições. Buscou desenvolver a meritocracia
através das três práticas comuns às empresas adquiridas pelo GP: o modelo de
metas desdobradas; o processo de orçamento base-zero e o programa de
remuneração variável. Finalmente as crenças e valores do principal acionista seriam
passadas para a empresa adquirida.
Em sua primeira versão o conjunto funcionava da seguinte maneira: entre
setembro e novembro de cada ano os gerentes reuniam-se com seus supervisores e
definiam cinco metas, todas quantificáveis e com responsabilidade individual,
desdobradas de cima para baixo; cada um submetia aos seus superiores o
orçamento necessário para cumprir as metas estabelecidas, devendo justificar
durante as reuniões as motivações para cada despesa; com o orçamento definido,
cada um tinha autonomia sobre como alcançar suas metas com seu orçamento;
essas metas eram apresentadas publicamente e atualizadas regularmente ao longo
de todo ano; o cumprimento dessas metas definia se os funcionários receberiam ou
não o bônus; além disso, era necessário que a empresa alcançasse a meta global
de produção para que cada um tivesse direito a concorrer à remuneração variável;
os níveis mais altos da empresa possuíam uma parcela bem maior atrelada ao
alcance das metas do que os funcionários dos níveis mais inferiores.
Esse método não era inovador. Na realidade baseava-se em ferramentas de
administração conhecidas e utilizadas em todo o mundo há décadas, principalmente
nos EUA. O que a tornava um diferencial era a agressividade com que a política era
adotada, além de ser bem diferente da cultura de empresas públicas.
No final de 1998 a FSA adquiriu parte do controle da Ferropar e firmou
contrato com a Fepasa para que pudesse operar um trecho ao sul da malha paulista.
Essa malha era crucial para todo o setor devido a sua posição estratégica no centro
econômico nacional, além de estar ligada ao porto mais movimentado do país,
Santos. Essa ação fazia parte da estratégia do governo para otimizar a malha,
alinhando as concessões com os corredores de exportação e evitar que, com a
privatização, algum player exercesse controle total do acesso estratégico ao porto.
Nessa mesma época outro grande trecho da malha paulista foi cedido para a FCA e
uma pequena parte para a MRS. Por fim, com o que restou foi criada a Ferroban,
104
ligada à Ferronorte.
Em 1999, a FSA investiu na compra de roadrailers, vagões adaptados para
trafegar tanto em rodovias quanto em ferrovias, permitindo uma melhor integração
multimodal e a expansão para a atividade de transporte de cargas rodoviárias. A
MRS já havia testado e adquirido equipamentos semelhantes no ano anterior, num
projeto desenvolvido em conjunto entre duas empresas brasileiras e uma espanhola.
Esse equipamento já era bastante utilizado nos EUA e na Europa. A solução visava:
aumentar a confiabilidade e a proximidade com o cliente, eliminando o transportador
rodoviário terceirizado; e reduzir o tempo total de frete, principalmente através da
eliminação da necessidade de transbordo (América Latina Logística, 2001).
Finalmente concluía o processo iniciado dois anos antes (praticamente junto
com a aquisição da malha sul e malha centro leste brasileira), quando decidiu
comprar duas ferrovias na Argentina ligadas entre si, sendo uma delas contínua à
linha brasileira. A nova unidade guardava poucas semelhanças com relação à
experiência brasileira. As ferrovias argentinas haviam sido privatizadas em 1992 e,
no modelo adotado, o governo manteve 16% do controle das ferrovias concedidas.
Além disso, era o final do governo Menem e, afundado em uma de suas
piores crises, os ativos argentinos estavam desvalorizados, enquanto que o Brasil
estava em crescimento. O país ainda passava por muitos outros problemas e as
reformas necessárias nesse e em outros setores não caminhavam. Os sindicatos
tinham forte presença e a cultura de trabalho pública ainda era bastante presente
entre os funcionários das ferrovias. Além disso, a estrutura de operação da nova
malha era bem diferente da existente no Brasil (Entrevistado # 14, 2008).
Para adequar-se à nova posição competitiva, com maior participação do
transporte rodoviário e com a atuação internacional, o nome da empresa foi
modificado para América Latina Logística. O primeiro estatuto social, de 1998,
demonstra que esses movimentos já eram planejados desde a criação da empresa.
O sistema de remuneração variável que diferenciava a remuneração por
níveis hierárquicos foi modificado. Todos passaram a concorrer a um bônus simples
ou duplo. Os 10% melhor classificados seriam bonificados com 10 salários. Os 50%
seguintes receberiam cinco salários. Os 40% restantes receberiam somente um
salário, referente ao atendimento da meta global da empresa. Nesse mesmo ano foi
instituído o primeiro programa de stock options para os funcionários.
Mais de 50 universitários haviam sido contratados em 1999, através do
105
programa trainee e do programa de estágio. Ou seja, um pouco menos de um terço
do corpo gerencial existente na sede naquela época.
Os investimentos em desenvolvimento continuaram com a implantação da
Universidade Corporativa da ALL, a UniALL, em 2000, cujo objetivo inicial era suprir
a demanda por pessoal de operação de terminais e estações, alem de maquinistas.
No início, os treinamentos tratavam principalmente do desenvolvimento de pessoal
para a operação ferroviária. Não demorou muito para que a empresa estendesse a
utilização da estrutura de ensino para outros funcionários e para outras linhas de
desenvolvimento como qualidade e gestão. Os novatos agora recebiam treinamento
nas ferramentas por pessoal interno. Foi criado também um curso de MBA em
Logística com a colaboração do Coppead/UFRJ, uma dos principais centros de
estudo da área no Brasil.
Tentou-se formar uma diretoria de planejamento estratégico, mas foi um
projeto de consultoria que rendeu os resultados esperados. Dentre as principais
conclusões do estudo, destacou-se a expansão da fronteira agrícola e como
absorvê-la, os fluxos de produtos industriais dentro dos eixos de integração sul-
americanos e a capacidade e a evolução dos mercados atuais de commodities
agrícolas e líquidas. Foi a melhora operacional e financeira que abriu caminho para
novas fontes para financiar os projetos identificados na análise de mercado.
O alto escalão estava um pouco diferente. Bernardo Vieira Hees em menos
de dois anos se tornou diretor financeiro e conselheiro. Entre os outros, havia
presidentes de empresas de celulose e madeira, autopeças, cimenteiras e
transportadoras de carga, além dos já comuns representantes das empresas
controladoras. Havia duas novas diretorias: a de logística e a de granéis. Ambos os
executivos haviam trabalho na Ambev, outra empresa do GP (sendo um ex-diretor e
outro ex-gerente), antes de serem contratados para trabalhar na ALL. No ano
anterior havia vigorado também a Diretoria de Planejamento e Desenvolvimento de
Novos Negócios dirigida por um ex-executivo da Shell, mas essa estrutura nunca
mais foi apresentada27 nos relatórios da empresa.
Na recém criada área de industrializados, vinculada à diretoria de logística, a
empresa começara a desenvolver os primeiros contratos de maior volume
27 Relatório de informações anuais de 1999 entregue à CVM pela ALL SA.
106
associados ao transporte de cargas de maior valor agregado e menor sazonalidade.
Tais fluxos, transportando cimento, clinquer, celulose, madeira, e combustível, já
existiam desde o tempo de Rede Ferroviária Federal, mas o volume era baixo e os
investimentos em ativos específicos eram menores ainda.
O desenvolvimento desse tipo de carga era de grande importância, pois
reduzia a dependência existente com relação ao transporte de commodities, tanto
quanto à sazonalidade quanto aos riscos de quebras de safra. A prática comum na
carga agrícola era de contratos spot, o que reduzia o preço do frete pela alta
competição entre transportadores. Essas cargas eram muito dispersas, tanto em
termos geográficos quanto em termos temporais, não só devido à diferença sazonal
de cada commodity, mas também devido ao grande número de produtores e às
diferenças de planejamento destes.
Tais clientes já estavam acostumados a ter que contratar o transporte
rodoviário para levar a carga até os portos e incluir a ferrovia só aumentava a
complexidade da operação, uma vez que continuaria sendo necessário fazer a ponta
rodoviária. A ALL já vinha administrando o transporte dessa ponta no lugar dos seus
clientes, fazendo a chamada operação porta a porta. Porém, esse serviço era feito
por caminhões de terceiros, o que tornava a operação menos confiável do que
poderia ser se fosse feita através de ativos próprios.
Apesar da preferência pelo contrato spot da grande maioria dos clientes de
commodities agrícolas, alguns grandes players da indústria agrícola mundial
ampliavam sua posição no mercado brasileiro e se interessavam pela modalidade de
contrato de longo prazo e investimento de terceiros. Esta prática já era comum na
Europa e nos EUA, onde os ativos geridos por algumas ferrovias eram na verdade
de terceiros. Os contratos de longo prazo eram assinados com cláusula de take-or-
pay, mais uma condição que favorecia o planejamento. A garantia fornecida por
esse contrato para os clientes, não era positiva somente devido aos custos, mas
principalmente devido à disponibilidade de uso, pois a relação entre oferta e
demanda era bastante favorável à ALL.
A introdução de cargas diferentes trazia um novo conjunto de problemas e
exigências. As cargas industrializadas, apesar do maior grau de certeza de seus
fluxos, exigiam maior confiabilidade e menor tempo de trânsito devido aos maiores
custos de estocagem. Também exigiam vagões especiais, que preservassem a
integridade física dos produtos. A área de projetos, mais acostumada com projetos
107
de extensão de ramais ferroviários e terminais de carga e descarga, passou a
realizar em seu conjunto de atividades a análise da disponibilidade de ativos e via.
Com as cargas industriais, passou a fazer projetos de adaptação de vagões e
passou a ser chamada de área de projetos logísticos.
A área de manutenção adicionou às atividades relacionadas ao
funcionamento dos equipamentos questões de como investir no aumento da
eficiência da operação. Outra solução para compensar o aumento de complexidade
devido à ampliação do leque de cargas foi a utilização de contêineres para o
transporte das cargas. Além de se ter um recurso padronizado, também passava a
ser um equipamento que facilitava o transbordo de cargas, tanto entre linhas com
bitolas distintas, quanto no transporte intermodal.
Para continuar crescendo em margem, não somente em receitas, o uso de
tecnologia foi expandido. Sistemas de controle da operação nacionais vinham sendo
desenvolvidos desde a privatização em parceria com empresas de tecnologia
brasileiras, mas seu uso foi ampliado. As soluções nacionais, além de mais
adequadas às condições de operação, também eram sensivelmente mais baratas. A
qualidade não era inferior e o desenvolvimento interno ainda sugeria a possibilidade
de receitas futura com esses produtos e serviços.
A remuneração variável também evoluiu. As atividades de benchmark
interno foram incentivadas através de competições entre as diversas unidades de
produção, que premiavam aqueles que alcançavam as melhores metas, tais como
redução de consumo de diesel. Contudo, as áreas que se envolvessem em
acidentes eram automaticamente eliminadas dos campeonatos. Ainda havia outros
fatores que influenciavam o valor final da remuneração variável, tais como
percentual relativo de atendimento da meta global da companhia e dias faltosos. Era
distribuído então para todos os funcionários um pequeno manual explicando quem
concorria a que, quais eram os valores de remuneração, como eram calculados e
com que freqüência e quando seriam pagos.
O sistema de controle de metas também precisava de modificações, devido
às redefinições de metas anuais e à presença de inúmeros sistemas independentes
controlando os indicadores de sucesso. Muitos estavam em planilhas eletrônicas
onde, as pessoas que eram medidas por esses indicadores também eram aquelas
responsáveis pelo registro. Isso exigia um sistema de auditoria interno bastante
complexo e que muitas vezes não transmitia fielmente os objetivos da organização
108
ou não oferecia o grau necessário de transparência.
Foi instalado então um sistema integrado de gestão, o SAP, responsável
pelo controle dos principais processos administrativos, onde todas as operações,
principalmente aquelas relacionadas ao financeiro, passariam a ser devidamente
registradas e disponibilizadas. Foram definidos critérios de rateios detalhados que
permitiam a cada unidade identificar a sua contribuição de “última linha”, ou seja, o
quanto a companhia havia lucrado com o trabalho daquela unidade.
Anteriormente uma unidade de negócio era medida por sua capacidade de
gerar receita e assim algumas vendas não faziam uma boa consideração dos custos
envolvidos. Por outro lado, as unidades de produção preocupavam-se com o
controle de despesas, que limitava a capacidade de análise de quais dessas
despesas poderiam ser tratadas de maneira diferente, se traduzindo em um maior
retorno para a companhia. Por exemplo, investimento em novos trilhos aumentaria a
velocidade de tráfego e a capacidade de transporte do trecho.
Tais atividades avançavam rapidamente dentro da estrutura brasileira, onde
o modelo de gestão da GP havia encontrado aderência. O mesmo não era visto na
unidade argentina. Lá havia uma estrutura de administração independente, com
suas próprias áreas e pessoal. Havia algum espelhamento nos modelos brasileiros,
mas a velocidade com que evoluíam era menor. O compartilhamento de recursos
entre os países era passageiro, onde o objetivo desse contato era, em geral,
fornecer conhecimento sobre como funcionava o caso brasileiro. Uma das poucas
estruturas compartilhadas era a Unidade de Negócios do Mercosul, cujo objetivo era
administrar os fluxos de carga entre Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil. A
situação política e econômica na Argentina dificultava o exercício da liderança
brasileira. Conflitos com sindicatos e governos provocaram situações embaraçosas
para a alta gerência, como a recontratação de funcionários demitidos.
Na briga contínua pelo aumento da produtividade, alguns projetos bem
diversificados foram iniciados em 2000. Seguindo a lógica aplicada pela Ambev ao
criar a Agrega, a ALL participou de uma empresa comprada pelo grupo GP em
parceria com outro banco de investimentos. Em outro projeto, negociou a venda e
terceirização da operação de manutenção dos equipamentos. Os estudos levaram a
conclusão de que o negócio não tinha viabilidade financeira. Afinal, o próprio perfil
da frota não contribuía para que os níveis de serviço fossem altos, pois a ALL havia
optado pela reforma dos ativos ao invés da compra de equipamentos novos
109
(Entrevistado #1, 2008).
Outras inovações tiveram mais êxito. Algumas pessoas na busca por
soluções na redução dos custos de combustíveis foram pesquisar a possibilidade de
se ter locomotivas movidas a gás natural e acabaram identificando a possibilidade
de usar um tipo de borra de óleo, gerado como resto dos processos de manutenção,
no lugar do diesel. Outro técnico, originário da Rede, sugeriu e implantou o uso de
madeira de eucalipto nos dormentes dos trilhos no lugar da madeira de lei da
Amazônia. O custo de se repor o material com maior freqüência pagava de longe a
redução no custo de compra do material, além de ser uma solução ecologicamente
muito mais atraente.
Ambas as soluções foram premiadas dentro do programa de Ideias e Ações.
Essa premiação envolve muita divulgação interna. Nas “Trimestrais”, reuniões
realizadas a cada três meses reunindo gestores de todas as áreas, as ideias e seus
resultados são apresentados em público e o funcionário responsável pela melhor
ideia, avaliada por uma comissão formada por diretores e gerentes, recebe o prêmio
da mão do presidente. Essas reuniões tinham também como objetivo manter os
gestores geograficamente separados alinhados quanto ao andamento das atividades
desenvolvidas em todas as áreas. Cada diretor e o presidente discorriam sobre a
situação de cada uma de suas metas e alguns funcionários eram sorteados para
detalhar também a situação das suas metas. Outra forma de alcançar a base era
com os altos executivos às vezes manobrando trens e dormindo nos alojamentos.
A empresa crescia e, em 2000, dado o alcance geográfico e o número de
funcionários, foi criada a revista interna “Sem Fronteiras” com periodicidade mensal.
Nas matérias publicadas relatavam-se os novos projetos, novos clientes, projetos
sociais e sempre uma mensagem do presidente. Para que a comunicação com o
pessoal de linha de frente fosse mais fácil, essa mensagem fazia uma analogia com
o futebol. Se as metas de vendas fossem superadas, o placar era contado a favor;
se as metas de custos não fossem cumpridas, o placar adversário era ampliado.
4.3.4 Empresa nos rumos e crescendo: preparando o terreno para sair
Em Julho de 2001 a ALL entendeu que o crescimento orgânico nessa linha
de negócio não atenderia às expectativas. A solução apareceu através do dono de
uma empresa de transporte rodoviário. Num contrato de arrendamento de ativos,
pago através da troca de ações, a empresa de transporte rodoviário de cargas
110
Delara teve seu controle adquirido pela ALL. A operação uniu a fome com a vontade
de comer: o dono da Delara, Wilson Delara, havia percebido que em breve suas
operações estariam fortemente ameaçadas sem um sócio forte (Mendes, 2003),
devido à entrada de competidores internacionais e ao crescimento de competidores
nacionais. Seus ativos foram integrados a uma nova empresa da holding, a ALL
Intermodal. Na holding, por sua vez, Wilson de Lara, ex-dono e presidente da
Delara, passava a ser um dos principais sócios, atuando agora como Presidente do
Conselho Administrativo.
Os executivos diziam haver muitos aspectos positivos na aquisição.
Primeiramente, esperava-se que o fato da Delara já trabalhar como prestadora de
serviços da Ambev, outra empresa do Grupo GP, a integração das duas empresas
seria mais simples. Adicionalmente, supriria a ALL do conhecimento específico
sobre a administração de transporte de cargas rodoviário e da prestação de serviço
completo de logística, dando nova importância às pontas. Além de eliminar as
desvantagens que possuía frente aos seus concorrentes rodoviários, seria agregado
um conjunto de novos clientes como White Martins e a própria Ambev, dois tipos de
carga que até então não eram transportados pela ALL (gases industriais e líquidos
em garrafas). A operação da Delara atuava na mesma região onde a ALL já estava
presente, inclusive na América Latina, além de estender sua presença até o
Nordeste, passando por todos os estados do Sudeste (Sull, Martins, & Silva, 2004).
Contudo, a operação não foi fácil. Apesar dos primeiros passos em direção
ao transporte rodoviário, a ALL ainda comportava-se como uma ferrovia. Enquanto a
operação ferroviária era regida pelo peso, a operação logística era regida pelo
tempo. Enquanto os ferroviários eram mais “fiéis” à companhia, os caminhoneiros
eram independentes. Era preciso que as duas partes que se juntavam aprendessem
sobre o novo negócio conjunto. A ALL era claramente o ator dominante, o que
colocava em risco a preservação dos recursos humanos da Delara, onde residia um
dos principais benefícios da aquisição: o conhecimento sobre como transportar
cargas de maior valor através de caminhões. Ao mesmo tempo era necessário
realizar os ganhos da aquisição sobre a estrutura administrativa.
Todo o projeto de integração foi realizado em seis meses com a consultoria
da Gradus, a mesma empresa que havia feito a integração da Brahma com a
Antarctica, dando origem à Ambev. Na metodologia sugerida, formou-se um grupo
de transição, composto por um representante de cada área de cada companhia e
111
um diretor de cada companhia. Bernardo Hees foi escolhido para ser o responsável
por todo o processo e já se sabia desde o início que o seu par na Delara não
continuaria na empresa ao final.
Em dois meses as empresas foram unificadas na sede da ALL. Nos meses
seguintes decidiu-se: quais áreas seriam criadas, eliminadas e unificadas; quem
ficaria e quem sairia; e quais seriam os processos que prevaleceriam. De uma
maneira geral, as características da ALL prevaleceram com relação às áreas
administrativas, mas a Delara também trouxe bons processos, como os de
certificação da qualidade e os de comunicação interna. Porém, algum tempo depois,
poucos eram os funcionários da Delara que haviam permanecido.
A aquisição também resultou em uma nova alteração na estrutura
organizacional. A diretoria comercial deixaria de existir. A nova estrutura comercial
seria composta por três diretorias: Logística e Negócios Dedicados; Granéis e
Negócios Industrializados. As duas primeiras já haviam sido constituídas no ano
anterior e continuavam com os mesmos executivos. Já a última, passou a ser
dirigida por Bernardo Hees. A diretoria financeira de Hees passou a ser ocupada por
Sérgio Pedreiro, um dos responsáveis do GP pela avaliação da Malha Sul e que
havia permanecido como conselheiro administrativo durante muito tempo. Ele
voltava após trabalhar na criação da Geodex.
No mesmo ano a situação na Argentina se tornara caótica. Após anos
controlando o câmbio, o governo teve que adotar uma estratégia de câmbio
flutuante, despencando assim o valor da moeda argentina. Isso afetou diretamente
as operações da empresa, principalmente porque havia uma grande quantidade de
dívidas cotadas em dólar. Como conseqüência da situação macroeconômica, toda a
economia retraiu, com impactos ainda mais fortes na indústria, principal cliente da
ALL na Argentina. Em resposta às dificuldades encontradas pelo executivo brasileiro
que estava à frente dos negócios no país vizinho em implantar os modelos de
gestão utilizados no Brasil, o conselho o substituiu por outro executivo de origem
argentina que trabalhava em um banco local.
Outra medida adotada devido aos recentes problemas e às características
da operação e do mercado, foi a reestruturação societária de sua operação,
separando a ALL Argentina do controle direto da ALL SA. Contudo, a operação
brasileira foi responsável pelo apoio financeiro à reorganização do perfil de
endividamento da empresa, trocando a dívida em dólar, por outras em real, arcando
112
então com os prejuízos. Porém, devido às dificuldades no relacionamento com o
governo argentino, a empresa não conseguiu ampliar seus investimentos no
negócio, pois o governo, detentor de parcela significativa do capital do negócio não
queria investir junto nem reduzir sua participação no controle. Essa questão seria
adicionada ao enfrentamento que existia na justiça argentina desde 1997 quando o
governo daquele país decidiu rever os contratos de concessão assinados em 1992.
Em paralelo com a inserção no setor rodoviário, a ALL iniciou uma operação
de produção de vagões dentro de sua oficina de vagões. Seria a primeira tentativa
de produzir vagões em grande escala. A ideia evoluiria para, no ano seguinte, um
acordo onde a empresa Amsted Maxion produziria os vagões para a ALL dentro das
instalações da própria ALL. O projeto ainda incluía a utilização de créditos fiscais de
INSS por parte dos clientes da ALL como forma de pagamento pela aquisição dos
vagões. Apesar da perspectiva positiva a união não durou nem um ano. De um lado
havia informações de que a parceira havia sido encerrada devido à baixa demanda,
contudo, alguns jornais indicavam que o governo havia contestado o uso do INSS.
A empresa entraria em 2002 em outro negócio semelhante. Através de uma
parceria com a Agrenco, a empresa constituiria a Terlogs, uma empresa para
administrar os terminais de carga e descarga nos portos de Paranaguá, São
Franscisco do Sul e Rio Grande. A ALL disponibilizaria a infra-estrutura necessária
nos terrenos arrendados da RFFSA e a Agrenco, entraria com o financiamento dos
investimentos. Ao mesmo tempo era fechado um acordo para escoamento da
produção para os próximos 10 anos. Esse projeto ainda enfrentou sérias restrições
junto ao governo paranaense, principalmente devido à lei que proibia a exportação
de soja transgênica nos portos paranaenses.
Novamente, dois anos depois de iniciar as operações do novo negócio, a
ALL deixou a operação da Terlogs, vendendo sua parte no capital da empresa para
a sua sócia, porém firmando um novo acordo comercial onde a Sogo Trading,
empresa de logística do grupo Agrenco, se responsabilizaria pelos investimentos
necessários na estrutura de escoamento e assim, não funcionaria como um gargalo
na operação dedicada da ALL para a Agrenco, que agora estava projetada para 23
anos, o maior acordo de transporte de cargas até então firmado no país.
Nesse mesmo ano iria criar outro negócio, esse mais duradouro: a ALL
Tecnologia, cujo objetivo era comercializar os sistemas eletrônicos e computacionais
desenvolvidos pela ALL e suas parceiras. As soluções seriam utilizadas
113
principalmente na África do Sul e o Translogic, o sistema de gestão da operação
desenvolvido internamente, seria o principal produto. Alguns dos principais membros
da equipe haviam sido contratados diretamente da operação de tecnologia de outras
ferrovias. Alguns foram os responsáveis pelo desenvolvimento do sistema utilizado
anteriormente na Rede Ferroviária Federal, o SIGO.
A situação financeira e operacional da ALL Argentina se estabilizaria e as
mudanças na estrutura societária realizadas em 2001 seriam desfeitas, voltando a
ALL Argentina a ser controlada diretamente pela ALL SA. Desde a crise, os
acionistas passaram a perceber o investimento na Argentina como um projeto de
retorno com prazo de maturação maior que o existente no Brasil, principalmente
devido às conseqüências da instabilidade política que não se resolvia no país.
Alguns dos principais reflexos nas operações era o poder de negociação dos
sindicatos assim como o combustível subsidiado para os transportadores
rodoviários, questões que enfraqueciam a posição competitiva da empresa.
Questões ambientais estavam cada vez mais na pauta dos executivos da
empresa devido principalmente aos processos judiciais decorrentes de acidentes e
inspeções de órgãos públicos. Em sua grande maioria a ALL constituiu acordos de
ajustamento de conduta, onde definia com tais órgãos cronograma de investimentos
nas diversas questões abordadas, como certificação de operações e construção de
estações de tratamento de água e resíduos.
4.3.5 Caminhando com as próprias pernas
Em 2004 finalmente seria formada uma operação própria para a produção
de vagões. Dessa vez foi constituída uma empresa especificamente para esse
propósito, a Santa Fé Vagões. Do capital da nova empresa, a ALL deteria 40% e o
restante seria da Besco, uma fabricante indiana de vagões. Novamente seria
utilizada a infra-estrutura disponibilizada pela própria ALL. Além disso, firmaria um
contrato com a Mitsui, uma grande empresa japonesa, que serviria como uma
sociedade de propósito específico nas operações estruturadas de financiamento
organizadas pelo BNDES. Isso fazia parte de um programa de financiamento do
banco para a aquisição de vagões e a entrada da Mitsui incluiu uma nova
modalidade de uso, agora através do aluguel do ativo.
Porém os aspectos financeiros no ano seriam os mais relevantes. Seria
finalmente concluída a operação de seu IPO, projetada dois anos antes por seus
114
acionistas. O responsável pela coordenação desse projeto era Paulo Basílio, à
época gerente de Planejamento Financeiro da companhia. Ele havia entrado na
companhia em 2000, como coordenador de planejamento, mudando para o cargo de
gerente em 2002. Antes de entrar para a ALL, trabalhou como consultor pela FGV,
onde concluiu seu mestrado em economia.
Seria a primeira empresa do setor a cumprir o que havia sido estabelecido
no contrato de concessão, a abertura de capital obrigatória em bolsa, e a primeira
ferrovia a fazê-lo no Brasil desde Barão de Mauá. A ALL entrava para um grupo de
empresas que estavam embaladas com o aquecimento do mercado financeiro
brasileiro como Gol e Natura. Sua intenção inicial era inscrever-se no chamado Novo
Mercado, uma classificação atribuída pela Bovespa para as empresas que adotavam
as melhores práticas de governança corporativa.
Infelizmente essa estratégia seria vetada pela ANTT. A Agência cumpria o
regulamento da privatização que exigia que uma concessão tivesse um bloco de
controle identificável. A oferta planejada pela ALL levaria a empresa a um alto nível
de pulverização no mercado. Uma das grandes preocupações da empresa era evitar
que a percepção do mercado sobre os papéis da ALL fosse influenciada pelo
ocorrido nas operações da Ambev na fusão com a Interbrew poucos meses antes28.
Como alternativa foi utilizada uma estrutura parecida com a oferecida pelo
Unibanco, apresentando a chamada unit: cada papel equivalia a uma ação ordinária
e quatro preferenciais. Além disso, ofereceram tag along para 100% das ações. A
valorização dos papéis foi grande, tendo sofrido flutuações significativas ao longo do
tempo. Além disso, alguns sócios resolveram realizar parte dos seus investimentos,
vendendo algumas de suas ações.
A companhia buscava aproveitar o excelente momento para dispor de
bastante capital a taxas baixas e cumprir os planos de investimentos projetados para
os anos seguintes. Em seu relatório anual de 2004 a empresa diz: “A ALL está
atenta às oportunidades de investimento, alianças e aquisições que possam resultar
em ganhos de sinergia e efetiva criação de valor.” A empresa levantou a partir do
mercado de capitais no ano de 2004 mais de R$ 500 milhões de reais. Essas
operações levaram a empresa ao nível mais baixo de endividamento de sua curta
28 Os acionistas minoritários tiveram grandes perdas com a fusão, pois os papéis não ofereciam direito de venda em caso de troca de controle (Valor Econômico, 29/04/2004).
115
história, chegando a um patamar de 0,5x de dívida líquida/LAJIDA.
Na área de operações a empresa demonstraria certas competências que até
então não haviam sido testadas. As safras agrícolas da região sul daquele ano
sofreriam uma quebra significativa devido às condições climáticas. A equipe
comercial teria um esforço amplo para redirecionar o uso de seus ativos para outras
cargas, clientes e regiões, indo buscar carga inclusive no centro-oeste. A equipe de
operações enfrentaria dificuldades para reorganizar a distribuição de seus ativos na
malha, levando-os da parte sul da malha para a parte norte.
Além disso, no auge do escoamento da produção de soja, duas ocorrências
dificultariam o processo. Os funcionários do porto de Paranaguá entrariam em greve
por um longo período e um acidente interromperia o uso da ponte do Rio São João,
uma das principais ligações com esse porto. Para completar o cenário, nessa
mesma época as refinarias da região interromperiam sua produção por um grande
período para manutenção.
Como resposta a esse contexto, a equipe de industrializados ampliaria sua
participação nas receitas da companhia atuando fortemente nas cargas em
contêineres e nos produtos siderúrgicos (América Latina Logística, 2004). O
problema no porto de Paranaguá levaria os funcionários da ALL a readequar seus
fluxos de carga para não perder as receitas, enviando os produtos agrícolas que
comumente iriam para Paranaguá, para os portos de São Francisco do Sul e Rio
Grande. No Rio Grande alcançou 100% de market share nos produtos exportados
onde antes possuía algo em torno de 40%.
Sem deixar de lado as atividades de busca contínua no aumento da
eficiência e da produtividade, a empresa começou a testar o uso da tecnologia de
tagging de vagões, automatizando uma série de atividades de controle. Seriam
colocadas em atividade algumas locomotivas movidas a biodiesel e nas contas de
outras receitas seriam identificados valores referentes a venda de sucata, plástico e
papel. Complementando os serviços prestados pelo Translogic, entraria em uso o
SOL – Sistema de Operações Logísticas, cujo objetivo era integrar as informações
sobre as atividades rodoviárias e ferroviárias sob uma mesma interface, auxiliando
principalmente no controle dos fluxos intermodais.
A ALL Argentina teria um de seus melhores anos, com significativo aumento
das receitas e da margem. Porém, mesmo assim, a unidade não havia cumprido a
sua meta global fazendo que a grande maioria dos funcionários não recebesse o tão
116
esperado bônus. No ano anterior, devido à evolução dos indicadores acima das
expectativas para o primeiro semestre, grande parte das metas fora revista para
cima no Brasil.
Os investimentos em treinamento continuaram em evolução, mas o número
de candidatos ao programa trainee alcançaria seu ponto máximo em 2004 e dali em
diante seria drasticamente reduzido.
O número e a diversidade de projetos era cada vez maior. Nesse ano foi
iniciada uma operação para o transporte de carga frigorificada do interior do Rio
Grande do Sul para as plantas das indústrias de alimentos em nos centros
industriais do estado. Tratava-se de um projeto sem precedentes no país e que
utilizava um conjunto de soluções bastante diverso para equacionar os problemas
decorrentes da necessidade de manutenção da temperatura da carga. Em paralelo,
no ano de 2005, é colocado em prática outro programa de trainee, específico para a
formação de engenheiros.
Seria também em 2005 que Bernardo Hees substituiria Behring na
presidência da companhia, depois de atuar como Diretor Superintendente durante
todo ano de 2004. A essa altura Bernardo havia trabalho nas áreas de projeto,
financeira, comercial e operações, além de ter sido responsável pela integração da
Delara. Assumia o comando da empresa com apenas 33 anos, a exemplo de seu
antecessor que também havia iniciado na posição bem jovem quando comparado a
outros executivos em outras empresas. A diretoria já possuía um perfil diferente
daquele construído por Behring. Novas áreas haviam sido criadas, como as de
Logística, de Negócios Industrializados e de Commodities Agrícolas. Alguns
diretores eram funcionários e substituíam a tendência inicial de contratação externa.
Behring por sua vez, passava a atuar também como co-presidente do
conselho, juntamente com Wilson de Lara. Ainda em 2005, Behring venderia a sua
participação no grupo GP, que agora era dirigido pelos executivos Fersen, vindo das
Lojas Americanas, e Boncristiano, que seria o novo representante do GP no
conselho da ALL. Behring havia sido convidado por Lemann, Sicupira e Telles para
gerir o fundo de investimentos montado nos Estados Unidos, chamado 3G.
O grande desafio de Bernardo foi coordenar um grande projeto de
negociação para a aquisição da Brasil Ferrovias, que passava pela sua quinta
tentativa de reestruturação naquela época, sem nunca ter alcançado resultados
positivos e cada vez mais afundada em dívidas. Aproveitando ainda o boom do
117
mercado financeiro, a ALL emitiu em 2005, R$ 200 milhões e, em 2006 mais de R$ 1
bilhão. Ou seja, em três anos, as captações somavam quase R$ 2 bilhões.
O dinheiro captado não foi utilizado como pagamento. Ele servia como um
colchão para manter o nível da capacidade de pagamento da empresa quando a
compra da Brasil Ferrovias elevaria o nível de endividamento. A operação seria
realizada principalmente através da troca de ações, como havia sido feito no caso da
Delara. Além disso, a maior parte do preço da aquisição estava presente na dívida
que a ALL assumia da concessionária, principalmente frente aos bancos que eram
sócios no negócio. Após um período de negociações e especulações sobre a
operação no mercado, a ALL anunciou a operação no meio de 2006. A nova malha
que era assumida possuía um patrimônio líquido negativo e mais funcionários do
que a própria ALL, que possuía uma malha duas vezes maior em extensão. Paulo
Basílio tomaria a frente do projeto mais ambicioso até então realizado pela ALL. Na
época Basílio era diretor de produtos industrializados.
Essa era a maior aquisição realizada até então nos nove anos de vida da
firma. A tabela a seguir resume os principais movimentos de diversificação, incluindo
compras de empresas e joint-ventures, realizadas no período.
Figura 4-5: Histórico de operações de aquisição de empresas.
A primeira medida tomada pela equipe com um pouco mais de 20 pessoas
enviadas para integrar as operações foi a suspensão de todos os pagamentos, tanto
de fornecedores quanto de bancos. Quando da aquisição, a ALL possuía em caixa
mais de R$ 1 bilhão de reais. Assim, a ALL renegociou todos os contratos e foi
capaz de encerrar todos aqueles que impunham condições que não lhes
interessavam. Como havia sido feito durante a privatização, Bernardo Hees e Paulo
Basílio, entrevistaram um por um 90 gerentes escolhidos, para identificar aqueles
Empresa Contrato Negócio Início Término
Malha Sul da RFFSA concessão privada Transporte de cargas ferroviário 1997
Armazens Gerais concessão privada Armazenagem e terminais 1997 2006
Trecho Sul da Fepasa arrendamento Transporte de cargas ferroviário 1998
Malhas argentinas concessão público-privada Transporte de cargas ferroviário 1999
Geodex Joint-venture Rede de dados 2001 2006
Delara arrendamento Transporte de cargas rodoviário 2001
Terlogs Joint-venture Operações portuárias 2002 2004
Vagões com a Amsted Joint-venture Produção de vagões 2002 2003
Santa Fé Joint-venture Produção de vagões 2004
ALL Tecnologia Joint-venture Sistemas eletrônicos e computacionais 2005
Brasil Ferrovias concessão privada Transporte de cargas ferroviário 2006
Portofer concessão privada Operações portuárias 2006
118
que estariam alinhados com a cultura. Na primeira lista de demissões havia 1500
funcionários. Esse número alcançaria 4000 funcionários no final do ano de 2006.
A empresa havia preparado alguns estudos internamente para identificar as
necessidades após a aquisição. Na área de planejamento da produção, os gerentes
estudaram as possibilidades e as necessidades de equipamentos além de realizar
simulações sobre seus sistemas para entender os efeitos do aumento do transporte
de cargas. A área financeira avaliou e procurou alternativas para modificar
rapidamente a qualidade e a estrutura da dívida da nova empresa. Contudo, uma
dimensão não teve o mesmo desempenho.
Durante o período de integração muitos dos executivos que haviam ficado
na malha sul começaram a ser convocados para tocar as operações na malha norte,
principalmente para substituir a grande quantidade de funcionários que havia sido
demitida. Um comentário comum à época é que a malha sul estava “jogando com o
seu time sub-20”, fazendo referência às equipes de futebol com jogadores com
menos de 20 anos que em geral servem como celeiro de novos talentos para os
times profissionais dos clubes. Apesar disso, as metas do ano de 2006 foram
cumpridas e a equipe recebeu o benefício do bônus. Na nova malha apenas 50
funcionários receberam metas e seus bônus eram menores do que aqueles
oferecidos à malha sul.
A nova malha tinha condições de trabalho distintas daquelas encontradas na
região sul. Grande parte do volume de cargas vinha da fronteira agrícola do interior
do país. Justamente por isso as condições de infra-estrutura, como acesso a bens
de consumo, linhas telefônicas e serviços de saúde, eram praticamente inexistentes.
Essas condições dificultavam não só a aceitação de funcionários qualificados para
assumir tais operações, mas também o próprio uso das tecnologias da ALL nesta
região. Não havia conexão de internet estável, o que dificultava o uso dos sistemas
centralizados da ALL.
Do outro lado da malha, no Porto de Santos, havia uma presença e um tipo
de relação completamente diferente com os funcionários sindicalizados. A Brasil
Ferrovias não havia feito as reformas necessárias e muitos funcionários ainda
aguardavam serem demitidos para ganhar as indenizações especiais acordadas
durante o processo de privatização. Essas indenizações somavam, à época da
integração, R$ 240 milhões. Os sindicatos possuíam uma relação muito mais forte,
não só junto aos funcionários, mas também com relação a outros elementos da
119
sociedade como a justiça e empresas de comunicação. Seus critérios pareciam ser
muito mais seletivos do que os adotados ao sul do país. As greves e acidentes se
tornaram mais freqüentes e notórias. Infrações com relação ao cumprimento das
regulamentações da privatização do setor ferroviário e das leis trabalhistas
passaram a surgir na mídia e nos tribunais.
No começo do ano de 2007, a ALL apresentou resultados expressivos para
a malha norte. O índice de acidentes foi reduzindo em quase 30%, a força de
trabalho era quase quatro vezes menor e o tempo de trânsito do maior fluxo, Alto
Araguaia – Santos, havia sido reduzido pela metade, dobrando a capacidade da
malha nesse trajeto. Contudo, o lucro líquido, positivo desde 2001, seria equivalente
àquele de 1997, quando tinha acabado de assumir apenas a malha sul. Isso refletia
principalmente as péssimas condições de operação e os vultuosos investimentos na
reforma dos ativos.
A expectativa de bônus para o ano de 2007 era enorme. Porém, apesar do
aumento de mais de 10% no volume transportado em toda a malha e de 5% nas
receitas, ambos refletindo num lucro líquido de mais de R$ 200 milhões frente ao
prejuízo de R$ 140 milhões do ano anterior, a companhia não havia atingido as
metas estabelecidas. O clima no começo de 2008 era difícil e a diretoria acabou
pagando a remuneração variável dos cargos mais altos sem as metas terem sido
cumpridas. Essa foi uma decisão importante para evitar a perda de alguns gestores,
mas que se somavam à instabilidade dos critérios desse sistema de meritocracia:
1) Funcionários terceirizados com remuneração média maior;
2) Funcionários sem metas recebendo remuneração variável;
3) Metas complexas de difícil mensuração competindo com metas simples;
4) Baixa confiabilidade de alguns sistemas de controle de metas;
5) Revisão para cima da meta anual no meio do ano em 2004;
6) Favorecimento de níveis hierárquicos mais altos (2008 e Argentina).
A empresa chegava em 2008 com resultados positivos, crescimento
significativo de suas receitas, participação de mercado e lucratividade. Porém,
possuía também novos desafios para gerenciar, agora que o tamanho começava a
pressionar por soluções mais elaboradas tanto do ponto de vista da gestão interna
quanto de competição no mercado de transporte de cargas.
120
5 ANÁLISE
A análise será dividida em duas partes. A primeira apresenta a síntese da
análise do processo de turnaround, desde a fase de declínio da RFFSA, até a fase
atual em que o grupo GP teve sua participação no controle radicalmente reduzida.
Nessa parte, após a apresentação das evidências do turnaround, serão duas
perspectivas: a primeira descrevendo a posição de cada fase dentro continuum de
autodestruição e auto-perpetuação; a segunda descrevendo à classificação das
respostas aos desafios em cada fase. O objetivo de ambos é apresentar como foi a
evolução, tanto no contexto da formação da longevidade saudável como da
formação do caráter.
Na segunda parte serão apresentadas as principais evidências e
justificativas que levaram à determinação do arquétipo de cada desafio em cada
fase. A ordem de apresentação das fases é temporal, ou seja, da mais antiga até a
mais atual. A descrição de cada fase se inicia com uma contextualização e resumo.
Já a ordem de apresentação dos desafios é baseada na relevância para a fase, ou
seja, aquele desafio que foi mais relevante naquela fase é apresentado primeiro.
Esse formato para apresentação dos desafios foi escolhido porque geralmente os
desafios mais relevantes justificam descrições de outros desafios. Por exemplo, o
foco na gestão da folga na segunda fase determinou em parte como a organização
respondeu ao desafio do aprovisionamento de recursos humanos no período.
Duas representações gráficas serão utilizadas: uma para a primeira
perspectiva da primeira parte; outra para as outras etapas da análise. A primeira
representação gráfica consiste numa linha representando o continuum entre auto-
destruição e auto-perpetuação e marca-se onde cada fase se situou. A reta tem três
segmentos principais, representando os arquétipos, e três segmentos secundários,
representando a tendência para outros arquétipos. A classificação de tendência foi
feita baseada na interpretação do autor.
A segunda representação gráfica é feita baseada no desenho adotado para
descrever o modelo de arquétipos de sucesso e fracasso organizacional. Cada
desafio e processo é colorido em vermelho, amarelo ou verde, de acordo com a sua
semelhança com a descrição dos traços organizacionais estabelecida anteriormente.
Na ausência de evidências suficientes para se alcançar uma conclusão sobre
mudança em um desafio de uma fase para outra, admitiu-se que o padrão de
121
respostas daquele desafio se manteve o mesmo.
5.1 SÍNTESE DA REESTRUTURAÇÃO
Abaixo são apresentadas diferentes trajetórias que descrevem o
comportamento do desempenho das companhias de interesse. Os indicadores de
tamanho sugeridos na revisão de literatura e no método, Receita/PIB e Lucro/PIB,
são apresentados para a RFFSA e depois para a ALL. Além desses, mais um gráfico
com evolução comparada das principais concessões ferroviárias é colocado na
seqüência.
Figura 5-1: Evolução das receitas com mercadorias da RFFSA/PIB.
O gráfico acima demonstra a tendência de queda nas receitas da RFFSA do
ponto de vista das operações de transporte de cargas. A receita total seguiu
tendência semelhante, mas as receitas operacionais correspondiam a algo em torno
de 20% da receita total. Os outros 80% resultavam de operações financeiras com o
governo e alcançou um pico de 95% em 1994. Como será apresentado mais
adiante, as despesas financeiras eram tão significativas quanto, refletindo nas
margens de lucro.
Considerando a produção, se percebe, no mínimo, uma estagnação ao
0,15%
0,17%
0,19%
0,21%
0,23%
0,25%
0,27%
1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994
Receita de Cargas/PIB
122
longo do tempo. Se comparado com a variação real do PIB ano a ano, nota-se que
ambos indicadores têm comportamentos semelhantes, subindo e descendo juntos
em quase todos os anos. O gráfico abaixo apresenta essa comparação.
Figura 5-2: Evolução da produção da RFFSA comparada ao PIB.
Porém, dois indicadores constatam os principais fatores que levaram ao
processo de privatização: por um lado a evolução da lucratividade da RFFSA frente
ao PIB brasileiro e a evolução da dívida pública total29. A primeira demonstra que
mesmo com os amplos aportes governamentais a sua eficiência econômica era
baixíssima. O segundo demonstra como esses aportes alcançaram seu limite,
inviabilizando a continuidade das operações. Os gráficos a seguir apresentam tais
indicadores.
29 A relação entre dívida pública total e PIB foi calculada em dólares americanos.
-10,00%
-5,00%
0,00%
5,00%
10,00%
15,00%
1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994
Variação anual real do PIB Variação anual da produção (TKU)
123
Figura 5-3: Evolução do lucro líquido/PIB da RFFSA.
Figura 5-4: Evolução da dívida pública total/PIB.
-1,00%
-0,80%
-0,60%
-0,40%
-0,20%
0,00%
0,20%
1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Lucro/PIB
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
1971 1976 1981 1986 1991 1996
Dívida/PIB
124
Por outro lado, ao se analisar a evolução dos indicadores de tamanho para a
malha30 após a privatização, de maior interesse a da ALL, nota-se comportamento
diferente. Nos primeiros anos, a eficiência econômica, se medida pela relação entre
lucro líquido e PIB, não chega a ser positiva, mas demonstra estabilidade próxima a
zero para a ALL. Já outras malhas seguiram uma leve tendência de queda. Em uma
segunda fase, a partir de 2002, todas entram em uma trajetória de crescimento, à
exceção da Brasil Ferrovias.
Figura 5-5: Evolução do Lucro/PIB das principais concessionárias ferroviárias.
Quanto às receitas e à produção, ambos entram em uma trajetória de
crescimento desde os primeiros anos. O crescimento da produção31 sempre esteve
muito acima do crescimento do PIB, demonstrando o consistente aumento da
participação do modal ferroviário na matriz de transporte brasileira.
30 As ferrovias administradas pela Vale foram excluídas dessa comparação, primeiro porque não pertenciam ao complexo da RFFSA antes da privatização e segundo porque é contestável analisar os resultados econômicos uma vez que é uma ferrovia dedicada ao negócio principal da controladora, minério de ferro.
31 Foi utilizada apenas a evolução da produção de carga geral para reduzir o efeito das ferrovias administradas pela Vale.
-0,05%
-0,04%
-0,03%
-0,02%
-0,01%
0,00%
0,01%
0,02%
0,03%
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
MRS ALL FCA BF
125
Figura 5-6: Evolução da Receita/PIB das principais concessionárias ferroviárias.
Figura 5-7: Evolução da produção comparada ao PIB.
Esses gráficos sugerem que a privatização foi um ponto de inflexão na
trajetória da RFFSA, mudando o desempenho operacional e econômico decrescente
0,00%
0,01%
0,02%
0,03%
0,04%
0,05%
0,06%
0,07%
0,08%
0,09%
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
MRS ALL FCA BF
-5,00%
0,00%
5,00%
10,00%
15,00%
20,00%
25,00%
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Variação anual real do PIB Variação da produção - concessionárias (TKU)
Variação da produção - ALL (TKU)
126
para um de crescimento sustentado no período analisado. A ALL se destacou pela
sua trajetória de crescimento de receitas mais agressiva, assim como pela aquisição
de um grande concorrente, a Brasil Ferrovias. Portanto, os indícios apresentados,
um período de declínio com mudança de controle e posterior trajetória de
crescimento em vários indicadores de tamanho, corroboram as expectativas iniciais
de que de fato houve um processo de turnaround efetivo.
5.1.1 Posição no continuum
Figura 5-8: Posição de cada fase no continuum dos arquétipos. 32
A análise indicou que o processo de turnaround levou a organização a uma
situação muito mais confortável do que aquela em que se encontrava antes da
privatização. A partir do fracasso da RFFSA devido principalmente à baixa eficiência
econômica (este em conseqüência de outros fatores), os novos acionistas foram
capazes de transformar completamente o desempenho financeiro e operacional da
nova empresa. Num primeiro momento, reequilibrou a demanda e o uso de recursos,
principalmente através do investimento financeiro e da alocação de profissionais
qualificados. Além disso, modificou a forma como os recursos eram geridos,
impondo uma nova lógica que priorizava aspectos financeiros como receitas e
lucros, diferente da anterior mais focada na resolução de conflitos políticos.
Em um segundo momento, a partir de 2001, investiu no crescimento e na
diversificação, buscando tornar a empresa um ativo mais atrativo, já com vistas ao
processo de venda de sua participação. Também incentivou meios para que a
organização aprendesse sozinha, sistematizando processos através do investimento
em tecnologia, em ferramentas básicas de administração e treinamento.
Após a redução da participação do GP, mais acentuada em 2004, alguns
32 As indicações numéricas presentes na figura referem-se às transições de fases também apresentadas na Figura 5-9: Evolução dos traços por fases.
Auto-destruição Sobrevivência Auto-perpetuação
Pré-1997 1997-2000 2001-2004
2004-2008
1 23
127
aspectos enfraqueceram a posição competitiva da ALL. A organização manteve os
comportamentos anteriormente justificados pela situação financeira crítica. Contudo,
a empresa já desfrutava de posição financeira e operacional saudável, o que
sugeriria, pelo menos, a reconsideração de seus padrões de decisão. A empresa
apresentou capacidade limitada para diversificar seus motores de crescimento,
investindo prioritariamente no motor inercial, com a participação cada vez maior do
transporte ferroviário de cargas. Por fim, as práticas adotadas não parecem ser
suficientes para responder às pressões por fragmentação que o tamanho exige.
A tabela33 a seguir apresenta como evoluiu a participação do GP
Investimentos no bloco de controle de acionistas da ALL S.A., a empresa holding
controladora de todas as outras unidades de negócio.
Tabela 5-1: Evolução do controle acionário do GP Investimentos na ALL.
33 As leis societárias brasileiras limitam o acesso a informações mais precisas sobre essas participações. Por exemplo, ela obriga as empresas de capital aberto a apresentar publicamente apenas os acionistas detentores de mais de 5% das ações, o que poderia aumentar a parcela de controle em alguns anos. Em mercados com controle mais pulverizado, como os Estados Unidos, as práticas são diferentes. Além disso, por se tratar da participação na empresa controladora do grupo, não é possível identificar como os sócios estão organizados nas empresas controladas de capital fechado.
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
TOTAL 39,58% 39,12% 39,19% 34,58% 34,60% 25,95% 20,28% 17,00% 9,32% 9,69%
Participação direta do GP 10,58% 10,29% 9,14% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,05%
Administrado pelo GP 29,00% 28,83% 30,05% 34,58% 34,60% 25,95% 20,28% 17,00% 9,32% 9,64%
Emerging Markets Capital
Investiments17,65% 17,80% 15,81% 18,28% 18,29% 12,19% 9,53% 17,00% 9,32% 9,32%
Latin American Growth
Capital0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,32%
Ralph Partners I 11,35% 11,03% 14,24% 16,30% 16,31% 13,76% 10,75% 0,00% 0,00% 0,00%
128
5.1.2 Evolução dos traços
Figura 5-9: Evolução dos traços por fases.
1980-1996
Empreendedorismo
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Diversidade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
Gestão da
Complexidade
Longevidade Saudável
Gestão da
Diversidade
Gestão da Integridade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
Crescimento e
Renovação
Gestão da Folga
Gestão da Integridade
Longevidade Saudável
1997-1999
Empreendedorismo
Crescimento e
Renovação
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Complexidade Gestão da Folga
2000-2004
Empreendedorismo
Crescimento e
Renovação
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Complexidade Gestão da Folga Longevidade Saudável
Gestão da
Diversidade
Gestão da Integridade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
2004-2008
Empreendedorismo
Crescimento e
Renovação
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Complexidade Gestão da Folga Longevidade Saudável
Gestão da
Diversidade
Gestão da Integridade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
1 3
129
A evolução dentro do contínuo é explicada, em grande parte, pela forma
como os traços foram formados e pelo contexto em que certas respostas foram
identificadas. A totalidade de respostas negativas na fase pré-compra, ou seja,
quando ainda era RFFSA, resulta de processos bem antigos. A formação da RFFSA
em 1957 a partir da estatização de praticamente todas as ferrovias brasileiras trouxe
desafios enormes para a sua integridade. Diferentemente de outras empresas
estatais formadas na época, como CVRD e Petrobras, ela já nascia muito grande e
severamente fragmentada. A possível falta de direção própria no começo abriu
espaço para o reforço da influência governamental do regime militar, até porque
somente com os recursos oferecidos por ele seria possível atuar na fragmentação.
Mesmo assim, a necessidade de recursos era muito maior do que a oferta.
Integrar a Rede significava unificar questões além das conexões entre as malhas.
Procedimentos operacionais, condições comerciais, qualificação técnica e gerencial,
relacionamentos com governos e sociedades, tudo isso se somava à necessidade
natural de investimentos em renovação de ativos. Apesar de o péssimo desempenho
econômico ter sido a principal questão que levou à privatização, a causa desse
desempenho pode ser atribuída à forte ingerência dos governos na determinação de
preços e investimentos. Por outro lado, esse espaço só apareceu devido à baixa
autonomia ocasionada pela falta de preocupação com a legitimidade vários públicos.
A privatização eliminou uma causa do problema: o arcabouço regulatório
reduzia enormemente a interferência governamental e retirava das ferrovias o peso
do endividamento público. Assim, na primeira fase de 1997 a 2000, a gestão da
folga foi o centro da atenção dos novos acionistas, atuando diretamente sobre o
principal fator relacionado ao fracasso: a eficiência econômica. Suas primeiras
providências foram não só eliminar desperdícios como também trazer de fora
recursos, em especial dinheiro, pessoas e credibilidade. Conflitos, desmotivação e
retrabalhos faziam parte da rotina da firma. Havia poucos métodos e a estrutura
organizacional e o modelo de negócios ainda estavam sendo montados.
Era preciso ensinar a organização a caminhar com as próprias pernas. Ela
deveria ser capaz de financiar-se, de gerar e conseguir os próprios recursos que
precisasse o mais cedo possível. Se havia soluções rápidas e suficientes essas
eram escolhidas em detrimento de opções melhores com horizonte de tempo mais
longo. Perderam-se muitos potenciais talentos, mas o foco da gestão estava no
curto prazo, não no longo prazo.
130
Assim que o negócio central, o transporte ferroviário na malha sul,
demonstrou uma tendência de trajetória de receitas e lucros crescentes e
sustentáveis, o foco dos gestores modificou para a ampliação do escopo do negócio
e para investimentos na sistematização. Algumas dessas ações começaram ainda
na segunda fase, mas o grande volume foi no período de 2001 a 2004, referente à
terceira fase. A sistematização veio através de investimentos em tecnologia para
aumentar a eficiência e qualidade do controle e da gestão da operação e na larga
difusão de ferramentas de administração e de qualidade total. Métodos em
diferentes setores da empresa foram padronizados, o que aumentou a integração e
o compartilhamento de recursos.
Já a ampliação do negócio foi feita através da compra e do investimento nos
seguintes negócios: malha argentina; novos tipos de cargas; transporte rodoviário;
produção de vagões; terminais portuários e intermodais; e empresas de tecnologia.
Tratavam-se, em geral, de movimentos de defensivos (Chandler, 1977), que a
protegiam de pressões competitivas de fornecedores e complementadores34
(Nalebuff & Brandenburger, 1997). Apesar de defensivos, esses movimentos
auxiliaram no crescimento do negócio principal, a malha ferroviária sul.
Individualmente nenhuma dessas primeiras diversificações assumiu posição
relevante no leque de negócios da companhia, ainda que tenham se tornado mais
eficientes em termos econômicos. No repertório de diversificação, a empresa
ampliou bastante a participação de novos produtos na sua pauta de cargas, além
das cargas agrícolas.
A última fase se inicia com a abertura de capital da ALL em 2004, com a
venda de parte do controle acionário do GP para investidores institucionais e
pessoas físicas na Bolsa de Valores de São Paulo. O GP já vinha cedendo seu
controle de maneira gradual. Nas aquisições realizadas usou ações como moeda de
troca, principalmente no caso da Delara, o que reduzia sua participação no todo.
Do ponto de vista competitivo, a diversificação do período anterior foi freada.
A organização voltou a focar seus esforços e investimentos no negócio ferroviário:
34 Uma firma é considerada complementadora de uma segunda firma se o cliente da segunda firma valoriza mais o seu produto quando entregue em conjunto com o produto da primeira firma (Nalebuff & Brandenburger, 1997). No caso, trata-se principalmente do transporte rodoviário para conectar a planta de produção dos embarcadores com os terminais da ALL.
131
além de adquirir a Brasil Ferrovias em 2006, as atividades em terminais portuários e
intermodais seguiram uma estratégia recorrente de spin-offs ou foram vendidas.
Com esses movimentos, a participação do modal ferroviário e das cargas agrícolas
subiu fortemente. A incorporação da Brasil Ferrovias representou um incremento de
quase 100% na produção em 2006. Além disso, reforçava a redução da participação
do GP, pois a aquisição foi novamente realizada através de troca de ações.
Os métodos e valores adotados nos primeiros anos para sobreviver ao
desequilíbrio financeiro e operacional permaneceram presentes mesmo com as
diferentes trajetórias e balanços demonstrando um novo contexto. A Brasil Ferrovias
passou por uma redução na força de trabalho ainda mais severa do que aquela
realizada na Malha Sul e todo o sistema de gestão de recursos humanos continuava
a incentivar a competitividade. Apesar de um núcleo forte nas posições mais altas da
companhia, os níveis de entrada na gestão adotaram a organização como trampolim
e a abordagem no recrutamento passou a ser cada vez menos eficiente.
As pressões institucionais ganharam corpo nessa fase. Apesar da redução
nos índices de acidentes, a notoriedade que cada um ganhava passou a ser maior.
Reclamações das comunidades próximas às linhas férreas aumentaram, além de
multas por problemas ambientais. A sociedade na região em que a Brasil Ferrovias
atuava exerceu pressão maior sobre a companhia com processos judiciais e greves,
exigindo respostas para questões desconsideradas anteriormente.
A principal análise da fase é a adoção de comportamentos de sobrevivência
em um contexto que já permitia a visão de longo prazo sobre aspectos internos.
Essa opção levou a uma gestão dos recursos menos orientada para o pólo da auto-
perpetuação, em especial os recursos humanos, com desperdícios no recrutamento,
seleção e desenvolvimento, além da perda de talentos gerenciais futuros. As
interações entre folga, crescimento e integridade foram mal geridas: os movimentos
de expansão foram limitados ao motor inercial (Fleck, 2003); pressões por
fragmentação surgiram de várias fontes antes bem administradas; e a geração de
folga diminuiu a diversidade dos recursos disponíveis, concentrando-se em recursos
financeiros em detrimento de outros tipos, como pessoas.
5.2 DESCRIÇÃO DOS ARQUÉTIPOS
5.2.1 Fase 1 – Pré-compra (1980 – 1996)
A Fase Final da Rede Ferroviária Federal foi marcada pelos efeitos do
132
ambiente sobre a sua situação operacional e financeira após anos de construção de
traços negativos para a saúde da empresa no longo prazo. As principais evidências
apontam para: a baixa autonomia e legitimidade; e para os sucessivos fracassos em
integrar as diversas malhas e recursos disponíveis de maneira economicamente
eficiente, reunidos de tal maneira que a organização nunca foi capaz de controlar a
complexidade gerada pela sua criação.
Figura 5-10: Análise da Fase Final (1980 a 1996) da RFFSA.
5.2.1.1 Navegação no Ambiente
As relações da Rede com os diversos públicos nunca foram um destaque
positivo. Enquanto alguns públicos se sentiam prejudicados ou ignorados, outros
conseguiam vantagens e com essas vantagens prejudicavam a organização.
A relação da RFFSA com sindicatos, assim como a da FEPASA, era
bastante difícil. Durante muitos anos os sindicatos conseguiram construir condições
bastante favoráveis nos seus acordos trabalhistas. Um exemplo dessas condições
foi relatado em uma matéria de jornal35:
“Quanto ao pessoal que possui mais tempo de serviço, o sindicato conseguiu uma garantia de emprego até o ano de 1994 quando ainda era Fepasa, depois disso esse acordo transformou-se em indenização. Então ficou acordado que os funcionários que têm dez anos de serviço receberão um salário por cada ano de trabalho; os de 20 anos, 2 salários e os que possuem mais de 20 anos receberão 2 salários e meio. Receberão 80% do Fundo de Garantia, sendo 40% de indenização a que têm direito. Mas isso só é válido para os funcionários contratados até dezembro de 94, os demais seguem as normas da lei trabalhistas.”
35 Sindicato garante indenização aos demitidos - O Imparcial, 14/06/2006. Clipping Revista Ferroviária www.revistaferroviaria.com.br, último acesso em 14/08/2008.
1980-1996
Empreendedorismo
Navegação no
Ambiente
Gestão da Diversidade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
Gestão da
Complexidade
Crescimento e
Renovação
Gestão da Folga
Gestão da Integridade
Longevidade Saudável
133
As dificuldades de relacionamento com os sindicatos também se provaram
negativas com as várias discussões que ocorreram entre a alta gestão da RFFSA e
outras organizações governamentais, com os representantes dos sindicatos. Stefani
(2007) destaca o embate travado através de matérias na Revista Ferroviária nas
edições de Setembro e Dezembro de 1998 entre o então Ministro dos Transportes,
José Reinaldo Tavares, e o presidente da Associação dos Profissionais
Universitários da SR-3, Antônio Leopoldo Tristão. Enquanto o primeiro argumenta
que faltava à Rede capacidade gerencial, o segundo destacava a alta rotatividade
dos presidentes da Rede Ferroviária Federal, três nos cinco anos anteriores. A
diferença de opinião entre a estratégia mais adequada para recuperação do sistema
nacional levou à interposição de processos judiciais, assim como ocorreu em
diversas outras privatizações.
Apesar disso, a força do sindicato também trazia um aspecto positivo para a
Rede. A associação da ferrovia com o progresso das regiões e o fato de um grande
contingente da força de trabalho do país estar alocada em ferrovias criou as
condições para a formação do chamado “orgulho ferroviário”. Para se ter uma ideia
da presença da ferrovia no dia-a-dia das pessoas, os funcionários de ferrovia
representavam quase um terço de todos os trabalhadores do setor de transportes e
armazenagem em 195836.
A RFFSA também detinha pouca legitimidade frente ao Governo Federal,
seu proprietário e principal financiador. Durante as décadas de 80 e 90, outras
empresas públicas que, há anos construíram um bom relacionamento com o
governo, continuaram capazes de investir na sua manutenção e crescimento.
Empresas como Companhia Vale do Rio Doce e Petrobrás, em geral, não
dependiam do governo para financiar seus investimentos, pois suas operações eram
lucrativas (Ferreira & Malliagros, 1999). Além disso, tais empresas estavam bem
alinhadas com os objetivos do governo federal: exportação e suficiência energética.
A RFFSA foi durante muito tempo instrumento de políticas públicas, como
muitas outras empresas federais, em especial aquelas do setor de infra-estrutura.
Durante a década de 80, por exemplo, a defasagem média das tarifas foi de cerca
36 Havia quase 700 mil pessoas acima de 10 anos cuja atividade principal era classificada como sendo do setor de transportes e armazenagem. As ferrovias empregavam mais de 200 mil funcionários nesse mesmo ao. Anuário Estatístico do Brasil, 1959 – IBGE.
134
de 50% devido à política econômica de controlar o preço desses serviços para
controlar a inflação (Ferreira & Malliagros, 1999). Essa estratégia não só foi mal-
sucedida em controlar a inflação, como aumentou ainda mais a debilidade financeira
dessas empresas, inclusive da RFFSA.
Outro aspecto que demonstra a baixa autonomia e legitimidade da RFFSA
foi a necessidade de se registrar através de Lei, e somente em 1988, que a
rentabilidade financeira seria um balizador de decisões sobre investimentos. Essa
mesma Lei definiria que o Tesouro seria o responsável por absorver todas as
despesas decorrentes dos serviços antieconômicos necessários à população.
Contudo, não haveria tempo para que a lei surtisse efeito, uma vez que o país ainda
estava em crise financeira e, em 1992, a RFFSA seria incluída no Programa de
Privatização. Ela só serviria para compor um dos elementos que constituiriam o
modelo do contrato de concessão em 1996 e 1997.
A relação com os clientes não apresentava um quadro muito diferente. Havia
um número muito reduzido de clientes em carteira, a parcela da produção desses
clientes que ia por ferrovia era baixa e os investimentos deles em ativos específicos
para a ferrovia também eram baixos. As reclamações eram inúmeras: baixa
qualidade no atendimento, baixa confiabilidade nos serviços, muitas perdas com
acidentes, baixa disponibilidade de ativos e freqüência. Assim, havia pouquíssimo
interesse de clientes em investir na infra-estrutura necessária para transporte por
ferrovia, devido, principalmente, às baixas garantias de execução contratual por
parte da RFFSA, mas também por causa da baixa competitividade do modal e da
falta de linhas de financiamento adequadas para tais investimentos.
Os acidentes não só aumentavam o desperdício (com a perda das cargas e
ativos) e limitavam a capacidade da malha, como também causavam sérios
problemas junto às comunidades pelas quais a malha ferroviária passava. Esses
acidentes muitas vezes envolviam pessoas passando pela linha férrea, carros e
caminhões cruzando passagens de nível ou descarrilamentos que atingiam
construções próximas às linhas.
5.2.1.2 Gestão da Diversidade
O principal desafio desde a fundação da empresa foi promover a integração
da mesma frente à ampla diversidade de recursos com a qual tinha que lidar. A
forma como foi criada a empresa entregou um conjunto de ferrovias que não foi
135
desenvolvido para transportar cargas entre si. A empresa operava negócios com
tecnologias diferentes e em regiões distintas com cargas distintas em termos de tipo,
volume e freqüência.
O Sul do país transportava essencialmente soja para os portos e
combustíveis para as refinarias. São Paulo, também focava nos combustíveis, mas
possuía já algum volume de exportação de industrializados para o Porto de Santos.
Minas e Espírito Santo transportavam essencialmente minério de ferro. Rio de
Janeiro atuava no setor siderúrgico. Por fim, no Nordeste tinha o transporte de
commodities agrícolas e no Norte novamente o minério de ferro. Essas diferenças
de produtos transportados impactavam na especialização dos vagões e
equipamentos de carga e descarga. Além disso, essas malhas possuíam volumes e
freqüências de transporte diferentes, que exigiam padrões de operação distintos e
locomotivas específicas para cada caso, assim como refletiam em condições
financeiras diferentes.
Havia também a grande influência do transporte de pessoas, segmentação
que há muito tempo havia sido feita em outros países. Nesse caso, não só houve a
influência da competição do transporte rodoviário, mas principalmente do transporte
aéreo. Além disso, as características técnicas e de operação do tráfego de pessoas
eram bem diferentes daquelas necessárias ao transporte de cargas.
Um dos principais objetivos da criação da RFFSA foi buscar a integração da
malha ferroviária brasileira. Contudo, muitos dos aspectos que limitavam a conexão
entre as “ilhas econômicas” eram simplesmente impossíveis de se resolver dada as
limitações aos investimentos ferroviários. Tais investimentos consideravam:
modificações no traçado das linhas; criação de linhas que oferecessem maior
conectividade entre as malhas regionais; e a padronização de bitolas. Não que a
organização não investisse na tentativa de homogeneizar e compartilhar seus
recursos. O que ocorria é que somente investimentos de menor porte foram feitos,
como a compra de vagões, padronização de práticas de operação e definição de
cargos e salários. Mas a estrutura organizacional não caminhava na mesma direção,
pois o compartilhamento ficava limitado pelas regras de uso de ativos. Um trem, com
locomotivas e vagões, que saísse da SR-5 deveria transbordar sua carga para um
trem da SR-3 ao chegar no entroncamento das malhas, mesmo que ambas
possuíssem bitolas idênticas. Isso porque a SR-3 não podia operar os ativos da SR5
e vice-versa. A complexidade dessa operação era enorme devido à transferência
136
das cargas, mas principalmente devido à necessidade de planejamento de uso do
ativo, além de aumentar os custos e o tempo de transporte desnecessariamente.
Outro aspecto negativo para a gestão da diversidade era o alto grau de
centralização das decisões: as unidades de negócio dependiam da sede para fechar
contratos; funcionários de linha dependiam dos seus superiores para tomarem
decisões; e cada área técnica desenvolvia separadamente suas ações. A estrutura
organizacional dividia as superintendências regionais em áreas técnicas e cada área
decidia como atuar nas malhas de cada superintendência. Uma superintendência
podia ter até quatro mil quilômetros de malha, enquanto outras poderiam ter muito
menos. Essa diferença de tamanho e as já citadas diferenças de volume exigiam
que houvesse dedicação de recursos diferentes para cada uma.
A falta de procedimentos de avaliação de desempenho fazia com que a
distribuição de recursos fosse baseada nas negociações políticas, tanto no âmbito
interno da organização, como na influência que o governo exercia como financiador
dos investimentos. Assim, a Rede era obrigada a manter malhas deficitárias e evitar
mudanças nas operações em troca de apoio político. Santos (2000) relata:
“Com uma estrutura extremamente hierarquizada, a estatal tinha, também, um sistema de comunicação vertical que dificultava o acesso aos níveis superiores da empresa e distorcia a informação. (...) No nível operacional, havia queixas quanto ao desconhecimento dos objetivos da organização. A operação diária na produção era dificultada pela compartimentalização da informação.”
5.2.1.3 Aprovisionamento de Recursos Humanos
A questão dos recursos humanos na empresa era o único elemento com
ainda alguma perspectiva positiva para os possíveis controladores pós-privatização,
porém ainda assim com vários aspectos negativos.
Os funcionários da Rede Ferroviária Federal eram contratados através de
processos seletivos criteriosos e competitivos, afinal durante muito tempo era o
sonho de muitas famílias ver seus filhos seguirem os passos de seus pais,
mantendo o orgulho ferroviário. O Entrevistado 6 ressalta que quando realizou seu
concurso em 1983, dos 3.500 candidatos, ele foi um dos 18 escolhidos após provas
técnicas escritas e orais. Em seguida, foi alocado para um treinamento de três
meses que o tornaria apto a exercer sua função como auxiliar de estação. Esse
mesmo entrevistado, assim como os Entrevistados 14 e 23, descreve que sua
primeira promoção ocorreu através de prova interna de seleção e não através de
indicação. Contudo, todos eles, sobreviventes do processo de privatização, insistiam
137
em diferenciar que os níveis hierárquicos mais altos eram ocupados de maneira
política e não por mérito, como na era pós-privatização.
Além disso, houve, segundo relatos, durante muitos anos, ampla
disponibilidade de investimentos em treinamentos e congressos. Por outro lado, o
Entrevistado 14 lembra que:
“Era muito complicado trabalhar na Rede Ferroviária. Você começava a trabalhar, os outros não queriam, aí já dava problema. Os caras amarravam. Você só podia enxergar o teu, não podia apontar defeito nenhum em ninguém, só podia olhar o teu. Então era um negócio meio assim. Tinha a vantagem que você aprendia muito. Tinha muito treinamento.”
Apesar do amplo apoio da Rede aos treinamentos, citado pelos
entrevistados, o primeiro ano pós-privatização sugere que havia baixa qualificação
dos funcionários. Primeiro porque uma das condições impostas pelo processo de
privatização era ofertar cursos profissionalizantes e de atualização para os
funcionários desligados durante o primeiro ano. Segundo porque até os que
permaneceram após as demissões, também precisaram investir no próprio
desenvolvimento. O Entrevistado 14 relembra da seguinte maneira:
“... quando começou a iniciativa privada eu tava numa função administrativa e logo percebi o seguinte: ‘na iniciativa privada é melhor eu estar forte naquilo que eu sou mais forte. Então é melhor passar para a manutenção’ (...) Então eu fui num nicho de trabalho que ninguém conhecia, que era vagão, manutenção de vagão. Conhecer profundamente, dificilmente tinha alguém, tinha um ou outro que podia dizer, mas não dava resultado.”
A organização tinha sérias dificuldades na avaliação e promoção de seus
recursos para cargos mais estratégicos e não existiam processos estruturados de
planejamento de carreira, avaliação de desempenho, além das promoções e
aumentos de salário estarem relacionados estritamente ao tempo. Santos (2000)
descreve da seguinte forma:
“os entrevistados relataram as principais características de funcionamento da estatal. Esta era vista como uma organização cujos principais defeitos consistiam em: (a) dificuldade para se demitir alguém; (b) baixo comprometimento de muitos funcionários; (c) falta de condições para o trabalho; (d) igualdade na remuneração e promoções, independente de produtividade, o que produzia, por conseqüência, desmotivação para o trabalho; (e) comunicação pouco ágil e (f) estrutura demasiadamente hierárquica causando lentidão nas decisões.”
Devido às dificuldades de se demitir um funcionário público, a única forma
existente para redução de pessoal então era não contratando novos funcionários,
deixando que isso ocorresse através das aposentadorias. Dessa maneira, o último
concurso realizado pela empresa foi em 1985, onze anos antes da privatização.
138
5.2.1.4 Gestão da Complexidade
Não foram encontradas evidências de que a RFFSA, ao longo de sua
história tenha sido criteriosa e sistemática ao resolver seus problemas ou mesmo
que suas soluções tenham tido uma abrangência para além dos limites específicos
dos problemas. Alguns relatos sugerem que a burocracia, mais comum às estatais,
pode ter sido um mecanismo de aprendizado no início, mas com o tempo os
excessos tornaram o processo burocrático um impedimento à renovação.
O principal impacto da ausência de respostas positivas ao desafio da
complexidade ocorreu sobre o desafio da gestão da diversidade. A criação da Rede
já teve por objetivo a reorganização de toda a malha ferroviária sob administração
federal sob um modelo mais integrado. Do dia para a noite, todos os indicadores de
tamanho da organização foram multiplicados: número de funcionários, volume
transportado, extensão da malha, regiões de atuação.
Estruturalmente, levou mais de 10 anos para que se fizesse a primeira
mudança na organização administrativa. A RFFSA agrupou suas ferrovias em
sistemas regionais em 1969, mas outra grande reorganização foi feita em 1976 com
a criação das superintendências regionais. Esses movimentos que buscavam
aumentar a eficiência da empresa ao mesmo tempo em que tentavam torná-la mais
integrada, apresentam evidências de que as soluções não consideravam aspectos e
atores relevantes. Diversas acusações de desmandos políticos surgem com relação
à reorganização de 1976. Stefani (2007) destaca matéria de Abril de 1990 da
RFFSA com o Chefe do Departamento Comercial da SR-2:
“a nova administração da RFFSA praticamente levou a empresa a um retrocesso organizacional e administrativo ao transformar, no final de 1989, as sete Regionais e duas Divisões Operacionais em 12 Superintendências Regionais, ao modelo de 1976 quando a empresa possuía estradas independentes e deficitárias.”
Em 1984, seria criada a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU),
retirando a responsabilidade da RFFSA sobre o transporte de passageiros. Era um
dos primeiros sinais de fragmentação. O sistema ainda sofreria uma última grande
reorganização alguns anos antes da privatização para assim alinhar a estrutura
organizacional às malhas definidas no processo licitatório. As 14 superintendências
então existentes se tornariam sete malhas.
Ao longo de sua história se identificam algumas tentativas para tornar o
negócio lucrativo, mas tais decisões eram em sua maioria realizadas tardiamente e
139
de maneira isolada, recorrentemente tentando salvar a empresa somente naquele
momento das pressões que sofria devido ao seu baixo desempenho financeiro, sem
trazer benefícios duradouros. A CBTU, por exemplo, foi criada somente quando não
era mais possível financiar os prejuízos da operação do transporte de passageiros e
de cargas, quando já se sabia há muito tempo no mundo sobre a revolução que o
transporte automotivo e aéreo havia causado ao transporte de passageiros em
longas distâncias. Essa tendência havia atingido o Brasil há 20 anos. Outro exemplo
foi a demora em separar do financiamento do negócio de cargas aqueles projetos
considerados de interesse público mesmo que fossem antieconômicos. Por fim, o
padrão de investimentos em ativos – esporádicos, não planejados, limitados a certos
aspectos ou regiões – é mais um exemplo de como as decisões tomadas não
buscavam o benefício no longo prazo.
5.2.1.5 Gestão da Folga Organizacional
Apesar da histórica dificuldade em se integrar o sistema ferroviário brasileiro,
o primeiro desafio das concessionárias que assumiram os ativos da Rede Ferroviária
Federal foi torná-las eficientes no uso de seus recursos, evitando desperdícios e
utilizando recursos antes ignorados. O desperdício atingia várias dimensões do
negócio, mas as principais evidências apontam para os efeitos da gestão dos ativos,
da operação e de pessoas.
Ainda antes da privatização, haveria redução dos desperdícios existentes,
na tentativa do Governo de tornar o negócio mais atrativo para os possíveis
investidores. A malha sob administração da RFFSA que, em 1958 era de 37.967
quilômetros, tornou-se um sistema de 22 mil quilômetros para ser licitado. Os mais
de 200 mil funcionários do setor do fim da década de 50 totalizavam quase 100 mil
em 1993, 85 mil em 1995 e, no mês anterior à primeira privatização eram um pouco
mais de 46 mil. Esse número não foi ainda menor devido às restrições
orçamentárias do Governo que não foi capaz de atender a todos os interessados no
PDV. Essa redução no número de funcionários foi acompanhada de um aumento na
produção: em 1958 eram aproximadamente 10.500 bilhões de TKU, chegando a
125.000 em 1993 e 136.500 em 1995.
A Rede possuía funcionários qualificados e experientes, mas o PDV
favoreceu a saída dos funcionários mais antigos que receberiam bonificações
maiores, uma vez que tais bonificações estavam atreladas aos anos de serviço.
140
Dessa maneira, grande parte da folga que a organização possuía em forma de
recursos experientes e capacitados, acabou sendo perdida nesse processo.
Outra medida, tomada pelo Governo três vezes37, foi assumir parte das
dívidas da empresa. Na segunda ocasião, o Tesouro Nacional assumiria o principal
e o serviço da dívida dos investimentos considerados antieconômicos, porém
importantes do ponto de vista social para o governo. Tais dívidas não eram
relacionadas a investimentos na ampliação da malha, notadamente com taxas de
retorno pouco atrativas para a iniciativa privada, mas para os empréstimos
assumidos pela própria Rede junto a instituições financeiras, principalmente de
apoio ao desenvolvimento, como o BNDES e o Banco Mundial.
O financiamento de operações deficitárias absorveu não só a capacidade de
crédito da empresa, mas também, e principalmente, o lucro gerado pelas operações
mais eficientes. Os investimentos realizados na década de 70 se perderam
rapidamente com a crise da década de 80 e com a entrada da RFFSA no Programa
de Privatização na década de 90. (Marques, 1996).
O principal gargalo até mesmo antes das privatizações era a disponibilidade
de vagões, locomotivas e a integridade física dos trilhos. O Entrevistado 14 relembra
a situação da seguinte maneira:
“a gente dizia o seguinte, que o cliente, mesmo que ele entrasse de joelhos, pedindo por favor, então existia demanda, existia carga, mas nós não tínhamos a menor capacidade mais na empresa de trabalhar porque cada vez estava com menos oferta de vagões e locomotivas, tudo parado.”
Enquanto a dificuldade financeira se expandia, a Rede dispunha de
inúmeros ativos de utilidade duvidosa. Uma matéria de uma revista de grande
circulação ressaltava:
“A Rede Ferroviária Federal, com seus trens e trilhos escangalhados, era dona de 22.000 imóveis, entre eles uma ilha em Angra dos Reis e um horto florestal no interior do Rio de Janeiro. (...) A Rede Ferroviária Federal mantinha em estoque 85000 rolos de papel higiênico na superintendência de Belo Horizonte, e estava tudo mofando numa sala.” (Veja, 06/08/1997)
Como todo negócio atuante em indústrias em rede, a expansão da malha
aumentava a utilização da malha existente. Contudo, o que ocorria na época estatal
era justamente o oposto: a paralisação de certos trechos acarretava na interrupção
de grande parte da malha. Quando um trem causava algum acidente, dependendo
37 A primeira na criação da RFFSA, outra em 1984 e a terceira nas privatizações.
141
do trecho onde havia ocorrido, inúmeros outros ativos eram desperdiçados além
daqueles envolvidos no acidente. Trens que utilizariam o trecho acidentado ficavam
presos em outros trechos e, em um processo dominó, outros trechos ficavam
interrompidos. A quantidade de acidentes que ocorriam na RFFSA reduzia a
capacidade de tráfego da malha, a utilização dos ativos e a produtividade.
5.2.1.6 Empreendedorismo
Não foram identificadas evidências da presença de nenhum dos serviços
empreendedores definidos por Penrose (1980). Na verdade, existem algumas
evidências de que a ausência desses serviços é uma das causas do fracasso.
A falta de ambição pode ser associada à evolução da malha sobre
administração da Rede, assim como pelo comportamento comercial da organização.
Durante muitos anos o comportamento da organização frente à evolução do
transporte rodoviário havia sido recuar para posições mais seguras, onde os
caminhões tinham maior dificuldade em competir, seja pelas características do fluxo
de cargas ou devido às regras de mercado. Por outro lado, a ausência de ambição
não exigia que a organização testasse sua capacidade de julgamento, uma vez que
a empresa não se arriscava, apenas “fugia” para atividades menos arriscadas. O
Entrevistado 14 relata da seguinte forma:
“Antigamente, no tempo da Rede, o cara não queria saber de nada. Mais um cliente, mais uma carga, mais um isso (...) no tempo de estatal, a gente só ficava se preocupando com commodities agrícolas e os líquidos, ou seja, combustíveis, até porque a gente tinha, era antes da desregulamentação dos combustíveis, então era obrigado o transporte de uma base primária para secundária através de ferrovia se houvesse ela.”
A baixa autonomia das regionais e a baixa legitimidade da Rede em cumprir
contratos também causavam reflexos na capacidade da organização em aumentar a
carga transportada ou o número de clientes. Os funcionários não tinham liberdade
para decidir as condições contratuais mais adequadas à sua situação de ativos.
A Rede também tinha dificuldades em transmitir aos seus financiadores
alguma confiança. Os diversos governos davam baixa importância à Rede, pois não
só os investimentos eram realizados em outros modais, como rodovias e dutos, mas
também eram prioritários os investimentos em outras ferrovias governamentais. Na
década de 70, a linha da Vitória-Minas expandiu de 633 km para 811 km; na década
de 80, se constrói a Carajás, com 1151 km, ambas da CVRD. Também se iniciavam
os investimentos para a construção da Ferronorte, uma concessão privada. No
142
mesmo período a RFFSA teve sua malha reduzida em quase 3000 km.
A malha ferroviária brasileira viu sua participação de mercado despencar
com relação ao modal rodoviário, perdendo espaço inclusive em cargas
consideradas cativas, como as commodities agrícolas. Não havia movimentos de
expansão significativos de nenhum caráter. Mesmo a construção de linha ligando o
Norte do Paraná com o porto de Paranaguá em 1985, a futura Ferropar, acabou por
não se provar um investimento atrativo. Desde sua fundação, o grande desafio da
RFFSA era se manter unida e até mesmo movimentos de expansão da
produtividade eram bastante tímidos.
5.2.2 Fase 2 – Reestruturação (1997 – 1999)
A Fase de Reestruturação inicia-se com a venda da Malha Sul da Rede
Ferroviária Federal e criação da chamada de Ferrovia Sul Atlântico. O período
destaca-se pelo foco na readequação do uso dos recursos organizacionais
entregues pela privatização e pelo investimento de novos recursos. Os eventos
identificados sugerem que a gestão buscou transformar a empresa de um negócio
consumidor de recursos para um gerador de recursos no menor espaço de tempo
possível. Os executivos queiram tornar o negócio auto-suficiente e focaram seus
esforços principalmente: na eliminação dos desperdícios; no aumento da eficiência;
e na utilização e renovação das folgas.
Longevidade Saudável
Gestão da
Diversidade
Gestão da Integridade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
1997-1999
Empreendedorismo
Crescimento e
Renovação
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Complexidade Gestão da Folga
143
Figura 5-11: Análise da Fase de Reestruturação (1997 a 1999) da FSA.
5.2.2.1 Gestão da Folga Organizacional
Os sócios que assumiram os ativos arrendados da RFFSA haviam feito uma
avaliação detalhada das condições da empresa e do ambiente de negócios. Com
isso, previam a necessidade de investimentos e dedicaram ao novo
empreendimento recursos para que a o negócio pudesse ser transformado.
Um dos primeiros movimentos realizados pela GP Investimentos foi reunir o
grupo de sócios que iria comandar a nova organização. Entre eles havia outros
bancos de investimentos, mas também uma empresa americana com vasto
conhecimento sobre ferrovias e grupos econômicos importantes do sul do país que
traziam know-how específico sobre o mercado. Foram contratados novos executivos
para assumir a administração da organização, dois vindos do mercado e outro de
uma das empresas controladas pelo GP. No Conselho de Administração também
havia alguns associados do banco com papel relevante na gestão do negócio.
A primeira ação empreendida por esses executivos foi demitir grande
parcela da força de trabalho. Durante os três meses de co-gestão (Janeiro a Março
de 1997) foram escolhidos em torno de 2000 funcionários que seriam desligados.
Essa ação visava eliminar o excesso de recursos humanos, mas também sinalizava
com uma nova lógica de trabalho para aqueles que permaneciam. A co-gestão foi
um período para analisar quais seriam as estruturas eliminadas, os processos que
seriam revistos, as tecnologias que iriam ser utilizadas e os serviços que seriam
terceirizados.
Juntamente com a redução no custo com pessoal, outras linhas de despesa
também foram cortadas, principalmente aquelas que não eram estritamente
necessárias à operação: estações e filiais administrativas foram desativadas e com
isso todas as suas despesas fixas; estruturas e recursos específicos para executivos
foram eliminados; e treinamentos e outros investimentos interrompidos.
Para tornar o negócio lucrativo era necessário não só reduzir as despesas,
mas também aumentar as receitas. A companhia previa que com cortes de
despesas e aumento de receitas o ponto de equilíbrio só seria alçando em 1998
(América Latina Logística, 2001).
Como havia sido levantado no processo de avaliação, havia uma grande
demanda reprimida e um dos principais entraves para a absorção dessa demanda
144
era a disponibilidade de ativos. A Rede possuía tais ativos, mas a falta de recursos
financeiros nos seus últimos anos deixou grande parte simplesmente parada. A nova
gestão optou por investir na reforma dos ativos para conseguir absorver essa
demanda. Ou seja, eles usufruíram de dois tipos de folgas, de ativos e de mercado,
que estavam subutilizadas na época estatal. O Entrevistado 24 relata o quadro:
“Quando compramos, dos 9000 vagões existentes, 2000 eram mortos. Para as locomotivas os números eram de 350 e 180. Havia também uma parte da malha que estava desativada.
Os ativos disponíveis, além de reformados, foram realocados buscando
maximizar a eficiência do seu uso. O Entrevistado 1 destacou:
“Foram fazer um estudo e viram que na África tava sobrando locomotiva e eles tinham trilhos. Quando eles compraram a Rede, a Rede tinha lá trilhos demais, mais do que precisava. Tinha locomotiva de menos, vagão de um tipo demais, vagão de um tipo de menos, então tinha que fazer uma gestão desses ativos. Então isso foi uma coisa que observei: “vamos pegar esses trilhos aqui e vender, vamos trocar nossos trilhos, um escambo, nossos trilhos pelas locomotivas lá... porque lá está quebrado e a gente precisa aqui... chegaram a criar uma empresa para fazer a gestão dos imóveis que eles adquiriram com a concessão.”
Apesar dos relatos sobre dificuldades de financiamento nessa época, o
volume de investimentos financeiros foi alto, principalmente considerando todas as
despesas envolvidas: aquisição da concessão; demissão de pessoal; e reforma dos
ativos. Essas reformas consumiram aproximadamente R$ 100 milhões, mas nos
anos seguintes houve outros aportes de capital. Dados da CVM apontam para um
incremento de R$ 24 milhões no capital social da empresa de 1996 para 1997 e
dívidas com sociedade controlada de R$ 77 milhões. Os ativos, por outro lado
somaram R$ 80 milhões, com R$ 30 milhões registrados como benfeitorias em
imóveis de terceiros.
Os fornecedores também eram fontes de desperdícios, pois consumiam
recursos desnecessários. Eles cobravam preços mais altos para compensar a
incerteza dos pagamentos ou porque não havia controle sobre esses contratos. Uma
matéria sobre as privatizações (Veja, 06/08/1997) descreve:
“Dentro e fora dessas empresas tem gente que se juntou para roubar ou se aproveitou da facilidade com que as estatais enfiam a mão no bolso. Basta dar uma olhada no preço dos contratos, antes e depois da privatização. O fato é que os seus novos donos conseguiram renegociá-los com descontos impressionantes.”
No processo administrado pelo CADE com relação ao acompanhamento das
concessões ferroviárias, os depoimentos de alguns fornecedores também são
145
insumos para relatar os efeitos da entrada da iniciativa privada no negócio:
“informamos que somos fornecedores de eixos ferroviários e os fornecimentos eram feitos regularmente à RFFSA pela Açoforja. Entretanto, após a concessão para a Ferrovia Atlântico Sul S/A ainda não recebemos nenhuma encomenda de eixos e segundo informações estão importando do leste europeu a preços muito baixos. Ao que tudo indica, trata-se de mais um caso de ‘dumping’ de produtos originários daquela região” (Ato de Concentração CADE).
5.2.2.2 Aprovisionamento de Recursos Humanos
Esse desafio foi o mais afetado pela solução adotada para reagir aos
desafios da gestão da folga organizacional. Em nome da eficiência econômica da
organização e da construção de uma nova cultura, foi necessário desligar um grande
volume de profissionais, muitos deles com larga experiência e qualificação.
Na época estatal a organização não possuía padrões de resposta tendendo
para o pólo de auto-perpetuação devido à falta de procedimentos de avaliação e
sucessão e de serviços gerenciais, apesar da qualidade de seus funcionários. A
privatização solucionou parte desses problemas, instituindo critérios de promoção e
remuneração associados ao desempenho, ainda que de maneira incipiente. Em
contrapartida muitos dos excelentes técnicos foram perdidos no processo de
downsizing. O Entrevistado 14 relata como foi a introdução desses critérios:
“Mas eu diria o seguinte: aqui ficou muito claro o seguinte... no primeiro ano já houve a primeira distribuição de bônus. Ainda não era um negócio corporativo, institucionalizado. Mas o presidente já teve a possibilidade de escolher aqueles que mais ajudaram ele no primeiro ano e distribuir lá 2, 3 salários pras pessoas. (...) em 97 o presidente chegou lá e disse “po, você me ajudou tal” e me deu três salários.”
Santos (2000) descreve que os recursos qualificados foram perdidos devido
à necessidade de enxugamento, de atender ao dimensionamento realizado e ao fato
de que erros poderiam ser cometidos na avaliação de quais seriam os melhores. O
volume de demissões continuou relativamente alto mesmo depois do downsizing,
porque novos funcionários foram trazidos e um ambiente baseado na “sobrevivência
do mais apto” foi incentivado. Os entrevistados relataram que a demissão de alguns
funcionários da Rede só demorava até um jovem recém-contratado absorver o que
era basicamente necessário para exercer a função, mas que na maioria das vezes
deviam aprender por conta própria. A mensagem de recrutamento era diferente: ao
invés do orgulho ferroviário, passou a ser altas remunerações para aqueles que
conseguissem desempenho extraordinário.
As práticas incipientes de gestão de pessoas foram as primeiras a serem
146
desenvolvidas e institucionalizadas, já antecipando os movimentos da fase seguinte.
A remuneração e promoção passaram a refletir o espírito de sobrevivência da firma
e aqueles que não geravam resultados eram descartados. A característica se
disseminou por toda a empresa, afinal as metas do gestor eram compostas pelas
metas de seus funcionários e ninguém queria ter sua meta prejudicada pelo
desempenho abaixo da meta de seu funcionário. Da mesma maneira que a empresa
precisava se recuperar no curto prazo, assim as metas foram estabelecidas. As
metas eram acompanhadas a cada três meses e relatos apontam para demissões
por baixo desempenho com seis meses de empresa.
5.2.2.3 Gestão da Diversidade
Não houve evidências sobre ações desenvolvidas especificamente sobre
esse desafio nesse período. Contudo, alguns efeitos podem ser destacados,
principalmente no que tange à nova forma de trabalhar da empresa privada,
afetando a resolução de conflitos, o grau de responsabilidade do indivíduo sobre seu
trabalho e o compartilhamento de ativos. Santos (2000) relata algumas das
características da nova administração, como multifuncionalidade, atitude pró-ativa,
responsabilidade, autonomia e comprometimento.
Já as entrevistas apontaram para a forma como os funcionários mais antigos
encontraram para sobreviver ao processo de downsizing, buscando especializar-se
para garantir a sua posição na nova companhia. Isso acabou gerando um efeito
positivo, a princípio não planejado, para a companhia. Por um lado contratava e
valorizava recursos homogêneos para introduzir na gestão, universitários recém-
formados que pareciam compartilhar os ideais do GP. Por outro, os funcionários
antigos se especializaram e assumiram funções da operação, gerando um equilíbrio
benéfico na gestão da diversidade.
A finalização da compra de duas ferrovias argentinas dois anos após a
conclusão da compra da malha brasileira, resultou em um grande desafio para a
gestão da diversidade. A estratégia adotada foi a manutenção da administração dos
dois negócios em separado, mas tentou-se aplicar os mesmos métodos utilizados no
Brasil para tentar tornar o negócio argentino mais lucrativo. Um dos argumentos
apresentados nas evidências coletadas é a divergência entre os padões
operacionais e comerciais. Contudo, essa escolha possivelmente decorre também
do descompasso entre os dois processos de transformação e da limitação de
147
recursos para investir nesse processo. Os recursos que o GP possuía no Brasil não
foram de fácil replicação na Argentina, pois faltava: sócios que conhecessem o
mercado e dispostos a entrar no investimento; relacionamentos com os governos;
executivos preparados para aquele mercado; e recém-formados em busca das
aspirações oferecidas pelo GP.
5.2.2.4 Gestão da Complexidade
A época era de esforço concentrado em salvar a organização. A forma de
gerir a complexidade foi influenciada pelo ambiente de trabalho onde tudo era um
“incêndio a ser apagado”, exigindo da organização respostas rápidas, que reduziam
a importância do aprendizado ou da busca da melhor opção. Um entrevistado
descreve como avaliava seu interesse em treinamentos na fase pós-aquisição.
“Aqui, você fica, primeiro: ‘se eu for fazer qualquer coisa to perdendo tempo não to olhando meu negócio.’ Tem que valer muito, tem que ser algo assim, fora do comum. Então, você tem pouco tempo. Segundo: tem que ser algo muito específico que tenha aplicação imediata. São coisas que você não tem aquele tempo de ficar pensando, raciocinando como vou aplicar e tal. Tem que ser tudo muito direcionado.” (Entrevistado 14)
Era necessário que os problemas de operação fossem resolvidos de
maneira ágil e objetiva, pois cada dia que passava sem que fosse dada solução a
algum problema, era um dia a mais de prejuízo no balanço da companhia. Não havia
muito questionamento sobre os motivos para que determinado objetivo não tivesse
sido concluído. A solução era simples e direta: demissão, contratação de novo
funcionário ou terceirização. Os recursos eram limitados em todos os sentidos, entre
eles os recursos gerenciais, o que refletia na dedicação à resolução de problemas.
Por esse motivo, os empregados que fossem capazes de resolver problemas mais
rapidamente eram bem vistos.
5.2.2.5 Navegação no Ambiente
Apesar desse desafio não ter sido o principal foco de atenção ou de
demanda da organização, foi necessário certo grau de atenção, principalmente
devido aos impactos que gerava sobre os desperdícios e oportunidade de
aproveitamento das folgas existentes. O principal objetivo e conseqüência das ações
foi o aumento da legitimidade perante clientes e fornecedores.
Apesar do cancelamento de todos os contratos com a entrada da iniciativa
privada, novas condições de negociação surgiam: não havia mais um processo
148
burocrático de compra e os pagamentos não demoravam tanto tempo quanto na
época estatal. Além disso, muitos funcionários da Rede haviam se aposentado e
aberto seus negócios, especificamente para atender às demandas da privatização.
O processo era mais difícil junto aos clientes. Os riscos associados à ferrovia
por parte dos clientes envolviam o desabastecimento de suas operações na ponta
de distribuição devido à baixa confiabilidade dos horários e as “variações de humor”
da estatal conforme os ventos políticos indicassem, o que afastava o interesse nos
investimentos necessários à operação ferroviária. As entrevistas detalham tais
aspectos:
“O trem era mais barato, mas corria o risco de desabastecimento e por isso os clientes não queriam utilizar as ferrovias. Foi necessário começar com operações pequenas. O desafio era trazer a carga para a malha ferroviária.” (Entrevistado 24)
Esses relacionamentos ainda não seriam foco da atenção da gestão, mas já
antecipavam algumas das ações que seriam necessárias para poder crescer. Dessa
maneira, esse período não trouxe crescimento expressivo da produção. A produção
em 1997 foi praticamente idêntica à de 1996: 6.847 e 6.940 milhões de TKU,
respectivamente (SIMEFRE, 2006).
Alguns pequenos conflitos com competidores e complementadores (Nalebuff
& Brandenburger, 1997) começaram a surgir, mas ainda não eram gargalos de
interesse da alta gestão. Por outro lado, mesmo com o alto volume de demissões
não houve evidências de conflitos com ex-funcionários ou com as comunidades
próximas às linhas, nem com as diferentes esferas governamentais.
A operação argentina foi a principal fonte de conflitos: sindicatos e governos
não aceitaram os cortes decididos pela equipe de gestão que assumiu a empresa. A
empresa não encontrou alternativas senão atender aos pedidos desses públicos.
5.2.2.6 Empreendedorismo
São poucas as evidências da presença de serviços empreendedores
provenientes da organização nessa fase inicial. Grande parcela dos recursos
gerenciais envolvidos nas principais ações de recuperação eram oriundos dos novos
sócios, inclusive, e principalmente, os líderes e empreendedores. Contudo, parte da
folga de recursos humanos qualificados para a operação, oriundos da RFFSA, foi
preservada e sua presença foi fundamental para a sugestão de soluções versáteis
para resolver os novos desafios impostos. Os movimentos de expansão só foram
149
ocorrer no final da fase, mas apenas ajudaram a compensar a retração realizada no
primeiro ano.
O financiamento recebido era proveniente do dinheiro aplicado pelos novos
sócios. O serviço empreendedor de levantamento de financiamento havia sido
utilizado meses antes quando a equipe de avaliação da aquisição trouxe a proposta
para os executivos da GP e, posteriormente, esses executivos reuniram os grupos
de investidores que se tornariam sócios do negócio. Esses mesmos executivos
seriam os responsáveis pela obtenção de mais fontes de financiamento, fosse com
bancos privados ou públicos.
Na época estatal era proibida a terceirização de atividades, prática muito
mais comum no setor privado, o que levava à contratação de muitos funcionários
para prestar serviços esporádicos e pouco relevantes para o negócio. O
Entrevistado 14 relembra:
“Não podíamos terceirizar, ou seja, aproveitar serviços que não eram tipicamente ferroviários para outros fazerem. Então a entrada da iniciativa privada reduziu o quadro de pessoal, saímos na época, ficamos mais ou menos 3000 trabalhando. Mas foi contratando conforme a necessidade empresas terceirizadas para fazer serviços temporários. Isso foi ganhando certa agilidade na empresa.”
Essa fase envolveu um movimento de externalização de transações,
reduzindo o alcance das operações da cadeia produtiva que estavam sob comando
da empresa. Ou seja, do ponto de vista da amplitude das atividades executadas pela
empresa para prover o serviço de transporte de cargas, a empresa reduziu seu
tamanho, eliminando as atividades que não estavam relacionadas ao negócio
principal. Contudo, já no segundo ano houve crescimento de volume e receita.
5.2.3 Fase 3 – Crescimento (2000 – 2004)
A Fase de Crescimento é o período onde a nova administração implementa
e desenvolve modelos de gestão, incorporando e consolidando referências de outras
ferrovias, nacionais e internacionais, e do seu principal acionista controlador. Os
esforços para transformar a empresa em uma geradora de caixa ainda existiam no
começo da fase, mas as evidências sugerem que a organização também focou seus
esforços na criação e sistematização de processos para desenvolver características
empreendedoras, gerir a diversidade e os recursos humanos, além de criar meios
para reduzir a complexidade decorrente do crescimento. Os investimentos ampliam
principalmente em busca da diversificação, seja buscando novos mercados
150
atendendo a novos tipos de cargas, seja na expansão dentro da cadeia produtiva e
fora dela.
Figura 5-12: Análise da Fase de Organização (2000 a 2004) da ALL.
5.2.3.1 Gestão da Complexidade
A partir da entrada de Behring na presidência da ALL, ainda na fase anterior,
processos de trabalho foram definidos para todas as áreas da organização,
incorporando práticas de diversos stakeholders: concorrentes, sócios, consultores e
benchmarkings internacionais. As evidências apontam para a sistematização de
práticas em todos os desafios. Apesar de mudarem em diversos aspectos a forma
de trabalho anterior, o foco na resolução de problemas o mais rápido possível,
acreditando que melhorias incrementais seriam desenvolvidas ao longo do tempo.
Inicialmente, foi um período turbulento e de conflitos, pois eram mudanças
radicais que estavam sendo colocadas.
“Alguns antigos da Rede tinham algum tipo de resistência à mudança, algum tipo de medo, mas a cultura de quem tava agora na gestão da empresa era de avançar com a transformação da empresa mesmo. Era uma empresa competitiva, capitalista, orientada para resultado. Os conflitos aconteciam, essas divergências de concepção de processos... mas a mudança sempre prevalecia. Até em casos críticos como foi a questão das Operações, muda... esse foi o processo que eu vivi. Processo de absoluta renovação, transformação, reconstrução do modelo de negócio.” (Entrevistado 1)
Apesar disso, não eram mudanças desestruturadas. Tratava-se da infusão
de modelos de gestão. Foram importadas práticas de planejamento, organização,
comunicação, recrutamento, remuneração, avaliação, retenção e promoção
principalmente do modelo aplicado pelo GP em outras aquisições. Muitas dessas
2000-2004
Empreendedorismo
Crescimento e
Renovação
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Complexidade Gestão da Folga Longevidade Saudável
Gestão da
Diversidade
Gestão da Integridade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
151
práticas já eram amplamente utilizadas nos EUA há anos, conjunto esse descrito
como gestão por alto comprometimento38. Na ALL pôde se identificar os seguintes
itens do modelo:
Sistema de metas individuais desdobradas a partir do executivo principal;
Controle individual freqüente (trimestral) de desempenho;
Orçamento base zero;
Ambiente de trabalho aberto, em geral usando divisórias de meia altura;
Exposição do desempenho individual e global, atualizado semanalmente;
Recursos humanos flexíveis, “genéricos”;
Grande parte do salário paga através de remuneração variável;
Remuneração variável associada ao desempenho individual;
Remuneração por opção de ações;
Classificação forçada entre os funcionários (melhores e piores);
Círculos de qualidade;
Cada elemento desse modelo teve um papel na sistematização de práticas
em outras dimensões de análise. Os processos de orçamento, acompanhamento
trimestral e revisão anual de metas constituíam um mecanismo de aprendizado da
organização.
“Se acontecia um acidente, o que acontecia? Pode ter três causas: pode ser tração, mecânica ou de via. A gente ia em cima para ter certeza. Ah, se a causa era mecânica e ia cair para mim quero ter certeza de que é causa mecânica. Não interessa se foi no Rio Grande do Sul ou em São Paulo, eu vou lá ver pessoalmente o operador ver, se é que sabe tudo que eu sei e nós vamos ver mesmo se foi problema de mecânica. Então a gente começou a estruturar para garantir que aquilo que eu estou recebendo em prejuízo é realmente minha responsabilidade. E daí eu aprendo.”
“Então você tem que estar ali em cima, monitorando e cobrando: ‘olha, você carregou mais. Se continuar assim eu não deixo o vagão passar.’ ... Ele vai levar para o diretor comercial dizendo: ‘olha, a mecânica segurou todos os vagões do carregamento, perdemos todo o faturamento de hoje.’... Da próxima vez ele não pode entrar com essa desculpa de que carregou demais por isso que amarrou e ele perdeu o carregamento.” (Entrevistado 14)
Esses elementos começaram a ser implementados em 1999, mas se
consolidaram de 2001 em diante. O sistema de remuneração variável, por exemplo,
adotou diferentes modelos até estabilizar em 2000. Alterações continuaram
ocorrendo ao longo dos anos seguintes dessa fase e da outra, mas as escolhas
38 Traduzido a partir do termo em inglês high commitment management (Wood, 1996).
152
fundamentais foram feitas nessa fase, como a adoção de uma classificação ABC39
por grupos com uma grande parcela da remuneração proporcional a essa colocação.
Muitas soluções com relação à administração da operação, tanto em termos
de uso de tecnologias quanto em termos de processo, foram trazidas e
implementadas nesse período, principalmente a partir dos executivos contratados de
outras empresas e das referências internacionais. Por exemplo, toda a estratégia de
readequação dos ativos foi copiada daquela inicialmente utilizada pela RailTex em
1985 na reforma das linhas locais pós-desregulamentação americana40. Outro
exemplo foi a estratégia operacional adotada pelo diretor de operações, que havia
trabalhado na gerência da operação das ferrovias da Vale.
Novos procedimentos e tecnologias automatizavam uma série de operações
e foram necessários para que as melhorias em outras áreas fossem alcançadas,
como a redução de custos através da redução de pessoal. Por exemplo, a instalação
de computadores de bordo eliminou a necessidade de assistentes na condução.
Outro processo constituído para aprimorar o aprendizado das práticas
operacionais foram os círculos de qualidade, além das próprias revisões periódicas
de metas e do foco do trabalho no desenvolvimento de procedimento operacionais
para todas as áreas da companhia.
“E ai depois do gerenciamento pelas diretrizes e do programa de remuneração variável, a gente começou a focar aí toda a questão de rotina, padronização, porque não tinha, tinha muito pouco, a gente tinha mecânica que já tinha avançado num processo de padronização, mas sem o esqueleto deles, que eles criaram por vontade própria, sem muita metodologia por trás, então a gente começou a pautar ai toda essa questão de metodologia na companhia e criamos a questão de gerenciamento da rotina que é um embrião que a gente tem hoje na Companhia.” (Entrevistado 17)
Alguns processos de trabalho e tecnologias não relacionados à operação,
como finanças, recursos humanos e comercial, também foram trazidos e
desenvolvidos nessa época, passando por melhorias incrementais ao longo do
tempo. Muitos desses processos implementados geravam ganhos de escala, ao
sistematizar processos e reduzir a necessidade de controle sobre os mesmos.
“Só que antes de 2000 a gente não conseguia medir o resultado específico
39 Modelo de avaliação de pessoas que ganhou notoriedade com Jack Welch, no qual os funcionários são classificados entre X% melhores, Y% medianos e Z% insuficiente.
40 Tal argumento pode ser verificado comparando as seguintes referências: (Weber & Berg, 1985) e (Sull, Martins, & Silva, 2004).
153
por unidade ou por fluxo, o fluxo é um cliente com uma origem e um destino. E a companhia ela tinha vários sistemas espalhados por aí que não se conversavam. Em 99 a gente começou a implantar o SAP. Então com a vinda do SAP a gente começou a ter uma visão financeira melhor e tudo desembocava no SAP. (...) A gente mudou o conceito comercial drasticamente, criamos as unidades de negócio. Que não tinham mais as metas de receita e sim metas de lucro.” (Entrevistado 17)
O aprendizado que se identifica ano após ano nos processos implementados
nesse período são ocasionados também devido ao padrão de escolha de soluções
para resolver os problemas o mais rápido possível.
“Tem coisas que poderiam ter sido planejadas, questão de filiais, despesas, poderia ter planejado melhor, tudo poderia ter sido planejado, se alguém tivesse planejado lá atrás talvez a gente não tivesse tendo problemas hoje. Mas é diferente, o que a gente sente aqui, primeiro faz, depois se tiver algum problema lá na frente a gente resolve.” (Entrevistado 12)
O comportamento não era completamente ad hoc, pois foram definidas
regras simples e genéricas, objetivos gerais, que ajudavam a reduzir a complexidade
dos problemas e facilitavam a divisão da responsabilidade nos níveis hierárquicos.
Os critérios de investimento em projetos e de captação de clientes definidos pelos
diretores delimitavam a área de atuação dos gerentes e compensava o aumento do
risco pelo aumento da autonomia dos níveis de média gerência.
A presença de consultorias e empresas terceirizadas foi freqüente, mas são
poucos os momentos em que a organização não demonstrou preocupação em
absorver o conhecimento trazido. Os treinamentos em métodos de administração
pela qualidade trazidos pelo INDG e o MBA em logística organizado pelo Coppead,
por exemplo, passaram a ser lecionados na Universidade Corporativa. Já o processo
de planejamento estratégico desenvolvido pela Bain foi incorporado no início do
processo de definição anual de metas e orçamento.
5.2.3.2 Aprovisionamento de Recursos Humanos
As evidências apontam para um período onde os novos sócios preocupam-
se com a inserção da “cultura GP” trazendo, novamente, executivos de alto escalão
de outras empresas. A mudança atinge todos os níveis hierárquicos e o período é
marcado por uma alta rotatividade e renovação do quadro. No período são definidos
processos de seleção, avaliação de desempenho, promoção e remuneração que
atraem e disponibilizam um grande contingente de profissionais qualificados, porém
inexperientes. Já as dimensões de retenção de talentos e treinamento apontam para
soluções menos sistemáticas ou coordenadas. A primeira dimensão baseia-se em
154
um processo de sobrevivência, de “seleção natural”, e o segundo no “treinamento
on-the-job”, ambos conhecidos e incentivados pela organização.
Além do Pedro Roberto Oliveira, ex-Lojas Americanas, Alexandre Behring
passaria para uma posição mais ativa na empresa, adicionando ao cargo de
conselheiro administrativo a posição de presidente. Nos anos seguintes Sérgio
Pedreiro também ocuparia a posição de diretor financeiro mantendo-se conselheiro.
Seriam alocados em diretorias comerciais quatro executivos ex-Ambev após terem
passado alguns anos como gerentes. Outro recurso “tipo GP” a entrar para a
diretoria seria Bernardo Hees, recrutado através da Fundação Estudar. Com as
mudanças no quadro societário da própria GP, os representantes do banco no
conselho da FSA seriam trocados, incluindo agora o nome de novos sócios como
Antônio Bonchristiano no início da fase.
Esses executivos formariam o cerne executivo e a crescente base de novos
gestores qualificados e já com alguma experiência na indústria e com a empresa,
estava encarregado de executar o que era determinado pelo núcleo forte ali
formado.
“As coisas chegavam prontas, sempre. É uma coisa que é interessante. O que está no forno para 2009, 2010 e 2011? Existe coisa no forno, mas eu nunca soube. Eu não consigo imaginar que não tenham coisas assim numa empresa como a ALL. Isso é mais com o conselho de diretores.” (Entrevistado 12)
“Nesse período entre a Rede e a Delara, teve uma substituição acelerada de funcionários. Existia todo um conjunto de pessoas ali que vieram da Rede Ferroviária, conhecia das locomotivas, conhecia da operação, conhecia de todos os detalhes de manutenção, toda clientela, toda capilaridade, toda a lógica do negócio, como ele funcionava, e uma geração completamente nova de gente recém-contratada, recém-saída de boas universidades que entrou para administrar a empresa. Cabeça de mercado, cabeça de negócio, começou a trabalhar lado a lado com pessoas com cabeça de estatal, com um tipo de visão de negócio bastante diferente.” (Entrevistado 1)
Pode se notar essa tendência também pelo perfil etário da empresa, pois a
participação de funcionários com menos de 31 anos aumentou ano após ano,
conforme a figura a seguir demonstra.
Os recursos mais críticos foram mantidos tempo suficiente para que novos
profissionais se tornassem capazes de executar tais tarefas baseados no novo
contrato psicológico.
“Outro exemplo interessante foi a questão do centro de controle. ... O trabalho desses caras é fazer a malha fluir e impedir um acidente. ... Isso é uma operação crítica, porque é um profissional altamente especializado, exige capacidade e concentração. Todas as pessoas que estavam
155
trabalhando nessa área ainda eram da Rede Ferroviária. E por uma questão de mudança, do tipo de equipe, de redução de risco, de desejo da empresa de estar montando um time novo, numa cultura diferente, eles criaram um centro de treinamento isolado e secreto aonde várias pessoas trabalharam numa espécie de uma réplica do centro de operações e durante meses aprenderam a operar. Depois o grupo inteiro foi substituído” (Entrevistado 1)
Figura 5-13: Evolução do perfil etário dos funcionários da ALL.
Esse novo paradigma cultural era conhecido como a “cultura GP”. Essa
cultura trazia para os funcionários e candidatos uma mensagem de meritocracia,
desafios, rápido crescimento profissional e remuneração agressiva, e para a
empresa um conjunto de práticas presentes em muitas das empresas adquiridas
pelo banco. Esse conjunto, em especial a grande parcela da remuneração sendo
paga de maneira variável e atrelada ao desempenho individual, começava a criar um
ambiente competitivo de sobrevivência dos mais adaptados, enquanto que atraía
jovens ambiciosos e confiantes. As entrevistas descrevem como o processo de
avaliação influenciava na rotatividade dos funcionários:
“Eu diria assim: na Malha Sul... como vou dizer? Lei da seleção natural mesmo. O cara não rendia, era substituído mesmo. Aqui todo mundo é rápido, tem vontade, querendo fazer, querendo fazer coisa diferente... E você vendo um monte de gente sendo demitida, então cria um certo estresse.” (Entrevistado 14)
270402
476554
677 1642
2240
22901792 1233
874757
1208
1169
873 809 705 661 667
1594
1266
16 13 13 13 15386
194
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Menos de 31 anos De 31 a 40 anos De 41 a 50 anos Acima de 50 anos
156
“A rotatividade naquele momento era altíssima. Tanto com o pessoal que era da Rede como de quem entrava e saía logo em seguida. Isso eu acho um aspecto interessante. Quase ninguém ficava muito tempo. Entrava e saía, entrava e saía. O tempo todo. Saindo e eram saídos. Deu mais ou menos? Tchau, vamos buscar outro.” (Entrevistado 1)
Havia outros motivos para o alto grau de rotatividade além das demissões
por desempenho insatisfatório. As promessas de oportunidades de carreira e
salários acima da média só se realizavam quando as metas eram cumpridas e
custava caro conseguir esse objetivo. Assim, muitos dos talentos recrutados não
alcançavam o objetivo da alta remuneração e a mesma flexibilidade que os fazia
mudar de cidade para tentar a ALL permitia que saíssem em busca de outras
oportunidades.
O alto volume de demissões exigia em contrapartida um alto volume de
contratações, uma vez que o enxugamento de pessoal já vinha sendo realizado de
outras formas. Os executivos visitavam universidades para dar palestras e inspirar
recém-formados. Os processos de seleção ganharam volume, principalmente os de
estagiários e trainees onde cada vez mais candidatos se inscreviam no processo.
Em 1997 foram 912 candidatos e cinco anos depois alcançava a marca de 4 mil. O
recrutamento atingia as principais capitais brasileiras do Sul, Sudeste e Nordeste.
Como conseqüência da baixa retenção e do alto grau de renovação, os
investimentos em desenvolvimento de recursos humanos eram padronizados e
voltados para uma formação mais genérica. A especialização foi deixada de lado, a
cargo de cada funcionário dependendo da função que exercia. Essas questões eram
vistas pela alta gestão como conseqüências naturais e necessárias do processo de
mudança de cultura.
“No início tem-se uma grande mudança de pessoal. 70% vai embora, quem fica está na cultura. Tem que estabelecer tudo de maneira clara e objetiva, comunicar todas as metas e objetivos. Tem mais trabalho? Tem. Mais aí bota mais um, dois. Pode perder o histórico, mas faz parte. Já no campo é mais complicado de fazer. A gente tem que manter, mas é só botar pressão no dia-a-dia. (...) Tem muito treinamento. É um sobre-custo que se tem por causa da rotatividade.” (Entrevistado 24)
5.2.3.3 Gestão da Diversidade
As evidências sugerem que uma parte significativa dos processos definidos
no período esteve orientada para melhorar a gestão dos recursos disponíveis
através do aumento da autonomia das partes, da introdução de métodos de controle
e da capacidade de coordenação das unidades recentemente criadas. Em especial
destaca-se a ampliação do uso de ferramentas de comunicação e a
157
homogeneização de recursos principalmente através da padronização do
desenvolvimento de profissionais flexíveis.
Segundo relatos, o diretor de operações trazido da Vale introduziu as
primeiras modificações estruturais que levaram ao aumento do grau e da qualidade
da autonomia. A nova forma de dividir o trabalho entre unidades definiu
responsabilidades maiores para os indivíduos que ficaram responsáveis por essas
unidades. A melhora nessa dimensão se deveu principalmente porque não existia
mais a centralização decisória e fragmentação funcional presente na época estatal.
“Unidade de produção, como é, por que acontece? UP são áreas... Pega a ferrovia e divide em regiões geográficas, nada mais é que uma região geográfica como se tivesse fábricas. Você pega a malha ferroviária e divide em várias regiões geográficas autônomas” (Entrevistado 16)
A autonomia e responsabilidade do indivíduo foram consideravelmente
ampliadas quando comparadas com o estado anterior de estatal. Essa característica
era tida como condição necessária para que outras partes do modelo pudessem ser
alcançadas. Na visão dos executivos, para que os funcionários sejam capazes de
alcançar as metas desafiadoras acordadas, eles precisam de autonomia. As metas
definem para o funcionário “o que” ele deve fazer e ele próprio define “como” fazer.
“Foi onde eu realmente acordei. A gente estava entrando em uma empresa que coloca muita responsabilidade em cima de pessoas que não têm necessariamente a experiência necessária.” (Entrevistado 12)
Em paralelo também foram definidos processos e mecanismos de
coordenação para lidar com o possível aumento da fragmentação, apoiando a
resolução de conflitos. Por exemplo, a equipe comercial passou a ter mais
autonomia para negociar seus contratos, mas ao invés de um alto volume de vendas
pontuais com contratos spot, contratos de longo prazo passaram a ser priorizados.
Essa nova forma tornava as variáveis de mercado (como preço, volume, distância,
trajeto e freqüência) muito mais previsíveis, permitindo que as unidades
operacionais planejassem melhor as variáveis de operação (necessidade de ativos,
pessoal, horários de saída e chegada). A mesma estratégia de contratos de longo
prazo foi utilizada para a relação com fornecedores.
“Por isso que eu cobro da UP isso aqui, do CCO isso aqui, da mecânica isso aqui, por quê? O processo ta fechado. Se eu tiver uma quantidade menor de máquinas, vou ter menos máquinas, vou fazer uma vazão menor, ou seja, eu não vou cumprir esse contrato aqui. Porque esse contrato ele é de dois lados. A execução vai me cobrar, ‘cara você falou que ia fazer 80 vagões o dia, ta me fazendo 50, o que esta acontecendo?’ Vou falar ‘me deixa entender. Estou com transit-time maior, to com giro maior ou to com máquina a menos? Ah, estou com máquina a menos, estou com vagão a
158
menos.’ Nada mais que trava esses contratos com todas as áreas, seja o horizonte que for - diário, semanal, mensal, anual ou estratégico - e fica um cobrando o outro nisso aqui, então a gente amarra o processo assim.” (Entrevistado 16)
A comunicação entre o topo hierárquico e o operacional era considerada
bastante importante e representava parte relevante da agenda dos principais
executivos e mais um conjunto importante de processos de coordenação. As
ferramentas de comunicação, como revista e portal internos, não só aproximavam os
níveis hierárquicos e diferentes unidades, mas também ampliam a capacidade de
controle da organização. A atenção, novamente, está em torno das metas e de seus
desdobramentos. Cada funcionário passou a ser capaz de identificar os pontos onde
a companhia vinha falhando e exercer pressão sobre os responsáveis, vislumbrando
os efeitos que a falha desses responsáveis em alcançar suas metas poderia ter
sobre as suas próprias metas.
“A gente sempre diz... um dos métodos aqui dentro é um tipo de um caos. Não um caos assim que todo mundo perdeu a cabeça. Mas é o seguinte: você não é meu inimigo, mas você ta fazendo várias coisas que se eu não estiver olhando, você vai me prejudicar. E se me prejudicar, prejudica a companhia.” (Entrevistado 14)
Alguns mitos e símbolos são criados nesse período a partir da forma como
os principais executivos se relacionavam e se comunicavam com os funcionários.
Com a finalização do processo de aquisição das malhas argentinas a empresa
finalmente ganharia o nome e a marca ALL - América Latina Logística, difundida
através de uniformes, adesivos, pinturas de material rodante e documentos.
“Se Behring estiver, não espere encontrar um sujeito de terno e sapatos italianos, estressado e com cara de CEO. Para procurá-lo no meio do pessoal, também não adianta muito saber que ele deve estar de jeans e camisa com o logo da empresa, pois quase todo mundo está vestido assim.” (Maria Luisa Mendes, Exame – 05/08/2003)
“A comunicação é um ponto forte na empresa: há jornal interno, informações detalhadas na intranet, quadro de metas à vista, carta do presidente a cada início de mês e reuniões trimestrais com a diretoria” (Juliana de Mari, Exame Especial Melhores e Maiores – 01/09/2002)
As mudanças também ocorreram nos processos de trabalho de operação,
buscando aumentar a eficiência no uso dos recursos. Esse aumento ocorreu pelo
aumento da capacidade de controle, mas também pelo foco na homogeneização.
Equipamentos eletrônicos passaram a registrar e medir a produtividade,
identificando, por exemplo, maquinistas que paravam no meio do trecho sem
justificativa. Por outro lado, os maquinistas mais rápidos e que gastavam menos
159
combustíveis sem causar acidentes eram recompensados em termos salariais e em
reconhecimento na firma, com a ampla divulgação do seu nome nos meios de
comunicação internos.
Em especial, os mecanismos criados favoreceram o desenvolvimento de
profissionais versáteis, flexíveis que fossem capazes de se adaptar mais
rapidamente às condições de incerteza que existiam naquele momento.
“Eu vim para a Companhia para a área de projetos logísticos (...) Eu fiquei na área, então, de final de agosto de 99 até dezembro de 99, e aí no ano 2000 eu assumi a área de gente e qualidade. (...) na verdade eu fui para o marketing em julho de 2003, fiquei ate dezembro de 2003, e a gente mudou a estrutura da Companhia de novo e a gente decidiu juntar a inteligência de mercado com a área de projetos logísticos, então eu voltei para área de projetos logísticos levando a inteligência de mercado junto comigo. (...) você viu pela minha historia como é a questão do xadrez de gente aqui na Companhia, eu sou um exemplo e na realidade existem vários” (Entrevistado 17)
“Em abril do ano passado, o advogado Vinícius Lacerda Dall’Armellina, de 26 anos, nem sabia direito o que era logística quando, atraído pelas notícias de que a ALL era uma empresa que dá oportunidades a quem merece, pediu para trabalhar lá. Detalhe: não no departamento jurídico, mas na operação. Poucos meses depois, foi transferido para coordenar a logística de distribuição de arroz na unidade da ALL de Tatuí, no interior de São Paulo.” (EXAME, 2003)
Outra prática adotada no período que favorecia a homogeneização dos
recursos foi a de círculos de qualidade e competições entre unidades que
destacavam práticas de sucesso das unidades mais eficientes e as compartilhavam
com as outras em ciclos trimestrais.
Por outro lado, as concessões argentinas ainda não haviam apresentado
todos os benefícios esperados. Devido às estratégias adotadas quando do início da
nova operação, as duas empresas mantiveram estruturas independentes, impedindo
a realização de sinergias de maneira mais significativa. Os sistemas de informação,
por exemplo, possuíam estruturas separadas e eram implantadas com atraso de
mais de um ano na unidade argentina.
Os ativos, específicos para cada malha, dificultam a capacidade destas
absorverem as flutuações no fluxo entre elas. Ou seja, quando o fluxo de cargas da
malha brasileira para a malha argentina é maior, é necessário manter um giro de
ativos maior ou manter ativos em quantidade suficiente para suprir essas variações,
restringindo o capital que poderia ser investido em outros gargalos. Apesar da
operação ferroviária, contando com a malha argentina, passar por praticamente todo
o Mercosul, o fluxo inter-regional ainda é limitado e tem baixa participação nas
160
receitas da empresa. Os problemas não foram só tecnológicos: tiveram reflexos
culturais e financeiros. O compartilhamento de recursos, tanto operacionais quanto
administrativos, é reduzido. Os executivos brasileiros têm dificuldade de impor a sua
cultura e de se adaptar às características locais.
“Várias coisas complicam na Argentina. A empresa foi comprada dois anos depois. Você entra com uma cultura de outro país, sul-americano também, que há pouco tempo atrás eles consideravam menos desenvolvido, e você tentar impor uma metodologia que já deu certo no Brasil, é difícil. Eles tem a personalidade diferente da gente. Algumas coisas parecidas, outras muito diferentes. (...) O sindicato é muito forte. Os sindicatos não concorrem a bônus porque volta e meia estão entrando em greve, param toda hora, exigem maior salário. Se você comparar, o analista lá ganha um terço do que ganha o maquinista. É uma loucura, uma disparidade total. Isso impede muito você inserir mudanças na cultura deles. É difícil você mudar o contexto dos caras. Então tudo isso faz com que você não consiga implementar tudo que você gostaria. A empresa é menor, gasta-se muito mais com pessoal, você acaba não conseguindo botar dinheiro do teu orçamento para melhorar processo.” (Entrevistado 4)
5.2.3.4 Empreendedorismo
As evidências sugerem que esse período foi marcado pelo fortalecimento de
características empreendedoras, através do desenvolvimento de mecanismos que
favoreciam o crescimento profissional de funcionários mais ambiciosos e versáteis a
partir dos níveis intermediários e inferiores da organização. Além disso, os níveis
mais altos da organização introduziram critérios para avaliar riscos e investimentos
que potencializassem o uso das fontes de recursos financeiros conquistadas. Fortes
movimentos de expansão por aquisições surgem, mas a maior parcela do
crescimento continua vindo da ampliação das cargas ferroviárias, com diversificação
na carteira de produtos.
O processo pelo qual se aumentou a oferta de serviços empreendedores na
organização se iniciava nos padrões utilizados para os processos seletivos. O
recrutamento tratava de trazer os jovens motivados pelas condições desafiadoras
baseando-se, entre outras coisas, no uso da imagem e dos discursos dos principais
líderes em palestras em universidades. Com o tempo, passaram a levar ex-alunos
de cada local para dar seu testemunho sobre a ALL. Essas palestras41 procuravam
vender a cultura ALL e suas vantagens para inspirar e deslumbrar os futuros
candidatos, seguindo os passos ensinados pelo caso Ambev, assim como havia sido
41 Um exemplo dessa palestra pode ser visto com mais detalhe no Anexo VI – Trechos de uma apresentação de Recrutamento.
161
feito em diversas outras dimensões.
“Antes de serem treinados e aprimorados, futuros líderes precisam ser recrutados - e aí está um dos diferenciais mais consistentes da política de RH inaugurada na Brahma. (...) As palestras dos representantes das companhias são formais, muitas vezes chatas. (...) As de Marcel Telles, em nome da Brahma, da AmBev ou da InBev, são bem diferentes - e reverberam durante dias nos corredores da faculdade. Para começar, em vez de um diretor de RH, quem se apresenta é o presidente e um dos principais acionistas. Com o auditório abarrotado por estudantes sentados ou em pé, ocupando todos os espaços livres, o empresário chega sorridente, de calça e camisa jeans, senta-se sobre a mesa e dispara algo como: "E então, preparados para colocar o seu na reta? Porque é sobre isso que vim falar aqui. Procuramos pessoas dispostas a colocar na reta". Gargalhada geral. Marcel ganhou a plateia, que ouve atenta o desfiar de números que ele apresenta na seqüência, antes de explicar o sistema de remuneração variável. As fichas de cadastro são avidamente preenchidas e a empresa está garantida por mais um ano no topo da lista das companhias em que os estudantes gostariam de trabalhar.” (Alexandre Teixeira, Época Negócios – Abril de 2008)
No centro da discussão do desenvolvimento dos serviços empreendedores
esteve novamente, o “pacote GP”, com alta remuneração variável atrelada à
realização de metas individuais audaciosas desdobradas a partir do principal
executivo e os ditos efeitos sobre as pessoas e organização. Os executivos
incentivavam a busca de oportunidades e faziam questão de premiar aqueles que se
destacavam com atitudes empreendedoras. A Geodex, por exemplo, foi fruto do
projeto final desenvolvido por um grupo de trainees da turma de 1999. Esses
trainees foram promovidos para coordenar a criação e estruturação da empresa.
“Eu acho que assumir riscos assim, de uma maneira... que não tem muito medo do risco, porque se você começar a fazer avaliação, se você for fazer um projeto conservador, de avaliar os riscos que tem, tentar quantificar, você não entra. Você não entra por duas razões: primeiro porque os riscos que existem são tantos que você acaba se desencorajando e não vai fazer o negócio; e segundo que você demora tanto para fazer essa análise que quando viu outra pessoa já levou esse negócio e você acaba não pagando.” (Entrevistado 12)
“Se tinha uma oportunidade de negócio os caras botavam dinheiro e gente. Se aparecia uma oportunidade de negócio, diretor sentava e avaliava com a equipe. ‘Precisa mudar? Precisa. ’ O foco era capturar as oportunidades de negócio que estavam ali. Capturar o valor...” (Entrevistado 1)
Segundo relatos, o conjunto de práticas de remuneração e avaliação criava
um ambiente que propiciava a criatividade, trazendo à tona formas diferentes para
resolver os problemas que surgiam. Os funcionários precisavam encontrar essas
soluções porque somente através dessas inovações seriam capazes de alcançar
suas metas ao mesmo tempo em que recebiam um orçamento limitado.
“Orçamento é uma coisa assim, fora do comum. E isso que até ajuda a ter criatividade. A gente sempre diz o seguinte: o cara que vem aqui só para
162
trabalhar, se ferra. O cara tem que vir com uma posição assim: ‘se eu não fizer as coisas diferentes, eu não vou atingir as metas e ainda vou estourar o orçamento’.” (Entrevistado 14)
Ainda era necessário investir um alto volume de capital na reforma,
renovação e melhoria dos ativos, acima da capacidade da própria empresa de gerar
caixa. Nessa época o sistema financeiro, brasileiro e global, sentia os efeitos da
crise financeira asiática e russa, também influenciado com a mudança do regime
cambial e ampla desvalorização do real de 1999. Isso não parece ter sido suficiente
para limitar o fluxo de recursos para investimento, possivelmente porque os
acionistas eram em grande parte internacionais e porque a alta do dólar propiciava
uma melhoria na situação financeira dos seus clientes exportadores.
Várias alternativas foram utilizadas para atrasar desembolsos de caixa. A
empresa entrou em acordos com o governo brasileiro e argentino para realizar o
pagamento de impostos e direitos de concessão em prazos mais longos. As
condições com fornecedores foram revistas. Por exemplo, as locomotivas adquiridas
no exterior eram financiadas em contratos de leasing, em sua grande parte com as
próprias empresas vendedoras sendo as fornecedoras do leasing. Uma marca
também presente no período foi o objetivo de aumentar sua capacidade de se
financiar através das operações. A opção por adquirir equipamentos usados permitiu
que a companhia dispusesse de mais capital mais cedo. Na prática, nesse momento
era mais vantajoso ter maior eficiência financeira e menor eficiência operacional.
Das ferrovias privatizadas, a ALL foi a única que não tinha em seu bloco de
controle um cliente cativo (apesar deles existirem em sua carteira). A negociação,
justificativa e autonomia para investimentos perante clientes eram então diferentes
daquelas existentes nas outras concessionárias, o que restringia esse público como
possível financiador. A ALL foi conseguir usufruir dessa fonte de financiamento,
bastante comum nos Estados Unidos e Europa, já no final dessa fase. Contratos de
longo prazo ofereciam a garantia de oferta de serviços e estabilidade de tarifas,
empresas de leasing reduziam os desembolsos de caixa e o serviço de projetos
logísticos aumentava a eficiência dos ativos adquiridos pelos clientes.
Enquanto outras ferrovias tiveram dificuldades nestas negociações entre os
sócios, a ALL pareceu não ter os mesmos problemas. Os executivos conseguiram
que os sócios aportassem mais capital além do investimento inicial (através de
aumentos do capital social, empréstimos de empresas coligadas e entrega de ativos)
163
e as conseqüentes alterações de parcela de controle da empresa. A malha argentina
foi uma exceção, pois houve a necessidade de capitalização da empresa que foi
impedida pelo governo argentino, detentor de 16% das malhas. O GP conseguiu
manter uma posição de controle como um todo, apesar de não deter sozinho
percentual suficiente para tal. Isso ocorreu porque ele era representante de outros
acionistas e atribui essa credibilidade às suas operações de turnaround anteriores.
“No começo eram 5 acionistas, cada um com 20%. O GP acabou liderando devido ao seu histórico de sucesso, ao seu modelo de gestão.” (Entrevistado 24)
A empresa fortaleceu o uso do mercado de capitais para se financiar. Ao
invés de pagar as taxas de mercado dos bancos comerciais, a ALL passou a emitir
debêntures, eliminando o spread dos bancos e identificando por si só investidores
com interesse nos projetos de longo prazo. Seqüencialmente a ALL foi substituindo
os empréstimos de curto prazo dos bancos comerciais por debêntures com três,
cinco e, finalmente, sete anos de prazo para pagamento. Essas emissões ocorriam
em paralelo com a melhoria da situação operacional, que reduziam cada vez mais a
necessidade de capital de terceiros.
Todas essas soluções eram utilizadas de maneira consciente. Vários dos
principais executivos da empresa tinham histórico profissional em bancos: Alexandre
Behring, além de ser sócio da GP Investimentos, trabalhou no Goldman Sachs e no
Citibank; Sérgio Pedreiro, também sócio do GP, também trabalhara no Goldman
Sachs; Alceu Calciolari no Banco Real. No conselho de administração, havia
também representantes de bancos que eram sócios. Esse grupo trazia
relacionamentos profissionais anteriores que facilitavam o acesso aos mercados,
mas também experiência em como atuar nesse tipo de atividade.
No começo desse período são iniciados alguns projetos para aumentar a
diversificação da empresa e que se tornariam mais relevantes já no final da fase. A
área de projetos evolui para ser capaz de desenvolver estudos de organização de
novos fluxos e projetar novos vagões além dos projetos já existentes de extensão de
ramais. Essas atividades aumentavam a eficiência e a capacidade dos ativos
existentes, trazendo mais receitas sem investir em mais material rodante.
Nos primeiros anos após a privatização, as commodities, agrícolas e
líquidas, representavam mais de 90% do perfil de carga transportada, sendo 50%
relacionados com soja e derivados. Além do aumento do uso de cargas em
164
contêineres, o desenvolvimento de projetos de novos vagões permitiu expandir as
possibilidades de produtos transportados, com destaque para os produtos
industrializados como bobinas de papel (altamente sensíveis), líquidos e gases
industriais (propriedades físico-químicas bem mais complexas do que as dos óleos
vegetais) e frangos congelados (dependentes de estrutura de acondicionamento
resfriado), aumentando a participação das cargas industrializadas.
“O setor de industrializados respondeu em 2004 - os números de 2005 ainda não estão disponíveis - por 47% dos negócios da empresa, contra 53% das cargas agrícolas. ‘Há cinco anos, esse mercado não representava mais do que 10%’, lembra Basílio.” (Gazeta Mercantil, 22/02/2006)
As expansões não diversificaram somente em relação ao tipo de carga, mas
também forneceram novos mercados, principalmente para transporte dos mesmos
produtos existentes no perfil inicial da Malha Sul, que no início atingiam somente os
estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O contrato operacional
com a Ferroban forneceu acesso ao Porto de Santos e ao Estado de São Paulo,
contornando os transtornos existentes no tráfego mútuo e direito de passagem.
Já na Delara, o objetivo da aquisição não era somente apoiar a ponta
rodoviária do transporte ferroviário. Outra expectativa era prover a empresa da
capacidade de transporte rodoviário de cargas, que em muitos casos é mais
vantajoso do que o transporte ferroviário. Operações de transporte a curtas
distâncias e operações de “última milha” (distribuição urbana) só são possíveis por
transporte rodoviário, principalmente devido à flexibilidade e capilaridade necessária,
impossível de se realizar com ferrovias.
A participação na Ferropar também foi um movimento de expansão confuso
na história da empresa. A ferrovia, que depende da malha da ALL para transportar
sua produção até os portos, teve um quarto de suas ações adquiridas pela ALL
alguns meses após a sua privatização. Posteriormente, a concessão, envolvida em
problemas fiscais e tributários, foi devolvida ao estado, que repassou a
administração para o Governo do Paraná.
Houve investimento na criação de uma unidade rodoviária, para administrar
a contratação do serviço de terceiros no transporte das pontas e posteriormente na
compra da Delara, o que permitiu que a ALL compensasse algumas das vantagens
que transportadores rodoviários independentes tinham nos fluxos do seu interesse.
Foi criada a Geodex para desenvolver um negócio na área de tecnologia e
investiu-se no Mercado Eletrônico, mais um negócio “pontocom” do GP. As
165
tecnologias desenvolvidas nacionalmente para apoiar a operação da ALL foram
“empacotadas” e incorporaram o conjunto de produtos e serviços vendidos pela ALL
Tecnologia.
Houve a incorporação de parte da Ferroban, privatizada tardiamente e houve
também a aquisição de 25% de participação na Ferropar, além da já citada malha
argentina. Ainda em atividades próximas à indústria ferroviária, depois de várias
tentativas de iniciar uma operação de produção de vagões, foi formada a Santa Fé
Vagões em parceria com uma empresa indiana. Foram feitos investimentos em
novos terminais portuários e intermodais com operações próprias de armazenagem,
carga e descarga, além de responsabilidades comerciais de atração de fluxos.
5.2.3.5 Navegação no Ambiente
As evidências sugerem que a organização encontrava-se pressionada a
adaptar-se rapidamente ao ambiente competitivo que recebia das mãos públicas. A
navegação no ambiente focou principalmente na capacidade da organização em
buscar práticas, processos e mecanismos de outras organizações e no
fortalecimento e qualificação da relação com clientes como forma de reduzir a
incerteza. Além disso, realizou aquisições como forma de evitar ou compensar
pressões competitivas.
Johnson (2007) sugere que dentro de certos limites, o processo de fundação
de uma organização engloba a ativação e recombinação de elementos a partir de
repertórios organizacionais. A autora se baseou em Stinchcombe (1965), o qual
sugeriu que as organizações diferem umas das outras não porque elas se adaptam
as condições ambientais, mas porque as organizações são criadas a partir de
recursos específicos disponíveis no contexto de fundação (Johnson, 2007).
O Grupo GP adota conscientemente um posicionamento no qual busca
copiar modelos existentes já testados e consagrados, como pode ser percebido na
descrição de outros casos42. Uma vez que seu objetivo como banco de investimento
é transformar o negócio o mais rápido possível e vendê-lo mais eficiente do que
quando comprou, boa parte do valor adquirido nessa venda pode ser construído a
partir da identificação desses gaps de técnicas e tecnologias.
42 Para mais detalhes ver Anexo IX – Histórico do Grupo GP Investimentos, que descreve essa intenção deliberada.
166
“Uma das características mais marcantes da ‘cultura Garantia’ é sua sem-cerimônia em copiar bons exemplos. ‘A grande vantagem do Brasil é que você pode copiar o que está sendo desenvolvido em outro lugar e fazer aqui. Pode copiar tudo, não precisa ficar reinventando a roda’, disse uma vez Beto Sicupira. ‘O que nós fizemos a vida toda? Só copiamos. Não inventamos nada, nada. Ainda bem. Inventar coisas é um perigo danado’. Não por acaso, implementar (e não criar ou inovar) é a palavra preferida no circuito Garantia. ‘Vale muito mais uma lógica boa, uma execução boa, do que qualquer inovação brilhante’, disse Lemann, anos atrás. ‘Você tem de se preocupar com a inovação. Mas se tem alguém fazendo bem, melhor não gastar muito tempo procurando como fazer. Vai lá, olha e adapta da sua maneira.’” (Alexandre Teixeira, Época Negócios – Abril de 2008)
Segundo o site da empresa, o objetivo é “a busca de ganhos de capital
elevados através da aquisição de participações de controle, ou de investimentos
acionários com significativa influência na administração, em companhias que
mostrem um grande potencial de crescimento de seu valor de mercado.”
No caso da ALL não foi diferente. As escolhas feitas no início para a
formação do bloco de acionistas começaram a ser utilizadas, quando foram
exportadas práticas existentes na Railtex. A contratação de executivos da Vale e de
consultores inseria na empresa as práticas que estas pessoas conheciam do
mercado brasileiro. Behring, em seu processo de preparação para assumir a
presidência da empresa, trocou experiências com os executivos do GP
encarregados de administrar outras empresas pertencentes ao grupo como a Ambev
e a Lojas Americanas. O comportamento também foi identificado na área
operacional, buscando emular tecnologias desenvolvidas por outras empresas.
“Então eles tinham uma área de tecnologia que estudava os movimentos do mercado, mas acabava desenvolvimento com uma equipe de Curitiba, uma empresa de Curitiba, soluções tecnológicas equivalentes e muito mais baratas. Então eles fizeram 4 ou 5 maquininhas dessas enquanto eu estive lá., desenvolvidas por eles para fazer gestão. Sensor de trilho, sensor disso, daquilo. Para aplicarem naquelas máquinas antigas fazer uma gestão adequada.” (Entrevistado 1)
O monitoramento do ambiente também foi utilizado para atuar sobre as
pressões competitivas. Permitiu estabelecer condições de negociação mais
interessantes para a ALL durante a expansão das operações com os clientes em
carteira e os novos clientes. Por exemplo, sabendo o preço de frete exato praticado
pelo transporte rodoviário, a área comercial conseguia mais facilmente precificar os
serviços de maneira que mantivesse as margens mais altas e conquistasse a carga.
A atenção aos clientes não era somente no intuito de preservar para a
empresa o valor gerado pela vantagem competitiva do transporte ferroviário frente
ao rodoviário, praticamente a única fonte de competição na época. Visava também
167
agregar maior valor ao serviço, ampliando o escopo das soluções de transporte
oferecidas a eles, incluindo a administração da ponta rodoviária, armazenagem de
carga e desenvolvimento de projetos técnicos de vagões e logísticos.
“Nossa estratégia para aumentarmos nos próximos anos nosso market share envolve o oferecimento de um serviço de transporte “porta-a-porta” completo para nossos clientes. Isto envolve (a) ampliação, mediante aquisições e alianças, do escopo de nossos serviços para possibilitar o oferecimento de uma solução completa para a logística de nossos clientes, incluindo transbordos e pontas rodoviárias e não se limitando ao transporte ferroviário; e (b) estabelecimento de contratos comerciais com nossos clientes atuais e potenciais visando a otimização do transporte e investimentos conjuntos com estes clientes para recuperação de trechos, construção de terminais e desvios e aquisição de vagões e locomotivas.” (Relatório de Informações Anuais à CVM da ALL, 1998)
Os contratos de longo prazo e a expansão para novas cargas foram
importantes para reduzir a incerteza nas condições de comercialização, que nos
tempos de estatal, impactavam na capacidade de negociação do preço dos fretes.
Eles garantiam o uso dos ativos.
“Aí já começaram os primeiros acordos, e a ferrovia, já começou a perceber que não era legal explorar o cliente na safra e depois aceitar qualquer coisa a qualquer preço. Era melhor fazer um preço médio o ano todo com o cliente que daí todos saiam ganhando. E na hora que fez esse acordo com o cliente começou a fazer acordo de longo prazo com os clientes.” (Entrevistado 14)
Contudo, nessa época as pressões institucionais ampliaram, principalmente
do ponto de vista regulatório. Preocupações e pressões por conformidade com
normas ambientais já surgem nesse período, mas ganhariam força na fase seguinte.
“De acordo com a superintendência, a ALL cometeu as seguintes infrações: retirar trilhos do trecho Presidente Prudente - Álvares Machado, e posteriormente promover recolocação de outros trilhos de qualidade inferior; (...) abandonar o referido trecho, deixando de manter pessoal técnico e administrativo, próprio ou de terceiros, em número suficiente para prestação de serviço adequado. A ANTT já havia multado a ALL em R$ 606 mil, no dia de 24 de abril, por desativação de trechos da malha sem autorização do poder concedente, manutenção inadequada de pátios e trechos da via e não-adoção de medidas para preservação do patrimônio.” (Clipping da Revista Ferroviária, 20/05/2003)
5.2.3.6 Gestão da Folga Organizacional
Com relação à folga organizacional, as evidências indicam que as
exigências e orientações dadas na fase anterior foram incorporadas ao dia a dia da
empresa. Os principais executivos priorizaram investir a folga trazida pelos novos
acionistas em atividades que gerassem mais folgas organizacionais. Apesar disso
também surgem algumas estruturas para gerar benefícios de longo prazo.
A preocupação dos executivos com a transformação em um negócio rentável
168
ainda trazia reflexos para a administração das despesas. Enquanto a primeira fase
tratou de cortar grande parte dos excessos vindos da administração federal, nessa
fase o foco foi no ajuste fino desses desperdícios. O principal objetivo dos
investimentos era permitir a geração própria de caixa da empresa. No início os
investimentos em tecnologia objetivavam a substituição de pessoal. Com o tempo o
contingente estabilizou, mas volume e receita continuaram a subir. A produtividade
por funcionário e da malha cresceu sobremaneira com o aumento do volume
vendido e capacidade dos ativos.
Figura 5-14: Produção por empregado por unidade de negócio.
Fontes: Relatórios Anuais da ALL – 2001 a 2007; Relatório de Informações Anuais da ALL AS, ALL Brasil e Brasil Ferrovias para a Comissão de Valores Mobiliários – 1997 a 2000; Relatório Anual de Acompanhamento das Concessões Ferroviárias da ANTT – 2002 a 2006.
O aumento de volume sem expansão de malha se justificava pelo já
esperado aumento de produtividade, decorrente das competências gerenciais que
viriam com a iniciativa privada. O material rodante era subutilizado, mas a principal
fonte de ganho de produtividade foi a malha, que teve seu tamanho real reduzido
devido às desativações de trechos e que, mesmo assim passou a comportar um
volume duas vezes maior em 5 anos.
A melhoria das capacitações de coordenação do período permitia um melhor
2,203,58 4,20
5,135,94 5,89 6,52 6,06 6,50
7,15
2,10
2,211,84 2,23
2,682,70
2,762,830,34
0,30 0,550,40
0,44
3,79
0,00
2,00
4,00
6,00
8,00
10,00
12,00
14,00
16,00
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Malha Sul ALL Argentina ALL Intermodal Malha Norte
169
uso dos ativos, aumentando a capacidade de carga reduzindo a necessidade de
investimento. A nova gestão buscava aproveitar as oportunidades de ganhos de
escala naturais do negócio ferroviário.
“Então não é grana, se quiser botar, pode botar, nós vamos crescer, quer crescer quanto ano que vem? 30? Pode botar 30% de KGF,vamos crescer, é linear, só que não é isso que a ALL quer. É produtividade. Entende? Aí é claro tem lugar que não é linear... você tem vários corredores de produtividade. Não são iguais. Você vai crescer mais aqui, você vai ter de botar mais KGF ali.” (Entrevistado 16)
Em outra linha de trabalho, a expansão da capacidade de carga era
ampliada com investimentos em manutenção e renovação de ativos, mas em geral
estavam associadas à venda de novas cargas.
“Porque se você bota muito ativo numa malha ferroviária, você trava ela. Porque os pátios têm certo tamanho. Já pensou você chega com quatro trens naquele pátio. Se você tiver linha suficiente você chega e distribui, se você não tiver ele fica fora e fica travando toda a malha. Então também tinha investimento da nossa parte de aumentar pátio, aumentar comprimento de pátio, para ter maior produtividade de comprimento de trem. Então todos esses estudos foram feitos, mas sempre raciocinando da seguinte forma: eu só vou fazer se tiver indicadores que me mostram que vou ter esse ganho. E depois eu vou mensurar para ver se foi aquilo.” (Entrevistado 14)
Após os primeiros investimentos na reforma de ativos, as oportunidades de
investimentos em soluções de longo prazo passaram a ser vistas com outros olhos.
Soluções de curto e longo prazo passaram a coexistir, principalmente depois que as
áreas de projetos logísticos e projeto de vagões foram criadas.
“Depois quando começou essa parte, aí veio uma outra pessoa, que também já era da Rede, ficou no meu lugar na manutenção, e eu comecei a trabalhar com essas adaptações de vagões. Eu fiquei mais livre assim. “Ah, está tendo muito problema de rasgo de saco de cimento lá da Votoran”. Aí eu ia lá na Votoran, olhava como era o sistema deles, tentava melhorar, até que foi dando as ideias de criar os vagões.” (Entrevistado 14)
5.2.4 Fase 4 – Pós-venda (2004 – 2008)
A Fase de Pós-venda representa o período onde a ALL buscaria alternativas
para o seu crescimento além dos benefícios já esperados pela mudança de controle
público para privado. Todos os recursos recebidos da concessão chegariam ao
limite de eficiência de uso e se iniciaria um processo de aquisição de novos ativos e
diversificação mais forte das atividades, tanto na ampliação da oferta de serviços
para novos produtos como na integração da cadeia. Esse período oferece desafios
de navegação no ambiente até então ocultos, como também traz à tona efeitos
negativos dos costumes adquiridos nos primeiros anos, principalmente para o
170
aprovisionamento de recursos humanos.
Figura 5-15: Análise da Fase de Crescimento (2004 a 2008) da ALL.
5.2.4.1 Empreendedorismo
Esse foi o desafio que chama mais atenção no período. As evidências
sugerem que o uso extensivo e diversificado de expansões da fase anterior foi
motivado por principalmente por movimentos defensivos ou nulos, e apenas parte
deles realmente fortaleceram a posição competitiva da empresa. Os efeitos dos
valores infundidos na fase anterior são percebidos através da presença dos serviços
empreendedores. A empresa demonstrou ampla capacidade para financiar a
expansão e para identificar e aproveitar oportunidades de negócio.
Figura 5-16: Principais movimentos de expansão.
Os mecanismos foram utilizados de maneira ampla e constante ao longo do
tempo, como se pode ver na figura abaixo. Este é apresentado com os principais
movimentos de expansão, classificados quanto aos diferentes tipos de processos
sugeridos por Chandler.
2004-2008
Empreendedorismo
Crescimento e
Renovação
Navegação no
Ambiente
Gestão da
Complexidade Gestão da Folga Longevidade Saudável
Gestão da
Diversidade
Gestão da Integridade
Aprovisionamento de
Recursos Humanos
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Privatização
Fepasa
Argentina
Multi-modalidade
Geodex
Delara
Projetos Logísticos
Portos
Projeto de vagões
Internalização de transações (integração vertical) Santa Fé
Expansão dentro dos mercados e produtos correntes ALL Tecnologia
Expansão para novos mercados e produtos (diversificação relacionada) Brasil Ferrovias
171
Os investimentos foram feitos de diversas maneiras, incluindo parcerias,
aquisições, fusões e crescimento orgânico. Além disso, alguns movimentos de
expansão criavam um círculo vicioso de crescimento. Alguns exemplos: (1) a venda
de um novo fluxo de carga de escoamento cria a oportunidade da venda de um fluxo
de retorno; (2) o desenvolvimento de uma tecnologia de vagão ou projeto logístico
específico para determinado tipo de carga pode ser replicado para outros fluxos da
mesma indústria; (3) ao expandir a atuação para novas regiões ela absorvia não só
os fluxos de transporte da região, mas também os fluxos entre regiões, aumentando
a utilização de ambos os ativos.
“Faz parte de sua estratégia avaliar continuamente alternativas que permitam expandir a cobertura de sua malha ferroviária, aumentar eficiências, reduzir o capital empregado no negócio, monetizar os terrenos em sua área de concessão, criar sinergias operacionais ou aumentar o mercado potencial, por meio da expansão da presença geográfica ou de ofertas de serviços.” (Relatório Anual ALL, 2004)
Apesar de alguns movimentos da fase anterior sugerirem boa adequação ao
equilibrar criação de valor com proteção de negócios, a fase Pós-Venda demonstrou
que raramente a criação de valor se concretizou. A aquisição da Delara, por
exemplo, foi um movimento que, ao mesmo tempo em que aumentou o conjunto de
serviços e a carteira de clientes, protegeu a empresa da atuação de operadores
logísticos internacionais. Contudo, esse negócio, assim como outros, apresentaram
uma trajetória de retração, diferente da presenciada na da malha sul, como a Figura
5-17 demonstra.
Quando decidiu investir na produção de vagões o mercado e a indústria
nacional ferroviária demonstravam franco crescimento: o aumento da atividade
econômica tinha como conseqüência um aumento na demanda por transporte de
cargas; havia linhas de financiamento governamentais específicas para aquisição de
vagões; e players internacionais anunciavam o interesse em instalar operações no
Brasil. Havia vários aspectos que aumentavam a eficiência econômica da ALL, mas
o principal fator parece ter sido a proteção de suas margens. Esse investimento
garantia à ALL o fornecimento dos ativos necessários ao seu crescimento, evitando
assim que os poucos fornecedores existentes pressionassem suas margens.
“Podemos fazer isso sem contar necessariamente com nenhum parceiro. Fizemos um teste e comprovamos. Os componentes nós compramos no mercado interno e formatamos as caixas na nossa oficina. A única dificuldade são as partes fundidas para os truques. Estamos negociando com possíveis fornecedores na Índia e na China”, revela Paulo Basílio,
172
gerente Financeiro e de Novos Negócios da ALL. (...) Basílio afirma que a ALL não pretende ser uma fabrica de vagões. “Começamos isso apenas porque percebemos que nosso crescimento estava esbarrando nas limitações da indústria nacional em produzir vagões e nos altos preços cobrados por quem era capaz de atender a esta demanda ”, explica. Ele acredita que a iniciativa deverá forçar uma redução nos preços de vagões no mercado nacional.” (Revista Ferroviária, 18/12/2003)
Figura 5-17: Evolução da Receita/PIB por Unidade de Negócio.
Já no investimento em terminais portuários, a empresa expandiu a oferta de
seus serviços incluindo a carga e descarga de portos, mas também reduziu o risco
associado à incerteza no fluxo de cargas. A saída dois anos depois da sociedade
com a Agrenco, após fechar um acordo que garantiria volume e investimentos,
demonstraria a real importância dada ao negócio portuário.
“A América Latina Logística (ALL), que opera a rede ferroviária da malha sul, já traçou o próximo passo no Brasil: vai entrar na operação portuária. Com o novo braço de negócios, a empresa, que em julho do ano passado entrou no ramo rodoviário com a compra da transportadora Delara, passa a integrar toda a cadeia de logística, da captação do produto e armazenagem até o embarque nos navios. 'O interesse nesse mercado veio da constatação de que uma ponta do negócio não ficava conosco. A descarga de vagões no porto era um grande gargalo. Até agora não enxergávamos além do terminal, que muitas vezes não comportava o volume de carga que chegava', diz Augusto Pires, diretor de logística da ALL-Delara.” (Gazeta Mercantil, 5 de março de 2002)
0,017%0,021% 0,023% 0,024%
0,030% 0,031%0,036% 0,034% 0,037%
0,042%0,037%
0,012% 0,009%
0,007% 0,008%
0,008%0,007%
0,007%
0,006%
0,005%0,008%
0,011%0,009%
0,007%0,006%
0,006%
0,005%
0,010%0,028%
0,005%
0,012%
0,000%
0,010%
0,020%
0,030%
0,040%
0,050%
0,060%
0,070%
0,080%
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Re
ceit
a L
íqu
ida
/ P
IB
Ano
Malha Sul Argentina ALL Intermodal Malha Norte Parcela anterior à aquisição
173
A Geodex é outro exemplo de investimento onde o objetivo não era a criação
de valor ou a expansão do negócio, mas a maximização do uso dos ativos recebidos
da Rede. Seu objetivo era aproveitar o direito de faixa de domínio43, copiando as
primeiras ferrovias americanas com o telégrafo. Contudo, teria o mesmo destino do
investimento em terminais portuários: seria vendida alguns anos depois.
Ambos os negócios, tanto o portuário quanto o de telecomunicações,
posteriormente se tornaram negócios independentes, conduzidos por ex-
funcionários da ALL. Soma-se a esse conjunto a Standard Logística, outra empresa
administrada por um ex-executivo ALL, anteriormente responsável na ALL
justamente pela atividade que a nova empresa oferecia à ALL. Com a construção de
novos terminais intermodais ao longo da malha, a empresa dividia o investimento
com outras operadoras logísticas seguindo basicamente o mesmo modelo: a ALL
disponibilizava o terreno, os parceiros entram com a administração da operação e os
investimentos compartilhados.
“Segundo ele, a ALL tem como foco desenvolver parcerias com seus clientes. No caso deste terminal, a ALL entrou com o terreno e a empresa parceira fez toda a infra-estrutura, em 2002. O grupo Agrenco, por meio da Sogo, já era proprietário do restante do capital do terminal.” (Gazeta do Povo - PR, 22/12/2004)
“A América Latina Logística (ALL) espera quintuplicar a movimentação de contêineres na sua rede ferroviária em 2005, com o início das operações, em maio, em Cambé, no norte do Paraná, do seu terceiro terminal de interior especializado em cargas conteinerizadas - os outros dois estão localizados em Cascavel (PR) e em Esteio (RS). (...) A ALL adianta que tem planos de construir mais dois terminais de interior em locais ainda não definidos entre 2006 e 2007. A ALL projeta investimentos totais de R$ 9,5 milhões no projeto de Cambé. Somente no terminal serão investidos R$ 5 milhões, divididos com a Standard Logística, que vai ficar responsável pela operação do terminal de interior. Outros R$ 4,5 milhões serão utilizados para a adaptação de vagões. Há cerca de um mês a ALL colocou em operação outro terminal especializado em Esteio (RS), também fruto de uma parceria com a Standard.” (Gazeta Mercantil, 22/02/2006)
As evidências apresentam outros exemplos no período do excesso de foco
no retorno sobre investimento. Dos projetos que tiveram continuidade: a compra de
florestas de eucaliptos para reduzir o custo dos dormentes; o investimento em uma
fábrica de fertilizantes para aumentar o uso dos vagões, negócios totalmente
diferentes do transporte de cargas. Dos que não tiveram continuidade no portfólio de
negócios apresentados atualmente pela empresa: tentativa de aquisição da malha
43 Trata-se do direito de uso do terreno próximo à linha concedido pelo Estado.
174
da Ferrocarril Belgrano na Argentina; terceirização de força motriz de locomotivas
para reduzir os custos de manutenção; administração de imóveis para utilizar os
ativos arrendados do governo; e o investimento em portais.
“A ALL (América Latina Logística) acaba de adquirir três florestas de eucalipto para abastecimento próprio de dormentes. O objetivo da ação é reduzir custos e garantir o produto, já que a escassez e os altos preços têm inflacionado as cotações do dormente no mercado. (...) A previsão é que a produção própria de dormentes gere uma economia de R$ 12 milhões em três anos. (...)” (REFLORE-MS, 03 de Julho de 2007)
“A América Latina Logística (ALL) anunciou que deverá investir R$ 15 milhões na construção de uma fábrica de fertilizantes em Paranaguá (PR). A administração da unidade ficará a cargo da Yara Brasil Fertilizantes, braço brasileiro da multinacional Yara, maior empresa de fertilizantes do mundo. (...) A intenção da ALL é melhorar o aproveitamento de seus vagões.” (Valor Econômico, 20/06/2006)
“Chegaram a criar uma empresa para fazer a gestão dos imóveis que eles adquiriram com a concessão. Porque eles tinham vários imóveis, às vezes em lugares de alto valor, centro de cidade e tudo mais. Eles tinham lá durante um tempo, a cidade cresceu, adquiriu um valor muito maior. Eles não tinham funcionalidade para a logística, mas tinha um valor comercial para o aluguel. Então montaram uma empresa para agregar valor sobre isso.” (Entrevistado 1)
A empresa demorou mais de cinco anos até conseguir tornar a Delara
lucrativa (Entrevistado # 13, 2008). Ano após ano ela divulgou em seus relatórios
que o desempenho negativo em termos de fluxo de caixa estava sendo sanado pela
substituição das operações não-rentáveis por novos contratos onde a empresa
mantinha vantagem frente a outros operadores devido às competências em logística.
Como conseqüência, a unidade teve a sua receita reduzida recorrentemente.
“O EBITDA dos serviços rodoviários cresceu 51,3% no 1T08, passando para R$4,8 milhões, enquanto a margem EBITDA aumentou para 14,3%. Essa melhora na rentabilidade reflete o processo de descontinuação de operações não-rentáveis e o estabelecimento de uma margem de retorno mínima para as novas operações iniciadas a partir de 2005.” (Relatório de Informações Anuais da ALL para a CVM, 2007)
As evidências sugerem que tais diversificações, mantiveram um grau
razoável de relacionamento com o negócio principal, mas que não constituíam de
fato uma nova linha de negócio que integrasse o conjunto logístico: eram atividades
que, quando relacionadas com o negócio principal, buscavam somente dar alguma
utilidade aos ativos ou reduzir custos.
Estiveram também fortemente influenciadas pela visão de que cada novo
negócio tivesse capacidade de gerar valor financeiro por si só. A ALL praticou nessa
época o que havia aprendido com o GP: investir em negócios potencialmente
175
lucrativos, alocar os executivos envolvidos na formulação da ideia para administrar o
novo negócio e posteriormente vendê-lo gerando lucro sobre o capital empregado.
“Se fosse colocar uma coisa assim, uma característica de destaque desse período era como aqueles caras estavam abertos e atentos a oportunidades de negócios associadas ao negócio principal.” (Entrevistado 1)
A proposta inicial da ALL Tecnologia era criar uma área de desenvolvimento
de sistemas de computação e eletrônicos para suprir sua necessidade, tendo um
custo bem menor e uma solução mais apta à realidade da empresa. A empresa
buscou parcerias locais para desenvolver tais tecnologias, como a Daiken, Autotrack
e a Engesis. A ALL Tecnologia foi criada para vender no mercado nacional e
internacional tais sistemas. Seguindo a lógica de outras empresas criadas pelo
grupo, os serviços desenvolvidos por essas áreas passaram a ser contratados pela
ALL Brasil. Em seguida, a nova empresa podia ofertar seus serviços para outras
empresas. A ideia era trazer receita para uma atividade que era vista como despesa.
Contudo, não foram encontradas evidências de preocupações com os
reflexos na competição com o mercado nacional. Ou seja, se o sistema tinha tantas
características positivas, como custo reduzido e maior aderência às condições locais
do que as soluções existentes no mercado, vender o Translogic para outros
operadores nacionais seria vender uma vantagem competitiva que tais competidores
não conseguiram desenvolver. Mesmo considerando que as privatizações
separaram as concessionárias em monopólios naturais, há regiões onde mais de
uma empresa pode servir ao mercado, principalmente na nova fronteira agrícola e
na região mais industrializada do país. Ainda mais considerando o transporte
intermodal, com os caminhões expandindo o alcance das ferrovias.
Outras atividades fazem parte do dia-a-dia operacional de alguns gestores,
mas que demonstram certo distanciamento da atividade central. As sucatas geradas
pela depreciação dos ativos e os produtos perdidos em acidentes ou não entregues
dentro dos contratos de take-or-pay também foram fontes de receitas alternativas.
A compra da Brasil Ferrovias também representou retrocesso no processo
de diversificação relacionada de cargas. Apesar do aumento da malha ter sido de
em torno de 25%, a produção foi ampliada em quase 100% e as receitas em 75%.
Isso porque as cargas transportadas pela malha da BF percorrem distâncias bem
maiores em um traçado muito mais moderno do que no sul. Contudo, as
commodities agrícolas e líquidas voltaram a preencher uma parcela bastante
176
significativa do volume e das receitas. Por outro lado, a aquisição deu acesso aos
estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo, permitindo a fácil
aplicação de seu conhecimento e tecnologias nessas novas regiões. Tais serviços já
existiam desde 2005, quando foi criada a ALL Centro-Oeste para fazer a ponta
rodoviária nessa região e trazer a carga para a sua malha, como resposta a uma
forte quebra de safra no Sul.
A aquisição da BF possivelmente está associada às dificuldades de se
manter as taxas de crescimento dos primeiros anos através de crescimento
orgânico. A construção de novas linhas é considerada de baixo retorno para a
iniciativa privada, principalmente devido às condições de mercado para
financiamento e às condições regulatórias. Por tal motivo, as concessionárias de
transporte de carga ferroviário dependem de investimentos governamentais em
obras de infra-estrutura de grande porte para expandir as suas malhas. Somente
dois anos depois da aquisição da Ferronorte e depois de muita negociação, foi
possível investir na construção dessas novas linhas. Empresários e políticos locais
pressionavam a ALL para que expandisse a ferrovia para o interior do estado, mas a
concessionária tinha restrições operacionais e de capital.
“O diretor da ALL, Paulo Basílio, afirmou ontem, na Federação das Indústrias no Estado de Mato Grosso (Fiemt), que antes de se iniciar as obras de expansão da Ferrovia Senador Vicente Vuolo é preciso criar condições para a ferrovia rodar com eficiência e produtividade. ‘Atualmente o maior gargalo é interno: falta de produtividade’. Segundo ele, a prioridade zero da operadora em 2006 e 2007 está voltada para organização e revitalização da malha ferroviária -- composta pela Ferronorte, Ferroban e Novoeste. Para isso, somente neste ano, para reestruturação, serão aplicados R$ 100 milhões. ‘Atualmente, não consigo escoar nem 40% da demanda em Alto Araguaia. Por mais que existam outras milhões de toneladas, que asseguram a viabilidade de novos investimentos, não posso transportá-las nas atuais condições’.” (Diário de Cuiabá – MT, 09/11/2006)
A diversificação de cargas da terceira fase gerou oportunidades para crescer
replicando as tecnologias desenvolvidas. Enquanto os projetos de vagões
ampliavam o escopo de atuação das cargas transportadas, os projetos logísticos
permitiam a reutilização dessas tecnologias para clientes com os mesmos produtos
dentro da malha da ALL. Por exemplo, o vagão frigorificado para a Sadia foi
redesenhado para atender a Avipal, Frango Sul e para a Seara. O transporte de
bobinas de aço da CSN pode ser replicado para outras usinas da CSN. O projeto de
transporte de cimentos pode ser utilizado para a Votorantim e para a Tupi.
Outra opção utilizada para ampliar o mercado de atuação nessa fase foi a
177
criação de pátios intermodais ao longo da malha. Quando um cliente não possui um
ramal próprio para carregamento, ele depende do transporte da carga até um pátio
de carga da ferrovia. Porém, a distância de alguns clientes para esses terminais
pode tornar a somatória da ponta rodoviária com o frete ferroviário mais cara do que
o transporte rodoviário direto para o destino. Assim, ao criar pátios de carregamento
a ALL aumentou sua capilaridade, atraindo clientes com a redução de custos.
Esse período também é marcado pela ampliação do investimento na
aquisição de locomotivas e produção de vagões. Enquanto os primeiro e segundo
períodos pós-aquisição ficaram marcados pela restrição na quantidade de material
rodante disponível dada a capacidade de tráfego da malha, respondida
principalmente com a reforma da frota morta, essa fase é marcada pelo aumento da
capacidade da malha e do tamanho da frota. Com os investimentos em tecnologia
feitos, a malha passou a ter uma capacidade maior de tráfego, permitindo que mais
trens circulassem nela: novos trilhos permitiam trens mais pesados; tecnologias e
equipamentos melhores reduziam os acidentes, que não interrompiam mais o
tráfego; o controle mais rígido de acidentes também permitiu que a velocidade das
composições fosse aumentada.
“Até 2003, nossa expansão foi pautada principalmente por ganhos de produtividade, suportados por aplicação de metodologia de qualidade e investimentos em tecnologia, com adições apenas marginais de material rodante (locomotivas e vagões). A partir de 2004, para manter o ritmo de crescimento, passamos a comprar locomotivas adicionais a cada ano e, em 2005, começamos a adicionar vagões novos a nossa frota, todos disponibilizados por nossos clientes.” (Relatório Anual ALL, 2005)
O período também demonstra que o serviço empreendedor de levantamento
de financiamento esteve presente, elemento necessário para que os movimentos de
expansão tivessem ocorrido. As fontes de financiamento foram ampliando em
volume e diversidade com os anos. No início a principal fonte de financiamento era o
capital de terceiros através de empréstimos com bancos comerciais e bancos de
desenvolvimento. Com o amadurecimento do negócio e com a evolução do mercado
financeiro, foi possível modificar a estrutura de endividamento.
178
Figura 5-18: Evolução da Dívida Líquida sobre EBITDA
Fonte: Relatório Anual ALL, 2006.
Cada vez que a companhia aumentava o lucro operacional em comparação
com a quantidade de capital de terceiros empregado no negócio, o mercado
financeiro entendia que a companhia havia melhorado a condição de solvência de
sua dívida. Por sua vez, essa melhora se refletia na classificação dos títulos da
dívida da ALL. Isso impactava na redução das taxas de juros cobradas pelos
investidores, no volume captado e no alongamento do prazo da dívida.
“A Standard & Poors Ratings Services (S&P) elevou hoje o rating de crédito corporativo para a América Latina Logística (ALL) de 'brBBB+' para 'brA-'. A perspectiva de rating para a companhia foi definida como estável. A elevação reflete, segundo a S&P, a expectativa de que a ALL manterá seus indicadores fortes no longo prazo, em virtude dos investimentos programados para aumento de capacidade, possibilitados pelo alongamento do perfil e redução do endividamento.” (Gazeta Mercantil, 25 de Julho de 2005)
Seguindo a lógica de maturação do investimento, a companhia buscou
utilizar as fontes de financiamento mais adequadas para cada tipo de investimento:
uma aquisição se paga em um prazo mais longo, sendo mais indicado, portanto
utilizar ações como moeda de pagamento; a aquisição de material rodante como
locomotivas ou investimento em armazéns, que se pagam em um prazo um pouco
menos longo, indica financiar-se através das emissões de debêntures ou linhas de
crédito de longo prazo; por fim, os empréstimos com bancos comerciais são
utilizados para apoiar a administração do caixa de curto prazo.
Outra fonte de financiamento ampliada foi através de clientes inicialmente
em projetos de infra-estrutura e posteriormente na aquisição de material rodante. A
179
ALL acordava com seus clientes que, se eles fizessem alguns investimentos, como
construção de terminais e armazéns ou a compra de vagões, ela daria descontos
nas suas tarifas. O cliente ganhava obtendo uma tarifa ainda mais baixa do que
aquela praticada pelos outros modais e a ALL ganhava alavancando ainda mais sua
operação, ampliando a base de capital de terceiros e substituindo os bancos.
“Contratos de longo prazo asseguram volumes e investimentos de clientes em novos vagões. (...) O melhor exemplo é o contrato de 23 anos com a Bunge Alimentos (...). Ele representará um crescimento anual de 8% no volume de commodities agrícolas para os próximos seis anos (...) e deve suprir cerca de 65% das nossas necessidades de novos vagões nesse período [2009 e 2010].” (Relatório Anual da ALL, 2004, p. 6)
Apesar das indicações de que alguns dos negócios investidos pela empresa
não tenham se concretizado ou tido o destaque que teve o negócio principal, como o
término da sociedade na Terlogs, os resultados ainda baixos na ALL Argentina e a
venda da Geodex, as evidências sugerem que a cadeia de aprovação para tais
negócios não era tão ausente quanto poderia se julgar. Todas as principais
aquisições demonstram que a empresa já estava em processo de planejamento por
anos: tanto a compra da ALL Argentina, iniciada em 1997, quanto a da Delara,
iniciada em 1999, quanto da fábrica de vagões, iniciada em 2002, todas tiveram pelo
menos dois anos de negociações e experiências até a sua conclusão. No caso da
aquisição da Brasil Ferrovias, ocorrida em 2006, o processo de negociação começou
a partir das informações de que ela pediria falência no meio de 2005. Contudo, os
relatórios anuais e a estratégia de capitalização de 2004 demonstram que a
empresa se preparava muito antes para tal movimento.
Isso não evitou que parte das decisões tivessem possivelmente subavaliado
ou ignorado aspectos bastante relevantes que fizeram com que alguns desses
investimentos não gerassem o valor. Na Argentina, por exemplo, as dificuldades
regulatórias e de relacionamento com o poder público, além da crise financeira,
limitaram as estratégias que poderiam ser desenvolvidas. Houve também descuidos
com relação a aspectos legais como a troca de trilhos e o investimento em terminais
para transporte de soja transgênica nos portos paranaenses.
5.2.4.2 Navegação no Ambiente
Um volume maior de evidências nesse período sugere o aumento nas
pressões por conformidade. Surgem solicitações para que externalidades negativas
de sua operação sejam eliminadas, mas a empresa conseguiu administrar tais
180
pressões institucionais de maneira positiva, utilizando estratégias diferentes em
situações diferentes, reduzindo a perda de legitimidade, autonomia ou eficiência
econômica provocada por tais pressões. Apesar de alguns casos terem ocorrido
possivelmente devido à falta de antecipação, as respostas dadas demonstraram
que, posteriormente aos fatos, a organização buscou desenvolver mecanismos para
evitar que tais problemas se repetissem.
Apesar do índice de acidentes relativo (contabilizados proporcionalmente à
produção) ter reduzido drasticamente, principalmente quando comparados com os
níveis de estatal, nessa fase se percebe por parte da sociedade uma preocupação
muito maior com os efeitos que cada acidente tem sobre a vida das pessoas e das
cidades. Ou seja, do ponto de vista sócio-ambiental a relevância está no impacto
causado por cada acidente e não da sua proporcionalidade com a produção.
Um possível fator que maximiza o impacto dos acidentes é o aumento da
participação das cargas perigosas na carteira da empresa e o aumento do volume
transportado por composição. Outra possível justificativa para a intensificação das
pressões institucionais é o aumento do controle por parte dos diversos atores
sociais: população, mídia e órgãos públicos. Pequenos descarrilamentos em pátios,
por exemplo, não exigia da RFFSA o registro em relatórios e estatísticas. Contudo,
com a legislação vigente, qualquer ocorrência fora do comum deve ser informada a
diversos órgãos, parte de um novo ambiente institucional.
Os acidentes passaram a ter conseqüências maiores sobre outros pontos de
vista do que sob a ótica anterior de melhoria da eficiência da malha. A partir da ótica
ambiental, o derramamento de produtos podia contaminar solo, lençóis e rios. Do
ponto de vista do patrimônio histórico, acidentes podiam destruir construções
centenárias e desativações de estações abriam espaço para vandalismo. Do ponto
de vista social, acidentes em passagens de nível interrompiam o uso de ruas e
estradas. Do ponto de vista humano, perdiam-se vidas devido aos acidentes de
trabalho e nas passagens de nível ou na invasão de linhas.
Um aspecto relevante é que, até então, não havia órgãos reguladores
específicos para a indústria: a Agência Nacional de Transporte Terrestre seria criada
em 2002, cinco anos depois das privatizações. A regulação ficava anteriormente
diluída entre diversas instituições que tinham outros fins: Ministério dos Transportes,
RFFSA, GEIPOT, Instituto Ambiental do Paraná, prefeituras, etc. Em 2004, por
exemplo, a regulamentação sobre transporte de cargas perigosas, que havia sido
181
criada em 1990 para as condições de operação da RFFSA, seria redefinida pela
ANTT a partir de discussões com órgãos de fiscalização ambiental.
Antes de 2004, nem com a criação da ANTT havia mecanismos específicos
para punir as concessionárias. Seria nesse ano que a ANTT definiria o processo
administrativo para apuração de infrações e aplicação de penalidades em
decorrência de condutas que infrinjam a legislação de transportes terrestres e os
deveres estabelecidos nos editais de licitação, nos contratos de concessão, de
permissão e de arrendamento e em autorização. Assim ocorreu com outras
dimensões: procedimentos para obras ferroviárias, instruções para estruturas
contábeis, critérios e procedimentos para exploração de faixa de domínio.
Órgãos públicos, organizações civis e alguns clientes iniciaram uma série de
conflitos. Prefeituras fizeram campanhas contra a poluição sonora no período
noturno nas regiões urbanas; órgãos ambientais aplicaram multas por acidentes
ambientais, clientes entraram com reclamações junto à ANTT. A presença mais forte
da fiscalização a partir da constituição da ANTT levou à cobrança de vários aspectos
relativos aos itens acordados no contrato de concessão, mas que haviam sido
esquecidos ou ignorados até então. Possivelmente anteriormente, além da falta de
fiscalização, as reclamações se perdiam em instituições com outros fins e os
processos precisavam seguir todo o trâmite judiciário, o que dificultava a
implementação das políticas definidas pelo poder executivo.
Contudo, essas pressões e conflitos não resultaram sempre em grande
impactos negativos para a ALL. Em muitos dos conflitos a empresa conseguiu
ganhar as ações que foram impetradas em tribunais, pois muitas vezes o próprio
solicitante não cumpria com suas obrigações ou demonstrando que os efeitos sem a
operação da ALL seriam piores. Por exemplo, nos conflitos sobre poluição sonora
com a prefeitura de Curitiba, os trens eram obrigados a utilizar suas buzinas em
região urbana justamente para evitar que famílias que haviam invadido a faixa de
domínio da ferrovia causassem os acidentes que reclamavam sofrer. As pressões
da prefeitura esbarravam na capacidade da mesma em responder às invasões e na
própria autoridade que ela tinha para legislar sobre esse tema. Os trens eram
obrigados a utilizar suas buzinas dado o risco de acidentes.
Outra fonte de conflito com prefeituras eram os acidentes em passagens de
nível. A correta sinalização desses cruzamentos deveria ocorrer na via férrea, mas
também devia estar nas vias urbanas, responsabilidade das prefeituras. Um dos
182
principais itens necessários a redução de acidentes desse tipo, era o uso de
cancelas para controlar o tráfego. Contudo, as cancelas que prefeituras pediam que
fossem instaladas pela ALL acabavam sendo depredadas por vândalos ou exigiam a
colocação de funcionários para controlá-la. Com o tempo, a ALL estruturou soluções
compartilhadas com as prefeituras. A ALL se responsabilizou pela organização de
campanhas de conscientização, as prefeituras envolviam seus profissionais nessas
campanhas e os investimentos necessários eram divididos entre as partes.
Os acidentes no transporte de cargas passaram a ter maior repercussão
também pelos seus efeitos ambientais. Desde o começo dessa fase começam a
surgir projetos na empresa para tratar antecipadamente uma série de possíveis
causas de problemas ambientais: estações de tratamento de esgoto foram
instaladas nas unidades onde havia lavagem de vagões e tanques de coleta de
chuva foram utilizados para reduzir o consumo de água. Contudo, tais investimentos
parecem não ter sido suficientes para evitar os efeitos ambientais de acidentes.
“A empresa América Latina Logística (ALL), concessionária da malha sul brasileira no transporte de cargas por linha férrea, recebeu multas por acidentes ambientais no valor de R$ 6 milhões durante os sete anos de operação no Paraná. Corrigidos, os valores devidos somam R$ 11,1 milhões. Somente neste ano, dois acidentes graves ainda sem valor estabelecido de multa foram registrados no Estado. (...) Segundo o Instituto Ambiental do Paraná (IAP), desde o ano de 2000 o órgão estadual já lavrou 28 multas contra a ALL no valor total de R$ 12,5 milhões por acidentes ambientais. Desses processos, dez foram pagos e 18 ainda estão em andamento.” (Folha de Londrina, 12/12/2004)
“No último sábado, às 21h20, na região de Ponta Grossa, cinco vagões descarrilaram e cerca de 50 litros de óleo diesel foram derramados e absorvidos pelo solo. Segundo o Instituto Ambiental do Paraná (IAP), houve mínimo impacto ambiental e, desta vez, a empresa comunicou o acidente. “Além disso os procedimentos adotados para a retirada do solo com combustível foram ambientalmente corretos, portanto não houve autuação da empresa”, disse o fiscal do IAP, que acompanhou o procedimento, João Luiz Marques.” (Paraná Online, 02/03/2005)
Contudo, somente a partir de 2004 que as atividades sócio-ambientais
ganham mais velocidade. Possivelmente a organização estaria respondendo à
grande repercussão causada pelo acidente na ponte sobre o Rio São João no
começo de 2004, com grandes conseqüências para a natureza e para a ponte,
patrimônio histórico da região. Esse incidente levou a interdição de um trecho crucial
para o escoamento da produção agrícola do Paraná e, por ser uma ponte, não
permitia a construção rápida de contornos, o que estendeu o período de interdição.
A empresa foi obrigada a arcar com exigências como uso de materiais semelhantes
aos da época da construção da ponte (construída em 1889) e obter certificação
183
ambiental de órgãos nacionais e estaduais para toda a malha.
“A ALL possui duas Estações de Tratamento de Efluente – até o final de 2005 serão cinco unidades – que reciclam toda a água utilizada na lavagem de vagões e locomotivas. Essa água é reaproveitada no próprio sistema, causando menor impacto possível no meio ambiente.” (Relatório Anual da ALL, 2004)
“Em 2005, a ALL Brasil conseguiu reduzir seu passivo ambiental em aproximadamente R$ 7.000, mediante a assinatura de Temo de Ajustamento de Conduta perante órgãos ambientais e adoção de todas as medidas necessárias para recuperação do meio ambiente. Para o ano de 2006, a ALL Brasil tem como objetivo assinar Termo de Ajustamento de Conduta perante os órgãos ambientais nos quais ainda existem autuações em discussão. É importante ressaltar que, para todas as autuações ambientais existentes, a ALL Brasil já adotou as medidas compensatórias necessárias para recuperação ambiental, seguindo, rigorosamente, os critérios estipulados pelos órgãos ambientais e legislação vigente.” (Relatório Anual da ALL, 2005)
A ocorrência deste acidente e da mudança na atitude perante ações de
preservação ambiental coincidiu com o ano em que a empresa abriu seu capital e
passou a ser acompanhada de perto por analistas de corretoras de valores. A
aderência ambiental e social se tornou fator relevante para avaliar os riscos da
organização.
“Essa era a estrutura. Mas naquele primeiro momento eu não via outra forma mesmo. Assim, eu não tinha experiência necessária também para reportar sozinha por uma área, e ela tava sendo estruturada, nova. (...) Tudo isso foi quebra de paradigma. Claro também que tinha uma necessidade, por quê? A ALL tinha acabado de abrir capital, e bem ou mal avaliam o aspecto social, ISE, Índice Bovespa.” (Entrevistado 10)
O período também foi marcado por esforços no aumento da legitimidade
perante diversos públicos, principalmente através de premiações. A empresa se
inscreveu no início da fase para participar dos processos de avaliação de duas
revistas especializadas em gestão, uma argentina e outra brasileira, sobre as
melhores empresas para se trabalhar, tendo sido uma das eleitas. A empresa
também desponta em diversas premiações do setor, patrocinadas por organizações
do setor logístico e ferroviário. Por fim, desde sua abertura de capital, a empresa é
premiada devido à qualidade na prestação de informações aos seus investidores.
Algumas metas anuais estão relacionadas ao recebimento desses prêmios.
Foi também a partir desse momento que ações de cunho social também
passaram a fazer parte da agenda de trabalho da organização. A interação com a
população próxima às linhas e nas cidades nas quais atuava foi ampliada. Entre
2005 e 2006 foram criados vários programas: oficina de talentos; trem ambiental;
amigos da comunidade; vagão do conhecimento; oficina da terceira idade. Esse
184
processo culminaria com a criação em 2008 do Instituto ALL, uma organização
patrocinada pela empresa, responsável por concentrar os esforços de
responsabilidade sócio-ambiental.
“Em 2005, reestruturamos o setor responsável pela responsabilidade corporativa, que ganhou um novo enfoque, orçamento próprio e pessoal dedicado a desenvolver ações e projetos específicos. A ALL é associada ao Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, organização não-governamental criada para mobilizar, sensibilizar e ajudar empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, e tem participado ativamente de suas atividades.” (Relatório Anual da ALL, 2005)
A empresa já relata a existência de campanhas de conscientização da
população desde os primeiros anos. Contudo, com a redução de outros fatores
como causas de acidentes, a importância dada à comunicação e divulgação para a
população foi aumentando. Já há alguns anos, existem estruturas, metas e
responsáveis, desdobrados para todas as unidades de produção, focados
principalmente no tratamento a passagens de níveis críticas (aquelas com maior
volume de tráfego ou probabilidade de acidente).
A aquisição da Brasil Ferrovias foi um capítulo à parte dos desafios de
relacionamento da organização. Primeiramente, o processo de negociação da
compra envolveu a disputa com outros grupos interessados. Em segundo lugar,
após a aquisição, a pressão veio de funcionários: a região de São Paulo tinha uma
influência muito mais forte de sindicatos em várias esferas da sociedade. Por fim,
produtores de soja do interior do país e políticos da mesma região, pressionaram a
empresa para que se responsabilizasse por todo o investimento necessário para
ampliar a ferrovia até Goiânia.
A presença de sindicatos influenciava a cultura da empresa antes da
aquisição e tornou difícil implementar o “modelo GP”. Os mecanismos de pressão
por resultados que acarretava a renovação da força de trabalho, instituídos nos
primeiros anos da Malha Sul, ficava bastante limitado.
“Mas em compensação, mão-de-obra, muito complicado, em São Paulo. Aqui a gente conseguia encontrar ex-ferroviário que entendia de vagão, e que abriam suas próprias empresas e trabalham por empreitada, por vagão que compra. Então o pessoal vinha com vontade de trabalhar, dono do seu próprio nariz e sabendo o que tava fazendo. Lá não, lá você encontra gente que quer ganhar bastante, não conhece o assunto e ainda tem sindicato envolvido. É um negócio assim, bastante estranho para o nosso comportamento. (...) você pega Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, todo mundo doido, quer fazer. E lá não, então isso foi chato.” (Entrevistado 14)
Os sindicatos, em conjunto com mídia e poder público, identificaram e
185
passaram a exigir atendimento completo a todas as normas de concessão em todos
os trechos. Grande parte das estratégias adotadas na Malha Sul para reduzir custos,
como a instalação de computadores de bordo para reduzir a quantidade de
funcionários e estações e a desativação de ramais antieconômicos, se tornaram
longos processos judiciais. Apesar de ter ocorrido problemas legais na Malha Sul,
eles foram bem menores do que os existentes na Brasil Ferrovias. Houve forte
enfrentamento e troca de acusações entre ALL e sindicatos.
“O sistema de mono-condução, ou seja, um só maquinista, continua proibido na malha da ferrovia Novoeste. O Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15.ª Região rejeitou o mandato de segurança impetrado pela América Latina Logística do Brasil (ALL), que opera a malha da Novoeste. A empresa recorreu da liminar obtida pelo Sindicato de Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Bauru, Mato Grosso do Sul, que veta a prática.” (Jornal da Cidade de Bauru – SP, 19/03/2007)
Contudo, mesmo com essas pressões a empresa pareceu conseguir
alcançar seus objetivos: a mão-de-obra foi drasticamente reduzida, restando apenas
poucos processos judiciais; as tecnologias de operação foram implementadas e os
indicadores de desempenho como volume, transit time e número de acidentes
também foram amplamente melhorados.
Além das pressões dos sindicatos, a aquisição também trouxe preocupações
por parte de clientes, concorrentes e dos órgãos de controle da concorrência. Em
sua decisão sobre a autorização da fusão, o CADE determinou uma série de
condições para que a aquisição pudesse ser concluída, dado o poder de
concentração que a empresa passaria a deter. Algumas são destacadas a seguir:
“2. Para garantir o tratamento isonômico, as requerentes devem dar publicidade, pela internet ou por outro meio de fácil acesso aos seus usuários, aos preços praticados para a operações acessórias à prestação do serviço ferroviário, ainda que estas operações não tenham seus preços regulados, conforme o estabelecido no §2° da Clausula Sétima do Contrato de Concessão da União com a concessionário Ferrovias Bandeirantes SA (FERROBAN), de 30 de dezembro de 1998.” (Parecer nº 06510/2006/RJ da Secretaria de Acompanhamento Econômico)
“4. As requerentes devem dar publicidade, pela internet ou por outro meio de fácil acesso aos seus usuários, à política de descontos praticada na atividade ferroviária, com detalhamento dos critérios adotados para a composição dos descontos aplicados; chamado mercado spot, e no caso do chamado mercado contratualizado ate o limite da não revelação de segredos de negócio dos usuários.” (Parecer nº 06510/2006/RJ da Secretaria de Acompanhamento Econômico)
A pressão política também veio dos representantes do estado de Mato
Grosso. Os grupos econômicos e políticos da região tinham grande interesse que a
nova concessionária fosse capaz de investir na expansão da linha férrea até Cuiabá.
186
Contudo, a empresa possuía outros objetivos e prioridades de investimento o que
levou a uma longa seqüência de embates políticos e divulgação em mídia. As
evidências sugerem que ALL conseguiu manter condições favoráveis para essas
negociações. Além de ter postergado o início do projeto para uma época onde a
reestruturação operacional da malha existente já estivesse muito mais avançada e
evitasse a sobrecarga do sistema, ela também conseguiu que o projeto fosse
financiado por terceiros e manteve-se concentrada em sua atividade central.
Sob a ótica das pressões competitivas, a ALL fortaleceu sua relação com
grandes clientes, elevando a carga transportada e os investimentos compartilhados.
Mas relatórios de análise da qualidade do atendimento da empresa, feitos pela
ANTT e CNT, demonstram certa insatisfação. Essa indicação de baixo desempenho
na relação com clientes pode ser decorrente do fato da ALL manter uma carteira de
clientes mais ampla e de uma possível priorização do atendimento para cargas de
maior impacto na receita, geradas por grandes clientes.
A ALL demonstrou também preocupação e capacidade de manter suas
margens frente às pressões competitivas da indústria. Para lidar com clientes, foram
estruturadas novas áreas na empresa para monitorarem as condições de mercado
disponíveis aos clientes.
“e a inteligência de mercado passou a ter um papel muito forte de apontar oportunidades de negócios para a Companhia que vinham para prospecção da área de projetos logísticos. (...) inteligência de mercado também era área responsável por acompanhar toda questão do share da Companhia, principalmente share em portos, a gente acompanha muito de perto o share.” (Entrevistado 17)
Os novos negócios desenvolvidos no final da fase anterior reduziram a
dependência de fornecedores de serviços e produtos, como a criação da Santa Fé e
em empresas de terminais de carga e descarga, posteriormente administrados por
ex-funcionários. Mantendo o fornecimento de serviços diluído por um número maior
de fornecedores, a empresa evitava que fosse pressionada por uma possível
concentração de mercado desses players.
“Pelas características de sua operação, a ALL optou por trabalhar com pequenas e microempresas, muitas delas formadas por ex-funcionários da antiga Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Seus fornecedores são divididos em empresas pequenas (80%), médias (19%) e grandes (1%).” (Relatório Anual da ALL, 2004)
A Delara foi uma solução não só para contornar às pressões de preço dos
fornecedores de transporte rodoviário, mas também uma forma de se preparar para
187
os efeitos da entrada de operadores logísticos com operações globais.
“Se a Delara Transporte e Logística ia muito bem, por que vendê-la à ALL? O caminho seria associar-se ao empreendimento de gigantes que ganhara concorrência para explorar os serviços da antiga Rede Ferroviária ou enfrentar uma relação até difícil com megaoperadores da logística mundial, como a Ryder (fatura US$ 10 bilhões/ano), a AXEL, a CAT (dos franceses da Renault) a Pensky Logística (fatura US$ 6 bilhões/ano). Essas estavam a partir de 1999 “descobrindo” o Brasil, chegando com know-how sólido, de economias consolidadas, e clientes internacionais também. Vinham a todo vapor.” (Haygert, 2004)
Novamente, a empresa demonstrou grande capacidade de monitoramento
do ambiente identificando soluções praticadas por outras organizações e
incorporando. Alguns dos projetos sociais e ambientais implementados na empresa
eram bastante semelhantes aos já praticados pelas outras concessionárias. Além
disso, algumas soluções operacionais implementadas no período também podem
ser identificadas em outros operadores logísticos ou ferroviários no mundo.
“A gente troca muito mais com ferrovias de fora do Brasil. De pesquisar, olhar, em revista de matéria. É aquele famoso e bom Google, bota ali e lê alguma coisa. (...) A gente também troca muito com o cliente. ‘O que você acha de fazer desse jeito?’ ” (Entrevistado 11)
5.2.4.3 Aprovisionamento de Recursos Humanos
As evidências sugerem que o processo adotado na Fase de Crescimento
para suprir a necessidade iminente de recursos humanos ao mesmo tempo em que
implementavam o modelo de gestão GP foi relevante para disponibilizar o nível
adequado de qualificação necessário à Fase de Crescimento. Contudo, o efeito
conjunto desse processo com a prática constante de eliminação de desperdícios,
adquirida na Fase de Reestruturação, criou dificuldades para que a organização
fosse capaz de equilibrar oferta e demanda de oportunidades de crescimento e
recursos gerenciais. Os processos desenvolvidos para a gestão desse desafio na
fase anterior sofrem modificações incrementais, possivelmente com o intuito de
responder ao desequilíbrio, mas ainda não foram suficientes para reverter o quadro.
Seria em 2001 a primeira vez após a aquisição que a Malha Sul finalmente
terminaria um ano acabando com a tendência de redução de funcionários,
estabilizando-se num patamar de 2200 funcionários, evoluindo até aproximadamente
2500 no final do período. Contudo, até 2006 esse número não passaria de 3000.
A holding veria uma variação maior no número de funcionários devido às
aquisições realizadas no período, mais profundamente com a Delara e Brasil
Ferrovias. Cada uma traria entre 1000 e 1500 funcionários para o quadro, mas a
188
maioria em atividades de operação: caminhoneiros, maquinistas, operadores de
terminais, administrativo de unidades de produção.
“Do operacional teve muita gente. Muita gente foi demitida, mas ficou a maior parte. Ficou aí com 1500 funcionários dos 4500 que tinha. Isso aí é quase tudo operacional.” (Entrevistado 21)
“Na ALL não, na parte de operação continua existindo naturalmente, mas tudo que é administrativo some, nem para dizer que é incorporado, porque as pessoas não passam a fazer parte.” (Entrevistado 12)
A visão do todo não traduz a perspectiva do ponto de vista mais próximo à
operação. Se por um lado as aquisições representavam crescimento no quadro de
funcionários da ALL Holding com novas oportunidades, por outro elas
representavam o downsizing para as empresas adquiridas. Com a aquisição,
funcionários administrativos foram demitidos, mas surgiram novas posições para
coordenação, como as unidades de produção na malha norte e uma
superintendência para cada malha. Essas novas posições eram na grande maioria
das vezes ocupadas por funcionários da Malha Sul, que já estavam alinhados com a
cultura e, além das metas de produção, também tinham o objetivo de transmitir a
cultura para os funcionários incorporados.
“E daí a gente mistura um pouco do nosso time. Tira umas pessoas de baixo e coloca pra cima, tira umas pessoas de cima e coloca pra baixo. Até pra você misturar as culturas e de certa forma poder “infectar” a nossa cultura pra lá. Aqui dentro, você vê, ta na parede a meta, todo mundo respira a meta, cada um sabe o que tem que fazer, sabe o que tem que atingir. É muito focado no resultado.” (Entrevistado 21)
Depois de alguns poucos anos, se tornavam raros os profissionais
incorporados com a aquisição. Mesmo aqueles que sobreviviam aos primeiros
cortes, com o tempo acabavam não se adequando à cultura.
“[Ainda tem] poucas pessoas [da Delara], mas tem. Na verdade o maior acionista na ALL individual é o Wilson, que é presente do conselho, e da operação de Delara tem, não tem muitas pessoas, mas tem. (...) Hoje tem até pessoas que vieram de Delara e que estão no Ferro. Na verdade tem, tem uma pessoa que era do administrativo, tem dois que estou lembrando aqui, tem dois estagiários, que eram estagiários da Delara e que hoje estão na operação ferroviária, eram estagiários, não eram efetivos, mas hoje estão no ferro.” (Entrevistado 16)
“Hoje nós temos aqui na sede, pessoas que vieram da malha norte, tem uma pessoa que veio da Ferroban, da Ferronorte, mas eles são muita exceção, são bem poucos e só vieram porque a ALL sem eles não ia conseguir, porque a gente não conhecia todos os detalhes. Até hoje a gente não conhece toda a operação da parte fiscal, procedimentos tributários.” (Entrevistado 12)
Segundo relatos, a aquisição da Brasil Ferrovias teve como principal aspecto
189
negativo a falta de recursos humanos. A movimentação de profissionais para a
administração da nova malha, além de ter sido insuficiente para atingir as metas
estabelecidas para lá, provocou dificuldades na gestão da malha sul.
“Exige uma formação muito longa, então assim, às vezes chegava lá e tinha um determinado problema, você precisava de um especialista que resolvesse aquilo, um cara que conhecesse profundamente aquilo, lá não tinha, ou tinha, mas não com a nossa cultura, que não ia resolver da forma que a gente queria que fosse resolvido. Então a gente teve que tirar esse cara daqui e botar para lá, só que ai esse cobertor é curto, tira o cara daqui e bota lá, e aqui, como fica? Por isso que eu falo, essa estrutura a gente viu, a gente não tinha os “segundos”. Uma companhia desse tamanho...” (Entrevistado 17)
“Hoje na Companhia, com um evento da Brasil Ferrovias, vou te dizer que 90% das áreas não tem essa pessoa. Porque o segundo já foi promovido. Esse é o maior problema que a Companhia vive hoje. Não tem gente pra botar. Então a Companhia tem que fazer coisas que ela é contra, é buscar gente fora no mercado.” (Entrevistado 17)
A compra foi apenas um estopim que deflagrou a necessidade latente de
recursos humanos. Existem relatos sobre essa contínua falta de recursos, gerenciais
ou não, antes e depois da aquisição.
“Não tem essa, é gente cara. Você está com a equipe ruim, porque você é sempre short de equipe, sempre... Então não adianta, você vai ter menos gente do que você precisa. Então você vai trabalhar com gente boa” (Entrevistado 16)
“A ALL é uma empresa enxuta. As pessoas trabalham por cinco, fazem mil coisas não relacionadas e relacionadas a todo o momento.” (Entrevistado 21)
“Quando entrei era para uma vaga na área de fluxo de caixa, mas acabou indo para a tesouraria. O cara que coordenava a tesouraria saiu e é uma área que não pode ficar sem coordenador. Então por isso me convidaram e eu aceitei.” (Entrevistado 19)
“Faltou, faltou um gerente. Fiquei um mês, dois meses, com gerente. Gerente pediu demissão, fiquei cinco meses sem gerente. Depois entrou um gerente provisório, que tocava outra coisa, que me olhava de vez em quando. E depois o diretor dava uma olhadinha, e no final do ano entrou o gerente. Po, passei aí uns oito meses que nem cego em tiroteio.” (Entrevistado 4)
As evidências sugerem que, devido ao baixo investimento na construção de
folga organizacional de recursos humanos, a organização apresentou baixa
capacidade de aprovisionamento de recursos humanos. Por outro lado, o impacto
parece só ter sido sentido nos níveis intermediários da organização, pois o núcleo
mais estratégico (diretoria e conselho) parece ter permanecido sempre protegido.
Isso sugere uma administração bastante limitada da retenção de funcionários,
focada nos recursos mais críticos.
190
“Por que o Alexandre é membro do conselho de administração, então ele continua tendo uma participação bacana na ALL. Mas esse afastamento dele, no momento que ele saiu o Bernardo já era uma figura importante ali na diretoria. Todo mundo no mercado sabia que o Bernardo ia suceder o Alexandre. Então parece ter sido uma coisa muito natural, não houve um sentimento de descontinuidade, de ruptura de nada. Talvez, não sei exatamente o que a diretoria fez, como foi essa deliberação, a resolução para ele “olha Bernardo vai sair, vai cuidar de outra coisa, vamos focar em outra pessoa, vamos precisar treiná-lo, trocar de presidência e tal”, mas com certeza foi uma coisa pensada, estudada para que acontecesse uma transição suave como aconteceu, praticamente imperceptível.” (Entrevistado 12)
Algumas práticas sugerem a preocupação com a formação e preparação de
recursos qualificados para substituição de outros mais antigos. Mas parece que
somente os cargos muito críticos têm esses recursos disponíveis. Possivelmente
devido ao fato de que a rotatividade e quantidade de diretores é menor do que a de
gerentes. Assim, é mais fácil para a organização manter um estoque de futuros
diretores do que de futuros gerentes. À medida que a cadeia de comando vai
descendo esses fatores se ampliam: rotatividade e quantidade em níveis inferiores
maiores do que dos níveis acima.
“Excetuando a diretoria, todos os outros níveis sempre pode ter uma descontinuidade, em qualquer nível. Seja de gerente, de supervisor ou de superintendente eu não consigo ver transições suaves assim não. Parece que essa mentalidade de preparar um sucessor não existe para baixo, essa é minha percepção.” (Entrevistado 12)
As evidências apontam para a estratégia deliberada de preparar, pelo menos
o executivo principal, para assumir sua posição sendo o principal responsável pelas
operações mais relevantes para a companhia. Behring assumiu a presidência após
ter sido o responsável pela avaliação da compra do negócio e ter trabalhado por
alguns anos no conselho. Já Hees, foi o responsável pela criação da área de
transporte de industrializados e pela integração da ALL e da Delara, além de grande
parte da estratégia de emissão de debêntures da segunda fase ter sido feita durante
a sua gestão como diretor financeiro. Mais recentemente, o diretor Paulo Basílio foi o
responsável pela abertura de capital e pela integração com a Brasil Ferrovias.
“O IPO que foi em 2004. (...) Envolve muitas pessoas dentro do Brasil e fora, envolveu muitos escritórios de advocacia, envolve governo, envolve bancos. Na época quem estava à frente desse projeto era o Paulo Basílio, que hoje é um dos diretores e o nível de complexidade ali foi monstruoso.” (Entrevistado 12)
“No comando do time responsável pela mudança está o capixaba Paulo Basilio. Economista, Basilio entrou na ALL, em 2000, como analista. Passou pelas áreas financeira e de planejamento até assumir a diretoria comercial, em julho de 2005. Aos 31 anos de idade, ele é considerado um dos melhores talentos da companhia (internamente, é cotado como um dos
191
possíveis sucessores de Hees).” (Exame, 08/11/2006)
Também existem casos de média gerência que exibem os mesmos
elementos: treinamento on-the-job, deslocamento horizontal variado e também
deslocamento vertical.
“Então, em 5 anos na companhia eu passei por estagiária, analista, coordenadora e agora sou gerente. Em 5 anos passei por 7 áreas. Isso é um negócio bem legal da ALL. A gente cresce muito, tem um monte de oportunidade aqui dentro. Eu rodei um monte de área.” (Entrevistado 9)
“Assim, o primeiro ano, só tomei pancada porque, pô, o cara entra, não sabe nada. O cara fala: “Vou te dar um treinamento de um mês e não sei o quê”. Que nada... Foram dois dias ali na Sede. Bicho, me mandaram pra Maringá. Se vira. Se vira e aí, depois com o tempo, você começa a pegar as manhas já.” (Entrevistado 7)
Outra explicação vem da ampliação dos efeitos das desvantagens dos
métodos de retenção desenvolvidos na fase anterior. Esses métodos, baseados
principalmente na remuneração variável atrelada a metas e na classificação forçada,
começaram a falhar em algumas dimensões. O sistema de metas começa a não ser
capaz de mensurar claramente certos objetivos relevantes. Por outro lado, a
classificação forçada se mostra mais propícia a certas áreas e níveis hierárquicos.
“Cara, meta na ALL, o problema foi esse: eu entrei em Dezembro. Em Janeiro foram definidas as metas. Pô, nego chegava em você falava: a tua meta é fazer seis milhões de toneladas, ano que vem. Você não tem ideia. A gente não tinha noção de que é isso. A única coisa que você sabia era o que era tonelada. O resto... Que senão eu falo assim: ‘Aí você baixa a meta em Janeiro, quando se define’.” (Entrevistado 6)
“Não participo de metas, mas as metas eu nunca as tive, não vou dizer que nunca as tive, durante algum tempo que eu era empregado da ALL tinha as metas do jurídico, algumas coisas que eram cobradas pra mim, mas como o meu enfoque sempre foi societário e projetos ou faz muito tempo que é isso, é uma coisa que é muito difícil dimensionar, não dá para dizer, por exemplo, ‘adquirir três empresas no ano de 2008’ ou ‘Incorporar uma nova empresa no primeiro semestre’. Não existe como quantificar. Ou ‘lançar debêntures no ano de 2009’. Não existe isso.” (Entrevistado 12)
“Fazem um proporcional. Eles pegam a meta de um cargo e de outro cargo. Tem uma certa proporção de cada cargo de quanto tempo o cara ficou. Então por exemplo, 40% vale do primeiro cargo que ele ficou. Ele ficou 40% do ano em um cargo e 60% em outro. O que as vezes é meio injusto, na minha opinião. Porque às vezes você tem um alto volume de trabalho no final do período e aí não conta para a meta dele. Deixa o cara quebrado.” (Entrevistado 5)
Esses problemas afetavam diretamente um ponto fundamental do modelo de
seleção natural: a credibilidade. Somava-se a necessidade de manter pessoas
“abaixo” da meta por não ser possível contratar substitutos, como no caso da
compra da Brasil Ferrovias.
192
“Os caras muito bons, e ele conhece muito do negócio que a gente ta precisando de gente, o pessoal acaba contratando ele. Porque agora a gente tem uma diretriz de evitar contratar como PJ porque todo mundo quer ser contratado como PJ. Todo mundo quer pedir demissão para virar PJ. O pessoal prefere ganhar mais, prefere trabalhar como PJ. Eu acho que é porque eles estão desacreditados. Quem é nosso público alvo? Compete o pessoal da TI, da TO, Suprimentos e PCP. Todo mundo da diretoria. Suprimentos tem 15 dias para fazer uma requisição de compras. Então o pessoal fica meio desmotivado. Os critérios são diferentes. Porque são gerências diferentes, são áreas diferentes. Não faz sentido nenhum comparar o desempenho de suprimentos com o de TI. ” (Entrevistado 5)
“A parte do muito trabalho e desafio foi alcançada. A remuneração não se concretizou. Primeiro porque fui trainee, depois porque a ALL não ‘bateu a meta’. Terceiro ano falei: não vou ficar aqui para ver qual vai ser a desculpa ou não desse ano.” (Entrevistado 4)
A falta de capacidade de reter talentos, a falta de foco em reter o
conhecimento e os limitados investimentos em folga organizacional de recursos
humanos não parecem colocar em risco à sobrevivência da organização, mas
certamente têm sido fatores cruciais para limitar a capacidade de crescer de maneira
saudável da firma.
“Foi ter entrado na área comercial, problemático que era a Argentina, com gerente longe, sem nunca ter gerido uma unidade e com desafio de ter que ‘bater meta’. Isso realmente é muito desafiador. A falta do gerente por um lado é boa porque você tem contato direto com o diretor, mas por outro lado é ruim porque você não sabe quais são os próximos passos, você toma as decisões da tua cabeça. Você não tem conhecimento profundo do negócio. Você está caminhando no que tu acha certo e às vezes não é o melhor caminho.” (Entrevistado 4)
Outra possível fonte de perda de recursos gerenciais estava em um dos
mecanismos utilizados para o crescimento. A estratégia de spin-offs, criando
empresas satélites dirigidas por ex-funcionários, consumia gerentes e diretores
potenciais para a empresa. Os exemplos que surgiram nas evidências foram: Inlogs,
presidida por Augusto Pires, ex-diretor de Logística da ALL; Standard Logística,
fundada e controlada por Alan Fuchs, ex-gerente nacional intermodal da ALL; Cal
Group, resultado da fusão da Cavol Logística com a Avant Logística, essa última
chamava-se anteriormente Compacta Logística, fundada e controlada por Cláudio
Cavagnari, ex-gerente ALL.
Por fim, algumas conseqüências não previstas nas estratégias de redução
de pessoal dos primeiros anos começaram a se refletir nas competências da firma,
principalmente na questão operacional. Depois que as tecnologias e métodos mais
simples foram implementados e difundidos, recursos especializados e experientes
passaram a ser peças fundamentais para prover inovações. Contudo, 10 anos após
193
a privatização havia poucos desses recursos.
“Muitas pessoas que eram tão boas e tão conhecedoras quanto eu, por alguma razão começam a pensar em sair da empresa. Eu ainda sempre tive uma chance de tentar ‘no dia-a-dia, vocês fiquem aí, deixa eu pensar nisso aí, eu vou trazer um negócio prontinho que vai resolver’. Não sou bombardiado diariamente. As outras pessoas que foram saindo depois você pega um ano, dois, três, quatro, cinco, dez anos, levando porrada, mesmo que alguém te ofereça o mesmo salário só dizendo o seguinte: ‘olha, vai ter uma diferença. Você vai ter qualidade de vida. Não vou te importunar sábado e domingo, o que você fizer está bem feito, se você atingir esses objetivos macros aqui não vai ter problema’.” (Entrevistado 14)
Alguns funcionários disseram se sentir presos à companhia, pois não
conseguiriam encontrar locais de trabalho que oferecessem desafios mais
interessantes do que os encontrados na ALL. Os relatos também indicaram que já
não há tantos espaços para crescer e aprender para os recursos mais experientes.
Essas críticas podem sugerir falhas no processo de aprendizado, tanto do ponto de
vista da organização, quando do ponto de vista do indivíduo.
“quando você pára para pensar ‘Onde estou? O que estou fazendo?’ Eu acho que o potencial de aprendizado ficou um pouco estático. ... Não existe nenhum outro grande desafio. ... Dá a impressão que você começa a ver coisas repetidas, você começa a ver filmes que já passaram.” (Entrevistado 12)
5.2.4.4 Gestão da Diversidade
O período seria marcado por um aumento significativo do tamanho através
de aquisições, o que pressionaria a organização no sentido de manter íntegro o
conjunto da empresa. Apesar do surgimento de novas coalizões relevantes, como os
sindicatos, a organização demonstrou capacidade de manter sua cultura diante da
expansão geográfica e modal. A capacidade de controle demonstraria algumas
falhas e o sistema de seleção natural começaria a apresentar seus efeitos negativos
para a integridade da empresa. Vários dos mecanismos criados na fase anterior se
mostraram importantes para lidar com as maiores dificuldades de coordenação de
recursos financeiros e operacionais, mas o equilíbrio entre recursos humanos não foi
tão bom.
À medida que a empresa foi crescendo, diversas áreas da empresa
passaram a contribuir com uma parcela muito menor do custo, principalmente toda a
área administrativa. Atividades de compras, recrutamento, projetos, marketing são
facilmente centralizáveis e compartilháveis numa malha com 5, 10 ou 20 mil
quilômetros e não mantém uma relação linear com o tamanho dela ou com o volume
trafegado. Além disso, compras maiores permitiam o fechamento de contratos de
194
longo prazo com redução nos preços. Por fim, o crescimento também permitiu o uso
e o desenvolvimento de tecnologias específicas. À medida que a receita da empresa
crescia, os investimentos no desenvolvimento de tecnologias, como computadores
de bordo, tagging de vagões, sistemas ERP e de apoio a produção, eram diluídos
sobre um volume maior. Junto com o crescimento, a empresa conseguiu ampliar a
sua margem na operação de transporte de cargas nas diversas unidades de
negócio.
Figura 5-19: Participação das principais contas do DRE.
Fontes: Relatórios Anuais da ALL – 2001 a 2007; Relatório de Informações Anuais da ALL AS, ALL Brasil e Brasil Ferrovias para a Comissão de Valores Mobiliários – 1997 a 2000; Dados Financeiros Economática.
Os impactos e desafios de aumento diversidade se estenderiam para além
do período do processo de integração. Os processos de trabalho precisariam ser
adaptados a novas realidades, de mercados e regiões. A organização demandaria
por certo grau de autonomia e começaria a criar núcleos e fragmentos, mas os
mecanismos de coordenação pareceram lidar de maneira suficiente para evitar que
tais problemas se expandissem e contaminassem a organização.
“A gente deixou de ser ferrovia, passou a ser uma empresa de logística. Antes as pessoas falavam ‘eu sou do ferro’ ou ‘eu sou do rodo’. Eu dizia ‘não, você é da ALL.’ A gente tem o mesmo acontecendo hoje, ‘sou da
9,51% 10,26% 7,54% 8,53% 11,99% 10,85% 11,02% 12,55% 12,99% 12,87% 11,35%
69,56%58,58% 68,00% 69,11% 64,12% 62,29% 59,91% 56,66% 53,51% 55,87% 55,65%
1,61%
1,76%
2,12%2,42% 1,21%
0,43%0,61% 0,36%
0,61%1,18% 0,56%
16,05%
16,82%
15,44% 13,51%14,33%
8,66%7,71% 8,25%
7,00% 5,14%3,24%
3,26%12,59%
6,91% 6,43% 8,34%17,77% 20,75% 22,17% 25,88% 24,93%
29,20%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Impostos sobre Vendas Custo Produtos Vendidos Despesas com Vendas
Despesas Administrativas Lucro Operacional
195
Malha Norte, sou da Malha Sul’ e aí eu digo o mesmo, ‘não, somos da ALL’. A diretoria até pediu para não falar assim, malha norte, malha sul. Mas é assim mesmo. Isso demora, ainda vai demorar um ano ou dois para eliminar isso.” (Entrevistado 23)
Nas duas aquisições mais relevantes da história, Delara e Brasil Ferrovias,
percebe-se a importância dada à integração dos negócios. Em ambos os casos
houve a criação de um grupo de transição composto por executivos importantes da
companhia, dedicados exclusivamente à atividade de integração. O grupo envolvido
na integração era o mesmo responsável pelo levantamento prévio, pelo menos no
caso da Brasil Ferrovias.
“A primeira providência nesse processo de recuperação já foi tomada. No dia seguinte ao anúncio da compra, Bernardo Hess, presidente da ALL, despachou uma equipe de 20 executivos e gerentes para a sede da Brasil Ferrovias, em Campinas, no interior de São Paulo. Esse grupo vai permanecer por lá pelos próximos seis meses e será a ponta-de-lança do processo de integração das duas empresas, previsto para ser concluído no início do ano que vem. (...)Entre janeiro e março, alguns dos mesmos funcionários que hoje estão em Campinas viajaram nas locomotivas da Brasil Ferrovias, visitaram oficinas, conferiram a situação dos trilhos, pesquisaram as estratégias e a gestão da empresa. Produziram um relatório de 200 páginas sugerindo como recuperá-la.” (Exame, 24/05/2006)
Característico dessas operações de integração foi o objetivo de se ter uma
única cultura, com completa absorção do novo negócio para o “jeito” ALL.
“Em todas elas, as características dessas duas se repetem e tem uma outra que também se repete em todas elas que é a capacidade de se integrar nessas operações dentro da cultura da companhia de uma maneira muito rápida. (...) Mas a identidade, a maneira de implantar essa identidade ela acontece muito rápido. Eu não sei como isso acontece exatamente, mas até hoje você é uma empresa, a partir de amanhã você já começa a ver a implantação de sistemas de gestão, ferramentas de qualidade, de identidade visual. A partir do dia seguinte, as pessoas já estão usando uniforme, todo o planejamento visual das empresas já está sendo modificado. Então eu diria que uma característica da ALL é adquirir ou incorporar para dar sua identidade, é diferente de você adquirir um negócio, porque aquele negócio tem um valor intrínseco em si mesmo e você vai manter.” (Entrevistado 12)
A área de projetos logísticos, além da função de buscar e estruturar novas
oportunidades de negócio, também funciona como um elemento integrador. Para
que seus projetos fossem concluídos adequadamente a organização desenvolveu
um modelo de organização onde a área de projetos logísticos coordena o uso de
conhecimento específico de várias áreas. Outras áreas também evidenciam um bom
grau de integração e relacionamento da organização como Relações Corporativas.
“Eu diria que a área de projetos é uma área de coordenar projetos. A gente tem vários especialistas, o cara de via, o cara de vagão, oficina de mecânica, o PCP, a gente junta tudo isso para viabilizar um negócio. Faz análise financeira, é uma área muito mais disso, fazer perguntas para as
196
outras áreas, para obter as informações necessárias para desenvolver o projeto.” (Entrevistado 11)
Mecanismos semelhantes de coordenação e integração foram criados para
transmitir e receber informações e decisões entre a sede e as unidades de
produção. Além do controle das metas dessas pontas distantes da sede, há também
a centralização de atividades administrativas como compras e recursos humanos.
“Trabalhei na central de notas, foi uma área nova, não existia antes na ALL, implantei essa central de notas com uma equipe toda terceirizada. A gente era responsável por receber todas as notas das unidades, fazer o lançamento e a liberação. Então todas as notas de toda a companhia estavam centralizadas na Central de Notas. Isso ajuda bastante porque você tem pessoas especializadas no lançamento e não tem problema com relação a lançamento incorreto, toda classificação correta.” (Entrevistado 8)
As evidências não apontaram para dificuldades na coordenação de
atividades da operação, onde os sistemas de controle continuaram basicamente os
mesmos. Os “contratos” firmados entre as áreas não só fundamentavam a
coordenação e os investimentos como também facilitavam a resolução de conflitos.
Há um relato com um exemplo desses contratos. Dois vendedores planejaram usar
cada um 200 vagões de determinada UP em uma semana. Se um deles disser que
seu carregamento será de 400 ao invés dos 200, a UP não desviará os ativos
planejados para o outro vendedor porque a receita do segundo é maior.
Contudo o sistema de controle por metas foi insuficiente para evitar algumas
falhas que ocorreram no processo de integração e gestão da nova Malha Norte.
Segundo relatos, 2007 foi o único ano em que, devido ao fato da companhia não ter
atingindo sua meta global, o bônus de fim de ano não seria distribuído.
“Ele falou assim: ‘gosto muito do ‘Fulano’, gosto muito do ‘Cicrano’. Mas tô com raiva dos dois assim. Raiva, por a gente ter perdido ano passado, por causa dessas cagadas que eu tô vendo aqui agora. Tô com raiva, do profissional, do pessoal não, mas do profissional eu queria matar os dois’. E o ‘Beltrano’ não é de segurar as coisas. Falou: ‘A culpa é deles. Ninguém olhou esse negócio ano passado’. Ninguém olhou, ninguém foi lá. Quando ia, falava que tava tudo bem. Ano passado a gente não ‘bateu’ a meta por causa daquela área.” (Entrevistado 6)
Mesmo não tendo atingido a meta global, a alta gestão decidiu dar bônus
para o grupo de executivos mais altos, porém com metade dos valores. Outros
níveis e áreas da companhia tinham seus próprios programas de remuneração
variável, como os campeonatos entre UP’s, maquinistas e motoristas, que davam
prêmios trimestralmente para os mais eficientes. Esses programas mais específicos
foram mantidos, até mesmo porque não estavam atrelados ao desempenho global.
“Na verdade assim, não sei se você soube como foi a premiação ano
197
passado, só o grupo um que ganhou, o dois não, porque a companhia não ‘bateu’ suas metas, mas acredito eu, para não criar um descontentamento geral na companhia, porque queira ou não queira, o que mais te incentiva é você chegar no final do ano, ‘bater’ suas metas e ganhar doze salários, não é? (...) Aí distribuíram cinqüenta por cento do valor do bônus, se você ‘bater’ suas metas” (Entrevistado 3)
A companhia já havia passado por situação contrária em 2003. Já se sabia
que a meta estipulada para o ano seria cumprida no meio do ano e a alta gestão
resolveu rever as metas para cima. Essas flexibilizações colocavam, de certa forma,
em xeque a proposta e imagem meritocrática do modelo de gestão.
Esses foram apenas mais outros movimentos que estavam contribuindo para
a redução da credibilidade do sistema e da sensação de que a ALL era
meritocrática. Com o crescimento da organização e com as melhorias sendo
implementadas ao longo dos anos, os problemas se tornavam cada vez mais
complexos, o que exigia do sistema de metas uma maior capacidade de avaliar o
desempenho. Áreas e atividades mais subjetivas ou ficavam sem metas ou tinham a
metas de difícil mensuração.
“Já na área de processos já não era completamente 100% metódico. Ou seja, tinha algumas metas que eram subjetivas. Você não tinha um esquema de medição precisa por sistema, tudo controlava por planilha. A Argentina era tudo assim, dessa maneira. (...) Tem outros lugares, por exemplo, projetos. Uma métrica que eu tinha lá que achava absurda. Todas as fábricas que nascerem em tal lugar têm que nascer perto da malha ferroviária. Cara, o cara quer construir uma fábrica de água, para ele é importante a fonte de água, não é importante a proximidade da ferrovia.” (Entrevistado 4)
“Para outra pessoa, que no caso se deu muito bem. Porque eu ganhei tudo, reduzi tudo, ganhei em todos os lados. Tu já conhece a unidade, tu sabe onde tirar, onde não dá e onde dá. É como eles dizem lá: o bônus é ganho quando você faz bem uma meta. Você conhecendo a unidade, você faz muito a meta. (...) Como a meta não vem de cima, cada um prepara a própria meta, se você preparou a meta e está atuando no ano seguinte na meta, seu bônus está garantido. É assim. São as regras do jogo. Mas te dão possibilidades. Se você for um cara fora de série e pegar uma meta difícil, tu vai fazer. Se for fora de série, você vai fazer.” (Entrevistado 4)
A credibilidade tem um papel fundamental para que o sistema de seleção
natural instalado na fase anterior continuasse a trazer os benefícios esperados. Essa
fase viu o sistema começar a apresentar falhas, criando uma separação entre a
base e o topo da organização, entre mais novos e mais experientes.
“Essas coisas deixam as pessoas um pouco receosas. E como era difícil alguém que não era gerente ou diretor na Argentina ganhar bônus, o sistema estava em descrença. Isso eu sentia muito, todo mundo era muito descrente do sistema. O gerente de logística lá saiu, o gerente de PCP saiu, todos argentinos, completamente descrentes. Trabalhavam muito, esperavam ganhar dinheiro com isso, e dinheiro não vinha.” (Entrevistado 4)
198
“Empresa do grupo GP no início é muito bom o esquema. Depois de um tempo eles têm que relaxar porque não é tão assim. Os saltos não são tão grandes, de produtividade, a ação não cresce tanto. Então qual o modelo? Os caras cresceram muito rápido no início. Não dá para crescer 20% por ano por 10 anos. Combustível. Tem um momento que você pára de reduzir combustível. (...) Você começa a desconfiar daquilo. O resultado, o ranking não é aberto. É complicado. Não ta na patota? Sai fora. Ta na patota? Abraça a galera e nada junto.” (Entrevistado 4)
Ao invés do sistema contribuir para a homogeneização e compartilhamento,
passou a servir como fator que estava limitando a capacidade da organização de
utilizar recursos heterogêneos. Enquanto alguns continuavam a trocar várias vezes
de área, outros ficaram cada vez mais especializados, criando uma disparidade no
contexto de disputa pelas metas. Como a remuneração é classificatória, aqueles
mais experientes cumprem as metas não por serem melhores ou por contribuírem
mais para a companhia, mas porque conhecem melhor o “campo de jogo”.
“Entrei na ALL com 40 anos. Em uma empresa que preza a juventude, só podia entrar como especialista. (...) Eu já ganhei três vezes, sempre bati as metas. Só não ‘bati’ as metas no primeiro ano porque não tinha mesmo. (...) Aqui é um ambiente instável demais. Não se pode acomodar. Não tem essa. Você também precisa dar tarefas pro cara resolver, é dar o que fazer. A base de tudo é a remuneração variável. Eu até saí durante um tempo da TI, fui para a produção. Mas acabei voltando porque eu desempenhava muito melhor na TI.” (Entrevistado 6)
Também são relatados diversos investimentos em atividades de
comunicação e integração dos funcionários. Além dos mecanismos criados na fase
anterior, como os encontros trimestrais e a revista interna, novos elementos foram
adicionados: jornais específicos para maquinistas e motoristas, entrega de adesivos
e camisetas com a marca ALL, lojinha dentro da companhia com produtos com a
marca ALL, passeio de trem com as famílias de funcionários, patrocínio de festas
para datas comemorativas.
5.2.4.5 Gestão da Complexidade
As evidências sugerem que a organização não modificou significativamente
os processos e sistemas desenvolvidos no período anterior para lidar com os
desafios dessa fase. A opção em geral foi pela solução suficiente e por melhorias
incrementais sobre os mecanismos já existentes que, em certa medida, atenderam
adequadamente às necessidades do período. A organização foi capaz de identificar
certas falhas na capacidade de sedimentar o conhecimento gerado, mas não foram
encontradas evidências de que soluções para essa questão foram implementadas.
O sistema de remuneração variável atrelada a metas individuais
199
desdobradas continuou sendo o alicerce central do modelo de gestão da firma.
Contudo, com o crescimento, novos desafios surgiram para que esse modelo fosse
capaz de responder às necessidades de coordenação. Foi necessário criar uma
área de auditoria e novas demandas surgiram sobre a área de tecnologia, sendo
necessário registrar em sistemas corporativos os indicadores relacionados às metas.
Com o passar dos anos, continuaram sendo feitas adaptações ao modelo, porém
menos radicais do que aquelas feitas ao longo da Fase de Crescimento. Por
exemplo, o número equivalente de salários sofreu incrementos e os percentuais de
bônus duplo e bônus simples ampliados. Enquanto na Fase de Crescimento os 10%
melhor classificados recebiam bônus duplo e os 40% seguintes recebiam bônus
simples, na Fase de Crescimento esses percentuais foram modificados para 15% e
45% respectivamente.
“O que eu vejo que mudou para melhor na ALL é a questão da remuneração variável, isso cresceu o tempo todo. Quando eu entrei eram 8 salários o bônus duplo, hoje está em 16.” (Entrevistado 13)
Outros exemplos de soluções incrementais também podem ser relatados:
ampliação de ferramentas de comunicação semelhantes às existentes, apenas
especializando-as para certos públicos, como jornal interno específico para
maquinistas e motoristas; replicação de modelos de projetos sociais, como Vagão do
Conhecimento e Trem Ambiental. Foi um período onde o crescimento foi baseado na
ampliação daquilo que já se fazia. A aquisição da Brasil Ferrovias considerava
também a facilidade com que se faria um turnaround na operação porque os
problemas existentes na nova malha eram em grande parte os mesmos que já
haviam sido superados na malha antiga.
O mesmo foi percebido nas práticas de remuneração. Foram adicionados
novos programas para contemplar outros grupos de funcionários, mas seguindo as
linhas dos programas existentes, todos baseados em competições. Novos critérios
foram incluídos para mensurar desempenho: enquanto no começo só havia
preocupação com custos, receitas e volume, agora também se ponderavam
indicadores de segurança e qualidade do atendimento ao cliente. Com a ampliação
da terceirização foram criadas competições para premiar fornecedores, buscando
melhorar o desempenho, mas também aumentar a fidelidade. O gráfico a seguir
apresenta a evolução desse indicador frente ao PIB brasileiro.
200
Figura 5-20: Evolução do valor da remuneração variável.
Esse foco na responsabilidade do indivíduo sobre o seu desempenho e
remuneração, apesar de trazer melhorias para a autonomia e capacidade de
coordenação, trouxe efeitos negativos para a capacidade de aprendizado da
organização. Somando-se a isso a alta valorização dada à ambição profissional, a
importância na sistematização de novas práticas é reduzida, o que dificulta a
capacidade da organização aprender além do aprendizado do indivíduo.
“A gente aqui na Companhia não é uma empresa orientada por processo, a gente é uma empresa muito orientada por pessoas, ou seja, o que a gente vê muito aqui na companhia? Às vezes tem uma determinada área que ta assim, com os melhores resultados da Companhia (...) às vezes a gente tira uma pessoa de uma determinada área e coloca em outra, o resultado daquela área decresce, essa pessoa ela consegue levantar o resultado da área que ela foi, mas o resultado da área que ela tava decresce, por quê? Porque, exatamente a gente é uma empresa que a gente não tem os processos sistematizados, então assim, se eu saio a liderança, como o processo não está sistematizado ele cai.” (Entrevistado 17)
A preocupação com a redução da complexidade das operações continuou
baseada na união com parceiros que já conheciam do negócio como havia sido feito
nos anos anteriores no desenvolvimento de novas tecnologias ou nas produções de
vagões e no transporte rodoviário. A aquisição da Brasil Ferrovias foi antecipada
com a criação da ALL Centro-Oeste em associação com transportadoras da região.
0,00%
0,02%
0,04%
0,06%
0,08%
0,10%
0,12%
0,14%
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Distribuição de lucro per capita annual/PIB/10^3
201
Contudo, a organização demonstrou a persistência de traços identificados
em sua origem. As soluções suficientes no lugar de buscas amplas, incentivadas
durante o processo de reestruturação devido à crítica falta de recursos, foram
citadas como fazendo parte dos valores organizacionais.
“Eu sempre digo aí pro diretor, o Roberto: “se eu não tiver tempo para parar e pensar, eu não consigo ir na profundidade que eu preciso.” Porque tem outros que eles só querem reações. Na ALL é muito bem visto o seguinte. Eu te digo: “olha, ta dando um problema em Paranaguá.” Se você levantar agora e sair correndo para ir lá, você é bem visto. Aí você chega lá, fica lá 20 horas, durante uma semana e resolveu. Poxa, legal. Só que eu digo assim, que tem certas coisas que não é assim que funciona. Você tem que parar para pensar e entender se não tem algo que você resolve nessa semana, semana seguinte está de volta. Deve ter algum fator lá. Eu sempre tive o ponto forte de me aprofundar nas coisas e resolver de uma vez. Nunca mais vai ter esse problema. Só que tem que ter tempo. Só que às vezes, aqui nessa agitação você não consegue ter aquela tranqüilidade pra pensar. Eu tento escapar. Às vezes, os caras ficam meio chateados.” (Entrevistado 14)
A competição interna favorece a permanência dos mais adaptados e elimina
os menos adaptados. Porém, com o tempo, a experiência passa a substituir o
talento. Novos gestores que potencialmente seriam melhores do que os existentes
acabam não sendo remunerados corretamente e deixam a organização antes de
desenvolverem a experiência necessária para poder competir em pé de igualdade
com os gestores mais antigos. O conhecimento fica concentrado cada vez mais em
uma pequena parcela da equipe gerencial. Essa é uma possível causa da queda de
desempenho na malha sul após a aquisição da Brasil Ferrovias.
Em alguns casos, a falta de recursos humanos qualificados e o excesso de
foco em pessoas em detrimento do foco em processos fez com que a estratégia e
estrutura da organização ficassem dependentes de suas restrições de recursos.
“Eu fiquei no marketing ate o final, na verdade eu fui para o marketing em julho de 2003, fiquei ate dezembro de 2003, e a gente mudou a estrutura da Companhia de novo e a gente decidiu juntar a inteligência de mercado com a área de projetos logísticos, então eu voltei para área de projetos logísticos levando a inteligência de mercado junto comigo, e a inteligência de mercado passou a ter um papel muito forte de apontar oportunidades de negócios para a Companhia que vinham para prospecção da área de projetos logísticos.” (Entrevistado 17)
A capacidade de reter conhecimento técnico também foi influenciada pelo
sistema de seleção natural. Como parte da recompensa do esforço está atrelada ao
sucesso profissional e à subida na hierarquia, os funcionários mantêm esses
objetivos como premissas, deixando de lado o seu próprio aprendizado.
“Uma das coisas que eu sinto na companhia é que as pessoas querem sempre crescer mais como gestor de negócio, controlando números, e
202
fazendo reuniões, e verificando o que precisa ser feito do que realmente fazer e entender o que precisa ser feito.” (Entrevistado 14)
“Mas eu vou procurando treinar, mas eu percebo que tecnicamente eu não consigo ter uma aderência tão forte quanto de gestor. Imagina assim, o cara entra na companhia e diz: ‘poxa, hoje eu sou analista, amanhã sou coordenador depois gerente e depois até diretor e o salário vai crescer exponencialmente’. (...) E a maioria das pessoas que eu começo a treinar ele inicialmente diz “não, vou seguir certinho”, mas depois quando ele vê que tem uma chance de ser coordenador não sei do que, ele já pula pra cá, esquece tudo que aprendeu e só quer número e ver se está atendendo todas as metas que alguém deu para ele.” (Entrevistado 14)
5.2.4.6 Gestão da Folga Organizacional
As evidências sugerem que a empresa demonstrou nesse período ter tido
boa administração de diversos tipos de folgas, como a financeira, credibilidade e de
recursos operacionais. Contudo, as práticas de recursos humanos permaneceram
parecidas com aquelas implantadas no início da privatização onde havia um forte
controle na quantidade de recursos humanos. Assim, a empresa sofreu dificuldades
para administrar o crescimento devido à necessidade de recursos humanos.
As folgas têm um papel fundamental no negócio ferroviário, principalmente
devido à alta capacidade que se tem de aumentar a capacidade de produção de
vários ativos com investimento em outros poucos. Por exemplo, ao investir na
construção de um pátio de cruzamento, todo o trecho ferroviário duplica sua
capacidade de transporte e reduz o tempo parado de vagões e locomotivas. Foi
utilizando esse mecanismo de efeito de rede que a ALL ampliou a capacidade e
volume transportado no período.
“ALL tem muito pra crescer. Ela não está estourando a capacidade produtiva, quando você estoura a capacidade de algum trecho produtivo, que é a saturação do trecho, o que você faz? (...) você começa a ‘bater’ na capacidade, aí que você constrói? Um pátio, porque toda a vez que você constrói um pátio na metade de um lugar, você duplica sua capacidade, então o negocio é exponencial. Bota mais um pátio, mais um pátio, que no limite é linha dupla. Você vai botar tanto pátio que duplica a linha. Então qual é limitador de investimento da ferrovia? É grana mesmo pra construir pátio pro exemplo.” (Entrevistado 16)
As folgas existentes para a operação também foram importantes para o
processo de aquisição da Brasil Ferrovias. A disponibilidade de oficinas e
equipamentos de manutenção de vagões e locomotivas, não só as existentes na
ALL, mas também aquelas dedicadas à Santa Fé Vagões, foram necessárias para
apoiar o processo de mudança na Malha Norte. Outros ativos não puderam ser
redistribuídos principalmente porque a bitola da Malha Norte (larga) era diferente da
existente na Malha Sul (métrica) e da Malha argentina (standard).
203
A empresa demonstrou interesse em utilizar a folga de ativos em
investimento em novos negócios. A participação em algumas das expansões veio
através da oferta de imóveis e equipamentos para novos empreendimentos como no
caso de terminais intermodais e da fábrica de vagões, mas foram movimentos, como
descritos anteriormente, em sua maioria defensivos, não tendo gerado ciclos de
reforço contínuo do crescimento.
Notou-se novamente um processo de acúmulo de recursos financeiros para
apoiar a operação. Desde 2003 a ALL veio reduzindo seu grau de endividamento, o
que facilitou a absorção das dívidas da Brasil Ferrovias e o aumento da
alavancagem financeira para financiar a compra. O IPO, a emissão de debêntures,
os empréstimos de longo prazo junto ao BNDES e a aquisição através de trocas de
ações contribuíram para que a empresa resultante mantivesse sua saúde financeira
e tivesse disponível o dinheiro necessário para implementar as modificações
necessárias: investir em tecnologia, ativos e treinamento, renegociar contratos e
pagar indenizações.
Há relatos de que a credibilidade de que a organização desfrutava também
foi fundamental para os processos de aquisição. Assim como Wilson Delara relata a
relevância da ALL no cenário de logística do país como um critério para a decisão da
fusão, relatórios do BNDES, CADE, Funcef e Previ descrevem a importância do
sucesso anterior da ALL na transformação da Malha Sul como critério relevante para
aceitação da fusão da Brasil Ferrovias.
Outro elemento que apoiou as aquisições foi o uso de folgas de
conhecimento para facilitar o processo de integração. No caso da Brasil Ferrovias, a
criação da ALL Centro-Oeste um ano antes funcionou como uma forma de trazer
para a organização conhecimento sobre o mercado. Além disso, a equipe de
transição da Brasil Ferrovias possuía funcionários que haviam participado do
processo de transição da Malha Sul na época da privatização.
“Ah, fica muito mais fácil trabalhar com a Malha Norte, né? Porque na Malha Sul a gente ainda não tinha o conhecimento, o dia-a-dia, a vivência, de obrigações e de quais eram as formas que a gente devia lidar com comunidades, com a prefeitura, como a gente podia buscar parceria com as prefeituras, desenvolvimento de projetos sociais, ambientais, isso nada existia, né? Quando a gente chega na Malha Norte a gente já tem esse conhecimento ...” (Entrevistado 9)
Importante para a organização também foi o amplo investimento de folga na
manutenção da integridade. Investe-se em vários mecanismos e canais para reforço
204
das mensagens de fortalecimento da cultura e da marca perante os funcionários,
buscando criar quase uma religião. Alguns dos exemplos são: revista interna, site
interno, eventos e encontros em datas festivas (fim de ano, dia dos pais, natal),
campanhas sociais, músicas, competições, produtos como camisas e casacos com a
marca ALL, comitês de gente e o programa Pessoas de Destaque. A comunicação é
uma das principais formas que a empresa utiliza para criar os mitos, divulgando
freqüentemente e amplamente as ações anteriores. Esses mecanismos de
“identificação com a marca” são renovados e ampliados freqüentemente.
O ponto crítico do período para a gestão da folga foi a administração dos
recursos humanos. São diversos os relatos sobre excesso de trabalho e falta de
pessoal, principalmente na transição na compra da Brasil Ferrovias. Essa falta de
pessoal é colocada como um dos motivos para o insucesso na consecução da meta
global da empresa pela primeira vez nos seus 11 anos de história.
Eu falava: ‘Eu preciso de quatro supervisores aqui’. ‘Ah não. Um só tá bom’. Uma administração daquele tamanho com um só supervisor? São quatro, cara. Um por turno e um de folga. Tem que ter um revezamento. Vinte e quatro horas. Aí, como a galera não dava, ele ficava lá 24 horas numa Estação, ele chegou a ficar setenta e duas horas lá dentro da Estação. Sem dormir e tomar banho. Ele teve um enfarte em 2006. O cara tem 42 anos.” (Entrevistado 6)
Na verdade, a aquisição da Brasil Ferrovias foi um evento que demonstrou a
fragilidade da maneira como se estava gerenciando pessoas desde a
implementação do modelo de gestão.
“Retenção de talentos. Perde muita gente muito boa. Por causa de excesso de trabalho, excesso de cobrança. Você investe e perde ele pro mercado. Não pode. É desperdício. (...) O profissional ALL é muito valorizado no mercado. Você não faz ideia de quantas propostas já recebi sem procurar nada. (...) Perde muito talento. Não pode reter só na hora de sair. Sempre foi assim. (...) Mas é lógico que parte do pessoal você acaba perdendo mesmo. Você não pode ter 90 diretores.” (Entrevistado 23)
Eu avisei há três anos que ia sair e me aposentar. Depois eu avisei há dois anos. Depois avisei há um. Até que há uns dois meses atrás eu e o Cicrano tivemos uma briga séria. Ele não aceita que eu vou sair. (...) Hoje não tem alguém para me substituir. E eu avisei. Era para ter colocado lá um analista do meu lado para aprender o que eu faço. Formar sucessores. É assim em um monte de lugar. Quanto custa perder um talento? A ALL não paga lá tão bem, o negócio está na remuneração variável. Então quando perde alguém com experiência, quanto custa trazer um profissional de fora? É muito caro. É mais barato formar, mas aí tem que formar de novo, demora todo aquele tempo. Tudo bem que muitos aqui são movidos a desafio, eu sou movida a desafio. Mas isso não é tudo. Salário é um negócio muito importante.” (Entrevistado 23)
As conseqüências da falta de gente já começam a ser sentidas em outras
205
áreas e mesmo sem a existência de eventos esporádicos de grande demanda como
aquisições de empresas. Mesmo alguns anos depois da aquisição ainda se notam a
falta dos recursos que foram demandados durante o processo.
“As pessoas tem que sair e você vai ficando mais isolado. Antes você trocava ideia com um monte de gente. Agora ta tudo comigo. Se eu der uma bola fora e eu não sei de tudo, como é que vou fazer? E no entanto, os outros também não vão conseguir, vão dizer que você... pode até ser que você não seja tão bom quanto outros que saíram, mas só sobrou você. A minha resposta significa a diferença entre o trem chegar no lugar ou se esburacar em algum lugar aí. Você já não tem tantas pessoas aí para trocar informação. Essa é uma parte crítica do negócio.” (Entrevistado 14)
“Hoje não há ninguém preparado para a coordenação. Tecnicamente eu sou bom, meu problema é na gestão. Baseio-me nas dicas do ‘Beltrano’. Mas estou tentando, a gente sempre tenta passar as coisas, mas requer uma maturidade para a coordenação. Pra você ver como é difícil formar alguém. Eu tenho oito meses na área e sou a segunda pessoa mais antiga. A mais antiga tem 14 meses. A área tem no total 13 pessoas. Mas é pouco. É uma característica do grupo, trabalhar com pouca gente. A gente acaba se desdobrando para colocar alguém no lugar.” (Entrevistado 19)
206
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da visão de que a América Latina Logística é um caso de
turnaround de sucesso no contexto da privatização das ferrovias brasileiras, o
presente estudo buscou responder às seguintes perguntas:
Como os interesses de um fundo de investimento em um processo de
aquisição, transformação e venda de empresas, afeta as organizações
adquiridas?
Quais foram as conseqüências do processo de transformação
comandado pelo GP para a construção da longevidade saudável da ALL?
Através da primeira pergunta, buscou-se entender quais foram os passos
escolhidos pela nova administração que explicariam o sucesso alcançado na
transformação de um negócio deficitário em uma empresa lucrativa no curto espaço
de tempo. As evidências históricas encontradas, classificadas através dos
arquétipos de Fleck (2006), sugerem que a organização trilhou até hoje um caminho
composto por três estágios: (1) a Fase da Reestruturação, focada na Gestão da
Folga; (2) a Fase de Crescimento, focada na Gestão da Complexidade e
Empreendedorismo; e (3) a Fase de Pós-Venda, com a estagnação do crescimento
qualitativo da organização.
Conforme a análise indicou, a nova gestão iniciou seu trabalho de
transformação do negócio através do foco na eliminação do desperdício e na
utilização das folgas existentes para sanar os principais problemas. Juntamente com
a disponibilização de novas folgas através do investimento dos novos sócios, a
organização visava alcançar o equilíbrio entre receitas e despesas da operação
ferroviária o mais rápido possível. Assim, os recursos ali investidos passariam a criar
valor para os acionistas ao invés de destruir o valor do capital empregado. A atuação
sobre esse elemento do modelo de Fleck (2006) foi ainda mais importante devido
aos reflexos causados sobre as respostas dadas aos outros desafios, principalmente
o Aprovisionamento de Recursos Humanos e a Gestão da Diversidade. O grande
desafio era tratar os “incêndios” à medida que se construísse uma estrutura forte
suficiente para evitar que o modo de resposta anterior se mantivesse presente.
Seguindo o mesmo princípio de atacar as causas raízes, os efeitos na
qualidade das respostas também foram sentidos em outros desafios, novamente
com destaque para o Aprovisionamento de Recursos Humanos e para a Gestão da
207
Diversidade na Fase de Crescimento. O foco na Gestão da Complexidade ofertou à
organização um conjunto de sistemas e métodos para lidar com o rápido
crescimento que apresentava e ainda apresentaria. Essa velocidade também seria
uma motivadora para a preferência pela adoção de práticas externas ao invés de
trilhar longos caminhos para criar seus próprios processos de trabalho.
Na última fase analisada, a organização demonstrou crescimento
quantitativo significativo, mas uma evolução qualitativa não se mostrou presente. A
organização apresentou um excesso de uso dos mecanismos que a trouxeram até
aquela etapa e seus investimentos na renovação se provaram mais voltados à
defesa dos mercados conquistados.
Analisando sob as perspectivas operacionais e financeiras, como a evolução
do faturamento ou do EBITDA, a empresa manteve o mesmo ritmo em todas as
fases, apresentando um crescimento anual percentual acima de dois dígitos.
Contudo, sob a ótica do indicador de crescimento proposto por Fleck (2001),
percebemos o efeito dos processos de aquisição sobre o crescimento da empresa.
Foram essas operações que representaram os principais saltos no crescimento da
organização no período.
Figura 6-1: Evolução da Receita/PIB e do PIB.
O papel dessas aquisições no crescimento da organização também pode ser
visto quando se analisa a contribuição de cada unidade de negócio para a receita
0
500000
1000000
1500000
2000000
2500000
3000000
0
0,1
0,2
0,3
0,4
0,5
0,6
0,7
0,8
0,9
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Receita Líquida/PIB Brasil vs. PIB Brasil
PIB ALL
ALL Argentina
Delara
Brasil Ferrovias
208
líquida em relação ao PIB brasileiro. Nota-se que o negócio rodoviário e a malha
argentina encolheram quando analisados de maneira independente, enquanto que o
negócio ferroviário brasileiro, especialmente a malha sul, foi responsável pela
manutenção do crescimento44. É possível, portanto, que o objetivo principal dessas
aquisições fosse gerar negócios para a malha ferroviária do Sul do Brasil muito mais
do que a entrada estratégica em novos setores. Uma das argumentações para a
aquisição da Delara era, por exemplo, evitar as pressões competitivas de
transportadores rodoviários dada a importância da ponta rodoviária na expansão do
negócio ferroviário.
Quanto à segunda pergunta, buscamos entender quais os efeitos da
trajetória adotada sobre os desafios à longevidade saudável. A trajetória e as
análises apresentadas, além das evidências coletadas, sugerem que foram
instituídos mecanismos relevantes para sugerir a propensão à longevidade saudável
da organização.
Primeiramente, a ALL parece ter desenvolvido um mecanismo que favorece
a manutenção da constante oferta de serviços empreendedores, sugerindo a
continuidade dos movimentos de expansão produtivos, necessários ao crescimento
contínuo. As evidências apontam para um papel relevante das práticas classificadas
dentro do sistema conhecido por “high commitment management” (Wood, 1996).
Alta parcela de remuneração variável, peer-review, ranking forçado, promoção da
responsabilidade do indivíduo, em conjunto com políticas de seleção e avaliação de
pessoal parecem ter sido incentivos suficientes para manter níveis consideráveis de
ambição e versatilidade.
A empresa também demonstrou capacidade de levantar financiamento,
mesmo quando a presença do grupo GP já estava mais diluída. Quando o cenário
era difícil e os recursos financeiros eram escassos, no pós-privatização, ela se
destacou ao conseguir extrair financiamento da própria operação mais rapidamente
que a maioria dos concorrentes, principalmente através da sua estratégia de
redução de custos e priorização de investimentos com retorno no curtíssimo prazo.
44 Não se tem informações sobre os critérios de rateio e classificação utilizados pela empresa o que poderia modificar as conclusões. Por exemplo, como as receitas de negócios intermodais são rateadas assim como as receitas relativas aos serviços de armazenagem. A Figura 5-17 apresentou a evolução comparativa das receitas dessas unidades de negócio.
209
Na fase seguinte, conseguiu antecipar-se a outros players do setor no acesso ao
financiamento via mercado de capitais. Sua posição financeira sólida serviu de apoio
para a aquisição da Brasil Ferrovias, controlada essencialmente por instituições
financeiras. Contudo, não ficou claro em que medida essa negociação poderia ter
tido um desfecho diferente se não houvesse a concessão da Ferrovia Norte-Sul para
potencial aquisição pela Vale.
Outro mecanismo relevante no crescimento do negócio logístico e das
cargas trazidas na terceira fase foi a incubação de novos negócios e o processo de
spin-off realizado a seguir pelos executivos idealizadores dos novos
empreendimentos. Em geral, tais empreendimentos estavam relacionados ao
negócio e potencializavam o negócio ferroviário, como a administração de terminais
intermodais e armazéns, mas que se tratavam de negócios com natureza de gestão
distinta (baseados, por exemplo, em ativos com características distintas de
administração como imóveis, completamente diferentes de locomotivas). A empresa
desenvolveu meios para selecionar novos funcionários ambiciosos, incentivar o
empreendedorismo entre eles, financiar tais empreendimentos e manter relações
comerciais que permitissem à ALL capturar o valor gerado pela identificação das
oportunidades sem a necessidade de desviar de seu negócio principal. Ao mesmo
tempo ajudava oferecendo oportunidades de crescimento profissional além daquelas
oferecidas pelo crescimento sozinho da ALL.
Também auxiliando no crescimento contínuo da organização estiveram os
mecanismos desenvolvidos para auxiliar no aprendizado organizacional. Parecem
ter sido relevantes sob esse aspecto a capacidade de absorver rapidamente as
práticas existentes no mercado, utilizando-se das relações construídas com sócios
ou através de consultorias e treinamentos, e as revisões anuais orçamentárias e de
definição de metas, que permitiam à organização incorporar em seus sistemas de
controle aspectos identificados como problemáticos.
Porém esses mecanismos revelaram impactos negativos para permitir que a
organização se mantenha mais próxima do pólo de autoperpetuação. Os efeitos
negativos identificados estão geralmente relacionados à capacidade de
aprovisionamento de recursos humanos e ao aprendizado.
O mecanismo de seleção natural começou a se provar inócuo para ofertar
recursos gerenciais qualificados em quantidade suficiente para suportar o
crescimento da organização. Os níveis de rotatividade de pessoal começaram a ser
210
reduzidos à medida que, possivelmente, a quantidade de recursos humanos
ofertados pelo mercado foi menor do que a quantidade necessária para manter o
sistema. A seleção natural também trouxe desvantagens para a capacidade de
renovação da organização. Uma vez que a firma seleciona e promove apenas
aqueles que estão alinhados à cultura da empresa, é difícil pensar como a
organização desenvolveria capacidade para conceber novos traços culturais.
A aquisição da Brasil Ferrovias não foi um fracasso, muito pelo contrário.
Contudo, ela se destaca na história da ALL não por ter sido um grande problema
que colocou em risco a sobrevivência da organização, mas como um claro indício de
um padrão de comportamento que, no longo prazo, poderia levar à falência do
modelo adotado. A falta de pessoal é possivelmente um dos principais motivos que
levaram ao não cumprimento da meta global e ao conseqüente cancelamento do
bônus em 2007, um dos principais mecanismos de atração e retenção de talentos.
Apesar das evidências sugerirem que a alta gerência adotou medidas para contornar
a situação, elas também sugerem que a insatisfação levou alguns dos futuros
talentos da organização a deixarem a empresa.
Não é possível concluir em que medida essa insatisfação está nos mesmos
níveis encontrados nos primeiros anos, contudo é possível perceber através dos
dados coletados que o sistema está sendo atacado sobre um de seus principais
pilares: a credibilidade. Ao mesmo tempo em que o mercado já não é capaz de
suprir a demanda e que a insatisfação se mantém pelo menos nos mesmos níveis
dos primeiros anos, a organização começa a flexibilizar suas exigências com relação
às expectativas sobre seus funcionários.
É possível que da Fase de Crescimento para Pós-Venda a diversidade
também tenha começado a cobrar o seu preço devido à separação que teve início
entre quem está no “Monte Olímpio” e os que estão tentando alcançá-lo. A Fase do
Crescimento é marcada pela criação do encantamento pela cultura GP e a oferta de
recursos humanos era acima da demanda. Além disso, não existia na empresa um
ambiente social bem determinado, com referenciais de poder e a maior disposição
para assumir riscos dos jovens estava presente em todas as áreas e níveis. À
medida que o tempo passou e as pessoas alcançaram posições importantes,
começou a existir também muito mais coisas a se perder: bônus anual, poder,
status, hierarquia. Isso levou a uma mudança de comportamento dos funcionários,
que passam a se “entrincheirar” em suas funções, buscando manter essas
211
conquistas ao invés de lutar por mais crescimento. Essa mudança de atitude dos
funcionários constrói mecanismos para manter o status quo, separando o “Monte
Olímpio” dos “mortais”. Formam-se coalizões em um movimento “orgânico”, além
das próprias coalizões que surgem a partir das várias aquisições.
O constante incentivo aos spin-offs provocava o efeito adverso de retirar da
organização recursos humanos qualificados. Por maior que fosse a fidelidade
desses novos donos de empresa à ALL, nos eventos identificados não houve casos
onde a ALL pode recuperar o capital humano perdido. Há pelo menos três possíveis
candidatos a gerentes de operações ferroviárias que teriam sido fundamentais para
evitar as falhas que levaram ao não cumprimento das metas anuais estabelecidas
durante a aquisição da Brasil Ferrovias. Os spin-offs eram soluções que ajudavam a
solucionar desafios do crescimento da ALL no curto prazo, mas prejudicavam ao
reduzir a folga de recursos humanos de longo prazo.
Outro possível efeito negativo para a longevidade é a baixa capacidade de
inovação possivelmente causada pela preferência pela busca de soluções externas
ao mesmo tempo em que são favorecidas as soluções suficientes ao invés da busca
pela menor solução e pela criação de valor. Um comportamento desse gênero é
mais plausível na situação crítica pós-privatização, mas a década de forte
crescimento vivenciada pela ALL deveria permitir que a empresa fortalecesse sua
capacidade de inovar e não o contrário, conforme apontam algumas evidências.
Não existem evidências de que, com a mudança do contexto na Fase do
Pós-Venda, o modelo de gestão adotado na Fase de Reestruturação e Crescimento
tenha sido repensado. Isso pode sugerir riscos à longevidade no longo prazo uma
vez que o comportamento “apagando incêndio” não se justificaria. Dado que a
cultura ALL foi forjada baseada no modelo GP de gestão de empresas seria
ponderável em que medida esse modelo é capaz de construir as competências
necessárias em uma empresa baseada em crescimento orgânico. Os casos ditos de
sucesso destacados pelo grupo GP, em geral, envolvem uma estratégia de
crescimento por aquisições e consolidação de mercado, onde a empresa reutiliza o
conhecimento que possui sobre aquisições e turnaround para ter ganhos de capital
entre a compra do ativo depreciado e a valorização após o turnaround.
A Inbev surge da aquisição inicial da Brahma que posteriormente adquire a
Antarctica, criando a Ambev. Em seguida a Ambev inicia um processo de
consolidação na América Latina e compra a maior cervejaria argentina. Alguns anos
212
depois se funde com a Interbrew, uma das maiores empresas de bebidas da Europa,
e constrói uma empresa global. Atualmente a Inbev, fruto dessa última fusão, está
em processo de integração com a Anhauser-Busch, a maior cervejaria americana.
Já a Lojas Americanas seguiu processo semelhante, ampliando sua participação
principalmente em empresas de varejo eletrônico, como Submarino. A ALL parece
seguir esse mesmo caminho. Apesar da expansão da ALL por aquisições estar
severamente limitada na região, o fundo de investimento 3G, controlado pelo trio
fundador do grupo GP, adquiriu uma parcela considerável da CSX, uma das
principais ferrovias americanas, o que leva a conjecturas sobre as possibilidades de
integração futura desses negócios, aos moldes do caso Ambev-Interbrew.
Toda empresa tem a possibilidade de buscar a sua renovação. A GE, por
exemplo, tinha a possibilidade de se manter nos mercados maduros e estáveis nas
quais ela detinha dominância. Contudo, buscou também ter posições em mercados
em crescimento que detinham sinergias com os negócios existentes. Hoje ela atua
na fabricação e manutenção de turbinas de aviões e equipamentos médicos. Vários
autores (Levitt, 1960; Chandler, 1977; Roberts, 1956) destacaram como as ferrovias
tiveram dificuldades em conceber novas formas de negócio. Portanto, em que
medida as empresas transformadas pelo grupo GP teriam condições de sobreviver
sem a capacitação de renovar-se?
O mundo viu nas décadas de 70 e 80 a falência de vários modelos de
crescimento baseado em aquisições para a formação de holdings onde se
mantinham negócios que não desfrutavam de qualquer sinergia entre si. Durante
alguns anos o modelo era eficiente, mas essas empresas acabavam em situações
críticas fragmentando-se. Casos mais notórios que podem ser destacados tratam da
BAT (British American Tobbaco) e Greyhound. Eram modos de crescimento
desestruturados que não davam a devida importância ao desafio da integração.
6.1 SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS
Uma das principais limitações desta pesquisa está na dificuldade em se
separar os efeitos das mudanças do ambiente no qual a organização está inserida
das ações por ela empreendidas. No estudo que originou o modelo proposto por
Fleck (2006), a autora optou por fazer uma análise comparativa de duas
organizações que tiveram origens semelhantes, porém destinos completamente
diferentes. Enquanto a GE se tornou um grande sucesso global, a Westinghouse,
213
também criada no final do século XIX, não conseguiu sobreviver ao final do século
XX. Fleck argumentou que as ações empreendidas pelas duas organizações ao
longo de sua história formaram competências essenciais para a sobrevivência
saudável na primeira enquanto que a segunda falhou em vários momentos.
Sob o ponto de vista de contribuição para a teoria dos arquétipos uma
discussão levantada pelo caso estudado é a diferença de importância que cada
desafio teve para a mudança de posição no continuum. Em cada fase diferentes
desafios tiveram impactos diferentes sobre a propensão à longevidade e sua saúde.
Uma pesquisa semelhante ao caso original poderia ser empreendida
analisando casos brasileiros. No pós-privatização, a MRS e as ferrovias
administradas diretamente pela Vale (Carajás, Vitória-Minas e a FCA) podem ser
entendidos como casos de sucesso. Já os casos que poderiam ser considerados de
fracasso são: todas as concessões da holding Brasil Ferrovias, adquirida pela ALL
após a entrada em processo falimentar; Ferropar, devolvida ao Estado; e a CFN,
deficitária ainda hoje. Contudo, o histórico da indústria ferroviária brasileira não
oferece um histórico amplo para duas organizações com destinos diferentes. Até
mesmo para a própria ALL esse curto histórico já foi um empecilho uma vez que
dificultou a identificação da formação de mecanismos e de seus efeitos sobre as
respostas aos desafios. O autor acredita que essa análise tenderia muito mais a
destacar os efeitos das políticas públicas e os erros de administração do que
efetivamente os aspectos positivos das administrações instauradas.
Outro empecilho à comparação de casos brasileiros é a característica
societária das concessões. Diferentemente do que é encontrado nos Estados Unidos
e em grande parte da Europa, no Brasil as ferrovias são essencialmente controladas
pelos seus principais clientes. O minério de ferro é responsável pela maior parte do
volume transportado por ferrovias (em 2007 representou quase 75% do volume
transportado) e as ferrovias que o transportam são controladas pela Vale, que
representa um percentual significativo da produção nacional. A ALL é a única
ferrovia independente sob esse ponto de vista.
Essa pesquisa contribuiu principalmente ao colocar luz sobre um dos vários
casos de turnaround que são destacados na mídia especializada em gestão sobre a
“mística” do Grupo GP Investimentos. Ainda está longe de conseguir explicar
detalhadamente os mecanismos que justificam o sucesso de suas operações ou
mesmo das empresas fundadas e administradas por Jorge Paulo Lemann. Existem
214
também outros exemplos já estudados relacionados à “cultura GP” como a pesquisa
conduzida por Rodrigues (2005), na qual analisou o caso Lojas Americanas também
sobre a perspectiva dos desafios propostos por Fleck, em uma versão anterior45. Há
outros casos de sucesso das aquisições do grupo GP que podem contribuir para
uma análise multi-caso como a Telemar e a Inbev. Analisando transversalmente tais
processos de aquisição e transformação seria possível identificar mais claramente
semelhanças e diferenças não só nas soluções e os modelos adotados, mas
também sobre seus efeitos no sucesso e na longevidade saudável das empresas.
As informações sobre o grupo GP levantam a hipótese sobre a importância
do processo de seleção de alvos para aquisições. Os casos citados foram em geral
sobre indústrias de baixo risco tecnológico. O grupo destaca até mesmo que esse
fator é relevante na sua estratégia de aquisição. Seria, portanto, curioso, descobrir
quais seriam os efeitos de seus modelos sobre indústrias diferentes. A comparação
com casos de fracasso, como a aquisição da Artex, a rede de supermercados ABC e
o parque de diversões Hopi Hari também poderia trazer maiores detalhes sobre os
efeitos positivos e negativos dos valores e crenças dessa organização.
O GP se destaca no Brasil por ser um dos poucos bancos de investimentos
existentes no país com foco fundamental em operações de equity. Uma
possibilidade de estudo futuro poderia atuar na análise de outros bancos de
investimento nacionais com operações de aquisição e turnaround ou mesmo em
operações independentes, executadas pelas próprias empresas.
Outra fonte para possíveis estudos na área de crescimento utilizando o
framework de Fleck (2006) seria a organização que inspirou a criação do Banco
Garantia, o Goldman Sachs. Trata-se de um banco com mais de 100 anos de
história bastante relevante no mercado americano, precursor de diversas práticas
gerenciais no mercado financeiro e que recentemente teve sérios problemas devido
à alta exposição ao risco durante a crise econômica de 2007. Existem inúmeros
livros com relatos relevantes sobre a cultura e o modelo de gestão. O livro “Goldman
Sachs: A Culture of Success”46 seria um ponto de partida interessante.
45 O artigo de 2006 ainda não havia sido publicado e Rodrigues se baseou no texto original de Fleck em seu doutorado.
46 Goldman Sachs: The Culture of Success, Por Lisa Endlich, Doug Campbell, Coleen Degnan-Veness. Publicado por Pearson Education, 2001.
215
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221
GLOSSÁRIO
Asset Stripping – tradução não encontrada. Trata-se da venda de ativos com retorno
de longo prazo ou do desinvestimento na formação desses ativos, como
investimentos em P&D, novos produtos, etc. O objetivo com essa venda é
disponibilizar recursos financeiros de curto prazo.
Alavancagem financeira – Relação entre o nível de endividamento e a capacidade
de pagamento das dívidas. Em geral relacionada à disponibilidade de ativos,
também se considera a geração de caixa como fator relevante na avaliação dessa
capacidade.
Alavancagem operacional – Relação entre custos fixos e custos variáveis. Quanto
maior a proporção de custos fixos para variáveis, mais alavancada está a empresa.
Benchmark – refere-se a algum indicador, processo ou método tido como o mais
avançado existente dentro de um escopo.
Bitola – distância específica entre os trilhos de uma via férrea. Essa distância
determina o uso de equipamentos e tecnologias, além de certas características do
tráfego. No Brasil as mais comuns são: métrica (1000 mm); larga (1600 mm); e
internacional/padrão (1435 mm).
Carga de retorno – carga transportada no sentido oposto ao utilizado pelo fluxo
principal. Exemplo: uma empresa contrata uma transportadora para levar a soja da
fazenda até o porto. A empresa por sua vez busca um cliente que esteja querendo
levar, digamos, adubo, do porto para a fazenda.
Commodity – produto com nenhuma ou baixíssima diferenciação entre produtores e
fabricantes.
Conglomerado – Firmas que controlam ao mesmo tempo negócios completamente
distintos onde cada negócio segue com uma administração independente, enviando
seus lucros para o escritório central.
Downsizing – estratégia de redução de pessoal em larga escala.
Downstream – refere-se às atividades presentes no início de uma cadeia de
produtiva, em oposição ao upstream.
Due diligence – em português, diligência prévia. É o processo segundo o qual um
potencial adquirente avalia o seu alvo e respectivos ativos, quando tem a intenção
de proceder a uma aquisição.
Folga Organizacional – Organizational slack is that cushion of actual or potential
222
resources which allows an organization to adapt successfully to internal pressures for
adjustment or to external pressures for change in policy, as well as to initiate
changes in strategy with respect to the external environment. (Bourgeois III, 1981).
Frota própria – denominação utilizada para classificar o transporte realizado por
caminhões pertencentes e administrados pela empresa dona dos produtos
transportados.
Holding – estrutura organizacional adotada por grupos empresariais onde uma
empresa central detém controle sobre as ações de outras empresas, onde as
segundas são responsáveis pela fabricação de produtos e/ou oferta de serviços.
Não é necessário que a administração dos negócios seja descentralizada.
Hub – local onde vários fluxos de transporte se encontram para conectar rotas e
intercambiar cargas. Faz parte de um paradigma de método de distribuição que
sugere a consolidação de cargas para tornar o transporte mais eficiente.
Intermodal (transporte) – transporte de cargas que utiliza diferentes meios de
transporte, porém cada um administrado por uma empresa diferente. Compara-se ao
transporte unimodal, que adota um único meio, e o multimodal, que utiliza diferentes
meios, porém com um único responsável pela carga.
Leverage Buyout (LBO) - em português, compra alavancada (tradução livre). É o
processo de aquisição de empresas onde a firma compradora contrai um ato volume
de empréstimos para financiar a compra.
Management Buyout (LBO) - em português, compra pela gerência (tradução livre). É
o processo de aquisição de empresas onde os principais executivos da companhia
se associam e fazem uma oferta para a compra da companhia na qual trabalham.
Material rodante – equipamentos utilizados no transporte ferroviário, como vagões e
locomotivas.
Multimodal (transporte) – ver intermodal.
Obra de arte – no contexto da indústria ferroviária refere-se a construções
complexas como pontes, túneis e viadutos.
Passagem de nível – Local da linha férrea que cruza com uma via rodoviária.
Peer-review – em português, revisão por pares. É quando a avaliação de
desempenho se baseia em empregados de mesmo nível hierárquico.
Ponta – no contexto do transporte de cargas, refere-se à parte inicial e/ou final de
um fluxo. Por exemplo, se não houver um terminal ferroviário de carga na planta de
produção do embarcador, será necessário contratar uma ponta rodoviária para levar
223
a carga até a estação ferroviária mais próxima.
Prêmio – no contexto da privatização, prêmio diferença entre o lance final e o valor
mínimo exigido.
Private Equity – Instituição financeira que investe na compra de controle acionário de
empresas com o objetivo de revendê-la após um período e obter lucro com a
valorização de suas ações, em geral após implantar modificações na sua gestão
e/ou estratégia.
Reestruturação – o mesmo que turnaround. É em geral considerado quando uma
organização passa por: reposicionamento estratégico, balanceamento de dívida e
patrimônio líquido, troca de controle.
Sistema de licenciamento de trens – procedimentos pelos quais as ferrovias
coordenam o uso compartilhado de trechos ferroviários por diferentes comboios.
Spin-off – Processo no qual uma área de negócio se torna uma firma independente
da empresa a qual fazia parte com o apoio da última. Esse apoio pode surgir da
transferência de tecnologia, equipamentos ou do fato de ser o primeiro cliente.
Spin-out – semelhante ao spin-off, porém refere-se à uma nova empresa formada a
partir de um grupo funcionários da empresa anterior mas que em geral não possuem
o mesmo apoio que as empresas criadas em spin-offs.
Spot (contratos) – modo de contratação de serviço de transporte no qual consta
apenas um único fluxo a ser realizado. Opõe-se a modalidades de contratos mais
longas e contratos take-or-pay.
Spread bancário – diferença entre a taxa oferecida em captações do governo e a
taxa oferecida pelos bancos no empréstimo.
Stakeholder – organizações e grupos de pessoas que possuem algum tipo de
interesse nas operações da empresa.
Stock options – formato de remuneração variável que paga aos funcionários através
de cotas societárias.
Super-estrutura – no contexto da indústria ferroviária, parte do projeto das estradas
de ferro responsável pela construção do caminho em si, como os trilhos. Difere da
infra-estrutura, parte da obra que sustenta a super-estrutura.
Tag along – termo de contrato de venda de ações onde o emissor garante a
recompra no caso da emissora sofrer um processo de aquisição da empresa nos
mesmos termos da compra da empresa.
Tagging – tecnologia que consiste no uso de chips acoplados aos vagões que
224
emitem informações via rádio para receptores ao longo da linha.
Takeover – o mesmo que compra, normalmente associada a compra de empresa.
Ação pela qual uma organização adquire outra.
Takeover hostil – é a compra de uma organização sem o consentimento da alta
gestão da companhia adquirida. O comprador faz uma oferta direta aos acionistas
da companhia alvo.
take-or-pay (contratos) – modo de contratação de serviço de transporte no qual o
embarcador assume pagar uma parcela mínima ao transportador mesmo que não
disponibilize a carga e o transportador assume pagar uma parcela mínima ao
embarcador caso não cumpra as metas de disponibilidade de serviço.
Transbordo – ato de transferir carga de um equipamento de transporte para outro,
podendo ser entre equipamentos semelhantes ou não.
Transit time – em português, tempo de trânsito. É o tempo necessário para percorrer
determinado trecho ferroviário.
Turnaround – é o processo pelo qual uma organização reverte um declínio de
desempenho que coloca em risco a vida da firma. Termo equivalente a
reestruturação.
Turnover – relação entre a quantidade de unidades que entram e que saem em um
determinado sistema. Por exemplo, o turnover de empregados, indica a intensidade
com que se renova o quadro de pessoal. O mesmo pode ser usado para firmas em
uma determinada indústria.
Unimodal (transporte) – ver intermodal.
Unit – tipo de ação emitido por uma empresa que agrupa ações ordinárias e
preferenciais.
Upstream – refere-se às atividades presentes no final de uma cadeia produtiva, em
oposição ao downstream.
Usuário cativo – no contexto do setor ferroviário é aquele cliente que tem forte
dependência do transporte por ferrovias para tornar seu negócio viável.
Via permanente – equipamentos da via férrea, como trilhos e dormentes.
Fundo de investimento, , traders,
225
ANEXOS
ANEXO I – RESPOSTAS ESTRATÉGICAS A PRESSÕES INSTITUCIONAIS
Extraído de (Oliver, 1991)
Respostas Estratégicas
Aceitação
Adequação – é definido como uma obediência ou incorporação, consciente,
de valores, normas ou requerimentos institucionais;
Hábito – refere-se à aderência cega ou inconsciente a regras ou valores
preconcebidos ou tidos como verdade;
Imitação – refere-se à imitação consciente ou inconsciente de modelos
institucionais.
Comprometimento
Balancear partes interessadas – refere-se à acomodação da demanda de
vários constituintes em resposta a pressões e expectativas institucionais;
Barganha – envolve o esforço da organização em extrair alguma concessão
de um constituinte externo em suas demandas ou expectativas;
Táticas de pacificação – uma organização que aplica o uso de táticas de
pacificação tipicamente cria um pequeno nível de resistência às pressões
institucionais, mas devota a maior parte de sua energia para aliviar ou aplacar a
fonte ou as fontes institucionais que resistiu.
Evasão
Fuga – a organização pode sair do domínio no qual as pressões são
exercidas ou alterar significativamente seus objetivos, atividades ou domínios para
evitar a necessidade de conformidade;
Prevenção – Refere-se às tentativas de uma organização em reduzir a
extensão na qual ela é inspecionada ou avaliada separando suas atividades técnicas
do contato externo;
Táticas de ocultação – Envolve a maquiagem das não conformidades por
trás de uma fachada de aceitações.
226
Confrontação
Atacar – organizações atacantes tentam derrubar, diminuir ou denunciar
veementemente valores institucionais e os constituintes externos que as expressam;
Desafiar – organizações que confrontam pressões institucionais estão na
ofensiva em desafiar essas pressões e podem fazer da sua insurreição uma virtude;
Ignorar – ignorar regras e valores institucionais é uma opção estratégica que
as organizações têm maior probabilidade de exercer quando o potencial para reforço
externo é percebido como baixo ou quando os objetivos internos divergem ou
entram em conflito dramaticamente com os valores ou requisitos institucionais.
Manipulação
Controlar – são esforços específicos para estabelecer poder e dominância
sobre constituintes externos que estão aplicando pressão sobre a organização;
Cooptar – uma organização pode, por exemplo, tentar persuadir um
constituinte institucional para fazer parte da organização ou de seu conselho de
diretores;
Influenciar – táticas de influência podem ser mais genericamente
direcionadas para crenças e valores institucionalizados ou para definições e critérios
de práticas aceitáveis ou desempenho.
Dimensões preditoras das respostas estratégicas
Causa (por que) – a causa das pressões institucionais refere-se à
racionalidade, grupo de expectativas ou objetivos por trás das pressões:
Adequação social – são pressões para que as operações da organização
sejam aceitas pelas sociedades na qual está inserida (organizações profissionais,
governo, etc.);
Adequação econômica – são as pressões exercidas para que as
organizações sejam economicamente responsáveis, trazendo retorno adequado
para a quantidade de recursos investidos;
Constituinte (quem) – a ordem normativa coletiva do ambiente não é
necessariamente unitária ou coerente. As organizações confrontam com pressões
conflitantes que limitam a capacidade da organização em aceitar tais pressões:
Multiplicidade – grau de multiplicidade de expectativas conflitantes exercidas
sobre a organização;
227
Dependência – grau de acesso ou liberdade em se relacionar com outros
atores para suprir as demandas da organização por recursos ou legitimidade;
Conteúdo (o que) – avaliação das características ou especificações da
quanto a sua aderência e impacto na organização;
Consistência – trata-se da compatibilidade da pressão com os objetivos
internos da organização;
Restrições – perda da liberdade de ação (uso de recursos, escolha de
caminhos, seleção de serviços) decorrente da aceitação da pressão;
Controle (como) – descreve os meios pelos quais as pressões são exercidas
sobre a organização;
Coerção – imposição de aceitação através da autoridade;
Difusão – trata-se do grau de alcance da aceitação voluntária sobre normas,
valores e procedimentos;
Contexto (qual) – características do ambiente no qual a organização está
inserida;
Incerteza – grau no qual estados futuros do ambiente não podem ser
antecipados ou previstos com precisão;
Interconectividade – refere-se à densidade de relações inter-organizacionais
entre ocupantes de um campo organizacional.
228
ANEXO II – LISTA DE DIMENSÕES DE ANÁLISE
Tabela 6-1: Lista de Dimensões para Análise.
GRUPO SUB_GRUPO DIMENSAO Positivo Negativo COMENTARIO Referência
Movimentos de
expansãoCaracterísticas Aplicação de folga Produção de folga Desperdício
Trata-se dos movimentos de expansão que criam ou fazem parte de um círculo virtuoso de
crescimento, onde a expansão gera novas oportunidades de expansão.
(Fleck, 2006);
(Chandler, 1977)
Movimentos de
expansãoMotivação
Produtividade e
eficiênciaGeração de folga Consumo de folga
Trata-se dos movimentos de expansão (aumento de eficiência e produtividade) que liberam
recursos operacionais para que sejam investidos em atividades de longo prazo.
(Fleck, 2006);
(Chandler, 1977)
Movimentos de
expansãoMotivação
Internalização de
transações (vertical)
Cria e/ou mantém
valor (híbrida)
Não cria ou mantém
valor (nil)
No contexto do desafio empreendedor, trata-se dos movimentos de expansão com o objetivo
de aumentar o valor criado pela empresa, onde os seus mecanismos de coordenação permitem
aumento da eficiência que geram ganhos superiores aos investimentos necessários ou onde
garantem um fluxo contínuo para a operação.
(Fleck, 2006);
(Chandler, 1977)
Movimentos de
expansãoMotivação
Novos mercados e
produtos
(diversificação)
Cria valor
(produtiva)Não cria valor (nil)
No contexto do desafio empreendedor, trata-se dos movimentos de expansão com o objetivo
de aumentar o valor criado pela empresa, seja através: (1) ganhos de escala, escopo e
velocidade; (2) redução dos custos unitários pela melhor utilização da infra-estrutura
administrativa. Ou seja, deve existir sinergias entre os negócios atuais e os novos.
(Fleck, 2006);
(Chandler, 1977)
Movimentos de
expansãoMotivação
Mercados e produtos
correntes (horizontal)
Mantém valor
(defensiva)Perde valor (nil)
No contexto do desafio empreendedor, trata-se dos movimentos de expansão com o objetivo
de manter o valor criado pela empresa protegendo os mercados onde atua.
(Fleck, 2006);
(Chandler, 1977)
Serviços produtivos Gerenciais Experiência Longa CurtaTrata-se dos conhecimentos adquiridos pelo corpo gerencial com relação ao negócio e as
relações internas do grupo de administração.Penrose, 1980
Serviços produtivos GerenciaisRelacionamentos
interpessoaisFortes Fracos
Trata-se do tempo e da proximidade com que gestores trabalham juntos. Quanto mais tempo e
mais próximos, mais forte a relação, levando a um maior nível de confiança e cooperação,
condição necessário para um planejamento extenso.
Penrose, 1980
Serviços produtivos Gerenciais Planejamento
Disponível e
aplicado à
expansão
Ausente e/ou não
aplicado para a
expansão
Refere-se a disponibilidade de recursos gerenciais para o desenvolvimento dos planos nessários
para a realização de movimentos estratégicos, além da operação diária.Penrose, 1980
Serviços produtivos Empreendedores AmbiçãoMaximização e
lucro consistente
Estabilidade e/ou
lucro pontual
Trata-se da vontade constante em se alcançar niveis de lucratividade maiores do que aqueles
até então alcançados, mesmo que para tanto seja necessário aumentar o esforço, o risco ou o
investimento. Good-will builders vs Empire-builders.
Penrose, 1980
Serviços produtivos EmpreendedoresLevantamento de
financiamento
Financiamento
quando recursos
escassos
Falta de
financiamento
Trata-se da capacidade de levantar novos investimentos que permita alcançar um tamanho e
posição onde possui acesso mais fácil. Envolve também a habilidade em criar confiança.Penrose, 1980
Serviços produtivos EmpreendedoresJulgamento
empresarial
Consciência e
redução de riscos e
incertezas
Ignorância sobre
riscos e incertezas
Trata-se da capacidade da organização em coletar informações para ser capaz de considerar os
efeitos dos riscos e incertezas sobre as expectativas da firma. É somente parcialmente uma
questão de personalidade de indivíduos.
Penrose, 1980
Serviços produtivos Empreendedores Versatilidade Visão e imaginação Cegueira
Trata-se da capacidade de investigar caminhos para a expansão onde não é óbvio para a
maioria das pessoas. Capacidade de investigar novos serviços provenientes de recursos
produtivos já existentes.
Penrose, 1980
229
PressõesNegativas e/ou
inconsistentesFora de controle Ajuste Outras
Trata-se das pressões institucionais que, caso fossem assimiladas pela organização, entrariam
em conflito com seus próprios objetivos (consistência) ou trariam um efeito negativo, seja para
a legitimidade, para a eficiência econômica ou para o seu grau de autonomia. Nesse contexto, a
resposta adequada da organização depende dos fatores: multiplicidade, dependência, poder
coercitivo, difusão, interconectividade e incerteza.
(OLIVER, 1991)
PressõesNegativas e/ou
inconsistentesEquilíbrio Neutralizar Outras
Trata-se das pressões institucionais que, caso fossem assimiladas pela organização, entrariam
em conflito com seus próprios objetivos (consistência) ou trariam um efeito negativo, seja para
a legitimidade, para a eficiência econômica ou para o seu grau de autonomia. Nesse contexto, a
resposta adequada da organização depende dos fatores: multiplicidade, dependência, poder
coercitivo, difusão, interconectividade e incerteza.
(OLIVER, 1991)
PressõesNegativas e/ou
inconsistentesSob controle Moldar Outras
Trata-se das pressões institucionais que, caso fossem assimiladas pela organização, entrariam
em conflito com seus próprios objetivos (consistência) ou trariam um efeito negativo, seja para
a legitimidade, para a eficiência econômica ou para o seu grau de autonomia. Nesse contexto, a
resposta adequada da organização depende dos fatores: multiplicidade, dependência, poder
coercitivo, difusão, interconectividade e incerteza.
(OLIVER, 1991)
Serviços de
navegação
Visibilidade
(monitoramento)Pressões Consciência Inconsciência É a capacidade da organização perceber as pressões que está sofrendo. (OLIVER, 1991)
Serviços de
navegação
Visibilidade
(monitoramento)Processos
Interpretação dos
efeitos
Má ou incorreta
interpretação
É a capacidade da organização de conhecer os processos institutionais e compreender as
conseqüências da aceitação ou rejeição das pressões que sofre.(OLIVER, 1991)
Serviços de
navegação
Visibilidade
(monitoramento)Antecipação À priori À posteriori É a capacidade da organização de identificar temporalmente a ocorrência de pressões. (OLIVER, 1991)
Serviços de
navegaçãoCapacidade Independência
Independência dos
atores
Dependência dos
atoresÉ o grau de dependência que a organização possui com relação aos seus stakeholders. (OLIVER, 1991)
Serviços de
navegaçãoCapacidade Conectividade Baixo grau Alto grau É o quanto a organização está conectada ao seu ambiente. (OLIVER, 1991)
Serviços de
navegaçãoCapacidade Autonomia Alto Baixo É o grau de autonomia que a organização possui para tomar decisões sobre a sua trajetória. (OLIVER, 1991)
230
Serviços produtivos Gerenciais Experiência Longa CurtaTrata-se dos conhecimentos adquiridos pelo corpo gerencial com relação ao negócio e as
relações internas do grupo de administração.(PENROSE, 1980)
Serviços produtivos GerenciaisRelacionamentos
interpessoaisFortes Fracos
Trata-se do tempo e da proximidade com que gestores trabalham juntos. Quanto mais tempo e
mais próximos, mais forte a relação, levando a um maior nível de confiança e cooperação,
condição necessário para um planejamento extenso.
(PENROSE, 1980)
Serviços produtivos Gerenciais Planejamento
Disponível e
aplicado à
expansão
Ausente e/ou não
aplicado para a
expansão
Refere-se a disponibilidade de recursos gerenciais para o desenvolvimento dos planos nessários
para a realização de movimentos estratégicos, além da operação diária.(PENROSE, 1980)
Oferta de recursos
gerenciaisDisponibilidade Sucessão Abrangente
Inexistente ou
limitada(PENROSE, 1980)
Oferta de recursos
gerenciaisDisponibilidade Retenção Focada
Inexistente ou
desfocada
Permite a sustentação das vantagens competitivas alcançadas, pois os gestores são recursos
valiosos, imperfeitamente imitáveis e imperfeitamente substituíveis.(FLECK, 2006)
Oferta de recursos
gerenciaisDisponibilidade Antecipação Constante Limitada
Prover a organização com um fluxo contínuo de serviços produtivos, reduzindo a incerteza e a
dependência do ambiente em prover recursos valiosos.(FLECK, 2006)
Oferta de recursos
gerenciaisQualidade
Desenvolvimento e
formaçãoAbrangente
Inexistente ou
limitada
Trata-se da criação dos recursos adequados à organização, com experiência no negócio e nas
relações interpessoais existentes na firma.(FLECK, 2006)
Oferta de recursos
gerenciaisQualidade Avaliação Abrangente
Inexistente ou
limitada(FLECK, 2006)
Oferta de recursos
gerenciaisQualidade
Renovação e
intercâmbioConstante Limitada
Trata-se da manutenção da diversidade, da heterogeneidade dos recursos gerenciais,
permitindo agregar novas competências.(FLECK, 2006)
231
Resolução de
problemasAmplitude da busca
Aprovisionamento de
RHAmpla Reduzida
Envolve a busca por soluções em outras áreas além da diretamente relacionada ao problema,
específico ao Desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAmplitude da busca Empreendedorismo Ampla Reduzida
Envolve a busca por soluções em outras áreas além da diretamente relacionada ao problema,
específico ao Desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAmplitude da busca Gestão da diversidade Ampla Reduzida
Envolve a busca por soluções em outras áreas além da diretamente relacionada ao problema,
específico ao Desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAmplitude da busca
Navegação no
AmbienteAmpla Reduzida
Envolve a busca por soluções em outras áreas além da diretamente relacionada ao problema,
específico ao Desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAprendizado
Aprovisionamento de
RHOrganização Indivíduo
Refere-se ao locus final do resultado do processo de resolução de problema, com posterior
explicitação do conhecimento e disseminação.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAprendizado Empreendedorismo Organização Indivíduo
Refere-se ao locus final do resultado do processo de resolução de problema, com posterior
explicitação do conhecimento e disseminação.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAprendizado Gestão da diversidade Organização Indivíduo
Refere-se ao locus final do resultado do processo de resolução de problema, com posterior
explicitação do conhecimento, disseminação e uso.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasAprendizado
Navegação no
AmbienteOrganização Indivíduo
Refere-se ao locus final do resultado do processo de resolução de problema, com posterior
explicitação do conhecimento e disseminação.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasForma da busca
Aprovisionamento de
RHSistemática Aleatória
Requer procedimentos sistemáticos de recolhimento de informação, análise (incluindo
definição de critérios de decisão), tomada de decisão e implementação, especifícos ao desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasForma da busca Empreendedorismo Sistemática Aleatória
Requer procedimentos sistemáticos de recolhimento de informação, análise (incluindo
definição de critérios de decisão), tomada de decisão e implementação, especifícos ao desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasForma da busca Gestão da diversidade Sistemática Aleatória
Requer procedimentos sistemáticos de recolhimento de informação, análise (incluindo
definição de critérios de decisão), tomada de decisão e implementação, especifícos ao desafio.(FLECK, 2006)
Resolução de
problemasForma da busca
Navegação no
AmbienteSistemática Aleatória
Requer procedimentos sistemáticos de recolhimento de informação, análise (incluindo
definição de critérios de decisão), tomada de decisão e implementação, especifícos ao desafio.(FLECK, 2006)
232
IntegraçãoCapacitações em
coordenaçãoOrganização
IntegraçãoCapacitações em
coordenaçãoResolução de conflitos Convergente Divergente
Refere-se a forma como a organização resolve seus conflitos e rivalidades, permitindo ou não a
manutenção de direcionamentos divergentes sobre aspectos relevantes.(FLECK, 2006)
IntegraçãoCapacitações em
coordenaçãoEstruturas integradoras Existência Não existência
Formação e dedicação de recursos para funções organizacionais tais como: comitês
permanentes, forças-tarefa, departamentos de integração (aquisições, processos, recursos).(FLECK, 2006)
IntegraçãoCapacitações em
coordenação
Qualidade da
autonomia
Autonomia na
ponta e
responsabilidade
no topo
Autonomia no topo
ou responsabilidade
na ponta
Trata-se da do grau de liberdade e abrangência com que as unidades da organização tomam
decisões, dependendo da distância para o topo, do grau de independência de suas escolhas e
da responsabilidade sobre a expansão do negócio.
(FLECK, 2006);
(PENROSE, 1980)
IntegraçãoFortalecimento de
relacionamentosCompartilhamento Unicidade Duplicidade
Uso compartilhado (dividido entre) de recursos homogêneos diversos tais como: de instalações,
pessoal, produtos e serviços que a empresa oferece, aspectos da cultura (mitos), reputação e
serviços internos.
(FLECK, 2006)
IntegraçãoFortalecimento de
relacionamentos
Intercâmbio e
combinação
Preservação /
inovaçãoEliminação
Intercâmbio (troca/alocação temporária) de recursos heterogêneos diversos tais como: de
instalações, pessoal, produtos e serviços que a empresa oferece, aspectos da cultura (mitos),
percepção de ameaças, reputação e serviços internos.
(FLECK, 2006)
IntegraçãoFortalecimento de
relacionamentosHomogeneização
Padronizar recursos (cultura, processos, equipamentos, etc) obtendo ganhos de escala, escopo
e velocidade, além de torná-los raros e difíceis de imitar devido às idiossincrasias inerentes a
sistemas sociais complexos.
(FLECK, 2006)
233
ANEXO III – ADAPTAÇÕES AO SISTEMA DE REGISTRO DE DADOS
O cadastramento das proposições é o primeiro passo e refere-se ao trabalho
de destacar da revisão bibliográfica as proposições teóricas que posteriormente
foram utilizadas para comparação com os fatos e relatos levantados. Uma das
razões que levaram ao uso do software supracitado é a possibilidade de partir de um
referencial teórico de proposições já utilizado em outro estudo, permitindo não só a
comparação entre casos, mas também agilizando o trabalho de análise, uma vez
que o trabalho de revisão de literatura já estaria bem classificado, contribuindo para
a formação de um método de pesquisa mais estruturado.
Contudo, esses benefícios esperados não se provaram realizáveis na atual
versão do sistema. As proposições definidas no estudo de Dantas (2007) foram
feitas segundo a sua visão e interpretação das teorias de referência. Além disso, os
casos estudados são bastante diferentes sob diversos aspectos e, dessa maneira, o
foco dessas extrações da literatura foi diferente.
Uma diferença significativa de visão entre os dois métodos é que este
estudo tem a intenção de, na etapa de análise, conseguir registrar separadamente
classificação dos fatos e proposições teóricas. No estudo de Dantas (2007), por
exemplo, duas das proposições teóricas cadastradas no sistema eram “Aquisição
Horizontal” e “Versatilidade”. Na visão desse autor a aquisição horizontal não
constitui uma proposição teórica per se. O fato de a organização realizar uma
aquisição horizontal não implica necessariamente em ter tido uma resposta negativa
ou positiva a qualquer dos desafios, segundo a literatura utilizada. Já a Versatilidade
na organização contribui diretamente e de maneira positiva para a autoperpetuação,
segundo a revisão bibliográfica. Esses dois tipos diferentes de classificação
dificultam o processo de análise, exigindo um padrão diferente para cada tipo, além
de dificultar também a compreensão do leitor sobre as conclusões dos estudos.
Segundo Bunge (1999), a análise orientada a mecanismos (baseada na
identificação dos mecanismos que explicam determinado fenômeno) “distingue a
explicação adequada da mera suposição de particulares sob universais”. Com esse
objetivo em mente, é que a classificação foi modificada. O registro de que certo fato
ocorre da forma que ocorre por ser uma instância de uma generalização foi
substituído por um registro baseado na análise de um critério que diferencie a
contribuição do evento para a longevidade. Seguindo o exemplo inicial, o item
234
“aquisição horizontal” é um tipo de evento, mas a proposição teórica desejada é
“motivação para expansão”.
A classificação adotada nesse estudo buscou eliminar da lista de
proposições teóricas aquelas que não fossem capazes de implicar diretamente em
resposta positiva ou negativa aos desafios da longevidade saudável. A interpretação
é de que esses seriam itens que classificam os fatos e relatos quanto à sua
natureza, enquanto que na fase de análise deveriam ser utilizadas dimensões de
classificação quanto à adequação da resposta à longevidade saudável.
O sistema desenvolvido já previa essa necessidade, mas a estrutura de
dados herdada da pesquisa anterior não favoreceu a separação entre proposições
teóricas classificatórias e proposições de avaliação de adequação. Esse estudo
revisou apenas a estrutura de dados de proposições teóricas de adequação. Tal
modificação no sistema não foi possível devido ao desconhecimento desse autor
sobre como realizar todas as alterações necessárias no sistema.
Porém, tal fato não implica em desconsideração da etapa para o método de
pesquisa. Se por um lado esse estudo mantém menor controle sobre os itens de
classificação da natureza dos fatos e relatos, por outro lado, o método de estudo de
referência manteve menor controle sobre algumas dimensões de análise mais
diretamente relacionadas com as conclusões do estudo. Essas informações, que
não possuem classificação específica e que suportam a análise, ficam disponíveis
no campo de observações em todos os cadastros, com cada instância de utilização
do sistema voltando tal campo mais para um aspecto da análise do que outro.
A adoção de um método de registro de dados desenvolvido por outro
pesquisador não se provou eficiente para essa pesquisa, uma vez que, mesmo com
a utilização do mesmo referencial teórico com alto nível de detalhamento, ambas as
pesquisas tinham interesses diferentes, que exigiam interpretações distintas sobre o
referencial teórico. O pesquisador entende que teria sido mais vantajoso se o tempo
dedicado inicialmente para adaptação e uso da ferramenta tivesse sido diretamente
convertido para a criação de um sistema próprio para registro.
Ao final, a visão geral de eventos mais relevantes e a classificação
superficial destes quanto ao desafio envolvido foi suficiente para traduzir a pergunta
de interesse. A classificação detalhada foi útil para a construção da argumentação
necessária ao entendimento da trajetória escolhida.
235
ANEXO IV – OS MODOS DE TRANSPORTE DE CARGAS E SUAS CARACTERÍSTICAS
O transporte intermodal foi criado como um novo segmento na
regulamentação e foi o de maior crescimento após a reforma nos EUA. Ele combina
as características de serviço e custo de cada modal e a forma mais comum é a
junção entre caminhão e trem, justamente devido à evolução de tecnologias que
facilitam a transposição de cargas com o mínimo esforço, custo e tempo possível.
Muito da evolução desse sistema se deve à evolução do processo de
conteinerização de cargas, que permitiu a mecanização de várias operações. Os
embarcadores utilizam cada vez mais diferentes modos de transporte para atingir
suas estratégias.
A reforma regulatória tornou a classificação das empresas quanto às quatro
categorias de serviço existentes (regulares, contratados, livres e próprios) em algo
mais complexo, uma vez que as limitações para operação em categorias separadas
foram eliminadas.
Transportadores regulares são aqueles obrigados a publicar e praticar
horários e tarifas pré-determinadas. É a categoria que manteve maior grau de
regulamentação e deve obedecer a três princípios: prestação de serviço para
qualquer cliente interessado que se encaixe no escopo de transporte da empresa; o
transportador tem responsabilidade sobre a carga entregue a ele; dado que existem
restrições a entrada de novos competidores, as tarifas devem ser mantidas em
níveis razoáveis.
Transportadores contratados ofertam seus serviços para uma base seleta de
clientes através de contratos de longo prazo ou tarifas negociadas. Apesar de
também ter a entrada de novos competidores controlada, não existem restrições de
tarifas ou seletividade. Esse transportador personaliza seu serviço para atender a
demandas específicas de seus clientes.
Transportadores livres são aqueles que atuam em regiões metropolitanas na
distribuição urbana como jornais, peixes e frutas. Em geral também operam como
consolidadores e distribuidores de carga.
Por fim, as frotas próprias das firmas também são consideradas na
classificação regulatória, mas não sofrem regulamentação. São consideradas
transportadoras próprias aquelas empresa onde o serviço de transporte é tido como
tendo efeito direto sobre o negócio principal da empresa. A reforma regulatória
236
permitiu que essas empresas oferecessem seus serviços, em geral a carga de
retorno, para outras empresas, atividade até então proibida.
Outros tipos de serviço e classificação existem na indústria, mas não
possuem classificação específica na legislação, tais como: envio expresso; gestão
de frotas; consolidadores; agentes de embarcação; associações de embarcadores,
operadores logísticos, dentre outros. O envio de pequenas cargas expressas
ampliou sua participação na indústria devido, principalmente, a novas tendências de
produção e consumo tais como a produção Just-in-time e ampliação do e-commerce
e serviços de entrega em casa. Consolidadores tomaram uma posição de mercado
onde atuavam contratando serviços de transporte ao invés de deter propriedade ou
operar diretamente os ativos e na sua grande maioria apoiam o transporte
internacional.
Os operadores logísticos, por sua vez, são as empresas que oferecem o
serviço de gestão de todas as atividades logísticas de seus clientes. O crescimento
desse tipo de empresa se deve principalmente, às mudanças nas estratégias das
empresas de terceirização de competências que não são centrais para o negócio.
Apesar dos dutos terem uma velocidade relativamente baixa, é um modo
capaz de trabalhar 24 horas por dia e seus custos variáveis são muito baixos. A
complexidade do negócio está na administração correta para prevenir que fluxos de
diferentes clientes sejam misturados.
O transporte marítimo é semelhante na característica das cargas com as
ferrovias, mas é reconhecidamente o meio mais lento de transporte. Atrasos ocorrem
por diversos motivos: condições climáticas adversas; gargalos nos canais; filas nos
terminais. Obviamente, o fator mais crítico é sua baixa acessibilidade.
O transporte aéreo é mais caro e, apesar da velocidade, as operações de
transbordo em terminais e a baixa acessibilidade limitam a possibilidade de
concorrer com o transporte rodoviário em termos de velocidade para distâncias
curtas e médias. Também sofre com a restrição devido às condições climáticas,
além de estar limitada em tamanho e peso das cargas.
237
ANEXO V – ANTECEDENTES E EVOLUÇÃO DO TRANSPORTE DE CARGAS
O Surgimento das Ferrovias no Mundo
Alguns historiadores reconhecem os primeiros sinais de estruturas de
transporte semelhantes às ferrovias já na civilização grega no século VI A.C, onde
barcos eram transportados através de veículos com rodas puxados por homens e
animais que andavam dentro de canais de pedra, evitando que tais carros saíssem
da rota. Posteriormente são identificados novos indícios da construção de vias e
veículos na Alemanha por volta de 1550, com trilhos de madeira primitivos. A
tecnologia se espalhou lentamente pela Europa, chegando à Inglaterra em 1600,
todas com o principal objetivo de facilitar o transporte da produção.
Até então os trilhos eram feitos de madeira, assim como outros
equipamentos envolvidos. Os trilhos de ferro foram pela primeira vez utilizados em
1796, Shropshire (Inglaterra), nas operações de transporte das minas de carvão lá
existentes. Algumas tecnologias foram incorporadas ao longo do tempo, como o
motor à vapor, construído em 1804 por Richard Trevithick, um engenheiro inglês.
Contudo, sua invenção não chegou a ter sucesso comercial devido aos altos
investimentos. Mas, a ampliação da revolução industrial e a Guerra Napoleônica
viabilizaram o investimento no desenvolvimento e uso de novas tecnologias, como
os motores a vapor, nas ferrovias.
O sucesso alcançado pela Ferrovia Stockton e Darlington, construída em
1825, foi suficiente para que vários ricos investidores do noroeste inglês, em franca
expansão da atividade industrial com algodão, entrassem no projeto que ligava
Manchester ao porto de Liverpool. Essa ferrovia seria a primeira ferrovia onde
cargas e pessoas trafegariam dentro de horários pré-determinados. Contudo, na
época do projeto duvidava-se da capacidade em conseguir manter serviços
regulares, necessidade para tornar o empreendimento independente. Até então a
grande maioria das ferrovias pertencia às indústrias de algodão e carvão e caso
esses equipamentos quebrassem, ainda existiam outras formas de escoar a
produção. Mas foi uma questão de tempo até surgir uma locomotiva com tecnologia
adequada para a operação.
Daí em diante, o sucesso das ferrovias foi exponencial. Inúmeras
tecnologias foram desenvolvidas buscando aumentar a eficiência dos ativos:
aumento da velocidade, redução dos defeitos, aumento da capacidade de tração,
238
confiabilidade, dentre outros indicadores de produtividade. As ferrovias se tornaram
essenciais para a movimentação de cargas e trabalhadores, necessários ao
processo de industrialização inglês e, posteriormente europeu e americano. No
começo, elas competiam com os canais fluviais por esse tráfego, mas rapidamente
ganhou espaço devido ao barateamento da operação, além de ser a única opção
para transportar grandes volumes onde não era possível construir canais.
Nos Estados Unidos o crescimento foi ainda mais significativo. Em 1830,
havia apenas 23 milhas de ferrovia. Dez anos depois, a malha havia crescido para
2.818 milhas e duas décadas depois, já alcançava 30 mil milhas, o equivalente a 48
mil quilômetros. O início da construção de ferrovias foi observado em todo mundo.
Em 1837 foram inauguradas as primeiras ferrovias de Cuba, Alemanha, Áustria,
Rússia e França. Holanda, Polônia, Bélgica, Itália e muitos outros países europeus
seguiram a tendência da construção de ferrovias com o uso de locomotivas a vapor
ainda antes de 1840. Na década seguinte, mais precisamente em 1844, a indústria
ferroviária inglesa já definia que a bitola de 1.435 mm seria utilizada dali em diante
em todas as ferrovias do país. Essa padronização ajudou no crescimento do volume
de tráfego e ditaria o rumo da indústria em vários outros países que dependiam das
importações de equipamentos para desenvolver suas redes.
O Transporte nos Estados Unidos
A história política e econômica de qualquer nação está intimamente ligada à
evolução do transporte de cargas e não seria diferente nos Estados Unidos. A
localização e o desenvolvimento das cidades foram ditados pelo acesso aos meios
de transporte. Nova Iorque e Nova Orleans, por exemplo, possuíam os principais
portos com acesso ao interior do país através de dois grandes rios da região, se
tornando dois dos principais pólos comerciais do país. Para certas indústrias era
mais importante estar próximo a um rio do que próximo a sua fonte de matéria-
prima. Chicago e Atlanta, por sua vez, foram importantes hubs ferroviários e assim
se desenvolveram como grandes centros econômicos e industriais.
Evolução do transporte ferroviário
Na metade do século XIX a economia americana iniciaria uma revolução na
forma como se administravam as empresas. Esse movimento começaria através das
ferrovias e dos telégrafos. Diversas características que esses negócios possuíam
239
favoreceram o desenvolvimento de novos métodos para gerir negócios.
Naquela época, havia poucas organizações que, ao mesmo tempo,
construíam, detinham direito de uso e operavam o tráfego das rotas, como as
ferrovias faziam. Tais empreendimentos exigiam o acúmulo de uma quantidade de
capital até então raramente encontrada. Canais fluviais ou estradas, empresas
públicas ou privadas que já trabalhassem assim tinham que compartilhar suas rotas
com outras companhias de transporte.
Alguns gestores de ferrovias experimentaram transportar vagões de
comerciantes locais ou de outros transportadores como forma de aumentar o uso e
as receitas, copiando a estratégia existente. Mas coordenar, cobrar e receber
através desse sistema exigia um esforço administrativo ainda muito complexo, dado
o volume maior que a ferrovia oferecia. No começo, as empresas que seguiram
modelos onde detinham e controlavam todos os vagões utilizados em suas estradas
se desenvolveram mais rapidamente que as outras. Outra medida adotada para
reduzir a complexidade foi a instalação de linhas conectando centros comerciais
existentes, substituindo o transporte hidroviário em distâncias curtas, o que facilitava
a identificação dos fluxos de cargas.
Com a evolução da tecnologia de motores, a capacidade de transporte nas
linhas aumentou enormemente, não só pelo aumento da potência que permitia
carregar mais carga, mas também devido à maior velocidade, que permitia carregar
mais vezes. Esse novo nível de capacidade aliado à lógica diferente no uso da infra-
estrutura e de ativos criava oportunidades bastante lucrativas. Também passaram a
exigir novos níveis de coordenação e controle, aumentando a complexidade
administrativa, principalmente para evitar acidentes. No início as ferrovias possuíam
linhas simples e um acidente podia interromper a operação de todo negócio.
Outra resposta para a crescente complexidade foi a definição de práticas
comuns, assim como foi visto no mesmo período na Inglaterra. Nos anos de 1840 a
ferrovia seria afetada por inúmeros avanços tecnológicos, principalmente através da
padronização de métodos para construção de obras de infra-estrutura ou de
equipamentos para as locomotivas. A padronização permitiu que vagões específicos
para certos produtos fossem desenvolvidos. Isso ocorreu em parte porque
ferroviários associavam-se e compartilhavam entre si seus conhecimentos.
As ferrovias superavam os outros meios de transporte existentes por vários
motivos: eram mais rápidas, mais baratas de operar (em alguns casos até mais
240
baratos de construir) e proporcionavam conexões diretas entre pontos produtores e
consumidores. Porém, a principal vantagem estava na oferta de um transporte mais
confiável: com horários pré-determinados e mais independente das condições
meteorológicas. Os canais fluviais e os lagos, única outra opção para o transporte de
grandes volumes, paravam suas operações no inverno, quando congelavam.
Logo se formaram estruturas administrativas com tamanho suficiente para
gerenciar não só as diversas atividades operacionais como manutenção e reparo
numa extensa área geográfica, mas também para monitorar e avaliar o trabalho
conjunto das partes que compunham a malha. Foram nessas organizações que
nasceram os primeiros grupos de gestores de negócio moderno. As ferrovias eram
os negócios que exigiam a maior quantidade de capital naquela época e era inviável
que uma pessoa, uma família ou um pequeno grupo de investidores detivesse
controle total. Mais difícil ainda era que os representantes dos sócios fossem
capazes de administrar todo o negócio. As atividades eram numerosas, variadas e
complexas, sendo necessárias habilidades específicas, treinamento e dedicação
integral às atividades de gestão.
A existência dessa estrutura de supervisão e o grau de especialização
necessário para alcançar tais posições criaram um objetivo de carreira para toda a
vida para os profissionais que ali iniciavam. Por causa dessa relação tão íntima do
futuro pessoal dos gestores com a empresa, suas decisões de investimento
consideravam aspectos de longo prazo que permitiam a concretização de seus
planos de carreira. O papel dos sócios era cada vez mais focado no levantamento
de financiamento e na escolha dos principais executivos, deixando toda a operação
do negócio para os gestores assalariados.
As 70 mil milhas (112 mil quilômetros) de linhas construídas até 1870
serviriam como a base do transporte no país até a chegada dos automóveis e
aviões. Nessa mesma fase as ferrovias já possuíam não só mecanismos complexos
e intrincados para coordenar e controlar seus recursos de milhões de dólares, como
também já haviam desenvolvido acordos entre empresas bastante sofisticados que
permitiam a movimentação de cargas entre destinos bem distantes que
atravessavam diferentes linhas sem a necessidade de um único transbordo. A
cooperação já excedia os limites técnicos e operacionais quando os gerentes das
ferrovias passaram a se reunir para definir como seria dividido o mercado de cargas.
A malha norte-americana alcançou a marca de 200 mil milhas (320 mil
241
quilômetros) em 1900. Essa evolução na extensão da malha decorreu do desejo dos
gestores de que suas firmas fossem capazes de atingir todos os maiores centros
comerciais, evitando depender de competidores para levar suas cargas até seus
destinos. Cada competidor respondia da mesma maneira, o que ocasionou uma
forte competição e um processo de consolidação.
Em 1887, seria criada a Interstate Comerce Comission (ICC), órgão que
seria responsável pela regulação do setor, buscando evitar e controlar o abuso de
poder que começava a existir dada a concentração de poder das ferrovias e suas
associações. O governo americano passou a ter um papel fundamental na
formulação de regras para condicionar a competição no transporte de cargas
ferroviárias. A ICC ampliou o poder do governo, pois uma de suas atribuições era
definir as tarifas que seriam cobradas em cada trecho para cada produto.
Não foi a primeira vez que o governo norte-americano interferia nesse setor
da economia. Já no seu surgimento diversos mecanismos permitiram a entrada de
capital estrangeiro para desenvolver as ferrovias e a economia americana. Em
seguida adotou uma estratégia de apoio a formação de cartéis, mas o papel do ICC
demonstrava nessa época uma política antitruste. Essa seqüência ocorreu diversas
vezes nos Estados Unidos para esse setor (Dobbin & Dowd, 1997).
Surge o transporte rodoviário
Após a invenção do motor a vapor, esforços foram realizados na Inglaterra
para adaptar esse método de propulsão às estradas públicas e um grande número
de empresas de carruagens iniciou suas operações entre 1831 e 1838. Contudo, as
técnicas ainda imaturas de produção de aço não permitiram que os veículos
possuíssem a força requerida sem aumentar o seu peso. Esse peso causava sérios
danos às rodovias e tornava o modal antieconômico frente às vias de ferro dos trens.
Somente após o aperfeiçoamento do motor de combustão interna, anos
depois, é que a revolução automotiva se iniciaria. O primeiro modelo de automóvel
trabalhável seria produzido em 1887. A ênfase inicial dos automóveis era na
movimentação de indivíduos e o conceito de veículos rodoviários para propósitos
comerciais só surgiria anos mais tarde. Em 1903 seria feita uma adaptação para
vagões em um chassi de carro de passageiro e a indústria rodoviária seria criada.
O baixo crescimento no número de caminhões durante a década seguinte foi
através de companhias locais de cargas. A disponibilidade de combustível era baixa
242
e ainda não havia infra-estrutura adequada para os fluxos de distâncias maiores.
Não existiam materiais e tecnologias de qualidade para a construção de estradas e
as fontes de financiamento estavam mais voltadas para as ferrovias. Isso fazia das
estradas pequenos negócios que taxavam o acesso para pagar sua manutenção.
Esse modo de transporte começou a ganhar reconhecimento com a criação
empresas de aluguel de caminhões, que provia um estímulo adicional ao seu uso.
Particularmente por firmas pequenas que podiam adotá-los em uma base
experimental sem a necessidade de investir grandes volumes de capital em infra-
estrutura e operações de manutenção especializadas. A guerra na Europa também
estimulou o desenvolvimento da indústria. Caminhões foram usados extensivamente
como ambulâncias e no transporte de insumos. As necessidades urgentes da guerra
trouxeram desenvolvimento tecnológico e de desempenho operacional.
Como resultado da escassez de transporte na guerra, a crescente confiança
no transporte motor recebeu as bênçãos das ferrovias, que empregavam caminhões
em seus terminais. Um grande número de caminhões foi empregado ao longo da
costa atlântica durante o período, carregando uma ampla variedade de commodities
que não podiam ser acomodadas pelas ferrovias porque não havia vagões
suficientes ou porque os terminais estavam congestionados.
O governo de guerra explicitamente reconheceu e encorajou ativamente o
transporte a motor através do Conselho Nacional de Defesa, o qual cedo em sua
existência estabeleceu o Comitê de Transporte por Rodovias. O objetivo desse
comitê era aumentar a efetividade de todo o transporte rodoviário e assim aliviar as
ferrovias de parte do fardo do tráfego de carga pesada. O investimento em
transporte rodoviário era mais barato, mais rápido e muitas vezes mais eficiente.
Várias foram as tendências da década de 20 que fortaleceram o transporte
rodoviário. As empresas passaram a adotar um padrão de baixos estoques após a
Primeira Guerra. Essa mudança resultou em pedidos e envios de baixas
quantidades que favoreciam o uso de transportadores rodoviários, competitivamente
mais fortes para atender as demandas dos clientes de varejo. O declínio nos preços
dos veículos e de componentes (como pneus e gasolina) ao mesmo tempo em que
houve melhorias na qualidade em ambos também contribuíram. Adicionalmente, a
década de 1920 viu o governo americano investir na construção de estradas,
fabricantes de veículos ampliarem o crédito e um mercado de segunda mão surgir.
Os primeiros anos da década foram notáveis pela falha das ferrovias em
243
responder ativamente à competição dos caminhões. Na época o volume e a receita
ainda estavam em crescimento e é talvez fácil entender a relativa indiferença
demonstrada com relação à competição dos caminhões no transporte de cargas. A
literatura da época relata freqüentes pedidos pela criação de serviços de entregas
diretas pelas ferrovias, sugestões geralmente não atendidas (Roberts, 1956). Em
contrapartida, o surgimento do transporte rodoviário de passageiros afetou
rapidamente os resultados dessas unidades de negócios das ferrovias, o que
acelerou a resposta delas, investindo e participando na formação da indústria.
A estrutura de tarifas histórica das ferrovias caiu diretamente nas mãos de
seus novos concorrentes. Os preços mais altos eram aplicados aos menores trajetos
e para os artigos de maior valor, para os quais o serviço por caminhão era muito
melhor adaptado. Em vários aspectos, a regulação das ferrovias que as protegeu
por anos da competição predatória, deteve reações apropriadas e forneceu aos
caminhões um amplo mercado para crescer. Só depois de 1930 que reduções
tarifárias foram usadas para combater essa competição. Melhoria nos serviços, outra
resposta competitiva potencial, também foram adotadas lentamente no começo e
não alcançaram grande importância até o fim da década (Roberts, 1956).
Ferrovias em geral mantiveram uma atitude de indiferença com relação à
participação direta em operações rodoviárias. Onde ocorreram, eram geralmente em
uma base suplementar e freqüentemente eram desempenhadas com equipamentos
contratados. Em uma citação de 1923, o presidente de uma ferrovia acreditava que
a esta era um negócio completo por si só e o uso de outras tecnologias deveria,
portanto, ser deixado para especialistas. Ele acreditava que havia menos chances
de uma legislação restritiva se essas operações continuassem independentes das
ferrovias (Roberts, 1956).
Enquanto era constantemente dito durante esse período que as ferrovias
poderiam se proteger melhor contra a erosão competitiva das receitas utilizando sua
experiência em transporte para iniciar serviços rodoviários independentes, a visão
prevalecente dos gestores de carga era de que tais inovações iriam, em grande
parte, duplicar as estruturas existentes, aumentando a competição sem beneficiar os
interesses das ferrovias. Claramente, o uso conjunto de ferrovias e caminhões em
operações de terminais para transferências locais e na consolidação e distribuição
de cargas é uma manifestação de coordenação. Contudo, essas operações
rodoviárias administradas por ferrovias eram essencialmente de estação para
244
estação com tarifas equivalentes às ferroviárias e complementares a operação
ferroviária (Roberts, 1956).
O serviço de coleta e distribuição de cargas não foi adotado rapidamente
pelas ferrovias apesar dos vários pedidos. A sua atitude é parcialmente explicada
pelo fato de que os gerentes sentiam que esses serviços custosos deveriam ser
iniciados somente onde as condições competitivas exigiam e, portanto, em uma
base bastante seletiva. Eles também temiam que o uso dessa inovação em um lugar
implicava na extensão para outros locais por questionamentos sobre discriminação.
Claramente, a falha das ferrovias em participar ativamente dos anos de
formação durante a década de 20 estimularam o surgimento de caminhoneiros
independentes. A troca dos trens locais pelo serviço rodoviário e a dependência das
ferrovias por serviços contratados serviram como contribuições para a expansão das
transportadoras rodoviárias. A resposta competitiva mais séria das ferrovias nessa
época foi através do incentivo à extensão da regulação do Estado sobre o transporte
rodoviário. Essa proposta era também apoiada por grandes operadores rodoviários
que queriam limitar a competição através de tarifas mínimas e controles de entrada.
Vários aspectos dos estatutos estaduais desenvolvidos na época aparentam
ter tido papel fundamental na formação da indústria. Primeiro, o esforço mais intenso
foi direcionado às transportadoras com horários regulares. Os regulamentos que
incluíam transportadoras não regulares eram freqüentemente incompreensíveis e,
portanto, não aplicáveis. Em segundo lugar, um aspecto central dos estatutos era o
controle de entrada através da requisição de certificados de conveniência pública e
necessidade. Terceiro, a Suprema Corte dos EUA definiu que as leis estaduais
estavam confinadas às operações intra-estaduais. O resultado foi uma maior
expansão das firmas como operadores irregulares ou como transportadores por
contrato em rotas inter-estaduais.
Durante a década de 20 a indústria sofreu grande instabilidade, manifestada
por um alto turnover de firmas e geralmente operações não lucrativas. A situação
era ocasionada parcialmente pela inexperiência e falta de sofisticação em assuntos
sobre economia e negócio de vários operadores. A relativa facilidade de entrada e
os termos de crédito favoráveis para aquisição de veículos, inevitavelmente
significavam a presença de vários operadores que simplesmente não tinham a
habilidade gerencial requerida para iniciar negócios duradouros.
245
Os anos 30
O período de depressão foi primariamente influente por causa: das
mudanças econômicas específicas que produziu; do sistema de códigos da
Administração Nacional de Recuperação que fomentou; da mudança da atitude das
ferrovias que forçou; e do encorajamento que deu a regulamentação.
A depressão foi caracterizada por uma redução no fluxo de tráfego,
aumentando a competição pelo que havia restado. Enquanto esse ambiente reduziu
o crescimento do transporte motorizado, ele produziu algumas mudanças favoráveis
ao transporte rodoviário. O mais significativo foi a redução no tamanho dos pedidos
e estoques, colocando um prêmio ainda maior sobre as vantagens de serviço e
custo do caminhão.
A facilidade de entrada e disponibilidade de um grande número de veículos
com pouco ou nenhum investimento inicial, juntamente com o fato de que não era
necessário nenhuma habilidade ou treinamento específico, tornaram a indústria a
opção para os vários desempregados da economia. Eles buscavam apenas pagar
seus custos marginais e sustentar suas famílias enquanto a crise passava, o que
desenvolvia uma concorrência predatória. Enquanto a indústria de transporte
rodoviário viu seu volume absoluto aumentar entre 1930 a 1932, ainda que mais
diluído entre um número maior de empresas, as ferrovias viram seu volume
despencar no mesmo período.
Em contraste com o que ocorria em outros setores da economia, onde o
código de administração imposto pelo governo era efetivo, a indústria de caminhões
era simplesmente indisciplinada e espalhada demais para que a regulação fosse
aplicada. Determinar relação entre custos e tarifas, por exemplo, provou-se ser uma
tarefa impossível. Enquanto método de controle, a experiência do código forçou as
firmas a pensarem e agirem em conjunto, o que encorajou o desenvolvimento de um
status de indústria.
Não era mais possível para os gerentes das ferrovias manter suas cabeças
enterradas na areia e evitar os fatos econômicos da vida. A situação era
particularmente alarmante porque os transportadores rodoviários recusavam a se
manter restritos aos nichos funcionais definidos para eles – transporte de varejo de
pequenas rotas e volumes. As operações rodoviárias estavam cada vez mais
aumentando seu escopo de distâncias. Melhores estradas e equipamentos
246
estenderam substancialmente a distância possível e permitiu operações de até 500
milhas para entrega no dia seguinte. Houve então uma mudança no padrão de
resposta das ferrovias. Ao invés de contratar serviço suplementar de caminhões de
operadores independentes, as ferrovias demonstraram um padrão mais forte para
operação direta, primariamente através de subsidiárias. Essa forma de participação
predominou parcialmente porque um grande número de estados proibia a operação
direta de veículos motores por ferrovias.
Adicionalmente ao movimento a favor da propriedade dos ativos ao invés da
contratação, as ferrovias no começo da década de 30 finalmente realizaram sérios
esforços para instituir a coleta e entrega por caminhões. A adoção de coleta e
entrega como serviço universal teve implicações competitivas significativas. Sem
essa extensão, o principal efeito dos serviços suplementares às ferrovias era a
redução das despesas operacionais. Com ela, as ferrovias estavam aptas a
melhorar seus serviços o suficiente para interromper até certo ponto o desvio do
tráfego de mercadorias e recapturar alguns negócios que já haviam sido perdidos.
Finalmente, as ferrovias reduziram suas tarifas para poder competir com o
transporte rodoviário. Apesar disso, a resposta novamente foi hesitante e lenta. Os
gerentes temiam que as mudanças na estrutura tarifária induzissem a uma
discriminação ilegal causando o espalhamento das reduções para tráfego não
competitivo. Eles também estavam preocupados de que as vantagens de nível de
serviços inerentes ao transporte rodoviário tornassem a redução de tarifas não
efetiva a não ser que fosse levada a níveis que não compensassem.
Enfim a regulamentação nacional para o transporte rodoviário foi
estabelecida em 1935. Ela trouxe um status verdadeiro de indústria como um
substituto para as ações espalhadas, indisciplinadas e heterogêneas que eram
características da indústria de transporte rodoviário. Com a regulamentação, a
competição foi mantida controlada através do poder que a comissão tinha para
controlar tarifas mínimas e prevenir reduções ou aumentos de pedidos onde
necessário para prover estabilidade. Adicionalmente, o mercado estava fechado
para novos entrantes ou para a expansão de operações existentes a menos que o
novo serviço proposto pudesse passar no rigoroso teste de “conveniência e
necessidade pública”. A regulação também foi capaz de dar um valor tangível aos
direitos de operação. A oportunidade de vender tais direitos encorajava firmas
marginais a sair do mercado. Nesses casos, os compradores em geral eram
247
operadores existentes.
A Segunda Guerra Mundial
Ganhando força anos após ano, a indústria de transporte rodoviário estava
apta a tomar o seu lugar, apesar das inúmeras dificuldades, para servir as
necessidades comerciais e militares de transporte da economia na emergência dos
tempos de guerra no começo da década de 40. Aqueles anos constituíram um
capítulo significante na história e desenvolvimento do transporte por rodovias.
A indústria tinha dificilmente se acomodado às mudanças provocadas pela
regulamentação quando seu padrão de desenvolvimento foi abruptamente
interrompido pela guerra. Muitos aspectos da experiência de guerra foram
esquecidos após, mas outros marcaram permanentemente a indústria. Era uma
época de racionamento, penúria e improviso. Considerando as dificuldades sob a
qual estava, os registros sobre a indústria rodoviária durante a guerra são bastante
positivos. Todas as agências de transporte sofreram com o déficit de material
provocado pela guerra, mas a necessidade de tecnologia peculiar da indústria fez
dela a mais vulnerável. As ferrovias possuíam inerentemente um grau de excesso de
capacidade conhecido que foi provocado pela ampla compra de equipamento dos
anos 30. As transportadoras rodoviárias eram tecnologicamente mais proximamente
alinhados com a capacidade. Ainda, as unidades ferroviárias tinham uma
expectativa de vida de mais de 20 anos, enquanto que a de veículos motores era de
aproximadamente cinco anos. Justamente, a restrição da produção de caminhões
civis pegou as transportadoras rodoviárias mais fortemente e rapidamente que a
diminuição da produção de vagões de carga afetou as ferrovias.
Combustível ficou amplamente escasso por causa do deslocamento e
ruptura das rotas de movimentação existentes. Os ataques de submarinos alemães
aos navios cargueiros costais exigiram que o transporte fosse feito por vagões
tanque e que fossem construídos oleodutos. Mesmo assim, o suprimento de
combustível era cada vez mais disponibilizado para fins militares. A reposição de
veículos se tornou um problema significativo para a indústria quando, em 1º de
Janeiro de 1942, o suprimento de veículos foi congelado e um programa de
racionamento foi instituído. Como resultado, a aposentadoria de veículos antigos foi
parada ou retardada, a idade média dos veículos aumentou drasticamente e o
desempenho e eficiência da frota foram comprometidos. Ainda mais sério que os
248
problemas de suprimento de gasolina e veículos, foi a falta de pneus no começo de
setembro de 1942, quando praticamente todos os fornecedores de borracha foram
perdidos para as conquistas japonesas. Outra dificuldade surgiu da escassez de
peças de reposição. Isso foi particularmente sério em vista da falta de novos
veículos, o drástico aumento da média de idade e mais intensivo uso dos veículos
disponíveis, e da necessidade de empregar pessoal relativamente não treinado em
mecânica e direção. Finalmente, os serviços de transporte a motor foram mais
afetados que outros setores devido à maior predominância de empregados com
idades mais baixas.
A escassez descrita anteriormente, em conjunto com o forte aumento nos
requisitos de transporte, resultou em uma expansão temporária do controle
governamental sobre a indústria. Provavelmente o resultado de guerra mais
significativo foi extraído das técnicas de conservação que foram introduzidas. O
programa de conservação foi facilitado pelo mecanismo de Certificados de
Necessidade de Guerra. Todos os operadores, públicos e privados, regulamentos
ou não, eram exigidos que detivessem tais certificados. O objetivo era centralizar
todas as atividades dos transportadores e facilitar a aplicação do programa. Um dos
itens mais importantes foi o desenvolvimento de planos conjuntos para eliminar
desperdícios e aumentar a utilização de veículos através da coordenação de
horários, serviços de terminais compartilhados e intercâmbio de equipamentos.
O efeito líquido para os transportadores regulares foi um aumento no volume
de transporte total e por veículos. Para os transportadores por contrato tiveram um
comportamento estável ao longo do período. O maior crescimento foi percebido para
os carregadores especializados de commodities. As medidas de conservação
adotadas pelo governo serviram para aumentar a média de carregamentos e
estimular a movimentação coordenada.
A guerra também causou uma realocação e descentralização da indústria
em favor dos serviços de transporte rodoviário. Muitas plantas de guerra não
estavam nas linhas de trem e quando elas foram convertidas à produção civil elas
forneceram à indústria rodoviária um mercado cativo. Esse fator também influenciou
o padrão de rotas. Durante a guerra muitos operadores receberam autorizações
temporárias para estender seus territórios ou amplitude de produtos. Tais
autorizações serviram como argumento para mudanças permanentes no pós-guerra.
Existem evidências também que sugerem que a filosofia de fusões adotada pelo ICC
249
se modificou. Durante a guerra, tais operações eram vistas como um mecanismo
para reduzir o uso de veículos.
O Período Pós-Guerra
Juntamente com outras empresas, a indústria se beneficiou do alto nível de
atividade econômica nos anos seguintes à segunda Guerra Mundial. Mas fatores
especiais trabalharam em seu favorecimento, permitindo que ela ocupasse papel
crescentemente importante no mercado de transportes.
Durante grande parte do período pós-guerra as ferrovias estiveram
atormentadas por dificuldades com equipamentos, ocasionadas pela escassez de
materiais e programas conservadores de compras de vagões, que estimularam o
serviço rodoviário. A descentralização industrial encorajou rotas mais curtas e
carregamentos menores, enquanto que novas localizações não servidas pelas
ferrovias proviam mercado cativo. Adicionalmente, os operadores de caminhões
puderam invadir o domínio de longas distâncias das ferrovias por causa da aumento
generalizado no intercâmbio de trailers entre carregadores. Outro importante
contribuinte para o rápido crescimento do transporte motorizado no pós-guerra foi a
tendência geral a liberação dos limites estaduais de tamanho e peso que
encorajaram carregamentos mais pesados e conseqüentemente economias
operacionais. Finalmente, esse período testemunhou evoluções técnicas
significativas nos veículos e um programa extensivo de modernização de terminais
que contribuiu para a eficiência.
O incremento substancial de tráfego ocasionou aumentos em investimentos
comparáveis pelos carregadores regulares, com implicações importantes para a
indústria. Os altos níveis de tráfego e lucros permitiram e forçaram um maior acesso
aos mercados de capitais. Instituições financeiras começaram a participar
extensivamente no financiamento de programas públicos. A dinâmica situação pós-
guerra produziu mudanças estruturais significativas na indústria. Uma importante
alteração envolveu o número e tamanho das firmas. Um movimento de consolidação
resultou no declínio no número de firmas regulares, concentrando os negócios nas
mãos de grandes empresas. Como todo ciclo de vida, a maturidade traz seus
próprios problemas. O crescimento pós-guerra sensacional em tráfego e receitas
criou novas dificuldades para a indústria. A resposta das ferrovias para a competição
com o transporte rodoviário não era mais letárgica, tendo levado ao limite da
250
regulamentação a competição por preço e serviço.
Havia, contudo um cenário bem diferente para as ferrovias. Com o caminhar
do século XX, uma série de mudanças ocorreram na movimentação doméstica de
produtos: novas tecnologias de comunicação e métodos de transporte combinavam
para unir regiões previamente remotas do país e mudanças significativas na
demografia e na estrutura das indústrias haviam ocorrido. Mudanças no padrão de
consumo e tecnologias de produção ampliaram a demanda pela movimentação de
produtos de maior valor agregado. Como resultado, a composição das cargas
gradualmente mudou de produtos baratos e pesados para produtos caros e leves,
propriedades que favoreciam o transporte rodoviário. Além disso, novos produtos
eram desenvolvidos baseados em novas tecnologias, como os plásticos que
substituíam os vidros, reduzindo a demanda pelo transporte de areia por trem e
aumentando a demanda por transporte de petróleo por dutos.
O Programa de Desenvolvimento de Rodovias
No ano de 1956 seria iniciado um ambicioso programa federal nos EUA para
investir na infra-estrutura rodoviária. Apesar de existir legislação específica para o
tema determinando que o financiamento das estradas seria compartilhado
igualmente entre as esferas federal e estaduais, o governo federal da metade da
década de 50 concordou em financiar 90% dos custos e despesas. Essa mudança
se devia, principalmente, a interpretação de que tal investimento era essencial para
a defesa do país.
Anteriormente cada estado tinha sua própria rede de estradas e a
padronização (nomenclatura, técnicas de construção e manutenção, tamanho e
quantidade de faixas, prioridade) era muito baixa. Na década de 20, alguns esforços
para modificar essas características já haviam sido feitos, como a sinalização das
estradas que ligavam as principais cidades dentro de um plano para o país. Surgiam
então as primeiras “U.S. Routes”, as quais também quebravam com o paradigma
anterior de acesso restrito às estradas por aqueles que haviam investido. A década
de 30 fortaleceu a ideia de um sistema nacional de estradas, principalmente quando
Roosevelt combateu a Depressão com o investimento em infra-estrutura.
A guerra havia interrompido o projeto nacionalista, mas com o início da
década de 50, a prosperidade havia retornado ao país e 70% das famílias
americanas possuíam carros. Eisenhower lutou durante dois anos no congresso
251
para criar um modelo que financiasse seu projeto de US$ 50 bi em 10 anos. Em
1956 seria criado o Highway Trust Fund que teria sua fonte de renda a partir da
taxação de diversos insumos da indústria como combustível e veículos. Seriam
construídos 66 mil quilômetros de rodovias desenhadas uniformemente e de alta
qualidade que seriam pagas pelo governo federal, mas seriam de propriedade dos
estados e mantidas por eles.
A construção foi iniciada rapidamente e amplamente. Em 1962 já havia sido
construído 21 mi quilômetros do projeto; em 70 alcançava 48 mil e outros 8 mil
estavam em construção. Os novos equipamentos de construção disponíveis
permitiram que os engenheiros escolhessem traçados melhores do que os
anteriores, onde eram mais dependentes das condições de contorno do solo.
As construções anteriores seguiam, em geral, os traçados das próprias
ferrovias. Contudo, nesse novo conjunto de obras o foco esteve também sobre o
desenvolvimento da conexão rural e o desenvolvimento dos subúrbios onde fossem.
Os engenheiros desfrutavam de grande autonomia para escolher onde,
como e quando seriam feitas as construções, o que reduziu a possibilidade de
participação pública nos projetos desenhados. A autonomia desfrutada era tão
grande que uma sugestão de explosão atômica de uma montanha chegou a ser
aprovada na California, mas foi cancelada pela falta de capacidade em avaliar até
onde iria o impacto da radiação. Isso se deveu em parte devido à baixa oposição
política que poderia haver na construção das primeiras partes do traçado geral, que
ficavam em áreas rurais pouco habitadas. Outro fator relevante para essa ordem de
prioridade é que a milha rural era muito mais barata que a milha urbana. Apesar da
porção urbana representar apenas 12% da malha projetada, seu valor equivalia a
50% dos fundos destinados ao projeto.
No final da década de 60, começaram a surgir vários empecilhos para a
continuação e crescimento do programa. Ao mesmo tem que as construções
alcançavam os grandes centros urbanos, discussões sobre direitos civis ganhavam
espaço e a escolha de áreas mais baratas para construir gerava conflito. Não havia
ainda cuidado com as relações públicas e engenheiros com uma vida de trabalho
técnico tinham que enfrentar tais problemas sozinhos. Evoluíram também
movimentos em favor da preservação ambiental e histórica o que dificultava ainda
mais a definição de onde seriam construídos os trechos.
Somava-se a isso a recente criação do Departamento de Transportes,
252
responsável pela administração de vários modais de transporte, que começava a
contestar a cultura de que a construção de rodovias era a solução para qualquer
problema de transporte. Os investimentos passaram então a ser transferidos para
projetos multimodais e no meio da década de 1970 o presidente Nixon autorizou e
incentivou o uso do Highway Trust Fund para projetos de trânsito de massa pelas
cidades.
Daí em diante, construção de estradas passou a política passou a ter mais
importância e considerações sobre segurança pública e ambiental foram ampliadas.
Em 1991, o Congresso votou uma lei que obrigava os encarregados do
planejamento de políticas e investimentos públicos a ter uma abordagem intermodal.
Contudo, até a década de 90, quase a totalidade do projeto de Eisenhower havia
sido construída. O volume de carga e uso que se teve no período foi acima do
esperado, o que trouxe uma grande dificuldade para o sistema: por um lado era
necessário investir na expansão antes do previsto; por outro era necessário investir
na manutenção das infra-estruturas que haviam sofrido mais esforço do que aquele
que havia sido projetado.
O efeito da evolução da participação do transporte rodoviário sobre o
ferroviário devido, principalmente, as características regulatórias e de prioridade
governamental, foi à drástica redução das margens das ferrovias, levando a um
processo de consolidação para sobrevivência.
A reforma da regulamentação dos transportes nos EUA
O envolvimento do governo na regulamentação do setor de transportes é
reconhecido já na Inglaterra do século XII, pois se acreditava que os transportes
afetavam o interesse público e por isso devia ser tratada de maneira diferente das
outras indústrias. A regulamentação americana começa em 1887 para controlar as
ferrovias com a criação do ICC. Naquela época o objetivo maior era controlar a
competição e as tarifas, evitando comportamentos monopolísticos abusivos por
parte das ferrovias. Esse seria um movimento generalizado, pois a preocupação se
estenderia também para companhias petrolíferas e de telecomunicações. Outros
setores também passaram a ter suas regulamentações federais concluídas, porém
em épocas diferentes. A legislação federal sobre transporte por dutos é de 1906; o
rodoviário, 1935; aéreo civil, 1938; e hidroviário em 1940. As três últimas, motivadas
pelo plano econômico pós-Depressão.
253
Mais recentemente foram criadas agências específicas para regulamentar
cada setor, mas o principal órgão gestor dos transportes é o Departament of
Transportation (DOT). O modelo atual de regulamentação surgiu a partir do
movimento de reforma iniciado na metade da década de 70 na indústria aérea. As
regras para o setor ferroviário foram votadas em 1980 e para o hidroviário em 1984.
Um ano depois seria criada legislação específica para transportadores e somente
em 1994 seria concluída a reforma do setor de transporte rodoviário com a
desregulamentação do transporte rodoviário interestadual.
O objetivo do novo modelo de intervenção governamental era reduzir ou
eliminar uma série de ineficiências do setor. Essas novas regras criaram um
ambiente mais competitivo, eliminando barreiras de entradas, incentivando a
competição e redução tarifária e tornando-se mais flexível com relação a
movimentos de consolidação. Além disso, aspectos não econômicos passaram a ter
um peso significativo, cobrindo questões como segurança, proteção ambiental e
registro. A participação de mercado dos contratos de longo prazo aumentou, além
da quantidade de subsídios e investimentos em infra-estrutura governamentais para
a indústria ter sido reduzida. Tudo isso fazia parte de uma nova política econômica
instituída na década de 80, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, que
prezava pela redução do papel do Estado na economia.
O efeito em cada modal
Para as ferrovias, a nova regulamentação ofereceu oportunidades para
melhoria de desempenho. As ferrovias Class I47, as maiores por faturamento anual,
melhoraram suas condições operacionais através do investimento em tecnologia.
Elas fortaleceram sua posição no transporte de cargas volumosas, pesadas, de alta
densidade, baixo valor e movidas por longas distâncias. Tudo isso devido ao
“monopólio natural” causado pela excessiva alavancagem operacional. Elas
retomaram a dianteira na participação de mercado em volume, mas em receita o
rodoviário ainda se manteve maior devido ao perfil de cargas.
Algumas ampliaram o escopo de atuação, principalmente através da
aquisição de empresas de outros modos, oferecendo então serviços de transporte
47 As ferrovias americanas são classificadas quanto ao seu faturamento e essa classificação implica em diferentes obrigações e direitos perante as agências reguladoras.
254
multimodal. Foram formados então menos de 10 mega-operadores. A CSX, maior
empresa de transporte americana, por exemplo, estabeleceu em 1981 uma
subsidiária de transporte rodoviário, comprou a transportadora hidroviária American
Comercial Lines em 1984 e a Sealand, navegadora oceânica, em 1986.
A conteinerização de cargas surgiu como tecnologia importante na redução
do tempo de transbordo para essas companhias multimodais. Algumas criaram
unidades de negócio específicas para desenvolver projetos logísticos com o objetivo
de aumentar a eficiência de uso de todos os diferentes ativos agora disponíveis.
A reforma regulatória eliminou uma série de restrições que dificultavam a
operação lucrativa nas condições de competição existentes. Duas restrições
relevantes foi a possibilidade de desativação de trechos de baixa viabilidade
econômica e a flexibilização na demissão de funcionários. Alguns trechos
abandonados deram origem a linhas locais e regionais que cobriam áreas bem
menores e possuíam carteiras de clientes pequenas. Essas pequenas ferrovias
trouxeram inovações, principalmente devido à maior flexibilização do governo, como
por exemplo: leis trabalhistas e salários; registros e manutenção de equipamentos;
permissão para serviços mais especializados e customizados para carregadores.
A desregulamentação viu a distribuição das empresas de carga rodoviária
por nichos se modificar. Muitas das firmas que operavam como consolidadoras
optaram por trabalhar na estrutura de custo mais enxuta de carga total. O chamado
TL (full truckload – carga total de caminhão), empresas que trabalham com
contratação de carregamento completo do caminhão, é o meio mais rápido de
transporte em suas condições de distância. Além disso, é o meio que tem maior
abrangência de atendimento, podendo virtualmente prover serviço porta a porta em
qualquer lugar. Suas vantagens competitivas mais fortes estão nos trajetos curtos e
médios, dominando as cargas frágeis.
Já no caso das firmas LTL (less than truckload – carga incompleta de
caminhão), a estratégia envolve o amplo investimento em terminais, considerando
aspectos mais complexos em diversas dimensões. Seu objetivo é organizar a
maneira mais eficiente possível de conseguir economias de fluxo. Frotas próprias
pressionaram a competição nesse segmento, pois podiam criar valor ao utilizar a
capacidade disponível em cargas de retorno. Empresas que atuam no negócio de
aluguel de caminhões também passaram a utilizar sua capacidade ociosa nesse
segmento. Ambas eram proibidas anteriormente pela regulamentação.
255
O transporte por dutos teve sua participação de mercado reduzida em
termos de extensão de malha, mas não foi muito afetada de termos de volume,
principalmente pela ampliação do escopo: o gás ganhou espaço como fonte de
energia nos últimos tempos, substituindo a perda de outras cargas para outros
modos. O transporte aéreo de cargas, apesar de ainda representar um volume
baixo, foi um dos que experimentou o maior crescimento no período pós-
desregulamentação, devido ao crescimento do mercado de cargas expressas. Sua
posição competitiva é muito específica e a desregulamentação afetou muito mais o
transporte de passageiros do que o de cargas.
O transporte intermodal foi identificado e criado como um novo segmento na
regulamentação e foi o de maior crescimento após a reforma nos EUA. Os
embarcadores utilizam cada vez mais diferentes modos de transporte para atingir
suas estratégias. Assim, apesar dos tipos anteriores terem apresentado certo
crescimento, este modo está se tornando cada vez mais apto para transportar mais
tipos de carga sob condições cada vez mais distintas. Enquanto os outros modos
estão se tornando competidores de nicho, operadores logísticos estão se tornando
líderes de mercado.
O transporte ferroviário de cargas é reconhecido pela sua vantagem de
custo frente às outras modalidades de transporte, principalmente em relação ao
rodoviário e ao aeroviário. Contudo, também reconhecemos que há desvantagens e
que por isso o seu sucesso é mais propício em certos mercados e para certos
produtos. Fleury (2002) definiu assim a posição competitiva de cada modal em
relação às cinco principais dimensões segundo o autor:
Figura 6-2: Posição competitiva dos modais.
Fonte: (Fleury, 2002).
256
A formação da indústria no Brasil
O início das estradas de ferro
Nos séculos XVIII e XIX o mundo inteiro passava por profundas mudanças,
mas o Brasil insistia em manter-se a parte dessas revoluções. O poder estava
concentrado sobre grandes senhores agrícolas e traficantes de escravos, pois todo o
resto da atividade econômica era monopolizada pela Corte Portuguesa ou proibida
pela mesma. E como atesta Furtado (1959), foram justamente os produtores de
café, principalmente do Estado de São Paulo, os responsáveis pela Proclamação da
Independência. Essa organização do poder teve reflexos na forma com que as
mudanças tecnológicas presentes em toda Europa e Estados Unidos atingiram o
Brasil.
A primeira lei que autorizava a construção de estradas de ferro no país foi
promulgada em 1828, permitindo a participação de empresários nacionais e
estrangeiros, porém ainda restavam definir as concessões. Tentativas para se iniciar
as operações já haviam ocorrido em 1835, mas a primeira obra só foi finalizada em
1845, ligando a cidade de Petrópolis à Baía de Guanabara, projeto de Irineu
Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.
Mesmo depois da Independência, foi difícil para o país reverter a
organização do poder. Devido às negociações para a conquista de sua
independência, o Brasil passou a ter forte presença do capital inglês nas suas
atividades econômicas. A moeda de troca pela proteção contra Portugal foi a
abertura dos portos com subsídios para os navios ingleses. Além disso, não havia
muitos investidores privados nacionais capazes ou interessados em tocar o projeto
das ferrovias. Por outro lado, o Estado não desfrutava de uma posição financeira
sólida que permitisse os investimentos necessários.
O que se fez foi manter o favorecimento aos grupos de poder existentes em
paralelo à participação inglesa na economia. As leis que regulariam o setor
ferroviário foram criadas com base nesse jogo do poder, deixando para segundo
plano os interesses nacionais. Por exemplo, a Lei 641, 26 de junho de 1852,
garantia juros de até 5% ao ano sobre o capital investido nas ferrovias, o que
incentivou a ineficiência na construção e operação das ferrovias, já que as tarifas
pouco importavam e o lucro era garantido pelo governo (TELLES, 1994, p.233).
O reflexo não foi sentido só na infra-estrutura ou na administração financeira
257
das estradas de ferro, mas também no próprio desenvolvimento tecnológico da
indústria. A tecnologia importada da locomotiva a vapor foi adaptada no Brasil para
usar carvão nacional e lenha como fontes de energia, possuindo poder calorífico
inferior ao carvão importado (LAMBERT, 1972, p.166). A água utilizada nas
caldeiras também não era adequada ou de mesma qualidade. Foram adaptações
que comprometeram o território, seja pela fluidez reduzida, pelos custos envolvidos
ou pelo consumo desnecessário de recursos.
Numa tentativa de desenvolver as estradas de ferro no Brasil, mas ainda sob
a mesma lógica dos grupos de poder no Brasil, foi decretada a Lei 2.450 de 24 de
setembro de 1873 que tratava das subvenções quilométricas. Nessa criação, onde o
governo arcaria com 30 contos de réis por quilômetro construído, fez com que as
estradas fossem as mais baratas possíveis, sem recortes, túneis e pontes,
conseqüentemente com muitos desvios e curvas. A estratégia, que deveria ser um
incentivo, foi responsável pela construção de péssimas estradas com efeitos
desastrosos e sérios entraves para as ferrovias e para o território nacional. Estas leis
foram extintas em 1903.
Evidências da presença inglesa podem ser percebidas na construção das
ferrovias brasileiras. A primeira concessão foi entregue a um inglês, Richard
Trevithick, com um projeto que posteriormente provou-se antieconômico, pois as
locomotivas a vapor propostas por ele não foram capazes de substituir a tração
animal nas pequenas rampas do trecho projetado. Projetos em São Paulo e Rio de
Janeiro, capitaneados por Mauá, trouxeram o capital e conhecimento inglês alguns
anos depois. Outros grupos ingleses também se aventuraram no Nordeste e Sul do
país em um primeiro momento, porém grupos de outros países também tiveram
participação.
A origem do capital investido na ferrovia definia também quais fornecedores
de materiais e equipamentos seriam escolhidos para a construção e operação do
negócio. Onde havia capital inglês, as locomotivas, trilhos e vagões eram de
fornecedores ingleses; onde havia capital norte-americano esses mesmos ativos
seguiam os padrões norte-americanos. Foi nesse cenário que se deu a formação
das primeiras ferrovias brasileiras. A economia, praticamente toda voltada para
exportação, definiu os projetos e os investimentos em transporte, formatando o
território brasileiro. Na realidade, foi apenas um reforço do “arquipélago” que já vinha
se formando. O território brasileiro possuía regiões econômicas isoladas,
258
principalmente devido à configuração do sistema dos transportes, pois as longas
distâncias criavam monopólios naturais (CANO, 1998, p.60) que eram superados
apenas através da navegação de cabotagem (BARAT, 1978, p.91). Tal formação
geográfica também ficava evidente na aceitação da heterogeneidade de tecnologias
e bitolas utilizadas (mais de 10 tipos diferentes), pois como sistemas independentes
não havia necessidade de padronização e tráfego mútuo (CAIXETA-FILHO, 2001b,
p.82).
Como a burguesia paulista decidia sobre a configuração espacial da rede
ferroviária em grande parte dos investimentos, ela também decidia sobre a
circulação de bens e pessoas, o que culminava no quase completo controle sobre o
processo produtivo (DIAS, 2002, p.142). A união do capital desses investidores
orientou o desenho das ferrovias cujo traçado foi escolhido para que passassem por
suas fazendas auxiliando na escoação da sua produção. Essas linhas visavam única
e exclusivamente atender as necessidades imediatas para a exportação de produtos
primários e posteriormente eram abandonadas assim que um ciclo econômico se
concluía. Como salienta Vencovsky (2005):
“a implantação das ferrovias coincide com a formação dos corredores de transporte conhecidos atualmente. Seu traçado já é uma norma definidora de seus usos. E, uma vez definido este traçado, e devido principalmente à sua rigidez, o sistema é pouco flexível para novos usos”.
As ferrovias nas regiões econômicas brasileiras
Foi durante a década de 50 do século XIX que floresceram os primeiros
projetos para a formação das ferrovias, principalmente nas proximidades das regiões
produtoras de café, mas grande parte destes projetos levou mais uma ou duas
décadas até que se tornassem realidade: no trevo formado entre São Paulo, Paraná
e Mato Grosso discutia-se um projeto para escoar a produção do interior para o
litoral; a Recife and São Francisco Railway Company iniciou em 1853; em 1857 foi
concedido o direito de operação de uma ferrovia no Ceará.
Contudo, a primeira ferrovia a ser construída, operando no trecho entre o
Porto de Estrela e Raiz da Serra em Petrópolis, por Irineu Evangelista de Souza,
posteriormente conhecido como Barão de Mauá, trafegou pela primeira vez somente
em 1854. A empresa por ele montada ainda operava o trecho naval ligando o
referido porto à Baía de Guanabara com o principal objetivo de transporte de
passageiros. Mauá ainda traria o capital e know-how inglês para a construção da
ferrovia São Paulo Railway, iniciada sua construção em 1859 e suas operações em
259
1867 para o transporte de cargas da capital paulista para o Porto de Santos.
A segunda ferrovia brasileira foi concedida a dois ingleses em 1853 e
concluída em bitola larga em 1858 ligando Recife a São Francisco. No Ceará, a
Great Western of Brazil Company (GWBC) teve a concessão do governo imperial
para operar em 1872. No entanto, foi no centro econômico brasileiro que o sistema
ferroviário brasileiro floresceu. O Governo Imperial deu prosseguimento a sua
própria rede, criando em 1858 a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II.
O mesmo ocorreu na década de 60, agora atingindo mais o Sul do Brasil.
Projetos foram desenvolvidos, porém a implantação destes foi na década de 70: no
Rio Grande do Sul inaugurou-se a primeira linha ligando Porto Alegre a São
Leopoldo em 1874; no Paraná, apesar da concessão recebida em 1871, a ferrovia
projetada por André Rebouças ligando Curitiba a Antonina só foi concluída em 1880.
Porém, diferente do que se percebeu nos casos mais ao norte do país, o
envolvimento do poder público na região Sul veio através das províncias que abriam,
através de suas leis provinciais concorrência para as concessões ferroviárias em
seus territórios. A construção da então Estrada de Ferro do Paraná, precursora do
que se tornaria a América Latina Logística, iniciou-se efetivamente em 5 de junho de
1880 a partir de Paranaguá, cuja concessão na época pertencia à Compagnie
Génerale des Chemins de Fer Brésiliens, empresa de capital belga.
A partir de 1875 as concessões governamentais passaram a considerar o
controle do padrão métrico das bitolas utilizadas nas ferrovias, mas ainda assim não
em um nível de comprometimento que tivesse evitado, por exemplo, que a Ferrovia
Oeste de Minas abrisse sua operação em 1881 com uma bitola de 0,76 m. Nessa
época, as companhias abertas no Nordeste enfrentavam sua primeira crise, como
resultado da Grande Seca ocorrida no ano de 1877. Um pouco mais de uma década
mais tarde outras ferrovias na região Sudeste passariam pelo mesmo problema com
a queda da produção de café.
Os vários projetos independentes que se seguiram, com ramais interligando
o interior dos estados com as principais ferrovias, careciam agora de viabilidade
econômica não só devido aos fatores do mercado agrícola brasileiro, mas
principalmente devido à falta de capacidade administrativa, pois muitas delas já
operavam em condições deficitárias nos tempos de vacas gordas da economia
brasileira. No Nordeste a GWBC encampou a E. F. Central de Alagoas, a E. F.
Conde D'Eu, a E. F. Paulo Afonso e a E. F. de Natal a Nova Cruz em 1880. No Rio
260
de Janeiro e em Minas a Estrada de Ferro Dom Pedro II fazia o mesmo; enquanto
que esse papel ficou a cargo da São Paulo Railway no estado economicamente
mais ativo da nação.
O Sul do Brasil seguia uma direção diferente. As pequenas ferrovias ainda
se propagavam. Em 1884 inaugura-se a Estrada de Ferro Porto Alegre –
Uruguaiana, com o objetivo de apoiar a defesa da fronteira oeste, e a Estrada de
Ferro Rio Grande - Bagé. A linha até Curitiba foi inaugurada em 5 de fevereiro de
1885, e até hoje impressiona pelo arrojo na travessia da serra do Mar, pelas
dificuldades vencidas pela equipe de obras do engenheiro João Teixeira Soares,
constituindo-se num monumento à engenharia brasileira. Praticamente ao mesmo
tempo era construída, também na fronteira oeste, a Estrada de Ferro Barra do
Quaraí - Itaqui, depois estendida até São Borja e concluída em 1887, administrada
pela The Brazil Great Southern Railway Company Ltd., mais conhecida como BGS.
Em meio às turbulências econômicas vividas no sudeste do país, proclama-
se a República no Brasil em 1889. Em dezembro desse mesmo ano existiam mais
9.500 km em exploração e 9.000 km em construção ou em estudo. Não tardou para
que o mesmo comportamento apresentado pela indústria no Nordeste e no Sudeste,
também ocorresse no Sul. A ampliação de suas ferrovias prosseguiu, alcançando
Ponta Grossa em 1894 e Rio Negro em 1895, mas tais concessões foram
encampadas pelo Governo Federal em 1904 e arrendada ao engenheiro Carlos
Frojd Westerman, que em 5 de abril de 1910 transferiu o contrato para a Estrada de
Ferro São Paulo - Rio Grande.
O país experimentava nesses primeiros anos do século XX uma verdadeira
explosão ferroviária. O tamanho da malha evoluiria de 17.605 quilômetros de via em
1907 para 26.025 em 1914, início da 1ª Guerra Mundial. As muitas ferrovias que
haviam declarado falência e sido adquiridas pelo Estado nos primeiros anos do
século, agora eram novamente arrendadas para a iniciativa privada. Um dos
principais investidores da época e foi o polêmico Percival Farquhar, um capitalista
americano que investiu em diversas ferrovias. Seus inúmeros negócios foram à
falência devido ao grau de endividamento que se encontrava quando teve início a
Primeira Guerra Mundial.
O processo de estatização
Até 1930 a malha ferroviária brasileira continuou a sua evolução, ainda
261
sobre modelo semelhante: favorecimento à exportação da produção agrícola, pouca
padronização, capital privado internacional com financiamento do governo e
baixíssima qualidade administrativa. A lógica público/privada também permanecia:
enquanto lucrativas, as ferrovias tinha controle privado; na seqüência da queda dos
lucros, encampação governamental. Ao final da Primeira Guerra, Farquhar voltaria a
controlar diversas ferrovias brasileiras, mas quebraria novamente com a Crise de
1929. Diferentemente das ferrovias, as estradas foram construídas objetivando a
integração regional e sob o comando do governo. As rodovias construídas eram
capazes de transportar as cargas muito mais rapidamente, não só devido à
qualidade da estrutura de tráfego, mas principalmente devido à qualidade do trajeto.
O Estado já era dono em 1929 de 67% das companhias ferroviárias
brasileiras e responsável por 41% da malha (mais de 10 mil km) (Castro, 1999). Foi
quando Washington Luís apresentou o que seria o foco dos governos daí em diante
em termos de investimento em infra-estrutura, com a frase “governar é abrir
estradas”. O desenvolvimento rodoviário foi rápido e aconteceu num momento difícil
para as ferrovias. Não bastasse a debilidade financeira principalmente devido à crise
cafeeira, todas ficaram expostas à fragilidade de todo seu processo de
desenvolvimento da malha quando se perdeu o monopólio do transporte (Krüger,
2003).
A Segunda Guerra Mundial trouxe à tona as deficiências de todo o sistema
de comunicação terrestre do país quando os ataques de submarinos alemães
demonstraram as dificuldades em se transportar cargas ao longo de todo o litoral
(VENCOVSKY, 2005). Além disso, a situação política do país contribuía para um
forte sentimento de investimento na segurança nacional. Ao final da Segunda
Guerra, as relações do Brasil com os Estados Unidos eram fortes. Em 1947 foi
criada a Comissão Técnica Brasil-Estados Unidos cujo objetivo era avaliar os
projetos que seriam escolhidos para o financiamento fornecido pelos norte-
americanos. Um dos resultados do apoio brasileiro aos Aliados que culminou na
formação dessa comissão e no investimento em diversas companhias e na formação
de várias empresas brasileiras, foi a construção da Companhia Siderúrgica Nacional.
Outro exemplo da presença americana no território brasileiro foi a construção da
primeira fábrica da Coca-cola no Brasil, onde foi instalada uma base nordeste, com o
objetivo de cumprir a promessa feita aos soldados americanos de que qualquer um
deles teria acesso a uma coca-cola gelada em qualquer lugar do mundo.
262
Tais recursos seriam posteriormente reunidos sob a bandeira do Banco
Nacional do Desenvolvimento (BNDE)48, criado em 1952. A criação do banco foi
uma exigência dos norte-americanos, que queriam uma contra-partida brasileira
equivalente para cada dólar americano. A proposta do banco foi resultado da
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU), criada em 1950 para planejar o
desenvolvimento do país na agricultura, transporte, mineração e energia elétrica.
Atuava principalmente identificando e definindo projetos de infra-estrutura que
seriam financiados pelo Banco Mundial e pelo Eximbank, um banco americano cujo
objetivo era financiar a exportação e importação de bens e serviços. Faltava ao
Brasil na época instituições que se dedicassem ao financiamento de longo prazo,
necessário para o desenvolvimento de projetos industriais e de infra-estrutura e o
BNDE vinha suprir essa lacuna.
Apesar da forte tendência aos investimentos em rodovias nos governos do
período, dos 41 projetos elaborados pela CMBEU, 24 estavam relacionados ao
sistema ferroviário. O primeiro financiamento do BNDE foi assinado em 1952 e
tratava-se justamente de um programa para o re-aparelhamento da Estrada de Ferro
Central do Brasil. O setor ferroviário encontrava-se desorganizado e com
deficiências técnicas, administrativas e financeiras, além de até então não existir
nenhuma política governamental específica para o setor. Outros financiamentos
ainda seriam aprovados para diversas ferrovias antes que, em 1957, fosse criada a
Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA). A criação da Rede visava,
entre outras coisas, compensar a falha do processo de desenvolvimento da malha
brasileira, permitindo que existisse uma rede integrada em todo o país.
A RFFSA vinha fortalecer a participação do Estado na economia. Na mesma
época foram constituídas diversas grandes empresas estatais, entre elas:
Companhia Vale do Rio Doce (1942)49, Petrobras (1953) e Furnas (1957). A nova
estatal incorporava as estradas de ferro de propriedade da União bem como todas
que viessem a ser transferidas para o domínio do governo federal ou cujos contratos
de arrendamento viessem a ser encapados. Tratava-se de 12 ferrovias no início, as
48 Somente a partir da década de 80 o banco iria incorporar ao seu nome o aspecto social, modificando para Banco Nacional de Desenvolvimento Social, ou BNDES.
49 A empresa nasce quando o governo de Vargas encampa as empresas de Percival Farquhar, contendo as minas de ferros do interior de Minas Gerais e a ferrovia que ligavam essas minas ao Porto de Vitória.
263
quais reuniam 78% da malha brasileira, o equivalente a 28.460 quilômetros de
linhas. Os déficits assumidos seriam pagos com recursos do Tesouro Nacional e
progressivamente foi desativado o transporte de passageiros devido principalmente
ao retorno financeiro desse tipo de negócio frente a competição dos outros modais e
à falta de segurança dos trens.
Durante a década de 60, a RFFSA alcançou em seu auge 22 estradas de
ferro e 160 mil funcionários, mas algumas providências positivas foram tomadas ao
longo de sua administração. Dentre essas atitudes, destaca-se: a erradicação de
oito mil quilômetros de linha e ramais de baixa densidade antieconômicos; o
redesenho da operação para o transporte de cargas tipicamente ferroviárias; e a
implantação de tecnologias para tornar o transporte mais eficiente (por exemplo,
substituição de locomotivas a vapor por outras a diesel e freios de melhor
qualidade).
Em paralelo à estrutura desenvolvida pela RFFSA, desenvolviam-se também
as ferrovias administradas pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Na década
de 1960 foram financiadas diversas obras na Estrada de Ferro Vitória Minas e duas
décadas depois foi financiada a construção da Estrada de Ferro Carajás, ambas
para a escoação da produção de minério de ferro do interior do país para os portos.
A grande maioria desses projetos de melhoria, tanto na RFFSA quanto na CVRD, foi
financiada pelo BNDES, mas também houve alguns projetos financiados por
organismos internacionais como o Banco Mundial. Entre 1968 e 1973 a RFFSA
recebeu, somente através de dois contratos com o BNDES, aproximadamente R$
800 milhões50 em financiamentos para material rodante, metade deles destinado à
melhoria da infra-estrutura para a escoação da safra agrícola no Sul.
Contudo, os problemas ainda eram maiores do que as soluções. Os preços
do petróleo em conjunto com a política de ocupação e integração econômica do país
por rodovias tornavam o modal rodoviário extremamente competitivo. Somava-se a
isso as dificuldades para se instituir estratégias competitivas frente a uma
administração altamente influenciada pela instabilidade política do período.
A criação da Fepasa em 1971 não alterava o papel do Estado na indústria,
uma vez que as cinco ferrovias incorporadas já pertenciam ao governo de São Paulo
50 Em reais constantes de 31 de Dezembro de 2001.
264
antes da operação; tratava-se apenas de uma reestruturação. Esta também recebeu
recursos do BNDES para financiar projetos de melhoria e extensão de sua malha.
Seria no começo da década de 1980 que o Estado tentaria pela última vez
tornar as ferrovias estatais rentáveis. Em 1982 o BNDES investiu em mais um
projeto, agora visando à reestruturação da RFFSA, prevendo tratá-la como empresa
auto-sustentável, com pagamento de normalização contábil pelo governo federal
pela operação dos trechos deficitários de interesse social e com assunção das
dívidas contabilizadas até aquele momento. A Fepasa passaria por programa
semelhante, mas assim como na RFFSA, também não alcançariam o objetivo
proposto. Somente as ferrovias administradas pela CVRD conseguiu desenvolver e
aplicar tecnologias que tornavam esses centros de custo em referências mundiais de
produtividade. Nessa mesma década, em paralelo com outros movimentos políticos
e econômicos, constituiu-se a concessão e a construção da Ferronorte, uma
concessão de completamente privada de 90 anos.
O excesso de regulamentação, a burocracia, a centralização das decisões,
sobretudo nas áreas comercial e de operações, as interrupções por acidentes,
defeitos em locomotivas e falta de autonomia para aplicação dos recursos,
comprometiam o desempenho operacional da Rede (KRUGER, 2003). Sem a
perspectiva de gerar lucro através das operações e com a incapacidade dele arcar
com a normalização contábil que havia sido combinada no início da década, tanto
RFFSA quanto Fepasa tornaram-se inadimplentes com o BNDES e ficaram
estranguladas e sem fontes de recursos para manter os investimentos necessários à
manutenção adequada de seus ativos.
Condições Políticas e Macroeconômicas anteriores às privatizações
A participação do BNDE no setor ferroviário foi bastante relevante,
principalmente na década de 50 com objetivo de revitalizar a indústria após a
estatização da mesma. Inclusive, o primeiro financiamento realizado pelo banco foi
em 1952, destinando verbas para a Estrada de Ferro Central do Brasil, empresa do
governo que já possuía longo histórico na absorção de ferrovias deficitárias.
Desde a década de 70 já se percebia que seria necessário realizar ajustes
na política governamental. Após o primeiro choque do petróleo, o foco da política
econômica havia sido redirecionado para a estabilização (Pinheiro & Giambiagi, Os
antecedentes macroeconômicos e a estrutura institucional da privatização no Brasil,
265
1999). Em 1979 foi criada a Secretaria Especial de Controle das Estatais (SEST),
cujo objetivo era garantir que a administração diária das empresas públicas refletisse
os desejos macroeconômicos do governo. A partir de então todos os planos de
investimento ou importações dessas empresas deveriam ser aprovadas pela SEST.
Dois anos depois seria criada a Comissão Especial de Privatização, a qual
identificou 50 empresas públicas candidatas para a privatização.
Os primeiros movimentos foram bastante restritos. O governo continuou com
uma grande participação acionária das empresas privatizadas e em alguns casos as
vendas na verdade foram para outras empresas governamentais. O BNDES, por
exemplo, absorveu seis empresas públicas falidas entre 1981 e 1984. Ainda havia
forte influência dos ideais de segurança nacional e desnacionalização da economia
que impedia operações mais abrangentes.
No governo Sarney (1985 a 1990) houve uma pequena tendência de
melhora: o número de empresas que mudaram de controle subiu de 29 para 42 e as
receitas de US$ 190 milhões para US$ 533 milhões. Porém, como ressaltam
Pinheiro e Giambiagi (1999) os problemas ainda eram os mesmos: falta de
compromisso político; inflação elevada; crescimento pequeno e irregular da
economia; e restrição à participação de investidores, principalmente internacionais.
Novamente, das 42 empresas citadas, 18 delas passaram para o controle dos
governos estaduais e duas foram incorporadas a outras instituições federais.
O país ainda sentia os efeitos da variação no preço do petróleo, o aumento
simultâneo nas taxas de juros internacionais e a pressão sobre as contas públicas
devido aos anos do regime militar financiados por instituições estrangeiras. Isso
criou um ambiente econômico difícil na década de 80: o PIB per capita teve
crescimento de 0,3% ao ano e a inflação anual evoluiu de 95% para 1783%.
Os planos econômicos da época baseavam-se em grande parte no
congelamento e controle de preços, principalmente através das estatais. Tinham um
objetivo duplo: aumentar a competitividade dos produtos domésticos e combater a
inflação. A ordem para as empresas do governo era que contraíssem empréstimos
externos para financiar os déficits e manter a política de preços de controle de
inflação. A Rede Ferroviária Federal sofreu ainda mais, pois o valor do frete
ferroviário representava uma parcela significativa dos cálculos inflacionários e houve
uma queda de 8% na produção agrícola na época do Plano Cruzado.
O BNDES teve um papel de destaque desde o começo no apoio ao
266
processo de privatização. O banco foi um dos principais financiadores das
operações do início da década de 80, algumas vezes participando no capital
acionário, outras garantindo empréstimos. Contudo, a inadimplência forçou o banco
a tornar-se acionista de várias empresas para reaver de alguma forma seus ativos.
Assim, o BNDES era um dos principais interessados no processo de privatização,
pois essas empresas absorviam uma parte substancial dos recursos financeiros e
humanos do banco (Bernardino, 2005).
Assim, o banco desenvolveu seus próprios meios para vendê-las. Foi essa
experiência, adquirida na década de 80 por alguns funcionários do BNDES, que
formariam as bases das leis relacionadas às privatizações da década de 90. As
mesmas pessoas que haviam conduzido os primeiros movimentos também seriam
responsáveis pelos passos seguintes.
Em março de 1990, com a posse do Governo Collor, foi enviada ao
Congresso uma medida provisória para o Programa Nacional de Desestatização
(PND). O BNDES, incumbido nessa medida de administrar e implementar o PND no
dia-a-dia, selecionava duas firmas ou consórcios de consultorias para cada
empresa a ser vendida. A primeira era responsável pela avaliação financeira e pela
recomendação do preço mínimo; a segunda apontava obstáculos e soluções para a
venda, além de identificar potenciais compradores e sugerir a forma de venda. Em
uma segunda etapa havia uma terceira firma, de auditoria, que garantia o
cumprimento de todas as etapas do processo de venda das estatais. O Judiciário e o
Tribunal de Contas também participavam desse processo de acompanhamento.
O PND foi instituído buscando apoiar outra estratégia macroeconômica que
seria realizada no mesmo ano. Depois de um feriado bancário, US$ 40 bilhões foram
bloqueados para serem devolvidos ao final 18 meses depois em 12 parcelas. A ideia
era incentivar a população a utilizar esses recursos nas privatizações (Pinheiro &
Giambiagi, Os antecedentes macroeconômicos e a estrutura institucional da
privatização no Brasil, 1999). Contudo, ela não teve sucesso basicamente porque
não foi possível privatizar as empresas no período esperado. O PND estava tão
amarrado que o processo naturalmente levava meses. Somava-se a isso inúmeras
ações judiciais que só permitiam a conclusão de qualquer processo depois de
julgadas. A primeira privatização no novo modelo só foi ocorrer em 1991 quando o
dinheiro retido já havia voltado à economia, muito desvalorizado.
Acreditava-se que a inflação de mais de 80% ao mês estava vinculada à
267
baixa liquidez da dívida pública. Justamente por isso já se previa o recebimento de
alguns títulos públicos como meios de pagamento no processo de privatização. Com
o descompasso entre o bloqueio dos ativos e a efetivação do processo de
privatização, o Governo se viu obrigado a expandir as possibilidades, incluindo
também as dívidas de médio e longo prazo com empresas estatais como moeda
para que houvesse capacidade de compra pelo mercado interno. Dessa maneira, o
BNDES não precisava financiar diretamente os compradores, as empresas se
tornariam bem mais atraentes e funcionaria como uma garantia de que os gastos
públicos não seriam elevados com as receitas das privatizações.
O processo de privatização foi bastante rápido, principalmente se
comparado aos casos de outros países, não só no que tange às ferrovias, mas
principalmente devido a toda reestruturação macro-econômica resultante do
processo. Contudo, para isso foi necessário a formação de um contexto que
permitisse a adoção tão rápida.
Somente a partir da metade da década de 1990 é que o ambiente político se
tornou propício a realização das reformas. Antes disso, os especialistas envolvidos
nas discussões das políticas econômicas não tinham consenso sobre os impactos
microeconômicos que a privatização provocaria no desempenho das empresas,
além da expectativa do impacto fiscal ser baixíssima (Pinheiro, 1999). Porém, a
partir de 1990 alguns argumentos a favor da privatização se fortaleceram (Pinheiro &
Giambiagi, 1999):
- A estratégia anterior, com políticas públicas intervencionistas, baseadas na
utilização das empresas estatais como instrumento de política macroeconômica
havia contribuído para o significativo aumento dos gastos públicos e para a
deterioração da qualidade dos serviços, piorando a situação do país;
- A privatização serviria como uma sinalização aos mercados financeiros
internacionais do compromisso do Estado em reduzir sua participação na economia,
reduzindo a percepção de risco de financiadores globais e as suas taxas;
- Colaborava com o Plano Real, pois atraía investimentos externos diretos
que ajudariam a financiar o déficit em conta corrente do regime de juros e câmbio;
A logística como indústria
Pode-se dizer que a logística sempre esteve presente na economia, mas
que somente a partir do pós-guerra as bases do pensamento logístico foram criadas.
268
Até então, o grau de integração da cadeia produtiva era muito baixo e diferentes
empresas eram responsáveis por diferentes atividades, cada uma sendo parte de
um fluxo que ia desde a matéria-prima até o produto final entregue ao consumidor.
No início do século XX surgiram algumas redes de varejo com competências
específicas para organizar a distribuição de seus produtos entre suas lojas.
Mas foi a segmentação implantada pelo exército norte-americano que trouxe
um novo paradigma para a distribuição. As necessidades militares de movimentação
de tropas, equipamentos e insumos para diferentes campos de batalha em dois
diferentes locais do globo, um do outro lado do Atlântico e outro no Pacífico,
aparentemente permitiram o nascimento da engenharia de transporte, da
distribuição física eficiente e do fluxo total de materiais. Esse tipo de pensamento
eventualmente levou à proximidade da relação entre engenharia e logística. Novas
funções nasceram e algumas já existentes aumentaram sua importância relativa.
No setor econômico existiam algumas diferenças. De 1945 até o final da
década de 50, os negócios viam a distribuição física por uma perspectiva funcional e
como parte do marketing. Armazenamento e revenda eram compartimentados.
Controle de estoque, tratamento de materiais e transportes cada um seguia sua
própria direção. Dentro de transportes, compras de insumos e distribuição de
produtos eram consideradas funções separadas. Esse período pode ser descrito
como uma etapa onde se definiu o campo de jogo e quais eram os pedaços do
quebra-cabeça do fluxo eficiente de materiais (Kent Jr. & Flint, 1997). O foco
principal foi sobre as funções que compreendiam a distribuição de produtos e como
torná-los eficientes de maneira independente.
No começo da década de 60 o conceito de custo total surgiu na literatura
acadêmica. Uma abordagem sistêmica foi sugerida e o termo “logística integrada” foi
utilizado com sentido econômico. Houve uma mudança da distribuição física como
foco principal da logística para um completo sistema de atividades trabalhando com
e dependendo um do outro. Quando o custo total ou a abordagem sistêmica foi
aplicada para analisar a firma, uma combinação lógica das previamente separadas
funções logísticas começou a evoluir. A logística de negócios nascia. A consolidação
da gestão do transporte dos insumos e produtos, armazenagem, controle de estoque
e tratamento de materiais começou a aparecer no meio acadêmico e na prática. Por
exemplo, produtos perecíveis de baixo valor, como comida, exigiam uma
organização diferente das atividades do fluxo do que para produtos não perecíveis
269
de alto valor, como tratores.
No começo da década de 70, outra perspectiva emergiu. O cliente passou a
ser considerado o foco principal da empresa. O serviço ao consumidor, do qual a
distribuição física é um componente, se tornou um item significativo. Adicionalmente,
os custos de carregar estoque, produtividade, e o conceito de nós de conexão
encontravam seu caminho na pesquisa e prática de logística. A logística se tornou
mais presente no meio acadêmico de negócios. Essa geração foi além da
minimização de custos e buscou maximizar os lucros e começou a olhar para a
logística como forma de satisfazer o cliente.
A logística passou a ser considerada uma das chaves para diferenciar a
firma a partir de 1980. A logística é vista como um componente crítico da estratégia
da firma. Os conceitos que emergiram foram gestão integrada da cadeia de
suprimento, do canal logístico, eficiência inter-organizacional, logística ambiental,
logística reversa, e um aumento da atenção para a globalização. Tecnologias da
informação assim como conceitos de estratégia tiveram influência significativa.
Essa Era é vista como um grande movimento para legitimar o processo de
gestão da logística integrada. O problema era como conectar toda a cadeia de
suprimento, criar valor para o consumidor e ser competitivo em mercados globais. A
alavancagem que pode ser adquirida através da diferenciação pela logística surge
parcialmente da dificuldade que os competidores têm em copiar sistemas logísticos.
A evolução do pensamento logístico foi classificada dentro de seis eras, que
se iniciam na virada do século XX. Elas são definidas como: (1) da fazenda para o
mercado; (2) funções segmentadas; (3) funções integradas; (4) foco no cliente; (5)
logística como um diferenciador; e (6) expansão das fronteiras e dos
comportamentos. Tais eras são definidas e apresentadas na figura a seguir como
um modelo da evolução do pensamento logístico.
270
Tabela 6-2: Fases da evolução da indústria logística.
Apesar de uma era ser descrita como um estágio discreto e separado, a
mudança de uma para outra não é dramática. Como um processo evolucionário,
eventos no macro-ambiente envolvendo várias dimensões econômicas e sociais
levam a mudanças. Tais aspectos influenciadores como tecnologia, mudanças nas
necessidades econômicas, novas descobertas e muitos outros contribuem para o
processo.
Era Período Características Principais Principal Influência
Foco na ligação fazenda-mercado
Transporte
Motor a vapor
Áreas funcionais independentes
Distribuição Física
Combustão Interna
Custo total
Abordagem sistêmica
Integração da logística
Serviço ao consumidor
Carregamento de estoque
Produtividade
Nós de ligação
Suprimento integrado
Canais logísticos
Globalização
Logística Reversa
Logística Ambiental
Logística de Resposta
Aspectos comportamentaisDesenvolvimento de teorias
Marketing
Ciências Sociais
De 1960 a
1970
Economia Industrial
Adiministração Científica
De 1980 a
2000
de 1970 a
1980
De 1960 a
1970
De 1940 a
1960
De 1916 a
1940Economia Agrícola
Militar
Tecnologia da Informação
Gestão da Estratégia
Da Fazenda para o Mercado
Funções Segmentadas
Funções Integradas
Foco no cliente
Logística como diferenciador
Expansão das fronteiras e
comportamental
271
ANEXO VI – TRECHOS DE UMA APRESENTAÇÃO DE RECRUTAMENTO
Palestra de Recrutamento no Coppead, Julho de 2008.
“Primeira pergunta que eu acho que vocês devem fazer antes de decidir o
que vocês vão fazer quando sair do mestrado é se o negócio é bom. (...) O negócio
é bom? É saudável? Ele vai a algum lugar? Tem um monte de lugar bom, um monte
de companhia legal, mas o negócio é mais ou menos. O problema de você pegar um
negócio mais ou menos é que, por mais excepcional que você seja, você pega um
negócio regular você transforma ele em bom. Se o negócio é bom e você for bom,
você consegue fazer uma coisa extraordinária.”
“Com fundamento, você já tem um caminho andado. (...) Segunda coisa que
eu pensava é se o negócio cresce. Que às vezes o negócio tem um fundamento
muito bom, mas o market share é muito alto, estável, tudo mais. Aí começa aquela
cosa de você torcer para o seu chefe se aposentar. Aí é doidera. Aí você entra no
looping que não faz nenhum sentido se vocês quiserem fazer alguma coisa que seja
realmente diferente, com a perspectiva de carreira de vocês. E claramente tem que
olhar para um projeto que cresça. Porque emprego, com sinceridade, acho que
ninguém aqui vai passar por problema de ter emprego. Quero ficar no Rio, quero
ficar aqui, isso tem aos montes. Tem problema nenhum. (...) A grande diferença é
você ter um projeto. Que é uma coisa que eu realmente admiro mais. Eu prefiro que
vocês quebrem 10 vezes, mas acreditem no projeto que vocês estão indo. É uma
outra escolha, não tem nada de errado. Mas não acho que foi para isso que vocês
estudaram 2 anos.”
“A terceira coisa é se vocês se identificam com os valores e a cultura da
empresa. Com a forma como os donos pensam. Isso é fundamental. Às vezes
aquele negócio de quadro de valores na parede e diz ‘ah, é mais um negócio desse’.
Leiam aquilo com atenção. Aqueles valores da companhia dizem muito do que ela é.
E conversem com as pessoas, falem com quem está lá dentro. (...) A ALL não é uma
empresa para todo mundo. A gente tem um monte de defeito. (...) Mas efetivamente
a gente tem uma série de valores, uma série de coisas que a gente acredita, que é o
que a gente é. Se você não acredita nisso não adianta entrar no projeto. Ah, esse
paga mais, esse paga menos. É o que menos importa nesse ponto de vocês. Vocês
tem que entrar num ponto bom.”
“Mas eu claramente eu via isso na ALL: fundamento muito sólido, potencial
272
de crescimento e que eu me identificava muito claro com a cultura. Eu sabia como
os caras pensavam: meritocracia, atitude de dono, sociedade, repartir o crescimento,
das pessoas poderem crescer conforme seu potencial. Isso é fundamental. E nessa
parte de meritocracia, todas as empresas que virão aqui até sexta-feira vão se dizer
meritocráticas. (...) Primeira pergunta que você faz: tem plano de carreira? Se o cara
disser sim, fuja. Plano de carreira é o inimigo número 1 da meritocracia. Qualquer
lugar que tiver plano de carreira, você pra crescer é um horror. Se você perguntar
qual é o da ALL é nenhum. Vocês podem estar no topo e não estar na companhia.
Simples. (...) Se começar esses tetos, a meritocracia não existe, é encaixada, que é
o tipo de coisa que eu não acredito. Eu acredito em gente que faz diferença e é
remunerada. E que acreditam num projeto grande, de sonhar grande, fazer coisas
grandes.”
273
ANEXO VII – ESTRUTURA SOCIETÁRIA DA ALL S.A.
Figura 6-3: Estrutura Societária do Grupo América Latina Logística.
Fonte: Valor Grandes Grupos, Novembro de 2007.
274
ANEXO VIII – DADOS SOBRE O MERCADO FINANCEIRO BRASILEIRO
Tabela 6-3: Ofertas de valores mobiliários da ALL registradas na Bovespa.
Fonte: Compilação do autor. Relatórios Anuais da ALL – 2001 a 2007; Registros de Ofertas da Comissão Valores Mobiliários.
Figura 6-4: Volume de operações no mercado financeiro.
Fonte: Comissão de Valores Imobiliários.
EMISSORA DT REGISTRO Prazo Tipo VOLUME
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 24/08/1999 12 nota promissória 100.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 19/05/2000 60 debênture 58.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 18/08/2000 60 debênture 42.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 18/12/2000 36 debênture 80.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 01/02/2003 72 debênture 55.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 01/06/2004 36 re-emissão 120.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 01/10/2004 60 re-emissão 135.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 24/06/2004 NA Ofeta pública de ações 320.850.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 24/06/2004 NA Ofeta pública de ações 267.375.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 24/10/2005 84 debênture 200.000.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 22/05/2006 12 nota promissória 373.500.000,00R$
ALL - AMÉRICA LATINA LOGISTICA S.A. 27/07/2006 60 re-emissão 700.000.000,00R$
R$ -
R$ 10.000.000.000,00
R$ 20.000.000.000,00
R$ 30.000.000.000,00
R$ 40.000.000.000,00
R$ 50.000.000.000,00
R$ 60.000.000.000,00
R$ 70.000.000.000,00
R$ 80.000.000.000,00
R$ 90.000.000.000,00
R$ 100.000.000.000,00
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Volume de operações no mercado financeiro das principais contas
AÇÔES DEBÊNTURES NOTAS PROMISSÓRIAS
275
ANEXO IX – HISTÓRICO DO GRUPO GP INVESTIMENTOS
(Teixeira, Hessel, & Oliveira, 2008)
O legado de Lemann
O que você pode e deve aprender com Jorge Paulo Lemann, fundador do
Banco Garantia, e seus inseparáveis parceiros, Beto Sicupira e Marcel Telles.
Juntos, eles ergueram um império de R$ 144 bilhões. Nesse processo, criaram uma
cultura corporativa revolucionária.
No fim do período letivo de 1957, como era costume na Escola Americana
do Rio de Janeiro, os alunos reuniram-se para escolher os destaques do ano.
Sempre em inglês, elegeram o mais amigável, o mais artístico, o mais fofo e assim
por diante. Na categoria "Most likely to succeed" (algo como "com mais chances de
ser bem-sucedido"), dois nomes foram lembrados.
Um deles, "Jorge Lemann". Retratado no álbum da classe com pinta, topete
e terninho de galã, Jorge Paulo Lemann, aos 17 anos de idade, é descrito como um
dos dois veteranos que estudaram desde o jardim-de-infância na Escola Americana.
"Embora aparente nunca estudar, ele sempre consegue boletins invejáveis –
principalmente 'As' com uma pitada de 'Bs'", diz o Livro do Ano. Bom aluno sem
fazer força, o jovem Lemann arrancava suspiros das colegas. "Ao longo dos anos,
Jorge trabalhou duro para adquirir sua reputação como um sedutor - a ladies' man -,
e, como verdadeiro brasileiro, seus interesses (além de tênis e pesca com arpão)
são ir à praia e observar as pessoas - garotas, isso sim." Lemann era conhecido na
escola por viajar muito ao exterior e por seus planos de fazer faculdade nos Estados
Unidos, de preferência em Harvard. No fim daquele ano, os estudantes prepararam
também a "Profecia da Turma", na qual tentavam prever como estariam seus
colegas dentro de dez anos. Nela, lê-se o seguinte: "Ganhando manchetes no
mundo dos esportes está Jorge Paulo Lemann, que recentemente venceu o
Campeonato Mundial de Tênis de 1967. Jorge, que administra uma importante
cadeia de fábricas de enlatados no Brasil, é atualmente casado com a Miss Universo
de 1967". Poucas vezes uma brincadeira de adolescentes revelou-se tão
premonitória.
Lemann chegou ao topo do ranking mundial de tênis por três vezes - embora
na categoria veteranos. Foi cinco vezes campeão brasileiro e defendeu tanto o Brasil
como a Suíça na Copa Davis. Nem sequer namorou a Miss Universo de 1967 - a
276
americana Sylvia Louise Hitchcock -, mas casou-se duas vezes, com mulheres
bonitas e elegantes: a psicanalista Maria de Santiago Dantas Quental, morta em
abril de 2005, e a educadora suíça naturalizada brasileira Susanna Lemann, dona da
agência de viagens Matueté. Com cada uma delas, teve dois filhos homens e uma
filha mulher. Ele tampouco é dono de uma fábrica de enlatados, a não ser que a
definição da categoria seja ampla o bastante para abarcar os bilhões de latas de
cerveja e refrigerante que saem anualmente das linhas de produção sob seu
controle. Mas, depois de se formar economista em Harvard, conforme planejado,
chegou a uma altura no mundo dos negócios que mesmo seus colegas de Escola
Americana não imaginariam.
Ao lado de Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, seus parceiros de
negócios há mais de três décadas, Lemann detém 25% do capital da maior
cervejaria do mundo, a InBev; é dono da holding Lasa, que reúne Lojas Americanas
e Blockbuster; do grupo B2W, onde estão agrupadas as lojas virtuais Submarino,
Americanas.com, Ingresso.com e o canal de televendas Shoptime; e da São Carlos
Empreendimentos Imobiliários. Os três estão entre os principais acionistas da maior
empresa de transporte e logística da América do Sul, a ALL, e, desde dezembro,
têm uma fatia de 8,3% do capital da CSX, uma das maiores ferrovias dos Estados
Unidos. Somadas, essas participações valem R$ 46,35 bilhões, o equivalente, por
exemplo, ao valor de mercado da Companhia Siderúrgica Nacional.
Lemann é hoje, aos 68 anos, a quinta pessoa mais rica do Brasil e a 172ª do
mundo. Ele aparece, ainda, na lista dos mais ricos da Suíça - onde reside desde
1999, num subúrbio exclusivo de Zurique -, pouco atrás da herdeira grega Athina
Onassis. Mais importante do que seu império e sua fortuna, para ele e para aqueles
que se interessam por questões de gestão e liderança, é seu legado para o meio
empresarial brasileiro. A cultura forjada por Lemann no Banco Garantia, a partir de
meados da década de 70, chegou ao varejo, por meio da Lojas Americanas,
comprada em 1982; à indústria, pela aquisição da Brahma, em 1989; influenciou
virtualmente todos os bancos de investimento brasileiros e espalhou-se pelas mais
de 30 empresas compradas até hoje pela GP Investimentos, fundada por Lemann,
Sicupira e Telles. Da Gafisa ao Ig, passando pela Telemar.
Mais do que isso, a "cultura Garantia", baseada numa rígida meritocracia de
resultados, numa preocupação obsessiva com a formação de líderes dentro de casa
e com a transformação de funcionários em sócios, tornou-se referência para
277
companhias tão afastadas da área de influência do lendário banco como Suzano e
Gerdau. "O Jorge Paulo não é só um dos melhores gestores de empresas do Brasil.
É um dos melhores do mundo", diz o industrial Jorge Gerdau Johannpeter,
presidente do conselho da Gerdau. "A única escola de administração que surgiu no
Brasil na minha geração foi a do Lemann, do Garantia", afirma Francisco Gros, ex-
presidente do BNDES e atual CEO da OGX, a empresa de petróleo e gás de Eike
Batista. Antonio Maciel Neto, presidente da Suzano, costuma tirar alguns dias por
ano para freqüentar cursos intensivos de administração em Harvard. Em fevereiro,
recém-chegado de uma dessas temporadas, deu o seguinte depoimento:
"Estudamos 15 cases das mais bem-sucedidas empresas do mundo. Em todos os
tópicos de gestão abordados, eu sempre me lembrava do Lemann. Ele já havia feito
no Brasil tudo aquilo que a escola pregava como as mais eficazes técnicas de
administração".
De Corretor a Banqueiro
A saga empreendedora de Lemann começa em 1971, com a compra de uma
pequena corretora de valores chamada Garantia, que intermediava operações de
compra e venda de papéis financeiros para clientes no Rio de Janeiro. Um negócio
semelhante ao que ele conhecera nos anos anteriores, como funcionário da
corretora Invesco, que faliu em 1966, e da Libra, onde ficou até comprar a Garantia.
Já nos primeiros anos, Lemann estabeleceu contato com o banco Goldman Sachs,
que usava a corretora para intermediar a maior parte de seus negócios no Brasil.
Aos poucos, passou a mandar gente para treinamentos e para estágios no banco
americano. O Goldman era pequeno àquela altura, mas já tinha desenvolvido uma
cultura baseada em atrair gente boa, remunerar bem as pessoas, avaliá-las e
transformá-las em sócias. Exposto a essa cultura, Jorge Paulo vislumbrou o modelo
de negócio que, acreditava ele, lhe daria vantagem no mercado brasileiro.
Em 1976, com cinco anos bem vividos no mercado, a corretora Garantia foi
procurada pelo JP Morgan, maior banco do mundo em capitalização naquela época.
O Morgan queria fazer um banco de investimento no Brasil em parceria com
Lemann. Quando, porém, as conversas estavam perto de um desfecho, o brasileiro
voltou atrás. Trocou a promessa de um futuro precocemente assegurado pelo direito
de permanecer no comando de seu negócio. Injetou capital próprio na firma, obteve
uma carta patente e criou o Banco Garantia. Lemann considera esta a decisão mais
278
importante e difícil que tomou em sua longa carreira.
Àquela altura, ele já tinha a seu lado os homens que se tornariam seus
mosqueteiros na arena dos negócios, ambos cariocas como Lemann. Marcel Telles
fora admitido na corretora Garantia em 1972, aos 22 anos. Até então, tinha quatro
anos de experiência no mercado financeiro, parte dos quais dedicados à enfadonha
tarefa de conferir boletos de compra de ações para o corretor carioca Marcelo Leite
Barbosa, entre meia-noite e 6 da manhã. Marcel foi indicado por amigos a Luiz
Cezar Fernandes, um dos sócios fundadores do Garantia, que decidiu colocá-lo à
prova. Em vez de atender aos anseios do economista recém-formado, que queria
ser operador no rentável open market (onde eram negociados títulos de dívida
pública), Luiz Cezar ofereceu-lhe uma vaga de liquidante - uma espécie de office
boy das corretoras pré-informática, encarregado de transportar títulos e
comprovantes das operações realizadas. Três meses gastando a sola dos sapatos,
porém, foram suficientes para lhe franquear acesso ao almejado posto de operador.
Carlos Alberto Sicupira, conhecido apenas como Beto, chegou à corretora
Garantia no ano seguinte, 1973, convidado pelo próprio Lemann. Meses antes, ele
vendera sua participação na corretora Cabral de Menezes para passar uma
temporada em Londres, no Marine Midland Bank, hoje parte do HSBC. O propósito
da viagem era conhecer técnicas de investimento novas, que pudessem ser
aplicadas no mercado brasileiro. Ao implementar o que aprendeu lá fora no
Garantia, Sicupira seria decisivo para o crescimento do banco na década de 70.
Montado o time base e abortada a parceria com o JP Morgan, Lemann
começou a pôr de pé uma cultura empresarial própria - mas muito inspirada na do
Goldman Sachs. A meritocracia saiu de lá, assim como o treinamento intenso e os
mecanismos para dar oportunidades às pessoas. Jorge Paulo estava apaixonado,
principalmente, pelo modelo de partnership do banco americano. Ou seja, pelo
processo de transformação de colaboradores em sócios pela via da distribuição de
ações. "O capitalista brasileiro, naquela época, queria basicamente tudo para ele. Os
'índios eram os índios'", Lemann costuma dizer.
"No Goldman Sachs, os sócios eram escolhidos a cada dois anos", afirmam
os pesquisadores Fernando Muramoto, Frederico Pascowitch e Roberto Pasqualoni
em um estudo sobre o Garantia conduzido pelo Ibmec São Paulo. "Para ser
candidato a sócio, o associado deveria estar trabalhando há pelo menos oito anos
no Goldman (sob jornadas de trabalho que chegavam a 16, 18 horas diárias, por
279
salários que muitas vezes ficavam abaixo da média de mercado) e ser indicado por
um dos atuais sócios ao comitê executivo da sociedade."
Lemann adotou esse sistema. De início, ele próprio ia vendendo parte de
suas ações aos parceiros de negócios, de modo a transformá-los em sócios. Bem de
acordo com sua crença de que as pessoas exercitam apenas uma parte de seu
potencial no trabalho, mas tendem a surpreender quando entram para a sociedade.
Ou seja: o sujeito que se considera dono do negócio é muito melhor do que aquele
que está ali porque recebe salário. Afinal, você trata melhor o seu carro ou um carro
alugado?
A engrenagem começou a girar sozinha quando os sócios antigos passaram
a vender participações para novos parceiros até se desligar totalmente do banco.
"No Garantia, o turnover (rotatividade) dos sócios era muito alto. Em 1980, eram 17
sócios. Desses, 13 permaneciam em 1983, e apenas cinco em 1996", diz a equipe
do Ibmec. Nos seus últimos anos, o banco tinha cerca de 300 funcionários. Lemann,
Telles e Sicupira entrevistavam, eles próprios, coisa de 800 pessoas anualmente,
para contratar 10 ou 15. Do recrutamento às promoções, a preferência sempre
recaiu sobre "gente que gosta de ser dona", que "entrega resultados" e "sabe avaliar
o que é importante". Lemann por vezes diz que todos os homens de negócio
realmente significativos que conheceu até hoje – gente como Sam Walton, do Wal-
Mart, e o investidor Warren Buffett (novo homem mais rico do mundo) - tinham como
característica principal a capacidade de enxergar o essencial rapidamente e
encontrar um caminho para chegar lá. Em geral, de uma maneira simples.
Assim como no Goldman, os salários no Garantia eram inferiores à média do
mercado. Sobretudo os dos chefes, já que quanto mais graduada a pessoa maior
era a parcela de seus rendimentos atrelada aos resultados. "A cada semestre, 25%
do lucro líquido do banco era dividido entre os associados de acordo com o seu
cargo e o desempenho auferido", afirmam os pesquisadores do Ibmec. O baixo
clero, 80% do quadro de funcionários, brigava por 11% do total de lucros a distribuir.
Candidatos a sócios (os chamados comissionados, equivalentes a 15% do pessoal)
e sócios (5% da equipe) repartiam os 89% restantes. Semestralmente, os
funcionários eram avaliados pelos chefes. O bom desempenho era premiado com
bônus; os melhores eram convidados a entrar na sociedade.
280
Talento por Metro Quadrado
Diferentemente do que se via no Goldman, no Garantia era possível virar
sócio com apenas cinco anos de banco. Na média, a idade dos sócios ficava abaixo
dos 35 anos. Os mais precoces chegaram lá aos 24.
José Olympio Pereira, hoje diretor do banco Credit Suisse no Brasil, entrou
no Garantia em 1985 e só saiu 13 anos depois, em 1998. Quando chegou, era um
engenheiro civil recém formado que sabia que seu futuro não estava na engenharia.
Ouvira falar que mercado financeiro era uma boa opção. E que o Garantia era o
melhor lugar para se trabalhar.
Assim que teve a chance, bateu na porta do banco e pediu emprego. "Se
não me cobrarem nada para trabalhar aqui, eu topo", disse. O que mais o
impressionou nos primeiros meses do Garantia foi a quantidade de pessoas
inteligentes e ambiciosas por metro quadrado. E as oportunidades que se davam a
elas. Um mês depois de sua chegada, Arminio Fraga desembarcou para comandar o
departamento econômico. O responsável pela área de
renda variável, àquela época, era ninguém menos que André Lara Resende
- que logo em seguida participaria da formulação do Plano Cruzado e, quase uma
década mais tarde, se tornaria um dos pais do Plano Real.
Apenas um ano se passara quando o responsável pela área de underwriting
do banco (ofertas públicas de títulos em geral, incluindo ações de empresas) foi
deslocado para o setor de câmbio. José Olympio, que desde o início se interessara
pelo departamento, foi convidado a assumir o posto. Aos 24 anos de idade. "A regra
lá era jogar no fogo e dar oportunidade para as pessoas se provarem", diz. Já
àquela altura, segundo o executivo, Lemann tinha uma "aura de liderança". "O Jorge
Paulo é um sedutor. Aparentemente simples, do tipo que usava calça US Top, mas
infinitamente sofisticado."
Uma das regras não escritas do banco – posteriormente aplicada a todas as
empresas sob sua gestão – era a de que existiam dois deslizes certeiros para
provocar uma demissão: aparecer na revista Caras ou comprar carro importado.
Para Lemann, esbanjar dinheiro ou se entregar à ostentação são pecados capitais.
Seus três filhos do primeiro casamento eram motivo de piada entre os amigos da
faculdade. Enquanto muitos deles, todos com menos dinheiro que os filhos de
Lemann, circulavam em carros importados, os três dirigiam surrados Gols e Paratis.
281
Jorge Paulo é um homem de hábitos, a maioria simples. Quando dá
expediente no escritório de São Paulo, seu "uniforme" é camisa branca de mangas
curtas, calça azul de sarja e confortáveis sapatos de camurça. No passado, era
comum vê-lo pedalando sua bicicleta, a caminho da padaria. Era ele quem
comprava o pão para o café-da-manhã das crianças. Até hoje, quando está no
escritório de São Paulo, às vezes vai a pé até o supermercado, comprar barrinhas
de cereal. Em compensação, não freqüenta eventos sociais, vai pouquíssimo a
restaurantes e raramente recebe em sua casa. Jura ter o mesmo peso desde os 17
anos. Às custas de um estilo de vida espartano. Acorda cedo, geralmente às 5h30, e
vai dormir antes das 10 da noite. O café-da-manhã é frugal: frutas e suco, apenas.
No almoço e no jantar, come pouco e só bebe água mineral. Sua dieta favorece
legumes, cereais e carnes magras. Nada de doces, nada de álcool (nem mesmo
cerveja...) nem de refrigerantes. Nas reuniões de conselho da Fundação Lemann,
bisnaguinhas macias do tipo egg sponge são incluídas no pequeno bufê. Jorge
Paulo é fã declarado, mas nunca cai em tentação. Enquanto seus companheiros de
mesa tomam um cafezinho, ele beberica água mineral, direto da garrafinha.
Até hoje, na copa de seu escritório pessoal, apenas alimentos saudáveis são
colocados à disposição dos funcionários. Pão, queijo branco e requeijão light são
oferecidos para o café-da-manhã. Uma cesta de frutas é recebida todas as tardes. O
bufê que o atende, o Nossa Casa, é o mesmo desde os tempos do Garantia. Um
cardápio semanal, todo de pratos saudáveis, é oferecido aos funcionários que
preferem almoçar no escritório.
Encomendas individuais são pagas à parte. Quando recebe visitas, os
gestos calorosos marcam mais do que o cardápio. "Na única vez em que me
encontrei com Lemann, ele mesmo arrumou a mesa, fazendo questão de servir a
mim e aos outros convidados", diz Maciel Neto, da Suzano. "Achei curioso e
extremamente gentil".
"Nossa Filosofia"
Arminio Fraga, também ele um financista bem-sucedido e de hábitos
modestos, foi economista-chefe do Garantia entre 1985 e 1988. Depois, trabalhou
para George Soros, presidiu o Banco Central no segundo governo FHC e fundou a
Gávea Investimentos. Não é por falta de modelos para comparação, portanto, que
ele tem Lemann e seu banco em alta conta. "Era um ambiente meritocrático, onde
282
todo mundo se sentia sócio e aspirava a ser sócio de fato. Um ambiente de alta
competência, com regras claríssimas de meritocracia", afirma. "Uma coisa
totalmente diferente do que existia no Brasil naquela época."
Três frases de um documento chamado Nossa Filosofia, que era distribuído
a cada novo funcionário do Garantia, resumem o ideal de Recursos Humanos de
Lemann: "As pessoas devem ser de alta qualidade. Para isso, selecionamos os
melhores e os treinamos bem. Todos participam dos lucros, e oportunidades estão
ao dispor dos que trabalham no Garantia e se provam". O "se provam" é o "xis" da
questão. Premiar os melhores funcionários e dispensar os que não dão conta do
recado é um darwinismo corporativo tão velho quanto o capitalismo. Inclusive no
Brasil. A inovação de Lemann foi introduzir parâmetros capazes de eliminar a
subjetividade. Basicamente, isso significa medir tudo. E não se distrair com
amizades ou tempo de casa na hora de distribuir bônus. "Nessa cultura não tem
espaço para gato gordo", diz um ex-funcionário do Garantia, que deixou o banco há
sete anos, é dono da própria empresa e, mesmo assim, só aceita falar do passado
sem ser identificado. Como seu depoimento é precioso, vamos chamá-lo de
Osvaldo, um nome fictício.
Osvaldo entrou no Garantia com 22 anos, recém-saído da faculdade. E
definitivamente gostou do que viu. "Para mim, que era superarrogante, metido a
besta, era perfeito. Finalmente estava entre meus pares", diz. "O banco (em uma
aparente contradição com sua propalada austeridade) pagava passagem de primeira
classe; cheguei a voar com o Jack Nicholson. Eu jantava no Nobu quando estava
em Nova York. Me achava o dono do mundo." O salário era baixo. Um quarto do que
a McKinsey e o Banco Indosuez ofereceram a ele na mesma época. "Meu primeiro
bônus foi um lixo. O segundo deu para pagar um jantar para a minha mãe no La
Tambouille [restaurante francês em São Paulo]. Com o terceiro, comprei um Fiat
Tipo. Assim foi, melhorando ano a ano. Ainda vivo daquele dinheiro."
Nem tudo, porém, eram alegrias. Ainda como jovem funcionário, depois de
perder três namoradas que não suportavam seu "casamento" com o banco, Osvaldo
teve uma conversa séria com o pai. "Ele me perguntava: como você trabalha num
lugar desses?", diz. "E tinha razão, porque eu perdia minhas próprias festas de
aniversário." No Garantia não havia dias tranqüilos. A frase que resume essa
filosofia é a que diz que um dia é 5% do mês.
283
A Canetada de Simonsen
Por muito pouco o Garantia não engrossou a estatística das empresas
brasileiras que morrem em seu primeiro ano de vida. Culpa de um episódio típico
dos anos de muita inflação e nenhuma democracia. Preocupado com uma disparada
de preços e salários, o então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen,
expurgou quatro pontos percentuais da correção monetária. A tunga quase feriu de
morte Lemann e companhia, porque o Garantia tinha posições grandes em ORTNs
(Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional). A canetada de Simonsen levou boa
parte do patrimônio do banco para o buraco.
Subitamente convencido de que precisava de alguém para traçar cenários
econômicos e, na medida do possível, antecipar guinadas como essa, Lemann
chamou o economista Cláudio Haddad, então professor da FGV, para lhe prestar
consultoria. "Gostei dele [de Lemann] desde a primeira reunião. Os empresários
brasileiros naquela época não tinham muita informação sobre o que acontecia lá
fora. Mas o Jorge Paulo tinha visão global", afirma o economista.
Haddad estava com 30 anos. Depois de uma longa temporada de estudos
nos Estados Unidos, tinha voltado de Chicago em 1974 - e viu no convite do
Garantia, inicialmente, uma oportunidade de complementar a renda de professor,
pressionada pela chegada do primeiro filho. "Eu não esperava, mas aquilo foi
fascinante", diz. Haddad saiu da FGV e tornou-se economista-chefe do Garantia em
1979. Brilhou no mercado a ponto de o Banco Central tomá-lo emprestado de 1980
a 1982 e fazer dele o primeiro diretor de dívida pública da história da instituição. Em
1983, Haddad voltou como sócio, para montar uma área de corporate finance
(serviços financeiros para grandes empresas). Mais dez anos e chegou a
superintendente, cargo executivo mais alto no organograma do Garantia, onde ficou
até a venda do banco, em 1998.
Poucas pessoas conhecem melhor a história do Garantia e de seus
principais sócios. Segundo ele, apesar das décadas de trabalho conjunto, Lemann,
Telles e Sicupira têm personalidades bem diferentes. Jorge Paulo é o estrategista,
um líder nato. "Tem um raciocínio absolutamente lógico", diz Haddad. Beto, ao
contrário, é um "operador do tipo trator", sempre transbordando energia. E Marcel "é
o cara mais focado". No trato com funcionários, sócios e clientes, Jorge Paulo
sempre foi a figura carismática. E Marcel, o boa-praça sem papas na língua. É o
284
mais informal do trio e também o mais falante. Bem humorado, sorridente, gosta de
desafiar as pessoas, na expectativa de que se superem. "A gente joga sempre um
osso maior do que se pode morder", ele costuma dizer. "Tem gente que adora isso,
tem gente que fica assustada pra burro. Assustou, saiu." Beto é o menos suave.
"Dos três, é o mais duro. Mas é um bom sujeito. Se gosta de você, te defende até a
morte. Se não gosta, sai debaixo", diz Haddad.
Por diferentes que sejam, ao longo de 35 anos, Lemann, Telles e Sicupira
tornaram-se figuras complementares. "Ao longo do tempo, pegamos confiança um
no outro. Ninguém vai deixar o barco afundar. Morre junto, se for o caso", disse
Marcel, em depoimento no livro Como Fazer uma Empresa Dar Certo em um País
Incerto, publicado pelo Instituto Empreender Endeavor. Lemann é citado na mesma
obra, dizendo: "Eu sou a favor de sócios. Tive sócios a vida inteira e isso me ajudou
muito (...). Nós três conseguimos fazer muito mais do que conseguiríamos
separados".
O estilo de liderança de Lemann talvez possa ser descrito como minimalista.
Não é coincidência o fato de que ele nunca apareceu no organograma de nenhuma
de suas empresas como presidente-executivo ou CEO. Ele é, tão tipicamente quanto
possível, um presidente de conselho. "O Jorge Paulo não faz a empresa funcionar.
Nunca teve paciência para detalhes operacionais", afirma Haddad. Seu interesse
está no quadro mais amplo, na última linha do balanço. Relatórios e apresentações
que chegam às suas mãos são sempre lidos de trás para a frente. Ele vai direto aos
números, à conclusão. O que sugere que um elemento central da cultura de gestão
que ajudou a criar - o foco nos resultados - é também um forte traço de sua
personalidade. O hábito de olhar primeiro para o saldo de uma iniciativa reflete uma
máxima que qualquer funcionário que tenha passado por suas empresas conhece
bem: "esforço não é resultado". Não importa o quanto alguém se empenhou numa
tarefa ou o que fez para cumpri-la. O que conta, ao fim e ao cabo, é se o objetivo
inicial foi atingido ou não. Dependendo dos números apresentados ao final de um
balanço, aí sim, ele talvez tenha interesse em conhecer detalhes sobre o caminho
percorrido para chegar até lá.
Se o chefe é assim, nada mais razoável do que os executivos de suas
empresas participarem de treinamentos para aprender a montar apresentações e
relatórios que vão direto ao ponto. E eles participam. Até porque ser objetivo numa
reunião com ele é uma necessidade. Lemann fica sonolento em reuniões muito
285
longas. Seus olhos se fecham involuntariamente e ele chega a cabecear. "Até que
abre o olho e sintetiza a resposta para o problema que está sendo discutido na
mesa", afirma Fersen Lambranho, um dos sócios controladores da GP
Investimentos, que teve Jorge Paulo como fundador e conselheiro entre 1993 e
2004. Um pouco por pressa, um pouco por indisponibilidade, muita coisa que passa
por Lemann é resolvida por e-mail. Onde quer que esteja, ele responde rapidamente
(e em pouquíssimas palavras) às mensagens. Em 2004, quando o BlackBerry ainda
era pouco usado no Brasil, ele já tinha o dele, hoje um companheiro inseparável de
viagens.
On the Road
Jorge Paulo é um globetrotter. Passe duas horas a seu lado e ele lhe
contará episódios passados nas Bahamas, na China, nos Estados Unidos, na Nova
Zelândia... As incontáveis horas de vôo são aproveitadas para leitura. Foi a bordo de
seu jato executivo de 18 lugares que ele devorou, por exemplo, The Last Tycoons:
The Secret History of Lazard Frères & Co. ("Os últimos magnatas: a história secreta
do Lazard Frères & Co."), de William Cohan - um dos "livros do ano" de 2007 da lista
de economia e negócios da revista The Economist. Ou Billions of Entrepreneurs
("Bilhões de empreendedores"), de Tarun Khanna, professor da Harvard Business
School que ocupa a cátedra Jorge Paulo Lemann naquela faculdade. Ele compara
os modelos de desenvolvimento da Índia e da China.
Lemann gostou bastante do livro Doing What Matters ("Fazendo o que
importa"), de Jim Kilts, o executivo que consertou a Gillette e preparou-a para a
venda para a Procter & Gamble. É um assunto que ele conhece por dentro. Jorge
Paulo foi um dos maiores acionistas da Gillette e teve assento no conselho da
companhia por cinco anos, parte deles durante a gestão de Kilts. Quando a Gillette
foi vendida para a Procter & Gamble, em 2005, Kilts entregou a empresa a A.G.
Lafley, CEO da P&G e autor de outro lançamento badalado: The Game Changer ("O
virador de jogo"). Lemann acha Lafley "sem graça demais". Com a venda da Gillette,
o brasileiro trocou seus papéis por ações da Procter. Na primeira oportunidade, foi
assistir a uma apresentação de Lafley. Saiu convencido de que, sob o comando
dele, nada de muito ruim aconteceria com a empresa. Nem nada de muito bom.
Tempos depois, vendeu, na alta, todas as suas ações.
Talvez por incompreensão sobre as virtudes e limitações de Lemann,
286
surgiram em torno dele um sem-número de mitos. Um dos mais recorrentes é o do
gênio financeiro, refutado pelos que o conhecem. "A cabeça de finanças do Marcel,
por exemplo, é muito melhor. O Jorge Paulo não entende nada de mesa de
operações", diz Cláudio Haddad. Outro é o do investidor intuitivo que transforma
negócios falidos em ouro. "O toque de Midas não existe", diz Antonio Bonchristiano,
parceiro de Fersen Lambranho no comando da GP Investimentos. "O importante não
é como ele decide, mas como orienta aqueles que estão abaixo para que tomem a
decisão correta."
Na "cultura Garantia", uma companhia não é uma pirâmide, com níveis
hierárquicos que se afunilam até a inexpugnável cúpula. A arquitetura é a de um
circo romano. O que significa que o líder está no centro, onde todos podem vê-lo. E
isso praticamente o obriga a liderar pelo exemplo. "Tem empresário que faz
negócios para ganhar poder, acumular patrimônio ou prestígio. O que o Jorge Paulo
adora é fazer negócios pelos negócios e ganhar dinheiro com isso", afirma
Bonchristiano. Para ele próprio e para seus associados. Lemann e seus sócios
orgulham-se de ser os maiores criadores de milionários do Brasil. Quem não gosta
dessa cultura vê os "garotos do Garantia" como versões brasileiras dos yuppies da
Wall Street dos anos 80. Pessoalmente, Lemann não veste a carapuça. Diz que se
diverte trabalhando, que gosta do que faz e que dinheiro é só um meio de medir o
desempenho de um negócio.
Recentemente, ao fazer uma reflexão sobre sua essência, Lemann pôs no
papel a seguinte definição: "Não sou um cara vidrado em poder (nunca mandei
muito); não sou ligado em ser dono (sempre dividi e me associei, se fosse
vantajoso); não sou ligado em dinheiro (quase não gasto, exceto para filantropia).
Nenhuma dessas coisas se levam conosco. O que eu gosto mesmo é de criar coisas
legais, regá-las e tentar garantir que tenham durabilidade".
Onde os fracos não têm vez
Ideologia à parte, o fato é que dinheiro sempre foi o combustível de qualquer
empresa de Jorge Paulo Lemann. "A divisão do lucro é insumo básico desse modelo
de negócio. Ele não faz isso porque é generoso", afirma Fersen. O avanço rápido
dos mais jovens e determinados é estimulado. A ordem é: aproveite enquanto está
no auge da força, porque ninguém vai aliviar para você no futuro. "Você tem de
saber, quando está subindo, que vai chegar sua hora de sair", diz o sócio da GP. Se
287
os mais jovens e aptos têm espaço para crescer e, em dado momento, atropelar a
geração anterior, na "cultura Garantia" os fracos não têm vez. "É uma cultura
darwinista demais. Dá para ficar muito rico trabalhando desse jeito, mas não dá para
ser feliz", afirma um ex-banqueiro de investimento que chegou a concorrer com o
Garantia nos anos 90, na área de private equity.
Numa estrutura enxuta como a de um banco de investimento, a seleção
natural se dá com alguma tranqüilidade. Uma marca da cultura Garantia é instilar
nas pessoas o sentido da competição. Por vezes, isso é feito por meio de jogos. O
próprio Sicupira, tempos atrás, saiu fantasiado de baiana na Avenida Rio Branco, no
Rio de Janeiro, depois de atingir metas na Americanas, que ele presidia. Fez
lembrar a célebre dança do hula-hula executada por Sam Walton em plena Wall
Street, em 1983, depois que o Wal-Mart alcançou uma margem de lucro de 8%.
Quando, porém, essas brincadeiras são transplantadas para grandes
empresas do setor industrial, com milhares e milhares de empregados, os efeitos
colaterais parecem ser inevitáveis. Com freqüência, quem não se adapta à cultura
sai voluntariamente ou é expelido do sistema. Por causa disso, surgem processos
trabalhistas peculiares. Por exemplo, em 2005 e 2006 a AmBev chegou a ser
condenada a pagar multas de até R$ 1 milhão sob alegação de assédio moral feita
por funcionários que não atingiam metas de venda no Rio Grande do Sul, Rio
Grande do Norte e em Minas Gerais.
Nos processos, há fartura de relatos de episódios que foram tomados como
humilhações. Coisas que vão desde proibir o empregado de baixo desempenho de
se sentar durante longas reuniões a obrigar profissionais a se vestir de mulher e
dançar sobre uma mesa na frente dos colegas. A AmBev sempre pagou as
indenizações. Foram, de acordo com a companhia, casos isolados. "A história da
hipercompetição é contada por quem saiu das empresas do grupo", afirma Fersen.
"Tem muita gente que não gosta de dizer a verdade, e tem muita gente que não
gosta de ouvir a verdade [sobre seu desempenho profissional]." A discordância
sobre este assunto é claramente incômoda para aqueles que adotaram como seus -
e mesmo de suas famílias - os valores de Lemann. O filho de Fersen estudava numa
das escolas de elite de São Paulo, que tinha um sistema de avaliação de
desempenho e premiação aos melhores alunos de cada classe. Quando o colégio
decidiu extinguir o prêmio, alegando que ele estimulava demais a competitividade
entre as crianças, Fersen mudou o menino para uma escola onde as turmas são
288
divididas por performance, como ele diz. "A vida é assim", afirma.
Questionamentos ao modelo de negócio do Garantia, considerado
intrinsecamente superior aos demais, tendem a ser recebidos com impaciência. O
próprio Marcel Telles, no entanto, já admitiu que esse regime de dedicação integral à
empresa, foco nos resultados e expectativa de bônus milionários não é para todo
mundo. A respeito disso, ele toma emprestado o lema dos marines americanos:
"Few and Proud" ("Poucos e Orgulhosos").
"As pessoas adoram dizer que a Natura é a companhia bacana, e a AmBev
é a que tira sangue", diz Bonchristiano. "Mas veja o que a Natura está passando
agora, por falta de resultados financeiros mais sólidos [as ações da companhia vêm
perdendo valor há meses e uma grande reestruturação foi anunciada em fevereiro].
Em contrapartida, os meninos da AmBev estão ganhando o mundo."
Muito Além da Cocada Preta
Ganhar o mundo é uma expressão cara a Jorge Paulo Lemann. Ele e seus
sócios estão entre os pioneiros do movimento de globalização das empresas
brasileiras. A convicção de que era preciso se internacionalizar veio em 1997, ainda
nos tempos do Garantia. Naquele momento, o banco se via como o "rei da cocada
preta". Achava que não tinha nada a ver com a crise asiática. Mas levou uma sova
quando os mercados viraram lá fora. Foi um claro sinal de que as coisas marchavam
para uma globalização. Lemann gosta de usar como anti-exemplo a companhia
mexicana Modelo. É uma cervejaria excepcional, rentável e dona da Corona, uma
marca mundial. Mas está só no México. Por isso, na consolidação mundial que
começa a ocorrer, seu papel vai ser pequeno. Também a AmBev poderia ter se
contentado com o domínio do mercado brasileiro. Lemann e seus sócios seriam,
novamente, os reis da cocada preta nacional. Mas não participariam do jogo mundial
de consolidação que está acontecendo como participam hoje, em condições de fazer
o que ele apelidou de "as grandes chamadas."
Já em 1994, seis anos antes da união com a Antarctica, a Brahma fez as
primeiras chamadas. Comprou a Cervejaria Nacional, na Venezuela, e iniciou
operações na Argentina. A partir da criação da AmBev, a internacionalização
deslanchou. Nos primeiros quatro anos, a empresa investiu US$ 700 milhões e
instalou-se em 11 países da América Latina.
Em 2004, uma possibilidade de fusão com a cervejaria belga Interbrew
289
começou a ser avaliada. Num mercado que apontava para uma consolidação global,
tornar-se realmente multinacional era um imperativo. E a união com os belgas
revelou-se a melhor opção. Se fechassem negócio com a americana Anheuser-
Busch naquela época, os brasileiros seriam engolidos. Com a Heineken, também
não se trataria de uma fusão entre iguais. Já com os sul-africanos da SAB Miller até
dava para conversar, mas dali nasceria uma firma composta de Brasil e África do
Sul, uma combinação indigesta para investidores internacionais – ou pelo menos
era, cinco anos atrás. Costurou-se, então, a fusão com a Interbrew, que deu origem
à InBev. Lemann, Telles e Sicupira trocaram os 22% de participação na AmBev, que
lhes garantia o controle da empresa, por 25% do novo negócio. Trocaram, também,
seu mando único, ao lado da Fundação Zerrener (Fahz), sobre a companhia
brasileira por um mando compartilhado com os belgas sobre a multinacional.
Além deste jogo de mercado, a parceria com os belgas reflete uma
coincidência de interesses. Para a AmBev, que desenvolveu como nenhuma outra
empresa a competência para formar jovens talentos motivados pelas oportunidades
que lhes são oferecidas, a internacionalização é uma maneira de manter a fila
andando. Em uma conversa com Jim Collins, consultor e autor do clássico Feitas
para Durar, Marcel foi questionado: "Qual o problema da empresa hoje?".
Respondeu que, mantida a estrutura então existente, a falta de oportunidades
internas seria um risco. A AmBev contava com jovens executivos de primeira linha,
como Carlos Brito, nos melhores postos disponíveis no Brasil. E, embaixo deles, um
esquadrão de diretores e gerentes bem formados e ambiciosos. Se o topo da cadeia
não se movesse, o modelo de meritocracia poderia entrar em colapso. Logo, seria
fundamental que houvesse uma expansão para fora do país.
Por outro lado, a Interbrew via-se dona de um portentoso portfólio com mais
de 200 marcas, mas seus resultados poderiam ser melhorados. Hoje, a
multinacional belgobrasileira está presente em 32 países das Américas, da Europa e
da Ásia. Marcel passa metade de seu tempo em viagens pelo exterior.
Outro fator que favorece o processo de globalização da AmBev é o capital
humano. Setores associados à velha economia, como mineração, siderurgia,
cimento, e a própria cervejaria, deverão cada vez mais, como se observa, ser
controlados por empresas provenientes de países emergentes. A brasileira Vale, as
indianas Tata e Mittal Steel e a mexicana Cemex são exemplos ilustrativos dessa
tendência. Jovens de países desenvolvidos almejam trabalhar em setores
290
tecnologicamente mais inovadores. Já seus pares oriundos de países emergentes
não desprezam oportunidades na indústria tradicional. Ao contrário, para um
brasileiro, um indiano ou um chinês, promover um turnaround (uma virada para
melhor) numa grande cervejaria europeia pode ser a oportunidade de uma vida.
Hoje, a regra é a mobilidade. Assim como há brasileiros na matriz belga, há
expatriados estrangeiros em postos importantes na sede brasileira da AmBev. A
língua oficial do grupo é o inglês. É nesse idioma que são feitas as freqüentes
reuniões para intercâmbio das melhores práticas alcançadas em cada país. Para
muitos jovens belgas, a InBev e sua aguerrida cultura tornaram-se agora uma
alternativa de emprego. Por falta de empresas com esse perfil, muitos dos
formandos mais ambiciosos optavam por tentar a sorte na Inglaterra. Com todo esse
movimento internacional de executivos, é fácil concluir que está se formando um
valioso ativo multicultural.
Motivado pelos negócios da InBev, que tem 1 bilhão de euros investidos por
lá, Lemann tem ido com freqüência à China. De onde sempre volta impressionado
com a ânsia do chinês por ganhar dinheiro, empreender, subir na vida. Quem já o
ouviu elogiando o Partido Comunista de lá custa a crer que se trata mesmo do mais
capitalista dos capitalistas brasileiros. A China, observa ele, pode não ser uma
democracia, mas é, sim, uma meritocracia. Você só sobe no partido se foi um bom
prefeito de Xangai, se tocou bem uma empresa estatal ou fez coisa semelhante.
Jorge Paulo compara o PC à General Electric, no sentido da eficiência. E adverte
quem quiser ouvir: "Competir com aqueles caras não vai ser moleza, não".
No ano passado, Lemann levou sua família para "bicicletar" pela China. Ele,
cinco dos seis filhos e alguns netos. Como os casais chineses, devido à política de
controle de natalidade, só podem ter um filho, a trupe de brasileiros chamava a
atenção. A ponto de chineses pedirem para tirar fotografias do pequeno clã ali
reunido. Choques culturais à parte, o propósito da viagem foi dar aos filhos a chance
de começar já a se familiarizar com aquele que promete ser o país mais importante
do futuro.
O Pitbull do Garantia
Os diferentes estilos de Lemann, Telles e Sicupira revelaram-se em cores
vivas quando eles migraram do ambiente ultracompetitivo de um banco de
investimentos para empresas de setores mais tradicionais. Marcel era o chefe da
291
mesa de operações do Garantia – o chamado head trader. Até fazer uma notável
transição para ser CEO da Brahma, uma enorme fabricante de cervejas. "Um trader
nunca é bonzinho. Numa mesa de operações, você é um lobo entre lobos que
querem te comer", afirma Cláudio Haddad. Na AmBev, Telles aprendeu a pastorear
ovelhas.
Já Beto mostrou as garras logo que assumiu a Lojas Americanas - comprada
por ele, Marcel e Lemann em 1982, na primeira oferta hostil da história da Bovespa.
Comum nos Estados Unidos, a manobra até então inédita por aqui consiste em ir
comprando, aos poucos, ações de uma empresa até formar uma posição grande o
bastante para desafiar os controladores e forçá-los a abrir mão do comando. Assim
foi feito na Americanas, e o choque de, do dia para a noite, ter um novo dono e uma
gestão radicalmente diferente convulsionou a empresa. Ao primeiro contato com as
metas, os controles de custo e a dura cobrança por resultados levados do Garantia,
um grupo de diretores da rede varejista se rebelou. Numa reunião desagradável, ao
final de uma manhã de trabalho, os revoltosos puseram o novo presidente contra a
parede. Com uma ameaça resumida por um sonoro "se você não mudar, não dá
para ficar na empresa". Beto ouviu, ponderou por algumas horas e, logo depois do
almoço, demitiu todos os diretores rebeldes. "Aprendi que é preciso bater de frente -
e logo - com o problema. Complacência zero, principalmente quando se está
construindo a cultura da empresa", disse ele no depoimento à Endeavor.
Em se tratando do pitbull do Garantia, o desfecho não deveria surpreender.
Nove anos mais novo que Lemann e carioca como ele, Carlos Alberto da Veiga
Sicupira é o protótipo do self made man. Filho de um funcionário público e de uma
dona de casa, descobriu o mundo dos negócios aos 14 anos, comprando e
vendendo carros. O prazer de negociar o fez abandonar o sonho inicial: ser
marinheiro. "Queria uma coisa que, se desse certo, eu não soubesse o limite. [Na
Marinha] se fizesse tudo certo, eu sabia aonde iria parar: ocupando o cargo de
almirante", afirmou ele. Beto formou-se em administração de empresas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas foi no mar, praticando pesca
submarina, em 1973, que ele conheceu o homem que se tornaria seu sócio por toda
a vida. Talvez impressionado com o fôlego e a pontaria do recém-conhecido,
Lemann o convidou para trabalhar no Garantia. Antes disso, Sicupira tinha feito
carreira em corretoras e distribuidoras de valores. A primeira delas, montada do zero
por ele próprio, aos 17 anos de idade - depois de emancipar-se judicialmente. Beto
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não sabia nada sobre corretoras. Montou o negócio já pensando em vendê-lo, como
efetivamente fez um ano depois, criando um hábito que o acompanharia ao longo de
toda a carreira. Até a compra da Lojas Americanas, o lema do Garantia era "não
passar da sala de visitas". Ou seja, limitar-se a investir em empresas, sem envolver-
se na operação delas no dia-a-dia. Convencido do potencial de crescimento do
varejo no Brasil, Sicupira começou a comprar ações da Americanas aos poucos.
Quando olhou para a maneira como a empresa era administrada, teve a certeza de
que precisava se envolver no negócio para fazê-lo crescer. Dada a péssima
reputação da rede varejista no mercado naqueles tempos, ele convenceu Lemann e
Marcel a comprar de uma vez o controle dela, e se ofereceu para deixar o banco e
consertar a companhia. Assim foi feito. Beto manteve as ações do Garantia, mas
abriu mão do salário que recebia. "Eu sempre quis fazer coisas que os outros não
faziam. Sempre quis pegar umas bolas meio quadradas", diz ele, no livro já
mencionado. Sob seu comando, o número de funcionários na Lojas Americanas
cairia, nos anos 80, de 14 mil para 8 mil. Começava ali a ser criada a fama de
ceifadores de empregos da turma do Garantia. Na AmBev, a redução foi de 24 mil
para 14 mil colaboradores. Na ALL, de 12 mil para 1,8 mil. Ao longo dos anos, esse
enxugamento foi revertido. Hoje, a Americanas emprega 14 mil funcionários, a ALL
6,5 mil e a AmBev, 35 mil, sendo 22 mil no Brasil.
Na Picape de Sam Walton
Logo depois de ser informado por Sicupira da degola geral na cúpula da
Lojas Americanas, Jorge Paulo enviou seis cartas para grandes varejistas do mundo
todo, pedindo auxílio para conhecer o setor. Dois responderam. Um deles era Sam
Walton, convidando o brasileiro a conhecer a sede do Wal-Mart em Bentonville -
então um buraco no interior do Arkansas. Depois de horas intermináveis de vôo,
começando num Boeing e terminando num teco-teco, Lemann e Sicupira
desembarcaram em um aeroporto minúsculo. Encontraram de cara um sujeito
sentado numa picape surrada, equipada com cães e um rifle de caça. "Conhece
Sam Walton?", Jorge Paulo perguntou. "Sou eu mesmo, sobe aí e vamos embora."
Lemann e Sicupira acabaram ficando amigos do dono do Wal-Mart. Quando
descobriu que tipo de tenista era Jorge Paulo, Walton passou a convidá-lo para
formar dupla com ele e surrar adversários incautos. A lenda do varejo retribuiu a
visita e, obcecado que era por ver e entender tudo por conta própria, meteu-se num
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entrevero com seguranças de uma loja carioca do Carrefour, ao ser flagrado
medindo os espaços de prateleiras. O episódio do aeroporto é um indício do quanto
a frugalidade, que é uma marca da cultura Garantia, deve ao homem de Bentonville.
Não é possível, porém, compreender um dos seus valores fundamentais sem
conhecer um pouco da história dos Lemann.
Sua família paterna é da pequena cidade de Langnau, na região suíça de
Emmental. Ou pelo menos está lá há mais de 600 anos, desde que foi expulsa de
um vilarejo vizinho por, acredite, explodir uma fábrica de dinamite. Durante dois
séculos, os Lemann foram chapeleiros. Até que encontraram sua verdadeira
vocação no comércio de queijos. No início do século 20, literalmente sem espaço no
negócio para abrigar uma nova geração, a família "exportou" três irmãos Lemann
para a América. Um deles foi para a Argentina. Outro para os Estados Unidos. O
terceiro, pai de Jorge Paulo, veio para o Brasil. E aqui fundou a fabricante de
laticínios Leco, abreviatura de Lemann & Company. Mais do que práticas de
negócios, porém, o que Jorge Paulo herdou da família foi a ética protestante do
"Deus lhe dá o que você trabalhou para conquistar". Sua mãe, é verdade, era
brasileira. Mas também filha de suíços, que se estabeleceram na Bahia para
exportar cacau. "Era todo mundo linha-dura", Lemann gosta de dizer.
Aqueles, porém, que pensam em Jorge Paulo como bom moço em tempo
integral se surpreendem com um episódio de seu primeiro ano em Harvard. Em
tempos inocentes, 40 anos antes do 11 de setembro, ele viajara para os Estados
Unidos levando na bagagem bombas cabeça-de-negro brasileiras. Guardou-as em
seu alojamento, até que um dia estourou no campus uma rebelião estudantil. Em
meio ao tumulto de alunos gritando, acendendo fogueiras, pensou: "Momento ideal
para soltar as bombas". E começou a jogá-las pela janela do quarto. Foi um sucesso
com os rebeldes do lado de fora.
De repente, Lemann acende mais uma bomba e, ao mesmo tempo, alguém
acende a luz do quarto, até então às escuras. Era o reitor. E ele com a bomba acesa
na mão. O jeito foi jogá-la. Dias depois, sua mãe recebeu uma carta, recomendando
que o filho se ausentasse da faculdade por um ano, até que ficasse mais maduro.
Jorge Paulo há tempos lhes dá razão. Ele chegara à faculdade com apenas 17 anos,
saído direto do Arpoador e, sinceramente, não gostava de Harvard naquela época.
Mas como a carta apenas recomendava a suspensão, resolveu voltar às aulas e
concluiu o curso em apenas mais dois anos.
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Resolveu voltar, é verdade, muito por influência de um tio americano, que
lhe dizia que Harvard era uma maravilha, sua grande oportunidade na vida etc.
Quando Lemann começou a fazer sucesso nos negócios, esse tio não perdia a
chance de lhe dizer: "Tá vendo como eu te fiz bem?". A vingança chegou 20 anos
depois, quando Bill Gates, famoso por ter abandonado Harvard no primeiro ano,
tornou-se o homem mais rico do mundo. Jorge Paulo devolveu a provocação: "Viu
quantos bilhões você me custou?".
Formado economista, Lemann foi para a Suíça, estagiar no Credit Suisse.
Mas aquilo também não era para ele. "Durou pouco. Era modorrento, eu lambia selo,
atendia telefone, não estava aprendendo nada", confidenciou ele uma vez.
Convidado a jogar o campeonato suíço de tênis, pediu uma semana de licença ao
banco. Resultado: ganhou o torneio, foi convidado a representar o país na Copa
Davis e deu adeus ao estágio.
A melhor metáfora para descrever Lemann nos negócios, para muitos, é a
comparação com seu estilo no tênis. "Jorge Paulo é jogador de fundo de quadra.
Não se aventura a subir à rede para um voleio temerário", afirma Luiz Cezar
Fernandes, sócio de primeira hora dele no Garantia. "Ele bate, rebate com efeito,
nos cantos, deixando a plateia tensa e o adversário exausto. Controlado, aguarda o
oponente impacientar-se e perder o ponto."
Fundo de Quadra
Lemann começou a jogar tênis aos 7 anos, no Country Club do Rio, levado
pela mãe. Seu primeiro professor, o chileno José Aguero, era uma figura marcante,
um expatriado de feições indígenas que se revelaria uma extraordinária influência.
Deve-se a ele a lendária resistência de Jorge Paulo em dar entrevistas. Aguero
sempre lhe dizia: "quem joga para a plateia não ganha o jogo. E o seu negócio é
ganhar o jogo". Ele nunca se esqueceu da advertência. E passou a vida ganhando
jogos, sobretudo no mundo dos negócios, sem dar muita bola para a audiência.
Apesar do nome, o Country Club é bem urbano. Fica em Ipanema e é
tradicionalmente um dos mais exclusivos do país, àquela época freqüentado
principalmente por estrangeiros bons de berço. Jorge Paulo ganhou campeonatos
infantis na virada dos anos 40 para os 50 e tornou-se campeão brasileiro juvenil aos
17 anos. Depois do breve período em que brilhou na Suíça, podia ter se
profissionalizado. Sua explicação de por que não seguiu carreira no esporte é
295
reveladora de uma personalidade ambiciosa. "Pelo tanto que jogava, percebi que
dificilmente estaria entre os dez melhores do mundo. Resolvi parar. Percebi que não
seria um astro", disse ele, no passado, à revista Tênis Brasil. Mas Lemann não
parou por ali. Jogou a Davis de 1972, dessa vez pelo Brasil, e foi cinco vezes
campeão brasileiro. A última das finais que venceu, em 1975, é seu jogo favorito - a
vitória sobre Fernando Gentil em uma partida de seis horas, em que este saiu
perdendo por dois sets a zero. Mais tarde, aos 47 anos, Lemann ganharia o mundial
de veteranos. Com o estilo de sempre. "Ninguém consegue chegar nessa idade e
continuar trocando três horas de bola com um chato como eu."
Seus parceiros de tênis o definem como um sujeito cerebral, "uma pedra de
gelo na quadra", que tem como principal golpe uma "esquerda" violenta. "Ele era
capaz de virar um jogo que o ginásio inteiro já dava como perdido, tamanha sua
concentração na quadra", afirma o ex-tenista e atual treinador Carlos Alberto
Kirmayr, amigo de longa data de Lemann. Kirmayr sentiu na pele o estilo de jogo
gelado e o backhand poderoso de Lemann, na final do campeonato brasileiro de
1971. "Perdi por 3 sets a 2, num jogo de cinco horas", diz. "Dei o troco dois anos
depois, devolvendo os 3 a 2 no Brasileiro de 73."
Outro colega das quadras, Nelson Aerts, ex-campeão brasileiro e
panamericano de tênis, narra um episódio que retrata a obsessão por resultados do
futuro banqueiro. No Rio de Janeiro dos anos 70, Lemann não encontrava sparrings
à altura para treinar fundamentos. Decidiu, então, usar o bom e velho paredão para
aprimorar seus golpes. "O normal seria ficar duas, três horas no paredão, mas ele
passava o dia inteiro golpeando a bolinha contra o muro", afirma Aerts.
Kirmayr e Aerts são hoje parceiros de Lemann em projetos de apoio ao
tênis. O primeiro toca um programa vinculado ao Instituto LOB do Tênis Feminino,
cujo principal objetivo é colocar uma menina brasileira entre as 100 melhores
tenistas do mundo. No Instituto Tênis, presidido por Aerts, as digitais do empresário
estão em dois programas: o de desenvolvimento de crianças para a prática do tênis
e o de aprimoramento de potenciais talentos do esporte.
Menos por seus dotes em quadra do que por seu mecenato fora dela,
Lemann tem entre seus fãs ninguém menos que Gustavo Kuerten. O maior tenista
brasileiro de todos os tempos não viu Jorge Paulo jogar. Mas o considera "de
extrema importância" para a modalidade. "Ele vem investindo no tênis há muitos
anos, e eu diria que é um dos principais apoiadores do esporte no país", afirma
296
Guga.
Em 1994, Lemann sofreu um infarto. A partir daí, reduziu consideravelmente
o ritmo nos esportes e no trabalho. Voltou-se mais para a família. Vive hoje numa
casa ampla nos arredores de Zurique, com a mulher, Susanna, e seus filhos com
ela. Até hoje, é verdade, joga tênis sempre que está em casa, na Suíça ou no Brasil,
costumeiramente às 6h30 da manhã. E só viaja carregando suas raquetes - sempre
da marca Wilson, atualmente do modelo K-Factor, o mesmo usado pelo suíço Roger
Federer. Apesar da fortuna de quase US$ 6 bilhões, Lemann segue desprezando o
luxo exibicionista. "Ele gosta de coisa boa, mas não rasga dinheiro", afirma o tenista
Cássio Motta, outro ex-campeão amigo do empresário. Riqueza para ele, é ter
tempo para fazer o que gosta.
Logo depois da venda do Garantia para o Credit Suisse, em 1998, o
empresário relatou à revista Época a seguinte história: "Há cerca de um mês, jantei
em Boston com Warren Buffett [o investidor que hoje é o homem mais rico do
mundo, com uma fortuna de US$ 62 bilhões, e naquele tempo já era o segundo da
lista, atrás de Bill Gates]. No jantar, ele me perguntou como me sentia em relação à
negociação do Garantia. Eu disse que estava bem e preferiria tentar ser mais
Warren Buffett e menos Sandy Weill, Jon Corzine ou John Reed [chefões do
Travelers, Goldman Sachs e Citibank]. Buffett me perguntou por que, e eu disse que
ele tinha mais senso de humor, mais domínio sobre o próprio tempo e era mais rico.
Ele respondeu da seguinte forma: 'Então vou mostrar como sou rico'. Puxou do bolso
a agenda, folheou algumas páginas, quase todas em branco, e disse: 'Veja como
sou rico. Olhe quanto tempo tenho para fazer o que quero, quando quero.'"
O Grande Laboratório
Os conceitos, as práticas e as idiossincrasias formuladas ao longo de anos
no Garantia encontraram seu verdadeiro campo de provas na Brahma, quando a
cervejaria carioca foi comprada por Lemann, Telles e Sicupira, em novembro de
1989. Àquela altura, a Brahma, embora um pouco maior, era uma companhia pior
administrada do que a Antarctica. Seu lucro antes de impostos, por exemplo, era de
apenas 10%, ante 17% da rival paulista. Sua margem operacional, de meros 8%, em
comparação a 26% da concorrente. Nomeado executivo-chefe da cervejaria, Marcel
deixou a segurança do banco para enfrentar o desconhecido, acompanhado de
apenas quatro funcionários. De cara, cortou os carros cedidos pela empresa aos
297
diretores. Acabaram as diferenças de classe no restaurante da empresa, as salas
individuais para os executivos e as secretárias particulares. Todo funcionário passou
a ser classificado em uma de quatro categorias: adequado, competente, superior ou
excelente. Apesar do tamanho da empresa, em pouco tempo um jovem talento podia
entrar no radar da cúpula, passando a fazer parte do grupo dos "indispensáveis".
Um dos primeiros a entrar para esse clube foi um aplicado e discreto
engenheiro mecânico chamado Carlos Brito. Ele chegou com Marcel, teve alguns
meses para conhecer a companhia e rapidamente foi encarregado da gerência geral
da fábrica de Agudos, no interior de São Paulo, então a maior entre as 23 da
Brahma. Foi considerado excelente na função e ganhou oito salários de bônus já no
primeiro ano. Antes de chegar à cervejaria, Brito trabalhava na Shell e sonhava com
um MBA em Stanford. Um dia, na cara dura, ligou para o Garantia e conseguiu
agendar uma reunião com Lemann em pessoa. Disse que queria fazer o curso e
precisava de US$ 22 mil. O então banqueiro topou financiá-lo, marcou aquele nome
em seu caderninho e lembrou dele quando começou a comprar empresas não
financeiras. Brito passou dois meses na Lojas Americanas antes de entrar na
Brahma. De onde nunca mais saiu. Trabalhou em finanças, operações e vendas,
antes de ser nomeado presidente-executivo do que já era a AmBev, em 2004. Com
a criação da InBev, naquele mesmo ano, assumiu brevemente o controle da
subsidiária americana da companhia. Em 2005, chegou à presidência do grupo todo.
E tratou de levar a "cultura Garantia" para a matriz, na Bélgica.
Hoje, nas reuniões de conselho da InBev, analisa-se pessoa a pessoa nas
principais funções de comando. E apontam-se substitutos para cada posição.
"Temos 85 mil funcionários, mas 250 são os que realmente fazem a diferença.
Essas pessoas são geridas de modo distinto, porque nós queremos ter certeza de
que estão animadas e não vão deixar a companhia", afirmou Carlos Brito, em uma
palestra que proferiu em Stanford em fevereiro. "Enquanto algumas empresas
preferem contratar empregados em meio de carreira, a InBev busca recém-formados
e os molda para a liderança", disse ele na mesma ocasião. "Líderes podem ser
formados, podem ser treinados, podem aprimorar suas habilidades." A AmBev hoje
não só forma como exporta executivos. Quarenta e seis deles estão na Europa, 16
na América do Norte, cinco na Ásia e 42 nos países da América Latina onde a
cervejaria está presente. Só no conselho da InBev são quatro brasileiros.
Antes de serem treinados e aprimorados, futuros líderes precisam ser
298
recrutados - e aí está um dos diferenciais mais consistentes da política de RH
inaugurada na Brahma. Todo ano, a FGV sedia a "Semana de Recrutamento",
quando várias empresas se apresentam para divulgar programas de estágio. As
palestras dos representantes das companhias são formais, muitas vezes chatas.
Diretores engravatados e executivas de tailleur ocupam as cadeiras atrás da
bancada de madeira de lei do Salão Nobre, projetam apresentações e, às vezes,
vídeos corporativos. Na saída, entregam fichas de cadastro. As de Marcel Telles, em
nome da Brahma, da AmBev ou da InBev, são bem diferentes - e reverberam
durante dias nos corredores da faculdade. Para começar, em vez de um diretor de
RH, quem se apresenta é o presidente e um dos principais acionistas. Com o
auditório abarrotado por estudantes sentados ou em pé, ocupando todos os espaços
livres, o empresário chega sorridente, de calça e camisa jeans, senta-se sobre a
mesa e dispara algo como: "E então, preparados para colocar o seu na reta? Porque
é sobre isso que vim falar aqui. Procuramos pessoas dispostas a colocar na reta".
Gargalhada geral. Marcel ganhou a plateia, que ouve atenta o desfiar de números
que ele apresenta na seqüência, antes de explicar o sistema de remuneração
variável. As fichas de cadastro são avidamente preenchidas e a empresa está
garantida por mais um ano no topo da lista das companhias em que os estudantes
gostariam de trabalhar.
Quem for selecionado, não perderá Marcel de vista, enquanto estiver dando
resultado. Tradicionalmente na AmBev e mais recentemente na InBev, todo mês de
dezembro é marcado por um café-da-manhã em que os conselheiros da companhia
recebem um grupo de trainees. Os encontros são sempre às 8 horas da manhã,
antes da reunião formal do conselho de administração. Lemann, Marcel e Beto
participam de todos. Se a reunião é, por exemplo, em Toronto (sede da Labatt,
braço canadense da AmBev), Jorge Paulo manda levar seis ou sete estagiários para
lá. Um jovem recém-formado tem de ter muita personalidade para se sair bem em
um evento desse tipo. Mas Lemann gosta é de gente ambiciosa mesmo. Quem já o
teve como entrevistador em um processo seletivo profissional por certo ouviu
perguntas como "qual é a sua meta pessoal?" ou "onde você quer chegar?". Ele diz
que, nessas ocasiões, procura o "brilho nos olhos".
Marcel, por sua vez, afirma que gostaria de ser lembrado "como um cara
que sempre deixou um monte de gente melhor do que ele nos lugares por onde
passou". Disse isso a Época NEGÓCIOS em pleno camarote da Brahma no
299
sambódromo carioca, no domingo de Carnaval. Seu estilo é a personificação da
simplicidade bem-sucedida à Garantia. Bermuda azul e a obrigatória camisa da
cervejaria. Tênis de corrida sem meia. Além de bronzeado, Marcel está mais magro
do que nos tempos da AmBev. Em compensação, os cabelos e a barba estão mais
brancos. Vendo os desfiles das escolas de samba com os brasileiros da AmBev e os
belgas da Interbrew, Marcel se faz absolutamente disponível a qualquer um – e é
procurado sobretudo pelos mais jovens.
Carioca como seus dois principais sócios, aparentando bem menos que
seus 58 anos, Marcel Hermann Telles é filho de um piloto da aviação civil e de uma
dona de casa. Seu interesse pelas finanças foi despertado quando cursava
economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Descobri que meus amigos
que andavam com terno bacana e moto melhor trabalhavam no mercado financeiro",
diz, no livro da Endeavor. Recrutado por Luiz Cezar Fernandes, descobriu seu
métier assim que teve a primeira chance numa mesa de operações. Em pouco
tempo, assumiu o comando de toda a área de corretagem, que respondia pela
metade dos negócios do Garantia quando este foi transformado em banco de
investimento. Trader de uma casa considerada extremamente agressiva, defendia
que é preciso ser ousado e tomar decisões arriscadas, desde que se conheça
profundamente o mercado onde se está atuando. Para ele, perder faz parte do jogo.
Desde que se aprenda com o prejuízo.
Quando assumiu a direção da Brahma, Marcel não sabia nada sobre
cervejas. Seu segundo em comando, Magim Rodrigues, ex-presidente da Lacta, era
fera em chocolates, mas também não estava familiarizado com malte, lúpulos e
botequins. Logo nos primeiros meses, a dupla visitou as melhores cervejarias da
Alemanha e dos Estados Unidos - incluindo um quase estágio, inspirador, na
Anheuser-Busch, seu principal benchmark.
Desde então, Marcel professa uma fidelidade quase doentia às marcas que
controla. Não admite que produtos concorrentes sejam consumidos por seus
funcionários nem por sua família. Antes da criação da AmBev, ele dizia aos filhos,
então bem pequenos, que não tomassem Guaraná Antarctica porque a bebida tinha
xixi misturado. Depois da fusão com a antiga rival, não foi fácil convencer os
meninos de que o refrigerante agora era seguro.
Reza a lenda que mais de um candidato a uma vaga na Brahma, convidado
para um almoço-entrevista com executivos da empresa, perdeu o emprego por um
300
deslize na hora dos pedidos. Ao inadvertidamente escolher uma Coca-Cola para
acompanhar a comida, ouviu a sentença: sua entrevista acaba aqui.
Qualidade Total
A cultura de dono tirada do Goldman Sachs, as lições do bom marketing
americano e as técnicas de cervejaria alemãs não explicam todo o sucesso da
Brahma. O que levou a "cultura Garantia" ao estágio seguinte e a tornou
transplantável para empresas de praticamente qualquer setor foi o sistema de
produção à japonesa. Quem o explica, numa conversa informal no lobby do Hotel
Hilton de São Paulo, é o consultor mineiro Vicente Falconi, criador do INDG (Instituto
de Desenvolvimento Gerencial).
Formado em engenharia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Falconi
fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos na virada dos anos 60 para os 70.
Voltou para o Brasil em 1972, com teses publicadas sobre controle de processos e
uma paixão por modelos matemáticos supostamente capazes de melhorar o
desempenho de fornos siderúrgicos. Já em sua primeira experiência prática, porém,
aprendeu na Acesita que modelos matemáticos puros não funcionam, por
indisciplina dentro da empresa. "Eu ainda não sabia que disciplina é gestão", diz. Por
volta de 1978, Falconi começou a estudar a literatura sobre programas de qualidade,
àquela altura dominada por autores japoneses. Depois de anos batalhando uma
bolsa científica, o futuro consultor finalmente pôs os pés no Japão, em 1984.
Encontrou fábricas mais ou menos iguais às brasileiras. Mas descobriu um "outro
mundo" em termos de sistemas. Falconi iniciou uma relação estreita com o Japão.
Que o levaria a escrever cinco livros sobre o tema qualidade total, de 1989 e 1996.
"Um belo dia, na escola de engenharia em Belo Horizonte, aparece do nada
o Marcel Telles, de jeans e camiseta, procurando por mim", diz Falconi. Eram os
últimos dias de 1991, época de preços controlados pelo governo Collor. Marcel
acabara de voltar de uma reunião em Brasília com Dorothea Werneck, a
coordenadora das Câmaras Setoriais que, entre outras coisas, geriam o famigerado
"tabelamento". No encontro, Dorothea condicionou um aumento nos preços da
cerveja a que o executivo fosse procurar Falconi - e tratasse de aprender alguma
coisa sobre produtividade. Dias depois, o consultor fez uma apresentação, no Hotel
Sheraton do Rio, para toda a cúpula da Brahma. Marcel sentou na primeira fila e
ficou o dia todo. A partir de então, Falconi passou a fazer consultoria para a Brahma.
301
E levou vários japoneses para ensinar aos cervejeiros brasileiros técnicas de
qualidade total. No início de 1997, ele foi convidado por Marcel a ingressar no
conselho da Brahma.
O embrião do hoje famoso Orçamento Base Zero surgiu cerca de um ano
depois, com o Programa Volta às Origens, organizado em torno de uma meta de
redução de custo de R$ 100 milhões. Ao final de 1998, numa reunião de conselho,
Lemann quis saber qual havia sido a economia conseguida com o tal programa.
Para espanto geral, não se sabia a resposta exata. Imediatamente, Marcel acionou
Falconi e o também consultor Gustavo Pierini, ex-McKinsey, ex-Garantia e ex-GP
Investimentos, que mais tarde atuaria no processo de fusão da Antarctica com a
Brahma. Gustavo propôs métodos de planejamento para a redução de custos das
várias fábricas e da matriz. Falconi acrescentou métodos para execução e
verificação das economias - "sem um sistema que em sete dias úteis te mostra o
resultado do mês anterior, esqueça, não tem corte de custos", diz ele. Estava criada
uma ferramenta operacional genuinamente brasileira que em dez anos estaria
consagrada como modelo de excelência em controle de custos.
Tradicionalmente, as empresas costumam inspirar-se no orçamento do ano
anterior e aplicar-lhe índices de redução para montar o do ano corrente, sem saber
se o valor de cada despesa corresponde à realidade daquele momento. Com o
Orçamento Base Zero (ou simplesmente OBZ), parte-se sempre do zero, estudando
as despesas uma por uma para identificar possíveis excessos (ou carências) nos
gastos de cada item. Isso vale para tudo: compra de insumos, aquisição de material
de escritório ou gestão de serviços terceirizados.
Não por acaso, surgiram nos escritórios da Brahma especialistas em itens
como transporte, aluguel, iluminação e água. São consultores internos altamente
especializados, conhecidos até hoje como Boinas Verdes. "Somos totalmente
paranóicos com o controle da gestão. Mesmo nas melhores horas, estamos
apertando os custos", diz Marcel, no livro Como Fazer uma Empresa Dar Certo em
um País Incerto. "Quando ficar ruim, eu tenho certeza de que a água vai subir, mas
vai afogar o outro, o competidor, antes de chegar à minha boca."
A rigidez no controle de custos fez da Brahma uma empresa
excepcionalmente forte em processos. Em seus primeiros anos à frente da
cervejaria, Telles fechou fábricas deficitárias, reduziu quase à metade o quadro de
pessoal, redefiniu funções, fundiu atividades, agilizou a distribuição, visitou pontos-
302
de-venda, negociou com fornecedores e parceiros e investiu pesadamente em
publicidade. Em 1998, último ano antes do início do processo de fusão com a
Antarctica, a Brahma havia deixado sua histórica concorrente vergonhosamente
para trás. Seu lucro líquido era de R$ 329,1 milhões, ante R$ 64,2 milhões dos
paulistas. Em 1999, um ano complicadíssimo por causa da desvalorização do real, o
faturamento da Brahma foi mais do que o dobro do da Antarctica: US$ 7 bilhões,
ante US$ 3,3 bilhões. A cervejaria, que custara US$ 60 milhões à turma do Garantia
dez anos antes, valia então R$ 3,7 bilhões. A Antarctica, parada no tempo, foi
simplesmente atropelada.
Victório de Marchi, co-presidente do conselho da AmBev desde o anúncio da
fusão, era o principal executivo da Antarctica em 2000. Àquela altura, ele garante, a
cervejaria paulista já iniciara uma revisão de seus métodos gerenciais familiares. "A
Brahma, no entanto, começou um pouco antes. E já tinha percorrido o dobro da
distância", afirma Victorio. Por exemplo: na Antarctica havia casual friday, enquanto
na Brahma já não se usava terno e gravata em nenhum dia da semana.
Sem Gravata, Sem Paredes
O executivo Magim Rodrigues, que se tornaria o primeiro presidente da
Ambev, é um ótimo exemplo do que a mudança de guarda-roupa pode fazer por um
executivo. Em seu tempo de Lacta, ele só era visto de paletó e gravata. Era um
senhor ligeiramente encurvado. Aparentava ser uns 20 anos mais velho do que
quando ressurgiu na Brahma, no estilo mangas de camisa celebrizado pelo GP.
Desde o início, Lemann impôs em seu banco o predomínio do coletivo sobre
o individual. A mensagem a transmitir era de que o resultado dependia igualmente
de todos: dele ao menos graduado dos funcionários de retaguarda. É por isso que
nunca vestiu-se terno e gravata dentro do Garantia - a não ser para reuniões com
certos clientes ou parceiros.
Também não devia haver no banco a figura do chefe inacessível. Por isso,
os escritórios do banco eram grandes salões sem divisórias e mesmo os sócios-
diretores não tinham direito a salas fechadas. No já mencionado documento Nossa
Filosofia, há uma síntese de como a simplicidade era cultuada no Garantia: "Nossa
organização é objetiva, simples, informal e comunicativa. Fazemos as coisas com
muita objetividade. O que pode ser feito de maneira simples é melhor". Mais de 30
anos depois, Brito abordou o tema na sua palestra em Stanford: "Nós não temos
303
jatos da companhia. Eu não tenho um escritório. Divido minha mesa com meus vice-
presidentes. Eu sento com meu cara de marketing à minha esquerda, meu cara de
vendas à minha direita, meu cara de finanças na minha frente".
Tabela 6-4: Características do Grupo GP.
O Homem que Copiava
Lemann despontou no cenário empresarial brasileiro no momento exato, os
anos pré-abertura de mercado. Ou seja, no contexto histórico de um capitalismo
tardio. Para Thomaz Wood Jr., professor de administração na FGV, o que sucedeu
no caso da Brahma foi a migração de um estilo gerencial típico do setor financeiro e
das empresas americanas de capital aberto para uma grande empresa industrial
local. "O que caracteriza esse estilo gerencial é o foco no resultado de curto prazo e
GOLDMAN SACHSDe lá saíram a meritocracia e o sistema de partnership, que transforma
executivos em sócios do banco
WAL-MARTDo fundador da rede, Sam Walton, Lemann absorveu a cultura da frugalidade e a
atenção permanente ao corte de custos
GENERAL ELECTRICOs relatórios da GE eram a bíblia do Garantia. Lemann e seus sócios liam tudo o
que encontravam sobre Jack Welch
CULTURA DE DONO
A idéia é que cada funcionário deve se sentir dono da empresa. Para isso, deve
ter autonomia para decidir, responsabilidade pelo resultado e participação nos
lucros
SIMPLICIDADESalas sem paredes, roupas informais e poucos níveis hierárquicos. Tudo deve ser
resolvido simples e rapidamente
PRÊMIO E CASTIGOA meritocracia se dá pela criação de metas para tudo. Não há limites para os
bônus salariais dos que as superam
CAÇA AOS GASTOS
"Ser paranóico com custos e despesas, que são as únicas variáveis sob nosso a
garantir a sobrevivência no longo prazo", diz um dos 18 mandamentos da
"cultura Garantia"
A Brahma, comprada pelo Garantia em 1989, deu origem à AmBev e levou a cultura do banco para a
indústria. suas práticas de gestão são influentes na matriz belga da InBev
O modelo de meritocracia rigidamente medida e regiamente remunerada tornou-se padrão nos
bancos de investimento brasileiros, a começar pelo Pactual, criado por um ex-sócio do Garantia
O foco no lucro do acionista, a remuneração variável de executivos e o Orçamento Base Zero hoje
estão presentes no modelo de gestão de algumas das melhores empresas nacionais de capital aberto
A CULTURA GARANTIA
DE ONDE VEIO
O QUE É
PARA ONDE FOI
Como os estilos de Sam Walton e Jack Welch inspiraram um modelo de gestão dos mais influentes do
país
A GP, firma de investimentos em participações criada por Lemann, comprou mais de 30 empresas. Da
ALL ao Submarino. Todas elas praticam a "cultura Garantia"
304
uma atitude racionalista sobre gestão, processos e pessoas", afirma Wood. No Brasil
do início dos anos 90, isso soava novo.
Um ponto a reter quando se discute o legado de Lemann e de seus
parceiros de negócios diz respeito à autoria: as ideias quase nunca são deles. "O
Jorge Paulo não é um gênio numa torre de marfim", afirma Cláudio Haddad, hoje
presidente do Ibmec São Paulo. Uma das características mais marcantes da "cultura
Garantia" é sua sem-cerimônia em copiar bons exemplos. "A grande vantagem do
Brasil é que você pode copiar o que está sendo desenvolvido em outro lugar e fazer
aqui. Pode copiar tudo, não precisa ficar reinventando a roda", disse uma vez Beto
Sicupira. "O que nós fizemos a vida toda? Só copiamos. Não inventamos nada,
nada. Ainda bem. Inventar coisas é um perigo danado." Não por acaso, implementar
(e não criar ou inovar) é a palavra preferida no circuito Garantia. "Vale muito mais
uma lógica boa, uma execução boa, do que qualquer inovação brilhante", disse
Lemann, anos atrás. "Você tem de se preocupar com a inovação. Mas se tem
alguém fazendo bem, melhor não gastar muito tempo procurando como fazer. Vai lá,
olha e adapta da sua maneira, e pronto."
No Brasil das décadas de 70 e 80, a busca de benchmarks e a replicação de
boas ideias alheias não era algo trivial. Bastava a cultura da família controladora.
Quando muito, traziam-se elementos operacionais de fora, mas não sistemas de
governança. Transformar funcionários em acionistas, por exemplo, era uma
tremenda novidade. Algo que só existia em firmas de advocacia. Uma novidade que
motiva Fersen Lambranho, da GP, a fazer uma previsão ousada: "Daqui a seis
séculos, quando alguém escrever um novo Raízes do Brasil, o nome do Jorge vai
aparecer. Na América Latina inteira não tem meritocracia. No Brasil, graças a ele,
tem. Isso vai nos diferenciar de forma brutal".
O desejo e a capacidade de Lemann de se destacar na arena internacional
entusiasmam seus admiradores. "Jorge Paulo vai ser lembrado como um dos
empresários que levaram o Brasil para o mundo", diz Bonchristiano, da GP. Por
outro lado, o desprendimento de homens de negócio que hoje moram fora do Brasil,
têm a sede de sua principal empresa na Bélgica e fizeram história adquirindo e
reformando companhias com problemas desagrada seus críticos mais severos. "O
Lemann é um comerciante. Ele é bom de comprar e vender empresas. Não sei se
sabe construí-las", afirma o ex-ministro Antônio Delfim Netto. Tanto na academia
como no meio industrial, há quem defenda que os homens do Garantia não
305
merecem ser chamados de empresários. Por sua origem no mercado financeiro,
seriam meros financistas ou investidores. Especialistas em tornar lucrativas
empresas mal geridas, e não em construir companhias para o futuro.
José Olympio, do Credit Suisse, discorda do uso do rótulo "financista" para
descrever Lemann. "É muito estreito para ele. O Jorge Paulo é um criador de
organizações", diz. Discorda, também, da ideia de que empresários para valer são
apenas industriais, como os Ermirio de Moraes ou os Gerdau Johannpeter, que
construíram do zero sólidos impérios de cimento e aço. "O Jorge Gerdau e o Jorge
Lemann são dois dos empresários brasileiros que eu mais admiro. Para mim, são do
mesmo nível", afirma. "A diferença é que o Lemann é um revolucionário. Ele
promoveu uma revolução cultural dentro do capitalismo brasileiro."
Para José Olympio, Lemann já é uma figura histórica, talvez comparável ao
Barão de Mauá. Do nível dele, hoje, como exemplo de empreendedorismo, só
haveria um empresário: Eike Batista, dono da EBX e de uma fortuna ainda maior do
que a do fundador do Garantia, avaliada pela Forbes em US$ 6,6 bilhões. "O Eike
hoje é um revolucionário, no sentido de pensar muito grande e empreender em ritmo
alucinante", diz. "E nas empresas dele tem muita cultura Garantia: sistema de
sociedade, atração dos melhores, aposta numa garotada muito boa."
Lemann naturalmente tem suas preferências, brasileiros pelos quais se
mede. Amador Aguiar, o fundador do Bradesco, é o que mais o entusiasma. Por ter
criado uma cultura empresarial fortíssima e um banco líder de mercado, que
sobrevivem há décadas sem ele. Jorge Paulo o considera subestimado. Ele próprio
se vê como formador de uma cultura influente para muitas empresas. E não como a
maioria de seus pares no empresariado brasileiro, julgados pelo patrimônio que
conseguiram construir e deixar para seus herdeiros.
Mas Lemann parece ser sincero quando diz, em círculos íntimos, que não se
considera dono da "cultura Garantia". E que seu maior mérito teria sido conhecer
seus pontos fracos e se cercar de gente melhor do que ele para compensar tais
deficiências. Melhor, note bem. E não descendente, herdeiro ou apadrinhado. Nunca
ninguém da família Lemann trabalhou nas suas empresas como executivo. Jorge
Paulo tem a convicção de que, no momento em que familiares entram na
meritocracia, o modelo se distorce, se corrompe.
306
Do Rio Até Moscou
Desde muito cedo, a "cultura Garantia" se disseminou do banco para o
mercado. Beto Sicupira fez o primeiro movimento, ao levar o modelo de organização
para a Lojas Americanas em 1982. No ano seguinte, Luiz Cezar Fernandes deixou o
Garantia depois de 12 anos para criar seu próprio banco, o Pactual, à imagem e
semelhança da instituição concebida por Lemann. A partir de então, todos os bancos
de investimento brasileiros emularam, com maior ou menor ênfase, o modelo
Garantia: Icatu, Bozano Simonsen, Matrix... O próprio Credit Suisse, que comprou o
banco de Lemann em 1998, manteve muito de sua cultura. Folclórico, porém
verdadeiro, é o caso do banco russo Renaissance Capital, que assumidamente se
inspirou no brasileiro Garantia, muito antes de o termo Bric unir os dois países. Um
ex-Garantia que esteve lá nos anos 90 diz que o escritório-sede, em Moscou, era
idêntico ao da "matriz".
Em 1989, o mesmo software começou a rodar na Brahma - e depois na
AmBev, e por fim na InBev. A influência cultural dos brasileiros na InBev é o que os
especialistas chamam de "movimento reverso" - a estratégia mais rara de fusão,
porque pressupõe a consciência do comprador de que o próprio modelo de gestão
não é o mais adequado para o futuro. A psicóloga Betania Tanure, professora da
Fundação Dom Cabral, estudou a AmBev de perto e se arrisca a dizer por que a sua
cultura predominou. "A Interbrew é uma organização absolutamente vencedora. Não
obstante, entendeu que corria o risco do subdesempenho", diz. "Ela tinha um estilo
mais conservador, mais lento. E o mundo estava pedindo outra coisa."
Agora, o mundo parece demandar mais velocidade e foco da americana
Anheuser-Busch, que aos poucos vai sendo atraída para a área de influência da
InBev. Em um relatório de julho passado, analistas do setor de bebidas do Citigroup,
em Nova York, estimaram em 70% a chance de uma fusão entre as duas cervejarias
ocorrer nos próximos dois anos, criando um colosso com 25% do mercado mundial.
"Numa união InBev-Anheuser, a nova megacervejaria se beneficiaria da agressiva
equipe brasileira de vendas e marketing do diretor-presidente da InBev, o brasileiro
Carlos Brito", afirmou o diário americano Wall Street Journal.
Marcel Telles vem promovendo há algum tempo um esforço de aproximação
com a família Busch, que, apesar de deter apenas 4% das ações da Anheuser,
ainda exerce uma tremenda influência na companhia. O principal herdeiro da
307
Anheuser, August Busch IV, já esteve no camarote da Brahma, a convite do
brasileiro, para apreciar o Carnaval carioca. É um ritual de acasalamento promissor.
Os belgas da Interbrew também freqüentaram "informalmente" a Marquês de
Sapucaí em 2002 e 2003. No ano seguinte, nasceu a InBev. Não há confirmação
oficial do interesse de Lemann pela Anheuser. Mas quem o conhece aposta na
concretização do negócio. "Ele não vai sossegar enquanto não comprar a
Budweiser", diz Bonchristiano, da GP.
Se comprar uma grande empresa americana é o "sonho de consumo" de
Lemann, um importante primeiro passo foi dado na virada do ano. O 3G, fundo
formado com recursos dele, de Marcel e de Sicupira, comprou um naco de 8,3% da
ferrovia americana CSX, com sede na Flórida, por US$ 1,5 bilhão no final do ano
passado. O parceiro deles no investimento é o TCI, The Children's Investment, fundo
ativista pelos direitos dos minoritários que ficou mundialmente conhecido por
"denunciar" a incompetência dos gestores holandeses do ABN Amro e detonar o
processo que culminou com o desmembramento do banco e a venda de suas
partes. Conforme esperado, um questionamento similar foi lançado contra a
administração da CSX, um grupo de US$ 17 bilhões com ações pulverizadas na
Bolsa de Nova York. Se a cúpula americana da empresa cair, a administração tem
boas chances de parar em mãos brasileiras. O trio do Garantia já tem até o nome
para assumir a companhia: Alexandre Behring, o executivo que presidiu a ALL de
1998 a 2004 e fez dela a maior operadora ferroviária da América Latina.
Parte do portfólio de investimentos pessoais de Lemann, Marcel e Beto, a
ALL é um dos principais casos de sucesso da GP Investimentos, a firma de private
equity que funciona como o principal vetor de disseminação da "cultura Garantia".
Criada em 1993, pelo trio e por um quarto sócio chamado Roberto Thompson, a GP
nasceu para replicar em empresas de médio porte as experiências da Lojas
Americanas e da Brahma. O grupo inicial de sócios captou meio bilhão de dólares no
exterior, com o objetivo de comprar empresas em dificuldades, saneá-las e vendê-
las com lucro. Um dos exemplos da fase inicial foi a rede de supermercados Sé,
comprada e vendida em 1997.
Assim como o Garantia, a GP foi moldada de acordo com o conceito de
partnership, uma sociedade na qual os funcionários poderiam se tornar sócios. Ao
longo dos anos, os sócio-fundadores foram reduzindo sua participação na firma, até
encerrá-la em outubro de 2004. Na época, os investimentos de private equity da GP
308
somavam US$ 1,3 bilhão. Eles haviam comprado participações em 32 empresas -
entre elas ALL, Gafisa, Ig e Telemar -, das quais já haviam vendido 18. Uma nova
geração, liderada por Fersen e Bonchristiano, assumiu o controle. Segundo a dupla,
a cultura da companhia não mudou nada desde então. "A GP diferencia-se dos
outros fundos de private equity porque tem a tecnologia de gestão Garantia", diz
José Olympio, do Credit Suisse. "A empresa que vende participação à GP não quer
só dinheiro. Quer know-how de administração."
Por fim, há o INDG, de Vicente Falconi, que funciona como um braço de
consultoria da AmBev. O instituto tem hoje cerca de mil consultores, sendo 250 no
exterior, onde está 25% de seu faturamento. E, assumidamente, não faz outra coisa
que não difundir o que lá se chama "cultura AmBev". A Sadia - que não por acaso
tem Falconi como conselheiro – é uma das empresas que, sob orientação do INDG,
está trabalhando, já há mais de dois anos, para montar sistemas semelhantes de
meritocracia. Marcel gosta da ideia e abriu a AmBev para que a Sadia a visite e
estude seus processos. Ele e Beto Sicupira fazem parte do conselho do instituto, ao
lado de empresários como Jorge Gerdau e o próprio Walter Fontana, da Sadia.
Sicupira e Gerdau lideram um grupo de empresários engajados em introduzir
métodos gerenciais de ponta no setor público. "Meritocracia, remuneração variável,
Orçamento Base Zero, tudo isso está sendo levado para governos", diz Falconi. A
administração estadual de Minas Gerais está mais adiantada nesse processo, mas
os governos do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Alagoas,
Sergipe e Pernambuco estão trabalhando com gestão, seleção de pessoas, redução
de custos e melhoria da arrecadação por meio de sistemas. No início de fevereiro, o
governo federal contratou o INDG para reduzir gastos em todos os ministérios. O
instituto de Falconi tem 15 meses para apresentar propostas que possibilitem uma
economia de R$ 600 milhões.
Devolver À Sociedade
Alinhando-se a uma tradição muito americana de grandes filantropos,
Lemann, Telles e Sicupira acreditam que é seu papel devolver à sociedade, como
pessoas físicas, o que ela lhes ofereceu enquanto empresários. Nos últimos anos,
cada um dos componentes do trio tratou de criar fundações para organizar as
doações de suas respectivas famílias.
Marcel foi o primeiro a pôr o bloco na rua. Criou, em 1999, o Instituto Social
309
Maria Telles (Ismart), batizado em homenagem a sua mãe. Seu objetivo é promover
o desenvolvimento acadêmico de jovens talentosos e de baixa renda. No ano 2000,
foi a vez de a família Sicupira criar a Fundação Brava, que investe em projetos de
melhoria da gestão pública e de ONGs. Entre as organizações beneficiadas estão a
Fundação Pró-Tamar, a AACD e o Banco da Providência. Jorge Paulo, por sua vez,
mantém, desde 2002, a Fundação Lemann, que investe principalmente em projetos
de melhoria da educação pública.
A mais conhecida incursão filantrópica do trio Garantia é conjunta, existe
desde 1991 e chama-se Fundação Estudar. Seu objetivo é conceder bolsas de
estudo para estudantes brasileiros de graduação e pós-graduação, que cursem
administração, economia, engenharia e relações internacionais. Bernardo Hees, o
jovem presidente da ALL, foi o primeiro bolsista da Fundação Estudar. Depois de
formado economista pela PUC do Rio, Bernardo trabalhou no ramo de petróleo e no
mercado financeiro, antes de partir para um mestrado na Inglaterra. De volta ao
Brasil, em 1998, foi trabalhar na América Latina Logística, de onde não saiu mais.
Agora na presidência, está colocando sob um mesmo guarda-chuva todas as
iniciativas de responsabilidade social da companhia. Neste mês de abril será
anunciada a criação do Instituto ALL. "Estou fechando o ciclo", diz ele.
Em outra de suas atividades extra-empresariais, Lemann, Marcel e Beto
dedicam-se a turbinar a carreira de empreendedores brasileiros. Fazem isso por
meio do Instituto Empreender Endeavor, uma entidade americana trazida para o
Brasil por Sicupira. "Lemann, Marcel e Beto trouxeram o melhor do mundo dos
negócios para o mundo das ONGs", afirma Paulo Veras, coordenador do instituto.
"Muita gente contenta-se em defender uma causa nobre. Mas para eles não basta
estar fazendo algo positivo para o país." Há cobrança por resultados, por recrutar
gente boa, por levantar recursos etc. Há também avaliação de desempenho por
metas. No caso da Endeavor, por exemplo, o valor de mercado das empresas
apoiadas tem de crescer 40% ao ano.
Fica difícil reclamar quando se sabe que Lemann aplica os mesmíssimos
princípios dentro de casa. Tanto no seu escritório pessoal como nas suas
residências, todos os empregados têm metas, passam por avaliações e recebem
remuneração variável. Isso vale para copeiras, motoristas, pilotos... Em seu
escritório, as equipes de serviço (copa, faxina e recepção) são avaliadas pelos
funcionários atendidos por elas a cada três meses.
310
BOOOOM-DÍÍÍÍAAAA!
Quem conhece os feitos empresariais de Lemann e os métodos de gestão
implantados em suas empresas se espanta quando o encontra pessoalmente. Não
há traço de arrogância em seu jeito afável e bem-humorado.
Quando está em São Paulo, Lemann pode ser visto desde cedo no escritório
onde hoje estão concentradas as sedes de todas essas fundações, além da equipe
encarregada dos investimentos do trio. Ele caminha a passos largos pelos
corredores, distribuindo bons-dias a quem encontra pelo caminho. Não aquela
saudação protocolar dos ambientes corporativos. Com sua voz forte, Jorge Paulo
estende as vogais em cumprimentos quase musicados: "booooom-dííííaaaa!". Outra
característica é a fala com sotaque carioca, com erres e esses pronunciados. Isso
quando ele fala, porque este é um homem de poucas palavras, extremamente
objetivo, que aprecia pessoas igualmente objetivas. Mas que guarda o senso de
humor típico de um Rio de Janeiro mais romântico, é tremendamente articulado e
dono de um vocabulário rico que de vez em quando se apoia em palavras em inglês
- sempre com pronúncia impecável, nunca com pedantismo. Atento a características
individuais e dono de uma memória excepcional, brinca com uns, faz graça com
outros e assim diminui a distância entre ele, o mito, e seus colaboradores. Como a
funcionária gourmet que uma tarde foi flagrada por ele na copa, atracada com uma
sobremesa que sobrara intacta do almoço, e nunca mais deixou de ouvir
comentários divertidos sobre doces e gulodices.
Seu escritório pessoal, na zona sul de São Paulo, reflete o apreço pela
discrição. Não há, na recepção do edifício que o abriga, nenhuma pista de que ali se
encontra o QG de Lemann. Os crachás dos funcionários contam apenas com uma
foto, seu nome e o número do andar. Mesmo quando se desembarca do elevador,
não há logomarca ou placa de nenhuma espécie identificando o escritório, dividido
em duas alas, com entradas independentes. À direita da recepção, um extenso
corredor, com paredes de madeira clara, dá acesso às salas de reunião. Assim, as
visitas nunca vêem os funcionários trabalhando, e estes nunca sabem quem
aparece no escritório para reuniões. Apenas Jorge Paulo, Marcel, Beto e o sócio
Roberto Thompson têm salas individuais, localizadas num dos extremos do andar.
Lemann sempre apareceu publicamente o mínimo possível, mas tornou-se
quase invisível a partir de 1999, depois de uma dramática tentativa de seqüestro de
311
seus três filhos menores em São Paulo - o carro blindado que os conduzia foi
metralhado. Foi quando, contrariado, mudou-se com a família do Brasil para a Suíça.
Os amigos mais chegados devem sentir falta das lendárias festas juninas que Jorge
Paulo organizava em sua casa no Jardim Europa. Festas para valer, com fogueira,
pau-de-sebo, comidas típicas e uma grande quadrilha, para a qual ele e Susanna se
paramentavam como autênticos noivos caipiras. Até hoje, Bianka Telles, a mulher de
Marcel, criada no sul da Bahia, é a única participante que, atestadamente, chegou
ao topo do pau-de-sebo.
Lemann está fora do país pelos filhos menores. Na Suíça, eles vão para a
escola sozinhos, andam de trem, viajam pela Europa e passeiam de bicicleta sem
maiores problemas. No Brasil, a família teria duas opções: a irresponsabilidade de
não ter seguranças ou o desconforto de viver cercado por eles. A decisão foi deixar
as crianças crescerem em Zurique. Mais tarde, quando estiverem na idade de ir para
a faculdade, elas terão liberdade de escolher onde viver. Jorge então voltará.
Mesmo tendo acumulado uma fortuna estimada em US$ 5,8 bilhões, de
acordo com a mais recente lista de bilionários globais da revista Forbes, Lemann
encara perguntas sobre uma eventual aposentadoria quase como ofensa. Mais de
uma vez, já admitiu que nunca se considerará totalmente realizado. Não basta, por
exemplo, ter a maior cervejaria do mundo. É preciso também ser o melhor. Não por
acaso, o atual slogan da InBev é from biggest to best, "de maior a melhor". No
encerramento da carta que publicou no relatório anual de 2003 da Fundação
Lemann, ele escreve: "Tenho a sensação de estar no rumo certo, apesar de saber
que nunca se chega totalmente lá". Em depoimento ao livro Como Fazer uma
Empresa Dar Certo em um País Incerto, ele diz: "Estou sempre querendo chegar lá,
conquistar mais alguma coisa. Essa é a graça. No dia em que eu tiver realizado o
meu sonho, morri".
Já há algum tempo, as famílias da santíssima trindade do Garantia estão
sendo preparadas em conjunto para suceder Lemann, Marcel e Sicupira. Suas
mulheres estudam contabilidade juntas; os filhos fazem em grupo o treinamento de
gestão. Jorge Felipe, filho caçula do primeiro casamento de Lemann, mais
conhecido no mercado como Pipo, é o único herdeiro a freqüentar os pregões
brasileiros. Desde 2003, ele é dono da corretora Flow. Seu pai é sócio minoritário da
firma, com menos de 10% das ações. Paulo, o irmão mais velho, também tem
participação, mas seu negócio é uma firma de gestão de recursos em Nova York.
312
Além de conselheiro da Fundação Lemann, ele é o responsável por investir o
dinheiro que Jorge Paulo doou à entidade e não entrou nos orçamentos anuais – o
chamado endowment. Esses recursos têm a finalidade de garantir a continuidade do
trabalho da fundação depois da morte de Lemann. Até lá, ele realiza doações
anuais, de acordo com o orçamento aprovado para cada ano.
Jorge Paulo Lemann gosta de pensar, segundo quem o conhece bem, que
sua maior contribuição pessoal ao meio empresarial brasileiro terá sido a cultura do
"sonho grande". O estímulo aos homens e mulheres de negócio que desejam
construir algo excepcional e que se movem por esse ideal. Se o sonho é pequeno,
ele costuma dizer, você se perde no meio do caminho. Com picuinhas. Daí uma das
raras frases de efeito que se atribuem a este capitalista de muita ação e poucas
palavras: "Pensar pequeno e pensar grande dá o mesmo trabalho. Mas pensar
grande te liberta dos detalhes insignificantes".
Ao longo de duas décadas de negócios, o Banco Garantia só perdeu
dinheiro em dois anos: o primeiro, 1976, e o último, 1998. O prejuízo inicial pode ser
creditado a uma arbitrariedade tirada do saco de maldades do governo militar. Mário
Henrique Simonsen, então ministro da Fazenda, expurgou quatro pontos percentuais
da correção quase quebrou o banco de Jorge Paulo Lemann. O último foi
barbeiragem. Excesso de confiança. Em meados de 1997, quando estourou a crise
cambial nos países do Sudeste Asiático, o Garantia foi duramente atingido pela fuga
de capitais dos países emergentes, mas demorou a entender a extensão dos danos.
Quando a Tailândia sofreu um ataque especulativo, em julho, o banco agüentou
firme, esperando uma virada. Em quando Hong Kong caiu e todo o Sudeste Asiático
foi contaminado, era tarde demais para recuar. O lucro do Garantia em 2007 caiu a
um décimo do registrado em 1996. O patrimônio de seus fundos de investimento
caiu banco entrou 1998 sangrando e, em maio, foi vendido por US$ 800 milhões -
baratíssimo por qualquer critério que se analise - para o Credit Suisse.
O Garantia, ficou claro então, fora muito bem sucedido como máquina de
ganhar dinheiro, mas não era capaz de sobreviver porque a cultura empresarial de
seu início se perdeu em algum momento. A venda forçada do banco é,
assumidamente, a maior frustração de Lemann. Sua visão sobre o assunto é dura
consigo próprio e, sobretudo com a geração que estava no comando durante a crise.
A autocrítica é de que ele não percebeu que seu time se tornara focado demais em
bônus e pouco preocupado com a construção de empresa perene. O Garantia
313
estava nas mãos de uma nova geração. Cláudio Haddad pensava em fazer algo
com educação (que resultou no Ibmec São Paulo). "Outros sócios mais próximos do
topo da hierarquia tinham ganho muito dinheiro e preferiram vender a prosseguir na
construção. Na venda, alguns sócios mais jovens se ressentiram porque gostariam
de ter continuado o trabalho de perenizar o Garantia", diz Lemann em círculos
restritos. Esse desvio da rota original coincide com o Lemann se afastou do dia-a-dia
do banco, depois do infarto que sofreu em 1994. Beto estava longe havia anos,
pilotando a Lojas Americanas. E Marcel, desde 1989, era presidente da Brahma.
Durante o processo que culminou com a venda para o Credit Suisse, o
Garantia foi alvo de críticas por parte de cotistas de seus fundos de investimento.
Nos casos mais leves, eles se diziam desinformados sobre o nível de risco a
estiveram expostos. Nos mais pesados, acusavam o banco de empurrar prejuízos
de sua tesouraria para os fundos de investimento. O piloto Raul Boesel, à época na
Fórmula Indy, ganhou manchetes dentro e fora do Brasil que perdera metade dos
US$ 3 milhões que tinha aplicados e reclamar dos gestores do Garantia. "O banco
não foi claro comigo sobre no que eles estavam investindo. Não explicavam o risco
que eu estava correndo", diz Boesel hoje em dia. Segundo ele, sua carteira de
investimentos deveria ser "superconservadora". Mas, quando a crise estourou, ele
descobriu que as aplicações eram "alavancadas" (as apostas dos gestores eram
maiores que o patrimônio do fundo). Cláudio Haddad, superintendente do Garantia à
época, diz que se lembra do caso de Boesel, mas prefere não falar sobre ele. "O que
posso dizer é que esse fundo dava 30%, 40% ao ano de ganho, ano após ano. É
alavancagem. Ou você acha que o dinheiro nascia em árvores?", afirma. "Nossos
clientes eram investidores qualificados. Não tinha nenhuma viuvinha que tirou a
poupança do Bradesco e botou no Garantia."
Se o episódio da venda do Garantia foi o primeiro a expor Lemann, a união
da AmBev com a belga Interbrew, anunciada seis anos depois, é até hoje o mais
usado contra ele. A aliança que deu origem à da troca de participações entre os
acionistas controladores da Ambev (Lemann, Telles e Sicupira) e da Interbrew (as
três famílias belgas que controlavam a cervejaria europeia). Os brasileiros
converteram suas ações, que Representavam 22% do capital total da AmBev, em
25% do capital da InBev. Lemann e seus parceiros se comprometeram a não vender
sua participação por 20 anos e ficaram com 50% do controle da nova empresa.
Por determinação da Lei das S/As, que rege as companhias listadas na
314
Bovespa, a Interbrew teve de fazer uma pública para comprar as ações ordinárias
restantes. Ofereceu aos donos desses papéis ações da Interbrew ou o equivalente a
80% dos ganhos que os controladores tiveram ao vender suas participações. O
direito, estendido aos detentores de ações preferenciais, sem direito a voto, que
viram os preços de seus papéis desabar após a divulgação do acordo. Dez dias
depois do comunicado da operação, as preferenciais acumulavam perdas de 32%. O
fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, Previ, detinha cerca de 14%
dessas ações e chegou a perder mais de R$ 800 milhões. Posteriormente, o preço
das ações voltou a subir. Daquele episódio até 20 de março último, segundo a
companhia, os papéis valorizaram cerca de 200%.
O assunto é explosivo nos meios próximos a Lemann. "Nada me revoltou
mais do que a reação dos minoritários quando ele [Jorge Paulo] fechou o negócio
com a Interbrew", afirma José Olympio. Ele chama os acionistas que se rebelaram
de "investidores vestindo-se de vestais e reclamando porque o microondas que
compraram não passava a novela das 8". Explica-se: "Se você comprou ação
preferencial, tem de saber que ela paga 10% mais, mas não tem tag along (direito
de venda conjunta com o controlador). Se comprou ordinária, é o contrário. O que
um papel cumpra o que se espera do outro". Reservadamente, o próprio Lemann
costuma fazer comparação semelhante. "O cara comprou um Fiat, sabendo que era
um Fiat, e depois achou que talvez tivesse uma Ferrari na garagem."
Na mesma ocasião, o grupo controlador da AmBev foi atacado por
supostamente vender o controle da belgas. Carlos Lessa, então presidente do
BNDES, chamou Lemann, Telles e Sicupira de "vendilhões do templo". Na ocasião,
disse: "esses três rapazes (...) são qualquer coisa, menos brasileiros". Lemann
nunca respondeu publicamente, mas, privadamente, acusou o golpe. "Não estão
reconhecendo o nosso valor", disse. "Falam bem de jogador de futebol que vai jogar
na Europa e nos dão pancada, quando na realidade somos bem jogadores. Somos
donos, também."