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1 A ÓRBITA DA GEOGRAFIA DE JEAN GOTTMANN IVAN CARDOSO MARTINELI 1 Resumo: Jean Gottmann foi um escritor infatigável durante toda sua vida. Elaborou, durante longos 60 anos, uma sólida teoria geográfica, partindo da tradição francesa de pensamento, mas com uma marcante influência da geografia produzida no mundo anglófono. Suas reflexões acerca da geografia política são o escopo desse breve artigo. Essas reflexões, bastante influenciadas pelo estudo dos clássicos da filosofia política, fazem explicita referência à psicologia humana, e são baseadas em alguns conceitos fundamentais: cloisonnement (partição), circulation (movimento) e iconographie (iconografia). Apresentaremos os acima mencionados conceitos, através de uma análise cronológica de sua formulação, na tentativa de reconstruir a gênesis e evolução de seu modelo. Utilizamos seus próprios escritos e alguns comentadores de seu trabalho como referência. Objetivamos com essa empresa resgatar os clássicos da disciplina geográfica afim de averiguar sua importância e pertinência nos dias atuais. Palavras-chave: partição; circulação; iconografia. Abstract: Jean Gottmann was an indefatigable writer throughout his life. For a long period of 60 years, he developed a solid geographical theory, based on the French tradition of thought, but with a clear influence of the geography produced in the English-speaking world. His reflections on political geography are the scope of this brief article. These reflections, considerably influenced by the study of the classics of political philosophy, make explicit reference to human psychology, and are based on some fundamental ideas: cloisonnement (partitioning), circulation and iconographie (iconography). We’ll present the above mentioned concepts, through a chronological analysis of their formulation, in an attempt to reconstruct the genesis and evolution of their model. We use his own writings and some commentators on his work as reference. The aim of this endeavor is to redeem the classics of the geographic discipline in order to attest its importance and relevance in the present day. Key-words: partitioning; circulation; iconography. 1 - Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de São Paulo- DG/FFLCH. E-mail de contato: [email protected]

A ÓRBITA DA GEOGRAFIA DE JEAN GOTTMANN

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A ÓRBITA DA GEOGRAFIA DE JEAN GOTTMANN

IVAN CARDOSO MARTINELI1

Resumo: Jean Gottmann foi um escritor infatigável durante toda sua vida. Elaborou, durante longos 60 anos,

uma sólida teoria geográfica, partindo da tradição francesa de pensamento, mas com uma marcante influência da

geografia produzida no mundo anglófono. Suas reflexões acerca da geografia política são o escopo desse breve

artigo. Essas reflexões, bastante influenciadas pelo estudo dos clássicos da filosofia política, fazem explicita

referência à psicologia humana, e são baseadas em alguns conceitos fundamentais: cloisonnement (partição),

circulation (movimento) e iconographie (iconografia). Apresentaremos os acima mencionados conceitos, através

de uma análise cronológica de sua formulação, na tentativa de reconstruir a gênesis e evolução de seu modelo.

Utilizamos seus próprios escritos e alguns comentadores de seu trabalho como referência. Objetivamos com essa

empresa resgatar os clássicos da disciplina geográfica afim de averiguar sua importância e pertinência nos dias

atuais.

Palavras-chave: partição; circulação; iconografia.

Abstract: Jean Gottmann was an indefatigable writer throughout his life. For a long period of 60 years, he

developed a solid geographical theory, based on the French tradition of thought, but with a clear influence of the

geography produced in the English-speaking world. His reflections on political geography are the scope of this

brief article. These reflections, considerably influenced by the study of the classics of political philosophy, make

explicit reference to human psychology, and are based on some fundamental ideas: cloisonnement (partitioning),

circulation and iconographie (iconography). We’ll present the above mentioned concepts, through a chronological

analysis of their formulation, in an attempt to reconstruct the genesis and evolution of their model. We use his own

writings and some commentators on his work as reference. The aim of this endeavor is to redeem the classics of

the geographic discipline in order to attest its importance and relevance in the present day.

Key-words: partitioning; circulation; iconography.

1 - Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de São Paulo- DG/FFLCH. E-mail de contato:

[email protected]

2

Os textos de sua primeira fase, digamos assim, os escritos de 1932 até 1940,

muitos deles publicados nos Analles, revelam um geógrafo ainda em formação, e deixam

claro, também, uma previsível postura política, algo que não se desgarra da esforçada

tentativa de trabalhar cientificamente. Analisando 9 dos 642 textos publicados nesse

período, mais especificamente os que se debruçam sobre questões na Palestina, Gottmann

nos dá um claro exemplo da pela capacidade da ciência em legitimar discursos políticos

e posições político-ideológicas. Mas não trataremos dessas questões aqui, as estamos

desenvolvendo em nossa pesquisa3. De 1941 até 1946, período em que passou de

refugiado de guerra à cidadão norte-americano, trabalhou para os governos francês e

estadunidense, ocupando cargos eminentemente políticos, e veio a trabalhar em alguns

dos maiores centros de pesquisa desse país, como a Universidade John Hopkins e o Centro

de Estudos Avançados de Princeton. Esse foi também o período onde passou a se

preocupar, definitivamente, com os aspectos mais teóricos da disciplina geográfica e com

o lugar a que esta estava sendo conduzida, se dedicando, a partir de 19464, a uma

caminhada exclusivamente acadêmica, longe de qualquer cargo público que não fosse

relacionado à pesquisa e ensino.

Nesse exíguo artigo aqui apresentado, trataremos de suas primeiras formulações

teóricas, por assim dizer, as principais ideias e conceitos que deram origem à sua proposta

de geografia política e ao seu entendimento acerca da geografia humana. Recortamos,

para tanto, o que foi publicado em um período de aproximadamente 20 anos, que se

estende desde seus primeiros trabalhos do começo da década 30, até a publicação de La

Politique des États et leur Geographie, de 1952, onde apresentou elaborações mais densas

2 São eles: L'irrigation en Palestine(1935), Annales de Géographie, 44:143-61; Orient et Occident:

Problèmes Palestiniens(1936), L'information Géographique, 1:5-12; Une carte de l’aridité em Palestine

(1936), Annales de Géographie, 45:430-33; The pioneer fringe in Palestine settlement, Possibilities South

and East of the Holy Land(1937), Geographical Review, 27:550-65; Le problème Palestinien et le projet

de partage du pays(1938)," Annales de Géographie, 47:101-4; Démographie juive en Palestine(1938),

Annales de Géographie, 47:104-5; L'homme, la route et l'eau en Asie Sud-Occidentale (1938), Annales de

Géographie, 47:575-601; Les villes de Palestine (1939), Bulletin de l'Association de Géographes Français,

119:41-7. Todos esses trabalhos foram compilados mais tarde em Etudes sur l'Etat d'Israel et le Moyen

Orient (1959), Paris, Armand Colin, 176 p. 3 Esse artigo faz parte da pesquisa de mestrado em andamento na qual defenderemos um panorama da obra

desse geógrafo, junto à construção de um quadro geral do pensamento geográfico ao longo do século XX. 4 Isso é algo percebido pela evolução de seus escritos. De la méthode d'analyse en géographie

humaine(publicado em 1947), foi definitivamente seu primeiro (e único) artigo “teórico”, e marca o início

de um esforço de vida em formular uma teoria geográfica.

3

que formam a base de uma estrutura teórica desenvolvida, atualizada até o final de sua

vida; esse é também, provavelmente, seu título mais conhecido no meio acadêmico da

geografia. Outras obras que vieram posteriormente, como Megalopolis (1961) e The

Significance of Territorry (1973), entendemos como um aprimoramento do que já estava

posto em La Politique. Traremos aqui, antes de mais nada, nossa interpretação para a

pergunta: qual a concepção de geografia para Jean Gottmann?

PRINCIPAIS CONCEITOS E CATEGORIAS

No sistema de conceitos gottmanniano, a divisão do espaço geográfico é o

fenômeno fundamental e a razão de ser da própria disciplina. Não parece ser coincidência

que inicie La politique e The Significance, livros teóricos, com essa sentença. Em artigo

de 1951, exprime essa ideia objetivamente:

O mundo em que vivemos é um espaço diversificado e altamente dividido. A

superfície da terra é dividida de muitas maneiras: politicamente e fisicamente,

econômica e culturalmente. As divisões políticas são a raison d'etre das

relações internacionais; a variedade das diferentes partes da superfície

terrestre é raison d'etre da geografia. Se a terra fosse uniforme - bem polida,

como uma bola de bilhar - provavelmente não haveria nenhuma ciência como

a geografia, e as relações internacionais seriam muito mais simples. Como os

princípios gerais de geologia, geofísica, botânica ou economia não se aplicam

da mesma maneira nos diferentes compartimentos existentes da Terra, estudos

geográficos apareceram e foram úteis, atravessando a abstração das

disciplinas tópicas e buscando uma análise científica das regiões e sua inter-

relação.5

Essa asserção é bastante esclarecedora: uma acurada visão da realidade, herdeira

duma tradição, e demonstra uma perspectiva metodológica explicita. Quando observa que

“o avanço das técnicas de transporte parece tornar cada evento global, com cada país

encolhendo, e todas as antigas partições se desintegrando” e que “em tal período de

história, pode valer a pena tentar uma breve análise desse fator geográfico”6, entendemos

que Gottmann localiza o conceito de fronteiras em uma posição central. Por sua vez,

fronteiras políticas e unidades geográficas diferentes podem ser definidas como uma

realização derivada da divisão, organização e diferenciação do espaço geográfico: ali se

5 GOTTMANN, Jean. Geography and International Relations, World Politics. 1951:153. 6 Idem.

4

estabeleceu limites jurídicos e delimitou-se uma área geométrica. Isso só seria possível

no ecúmeno, naquelas áreas acessíveis e remodeladas pela mão humana, algo que provém,

sem medida fácil, da capacidade técnica e material de cada grupo ou comunidade7. Por

exemplo, até 1947 a partição dos espaços marinhos (mares, leito e subsolo marinho) não

estava na discussão internacional; uma vez que novas tecnologias foram desenvolvidas

para explorar os recém-descobertos minerais submersos, como os submarinos e os

batiscafos, mares e oceanos foram submetidos a um processo intenso de divisão e

diferenciação (mar territorial, mar patrimonial, mar internacional...)8. Em 1982,

estabelecidas as regras jurídicas e geográficas internacionais que deixaram claros os

limites marítimos9, o processo de partição ganhou folego, transformando os mares e

oceanos em uma, nas palavras de Gottmann, “rede complexa de compartimentos” sob o

domínio e jurisdição exclusiva dos Estados10.

Evoca-se o conceito de singularidade aí, pois quando ocorre a partição do espaço,

este se torna único. O singular viria, primeiro, do físico, como também de sua posição no

sistema de relações que estabelece com outras localizações e pelas suas zonas de fronteira

e áreas limítrofes, de acordo com sua situação, portanto. Nessa linha de pensamento, seria

impossível existirem dois pontos semelhantes na superfície terrestre11, percebemo-lo

pelos elementos de simetria de cada ponto, e isso é uma razão matemática simples.

As relações sociais, por serem produto e consequência de processos históricos,

sempre terão dimensões muito variáveis, mas o mesmo se aplicaria à delimitação das

fronteiras e à aceitação de limites. Um espaço geográfico fragmentado não está “pronto”

para ser apropriado pela mão humana, explica Gottmann, ele precisa ser organizado. Esse

arranjo necessário, fica expresso em regras de propriedade e de posse, individual ou

coletiva, e também por seus usos: produtivo, administrativo, social, cultural, recreativo,

ambiental, religioso, habitacional, religioso, etc. Em consequência, um ponto aleatório do

7 Na apresentação de La Politique comenta que questões de soberania sobre o território lunar (que já na

década de 1950 fora cogitada por alguns governantes) não têm “importância nenhuma hoje em dia, por que

o homem não pode alcança-la ou obter nada dela” (p.4-5). 8 GOTTMANN, Jean. The evolution of the concept of territory”. 1975:34. 9 Esse princípio de soberania marítima foi fixado pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do

Mar, de 1982. No Brasil, essas disposições passaram a valer a partir 1990, o que lhe conferiu o direito pleno

aos campos de petróleo descobertos em seu alcance marítimo, 15 anos depois. 10 GOTTMANN, The Political Organization of Space, 1952b: 513. 11 GOTTMANN, The Political..., 1952b: 514.

5

planeta já dividido e ordenado, portanto, se diferenciará dos que estão à sua volta de

muitas maneiras, sejam nos fatores geográfico-naturais, sejam por fatores sociais: fala-se

agora em territórios.

O espaço geográfico, junto à evolução no tempo das técnicas e do saber-fazer, tem

sido diferenciado tanto (1) por fatores físicos (clima, solo, hidrografia), naturais (fauna e

flora), como também (2) pelas marcas dos Estados modernos, que impõem as divisões e

organização políticas. A partilha desses elementos da natureza será sempre desigual por

envolverem muitos atores, e as ações políticas que dividem, organizam e diferenciam um

pedaço do planeta, serão responsáveis pela conformação dos territórios. Nas palavras de

Gottmann, o território é “um compartimento do espaço politicamente diferenciado

daqueles que o rodeiam”, de uma existência física que se manifesta geometricamente por

uma área, como também por um atributo físico mais complexo, de caráter relacional, que

é sua posição geográfica12.

Fica evidente, ali, que “compartimento” é um termo bastante adequado para

Gottmann quando se trata de espaços singularizados política e economicamente; quando

não se fala de nenhum tipo de homogeneidade geográfica, o velho conceito de região

parece não consentâneo. Seriam exemplos da existência de vários tipos de

compartimentos, definidos no curso da história pelo homem, o recorte local, territorial,

regional (nacional ou internacional) e continental. Por sua vez, cada recorte físico do

planeta, um território por exemplo, possui um histórico único. Gottmann nos explica que

é o povo – e não o território – que estabelece a rede de relações, que modela o oferecido

pela geografia física e desenvolve uma subjetividade também única. Esse autor vai

expressar essa percepção através da ideia de iconografia – mais comum nos estudos de

gêneros de arte, artista ou período artístico –, que é transposta para o estudo

12Explica que a posição geográfica envolve considerações locais/regionais, e considerações .“extra-

regionais”. As locais são características como continentalidade ou posição costeira, peninsular ou insular;

as extra-regionais diriam respeito ao posicionamento do ponto em relação a unidades geográficas mais

abrangentes, e questões de distância e posição relativa ficam em maior evidencia. Um território e sua

posição não podem ser abstraídos, considerados isoladamente, explica. No máximo, pode-se tentar abstrair

as características de cada um. Nesse caso, a extensão do território, de um lado, e sua posição, do outro,

formariam as características geográficas básicas. GOTTMANN, La politique..., 1952a:70. Ver também

ARRIAGA-RODRIGUEZ, 2014:19-21.

6

antropogeográfico como a produção de simbologias e ícones (no sentido semiótico) por

povos, em dado lugar e não em outro.

A partição espacial, portanto, que decorre da ideia de diversificação da superfície

da Terra, não é deveras tributária às diferenças da geografia física, mas sim à diversidade

da geografia humana: as principais divisões estão na mente das pessoas. Isto posto, vai

explicar que é – também – a circulação que organiza o espaço e o distingue, e nesta senda

o impacto da psicologia humana é mais significativo do que o da geografia física13.

Seguindo as grandes figuras do pensamento geográfico, la circulacion, em

Gottmann, é a principal força que molda a geografia humana. Como exposto, aprende-se

com esse autor que o espaço geográfico é caracterizado pela heterogeneidade e pela

diferenciação. Os lugares são bem diferenciados pela cultura, nas tradições e nas práticas

do convívio que ali ocorrem; nos termos da geografia física, suas características ficam

evidentes na distribuição desigual dos elementos da natureza, na variedade do quadro

físico, no clima e nas vidas animal e vegetal. Esta variedade se traduz em uma pluralidade

de regiões, todas diferenciadas e interconectadas14.

Quando se estuda os fenômenos sociais deve-se partir da percepção de geografias

diferenciadas e interconectadas. Para Gottmann, disciplinas como as Relações

Internacionais, História Política e Geografia Política, devem ter claro que a evolução dos

espaços diferenciados é o fundamento de qualquer investigação em seus campos de

estudo15. A circulação, por sua vez, é a força unificadora dos lugares. Populações

concentradas em uma área ou a ausência de mão-de-obra em outras, por exemplo,

constituem diferenças de potencial, diferenças que por sua vez podem originar migrações.

E esses movimentos de capital humano podem gerar enorme capital de oportunidades,

13 Em The Significance of Territorry nos explica que a “psicologia humana é, naturalmente, a raiz desse

assunto... acessibilidade é o problema central e permanente, bem como a razão indireta para a partição

do espaço, regulando as condições de acesso. Uma comunidade cerca um território para controlar o

acesso de pessoas que são alheias às suas terras, pessoas e recursos. Ainda assim, a mesma comunidade

quer permitir que seus membros ganhem algum acesso ao espaço, aos povos e aos recursos do mundo

exterior. Assim, dentro do ambiente comum que a geografia estuda e que a política manipula, definido

como "o espaço acessível às atividades humanas... existe um conflito constante entre os propósitos políticos

que buscam mais segurança, por um lado, e amplas oportunidades, por outro. (1973, p. 9)

14 GOTTMANN, Jean. La Politique..., Armand Colin, 1952a:4-5. 15 GOTTMANN, Jean. Geography...,. World Politics. 1951:156.

7

oportunidades que, no entanto, não vão se concretizar enquanto existirem obstáculos,

naturais ou artificiais, aos fluxos material ou imaterial. E para que se exista este fluxo,

tem de haver conexões.

No desenrolar da história foram se imbricando tentativas exitosas de “conectar

lugares com potencialidades diferentes”16. Os meios de comunicação e transporte, sempre

de acordo com as limitações de cada tempo histórico, foram e são as ferramentas que se

tem utilizado para ampliar o campo de movimento. Com mais movimento, maiores

benefícios econômicos e culturais podem se materializar (embora a grande maioria das

pessoas, na verdade, seja despojada de qualquer possível benefício, lembra); e o resultado

dessa expansão do movimento e das trocas em escala global, assentou as condições para

a conexão econômica-regional do mundo a nível global. Essa força é chamada de

circulação por Gottmann17.

Esse conceito, ressalta nosso autor, foi formulado por Vidal de La Blache, mesmo

que de maneira não concluída, no quadro duma teoria geográfica geral. Comenta que essa

ideia conduziu La Blache a sublinhar as cidades como nós, em um sistema de relações

internas (dentro do país) ou externas (entre países), e como lugares que organizam a vida.

O coração dessa ideia nos explica que o uso do solo seria determinado pelo sistema de

relações externas (e que a circulação materializa) e não pelas suas características

geológicas, climáticas ou biológicas: "o valor do espaço é determinado pelos seus usos

sociais, não pelos fatores físicos que o caracterizam"18. Sobre suas características, a

circulação pode ser dividida em diferentes ordens:

Na ordem política, desloca pessoas, exércitos e ideias; na ordem econômica,

move bens, técnicas, capital e mercados; na ordem cultural, move ideias,

fabrica pessoas. Consiste às vezes em circuitos de troca e às vezes de

transferências unidirecionais. Por causa da unidade do mundo acessível aos

homens, ela forma um todo, infinitamente fluido, infinitamente ramificado.

Localizar um fenômeno no espaço é colocá-lo nos sistemas de relações que a

circulação anima. A posição geográfica de um lugar ou território, que é de

importância capital devido às suas consequências políticas, resulta de um certo

estado de circulação. Não é surpreendente que o exame de fatores físicos na

geografia política nos levou a concluir que, na maioria das vezes, esses

personagens agem de acordo com a circulação. Se se admite que existe um

16 Onde? 17 GOTTMANN, Jean, “La politique...”, 1952a:215. 18 GOTTMANN, Jean. La Politique..., 1952a:215; GOTTMANN, Jean. Méthode..., 1947:6-7.

8

determinismo nas relações espaciais, o tráfego [la circulacion] deve ocupar o

primeiro lugar entre os fatores determinantes.19

Então aí é certo que a circulação de homens, ideias e produtos, é a grande força

dinâmica que transforma o espaço. Economicamente, essa vai permitir a organização e a

acessibilidade dos bens e recursos, ao mesmo tempo que influencia enormemente na

diferenciação dos lugares e seu entorno direto (pela agricultura, indústria, mineração,

silvicultura, pecuária, etc.). Para “triunfar”, essa força motora que tanto contribui para a

partição política, econômica e social do mundo, não deve ter em seu “caminho” qualquer

forma de obstáculo técnico, geográfico ou cultural, nada que impeça o livre fluxo de

fatores econômicos.

Toda essa discussão pode nos levar a uma simples dúvida: se as supostas

vantagens da circulação parecem tão evidentes e os possíveis benefícios da unificação

(para certos agentes), então por que a divisão do mundo ocorre? Para Gottmann, a

resposta reside na existência de uma segunda força, as iconografias20, que é uma força

paralela, e não contrária, à circulação. E essas duas forças moveriam a geopolítica do

mundo. O processo aconteceria da seguinte forma: quando a circulação triunfa, um espaço

regional é unificado, mas por outro lado, o fortalecimento das iconografias locais conduz

à divisão de regiões ou ao reforço das fragmentações existentes.

Em primeiro lugar, repetimos a crença de Gottmann de que o ideal da unificação

da humanidade atravessa toda sua própria história. Cronologicamente vão se sucedendo

investidas de unificação regional ou conquista de territórios, atitudes expansionistas no

geral. As possibilidades de circulação favorecem ou impedem, na sua restrição, as

unificações: sem algo básico como o acesso aos lugares ou a possibilidade de um fluxo

satisfatório não há unidade possível.

19 GOTTMANN, Jean. La Politique..., 1952a:215. 20 O conceito de iconografia vem da história da arte, onde tem duas acepções: como estudo dos símbolos

em seu significado e sentido histórico-social; e como a busca e análise de ideias implícitas em uma obra de

arte, a localizando em seu contexto histórico - para esta definição o termo iconologia também é usado. Foi

cunhado no final do século XVI por Cesare Ripa em Iconology; manual que serviu de guia para interpretar

os símbolos e alegorias do cristianismo e das culturas grega, romana e renascentista. Foi resgatado pelo

historiador de arte Abraham Moritz Warburg (o Aby Warburg, 1866-1929) em sua tese sobre a "transmissão

de iconografia antiga para a cultura européia moderna". A ideia da iconografia de Gottmann é, para

Cosgrove e Daniels, indubitavelmente influenciada pelas teorias de Warburg. Sobre a origem do conceito.

Ver, COSGROVE, Denis; DANIELS, Stephan; The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic

Representation, Cambridge, 1988.

9

A ideia de iconografias não é contrária à de circulação, apesar de ser uma força

que promove, pelo contrário, a partição e fragmentações dos espaços. É a força que

mantém unidas às linguagens, os símbolos e os assuntos que conformam unidades

culturais (ou políticas); um fator de resistência que as comunidades opõem às dinâmicas

do movimento.21

Nos pareceu claro que o uso desse conceito fica ajustado para a análise de

fenômenos geográficos, e não na interpretação de símbolos sociais, sendo essa ideia útil

na identificação de símbolos que tenham um sentido territorial, elementos que revelem a

identidade espacial de um grupo. Isto Gottmann buscou deixar claro, e fez isso com a

seguinte metáfora: se trata de um ícone (no sentido da semiologia), que é um símbolo que

caracteriza uma comunidade e que ligeiramente a diferencia de outras; esse símbolo é

“adornado com qualquer joia ou riqueza que a comunidade possa fornecer”, algo “que se

torne o orgulho de todos os membros dessa comunidade”22. Essas “joias” e “riquezas”

são ideias ou emblemas de grande valor simbólico para cada lugar.

Entendemos ser esse conceito uma direção metodológica na geografia humana,

que pode se relacionar com o estudo das paisagens (isso porquê sua raiz “icon” diz

respeito a crenças abstratas que, de certa forma, se materializam em objetos visíveis e

reconhecíveis). Muscará observou que iconografias regionais ou nacionais podem ser

usadas por geógrafos como instrumentos para o “mapeamento cultural”23.

Sobre esse conceito, Arriaga-Rodrigues explica que estas não possuem

...elementos identificados com a civilização ou cultura, porque para Gottmann

esses conceitos têm uma definição muito geral e, portanto, são imprecisos para

identificar identidades sociais. Pelo contrário, o conceito de iconografia tem

um conteúdo específico, não como uma mera soma de símbolos, mas como

elementos histórico-sociais que têm grande influência na percepção e na

concepção dos espaços humanos.24

A iconografia tem, ao mesmo tempo, outra característica distintiva importante:

uma vez que a geografia e a política estão intimamente conectadas, as iconografias podem

ser usadas por forças políticas para atingir objetivos específicos, e é nisso que a atenção

21 MUSCARÁ, Luca. Gottmann’s Geografic Glossa. 2001:288. 22 GOTTMANN, Jean, Geography..., 1951:164. 23 MUSCARÁ, Luca. Gottmann’s Geografic Glossa. 2001:289. 24 ARRIAGA-RODRIGUEZ, “La concepcion...” 2014:27

10

de Gottmann parece se concentrar. Mas antes de discutir o uso político das iconografias,

pode ser útil recordar as origens dessa ideia no autor.

O conceito apareceu pela primeira vez em um seminário de 1951, num contexto

em que Gottmann apresentava a “compreensão geográfica” a um público das Relações

Internacionais e apresenta-se melhor desenvolvido em artigo de 195225. Na primeira das

duas comunicações, reflete sobre diversidade regional, rejeitando qualquer relação

determinista entre o ambiente físico e o comportamento das nações. Assim, a

diferenciação do espaço geográfico e a partição política são causados por diferenças

culturais (ou espirituais), e ele descreve, nesses textos, o "espírito nacional ou regional"

de modo parecido com a definição de iconografia.

Este espírito nacional ou regional é sempre composto de muitos componentes:

um antecedente histórico, comuns aos membros da comunidade, mas

estranhos aos que estão além da fronteira. O vínculo comum é preservado, e

muitas vezes reforçado, pela educação que a família e a escola oferecem às

gerações mais novas. O ambiente local sempre faz parte dos fundamentos

desse espírito nacional ou regional, mas o importante é o que as pessoas

aprendem a ver nas condições físicas e sociais em que vivem26.

Reforça, também, que o conceito de iconografia decorreu da ideia de espírito de

uma nação, mas que o “substituiu” porque o termo espírito sempre fora muito ambíguo.

A força abstrata de uma ordem existente está enraizada no espírito da nação

ou do grupo de nações envolvidas. "Espírito" é outra noção difícil, cujo uso

pode parecer não científico. O que esse termo significa aqui é uma certa

atitude psicológica resultante de uma combinação de eventos reais com

crenças profundamente enraizadas na mente das pessoas... a palavra

"iconografia" [serve] para descrever todo o sistema de símbolos em que um

povo acredita. Estes símbolos são muitos e variados. Uma "iconografia"

nacional, ao nosso ver, engloba a bandeira nacional, as memórias orgulhosas

da história passada, bem como os princípios da religião predominante, as

regras de economia geralmente aceitas, a hierarquia social estabelecida, os

heróis citados nas escolas, os autores clássicos, e assim por diante.27

25 Os dois!!!!!! 26 GOTTMANN, Jean, Geography..., 1951:161-163. 27 GOTTMANN, Jean. The Political..., 1952:516.

11

CONCLUSÃO

A teoria das partições dos espaços é, diríamos, uma aproximação das relações

entre sociedade e espaço, relações essas que influenciam na instituição e na organização

de limites territoriais e fronteiras. O espaço humano de que Gottmann se refere é o espaço

geográfico ocupado e transformado pelos homens. O conceito de "partição" deve ser

entendido como o processo de divisão, organização e diferenciação de espaços

geográficos acessíveis a grupos sociais. Ela vai ocorrer quando áreas do planeta são

ocupadas e transformadas portanto, algo sujeito à capacidade técnica e material dos atores

envolvidos. O fragmento do planeta que então foi dividido, organizado e diferenciado

pelos Estados se torna território, embora existam outros tipos de compartimentos

definidos por diferentes grupos sociais.

Em Gottmann, o processo histórico de particionamento (político) do planeta é o

mecanismo ideal para entendermos as transformações na concepção das fronteiras, e

também para explicar por que essas tomam forma, mudam, desaparecem. Essa partição

será econômica, social, cultural e/ou política. Uma de suas formas, a divisão política, é o

que leva à instalação de limites territoriais e influencia, diriam alguns até que determina,

as relações internacionais entre Estados. Nesse sentido, a partição política pode ser um

conceito geopolítico de grande alcance para compreendermos as relações de poder

mundiais.

Essa divisão do espaço geográfico, por sua vez, é ensejada por duas forças, às

vezes complementares, embora quase sempre antagônicas. Por exemplo, quando a

circulação se realiza e ocorre a unificação regional, os grupos de poder inventam um

discurso de conteúdo geográfico baseado na iconografia. Esse discurso deve ser de tal

força simbólica que impede ou anula o reforço das iconografias que se opõem à

unificação. A relação entre circulação e iconografia, portanto, se faria sempre presente no

processo de partição. E essa circulação, que expõe ao fluxo de ideias, bens e pessoas as

comunidades, gera mudanças nas mesmas. Para Gottmann, para evitar efeitos indesejados

dessas mudanças, os governos recorrem à iconografia para regular ou redirecionar a

circulação.

Por fim, a relação entre as forças de circulação e as forças da iconografia permite

o estudo da partição do mundo em diferentes lugares e épocas; também nos ajuda a

12

analisar o processo histórico de conformação das fronteiras e as constantes mudanças no

mapa político do mundo, esse inteiramente definido por limites territoriais. Para

Gottmann, o papel da circulação é tão importante na divisão política do mundo quanto a

iconografia. A teoria da partição dos espaços humanos se mostra uma proposta de

interpretação holística, pois inclui não somente variáveis políticas e econômicas, mas

também adiciona a variável sociocultural através da ideia de iconografia.

Referências Bibliográficas

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