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A Rainha Está Morta - Pedro Guerra

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Um assassinato durante o maior concurso de beleza abala a gélida Caxias do Sul de 1998. A bela Isabel Radaelli é encontrada morta minutos antes de receber a tão sonhada coroa de Rainha da Festa da Uva. Agora, todos são suspeitos para o detetive Benjamin Lisboa, que chegará à chocante conclusão de que tudo dependia do dia seguinte. Uma história que vai intrigar o leitor do início ao fim e surpreender com seu desfecho inesperado.

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A RAINHA ESTÁ MORTA

PEDRO GUERRA

Para Segundina Peruzzato, minha avó que eu não cheguei a conhecer. Dias atrás estive vasculhando memórias e encontrei uma caderneta escrita por ti. Acho que sei de quem herdei o cuidado com detalhes presente em minha escrita. Obrigado por ter deixado de presente para mim o trio de rainha e princesas mais belo que já existiu – minha mãe, Viviane, e minhas tias, Cinára e Paula.

SUMÁRIO

·1 NAQUELA NOITE

·2 COROAÇÃO

·3 CHÁ PARA A SENHORITA

·4 BEM-VINDO, SANGUE

·5 CRUZAMENTO

·6 MANCHETE

·7 EU SINTO MUITO ·8 ASPETTO INGANNA ·9 ESCONDE-ESCONDE ·10 FRASCOS PARA OS FRACOS ·11 RESTA UM

·12 RE-UNIÃO

·13 QUERÊNCIA AMADA

Te quero tanto, torrão gaúcho, morrer por ti, me dou o luxo.

(Teixeirinha)

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NAQUELA NOITE Uma corrente de ar frio saracoteava pelas esquinas de Caxias do Sul na noite de 4 de setembro de 1998. A maior parte das ruas centrais se encontrava em silêncio absoluto, repousando à luz dourada dos postes enfeitados com cartazes que anunciavam o maior dos acontecimentos locais: faltavam poucos meses para o início da 23ª Festa Nacional da Uva. Já era de se esperar que nas ruas, mesmo naquele início de noite, pouca vida circulava. Era o final de um inverno rigoroso como todos os outros, onde os termômetros ainda não superavam a marca dos cinco graus quando a escuridão chegava por volta das seis da tarde. Na Praça Dante Alighieri, o único movimento correspondia aos reboques fantasiados de barraca de cachorro quente. Neles, os seus donos tentavam se esquentar, enfiados em casacos e enrolados em mantas, o ar frio saindo dos pulmões. Um que outro cliente até aparecia, e quem resolvia comer um lanche na rua ficava trocando conversa com o proprietário que tinha uma pequena tevê instalada no automóvel. Nos prédios em volta – e até mesmo nos bairros mais afastados – a maioria dos televisores estava sintonizada na transmissão do Evento que precedia a famosa festa da cidade. Naquela noite seria escolhido o trio de garotas que representaria a celebração da produção agro-industrial regional. Aquele começo de mês tão aguardado era especial para dezoito garotas que compartilhavam, além da beleza, a possível execução de um sonho de infância: tornar-se uma rainha. A coroa que seria entregue para a candidata mais bem preparada cintilava no palco montado no grande parque de eventos da cidade – os colossais Pavilhões da Festa da Uva, um conjunto de estrutura metálica inaugurado em 1975. Desta vez, a passarela que serviria de caminho para o desfile das embaixatrizes tinha sido erguida com a incrível marca de 200 metros, um trajeto que abrigaria lágrimas de emoção e passos marcadamente bambos.

Extasiante poderia ser a palavra para se rotular a população Caxiense naquele dia que servia como um aperitivo para o grande Evento que viria a se realizar apenas 6 meses mais tarde – de fevereiro a março do ano seguinte, 15 dias estavam reservados para a Festa em si.

A clássica escolha de Rainha e Princesas mobilizava bairros e entidades, crianças e avós. Era possível enxergar por detrás do olhar de cada um dos presentes naquele evento uma emoção tão expressiva quanto a das dezoito candidatas. Eram mães apreensivas, pais orgulhosos, a família inteira de rosto pintado e vestindo um chapéu italiano na cabeça. O coração de Caxias funcionava dentro dos Pavilhões naquela noite.

O Parque de Eventos recebia mais de 10 mil pessoas, separadas em mesas – um espaço destinado a autoridades e alguns familiares das candidatas – e torcidas organizadas, abrigadas em arquibancadas iluminadas por diversos focos de luzes coloridas. Mesmo antes do início da cerimônia em si, os presentes já se agitavam em seus lugares, repassavam as coreografias ensaiadas para o momento em que a sua candidata favorita desfilasse, abriam sorrisos sem nenhuma dificuldade. E, como sempre, diversas novidades: alguns grupos estavam fantasiados, outros haviam contratado uma banda, e havia até quem usava peruca. A escolha do trio soberano funcionava, então, com dois pólos extremamente opostos que acabavam por se completar: enquanto o glamour, a nobreza e a elegância desfilavam para que a competência individual de belas jovens fosse testada, o barulho, a agitação, a euforia e o caos positivista e controlado serviam de combustíveis para que a expectativa fosse criada naturalmente, e que o momento fosse não só de angústia, como também de comemoração e excitação. Para Benjamin Lisboa, um promissor detetive que há pouco havia dado início a sua carreira profissional, porém que já acumulava méritos (ele foi o responsável pela prisão do maior criminoso da Serra Gaúcha, o Pavão, e desmantelou uma quadrilha perigosa), a noite era de desprendimento. Depois de uma semana de muito trabalho – quando se mostra o ouro, nos fazem retornar à mina diversas vezes -, o objetivo da noite era esquecer qualquer nome de eventuais criminosos desgraçados, papelada ou lista de afazeres, para que pudesse se focar no desfile de Caroline, a sua irmã caçula. Lisboa era um típico detetive atípico: não andava de chapéu panamá e muito menos gostava de charutos. Com trinta e oito anos, comportava-se como se tivesse mais, e isso se restringia apenas ao modo de falar. As suas características físicas eram simples: ligeiramente alto, olhos castanhos comuns, cabelos curtos e escuros sem muita preocupação, e uma barba rala que instigava qualquer garotinha louca por homens de meia idade - ou até mesmo mulheres de meia idade - a cair de amores por um cara como ele, um galante reprimido. Solteiro (e muito bem com isso, obrigado), Benjamin era, no fim das contas, só mais um dos homens gaúchos que resguardavam um pouco do tradicionalismo: falava ba e tchê a ponto de não beirar o enjoativo, era apreciador de uma boa picanha assada na brasa e crescera enfiado

semanalmente dentro de um CTG, ouvindo músicas gaúchas e observando os longos vestidos das prendas rodarem a cada passo. Filho de pais que vieram do campo com uma história de vida sofrida e irmão de uma guria tão bonita a ponto de arrancar quaisquer olhos desprevenidos, conservava uma mania em especial: frequentemente assoviava qualquer música que lhe viesse à cabeça.

Nos últimos meses, o detetive estava trabalhando com um novo companheiro: o inspetor Enrico Pagliatti, migrante da Capital. Pagliatti, por sua vez, de inspetor não parecia ter nada. Jovem de vinte e dois anos, rosto liso como ao de um bebê, olhos azuis que o salvavam de passar despercebido - uma vez que seu cabelo bagunçado era pouco volumoso e comum. A qualquer olhar de fora, Enrico parecia um estudante de Ensino Médio daqueles que sentam no fundo da sala: corpo em forma e zombeteiro ao extremo. Porém, apesar da pouca idade, estava trabalhando com o que gostava e a cada vez se expandiam as oportunidades, considerando que o seu pai, chefe de Polícia, havia conseguido um lugar ao sol para o filho. E ele fazia por merecer. Há dois meses estava em Caxias, tinha deixado Porto Alegre porque em uma cidade um pouco menor ele cresceria muito mais. Não eram nem oito horas daquela noite de sábado e as orelhas do detetive já estavam coloridas de roxo devido ao frio, o que serviu de piada para o seu companheiro: - Aposto que com um peteleco as suas orelhas são capazes de cair! Benjamin olhou para o lado, encarando Enrico Pagliatti. O seu ajudante, de rosto magro, ria entusiasmado. Era a sua primeira Festa da Uva, então, para ele, tudo se tratava de novidade. Nunca tinha visto um povo tão conservador e apaixonado. - Diga-me, meu jovem Pagliatti – o detetive ignorou a brincadeira -, a quantas anda a sua excitação para esta noite? Enrico não compreendia porque Benjamin sempre falava daquele jeito. Parecia um velho, quando ainda nem havia soprado a vela que simbolizaria as suas quatro décadas. Até mesmo o seu blazer marrom, provavelmente adquirido em um brechó no Centro, denunciava a velhice forçadamente adiantada. E ele ainda vinha acompanhado de uma camisa bege cheirando a naftalina. - Toda essa agitação e dezoito gurias desfilando perto dos meus olhos? Sério?! – Seu olhar entusiasmado sacudia uma euforia juvenil. - Ben, isso vai ser fo... - Excelentíssimo! – Benjamin interrompeu o jovem ao avistar João Munari, o então prefeito de Caxias do Sul. Apertaram-se as mãos. De cara fechada proposital e ironicamente, a figura política rejeitou a presença do investigador: - Lisboa, você por aqui? – Aproximou o seu rosto para cochichar: - Não venha me dizer que um destes caras vestidos de colono é um serial killer - brincou. Benjamin forçou o riso.

- Absolutamente, senhor Munari. Estou aqui para regozijar a minha semana. - Rego... - Regozijar – repetiu. - Encher de alegria! - Em que ano você vive, Ben? – quem questionou foi o jovem inspetor. João Munari lançou um olhar para o garoto de gel no cabelo, enfiado dentro de um terno que era o dobro de seu tamanho. A gravata borboleta o deixava mais caricato ainda. - Acredito que não fomos apresentados. - Enrico Pagliatti, senhor – animou-se. - Investigador policial e ajudante do detetive Lisboa. Muito prazer! – Ele limpou a mão no terno preto e a estendeu. O prefeito não se intimidou em cumprimentá-lo. João Munari era o prefeito que fazia jus à gastronomia italiana: a sua circunferência avantajada indicava um sobrepeso com o qual a mulher se preocupava e insistia para que o marido a domasse antes que qualquer problema do coração pudesse atrapalhar o seu caminho glorioso como político local. Quando reelegido, três anos antes, Munari investira muito do que tinha, juntamente com a coligação, em uma campanha esperta para arrecadar a quantia de votos necessária para sua eleição. A concorrência pelo cargo mais significativo de Caxias do Sul havia sido acirrada: um político de aparência nova exibia um frescor que a cidade precisava – era o mote utilizado pelo próprio. Porém, João Munari não se intimidara: apostou na certeza de que os mais de 350 mil habitantes precisavam dar continuidade ao crescimento espetacular que vinham dando à cidade. Na escolha entre o certo ou o duvidoso, a população divergiu-se mais do que o esperado. Mas, no fim, Munari acabou levando a melhor. A sua reeleição contou com carros de som e bandeiraço na Praça. Microfones e alto-falantes captavam o seu discurso programado que agradecia aos Caxienses pelo voto de confiança e prometiam uma Caxias tão hospitaleira e em ascensão como vinha sendo. Em meio a gritos de vitória, uma multidão trajada em vermelho – as cores do partido – brindava o novo mandato. - Ah, entendo perfeitamente – observou o prefeito. – Você e o senhor Lisboa são como o Tico e o Teco, ahn? – ironizou. Pagliatti riu na mesma hora. Benjamin Lisboa continuou a observar a cena com um sorriso fechado. Ao fundo, o som dos tambores nas torcidas fazia com que as vozes subissem um tom. - Eu diria Pink e o Cérebro, senhor! E você pode imaginar quem é o Cérebro! – Piscou e apontou para o prefeito. No mesmo minuto, Benjamin fechou os olhos e respirou devagar. - Estou certo de que estamos falando de você, senhor Pagliatti – Munari parecia cuspir ao falar. - Pois bem, cuide para que o seu companheiro não cause problemas esta noite, sim? – Retribuiu a piscadela. - Agora, cavalheiros, se me permitem...

- Perfeitamente – finalizou o detetive com as mãos nos bolsos da calça e uma expressão bondosa e pouco crível. João Munari mal conseguiu dar dois passos e já foi abordado por uma equipe de reportagem que trazia a câmera e um facho de luz forte diretamente sobre o seu rosto. - Mas que diabos, Enri! – exclamou Lisboa. - Ele é a droga do prefeito da cidade, tchê! Pagliatti riu. - Non preoccupatevi, il mio amico! - E agora essa! – Indignou-se mais ainda. - De onde tirou esse italiano? O jovem sentou-se em sua cadeira, aproximando-a da mesa arrumada que ficava na parte interna da passarela, junto com as outras. Do outro lado do trajeto estavam as torcidas em polvorosa. Com o auxílio de um palito, Enrico espetou um pedaço de queijo. De boca cheia, respondeu: - Você esqueceu quem é o Cérebro por aqui?

♛ O holofote que fazia brilhar a careca do prefeito não o amedrontava. João Munari, acima de qualquer acontecimento, deveria mostrar simpatia, firmeza e satisfação naquela noite. E ele estava se saindo muito bem com todos os amigos, companheiros políticos e empresários ali presentes. Até mesmo a imprensa estava sendo justa consigo. Mas, como para tudo, havia uma exceção, e esta atendia pelo nome de Érica Zanin. - Prefeito, como o senhor explica o escândalo que aconteceu nesta semana na Câmara de Vereadores? Algum dos membros deve ser advertido nos próximos dias quanto ao ocorrido? De aparência frágil, a ardorosa jornalista caminhava rapidamente para seguir o seu entrevistado. - Este é um fato já controlado que não cabe ao dia de hoje – divergiu Munari. - Devemos aproveitar cada ângulo desta linda pré-celebração de nossa Festa. A resposta não deixou Érica satisfeita, que prosseguiu: - Todos sabem que a Festa da Uva atrai um número expressivo de visitantes, muitos deles provindos de outros estados do país. A que o senhor atribui a decaída dos últimos anos? Era fato que aquelas perguntas o incomodavam. Mesmo para um prefeito, que sempre parecia ter uma carta de escapatória na manga, aquilo

não era conveniente. O inconveniente, afinal, nunca é bem aceito. Então, por mais que abusasse do jogo de cintura em determinadas situações, Munari acabava fazendo o mesmo que qualquer autoridade política: procrastinava o principal e aplicava uma desculpa aceitável. - A Festa da Uva é uma celebração que se alastra pelo Brasil inteiro. Em anos onde a data conflui com o Carnaval, este número cai, mas não chega a ser expressivo. O fato é que a cada ano conseguimos crescer e propagar ainda mais a nossa Festa. Frases de efeito, era o que circulava pela mente da pequena noticiarista. Sempre finalize com frases de efeito. Tão típico! - Prefeito, e quanto às denúncias de que a escolha da Rainha já está decidida, o que o senhor tem a dizer? Ele estagnou. - Caríssima – olhou-a nos olhos, conhecia-os tão bem -, a escolha terá início dentro de alguns minutos. Esteja certa de que você e o seu companheiro – apontou para o homem que segurava a câmera - têm um lugar adequado para assisti-la do início ao fim. É quando os nossos jurados irão escolher, de fato, o trio de soberanas. João Munari encerrou a sua cota de paciência e afastou-se do holofote, apertando logo em seguida a mão de qualquer pessoa que encontrou pelo caminho apenas como pretexto para afastar-se da jornalista.

Logo em seguida, o prefeito cumprimentou Jorge Adami e sua esposa Maristela. Ambos eram nomes de peso na bancada de júris daquela noite, a qual todos os membros estavam identificados com um broche dourado em forma de uva cravejada em pequenas pedras brilhantes. Junto ao amigo, o prefeito posou para fotógrafos que o circulavam incessantemente. O cinegrafista Nei Gazzola continuou a perseguir o prefeito, porém não por muito tempo. Érica Zanin lhe atribuiu um tapa no braço, afim de que o foco retornasse para ela. Quando os seus olhos verdes brilharam debaixo da luz, com um sorriso notoriamente falso ela finalizou a sua entrada ao vivo: - Nós acabamos de conversar com o prefeito de Caxias do Sul, senhor João Francisco Munari, que preferiu não comentar sobre os escândalos ocorridos nesta semana, como a discussão de dois vereadores que acabou em pancadaria. Ainda sobre o fato de Isabel Radaelli ser fortemente apontada como rainha, e de rumores sobre a compra do título terem surgido, Munari preferiu também não opinar. Dentro de instantes nós estaremos de volta com a transmissão ao vivo da Escolha da Rainha e Princesas da 23ª Festa da Uva. A luz se apagou. Os fios negros do cabelo da repórter, que chegavam ao fim nos seus ombros em estilo chanel, escureceram-se mais ainda. Érica estava mais elétrica do que o de costume: movia-se com pressa, sempre a procura de algum acontecimento que pudesse fazê-la subir de degrau. O cargo de editora chefe do jornal que fazia parte do maior veículo da

comunicação da Serra Gaúcha ainda estava longe, difícil de ser alcançado. Mas ela não desistiria. Em treze anos Érica Zanin havia progredido pouco, assim como qualquer jornalista que leva tempos para conseguir uma carreira consolidada. A pequena mulher virava madrugadas, envolvia-se nos casos mais sinistros, adentrava qualquer bairro parcialmente suspeito a fim de trazer uma notícia fresca e inedita. Por mais irritante e incansável, ninguém poderia reclamar dela, muito menos o seu chefe ou colegas de profissão. Érica era uma profissional exímia, porém estava próxima ao desespero existencial-profissional: faria de tudo pela notabilidade e renome. - Porca miseria, ele te odeia! – o cinegrafista de cabelos brancos quis deixar claro o óbvio. Armada com o microfone, a jornalista de baixa estatura e grande determinação bateu uma mão contra a outra, dando de ombros. - É recíproco, meu caro. Estes filhos da mãe que fogem do assunto não me agradam. – Lançou um olhar para Munari. - Covardes, covardes! – gritou. – Mas sabe de uma coisa? Nei abaixou a câmera e aguardou. - Nós estaremos lá no ano que vem, meu amigo... – proferiu. - Alguém vai ver o seu mandato chegando ao fim. – Ela deu dois tapinhas no ombro do colega. – E nós estaremos lá.

♛ Isabel Radaelli se olhou no espelho mais uma vez. As bochechas decoradas com blush e os olhos marcados levemente compunham o visual que ainda contava com o traje típico de cor violeta, inspirado nas primeiras edições da Festa, e potencialmente o mais inovador: contava com uma espécie de corpete branco decorado com pedras transparentes que acabava na cintura com um caprichado cinturão preto que desenhava melhor a sua silhueta. A saia que vinha logo abaixo desabava pelo corpo como uma cachoeira tranquila e permitia um movimento recatado e sensual. Ela estava tão nervosa. As suas mãos tremiam um pouco, deslizavam pelo tecido grosso do vestido e ela tentava ao máximo se controlar para que não roesse as unhas pintadas de cor vinho em um salão horas mais cedo. Debaixo daquele cabelo armado e impecável, escondia-se uma guria que recém encontrara os prazeres e desprazeres da vida adulta: Isabel passava boa parte de seus dias estudando para o curso de Medicina, e, mesmo com

tanta demanda, resolveu acrescentar os livros sobre a história de Caxias do Sul à sua lista de leitura quando decidira se candidatar ao trono. Era quase questão de orgulho, uma vez que a sua avó havia sido princesa e tanto lhe ensinara durante a vida. Ela não podia decepcionar ninguém.

Atrás de Isabel, outras dezessete moças andavam de um lado para o outro na saleta-camarim reservada para as candidatas, e todas se encontravam tão perdidas quanto os seus ancestrais deviam ter ficado ao chegarem pelas terras gaúchas no século XIX.

Por detrás das paredes daquela saleta, era possível se escutar o que acontecia: a escolha de Rainha e Princesas estava começando. De súbito, todas elas fizeram silêncio e amontoaram-se em um canto onde, por um pequeno aparelho televisor, podiam acompanhar o evento. Isabel juntou-se às amigas. No palco, de fundo preto com uma grande armação contendo o logotipo da Festa, o púlpito servia de apoio para Paola Cavinatto, apresentadora da rede de televisão local, e Marcelo Poletto, responsável pela coluna social do jornal de Caxias que integrava o mesmo grupo de comunicação. Ambos discursavam sobre a importância daquele acontecimento para a cidade e anunciavam as atrações da noite enquanto diversas câmeras instaladas em pontos estratégicos dos Pavilhões espalhavam a cerimônia para a cidade. Depois, o prefeito foi convidado para se pronunciar. Enrico Pagliatti se divertia com as taças de vinho que lhe eram servidas, enquanto Benjamin se restringia à água com gás. - Qual é o seu problema com as uvas, Ben? - Nenhum - respondeu o detetive. - Uvas, uvas. Como não amá-las morando em Caxias, não é mesmo? Ele se levantou. - Vá com calma neste vinho, sim? Lisboa se afastou do local à procura de um banheiro. Havia tomado tanta água - boa parte era para acalmar o nervosismo quanto ao desfile da irmã - que precisava se livrar da bexiga cheia antes dos desfiles começarem. Durante o trajeto, precisou desviar de crianças que corriam de um lado para outro. Seguiu as indicações que o levariam até os sanitários móveis e encontrou uma fila de pessoas vestidas com camisetas que estampavam o rosto de várias das candidatas. Muitas delas tinham apitos em torno dos pescoços e pompons nas mãos. A escolha das soberanas acabava funcionando como um Carnaval fora de época para Caxias do Sul. Aguardando impaciente - certamente um de seus maiores defeitos -, Benjamin encontrou naquela fila o rosto de uma garotinha de não mais do que nove anos que brincava com um dos apitos. Os seus olhos verdes brilhavam de alegria toda vez que ela o assoprava e silenciava qualquer outro som ali perto. Era como se apenas o barulho de seu apito existisse. Lisboa piscou para a garotinha que o encarou com receio, assim como qualquer criança faria. Mas ela sorriu no minuto seguinte. Naquele

momento, um som alto ecoou por dentre os Pavilhões, provindo do palco principal. Anunciava-se o começo do primeiro desfile. Aquilo assustou a menina, que deixou o seu apito cair no chão e quicar. Prontamente, de maneira mais educada impossível, o detetive se abaixou para apanhar o brinquedo. - Trate de lav... Ele não conseguiu terminar a frase, a garotinha havia desaparecido. Benjamin olhou para os dois lados, procurando por qualquer criança loira, porém nenhuma tinha os olhos verdes como aquela em especial. Guardou o apito no bolso e esperou pela sua vez. Um minuto se passou e a porta do banheiro se abriu. Dele saiu a garotinha loira. - Ei! - ele a chamou. Retirou o apito do bolso e entregou. - Acredito que seja seu, você deixou cair. Trate de lavá-lo, certo? A menina olhou para o apito, e então para Benjamin. - Pode ficar - respondeu. - Eu sou muito grande pra brincar com isso. E então ela saiu em disparada.

♛ O desfile ocorreu com tranquilidade para os espectadores, o que não se adequou obviamente a cada moça que pisava no palco. A logística era simples: a candidata, ao ser chamada, dirigia-se até um microfone central e lá dizia o seu nome, entidade que estava representando, e uma mensagem caso houvesse interesse. O que vinha depois era a caminhada que levava cerca de 5 minutos, na qual acenavam e sorriam para os visitantes, amigos e familiares. As músicas que serviam para embalar cada desfile individual haviam sido escolhidas pelas próprias moças, e quase sempre tinham a ver com o que desejavam retratar. Quando Caroline Lisboa apareceu em meio a muitos gritos – a sua família compunha uma das maiores torcidas -, os dedos do detetive se cruzaram, e em sua mente a frase era a mesma que provavelmente circulava em repetição no íntimo da irmã: não tropece, não tropece. Aquele vestido vermelho escuro com tantos detalhes em dourado era comprido, sendo o salto alto um péssimo aliado. Caroline nunca soube se equilibrar direito em qualquer coisa – Benjamin se lembrava de tentar ensiná-la inutilmente a andar de bicicleta. Porém, naquela noite, ela se saía bem. Ao som de uma música que ambos escutavam muito na casa da falecida avó todos os finais de semana, a garota de cabelos loiros arrumados em um topete (era uma

tradição aderi-los para se criar a ilusão de que a candidata era mais alta) distribuía os seus sorrisos de modo pacífico. - Você disse que ela é solteira? – questionou Enrico. Benjamin lançou um olhar de reprovação para o companheiro. - Solteira e inteligente - retrucou. - Logo podemos crer que... Ele não finalizou. Enri deu de ombros e voltou a comer pedaços de queijo enquanto assistia ao desfile. Desta vez, tomava um encorpado suco de uva. Todas as apresentações seguiram o ritual, porém foi com a entrada de Isabel Radaelli que o público veio à loucura, e isto em todos os sentidos. A torcida organizada da candidata colocou em cena a coreografia ensaiada, e um show de luzes acompanhou cada movimento. Na passarela, a morena de cabelos ondulados acenava e agradecia ao público, juntando as mãos no peito. Certamente podia se notar que se tratava de uma das candidatas mais fortes, uma vez que os seus passos eram precisos e seguros, o sorriso era natural e a sua beleza ímpar. Porém, também existia uma porção de pessoas que permaneciam em silêncio, como se demonstrassem a oposição ao monopólio que ela havia conquistado antes mesmo daquela noite. Passado o desfile, as candidatas voltaram a reunir-se na pequena saleta camarim, a qual era vigiada por Radamés, um segurança brutamontes, e somente o pessoal autorizado tinha acesso. Aquele momento, para todas elas, era o pior de todos, pois a espera trazia o questionamento, a dúvida do desempenho e a certeza de que não se podia voltar atrás. E, naquela noite, a espera durou mais do que o comum: uma banda entreteve o público enquanto os jurados tomavam as suas decisões, e depois ocorreu o tradicional concurso de torcidas que premiaria a mais original, animada e organizada. Nos bastidores, a ansiedade tomava conta. Algumas candidatas apoiavam-se em outras, algumas preferiam se manter caladas. Havia até aquelas que chegavam a passar mal e precisavam ser atendidas pelos socorristas de plantão. Não era fácil lidar com o peso de poder representar uma cultura. Eis que chegou o momento do grande anúncio. A equipe de organização alertou as candidatas que dentro de cinco minutos seriam chamadas ao palco. Os nervos afloraram, o medo, a angústia, a apreensão, todos os sentimentos se misturaram para tomar conta daqueles bastidores. A agitação crescia enquanto os apresentadores esperavam o retorno dos jurados para a respectiva bancada. - Convidamos agora as dezoito candidatas a título de Rainha e Princesas da 23ª edição da Festa Nacional da Uva – anunciou Paola Cavinatto, esbelta em um vestido turquesa que contrastava com o cabelo escuro arrumado em um coque. As moças subiram ao palco, colocando-se lado a lado conforme a ordem alfabética que tanto haviam repetido durante o pré-concurso (toda uma preparação havia sido feita até então).

De onde estava, Benjamin Lisboa foi possivelmente o primeiro no local a reparar que a cena não estava completa. O seu pensamento rápido fez questão de enumerar cada uma das moças. - Caspita! Pagliatti encarou o homem e a sua interjeição. - São apenas dezesseis! – constatou o detetive. - Mas não eram dezoito? Ambos recontaram as candidatas e confirmaram. Mesmo estando o ambiente escuro e todas as luzes direcionadas em exagero para o palco, podia-se enxergar, ao fundo, uma agitação nada corriqueira. Um dos membros da comissão organizadora encaminhou-se, abaixado, até os mestres de cerimônia e cochichou algumas palavras. Paola Cavinatto e Marcelo Poletto trocaram olhares curiosos. - Antes de anunciarmos os nomes que formarão o trio de soberanas, convidamos as nossas belas candidatas para um último desfile conjunto! – foi o melhor que Paola, muito esperta e convincente, pôde fazer. - Mas de novo?! – rejeitou Enrico. Benjamin sabia que aquilo não estava nos planos. Até mesmo as candidatas trocaram olhares, como se questionassem o porquê daquela nova ordem. Apesar do nervosismo, algumas delas conseguiram reparar que Isabel Radaelli e Lana Rizzon não se encontravam no palco. Nas torcidas das duas candidatas, o boca a boca se alastrava. Suspeitas eram criadas antes mesmo de qualquer fato. - Isso não está certo... – averiguou Lisboa, colocando-se em pé. - Ben, para onde você vai?! - Sugiro que você venha comigo, Enri. Se você quiser descobrir o porquê do sumiço de duas das candidatas, venha comigo. O inspetor não precisou de mais nada, pois já estava convencido e elétrico. Caminhando a passos largos ao lado de seu superior, questionou um bocado de coisas, as quais não obteve resposta. Benjamin estava pensando. E, principalmente, desejando com que nada tivesse acontecido. Ao alcançarem os bastidores, se depararam com a figura de um homem negro de cara amarrada e braços cruzados que impedia as suas entradas. - Detetive Benjamin Lisboa – falou ao apresentar o seu distintivo cintilante. - Enrico Pagliatti – o jovem fez o mesmo. - Inspetor, por enquanto! Os traços de preocupação atingiam a face de Benjamin, que andava depressa. Atrás de si, o seu companheiro reclamava e pedia para que ele fosse mais devagar. Não dando ouvidos, o detetive encontrou no final daquele mesmo corredor mal iluminado, cujas paredes eram de pedras sem reboco, um dos membros da equipe organizadora falando ao celular. Enquanto se encaminhava até o homem, Lisboa conseguia escutar a música alegre e alta que embalaria o novo desfile das dezesseis candidatas que,

muito lentamente, tomavam a passarela. Tentou sobrepô-la, assoviando mais alto uma cantiga qualquer. Antes que pudesse atingir o homem que talvez lhe explicasse o que acontecia, Ben foi atingido por uma moça em disparada que apareceu em um piscar de olhos. Chocaram-se bruscamente, o que fez com que a garota deixasse cair no chão a sua pequena coroa de embaixatriz. Nos olhos, lágrimas corriam desgovernadas e atingiam o vestido volumoso. Ela tentava falar por dentre o choro e gesticulava ao mesmo tempo. Benjamin a reconheceu de imediato: tratava-se de Lana Rizzon. Ao suportá-la nos braços, ele pediu para que ela se acalmasse, mesmo sabendo da imbecilidade do seu pedido. Naquele momento, sabia exatamente o que havia acontecido. - Está morta! – ela gritou, o choro invadindo os seus lábios marcados de batom vermelho. – Isabel está morta!

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