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A REALIZAÇÃO DO ACUSATIVO E DO DATIVO ANAFÓRICOS DE TERCEIRA PESSOA NA ESCRITA BRASILEIRA E LUSITANA
por
GILSON COSTA FREIRE
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
Tese de Doutorado em Língua Portuguesa apresentada à Coorde-nação dos Cursos de Pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte.
Rio de Janeiro, 2º semestre de 2005
EXAME DE TESE
FREIRE, Gilson Costa. (2005) A realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa na escrita brasileira e lusitana. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 204 pp.
_______________________________________________________________ Orientadora: Professora Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte _______________________________________________________________ Professora Doutora Christina Abreu Gomes _______________________________________________________________ Professora Doutora Sônia Maria Lazzarini Cyrino _______________________________________________________________ Professora Doutora Sílvia Figueiredo Brandão _______________________________________________________________ Professora Doutora Sílvia Rodrigues Vieira _______________________________________________________________ Professora Doutora Letícia Rebollo Couto _______________________________________________________________ Professor Doutor Carlos Alexandre Victório Gonçalves Defendida a tese Conceito: Em ___/ ___/ 2005
A meus queridos pais,
Germano e Raimunda,
pelo amor incondicional
que sempre me devotaram,
sem o qual não teria
chegado até aqui.
AGRADECIMENTOS
A Deus, Criador e Senhor da vida, pela graça de concretizar este
objetivo por mim tão almejado.
A meus pais, pela confiança que em mim depositaram durante todo o
tempo da minha formação.
A meus irmãos, cunhado, amigos e colegas de curso, pelas palavras de
apoio que me exortaram a nunca desistir diante das dificuldades.
À Prof.ª Dr.ª Maria Eugênia Lamoglia Duarte, pela orientação
competente e segura, sem a qual este trabalho não seria possível, e pela
generosa solicitude — não raro além do trabalho acadêmico — a mim
dispensada ao longo desses anos de convivência.
Enfim, a todos aqueles que, de forma direta ou indireta, contribuíram
para a realização deste trabalho, meu MUITO OBRIGADO.
Este trabalho foi financiado por
uma bolsa CAPES.
SINOPSE
Clíticos acusativo e dativo de
terceira pessoa no português escrito
brasileiro e europeu. Estratégias
para a sua substituição nas duas
funções. Distribuição das variantes
num contínuo oralidade-letramento.
Considerações sobre o papel da
escola na recuperação dos clíticos.
SUMÁRIO
Índice de tabelas......................................................................................... iii
Índice de gráficos........................................................................................ v
INTRODUÇÃO............................................................................................ 1
1. TRADIÇÃO GRAMATICAL E TRABALHOS ACADÊMICOS.................. 6
1.1. A função nominativa......................................................................... 6
1.2. As funções objetivas........................................................................ 12
1.2.1. O acusativo anafórico de terceira pessoa.............................. 21
1.2.2. O dativo anafórico de terceira pessoa................................... 25
2. PB E PE: DUAS GRAMÁTICAS DISTINTAS?....................................... 29
2.1. Diferenças de estatuto sintático entre PB e PE............................... 30
2.1.1. A sintaxe pronominal.............................................................. 30
2.1.2. A projeção dos constituintes da frase.................................... 32
2.1.3. A freqüência de propriedades gramaticais comuns............... 33
2.2. Considerações diacrônicas.............................................................. 34
2.2.1. O preenchimento do sujeito pronominal................................ 35
2.2.2. O esvaziamento da posição de objeto................................... 36
2.2.3. A mudança na colocação dos clíticos.................................... 37
2.3. Hipóteses sobre a perda dos clíticos de terceira pessoa no PB...... 40
2.3.1. O enfraquecimento da concordância no PB.......................... 41
2.3.2. A direção de cliticização......................................................... 44
3. FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS............................ 56
3.1. Quadro teórico................................................................................. 56
3.1.1. A teoria de Princípios e Parâmetros...................................... 56
3.1.2. A Sociolingüística Variacionista............................................. 57
3.1.3. O fenômeno da mudança sintática no PB.............................. 59
3.1.4. A natureza do clítico em português........................................ 63
3.1.4.1. Clíticos especiais e clíticos simples.......................... 63
3.1.4.2. Tipologia dos clíticos especiais................................. 66
3.2. Hipóteses......................................................................................... 77
ii
3.3. Metodologia...................................................................................... 78
3.3.1. Função acusativa................................................................... 81
3.3.2. Função dativa......................................................................... 98
4. ANÁLISE DOS DADOS.......................................................................... 107
4.1. A função acusativa........................................................................... 107
4.1.1. Condicionamentos lingüísticos............................................... 116
4.1.1.1. Antecedente do acusativo anafórico......................... 117
4.1.1.2. Forma verbal e ordem do clítico................................ 119
4.1.1.3. Transitividade verbal................................................. 130
4.1.1.4. Contexto de ilha sintática.......................................... 136
4.1.1.5. Traço semântico........................................................ 140
4.2. A função dativa................................................................................ 148
4.2.1. Condicionamentos lingüísticos............................................... 158
4.2.1.1. Tipo de verbo e ordem do clítico............................... 158
4.2.1.2. Tipo de preposição introdutora do SP anafórico....... 165
4.2.1.3. Traço semântico........................................................ 168
5. CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE CLÍTICOS......................... 174
5.1. A formação histórica do PB.............................................................. 174
5.2. A constituição da norma oficial no Brasil......................................... 179
5.3. O desafio de ensinar o emprego de clíticos..................................... 180
CONCLUSÃO............................................................................................. 186
RESUMO.................................................................................................... 192
ABSTRACT................................................................................................. 193
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 194
ANEXO (listagem dos veículos usados na composição das amostras) .... 202
iii
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1.1: Paradigma flexional do português segundo a tradição escolar.. 7
Tabela 1.2: Redução do paradigma verbal do PB......................................... 12
Tabela 2.1: Objetos nulos no tempo (Cyrino, 1993)...................................... 37
Tabela 2.2: Pronome proclítico ao verbo principal em locução verbal de estru-
tura matriz (Cyrino, 1993)........................................................... 38
Tabela 2.3: As desinências pessoais do PB.................................................. 42
Tabela 3.1: Quantidade de cada tipo de texto nas amostras levantadas...... 80
Tabela 4.1: Função acusativa: distribuição dos dados computados segundo a
variante usada............................................................................107
Tabela 4.2: Função acusativa: distribuição das variantes no contínuo de orali-
dade-letramento.........................................................................108
Tabela 4.3: Função acusativa: distribuição das variantes segundo o antece-
dente..........................................................................................117
Tabela 4.4: Função acusativa: distribuição das variantes segundo a forma ver-
bal...............................................................................................119
Tabela 4.5: Função acusativa: ordem do clítico nas duas variedades do portu-
guês............................................................................................122
Tabela 4.6: Função acusativa: distribuição das variantes segundo a estrutura
sintática da frase.........................................................................130
Tabela 4.7: Função acusativa: distribuição das variantes segundo o contexto
de ilha sintática...........................................................................136
Tabela 4.8: Função acusativa: distribuição das variantes segundo o traço se-
mântico.......................................................................................141
Tabela 4.9: Função acusativa: pesos relativos do fator contínuo de oralidade-
letramento...................................................................................147
Tabela 4.10: Função acusativa: pesos relativos do fator traço semântico.....147
Tabela 4.11: Função acusativa: pesos relativos do fator forma verbal...........147
Tabela 4.12: Função dativa: distribuição dos dados segundo a variante usa-
da................................................................................................148
Tabela 4.13: Função dativa: distribuição das variantes no contínuo de oralida-
de-letramento...............................................................................150
iv
Tabela 4.14: Função dativa: distribuição das variantes segundo o tipo de ver-
bo................................................................................................158
Tabela 4.15: Função dativa: ordem do clítico nas duas variedades do portu-
guês............................................................................................162
Tabela 4.16: Função dativa: Função dativa: distribuição do SP anafórico se-
gundo a preposição regente.......................................................165
Tabela 4.17: Função dativa: Função dativa: distribuição das variantes segundo
o traço semântico........................................................................168
Tabela 4.18: Função dativa: pesos relativos do fator contínuo de oralidade-le-
tramento......................................................................................170
Tabela 4.19: Função dativa: pesos relativos do fator tipo de verbo...............170
v
ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico I: Função acusativa: distribuição das variantes segundo a variedade
do português...............................................................................107
Gráfico II: Função acusativa: percentual de cada variante através do contí-
nuo no PB...................................................................................112
Gráfico III: Função acusativa: percentual de cada variante através do contí-
nuo no PE...................................................................................115
Gráfico IV: Função dativa: distribuição das variantes segundo a variedade do
português....................................................................................149
Gráfico V: Função dativa: percentual de cada variante através do contínuo
no PB..........................................................................................154
Gráfico VI: Função dativa: percentual de cada variante através do contínuo
no PE..........................................................................................156
INTRODUÇÃO
Há algumas décadas, estudos sobre o português brasileiro oral vêm
apontando processos de mudança em progresso que estariam resultando um
distanciamento cada vez maior entre a descrição presente nas gramáticas
normativas e o uso efetivo da língua falada no Brasil.
Dentre os fenômenos que ilustram tal distanciamento, destaca-se a
perda dos clíticos que fazem referência à terceira pessoa, conforme sinalizam
muitos estudos acerca da modalidade falada do português brasileiro. Sobre
esses itens lingüísticos, o grupo mais descrito nos trabalhos acadêmicos tem
sido o clítico acusativo: estudos sobre a língua oral em diferentes regiões do
País, com base na fala de indivíduos dos mais diversos níveis sócio-
econômico-culturais, como o de Omena (1979), o de Duarte (1986, 1989), o de
Malvar (1992) e o de Freire (2000), têm registrado que o clítico acusativo de
terceira pessoa se apresenta em flagrante processo de desaparecimento,
sendo substituído pelo pronome lexical (forma nominativa do pronome em
função acusativa), por um SN anafórico (forma plena do SN correferente com
outro SN previamente mencionado) ou ainda por um objeto nulo. Nos dados
de Freire (2000), que investigou apenas a fala de informantes com nível
superior completo, o índice de ocorrência do clítico acusativo de terceira
pessoa ficou em torno de 3%, sendo o SN anafórico e o objeto nulo as
estratégias favoritas na realização do acusativo anafórico.
Quanto à função dativa, estudos lingüísticos sobre a fala, como o de
Berlinck (1996), o de Gomes (1999), o de Silveira (2000) e o de Freire (2000),
registram como estratégias de substituição do clítico de terceira pessoa o
pronome lexical, o uso de SNs anafóricos regidos ou não por preposição e o
dativo nulo. Cite-se que em Freire (2000) não foi encontrado um uso sequer do
clítico realizando o dativo anafórico de terceira pessoa na fala culta carioca.
Por outro lado, há um crescente emprego do pronome lhe em referência à
segunda pessoa na modalidade oral do português brasileiro, seja em função
acusativa seja em função dativa, conforme registram Ramos (1998) na fala
nordestina e Freire (2000) na fala carioca, o que sugere que esse item
2
lingüístico estaria passando por um processo de especialização, ou seja,
estaria deixando de ser uma forma tanto de terceira quanto de segunda pessoa
para figurar exclusivamente na referência à segunda pessoa, seja na função
dativa seja na acusativa.
Não obstante os trabalhos lingüísticos sobre o português brasileiro
evidenciarem uma freqüência baixa ou nula de clíticos na referência à terceira
pessoa, sabe-se que a escola continua a ensinar o modelo de língua culta
preconizado pela gramática tradicional, que prevê o emprego de clíticos na
representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa. Essa
praxe escolar levaria a crer que, pelo menos na escrita, poderiam ser
encontradas as formas e as construções prescritas pelos compêndios
gramaticais, dado o seu caráter conservador e mais monitorado, supostamente
não havendo espaço para os “desvios” próprios da língua falada. Entretanto,
numa análise informal da modalidade escrita, podem ser constatadas tanto a
troca entre as funções acusativa e dativa no emprego dos clíticos de terceira
pessoa (Isso o agrada. Isso lhe favorece.), como a ocorrência de estratégias
alternativas à variante padrão, o que sugere não ser tão perfeita assim a
correspondência entre a norma prescrita pelas gramáticas e o uso efetivo da
língua na escrita.
Conquanto existam trabalhos que já tenham se debruçado sobre a
substituição do clítico de terceira pessoa por outras estratégias alternativas na
modalidade escrita, tais trabalhos focalizaram, de um modo geral, textos
produzidos por estudantes (cf. Corrêa, 1991; Averbug, 2000) que ainda estão
em fase de aprendizagem das formas de prestígio. Por conseguinte, pouco se
sabe sobre a implementação das referidas estratégias na escrita de brasileiros
que já concluíram o processo de letramento, ou seja, nos textos produzidos
pela imprensa ou por outras instituições de prestígio social, que representam a
cultura de letramento. Faz-se, pois, necessário verificar o que realmente
constitui a norma padrão escrita do português brasileiro, conforme observa
Menon (1996: 502):
Se, por um lado, temos conseguido revelar fotografias sociolingüísticas da língua falada, não temos, por outro, uma descrição da norma culta veiculada pela imprensa em geral. Partimos do pressuposto de que ali está tudo aquilo que a tradição gramatical vem nos
3
mostrando ao longo dos anos e não nos damos conta de que uma nova geração de jornalistas (e lingüistas) começa a revelar em seus textos a “infiltração” de variantes já implementadas na língua oral.
Em texto mais recente, Kato (no prelo: 1-2) compartilha a mesma
opinião, asseverando que “não temos, no Brasil, um estudo sistemático da
gramática de nossos jornais e escritores contemporâneos e nem juízos sobre o
seu saber sobre a escrita”.
Assim, levando em conta os pressupostos da teoria da variação e os
trabalhos realizados à luz da teoria de Princípios e Parâmetros (Galves, 1993,
1998; Duarte, 1999, entre outros), pretende-se investigar a realização do
acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa na escrita a partir de um
contínuo oralidade-letramento, com base em amostras das variedades
brasileira e lusitana da língua. Os resultados permitirão evidenciar até que
ponto as mudanças apontadas na modalidade oral sobre os clíticos de terceira
pessoa se encontram implementadas na escrita, revelando ainda o grau de
influência da tradição gramatical sobre a produção de textos nos dois países
lusófonos, o que remete a duas grandes questões levantadas por Kato (no
prelo) sobre a escrita: (a) a forma como se apresenta esse conhecimento
lingüístico; (b) a maneira como se obtém esse mesmo conhecimento. A
resposta à primeira questão propiciará conhecer se há uma correspondência
entre prescrição e uso, além de discutir a aplicabilidade do ensino de clíticos de
terceira pessoa ministrado pela escola no Brasil, uma vez que cabe a essa
instituição a tarefa social de permitir ao aluno o acesso a uma variedade
lingüística que ele não domina: a norma considerada padrão. Quanto à
segunda questão, este trabalho levantará aspectos relativos à aquisição da
escrita pelo letrado brasileiro, uma vez que apontará os contextos facilitadores
da recuperação do clítico nessa modalidade, bem como a entrada de
estratégias alternativas ao uso desse item lingüístico.
Para alcançar esses objetivos, foram obtidas duas amostras, uma para o
português brasileiro e outra para o português europeu (doravante PB e PE,
respectivamente), a partir de jornais e de revistas brasileiros e portugueses.
Através dessas amostras, será possível verificar, particularmente no PB, se a
4
escrita verdadeiramente reflete a descrição da gramática tradicional, o que
permitirá apontar caminhos aos que se lançam à tarefa de ensinar a norma
oficial diante de um contexto de variação, tal como a expressão do acusativo e
do dativo anafóricos de terceira pessoa.
Para a orientação deste trabalho, formularam-se algumas hipóteses que
serão verificadas através do levantamento dos dados e da análise dos
resultados. A partir do trabalho de Galves (1998), segundo o qual o PB e o PE
constituem duas Línguas-I distintas, e dos resultados de análises empíricas das
duas variedades, foram levantadas as seguintes hipóteses: (a) sobre a função
acusativa, acredita-se que as duas variedades ainda tenham em comum um
significativo uso do clítico; todavia espera-se encontrar, no PB, uma ocorrência
maior das estratégias de esquiva à variante considerada padrão, o que
demonstraria a implementação daquelas estratégias na modalidade escrita; (b)
quanto à função dativa, espera-se que sejam ainda maiores as diferenças entre
as duas variedades: havendo um uso quase categórico do clítico no PE em
contraste com um escasso emprego dessa variante no PB, dada a sua
ausência na fala corrente brasileira em referência à terceira pessoa.
Quanto ao tratamento da questão a que se propõe, este trabalho
obedecerá à seguinte estrutura: no primeiro capítulo, será feito um
levantamento crítico da abordagem tradicional acerca das formas de
representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa,
confrontando essa descrição com os resultados de alguns trabalhos
acadêmicos já realizados acerca da configuração pronominal do PB; no
segundo capítulo, discutir-se-á a possível existência de duas gramáticas do
português: uma brasileira e outra lusitana; no terceiro capítulo, será
apresentada a fundamentação teórica que orienta o tratamento da questão
neste trabalho, seguida de um detalhamento das hipóteses levantadas e da
metodologia a ser seguida; no quarto capítulo, proceder-se-á à análise dos
resultados obtidos para as duas funções, contemplando o clítico em
competição com as estratégias alternativas ao seu uso na escrita das duas
variedades; no quinto capítulo, serão feitas considerações críticas a respeito do
ensino desses clíticos, tendo em vista os resultados obtidos; finalmente, serão
5
apresentadas as conclusões advindas do trabalho desenvolvido.
Dessa forma, o presente trabalho pretende oferecer mais uma
contribuição à descrição do português, a partir da investigação de possíveis
diferenças relacionadas ao sistema pronominal utilizado no PB e no PE, o que
pode evidenciar características peculiares a cada uma das variedades também
na modalidade escrita.
6
1- TRADIÇÃO GRAMATICAL E TRABALHOS ACADÊMICOS
Inicialmente, serão apresentadas as diferentes abordagens acerca da
configuração do quadro pronominal do português, desde a descrição tradicional
até as análises empreendidas por alguns dos principais trabalhos acadêmicos
sobre o PB oral. Conquanto a função nominativa não constitua objeto de
estudo desta tese, será contemplada neste capítulo ao lado das funções
acusativa e dativa, uma vez que se assume a hipótese de Galves (1993, 2001),
explicitada no terceiro capítulo, sobre o enfraquecimento da concordância
como fenômeno geral na variedade brasileira, o que poderia elucidar o
desaparecimento dos clíticos de terceira pessoa no português falado do Brasil.
1.1- A função nominativa
A tradição escolar, fundamentada nos grandes mestres do passado,
estabelece um quadro pronominal amplo com seis pessoas gramaticais
flexionalmente bem marcadas, o que permite a ocorrência de sentenças com
sujeito nulo. Observem-se os exemplos:
(01) __ Acordei um pouco mais tarde hoje. (eu)
(02) O que __ desejas? (tu)
(03) __ Arrumou a mala e __ partiu cedo. (ele)
(04) Se __ ganhássemos o prêmio, __ poderíamos viajar pela Europa. (nós)
(05) A obra que __ fizestes será sempre lembrada. (vós)
(06) Os rapazes se esforçaram muito, porque __ estavam motivados. (eles)
Pelos exemplos acima, fica patente que a descrição tradicional prevê um
inventário de desinências número-pessoais aplicável em diferentes modos e
7
tempos verbais, que passa a ser ilustrado na seguinte tabela:
Tabela 1.1. Paradigma flexional do português segundo a tradição escolar
PRESENTE PRETÉRITO IMPERFEITO PRETÉRITO PERFEITO Eu cant- o Eu cante- i Tu canta- s
Eu Ele cantava Ø Tu canta- ste
Ele canta Ø Tu cantava- s Ele canto- u Nós canta- mos Nós cantáva- mos Nós canta- mos Vós canta- is Vós cantáve- is Vós canta- stes Eles canta- m Eles cantava- m Eles canta- ram
Esse sistema de desinências número-pessoais garantiria ao português o
status de língua de sujeito nulo, uma vez que cada pessoa gramatical estaria
tão bem marcada nas formas verbais, que tornaria a presença do pronome um
traço redundante. Por outro lado, trabalhos lingüísticos têm demonstrado uma
realidade pronominal bem diversa no PB oral, conforme se passa a descrever a
seguir.
De início, chama logo a atenção a segunda pessoa do plural, pois é
inegável a obsolescência do pronome vós na fala e na escrita brasileiras, tendo
sido substituído pela forma pronominal vocês e pelas formas de tratamento o
senhor/ a senhora, ficando assim restrito a textos de cunho religioso, como em
fórmulas de orações cristãs e na liturgia da Igreja Católica. Cunha & Cintra
(1985: 278), além de registrarem que o referido pronome também desapareceu
da fala corrente em Portugal, documentam tal uso religioso, sobretudo no culto
católico: “Vós foi, durante muito tempo, a forma normal por que os católicos
portugueses e brasileiros se dirigiam a Deus, tratamento que ainda prevalece
entre eles”.
Quanto ao pronome tu, verifica-se que aparece em ampla competição
com a forma você na fala corrente brasileira, fato que constitui uma realidade
indubitável, mas que geralmente é apenas registrado em notas de rodapé nas
gramáticas. Tal fenômeno mereceu comentários também de Said Ali (1969:
62) em sua Gramática Secundária, na qual afirmava que o pronome pessoal tu
tinha “uma aplicação muito limitada” e que no Brasil vinha sendo “desbancado
pelo termo você”. De acordo com Duarte (1993) com base em textos de teatro
popular, essa tendência se acentuou na década de 30 do século passado,
8
quando, na região do Rio de Janeiro, passou a prevalecer a segunda pessoa
indireta você em detrimento da segunda pessoa direta tu. Do mesmo modo,
Mattoso Câmara descreve, em 1970, tal substituição nessa mesma área,
constatando o emprego do tratamento de intimidade você em contexto informal
e o uso do tratamento o senhor em situações formais.
A despeito dessa evidência, os gramáticos, com exceção de Rocha
Lima, hesitam em rotular você como pronome de segunda pessoa devido,
provavelmente, ao fato de ele ter sua origem na forma de tratamento Vossa
Mercê, que, como registram Duarte & Lopes (2003), passou por estágios
intermediários (vosmecê, vossuncê, vancê) até chegar à forma atual. Como
bem observam Paredes Silva (1998) e Ramos (1998), esse processo de
redução continua acontecendo, haja vista a ocorrência de ocê e de cê como
formas concorrentes de você em algumas regiões do Brasil.
Em estudos sobre os pronomes pessoais, Ilari et al. (1996) propõem a
inclusão de você no quadro pronominal como pronome de segunda pessoa,
uma vez que suplanta no Brasil a forma tu. No entanto, o ideal seria talvez
incluir ambas as formas, já que Paredes Silva (1998, 2003), em trabalhos
acerca da expressão da segunda pessoa do singular no português carioca,
constata o emprego do pronome tu com o verbo na terceira pessoa como forma
de tratamento mais íntimo dispensado ao interlocutor, paralelamente ao
emprego da forma você. Segundo a autora, haveria quatro realizações
possíveis para a referência à segunda pessoa no português informal do Rio de
Janeiro:
(07) Você ouviu a notícia?
(08) Cê ouviu a notícia?
(09) Tu ouviu a notícia?
(10) __ Ouviu a notícia?
9
Da mesma forma, outras partes do país vêm apresentando essa
oscilação na referência à segunda pessoa. Na região Nordeste, por exemplo,
Monteiro (1996) assevera que, em Fortaleza e em Recife, a forma de
tratamento você não conseguiu substituir completamente o pronome tu,
registrando-se com freqüência o emprego desse último com o verbo na terceira
pessoa, independentemente de qualquer nível de escolaridade ou de classe
social.
Em relação à região Sul, famosa por ser o local onde ainda se
conservaria o pronome tu, as pesquisas lingüísticas apresentam fatos
interessantes, reunidos em Menon (1996). Guimarães (1979 apud Menon,
1996) já registrava um equilíbrio no uso dos pronomes de segunda pessoa em
Porto Alegre: 49,17% de tu e 50% de você. A respeito do uso da desinência
<-s> nas formas verbais com o pronome tu, o autor constatou que quanto mais
alto era o nível de escolaridade, maior era o índice de concordância segundo a
norma gramatical: 58,33% entre os informantes de primeiro grau; 70,77%
entre os de segundo grau; 76,79% entre os de nível universitário. Por outro
lado, Amaral (2003: 135), tratando do mesmo fenômeno na cidade de Pelotas,
constatou uma larga ocorrência de tu em oposição a uma insignificante
presença da forma você na referência à segunda pessoa:
Primeiramente, nas noventa entrevistas do VarX, como já disse anteriormente, houve apenas duas vezes a utilização da forma de tratamento ‘você’. (…) Isso faz do pronome ‘tu’ um pronome forte, um pronome marcado (possivelmente simbólico de uma atitude lingüística solidária à comunidade pelotense de fala).
No entanto, o percentual de ocorrência da desinência <-s> nas formas
verbais com o pronome tu já não se mostra tão expressivo, visto que esse
mesmo autor registrou um índice de apenas 7,4%, o que parece sinalizar uma
redução do paradigma flexional também no dialeto gaúcho, a exemplo do que
vem ocorrendo em outras regiões do Brasil, além de uma neutralização entre tu
e você.
Em Florianópolis, Botelho Ramos (1989 apud Menon, 1996) constatou
não uma bipolarização entre tu/você, mas a presença de um novo modo de o
10
falante se dirigir ao interlocutor: o pronome zero. Trata-se de uma forma
verbal não-marcada, isto é, a mesma usada com o pronome você. Tal
estratégia ocorreria devido à dificuldade de o falante categorizar o interlocutor
segundo a idade ou o status em determinadas circunstâncias. Assim, fazendo
uso da forma não-marcada, o indivíduo evitaria a descortesia ou um
(in)formalismo inadequado. Ao documentar a língua falada nos ilhéus
florianopolitanos, a autora verificou que, na referência à segunda pessoa, era
pujante o uso da forma zero, com 40% de ocorrência contra 31% de você, 20%
de tu e 9% de o senhor. Quanto à concordância verbal, os 20% de ocorrências
de tu estavam assim distribuídos: 4% de concordância com o uso do pronome
sujeito, 10% de forma verbal marcada com morfema de segunda pessoa sem o
emprego do pronome sujeito e 6% de não-concordância.
Acerca da capital paranaense, Abreu (1987 apud Menon, 1996)
descreve a ausência do uso de tu na referência à segunda pessoa, fato
corroborado no trabalho de Menon (1996). As autoras mostram que a forma de
tratamento zero é robusta, com 49% de ocorrência, competindo com você
(30,9%) e com o senhor (20,1%). Em Curitiba, o fator escolaridade não afeta a
estabilidade do pronome zero, que permanece como a estratégia preferida,
todavia aumenta o uso de você e diminui o de o senhor.
De um modo geral, os estudos lingüísticos sobre a referência à segunda
pessoa no caso nominativo no PB apontam três tendências: somente o uso do
pronome você, como em Curitiba; o pronome tu concorrendo com você, mas
nem sempre com a flexão verbal de segunda pessoa, conforme se observa em
Porto Alegre, em Pelotas e em Florianópolis, ou ainda o uso concomitante de
você e de tu invariavelmente com a forma verbal de terceira pessoa, como no
Rio de Janeiro e em parte da região Nordeste, como nos estados do Ceará e
de Pernambuco, pesquisados por Monteiro (1996).
Do mesmo modo, o PB oral apresenta um quadro de variação na
expressão da primeira pessoa do plural: o pronome nós está em franca
competição com o pronome a gente, o que é comprovado por pesquisas em
língua falada, como as de Omena (1996, 2003), a de Lopes (1999) e a de
Duarte & Lopes (2003). Segundo Omena (1996), a expressão a gente, do
11
substantivo feminino latino gens, gentis, originalmente era usada para nomear,
de forma coletiva e indeterminadora, um agrupamento de seres humanos com
características comuns. Graças à tendência de o falante centralizar seu
discurso na primeira pessoa e ao fato de o substantivo gente fazer uma
referência indeterminadora ao indicar um conjunto de pessoas, a forma a gente
passou a designar, acompanhada pelo artigo, a primeira pessoa do discurso.
Em decorrência de seu novo emprego, a forma a gente sofreu
modificações do ponto de vista semântico e gramatical. Semanticamente, a
seu significado original foi acrescentada a referência à pessoa que fala;
gramaticalmente, a forma deixou de ser substantivo e passou a compor o
sistema de pronomes pessoais, apenas conservando com o verbo a relação
sintática de origem, a terceira pessoa gramatical.
Deve-se registrar ainda que a alternância para a expressão da primeira
pessoa do plural entre o pronome nós, de desinência verbal correspondente
bem marcada, e a forma a gente, de desinência verbal correspondente zero em
muitos tempos verbais, atingiu diretamente a concordância verbal, gerando, na
fala das classes menos escolarizadas, variações fortemente discriminadas pela
escola, mas oriundas do cruzamento entre estruturas do tipo (11) e (12):
(11) Nós trabalhamos muito.
(12) A gente trabalha muito.
(13) Nós trabalha muito.
(14) A gente trabalhamos muito.
Embora diferentes trabalhos lingüísticos, como os de Omena (1996,
2003), o de Lopes (1999) e o de Duarte & Lopes (2003), registrem a indubitável
gramaticalização de a gente, as gramáticas, em geral, não reconhecem o uso
legítimo dessa expressão como forma de indicar a primeira pessoa do discurso
na língua, ficando a tarefa de explicar esse emprego e a devida concordância
12
por conta dos professores de português na escola. Talvez seja por isso que
muitos acabem por recomendar o uso dessa expressão somente na língua oral,
desaconselhando-o totalmente na escrita formal.
Se forem assumidas as mudanças na função nominativa do PB oral com
a introdução da segunda pessoa indireta você(s) em competição/variação com
tu e em substituição a vós, além da forma a gente em competição com o
pronome nós, tem-se uma considerável redução do paradigma flexional verbal:
com apenas três formas verbais distintas no presente e no pretérito perfeito e
apenas duas nos demais tempos para identificar as tradicionais seis pessoas
gramaticais, conforme ilustra a tabela seguinte:
Tabela 1.2. Redução do paradigma flexional verbal do PB
PRESENTE PRETÉRITO PERFEITO PRETÉRITO IMPERFEITO Eu canto Eu cantei Você/Tu Ele canta A gente
Você/Tu Ele cantou A gente
Eu Você/Tu cantava Ele A gente
Vocês cantam Eles
Vocês cantaram Eles
Vocês cantavam Eles
Essa redução no paradigma flexional tem levado a uma progressiva
representação fonética do sujeito pronominal na variedade brasileira, visto que
as novas formas introduzidas no quadro nominativo se combinam com a forma
verbal de terceira pessoa, gerando ambigüidade no caso de um apagamento
do pronome subjetivo. Por essa razão, as sentenças de sujeito nulo são cada
vez mais raras no PB, conforme aponta Duarte (1993, 1995, 1996, 2003), entre
outros, o que põe em xeque o status do PB como língua de sujeito nulo. No
PE, ao contrário, o sistema pronominal mantém um maior número de oposições
(cf. Duarte, 1995), favorecendo a ocorrência de sentenças de sujeito nulo, o
que o caracteriza como língua de sujeito nulo em oposição ao PB, língua de
sujeito preferencialmente preenchido.
1.2- As funções objetivas
Por razões de natureza morfossintática, a tradição gramatical sempre
distribuiu os complementos verbais em dois tipos: objeto direto e objeto
indireto. Seguindo a orientação da NGB, as gramáticas que servem de base
13
ao ensino de português apresentam o primeiro como “o complemento não
encabeçado por preposição necessária”, enquanto o segundo é “encabeçado
por preposição necessária” (Bechara, 1992: 205-206). Consoante essa
descrição, os termos em destaque nas orações abaixo são assim classificados:
(15) A faxineira limpou a cozinha com muito esmero. (objeto direto)
(16) Não falei a meus amigos durante o jantar. (objeto indireto)
(17) Os funcionários sempre concordam com o chefe. (objeto indireto)
Não obstante esse critério de identificação do objeto indireto proposto
pelas gramáticas, estas não dispensam o mesmo tratamento aos termos em
destaque nas orações abaixo:
(18) Depois da aula, fui ao supermercado. (adjunto adverbial)
(19) Ela chegou à noite. (adjunto adverbial)
A partir dos exemplos aduzidos acima, percebe-se que tal simplificação
descritiva trouxe confusões quanto ao conceito de objeto indireto, uma vez que
existem complementos verbais regidos por preposição de valores semânticos
distintos: beneficiário (16), relativo (17), locativo (18) e temporal (19). Embora
as gramáticas incluam entre os adjuntos adverbiais casos como (18) e (19),
acabam por reunir exemplos como (16) e (17) sob o mesmo rótulo de objeto
indireto, o que ainda é uma incoerência descritiva, visto que tais complementos
apresentam comportamento morfossintático diferente: possibilidade ou não de
substituição por um clítico correspondente. Vejam-se os exemplos
modificados:
(16’) Não lhes falei durante o jantar.
14
(17’) *Os funcionários sempre lhe concordam.
Por essa razão, Mattoso Câmara (1997: 180) propõe uma distinção entre
o objeto indireto stricto sensu e o lato sensu, sendo o primeiro aquele que, na
terceira pessoa, admite ser substituído pelo clítico dativo correspondente:
nesse caso, o clítico lhe. Tal distinção se aproxima da descrição de Rocha
Lima (1998), que propõe o termo complemento relativo para designar o
argumento do verbo encabeçado por preposição necessária que não pode ser
convertido, na terceira pessoa, em clítico dativo. Assim, segundo esse autor, o
termo objeto indireto fica reservado para o argumento do verbo que apresentar
essa possibilidade de conversão.
Feita essa distinção, passa-se a uma breve descrição das funções
acusativa e dativa que remonta à gramática greco-latina, que serve de base
para as gramáticas usadas no ensino de língua portuguesa.
De acordo com a tradição greco-latina, o acusativo é o complemento que
representa o ser para o qual se dirige a ação indicada pelo verbo, isto é, o
paciente da ação verbal na voz ativa. Seguindo essa orientação, Rocha Lima
(1998: 243) descreve que o acusativo pode designar o seguinte:
(a) o ser sobre o qual recai a ação (Castigar o filho. Louvar os bons.);
(b) o resultado da ação (Construir uma casa. Criar um poema.);
(c) o conteúdo da ação (Prever a morte do ditador. Discutir política.).
Já o dativo, segundo a tradição greco-latina, é o complemento que
representa o ser a que se destina a ação verbal ou em cujo proveito ou prejuízo
é realizada. Observem-se os exemplos:
(20) A anfitriã ofereceu um coquetel aos convidados.
(21) O larápio roubou a carteira ao turista.
Conforme descreve Rocha Lima (1998), o dativo não se limita a verbos
bitransitivos ou transitivos indiretos, podendo aparecer com qualquer tipo de
predicado (verbal, nominal ou verbo-nominal), figurando inclusive ao lado de
15
verbos de ligação e intransitivos, o que demonstra que a sua ocorrência muitas
vezes independe do regime verbal.
Com vistas a uma sistematização, propõe-se aqui distribuir o dativo em
dois grandes grupos: argumental e não argumental. Embora o autor
supracitado não empregue tais termos, a menção que ele faz à relação do
dativo com o verbo (p. 249) os sugere, permitindo distribuir os diferentes tipos
de dativo por ele elencados entre esses dois grupos. No primeiro, enquadra-se
o dativo que preenche um lugar previsto pela grade temática do verbo, sendo
por isso considerado argumento interno dos verbos que o projetam. Já no
segundo, fica o dativo que não constitui propriamente um complemento verbal,
já que este não estaria implícito na grade temática do verbo. Tendo em vista
essa distribuição, os diferentes tipos de dativo arrolados pelo autor em questão
ficam assim sistematizados:
I) Argumental
(a) Dativo de verbos bitransitivos — Ocorre com verbos que projetam dois
argumentos internos, acusativo e dativo, classificados por Rocha Lima (1998)
como verbos dandi, dicendi e rogandi, incluindo seus correlatos e reversos:
(22) O prefeito deu uma esmola ao mendigo. (verbo dandi)
(23) A moça disse ao rapaz que estava aborrecida. (verbo dicendi)
(24) Pedi ajuda a Pedro. (verbo rogandi)
(b) Dativo de verbos pessoais transitivos indiretos — Manifesta-se com verbos
que projetam um único argumento interno dativo. Rocha Lima (1998) chega a
afirmar que a regência de tais verbos tem variado através dos séculos, citando
como exemplos obedecer, resistir e agradar, “que hoje só se empregam com
objeto indireto, mas possuíam dupla sintaxe (obedecer-lhe e obedecê-lo,
resistir-lhe e resisti-lo, agradar-lhe e agradá-lo) na linguagem dos séculos XVI e
XVII” (p. 251). Conquanto não seja raro ainda hoje encontrar essa variação, a
praxe escolar considera como um dativo o complemento dos referidos verbos,
16
porquanto prescreve que este deve aparecer regido por preposição, sendo
comutável na terceira pessoa pelo clítico lhe:
(25) Os bons filhos sempre obedecem aos pais. (verbo transitivo indireto)
II) Não argumental
(a) Dativo de conglomerados Verbo + Objeto Direto/Predicativo — Nesse
caso, o dativo que aparece depende diretamente do acusativo ou do
predicativo do sujeito, ou seja, está mais ligado ao nome do que ao verbo, o
que leva muitos professores de Português na escola a classificá-lo como
complemento nominal:
(26) Agora já não tenho medo aos meus inimigos. (V + OD)
(27) Sua colaboração foi útil aos jovens carentes. (V + Pred.)
(b) Dativo de verbos tradicionalmente classificados como intransitivos
unipessoais — Ocorre com verbos que projetam um único argumento,
geralmente sob a forma de oração e posposto a eles, e que se apresentam,
segundo a tradição gramatical, exclusivamente na terceira pessoa do singular.
Nesse caso, a presença do dativo confere à sentença uma interpretação
referencial, pois designa o indivíduo em quem se manifesta a ação indicada
pelo verbo. No entanto, a sua ausência, conforme observa Berlinck (1996:
138), produz uma interpretação não referencial. Confrontem-se os exemplos:
(28) Pareceu ao palestrante que a platéia ficou insatisfeita.
(28’) Pareceu que a platéia ficou insatisfeita.
(c) Dativo de posse — Aparece com verbos intransitivos ou com verbos
transitivos diretos, isto é, que não projetam complemento dativo, sendo
equivalente a um pronome possessivo por estabelecer uma relação de posse:
17
(29) Ontem nasceu o segundo filho à jovem mãe. (verbo intransitivo/
inacusativo)
(30) As fãs eufóricas rasgaram a camisa ao cantor. (verbo transitivo direto)
(d) Dativo ético ou de interesse — Mencionado no estudo de Berlinck (1996),
ocorre especificamente com a primeira e a segunda pessoas, indicando o ser
diretamente interessado na ação verbal:
(31) Não me chegue tarde!
(32) Aquele lá te saiu um perfeito idiota!
(e) Dativo commodi/ incommodi — Também descrito no trabalho de Berlinck
(1996), consiste numa construção que indica a intenção ou não do referente do
dativo de realizar a ação verbal. Segundo essa autora, o dativo regido pela
preposição <a> produziria uma interpretação passiva do referente, enquanto o
regido pela preposição <para> poderia apresentar, além dessa interpretação
passiva, uma outra bem típica, de caráter ativo: a ação é realizada em
benefício de alguém que tencionava fazê-la. Vejam-se os exemplos a seguir:
(33) Ele abriu a porta à mãe. (= em favor da mãe)
(33’) Ele abriu a porta para a mãe. (= em favor da mãe ou pela mãe que
pretendia abri-la)
Após essas considerações sobre o acusativo e o dativo, passa-se à
questão da sua marcação casual. Como lembra Elia (1979), os nomes em
latim clássico subordinavam-se a seis casos (nominativo, vocativo, acusativo,
genitivo, dativo e ablativo) morfologicamente marcados, o que distinguia as
funções entre si, permitindo certa liberdade na ordem dos constituintes da
frase. Observe-se o exemplo:
18
(34) Poeta rubram rosam filiae suae dedit. (O poeta deu uma rosa vermelha à sua filha.) (nominativo) (acusativo) (dativo)
(34’) Rubram rosam filiae suae poeta dedit.
(34’’) Dedit poeta filiae suae rubram rosam.
O latim vulgar, no entanto, não apresentava todas as desinências
casuais da língua clássica, tendo reduzido os casos para dois: nominativo e
acusativo. Coutinho (1976) registra que as funções antes inerentes aos outros
casos passaram a ser exercidas pelo acusativo com a preposição, tornando-se
ele o caso de regime universal: precedido de <de> ou <ad> representava o
genitivo ou o dativo; regido por <de>, <per> e <cum> expressava o ablativo.
Se ainda o latim vulgar conservava uma distinção morfológica entre os casos
nominativo e acusativo, quando houve a passagem para as línguas românicas,
perdeu-se essa distinção, visto que se fixou a ordem SVO, o que tornava
dispensável a marcação flexional dos casos, conforme mostra Coutinho (1976:
228):
A redução dos dois casos a um justifica-se mais como um fenômeno sintático do que fonético. Se o fato fonético da queda do -m do acusativo singular podia favorecer a identificação do acusativo com o nominativo na primeira declinação (cf. hora e hora(m)), o mesmo já não acontecia com a segunda e a terceira declinação, em que os dois casos permaneciam diferentes (cf. hortus e hortu(m); avis e ave(m)). As palavras se dispunham na frase, em latim vulgar, segundo a ordem natural da elaboração do pensamento, ou seja, sujeito + verbo + objeto ou predicativo, em contraposição ao uso da língua clássica. Aconteceu que essa ordem seguida, quase invariavelmente, acabou por fixar a função das palavras na frase. Assim, não se justificava mais a manutenção dos dois casos.
No português, essa redução chega ao seu extremo, uma vez que restou
apenas o acusativo para os nomes em geral, e as funções passaram a ser
identificadas principalmente pela posição mais fixa na sentença. No entanto,
foi justamente entre os pronomes pessoais que o português guardou vestígios
da declinação latina, havendo dois “casos”: o reto ou nominativo para a função
19
subjetiva; o oblíquo (acusativo e dativo) para as demais funções. De um modo
geral, as gramáticas do português trazem o seguinte quadro:
Tabela 1.3. Distribuição dos pronomes pessoais no português padrão
CASO OBLÍQUO CASO RETO
Átonos Tônicos Eu me mim, comigo Tu te ti, contigo
Ele(a) o, a, lhe, se si, consigo, ele(a) Nós nos conosco, nós Vós vos convosco, vós
Eles(as) os, as, lhes, se si, consigo, eles(as)
Quanto às formas pronominais átonas, no português padrão
estabeleceu-se uma distinção entre a terceira pessoa e as demais. Na primeira
e na segunda pessoas, os clíticos me, te, nos, vos desempenham as funções
acusativa, dativa e reflexiva, enquanto há uma especialização na terceira
pessoa: o e flexões para a função acusativa; lhe e flexão para a função dativa;
se para a função reflexiva. Vejam-se os exemplos:
(35) A moça não me cumprimentou.
A moça não te cumprimentou.
A moça não nos cumprimentou. Função acusativa
A moça não vos cumprimentou.
A moça não o cumprimentou.
(36) Ninguém me emprestou o livro.
Ninguém te emprestou o livro.
Ninguém nos emprestou o livro. Função dativa
Ninguém vos emprestou o livro.
Ninguém lhe emprestou o livro.
(37) Eu me feri com a ferramenta.
Tu te feriste com a ferramenta.
Nós nos ferimos com a ferramenta. Função reflexiva
Vós vos feristes com a ferramenta.
Ele se feriu com a ferramenta.
20
Por outro lado, a introdução de novos elementos no quadro nominativo
do PB, como a gente e você, vem provocando uma reestruturação no sistema
pronominal, atingindo diretamente a configuração dos pronomes objetos, de
acordo com as evidências apontadas nos trabalhos empreendidos pelos
lingüistas. A título de exemplo, cite-se o trabalho de Omena (1996), o qual
registra que a forma acusativa e dativa de primeira pessoa do plural nos estaria
paulatinamente cedendo espaço à forma a gente devido à vulnerabilidade dos
clíticos. Vejam-se os exemplos da autora:
(38) Ele já não conhece a gente, fica com medo, sabe? (acusativo)
(39) Aí a minha mãe é que vem abrir a porta pra gente. (dativo)
Do mesmo modo, na expressão das funções objetivas em segunda
pessoa, a forma você (ou o senhor, em situações formais) compete com os
clíticos, conforme observa Oliveira e Silva (1977) em seu trabalho sobre as
formas objetivas de tratamento no português do Rio de Janeiro: “A análise dos
dados demonstrou preferência pelas formas o senhor e você (…) em relação
às formas te, lhe e o” (p. 6). Por conseguinte, verifica-se a ocorrência não rara
de construções do tipo (40) e (41) na língua oral:
(40) Ontem mesmo avistei você no shopping. (acusativo)
(41) O chefe deu a tarefa mais fácil p(a)ra você. (dativo)
Nesse quadro de variação do PB, o paradigma das formas objetivas de
terceira pessoa também sofre alteração, possivelmente motivada pela perda da
distinção entre tu/você, no que se refere às formas pronominais e à ausência
de distinção flexional. Com vista à descrição desse fenômeno, passa-se a
confrontar as estratégias de realização do acusativo e do dativo anafóricos de
terceira pessoa previstas pelas gramáticas com a realidade lingüística brasileira
apontada pelos principais trabalhos acadêmicos sobre a questão.
21
1.2.1. O acusativo anafórico de terceira pessoa
Segundo a tradição escolar, ao clítico o (e flexões), oriundo do pronome
demonstrativo acusativo do latim illum > illu > elo > lo > o, cabe, por excelência,
representar o objeto direto anafórico de terceira pessoa:
(42) Acho que comprei um bom livro de culinária, mas ainda não o li.
(43) Ela separava as mercadorias, enquanto nós as empacotávamos.
Além do clítico, as gramáticas de cunho normativo registram duas outras
maneiras de realização do acusativo anafórico de terceira pessoa: o emprego
de ele(a) regido pela preposição a ou essa mesma forma precedida por todo ou
só. Observem-se os exemplos:
(44) Vi a ele e não a ela.
(45) João, André e Gabriel vieram me visitar. Cumprimentei todos eles.
(46) Em meio a tanto barulho, queria ouvir só ela.
Na verdade, não há novidade alguma nessa descrição das gramáticas,
uma vez que as formas destacadas nos exemplos acima constituem pronomes
oblíquos tônicos, sendo esse mesmo emprego previsto para as demais
pessoas, conforme ilustra a tabela 1.3. Por outro lado, diferentes trabalhos têm
demonstrado que no PB oral há a possibilidade de ocorrência da forma
pronominal tônica na posição de objeto, sem a preposição e sem a
reduplicação do clítico prescritas pelas gramáticas.
Ao tratarem da combinação dos pronomes átonos, os gramáticos são
unânimes na rejeição do encontro se + o (e flexões), apresentando como
estratégias alternativas o apagamento do clítico acusativo (Bechara: 257;
Rocha Lima: 322) ou a substituição do “pronome o (e flexões) pelo sujeito ele
(e flexões)” (Bechara: 257):
22
(47) *Não se o quer.
(47’) Não se quer __.
(47’’) Não se quer ele.
No entanto, considerando-se que o clítico se junto a verbos transitivos
diretos constitui uma estrutura em voz passiva sintética ou pronominal, como
rezam todos os compêndios gramaticais, percebe-se que a categoria vazia e o
pronome reto das construções em (47’) e (47’’) são na verdade sujeitos da
passiva, sendo de uso corrente no PE (“Quebram-se os ovos, colocam-se __
numa tigela…”), o que explica a sua aceitação entre os gramáticos.
As gramáticas prescrevem ainda que deve figurar o pronome na forma
acusativa, quando este for sujeito de orações infinitas que completam os
verbos denominados causativos (deixar, mandar, fazer) e sensitivos (ver, ouvir,
sentir):
(48) Os alunos perturbaram muito, por isso o professor mandou-os sair cedo.
(49) Os namorados foram tão discretos, que ninguém os viu saindo da festa.
Tal construção é um resquício de uma estrutura da sintaxe latina
denominada acusativo com infinito, em que o verbo da oração que completava
outra ficava na forma infinita e seu sujeito recebia caso acusativo do verbo da
principal, justamente por não poder receber caso nominativo do verbo numa
forma não finita:
(50) Vidi puerum exire. (Vi o menino sair.) or. principal acusativo infinitivo
Pelo exposto até aqui, verificou-se que a tradição escolar não admite
outra forma de realização do acusativo anafórico de terceira pessoa que não
seja o emprego do clítico, condenando qualquer variação que se apresente
23
nesse aspecto, haja vista as construções estigmatizadas como “Vi ele/ela”. Por
conseguinte, nas gramáticas, não há qualquer menção à possibilidade de
deixar o objeto anafórico nulo nem ao uso de demonstrativos e de SNs
anafóricos como estratégias alternativas para a sua representação.
Por outro lado, diferentes trabalhos lingüísticos sobre a questão têm
demonstrado a improdutividade do clítico na representação do acusativo
anafórico de terceira pessoa. De acordo com Omena (1978), Duarte (1986,
1989), Malvar (1992) e Freire (2000), que pesquisaram a representação do
objeto direto anafórico de terceira pessoa em diferentes regiões do Brasil, a
perda do clítico acusativo de terceira pessoa é um fato praticamente
consumado na língua oral, independentemente da escolaridade, da faixa etária
e do gênero do falante, ocorrendo em seu lugar outras formas de
representação do acusativo anafórico, como o uso do pronome lexical (forma
nominativa do pronome em função acusativa), de SNs anafóricos (forma plena
do SN correferente com outro SN previamente mencionado) ou de uma
categoria vazia (objeto nulo), sendo esta última a estratégia mais freqüente.
Entre os dados de Duarte, ocorreu uma faixa de 5% de clíticos contra 15% de
pronomes retos, 17% de SNs anafóricos e 63% de objetos nulos. Malvar
encontrou apenas 1% de clíticos em sua amostra em oposição a 25% de
pronomes retos, 28% de SNs anafóricos e 46% de objetos nulos. Omena,
trabalhando com dados de informantes não escolarizados, não detectou
presença alguma de clíticos, encontrando tão somente 24% de pronomes retos
e 76% de objetos nulos. Analisando dados de informantes com nível superior
completo, Freire também constatou um índice insignificante de clíticos, em
torno de 3%, em oposição a 4% de pronomes retos, 34% de SNs anafóricos e
59% de objetos nulos, o que demonstra ser o fator escolaridade inoperante na
recuperação da variante padrão na língua oral. A partir dos exemplos extraídos
de Freire (2000), com base em amostra NURC-RJ/1992, podem-se observar a
seguir as estratégias de realização do objeto direto anafórico no PB:
(a) clítico acusativo
(51) Você conversa, você tem um contato diário com o professor, não é, você
sabe onde o professor tá, entendeu, você pode procurá-lo, tirar dúvida.
24
(b) pronome nominativo
(52) Mas isso em vez de socializar mais as pessoas, pelo contrário, tão
deixando elas mais agressivas.
(c) SN anafórico
(53) Eu quis fazer o estágio, porque eu precisava fazer o estágio para ter
diploma de técnico.
(d) objeto nulo
(54) Agora, de qualquer jeito eu fiz o pré-vestibular, até não levei __ a sério,
mas mesmo porque eu confiava muito né.
Em linhas gerais, os trabalhos acadêmicos sobre o PB oral sinalizam a
inegável perda do clítico acusativo de terceira pessoa, que estaria se
resolvendo em direção ao crescente emprego de SNs anafóricos e de objetos
nulos, provavelmente pelo fato de essas duas variantes não serem
estigmatizadas, ou seja, não são consideradas formais, como o clítico, nem
informais, como o pronome nominativo em função acusativa.
Quanto à escrita, o trabalho de Averbug (2000), com base em textos
produzidos por alunos de séries finais, desde o CA até a universidade, aponta
um fato muito interessante: conforme aumenta o nível de escolaridade, cresce
o uso do clítico acusativo e diminui o emprego do pronome pessoal do caso
reto em função acusativa. Entre os dados levantados pela autora, o clítico
apresenta uma ocorrência de 2% em textos produzidos por alunos no CA,
passando a 6% na quarta série do ensino fundamental, a 23% na oitava série,
a 28% no ensino médio e finalmente a 40% no ensino superior. Em
contrapartida, o pronome nominativo em função acusativa sofre um declínio
com o avanço na escolaridade: 19% no CA, 15% na quarta série, 13% na
oitava série, 6% no ensino médio e nenhuma ocorrência nos dados relativos ao
25
ensino superior. Tais resultados sugerem que o processo de escolarização
consegue, por um lado, levar o aluno a utilizar o clítico e, por outro, inibir o uso
do pronome nominativo em função acusativa. No entanto, esse êxito da escola
é relativo, uma vez que outras estratégias de representação do acusativo
anafórico de terceira pessoa ainda se mantêm: mesmo nos dados de
estudantes do ensino superior levantados pela autora, por exemplo, houve um
índice de 23% de objetos nulos e de 37% de SNs anafóricos. Conforme mostra
Cordeiro (2004), há ainda os casos de hipercorreção, como o uso do dativo
pelo acusativo e vice-versa, que revelam uma aprendizagem até certo ponto
“deficiente” no que diz respeito ao emprego dos clíticos de terceira pessoa.
1.2.2. O dativo anafórico de terceira pessoa
Consoante a tradição gramatical, ao clítico lhe (e flexão), proveniente do
pronome demonstrativo dativo do latim illi > li > lhi, lhe, compete representar o
objeto indireto stricto sensu anafórico de terceira pessoa, ou seja, o que
designa o beneficiário da ação verbal, podendo ser substituído pela forma
nominativa precedida pelas preposições a, para, em ou de:
(55) Não fui à festa de André, mas lhe mandei meu presente.
(55’) Não fui à festa de André, mas mandei meu presente a ele.
(56) Quando encontrei minha prima, disse-lhe umas verdades.
(56’) Quando encontrei minha prima, disse p(a)ra ela umas verdades.
(57) A moça estava lindíssima, pois até o vestido lhe assentou bem.
(57’) A moça estava lindíssima, pois até o vestido assentou bem nela.
(58) Depois de bater no pobre rapaz, o bandido tomou-lhe a carteira.
(58’) Depois de bater no pobre rapaz, o bandido tomou a carteira dele.
26
Por outro lado, considerando diferentes pesquisas que tratam do objeto
indireto no português falado no Brasil (Berlinck, 1996; Gomes, 1999, 2001,
2003; Silveira, 2000; Freire, 2000), observa-se, na terceira pessoa, a
ocorrência de outras estratégias na realização do dativo anafórico além do
clítico e do pronome lexical regido por preposição: o uso de SNs anafóricos
regidos ou não por preposição e o emprego da categoria vazia. Observem-se
os exemplos extraídos de Gomes e de Freire:
(59) O cara vem do Brasil, um nordestino, pra dar um presente pro Papa.
(Gomes, 1999)
(60) Tem um senhor na Itália querendo dar um presente o Papa. (Gomes,
1999)
(61) A minha filha casada é vegetariana, não deixa o menino comer nada de
açúcar, nem um biscoitinho de maisena, ela dá um salto quando a gente
oferece __, e eu não posso interferir. (Freire, 2000)
Gomes (1999, 2001, 2003), que trabalhou com dados do português
falado no Rio de Janeiro por indivíduos de escolarização fundamental e média,
aponta que, na representação do dativo anafórico de terceira pessoa, a
estratégia preferida pelos falantes é o uso de SPs (70%) representados por
pronomes lexicais ou SNs anafóricos, seguida do emprego de SNs anafóricos
sem preposição (14%) e de objetos nulos (15%), não havendo o uso do clítico.
Do mesmo modo, no trabalho de Freire (2000), cuja amostra era
constituída da fala de informantes cariocas com nível superior completo, não
houve uma ocorrência sequer do clítico na realização do dativo de terceira
pessoa, registrando-se 64% de SPs, sendo a maior parte representados por
pronomes lexicais, e 36% de objetos nulos.
Embora não tenha levantado ocorrências de SP anafórico representado
por SN pleno e de categoria vazia, o trabalho de Silveira (2000) sobre a
realização do dativo na fala de informantes de Florianópolis, com nível
27
fundamental e médio, ainda registra na terceira pessoa um escasso emprego
do clítico dativo (2%) em oposição a uma vasta incidência do SP anafórico
representado pelo pronome tônico (98%), o que também não deixa de
caracterizar um fenômeno de perda do clítico na expressão do dativo anafórico
de terceira pessoa, no dialeto florianopolitano.
Além de mostrarem a escassez ou a ausência do clítico lhe na
representação do dativo de terceira pessoa na fala brasileira, muitos trabalhos
lingüísticos evidenciam que esse clítico se apresenta em intensa concorrência
com a forma te na realização tanto do acusativo como do dativo de segunda
pessoa, conforme registram os trabalhos de Ramos (1998), de Silveira (2000) e
de Freire (2000). Observem-se os exemplos a seguir extraídos do trabalho de
Freire:
(a) Função acusativa — 2ª pessoa
(62) Então se inicia com um problema, você está se formando em Letras, se
você vai ser professora hoje, começando a trabalhar, se você se
formasse agora e começasse esse mês a trabalhar e fosse trabalhar,
Deus lhe ajude, quarenta horas por semana como qualquer trabalhador
normal […]
(b) Função dativa — 2ª pessoa
(63) Doc.: Vamos falar sobre jogos, o senhor assiste jogo?
Loc.: Olha eu, como eu lhe disse, assisto tudo, sou fã incondicional de
futebol.
Esse uso do clítico lhe concorrendo com a forma te na referência à
segunda pessoa deve-se muito provavelmente à introdução no PB da segunda
pessoa indireta você que, por exigir a concordância verbal na terceira pessoa,
admite os clíticos de terceira pessoa nas funções oblíquas, conforme já
descrevia Rocha Lima (1998: 317). Como o clítico acusativo o está em franco
28
processo de desaparecimento, passou a caber ao clítico lhe, por analogia com
as demais formas pronominais átonas, representar tanto a função acusativa
quanto a dativa na segunda pessoa, um fenômeno a que Gomes (2001) se
refere como um processo de neutralização. Ramos (1998) observa ainda que
a ocorrência de lhe nesse contexto constituiria marca de formalidade, ou seja,
o uso de te mostraria uma intimidade, o que levaria o falante, que já não tem
muita familiaridade com o clítico o, a usar o lhe.
Em vista dos trabalhos acadêmicos aqui revistos sobre a configuração
pronominal do PB diante da descrição da gramática tradicional, ficou patente
que há uma considerável distância entre a língua oficial ensinada na escola e a
realidade do português falado no Brasil. Quanto à realização do acusativo e do
dativo anafóricos de terceira pessoa na modalidade oral do PB, percebeu-se a
preferência por formas pronominais nominativas (regidas ou não por
preposição), por SNs anafóricos e por categorias vazias em detrimento do uso
dos clíticos. Tal fato remete a uma questão mais ampla que afeta a variedade
brasileira do português: o enfraquecimento da concordância, assunto que será
retomado mais adiante.
29
2- PB E PE: DUAS GRAMÁTICAS DISTINTAS?
No quadro da Teoria Gerativa, Chomsky (1985) propõe a distinção entre
língua externa (Língua-E) e língua interna (Língua-I). A primeira é entendida
como o conjunto de todos os enunciados que podem ser produzidos por uma
comunidade de fala. Já a Língua-I, ao contrário, deve ser tomada como um
objeto mental, o saber que os indivíduos têm da língua, ou seja, trata-se do
sistema cognitivo computacional que dá conta da linguagem e que consiste de
um conjunto de propriedades abstratas (princípios e parâmetros).
No contexto dessa teoria, chama a atenção o caso do PB em cotejo com
o PE, uma vez que diferentes trabalhos lingüísticos sobre a língua oral, tanto
no âmbito da Teoria da Variação (cf. Omena, 1978; Duarte, 1986; Corrêa,
1991; Freire, 2000, entre outros) quanto no da Teoria Gerativa (cf. Galves,
1993, 1998; Cyrino, 1993, 1997; Kato, 1996, entre outros), têm demonstrado
que a variedade brasileira do português está passando por um processo, já
bastante acentuado, de perda dos clíticos de terceira pessoa.
Concomitantemente a esse processo, houve uma extensão dos contextos de
ocorrência do objeto nulo, além do inegável emprego do pronome nominativo
em função acusativa no PB, fatos que o distinguem ainda mais do PE. Diante
dessas constatações, surge a seguinte questão que ora será discutida: seriam
o PB e o PE duas Línguas-I distintas?
Na análise dessa questão, este trabalho assume a hipótese de Galves
(1998) segundo a qual o PB e o PE constituem duas Línguas-I distintas, o que
conseqüentemente leva a admitir a existência de duas gramáticas: uma
brasileira e outra portuguesa. Por essa razão, torna-se injustificável a praxe
escolar, calcada ainda nos compêndios gramaticais dos grandes mestres do
passado, de desprestigiar a primeira em favor da última, assunto que será
retomado no capítulo quinto deste trabalho. Para fundamentar a opção teórica
aqui assumida, serão apresentadas a seguir (a) a diferença entre as duas
variedades no estatuto atribuído a alguns fatos sintáticos, (b) algumas
considerações diacrônicas sobre mudanças no PB que determinaram o seu
distanciamento em relação ao PE e (c) duas hipóteses que se propõem a
30
explicar a perda dos clíticos de terceira pessoa na variedade brasileira e a sua
manutenção na européia, ambas reforçando a opção teórica sobre a existência
de duas gramáticas no português, a saber: o enfraquecimento da
concordância no PB (Galves, 1993, 2001) e a direção de cliticização (Nunes,
1993).
2.1- Diferenças de estatuto sintático entre PB e PE
Conquanto apresentem muitas similaridades no léxico, nos paradigmas
morfológicos e em certos aspectos fonológicos, essas duas variedades do
português, do ponto de vista sintático, revelam consideráveis diferenças, visto
que é diferente o estatuto atribuído por falantes brasileiros e portugueses a
enunciados aparentemente idênticos. A partir do trabalho de Galves (1998),
serão abordados os seguintes aspectos que explicitam as diferenças acima
referidas: a sintaxe pronominal, a projeção dos constituintes na frase e a
freqüência de determinadas propriedades gramaticais.
2.1.1- A sintaxe pronominal
É sabido que a gramática brasileira licencia os pronomes tônicos você e
ele em função acusativa sem reduplicação clítica e sem preposição, ao
contrário do PE. Observem-se os exemplos extraídos de Galves (1998: 81-82):
(01) Vi ele ontem na rua. (PB)
(02) Vi-o a ele ontem na rua. (PE)
Quanto à interpretação, em (01) o pronome constitui o tópico discursivo,
isto é, faz referência à pessoa ou à coisa de que se fala, mas em (02) a forma
pronominal preposicionada é entendida como foco contrastivo, conforme se
pode ver em (03):
(03) Vi-o a ele ontem na rua, mas não a ela. (Galves, 1998: 82)
31
No PE, os pronomes tônicos em posição de objeto como em (02) só
podem ter como referente uma pessoa, ao contrário dos clíticos que
apresentam referentes animados ou inanimados. Já no PB, o pronome tônico
objeto mostra um comportamento semelhante ao clítico do PE, uma vez que
pode apresentar referentes animados ou inanimados, diferentemente do que
ocorre na variedade lusitana e em outras línguas românicas como o francês, o
espanhol e o italiano.
Ainda na sintaxe pronominal, verifica-se que a ordem de colocação dos
clíticos é diferente nas duas variedades do português: o PB admite o clítico em
primeira posição absoluta na frase, o que é impossível em PE, conforme ilustra
a frase extraída do projeto NURC (Galves, 1998: 82):
(04) Me chocou tremendamente.
Em locuções verbais acompanhadas ou não dos elementos atratores, a
colocação pronominal costuma apresentar comportamento diferenciado nas
duas variedades do português. Com locuções verbais, na ocorrência de
atratores, a próclise se faz ao auxiliar no PE e ao verbo principal no PB.
Vejam-se os exemplos de Galves (1998: 83):
(05) Agora não tinha me lembrado. (PB)
(06) Essas indústrias novas que estão se implantando. (PB)
(07) Agora não me tinha lembrado. (PE)
(08) Essas indústrias novas que se estão implantando. (PE)
Sem atratores, ocorrerá a ênclise ao auxiliar no PE, e persistirá a
próclise ao verbo principal no PB, como o demonstram os exemplos (09) e (10)
de uma sentença bastante corriqueira:
32
(09) Vamos nos encontrar. (PB)
(10) Vamo-nos encontrar. (PE)
A análise da sintaxe de colocação nas locuções verbais revelou uma
diferença fundamental na relação entre o pronome átono e seu hospedeiro nas
duas variedades: (i) no PE, essa relação é gramatical pelo fato de o pronome
costumar cliticizar-se ao verbo auxiliar, portador dos morfemas de tempo e de
concordância; (ii) no PB, a relação é lexical, visto que o pronome se cliticiza ao
verbo principal, que lhe confere interpretação e do qual é complemento.
2.1.2- A projeção dos constituintes da frase
No PB, ao contrário do PE, são freqüentes as construções de
deslocamento, em que o sujeito, ou outro componente da oração, aparece em
primeira posição e é retomado por um pronome lembrete:
(11) Essa competência ela é de natureza mental. (Pontes, 1981 apud
Galves, 1998)
(12) A Clarinha ela cozinha que é uma maravilha. (Duarte, 1995 apud
Galves, 1998)
Em razão dessa tendência à topicalização de constituintes, o PB
apresenta dois tipos de construção inexistentes no PE que evidenciam a
saliência do tópico na variedade brasileira: relativização com pronome
lembrete e estruturas com objeto na função de sujeito sem qualquer marca
morfológica. Observem-se os exemplos:
(13) Você acredita que um dia teve uma mulher que ela queria que a gente
entrevistasse ela por telefone? (Tarallo, 1993 apud Galves, 1998)
(14) A balança está consertando. (Galves, 1998)
33
Ao contrário do que se registra em outras línguas, em (13), verifica-se
que o PB faz uso de construções com elemento relativizado retomado em
seguida por um pronome. Essa retomada em outras línguas só seria possível,
se houvesse um distanciamento considerável do sintagma relativizado da
posição em que recebe sua interpretação. O exemplo (14) constitui mais uma
prova de que o PB é uma língua fortemente “orientada para o tópico”, pois o
SN balança, apesar de ser o objeto de consertar, assume a função de sujeito
com o verbo ainda na voz ativa. Em outras palavras, isso significa que ocorreu
uma modificação na projeção sintática do verbo sem a exigência de uma marca
morfológica.
2.1.3- A freqüência de propriedades gramaticais comuns
As duas variedades do português aqui focalizadas apresentam
propriedades gramaticais compartilhadas, porém em proporções diferentes.
Ambas admitem, por exemplo, tanto o sujeito nulo quanto o objeto nulo:
(15) __ Não posso ficar aqui a tarde toda não. __ Tirei quatro notas
vermelhas. __ Preciso dar um jeito na minha vida. (PB: Duarte, 1993)
(16) A Joana viu __ na televisão ontem. (PE: Raposo, 1986)
Entretanto, a freqüência com que ambos ocorrem nas duas variedades
difere consideravelmente. Acerca do sujeito nulo, estudos variacionistas, como
os de Duarte (1993, 1995) entre outros, atestam a forte tendência de
preenchimento do sujeito no PB, enquanto o PE prefere usar o sujeito nulo
(Duarte, 1996). Tal fato se dá no PB, porque, conforme observa Duarte (1993),
houve uma considerável redução no quadro de desinências verbais,
comprometendo a identificação do sujeito nulo referencial: na segunda pessoa,
depende do contexto pragmático; na terceira pessoa, depende do SN que dá
referência à posição vazia. É justamente essa freqüência cada vez menor de
sujeitos nulos referenciais no PB que permite interpretações diferentes para a
seguinte frase extraída do corpus do projeto NURC (Galves, 1998: 87):
34
(17) Não usa mais freio.
A construção acima é possível nas duas variedades da língua, mas
apresenta estatutos diferentes: enquanto em PE o falante interpreta a posição
vazia do sujeito como um sujeito referencial nulo de terceira pessoa (isto é, “ele
não usa mais freio”), em PB ocorre a interpretação de sujeito de referência
indeterminada. Em PE, essa interpretação genérica exigiria o uso do clítico se,
cuja ausência, nesse caso, acarreta referência a uma pessoa específica/
determinada.
Quanto ao objeto nulo, ao contrário, este é mais freqüente na variedade
brasileira (Duarte, 1989; Cyrino, 1997; Freire, 2000) do que na lusitana. Nesta
última, diz-se que ele apresenta o comportamento de uma variável (um tipo de
categoria vazia resultante de movimento), visto que não ocorreria em contextos
de “ilha sintática”, ou seja, em orações adjuntas, como a ilustrada em (19),
relativas e interrogativas QU, entre outras. Já no PB essa categoria vazia tem
o mesmo comportamento de um pronome, podendo ocorrer em quaisquer
contextos sintáticos. Confrontem-se os exemplos extraídos de Raposo (1986):
(18) (falando do tesouro) O pirata partiu para as Caraíbas depois de ter
guardado __ cuidadosamente. (PB)
(19) (falando do tesouro) *O pirata partiu para as Caraíbas depois de ter
guardado __ cuidadosamente. (PE)
Em razão do exposto, os três aspectos acima apresentados — a sintaxe
pronominal, a projeção dos constituintes da frase e a freqüência de
propriedades gramaticais comuns — parecem apontar indícios que sustentam
a hipótese de o PB e o PE constituírem duas Línguas-I distintas.
2.2- Considerações diacrônicas
Sem dúvida alguma, as diferenças apontadas entre as duas variedades
do português não são fenômenos observados apenas no estágio atual da
língua. Prova disso são os estudos diacrônicos que apontam, a partir da
35
segunda metade do século XIX, evidências do surgimento de uma “gramática
brasileira”, haja vista a ocorrência de fenômenos no PB que o diferenciam da
variedade européia. Entre estes, destacam-se três que serão comentados a
seguir: o preenchimento do sujeito pronominal, o esvaziamento da posição de
objeto e a mudança na colocação dos clíticos.
2.2.1- O preenchimento do sujeito pronominal
Pesquisas diacrônicas registram que o sujeito no PB passou por um
processo de preenchimento que começou no século XIX e se acentuou nos
anos 30 do século XX. O trabalho de Duarte (1993), cuja amostra era
constituída de peças de teatro, por serem o que se dispõe de mais próximo da
modalidade oral de épocas remotas, contemplou a trajetória do sujeito no PB
em sete momentos, de 1845 a 1992, chegando aos seguintes resultados
reproduzidos no gráfico abaixo (p. 112):
Gráfico 2.1: Ocorrência total de sujeitos nulos (Duarte, 1993)
Nos três primeiros períodos ilustrados pelo gráfico, percebe-se uma
nítida preferência por construções com sujeito nulo, porém a partir de 1937
(ano da peça de teatro analisada) começa a diminuir significativamente a
ocorrência dessas construções, fenômeno que se acentua nos dois últimos
períodos pesquisados pela autora, a ponto de já na última década do século
XX praticamente inverter-se a freqüência de sujeitos nulos e plenos, se
comparada com a primeira metade do século XIX.
Deve-se mencionar o fato de que, no mesmo período focalizado pela
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
1845 1882 1918 1937 1955 1975 1992
36
autora, ocorreu no PB a introdução de duas novas formas no sistema
pronominal que se combinam com verbos na terceira pessoa, acarretando uma
redução no paradigma flexional dos verbos usado pelas novas gerações. A
primeira diz respeito à segunda pessoa indireta você que, já na primeira
metade do século XX, era empregada em larga escala em lugar de tu (cf.
Paredes Silva, 2003). A segunda é a expressão a gente, usada na indicação
da primeira pessoa do plural em lugar de nós, cujo processo de
gramaticalização progride no século XIX e se mostra concluído no século XX
(cf. Lopes, 1999). Em razão disso, Duarte (1993) associa a tendência ao
sujeito pleno no PB à simplificação nos paradigmas flexionais, uma vez que,
para compensar a ausência de marca morfológica nos verbos que distinga as
pessoas do discurso, faz-se necessário o preenchimento da posição do sujeito
nas orações, e a mudança acaba por afetar todas as pessoas.
Quanto ao PE, em que tu e formas de tratamento (você, o senhor, etc.)
coexistem, além de a primeira pessoa do plural continuar sendo representada
preferencialmente por nós, o paradigma mantém um número de oposições
capaz de identificar o sujeito nulo, o que lhe garante, nos termos da gramática
gerativa, o status de língua pro-drop.
2.2.2- O esvaziamento da posição de objeto
Paralelamente ao preenchimento do sujeito, os trabalhos diacrônicos
têm constatado um crescente emprego do objeto nulo na variedade brasileira
do português. Cyrino (1993, 1997), em estudo diacrônico utilizando textos de
peças teatrais, mostra que o objeto nulo já ocorria em variação com o clítico no
português do século XVI, com um antecedente oracional ou um predicativo;
passando, a partir do século XIX, a estender-se a outros contextos e a
intensificar-se na variedade brasileira, conforme ilustra o seguinte exemplo da
autora (1993: 165), em que o objeto nulo retoma um antecedente SN com o
traço [– animado]:
(20) Inferno, isso é: se de Dante, não sei, porque não conheço __. (Arthur
Azevedo, O Tribofe)
37
Note-se que o exemplo anterior apresenta o objeto nulo justamente em
contexto insólito no PE, sinalizando que a variedade brasileira começa a
assumir uma direção nesse aspecto que a distingue da européia já a partir do
século XIX. Observem-se os resultados do trabalho de Cyrino (1993: 165)
sobre o crescimento do objeto nulo no PB reproduzidos na tabela a seguir:
Tabela 2.1. Objetos nulos no tempo (Cyrino, 1993)
Século Objetos nulos (%)
Primeira metade XVIII 14,2
Primeira metade XIX 41,6
Segunda metade XIX 23,2
Primeira metade XX 69,5
Segunda metade XX 81,1
A autora registra ainda que os clíticos de terceira pessoa são os que
apresentam maior grau de desaparecimento: os que retomam um SN chegam
ao índice insignificante de 4% na segunda metade do século XX, enquanto o
que retoma uma proposição já nem aparece entre os dados da primeira metade
desse mesmo século. Essa perda dos clíticos de terceira pessoa teria
propiciado o esvaziamento da posição do objeto e, em menor escala, a
ocorrência do pronome tônico em função objetiva já a partir do século XIX, o
que se acentuou ao longo do século ulterior. Situação bem diversa é a do PE,
em que o objeto nulo tem o comportamento de uma variável, não ocorrendo em
contextos de “ilhas sintáticas”, como no exemplo (20) acima relativo ao PB.
2.2.3- A mudança na colocação dos clíticos
Os estudos diacrônicos revelam também uma mudança na posição dos
clíticos no PB. Cyrino (1993) também se deteve na análise dessa questão,
constatando o seguinte: (a) quanto à próclise, a interpolação do clítico com o
advérbio não, possível no século XVIII, é perdida no século XX; no entanto, a
posição proclítica consolida-se como a preferida na variedade brasileira,
ocorrendo de forma generalizada, inclusive em contextos em que é bloqueada
38
no PE, como o imperativo afirmativo e o início de sentenças; (b) quanto à
ênclise, no século XVIII, todos os clíticos assumiam essa posição em estruturas
com imperativo afirmativo, sentenças com infinitivo impessoal e sentenças com
gerúndio; todavia, no século XX, somente o agonizante clítico acusativo de
terceira pessoa ainda aparece nessa posição na amostra analisada por Cyrino
e mesmo assim restrito ao infinitivo. É interessante atentar ainda para o
comportamento do clítico em relação ao seu hospedeiro em locuções verbais
ao longo do tempo, conforme mostra a tabela a seguir extraída do trabalho de
Cyrino (1993: 169):
Tabela 2.2. Pronome proclítico ao verbo principal em locução verbal de estrutura matriz (Cyrino, 1993)
Século Percentuais
Primeira metade XVIII 0%
Primeira metade XIX 7,7%
Segunda metade XIX 17,6%
Primeira metade XX 52,9%
Segunda metade XXa 63,6%
Segunda metade XXb 100%
Interpretando os resultados acima expostos, depreende-se um
progressivo abandono da ênclise tanto ao verbo principal como ao verbo
auxiliar, sendo a próclise a este igualmente abandonada. Em contrapartida,
percebe-se o crescente uso da próclise ao verbo principal, a ponto de ser
categórica nos dados do último período analisado. Do mesmo modo, a autora
assevera que “o clítico tende a fixar-se à esquerda do verbo principal, mesmo
havendo partícula atrativa na estrutura” (p.169). Por conseguinte, verifica-se
que o pronome clítico já não é móvel no século XX, porquanto se fixou ao
verbo mais baixo. Por essa razão, atualmente não se encontram no PB oral
sentenças que eram comuns na primeira metade do século XVIII, como a que
se segue:
(21) O pintor tinha-me convidado para a exposição.
39
De acordo com Cyrino (1993), a posição do clítico em sentenças como a
exemplificada acima foi reanalisada pelas novas gerações a partir do século
XIX, de modo que o pronome deixou de ser interpretado como enclítico ao
verbo denominado auxiliar para ser considerado como proclítico ao principal,
conforme mostra o exemplo seguinte:
(22) O pintor tinha me convidado para a exposição.
No entanto, merece nota o fato de a inovação na ordem dos clíticos em
locuções verbais não valer para o acusativo de terceira pessoa, haja vista a
rejeição de construções do tipo (23) em favor de (24):
(23) *O pintor tinha o convidado para a exposição.
(24) O pintor o tinha convidado para a exposição.
Do mesmo modo, é possível no PB esse mesmo elemento aparecer
enclítico ao verbo principal em locuções verbais com infinitivo, como ilustra o
exemplo abaixo:
(25) O pintor queria convidá-lo para a exposição.
Os dados de Pagotto (1993) relativos ao século XX revelam que, no
contexto acima, a ênclise ao verbo principal chega a ser categórica. O mesmo
se verifica em Freire (2000) cuja amostra apresentou a ocorrência dos
pouquíssimos clíticos acusativos presentes somente nesse contexto.
Para compreender o comportamento diverso do clítico acusativo em
relação aos demais quanto à colocação no PB, é preciso lembrar que ele já
não faz parte dos dados que servem de input ao processo de aquisição natural
da língua, sendo portanto um elemento de natureza marginal, inserido
tardiamente no elenco de traços morfológicos que chegam via escolarização
(cf. Corrêa, 1991; Averbug, 2000). Assim, o que determina a sua colocação
40
tem relação direta com o fenômeno do seu desaparecimento na variedade
brasileira, conforme será demonstrado na seção 2.3.
Por ora, o que pode ser afirmado a partir do exposto é que o PB ampliou
os contextos de próclise (colocação já freqüente no Português Clássico) para a
ocorrência do clítico em posição inicial absoluta e antes do verbo temático nas
locuções. Já o PE apresentou um aumento na freqüência da ênclise, como
ordem não marcada (cf. Vieira, 2002), sendo também muito comum entre as
locuções verbais encontrar o pronome átono enclítico ao verbo que carrega a
flexão.
As considerações diacrônicas acerca das três mudanças no PB aqui
contempladas apontaram evidências sobre a emergência de um sistema
gramatical próprio do Brasil a partir do século XIX, o que reforça a tese de que
as duas variedades do português realmente podem constituir duas Línguas-I.
2.3- Hipóteses sobre a perda dos clíticos de terceira pessoa no PB
Conforme foi exposto em 1.2.1 e 1.2.2, diversos trabalhos lingüísticos
exaustivamente têm constatado tanto a praticamente consumada perda dos
clíticos de terceira pessoa na fala espontânea brasileira, quanto o seu uso
irregular na escrita de estudantes devido a uma aprendizagem feita quase
sempre a duras penas. O presente trabalho procura dar mais um passo na
elucidação do fenômeno em pauta. Em decorrência disso, apresentam-se a
seguir duas hipóteses que orientam o tratamento da questão. A primeira é a
hipótese de Galves (1993, 2001), segundo a qual o PB passa por um processo
de enfraquecimento do elemento de concordância, provocando, entre outros
efeitos, a perda dos clíticos. A outra hipótese é a de Nunes (1993) que oferece
uma explicação fonológica para essa perda, ou seja, partindo da análise da
direção de cliticização em cada variedade da língua. A princípio, pode parecer
que a primeira hipótese, de cunho sintático, e a segunda, de natureza
fonológica, sejam incompatíveis entre si; contudo Galves (2001: 150), em nota,
não acredita “que as duas soluções sejam contraditórias”, havendo até
trabalhos que “procuram definir uma correlação entre os aspectos sintáticos e
prosódicos da diferença entre o PB e o PE”. Por conseguinte, um exame mais
41
acurado mostra que, na verdade, as duas hipóteses podem ser
complementares na explicação do fenômeno que aqui se deseja investigar.
2.3.1- O enfraquecimento da concordância no PB
No quadro teórico do modelo de Princípios e Parâmetros da gramática
gerativa (Chomsky, 1981), distinguem-se as categorias de nível sintagmático
(phrases) das de nível nuclear (heads). Consoante essa distinção, os
pronomes tônicos são considerados à semelhança dos sintagmas nominais,
enquanto os clíticos são analisados como núcleos. Isso pode ser explicado
pelo seguinte: na estrutura de superfície, os primeiros simplesmente ocupam
uma posição argumental de sujeito ou de objeto de preposições; os últimos,
devido à sua marcação morfológica casual, agregam-se ao seu atribuidor de
caso, isto é, ao verbo que, por sua vez, fica em um núcleo de concordância.
Assim, por se afixarem ao verbo, dominado pela categoria funcional núcleo da
sentença, os clíticos acabam sendo interpretados como elementos nucleares.
Entre os pronomes átonos do português, chama a atenção o
comportamento dos clíticos o e lhe na variedade brasileira: enquanto o
acusativo praticamente foi eliminado da fala espontânea, o de função dativa
mostra-se ainda produtivo, porém em referência à segunda pessoa você e não
mais à terceira, podendo aparecer, à semelhança dos demais clíticos, tanto
como objeto direto quanto indireto em alguns dialetos. Por essa razão, diz-se
que é especialmente a terceira pessoa a mais afetada pelo fenômeno da perda
de clíticos. Resta então investigar por que isso ocorre.
Seguindo uma orientação de base gerativista, segundo a qual uma única
causa profunda explicaria as diferenças até aqui apontadas entre as duas
variedades do português, Galves (1993, 2001) propõe que o enfraquecimento
do elemento de concordância da flexão do PB constituiria essa causa. De
acordo com a autora, mostra-se fraca a concordância que não contém pessoa
ou contém pessoa como um traço meramente sintático. É justamente isso que
se verifica no PB, porquanto a simplificação nos paradigmas verbais,
desencadeada pela perda da distinção desinencial nos verbos entre tu e você,
gerou um sistema de concordância caracterizado por uma oposição apenas
42
binária: pessoa (primeira)/não-pessoa (terceira) articulada a uma oposição
singular/plural. Assim, o quadro das desinências número-pessoais que
restaram no inventário do PB oral contemporâneo pode ser sistematizado a
partir da simples combinação dos valores positivo e negativo aos traços
“pessoa” e “plural”, como ilustra a tabela a seguir:
Tabela 2.3. As desinências pessoais do PB
+ pessoa/ – plural > -o + pessoa/ + plural > -mos – pessoa/ – plural > -0 – pessoa/ + plural > -m
Tem-se no PB, portanto, um sistema de concordância “pobre” ou “fraca”,
visto que uma concordância “rica” apresenta uma especificação de pessoa com
pelo menos três valores, como se observa no PE, de modo a não ser
identificada por um traço simplesmente sintático. Esse enfraquecimento da
concordância é visível na variedade brasileira, por exemplo, pela possibilidade
de interpretar a terceira pessoa do singular como indeterminada, conforme foi
demonstrado no exemplo (17). Diante dessa constatação, Galves (2001: 144)
postula que
os clíticos pronominais sintáticos, ou seja, os clíticos nucleares, são incompatíveis com um sistema de concordância fraca: o movimento desses clíticos para INFL exige que esta contenha uma concordância rica.
No entanto, a autora esclarece que a concordância por ela considerada
não é a que diz respeito à propriedade do sujeito nulo, mas a que está ligada
ao movimento do verbo na sentença. Esta última garantiria ao francês, por
exemplo, ser caracterizado como uma língua de concordância forte, o que é
comprovado pelo seu produtivo sistema de clíticos nucleares, embora preencha
categoricamente a posição de sujeito.
Para tentar esclarecer a relação entre clíticos e concordância, a autora
supracitada propõe a separação do elemento de flexão (INFL) em dois núcleos
distintos, concordância (AGR) e tempo (T), sendo o segundo dominado pelo
primeiro. Como AGR se mostra fraco na variedade brasileira, o verbo, na
43
sintaxe visível, só se move até T, a fim de checar a parte de sua morfologia que
tem relação com essa categoria funcional. Por conseguinte, o fato de o verbo
não se mover até AGR mas somente até T, que não é uma posição de
concordância, fez com que ele perdesse a capacidade de verificar o traço de
caso de um clítico. Segundo a mesma autora, os pronomes clíticos, nessas
condições, já não podem ser legitimados como núcleos, devendo ser
reanalisados como sintagmas, tal qual os pronomes tônicos, diferenciando-se
destes apenas por possuírem uma marca morfológica de caso, a qual os obriga
a movimentarem-se.
Em decorrência disso, surge a questão relativa à natureza do caso dos
clíticos no PB. Em conformidade com o que foi exposto acima, a categoria
verificadora de caso encontra-se em um núcleo de concordância que deixou de
ser disponível, uma vez que o verbo não se move mais para AGR na sintaxe
visível. Assim, pergunta-se: como então o traço de caso dos pronomes clíticos
seria verificado? Para dirimir esse problema, Galves (2001) adota uma solução
já proposta na teoria gerativa, que é a distinção entre dois tipos de caso: o
inerente e o estrutural. O primeiro, ao contrário do segundo, tem o seu papel
temático dependente da categoria lexical que o atribui, o que pode isentá-lo da
mediação de AGR. Nesses termos, ao sintagma marcado para o caso basta
estar no domínio de verificação da categoria atribuidora. Por conseguinte,
infere-se que os clíticos do PB, em geral, possuem caso inerente, visto que o
verificam na primeira projeção que domina o verbo que os seleciona, a posição
de T, comportando-se como sintagmas, o que lhes confere o caráter de clíticos
“fortes”. Isso explicaria a relação altamente local entre verbo e clítico no PB,
haja vista a tendência geral de colocação dos pronomes átonos de primeira e
segunda pessoas, além do reflexivo de terceira pessoa, nas locuções verbais:
tais itens costumam assumir posição proclítica justamente ao verbo que lhes
atribui papel temático, em lugar de se afixarem ao auxiliar, ao contrário do
pronome acusativo, que normalmente rejeita a próclise ao verbo principal. Por
ser prerrogativa da terceira pessoa a distinção morfológica entre acusativo e
dativo, fato comum em muitas línguas românicas, consideram-se os clíticos o e
lhe portadores de um caso estrutural, já que para este ser legitimado
44
dependem de AGR, sendo por isso caracterizados como clíticos “fracos”.
Considerando, pois, a hipótese do enfraquecimento do elemento de
concordância no PB, o fenômeno do desaparecimento dos clíticos de terceira
pessoa pode ser então assim explicado: como o verbo já não se movimenta
até AGR na sintaxe visível, essa variedade só comporta um sistema de clíticos
“fortes”, isto é, que não dependem desse núcleo para verificar o seu traço de
caso, como os sintagmas. Por essa razão, Galves (2001: 140) considera que
“o PB não possui mais clíticos pessoais de terceira pessoa”, o que se explica
pela incompatibilidade do caso estrutural desses pronomes com uma língua de
concordância fraca.
Situação bem diversa é a do PE, porquanto mantém a riqueza flexional
que distingue três pessoas gramaticais, garantindo assim uma concordância
forte, o que lhe permite um sistema produtivo de clíticos pronominais. Estes,
devido ao movimento do verbo até AGR na sintaxe visível, são interpretados
não como sintagmas, mas como verdadeiros núcleos. Sem dúvida alguma, a
diferença do tipo de concordância entre as duas variedades vem a ser mais
uma evidência de que constituem duas Línguas-I distintas.
2.3.2- A direção de cliticização
Se, por um lado, a hipótese de Galves (1993, 2001) sobre o
enfraquecimento da concordância no PB parece explicar o esvaziamento do
paradigma de clíticos na terceira pessoa; por outro, não dá conta
suficientemente do fenômeno da perda da forma acusativa na fala espontânea
em contraste com a manutenção da dativa, que passou a figurar na referência
à segunda pessoa, seja como dativo, seja até como acusativo, conforme
registram alguns dos trabalhos acadêmicos comentados na seção 1.2.2. É
preciso mencionar também que a própria gramática normativa (cf. Rocha Lima,
1998) prevê o uso dos pronomes átonos o e lhe, nas suas respectivas funções,
correspondendo à forma você. Em vista disso, a questão que ora se coloca é
por que o clítico acusativo parece não ter sido reaproveitado pelo sistema na
referência à segunda pessoa, à semelhança do que ocorreu com o dativo. Na
busca de uma possível resposta para essa questão, será examinada a hipótese
45
de Nunes (1993) acerca da direção de cliticização em cada variedade da
língua.
De início, o autor chama a atenção para o fato de que, no PB, a forma
pronominal acusativa, quando ocorre, normalmente não segue a mesma
distribuição dos demais clíticos, conforme ele mesmo exemplifica (p. 207-208):
(26) Me chame amanhã.
(27) Te chamo amanhã.
(28) Lhe telefono amanhã.
(29) *O chamo amanhã.
Segundo ele, isso se deveria a uma mudança na direção de cliticização
fonológica ocorrida no PB, que impede o licenciamento da sílaba do clítico
acusativo de terceira pessoa. Partindo da observação de que muitas línguas
românicas conservaram o /l/ do pronome demonstrativo latino illum na forma
acusativa de terceira pessoa dele oriunda (francês: le; espanhol: lo), o referido
autor acredita que em português essa mesma forma possua um onset
subjacente, haja vista o fato de poder superficializar-se como lo ou no em
língua padrão. Por ser subespecificado subjacentemente, esse onset do clítico
acusativo necessita, pois, ser licenciado por diferentes processos. É nesse
sentido que a direção de cliticização se mostra determinante, o que será
demonstrado a partir da análise desse fenômeno nas duas variedades.
No PE, os clíticos são fonologicamente sempre enclíticos, qualquer que
seja o vocábulo precedente, ou seja, a direção de cliticização fonológica é da
direita para a esquerda, opondo-se à do PB que é da esquerda para a direita.
Por conta disso, sentenças corriqueiras como as seguintes são realizadas em
cada variedade assim:
(30) (a) Quem-me chamou? (PE)
(b) Quem me-chamou? (PB)
46
(31) (a) Não-te vi. (PE)
(b) Não te-vi. (PB)
(32) (a) Ele tinha-me visto ontem. (PE)
(b) Ele tinha me-visto ontem. (PB)
(33) (a) Vamo-nos encontrar. (PE)
(b) Vamos nos-encontrar. (PB)
A direção de cliticização fonológica, portanto, parece explicar a razão por
que o PE bloqueia sentenças iniciadas por clítico: em tal contexto, não há
material fonético ao qual esse elemento possa se ligar, já que este se cliticiza
da direita para a esquerda. Como no PB a cliticização fonológica ocorre da
esquerda para a direita, tais sentenças são perfeitamente gramaticais. Dessa
forma, uma sentença como a seguinte é agramatical no PE, mas perfeita no
PB:
(34) (a)*-Me passa o sal, por favor. (PE)
(b) Me-passa o sal, por favor. (PB)
Por outro lado, o fato de a direção de cliticização ser da direita para a
esquerda no PE proporciona a este variados processos para o licenciamento
do onset da sílaba do clítico acusativo de terceira pessoa.
Entre esses processos, dois são ativados quando o vocábulo em que o
clítico se apóia é um verbo, não ocorrendo com vocábulos de outra categoria, o
que evidencia tratarem-se de regras lexicais. O primeiro envolve a assimilação
das terminações em /S/, ortograficamente representado pelas letras s e z, e em
/r/ aos traços presentes no onset da sílaba do clítico:
(35) (a) compramos + o — < compramo-lo
(b) conhecer + o — < conhecê-lo
47
Já o segundo processo diz respeito à multiassociação do traço [+ nasal]
em contexto de forma verbal terminada em ditongo nasal:
(36) compraram + o — < compraram-no [koprara wno]
A robustez de dados simples como os vistos em (35) e (36) muito
provavelmente permite à criança portuguesa, em fase de aquisição da
linguagem, postular um onset subespecificado para a sílaba do clítico acusativo
de terceira pessoa, porquanto é com este somente que ocorre a aplicação das
duas regras acima descritas.
Como já foi mencionado, os dois processos contemplados anteriormente
não se dão quando o pronome átono acusativo se apóia fonologicamente em
outros vocábulos, que não o verbo. Além disso, recorde-se que a cliticização
também pode ocorrer com formas verbais terminadas em vogal ou em ditongo
oral. Por conseguinte, o PE lança mão de outros processos para o
licenciamento do onset da sílaba do clítico que, a depender da superficialização
dessa sílaba, podem ser preservadores ou reestruturadores.
Os processos preservadores aparecem em dois casos: (a) quando o
clítico se apóia em qualquer vocábulo terminado em vogal (com exceção de /a/)
ou em ditongo, desde que este não seja nasal em se tratando de verbos; (b)
quando o clítico se afixa a vocábulo que termina em /l/ ou a vocábulo não
verbal terminado em /r/ e /S/.
No caso (a), ocorre a multiassociação de elementos vocálicos com o
traço [+ alto], gerando uma situação de ambissilabicidade, o que permite o
preenchimento do onset da sílaba do pronome átono acusativo de terceira
pessoa, como se vê em (37). No caso (b), os fonemas consonantais que
aparecem em posição intervocálica deixam de ser associados à coda da sílaba
anterior para constituírem o onset da sílaba do clítico, conforme se pode
perceber em (38). Vejam-se a seguir os exemplos de Nunes (1993: 210-211):
(37) (a) comi-o ([komiyu])
(b) atrai-a ([atrayya])
48
(c) compro-a ([kopruwa])
(d) comprou-a ([koprowwa])
(e) Nem a sucuri-a fez fugir. ([sukuriya])
(f) Quem-o viu. ([keyyu])
(g) Só o peru-a bicou. ([peruwa])
(h) João não-a viu. ([na wwa])
(38) (a) Que amor-o fez sofrer? ([a.mo.ru])
(b) Que mal-o atingiu? ([ma.lu])
(c) Todos o fizeram sofrer. ([to.do.zu])
Tratando de contextos como (37f) e (37h), Cunha & Cintra (1985: 271)
registram que, assim como o clítico acusativo assume as formas no/na depois
de verbos terminados em som nasal, são
também estas as formas que o pronome costuma apresentar, na linguagem popular e na literária popularizante de Portugal, depois dos advérbios não e bem, assim como dos pronomes quem, alguém, ninguém e outras palavras terminadas em ditongo nasal: E assim pedia, num dó tamanho, Não no tirassem lá donde estava. (A. Nobre, S, 77) Neto sou de quem no sou! (J. Régio, F, 13)
Sem dúvida alguma, tal fenômeno só vem corroborar a direção de
cliticização à esquerda do PE, uma vez que o clítico acusativo assimila o traço
[+ nasal] do vocábulo que o precede, portanto ao qual se liga fonologicamente,
podendo licenciar assim o onset da sua sílaba.
Por fim, o PE apresenta ainda um processo para o licenciamento do
onset da sílaba do clítico acusativo que se aplica quando este último se apóia
fonologicamente em vocábulo terminado em /a/: o reestruturador. Nesse
contexto, ocorre de fato uma reestruturação, visto que a sílaba do clítico se
funde à sílaba precedente, de modo que a questão do licenciamento do onset
deixa de ser relevante. Observem-se os exemplos extraídos de Nunes (1993:
211):
49
(39) (a) compra-o: [kopr�] + [u] —< [kopr⊃]
(b) compra-a: [kopr�] + [a] —< [kopra:]
Pelo exposto até aqui, verificou-se que é a cliticização fonológica da
direita para a esquerda que torna possível ao PE licenciar o onset da sílaba do
clítico acusativo de terceira pessoa, mesmo quando este não se incorpora
sintaticamente ao vocábulo que o precede. Por conseguinte, isso propicia
condições para a manutenção desse clítico no sistema pronominal dessa
variedade. Foi seguindo essa linha de raciocínio que Nunes (1993) pretendeu
explicar o desaparecimento da forma pronominal átona acusativa no PB, uma
vez que este apresenta uma direção de cliticização da esquerda para a direita,
o que não favorece a ocorrência dos processos encontrados no PE para
licenciamento do onset da sílaba do clítico acusativo. Esse mesmo autor
atribui essa diferença na direção de cliticização entre as duas variedades a
uma suposta mudança ocorrida no PB a partir do século XIX. Segundo ele, o
português antigo teria a mesma direção de cliticização do PE contemporâneo,
isto é, da direita para a esquerda. Para sustentar essa sua tese, cita como
exemplo o fato de que no português arcaico era comum a ocorrência do
pronome acusativo sob a forma lo depois de quase toda palavra terminada em
/r/ ou /S/, o que levaria a supor que se daria nesses casos o mesmo processo
de assimilação que se verifica atualmente com a seqüência verbo + clítico em
PE contemporâneo. Vejam-se alguns dos exemplos de língua arcaica que o
autor extraiu de Williams (1938 apud Nunes,1993: 213):
(40) (a) Melho la fezestes (melhor + a)
(b) Deu lo sabe poi la vi (Deus + o; pois + a)
(c) a toda lo el diria (todas + o)
(d) o bom rei en seu pode’ la ten (poder + a)
A partir de dados como os exemplificados acima, o autor ora em questão
deduziu que o português antigo possuía a mesma direção de cliticização do PE
contemporâneo. De outra parte, o mesmo autor, com base em estudos
50
diacrônicos sobre a colocação dos pronomes átonos no PB, entre os quais o de
Cyrino (1993), constatando um crescimento acentuado do número de
sentenças com clíticos em posição inicial a partir do século XIX, acredita ter
ocorrido nesse período uma mudança na direção de cliticização do PB,
passando a ser da esquerda para a direita.
No entanto, algumas evidências permitem questionar a direção de
cliticização à esquerda atribuída ao português antigo, o que atinge em cheio a
tese a respeito de uma suposta mudança na direção de cliticização do PB a
partir do século XIX. A primeira delas é o fato de que, paralelamente a dados
como os vistos em (40), ocorriam no português antigo construções com o onset
da sílaba do clítico acusativo superficializado, mas sem haver assimilação da
consoante final do vocábulo que precedia a forma pronominal átona, conforme
ilustram os exemplos abaixo de Matos e Silva (1990 apud Nunes, 1993: 212):
(41) (a) pois lo San Beento preguntou
(b) pois lo o meni ho vio
Uma segunda evidência diz respeito à ocorrência de sentenças com
pronome átono em posição inicial, que se intensificou a partir do século XIX no
PB e foi considerada por Nunes como uma inovação da variedade brasileira.
Na verdade, tais sentenças não eram desconhecidas no português clássico,
conforme ilustram os exemplos de Namiuti (2003):
(42) Se em tudo isto tenho que pedir a Vossa Mercê seu favor, o Vossa
Mercê sabe; se o devo esperar, eu o sei. (Século XVI)
(43) E, chegando a alguma que com menos apêrto faça sua relação, me não
pareceu enjeitar a que Marcelo escreveu ao Senado Romano (…)
(Século XVII)
Dificilmente, nos contextos acima, poder-se-ia supor que o pronome
átono se cliticizaria para a esquerda, visto que há uma pausa antes desse item
51
lingüístico, o que constitui um indício de que a direção de cliticização do
português clássico não deveria ser diferente da atualmente verificada no PB.
Há ainda uma forte evidência de cunho histórico sobre a diferença
fonética entre as duas variedades que não pode ser desconsiderada. Silva
Neto (1976), citando Fernão de Oliveira que em 1536 publicou a primeira
gramática da língua portuguesa, lembra que a pronúncia quinhentista do
português era pausada, tal como ainda se verifica na variedade brasileira, que
mantém o estado fonético antigo. Esse mesmo autor assinala ainda que,
enquanto o PB conservou a mesma pronúncia dos colonizadores do século
XVI, o PE passou por uma mudança fonética, principalmente a partir do século
XVIII. Em outras palavras, enquanto a entoação brasileira se manteve lenta e
arrastada como no século XVI, a portuguesa passou a ser mais rápida e
“áspera”, inovando. Tal fato poderia ser comprovado na métrica das cantigas
medievais portuguesas e dos versos de Camões: os decassílabos do autor de
Os Lusíadas, por exemplo, ficam quebrados na atual pronúncia lusitana, mas
são perfeitamente preservados na pronúncia brasileira. Observe-se o verso:
(44) “E em/ pe/ri/gos/ e/ guer/ras/ es/for/ça/dos” (pronúncia brasileira) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
(44’) “E em/ p’ri/gos/ e/ guer/ras/ es/for/ça/dos” (pronúncia lusitana) 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Por conseguinte, essa evidência histórica leva a crer que o PB teria
igualmente conservado a direção de cliticização dos colonizadores do século
XVI, enquanto o PE a teria modificado para acomodá-la à sua nova realidade
fonética, surgida a partir do século XVIII.
Por outro lado, se a direção de cliticização do português antigo poderia
ter sido à direita, o que diferenciaria essa fase da língua do PB contemporâneo
quanto à ocorrência do clítico acusativo? A diferença fundamental seria que,
no português clássico, a provável cliticização à direita não constituiria um
obstáculo à presença do pronome acusativo sem o onset da sua sílaba
superficializado em próclise após uma pausa, como se vê em (43), contexto em
que normalmente costuma ser bloqueado na variedade brasileira, conforme se
52
exemplifica em (29). Isso pode ser explicado pelo fato de que o português
clássico se caracterizava por uma morfologia de concordância rica, o que lhe
garantia um sistema de clíticos muito produtivo, de maneira que a ocorrência
destes não sofreria a influência de fatores fonéticos.
Já no PB, consoante o que foi exposto em 2.3.1, o processo de
enfraquecimento da morfologia de concordância comprometeu de tal modo o
sistema de clíticos, que somente os mais “fortes” poderiam subsistir. Nesse
processo, os clíticos de terceira pessoa foram diretamente atingidos e seguiram
caminhos distintos. O dativo, foneticamente mais robusto como os demais
clíticos, não está sujeito a fatores de ordem fonética para ocorrer e foi
reaproveitado na referência à segunda pessoa. Quanto ao acusativo, por ser
foneticamente mais fraco, ficou mais vulnerável a condicionamentos fonéticos,
restando então três alternativas para as novas gerações: (a) reanalisar esse
clítico como sílaba sem onset; (b) reformular o sistema fonológico a partir da
introdução de novas maneiras para licenciar esse onset; (c) adquirir uma
gramática sem o clítico acusativo de terceira pessoa. Segundo Nunes (1993),
a primeira alternativa seria logo descartada pela presença no PB, ainda que
reduzida, de dados simples como comprá-lo, encontrá-la, o que é ratificado em
Freire (2000): dos 3% de clíticos acusativos encontrados em amostra da fala
culta carioca (NURC, 1992), todos aparecem nesse contexto, ou seja, com o
onset da sua sílaba. Quanto às outras alternativas, o autor da hipótese ora em
análise diz que “entre introduzir novas regras para licenciar o onset da sílaba
dos clíticos e adquirir uma gramática sem clíticos acusativos de terceira
pessoa, as crianças (…) optaram por essa última possibilidade” (p. 216). Em
decorrência disso, surgem duas novas estratégias de realização do acusativo
anafórico em substituição ao clítico: o objeto nulo e o pronome tônico em
posição de objeto direto.
Assim, a hipótese de Nunes (1993) sobre a direção de cliticização não é
aqui assumida nos termos originalmente expostos por esse autor, isto é, no
sentido de ter havido no século XIX uma mudança fonológica no PB a partir da
qual se teria desencadeado o processo de desaparecimento do clítico
acusativo, até porque foram apresentadas contundentes evidências de que foi
53
o PE que sofreu uma mudança fonética, enquanto o PB manteve o padrão
fonético do século XVI. A hipótese desse autor é aqui tomada no sentido de
que a direção de cliticização é um fator complementar que influencia a
ocorrência ou não do clítico acusativo de terceira pessoa nas duas variedades
da língua. No PE, por ser um sistema de concordância rica, a cliticização à
esquerda, que propicia diferentes processos para o licenciamento do onset da
sílaba do pronome acusativo, só vem a consolidar a freqüência deste. Já no
PB, caracterizado por uma concordância fraca que deixou mais vulnerável o
clítico acusativo, a cliticização à direita, que impossibilita o licenciamento do
onset da sílaba desse clítico, torna-o ainda mais fraco do ponto de vista
fonético, contribuindo para o seu desaparecimento. Isso explicaria a rejeição
desse item lingüístico tanto em próclise ao verbo principal nas locuções
verbais, como em início de sentença (29), ao contrário dos demais clíticos que,
por serem foneticamente mais fortes graças à sua sílaba com onset sempre
superficializado, podem ocorrer nesses contextos. Por conseguinte, a tímida
manutenção da forma pronominal átona acusativa que ainda se pode encontrar
no PB é absolutamente artificial e se deve à ação normativa da escola,
conforme documentam Corrêa (1991) e Averbug (2000), cujos trabalhos
evidenciam a relevância do fator nível de escolaridade no uso dessa variante
para a realização do acusativo anafórico de terceira pessoa. No entanto,
justamente pela falta de familiaridade com o clítico acusativo, o emprego deste
pelos estudantes se mostra não raro em desacordo com a prescrição da
própria gramática tradicional, como nos casos de hipercorreção em que o
clítico é reduplicado, conforme ilustra o seguinte exemplo, extraído do trabalho
de Freire (2000: 93), de uma redação de candidato ao vestibular:
(45) O povo que cada vez mais ignorante, deixa-se levar por uma mídia, que
traz notícias manipuladas para o confortá-lo.
Em vista disso, pode-se inferir que o clítico acusativo já não faz parte da
gramática da criança brasileira na fase de aquisição natural da língua, o que é
corroborado tanto por Duarte (1986) que fala da “ausência absoluta” desse item
lingüístico na língua dos jovens, como por Omena (1978) que não encontrou
54
um uso sequer desse mesmo elemento na fala dos analfabetos, ou seja,
daqueles que não sofreram influência da escola.
A partir do exposto, verificou-se que as duas hipóteses apresentadas
acima se complementam no tratamento da questão do desaparecimento dos
clíticos de terceira pessoa. De sua parte, a hipótese do enfraquecimento da
concordância no PB explica o esvaziamento no paradigma pronominal da
terceira pessoa pelo fato de os clíticos acusativo e dativo serem fracos, isto é,
portadores de caso estrutural: como dependem do movimento do verbo para
AGR, que já não ocorre, para legitimar o seu caso, tendem a desaparecer. No
entanto, esses clíticos seguiram caminhos diferentes: enquanto o acusativo foi
excluído da fala espontânea ou coloquial, o dativo passou a ser utilizado como
correlato do pronome de “tratamento” você, aparecendo (numa freqüência mais
reduzida) em alternância com te, não só em função dativa, mas também, em
alguns dialetos, em função acusativa. É por esse motivo que a hipótese da
direção de cliticização vem complementar a primeira no esclarecimento desse
fenômeno: ao contrário do clítico dativo, o acusativo precisa licenciar o onset
de sua sílaba, mas a direção de cliticização da esquerda para a direita
verificada no PB não oferece condições favoráveis a esse licenciamento, o que
acaba por acarretar o desaparecimento da forma pronominal acusativa no
sistema. Por outro lado, o antes pronome dativo de terceira pessoa, por
apresentar o onset da sua sílaba sempre concretizado à semelhança dos
demais clíticos, adquire o caráter de clítico “forte” no PB, podendo aparecer nas
funções dativa ou acusativa, mas em referência à segunda pessoa indireta, já
que o enfraquecimento da concordância na variedade brasileira esvaziou a
terceira pessoa.
Tendo procedido ao exame das duas hipóteses sobre o
desaparecimento dos clíticos de terceira pessoa no PB, foram observadas duas
importantes diferenças entre as duas variedades do português: (a) o tipo de
concordância, fraca no PB e forte no PE; (b) a direção de cliticização, à direita
no PB e à esquerda no PE. Tais diferenças indubitavelmente constituem fortes
argumentos que reforçam a opção teórica de Galves (1998) aqui assumida,
segundo a qual as duas variedades em questão são de fato duas Línguas-I
55
distintas, haja vista essas mesmas diferenças serem determinantes em
fenômenos que caracterizam cada variedade, como a questão do paradigma
pronominal da terceira pessoa, conforme foi demonstrado.
56
3- FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
A proposta deste trabalho é analisar, numa perspectiva sincrônica, a
realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa no PB e no
PE, contemplando a modalidade escrita num contínuo oralidade-letramento.
Em consonância com o trabalho de Kato (no prelo), pretende-se com isso
investigar a escrita do letrado adulto brasileiro em contraste com a do letrado
lusitano, a fim de verificar até que ponto os dois sistemas se aproximam ou se
distanciam. Para tanto, faz-se necessário estabelecer os pressupostos teóricos
e explicitar a metodologia e as hipóteses que orientarão a análise da questão.
3.1- Quadro teórico
Em linhas gerais, serão apresentados os conceitos básicos de dois
modelos teórico-metodológicos que, mesmo sendo considerados por alguns
lingüistas como incompatíveis e irreconciliáveis, são atualmente empregados
por outros estudiosos numa colaboração amistosa na análise da variação e da
mudança lingüística: a Teoria Gerativa e a Teoria da Variação. Segundo os
que sustentam a separação entre os modelos, a incompatibilidade se deveria
ao fato de o primeiro preocupar-se com a competência do falante (a Língua-I),
enquanto o segundo se interessa pela língua em uso (a Língua-E). No entanto,
em razão da teoria de Princípios e Parâmetros de Chomsky (1981) e das
decorrentes preocupações com a aquisição e a mudança lingüística, bem como
do interesse pela análise diacrônica, que exige o trabalho quantitativo com
dados reais, outra corrente de estudiosos entende ser bastante profícua a
associação entre os modelos considerados conflitantes.
3.1.1- A teoria de Princípios e Parâmetros
É de conhecimento na literatura acadêmica o quadro conceitual da
gramática gerativa, que defende a idéia de linguagem como faculdade inata e
específica da mente humana. Em outras palavras, isso significa que haveria
um sistema cognitivo inato que faz parte da herança genética de qualquer
pessoa, tornando-a capaz de adquirir uma língua complexa, rica e bem
articulada a partir dos dados (input) a que é exposta. No entanto, conforme
ressalta Raposo (1992), a teoria gerativa reconhece que essa faculdade da
57
linguagem não é um sistema homogêneo, uma vez que interage de maneira
complexa com outros módulos mentais também autônomos. Na mente de
qualquer adulto, o referido sistema de natureza computacional responsável
pela linguagem constitui o que se chama gramática, em oposição ao seu
estado inicial, isto é, na mente do bebê recém-nascido, em que recebe o nome
de Gramática Universal (GU). Assim, os estudos gerativos apresentam duas
grandes preocupações: a caracterização das gramáticas particulares dos
indivíduos, correspondentes às diversas línguas ou grupos de línguas
humanas, e a investigação da GU, entendida como o conjunto de propriedades
inatas, biologicamente determinadas e de natureza exclusivamente lingüística,
cujo desenvolvimento em interação com o meio ambiente propicia a aquisição
de uma gramática particular na mente de cada indivíduo adulto.
Nessa perspectiva, inscreve-se o modelo teórico de Princípios e
Parâmetros, proposto por Chomsky (1981), em que se concebe a GU como
sendo constituída por dois tipos de princípios: os do primeiro grupo seriam
rígidos, absolutos, invariáveis e comuns a todas as línguas, recebendo a
designação geral de princípios; os do segundo grupo seriam abertos, pois
constituiriam opções determinadas pela experiência lingüística, sendo
chamados parâmetros por admitirem uma escolha binária de valores [+] ou [–],
o que explicaria as diferenças entre as línguas humanas. Assim, se duas
comunidades lingüísticas apresentarem a fixação de pelo menos um parâmetro
de maneira diferente, haverá duas gramáticas distintas que produzirão
enunciados diferentes ou atribuirão estatutos diversos a enunciados
superficialmente idênticos. É justamente por isso que Galves (1998) defende
em seu trabalho que o PB e o PE constituam duas Línguas-I distintas,
conforme foi demonstrado na seção 2.1 do capítulo anterior: conquanto
compartilhem enunciados superficialmente idênticos, estes não apresentam o
mesmo estatuto em cada variedade.
3.1.2- A Sociolingüística Variacionista
Há muito já se sabe que a mudança lingüística é inerente a todos os
sistemas lingüísticos, o que é ratificado por diversos trabalhos acadêmicos. No
entanto, o grande desafio que se impõe àqueles que se dedicam à descrição
de qualquer língua é compreender as origens e o mecanismo dessa mudança.
58
É um pressuposto básico da Sociolingüística o fato de que toda
mudança supõe um período de variação, com a competição de duas ou mais
formas variantes para a realização de uma variável, embora o contrário não
ocorra necessariamente, ou seja, nem toda variação significa mudança
posterior. Assim, a mudança lingüística só se completa quando uma variante
suplanta as outras e passa a ser a forma definitiva na realização da variável.
Em texto considerado seminal, Weinreich, Labov & Herzog (1968)
lançaram as bases teóricas da Sociolingüística, propondo dois conceitos
essenciais: o princípio da uniformidade e o encaixamento. O primeiro diz
respeito ao fato de que as forças de mudança atuantes no presente são as
mesmas que teriam atuado no passado, enquanto o segundo traz a noção de
que uma mudança não é um fenômeno isolado, uma vez que é provocada por
outros movimentos de variação/ mudança dentro do sistema.
Para Labov (1982), uma teoria que pretenda investigar a mudança
lingüística de maneira satisfatória deve ser capaz de identificar as condições
que determinam o início, a velocidade, a direção e o término de uma dada
mudança. No entanto, o mesmo autor reconhece que a busca da(s) causa(s)
de uma mudança lingüística ultrapassa os limites da própria teoria, propondo
que se desloque o foco de atenção para o motivo por que certas inovações
morrem, enquanto outras se espalham pela comunidade, o que leva a associar
a iniciação da mudança à sua propagação ou transmissão. Além da
propagação da mudança, constituem foco de atenção da Sociolingüística
Variacionista os condicionamentos lingüísticos e extralingüísticos que facilitam
ou dificultam a implementação de novas formas e o seu encaixamento no
sistema, a transição e a avaliação feita pelos membros da comunidade a
respeito de formas inovadoras/ conservadoras.
Interessam particularmente à presente pesquisa os condicionamentos à
realização das variáveis focalizadas e as noções de encaixamento e de
implementação da mudança. Para ilustrar essas noções, tome-se como
exemplo a mudança no quadro pronominal do PB a partir do enfraquecimento
da concordância, já apresentado no capítulo anterior. A primeira noção se
refere aos “efeitos colaterais” da mudança lingüística: se o PB apresenta um
59
enfraquecimento da morfologia de concordância, é natural esperar uma
diminuição na freqüência de clíticos acusativo e dativo de terceira pessoa, visto
serem estes portadores de caso estrutural (cf. 2.3.1), ou seja, dependentes do
elemento de concordância da flexão para a verificação do seu traço de caso.
Surgem, então, estratégias para a sua substituição. Já a noção de
implementação, por sua vez, procura investigar quais são as estratégias de
substituição desses clíticos e que caminhos percorrem no sistema do PB,
levando-se em conta fatores estruturais e sociais. Como exemplo de atuação
de um fator estrutural, cite-se a progressiva substituição do clítico acusativo de
terceira pessoa pela categoria vazia no PB: segundo os estudos de Cyrino
(1993, 1997), os primeiros contextos a ceder ao objeto nulo foram aqueles em
que o clítico retomava um objeto sentencial ou um predicativo, expandindo-se
posteriormente ao complemento de referência [– animada] até chegar ao de [+
animada]. Para exemplificar a atuação do fator social, cite-se que muitos
estudos têm constatado que, das variantes candidatas à representação do
acusativo anafórico, há uma grande freqüência de categorias vazias e SNs
anafóricos, uma vez que essas formas não são estigmatizadas como o
pronome tônico em função acusativa, às vezes tido como muito informal, e o
clítico, às vezes considerado pedante. Dessa forma, a Sociolingüística
Variacionista, de um modo geral, procura analisar a força das pressões
estruturais e sociais e a sua inter-relação nos processos de mudança
lingüística.
3.1.3- O fenômeno da mudança sintática no PB
O estudo da mudança sintática é bem recente na história, se comparado
aos campos da fonética/fonologia e da morfologia. Os lingüistas do século XIX,
por exemplo, preocupavam-se em formular leis e princípios gerais para explicar
as mudanças sonora e morfológica nas línguas, pouco se ocupando das
mudanças no âmbito sintático, que acabaram ficando restritas a discussões
isoladas por bastante tempo. Somente a partir da década de setenta do século
passado é que se verificou um interesse acentuado pelo estudo da mudança
sintática, quando então surgem os primeiros trabalhos.
60
Este estudo tem por propósito investigar justamente a variação no
âmbito da sintaxe do PB, particularmente na realização do acusativo e do
dativo anafóricos de terceira pessoa, conforme registram os trabalhos
acadêmicos anteriormente referidos. Certamente tal propósito suscita
questões gerais a respeito da própria mudança sintática, levando a discutir, por
exemplo, que tipos de fatos podem explicar como e por que sistemas sintáticos
mudam em um indivíduo e em uma língua.
Qualquer tipo de sistema lingüístico desenvolve nas crianças que a ele
estão expostas uma série de expressões lingüísticas, sendo os aspectos
básicos do sistema fixados por volta da puberdade. Depois dessa fase, a
simples exposição a um conjunto equivalente de expressões lingüísticas
pertencentes a outro sistema não conduz à incorporação desse sistema da
mesma maneira que o primeiro. Por essa razão, muitos autores consideram
que nesse último caso já não se pode falar de aquisição, que é próprio de L1,
mas de aprendizagem. Por conseguinte, admite-se que apenas certos
aspectos do sistema possam mudar depois da puberdade, a depender das
circunstâncias subseqüentes do indivíduo: novas formas de expressão, nova
pronúncia e novas formas morfológicas.
Se o conjunto de expressões lingüísticas às quais uma criança na pré-
adolescência é exposta muda, pode haver mudanças no sistema produtivo da
maturidade. Em outras palavras, pode acontecer que certos parâmetros sejam
fixados diferentemente nas crianças, de modo que elas alcancem diferentes
gramáticas, entendendo-se por gramática um sistema de representação que
amadurece no indivíduo em exposição a um conjunto de expressões
lingüísticas.
Para descrever o fenômeno da mudança sintática, Lightfoot (1988)
propõe um modelo explanatório: a experiência engatilhadora (triggering
experience), que consiste nas expressões que o indivíduo ouve e que lhe
permitem o desenvolvimento de sua gramática. As gramáticas simplesmente
não refletem experiências engatilhadoras, pois seu desenvolvimento é mediado
pela GU, que se constitui num conjunto de princípios e parâmetros genotípicos
relevantes para o desenvolvimento de uma gramática no indivíduo. Dessa
61
forma, a GU é o elemento invariante, enquanto as experiências engatilhadoras
e a gramática final certamente variam. Um exame atento das gramáticas dos
indivíduos mostra que aquelas vão muito além do que estes experienciaram na
infância, o que leva a supor que a GU deve incluir um rico conjunto de
princípios e parâmetros que funcionam como mediadores no processo de
amadurecimento da capacidade lingüística. Por conseguinte, a experiência
engatilhadora que atua no desenvolvimento da gramática na criança consiste
num casual conjunto de simples expressões ocorrentes produzidas num
contexto determinado. A fim de ilustrar a sua linha de raciocínio, esse mesmo
autor aduz o estudo de dois casos de mudança sintática no inglês: o verbo like
e a história dos modais.
Com relação ao primeiro caso, sabe-se que a estrutura arcaica do verbo
like era objeto-verbo-sujeito (The king liked the pears. — Ao rei agradaram as
peras.), porém, em certo estágio, as crianças iniciam a aquisição de uma regra
de expansão de V, que consistia de V + objeto direto, enquanto a geração
anterior mantinha a ordem contrária. Registros históricos indicam que, por
volta do século XV, ocorreu o enfraquecimento do sistema de caso, o que fez
the king perder a marca morfológica de objeto (dativo), não sendo mais robusta
a análise objeto-verbo-sujeito para like. A sentença The king liked the pears
era parte da experiência engatilhadora, mas já não recebia a mesma análise
dada pelas gerações anteriores. Assim, a criança passa a ignorar alguns
dados como parte da experiência engatilhadora (Him liked the pears.), dando a
like a interpretação de “tirar prazer de”, diferente do significado anterior que era
“causar prazer a”.
Sobre o segundo caso, verifica-se que a história dos modais do inglês
pode fornecer um bom argumento para a proposição de que o componente
sintático da gramática pode ser reestruturado de forma bastante radical de uma
geração para a outra. Numa fase anterior do inglês, can, could, do, did, may,
might, must, shall, should, will e would eram verbos plenos. A partir do século
XVII, tais verbos se tornaram morfologicamente distintos e, gradualmente,
adquiriram a possibilidade de manifestar flexão (INFL) diretamente na estrutura
profunda. Já os demais verbos perderam o movimento para flexão e a
62
possibilidade de interação com a inversão e a negação (Came John?/ John
came not). Deve-se registrar que houve uma discrepância entre experiência e
produção, uma vez que a criança ainda estava exposta a formas como Came
John?, mas não as utilizava como experiência engatilhadora, apesar de serem
simples e presumivelmente freqüentes e robustas. Essa discrepância exige
uma explicação que não é puramente lexical, o que leva a crer que a reanálise
sintática pode ser estimulada por mudanças morfológicas, conforme se
verificou no verbo like: o efeito de um condicionamento morfológico — o
enfraquecimento do sistema flexional de casos — motivou a mudança.
Em vista do exposto, assim se explicaria a mudança sintática: o fato de
uma criança não produzir determinado tipo de construção, embora
eventualmente ainda o ouça dos mais velhos, deve-se a algumas propriedades
gramaticais novas que surgem no sistema, provavelmente, por novas
expressões no seu ambiente lingüístico e passam a ser um gatilho para a
refixação de um parâmetro. Pensando no caso da perda dos clíticos de
terceira pessoa no PB oral, acredita-se que o enfraquecimento do elemento de
concordância da flexão tenha afetado os dados que servem de base à
experiência engatilhadora das crianças brasileiras, propiciando o surgimento de
formas inovadoras para a realização do acusativo e do dativo anafóricos, de
modo que as novas gerações adquiriram uma gramática sem os referidos
clíticos. Em outras palavras, o enfraquecimento da concordância afetou o
estatuto dos clíticos, que perderam a condição de núcleos, começando a
provocar a erosão no quadro de pronomes átonos do PB a partir da terceira
pessoa e mais freqüentemente na função acusativa. Assim, o objeto nulo e o
pronome lexical nas funções acusativa e dativa passaram a fazer parte da
experiência engatilhadora, à medida que o seu uso ia crescendo, no processo
de aquisição da linguagem, enquanto os clíticos, apesar de ainda aparecerem
em raras situações formais de fala, foram simplesmente ignorados pelas
crianças brasileiras. Por conta disso, diz-se que tais clíticos não fazem parte
da gramática desses indivíduos, sendo o seu uso aprendido via escolarização
e, portanto, bem posterior ao processo natural de aquisição da língua.
63
3.1.4- A natureza do clítico em português
Por ser o clítico considerado pela tradição escolar como a variante
padrão para a realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira
pessoa, serão levantados alguns aspectos acerca da sua caracterização
categorial, o que pode contribuir para elucidar as diferenças apontadas na
literatura acadêmica sobre a sua distribuição e o seu comportamento no PB e
no PE.
3.1.4.1- Clíticos especiais e clíticos simples
Dentre os itens lexicais clíticos, podem ser citados os pronomes átonos
(aqui referidos como clíticos), os artigos e as preposições, que têm em comum
a propriedade de serem acentualmente dependentes, ou seja, dependem de
outros itens lexicais com acentuação própria, denominados como seus
hospedeiros. Por essa razão, essas subclasses de palavras não podem
ocorrer isoladamente no discurso. Vejam-se os exemplos extraídos de I.
Duarte (2003: 829):
(01) — Vens de Lisboa ou vais para Lisboa?
*— Para. vs. — Para Lisboa.
(02) — Ele terá lido o livro ou a revista?
*— A. vs. — A revista.
(03) — Ele falou a alguém quando entrou na sala?
*— Me! vs. — A mim!
Deve-se fazer, no entanto, uma distinção entre os itens lexicais clíticos,
uma vez que apresentam comportamento diverso. Assim, Zwicky (1977)
estabelece dois tipos de clíticos: os especiais (special clitics) e os simples. O
primeiro grupo compreende os pronomes átonos, enquanto o segundo abrange
os artigos e as preposições. Tal distinção se sustenta a partir da observação
de um conjunto de propriedades formais, que serão ilustradas a partir de
64
exemplos extraídos de I. Duarte. (2003: 830-831).
I. Ordem canônica — Diferentemente dos clíticos simples, os especiais,
mesmo quando constituem um complemento do verbo, não ocorrem na posição
canônica própria desse complemento, mas em adjacência ao verbo. Os
exemplos seguintes ilustram a diferença entre clíticos especiais (04a e 05a) e
clíticos simples (04b e 05b) na observância da ordem canônica em português,
tida como Verbo + Objeto direto + Objeto indireto:
(04) (a) Eles enviaram-lhes todas as informações pela internet. (V + OI + OD)
(b) Eles enviaram todas as informações [aos que solicitaram] pela
internet. (V + OD + OI)
(05) (a) Ele só os comprou porque estavam em promoção. (OD + V)
(b) Ele só comprou [os que estavam no supermercado] porque estavam
em promoção. (V + OD)
I. Duarte (2003) ainda observa que, na ocorrência simultânea de vários
clíticos, a ordem em que surgem é diversa da canônica, aparecendo primeiro o
clítico impessoal (sujeito), o clítico dativo e, por último, o acusativo. Veja-se o
exemplo da autora:
(06) Não se lhos comprou, porque não estavam em promoção.
II. Seleção do hospedeiro — Os clíticos especiais apresentam um hospedeiro
categorialmente específico, o verbo, ao contrário dos artigos e das preposições
que dependem acentualmente de qualquer palavra que se lhes siga
imediatamente. Observem-se os exemplos com o hospedeiro sublinhado:
(07) (a) Ela conhece-lhes todos os gostos.
(b) Nós estamos-lhe muito gratos.
(c) Ela conhece todos os gostos deles. vs. *Ela conhece todos os lhes
gostos.
(d) Nós estamos muito gratos a ele. vs. *Nós estamos muito gratos-lhe.
65
(08) (a) O dicionário N (…)
(b) O volumoso A dicionário de Língua Portuguesa (…)
(09) (a) De todos Quant eles, o mais simpático é o António.
(b) D(e) eles Pron, o mais simpático é o António.
(c) De livros N, o Pedro só fala com os colegas.
III. Mobilidade — Os clíticos especiais exibem uma posição móvel em relação
ao seu hospedeiro, ao contrário dos clíticos simples que têm posição fixa.
Vejam-se os exemplos:
(10) (a) Esses livros só se vendem nas grandes livrarias.
(b) Esses livros vendem-se só nas grandes livrarias.
(c) Esses livros vender-se-iam também na livraria da Faculdade.
(11) (a) Esses livros são para nós.
(b) *Esses livros são nós para.
(12) (a) Os livros chegaram.
(b) *Livros os chegaram.
IV. Propriedades fonológicas idiossincráticas — Os clíticos especiais e seus
hospedeiros, em certos contextos, sofrem transformações fonológicas
peculiares, consagradas na língua padrão, o que os distingue de seus
homônimos, os artigos definidos. Observe-se o contraste entre (13) e (14):
(13) (a) eu como-o; tu come-lo; podes comê-lo; eles comem-no.
(b) Damos; damo-nos.
(14) (a) Comes o bolo. vs. *Come lo bolo.
(b) Damos nos cursos essas matérias. vs. *Damo nos cursos essas
matérias.
66
O pronome clítico o (e flexões) assume a forma lo quando seu
hospedeiro, isto é, a forma verbal à qual se cliticiza, termina em /r/ ou /S/,
ocorrendo simultaneamente o apagamento desses elementos. Se a forma
verbal termina em nasal, apresenta-se o clítico como no. No entanto, os
clíticos simples não estão sujeitos a tal tipo de alteração, conforme ficou
exemplificado em (14a).
3.1.4.2- Tipologia dos clíticos especiais
Estabelecida a distinção entre clíticos especiais e simples, passa-se a
analisar o estatuto do clítico pronominal a partir de sua tipologia, o que
suscitará a discussão acerca da natureza categorial desse elemento.
É sabido que os pronomes clíticos são classificados pela gramática
tradicional como pronomes pessoais, ou seja, vocábulos que denotam a
pessoa gramatical das entidades participantes do processo de comunicação,
ocorrendo associados à função de complementos dos verbos, em contraste
com os pronomes tônicos retos que aparecem na função de sujeito. Vejam-se
os exemplos de Rocha Lima (1998: 317):
(15) Quer falar-me? Mandara-nos as cópias. (1ª pessoa)
(16) Obedeço-te. Recomendo-vos silêncio. (2ª pessoa)
(17) Mande-lhe recado. Ele se reserva o direito de intervir. (3ª pessoa)
De fato, os exemplos acima se enquadram na definição tradicional de
pronome pessoal, uma vez que designam uma das entidades envolvidas no
ato de comunicação. No entanto, não se pode dizer o mesmo dos exemplos
apresentados abaixo, também extraídos de Rocha Lima (p. 329):
(18) Capazes e enérgicos eles o são.
(19) Poderiam castigá-los, mas não o quiseram.
67
Em (18) e (19), percebe-se que o clítico retoma um predicativo e uma
oração, respectivamente, e não uma entidade, sendo invariável. Conquanto a
origem desse elemento tenha sido o pronome pessoal neutro latino, illud, sua
forma no português contemporâneo se deve ao fato de o gênero neutro do
latim ter sido assimilado, quase por completo, à forma não marcada, isto é, ao
masculino singular. Por conseguinte, são justamente os pronomes fortes
demonstrativos neutros isso e aquilo os correlatos do clítico invariável. Tal fato
é atestado em construções em que esse clítico aparece em posição argumental
de objeto direto de uma frase que, na voz passiva, não admite como sujeito o
pronome ele, mas somente o demonstrativo neutro. Observe-se o exemplo
extraído de I. Duarte (2003: 828):
(20) (a) A Ana disse-o.
(b) Isso foi dito pela Ana.
(c) *Ele foi dito pela Ana.
Do mesmo modo, o pronome oblíquo reflexivo, em certas ocorrências,
não tem como função designar uma entidade, mas destransitivizar o verbo, ou
seja, suspender o papel semântico de agente. Rocha Lima (1998: 124)
descreve esses casos como voz medial dinâmica, “em que se exprime a
mudança de situação do sujeito, mas sem a intervenção da vontade dele”.
Veja-se o exemplo do autor:
(21) O gelo derreteu-se.
Pelo exposto, evidenciou-se que os clíticos especiais não se limitam a
designar uma entidade ou uma pessoa do discurso, mas podem também exibir
uma função predicativa ou revestir-se de propriedades morfossintáticas
características de alguns sufixos derivacionais, como a de suspensão do papel
semântico de agente, por exemplo. Assim, o exame da tipologia dos clíticos
especiais permitirá explicitar ainda mais essas diferenças.
Entre as propostas de estabelecimento de uma tipologia de clíticos
68
especiais presentes na literatura acadêmica, verifica-se que não há diferenças
substanciais. Por esse motivo, neste trabalho será adotada a sistematização
encontrada no trabalho de I. Duarte et al. (2001), cujos exemplos também
serão transcritos.
I. Clíticos argumentais
(a) De referência definida: pronominais pessoais e reflexivos — Ocupam a
posição de argumentos de verbos (bi)transitivos e de verbos de marcação de
caso ou de reestruturação/ união de orações.
(22) Seqüestro é crime hediondo. E o fato de ser índio não lhe dá o direito de
cometê-lo. (In Época, 116/2000)
(23) O bom texto permite perceber como dois destinos podem se cruzar. (In
Época, 109/2000)
(24) A Ana mandou-o a ele comprar os bilhetes para o espetáculo.
Apesar de esses clíticos funcionarem como argumentos do verbo, não
costumam ocupar a posição canônica destes. Assim, em línguas como o
português, essas posições podem ser preenchidas por material lexical, o que
se denomina construção de redobro de clítico. Essa possibilidade de
aparecerem elementos correferentes ao clítico vem justamente confirmar o fato
de que este não ocupa a posição do argumento a que se refere. Vejam-se os
exemplos abaixo:
(25) Ser índio não lhe dá esse direito a ele.
(26) Tu conheces-te a ti próprio como ninguém.
(27) Dois destinos podem-se cruzar um com o outro.
69
Embora não admita ser redobrado por um demonstrativo, inclui-se
também entre os clíticos argumentais o pronome invariável demonstrativo, que
denota situações e estados de coisas, representando uma oração. Veja-se,
porém, que o redobro ocorre na forma de oração:
(28) Que não era culpado, ele não o declarou abertamente.
(28’) *Ele não o declarou a isso abertamente.
(b) De referência arbitrária: se nominativo — Constitui um dos casos de se
impessoal e denota uma entidade arbitrária, não admitindo redobro. O sujeito
associado a esse clítico é interpretado como indefinido e não específico,
podendo ser parafraseado por expressões indefinidas como alguém.
(29) Aluga-se casas.
(29’) Alguém aluga casas.
(29’’) *Alguém aluga-se casas.
I. Duarte et al. (2001: 4) chamam atenção para o fato de se-nominativo
ser obrigatoriamente referencial, visto que “não pode ocorrer associado a uma
posição de pronome expletivo” a que a tradição escolar se refere como sujeito
inexistente. Vejam-se os exemplos:
(30) *Há-se muitos livros nesta biblioteca.
(31) *Parece-se a toda a gente que os professores compram livros em
excesso.
II. Clíticos quase-argumentais
(a) Com estatuto argumental e funcional: se passivo — Tem por referente uma
entidade arbitrária identificada com o “agente da passiva”. Tal como o se-
70
nominativo, não pode ser redobrado1.
(32) Venderam-se muitos livros hoje.
(32’) *Venderam-se muitos livros hoje por alguém.
Esse clítico acumula as funções atribuídas ao morfema passivo:
bloqueia a atribuição de relação temática à posição de argumento externo e de
caso acusativo ao argumento interno do verbo. Por conseguinte, tal
propriedade o aproxima do afixo de particípio inacusativo na construção
passiva (Muitos livros foram vendidos hoje.), ou seja, nessa construção o verbo
igualmente deixa de atribuir caso acusativo, uma vez que seu “objeto” está em
relação de concordância com ele, recebendo caso nominativo.
(b) Com valor referencial e estatuto não argumental: dativo ético e dativo de
posse — O dativo ético designa o locutor, que manifesta seu interesse na
realização da ação indicada pelo verbo. É, portanto, considerado um
beneficiário, embora não constitua argumento interno do verbo, sendo vedada
a possibilidade de redobro. Ocorre tipicamente com a primeira pessoa do
singular, como mostra (33), raramente aparecendo com a primeira do plural.
Quanto ao dativo de posse, verifica-se que igualmente não está correlacionado
com uma posição argumental do verbo, mas está associado a uma posição de
argumento ou de adjunto de um complemento do verbo, o que provavelmente
faz com que muitos professores de Português nas escolas o classifiquem como
adjunto adnominal em vez de objeto indireto. Ao contrário do primeiro, o dativo
de posse admite construções de redobro, como mostram (34) e (34’).
Observem-se os exemplos:
(33) A Paula comprou-me uma prenda ao irmão, que eu não te digo! (dativo
ético)
1 Isso vale para o português contemporâneo, uma vez que, conforme observa Bechara (2002: 96), no português de outros tempos, era possível encontrar expresso o agente da voz passiva pronominal: “Por ele o mar remoto navegamos/ Que só dos feios focas se navega” (CAMÕES, Os Lusíadas, I, 52)
71
(34) Ela conhece-lhe todos os defeitos. (dativo de posse)
(34’) Ela conhece-lhe todos os seus defeitos.
III. Clíticos não-argumentais: se ergativo/ anticausativo e se inerente — Não
constituem argumento do verbo. O clítico ergativo/ anticausativo tem por
função destransitivizar o verbo a que se associa, inibindo a presença do
argumento externo do verbo e permitindo ao argumento interno acusativo da
estrutura profunda assumir a função de sujeito na superfície em posição pré-
verbal, o que o difere do se-passivo. Já o se inerente não tem qualquer
influência na estrutura do predicador, sendo desprovido de conteúdo semântico
e morfossintático. Enquanto o se-ergativo/ anticausativo admite marginalmente
construções de redobro, o se-inerente não pode ser redobrado.
(35) O vidro partiu-se. (se-ergativo)
(35’) O vidro partiu-se por si próprio.
(36) A Ana zangou-se. (se-inerente)
IV. Clítico predicativo: clítico pronominal invariável — Aparece em estruturas
copulativas como um predicado nominal, constituindo o núcleo de mini-orações
selecionadas por um verbo tradicionalmente chamado de ligação. Tal como o
clítico invariável que retoma uma oração, não admite ser redobrado:
(37) Umas pestes, estas crianças sempre o foram.
(37’) *Umas pestes, estas crianças sempre o foram a isso.
Diante da diversidade de estatuto dos clíticos especiais, surge um
problema teórico: a natureza categorial desses elementos. Muito se tem
discutido a respeito desse tema nos âmbitos da Fonologia, da Morfologia e da
72
Sintaxe, havendo muitas vezes uma interface entre esses campos no
tratamento da questão.
De um modo geral, os estudos acadêmicos oscilam em determinar a
natureza categorial dos pronomes átonos ora como clíticos, ora como afixos.
Do ponto de vista fonológico, verifica-se que os clíticos pronominais dependem
de outra palavra por serem desprovidos de força acentual própria. Por
conseguinte, teriam propriedades sintáticas de uma palavra, mas propriedades
fonológicas de um afixo.
Entre os trabalhos que tratam da relação entre clíticos e afixos, merece
destaque o de Zwicky & Pullum (1983), que estabelece critérios para a
distinção entre essas categorias. Assim, são propostos os seguintes critérios:
seletividade, lacunas, alterações morfofonológicas, alterações semânticas e
contexto de ligação2. A seguir, serão feitas algumas considerações acerca dos
pronomes átonos do português a partir desses critérios.
I. Seletividade — Clíticos apresentam baixo grau de seletividade em relação a
seus hospedeiros, ao contrário dos afixos que têm alto grau. Quanto a esse
critério, percebe-se que os pronomes átonos do português assumem um
comportamento que os aproxima dos afixos, uma vez que se mostram muito
seletivos do ponto de vista sintático: o hospedeiro que os abriga é, por
excelência, o verbo3.
II. Lacunas — No conjunto de combinações hospedeiros-clíticos, lacunas
arbitrárias são menos características; ao passo que, no conjunto de
combinações raízes-afixos, são mais características. Indubitavelmente,
constata-se em português a existência de lacunas na combinação de raízes e
afixos, havendo paradigmas com ausência de uma ou mais formas, como é o
2 Ainda há um sexto critério, aplicação da sintaxe, que aqui foi desconsiderado devido à sua aplicação relacionar-se a um modelo gerativista de análise que foge ao escopo desta pesquisa. 3 Além da forma verbal, o pronome átono pode ter por hospedeiro a forma dêitica eis, de origem bastante controversa. Vieira (2002) observa que tal expressão poderia estar relacionada à forma verbal heis, contração de haveis, o que explicaria a sua propriedade de hospedar o pronome. Por outro lado, não houve uma ocorrência sequer desse dêitico nas amostras analisadas neste trabalho, o que sinaliza o caráter bastante periférico desse elemento na língua, ficando ele restrito a expressões cristalizadas.
73
caso dos verbos defectivos: abolir > Ø, aboles, abole, abolimos, abolis,
abolem; falir > Ø, Ø, Ø, falimos, falis, Ø. Por outro lado, o clítico pronominal do
português apresenta certa regularidade na sua combinação com o verbo, ou
seja, as formas verbais transitivas, em geral, podem receber um pronome
átono, quer sejam finitas ou não finitas. No entanto, para a aplicação desse
critério, devem-se formular duas restrições morfossintáticas: (a) em português,
o particípio, devido ao seu traço [+ nominal, + concluído], que o coloca no limite
entre verbo e nome, não acolhe o clítico pronominal tanto nas lexias verbais
simples, como nos complexos verbais, ficando a única exceção para o PB, que
rejeita a ênclise, mas admite a próclise do clítico ao particípio em complexos
verbais; (b) na terceira pessoa, a combinação clítico-verbo obedece à relação
sintática verbal, de modo que, por princípio, as formas acusativas só
ocorreriam com verbos transitivos diretos, enquanto as dativas se associariam
a verbos transitivos indiretos. A despeito dessas duas restrições, pode-se dizer
que o pronome átono assume comportamento típico de um clítico, visto que
são praticamente ilimitadas as possibilidades de sua combinação com o verbo,
principalmente considerando os clíticos de primeira e de segunda pessoas,
além do reflexivo de terceira pessoa, pelo fato de poderem desempenhar tanto
a função acusativa quanto a dativa.
III. Alterações morfofonológicas — Idiossincrasias morfofonológicas são mais
características entre os afixos do que entre os clíticos. Esse critério assinala o
comportamento característico dos afixos de sofrer adaptações em
determinados contextos, como, por exemplo, o alçamento da vogal do afixo
modo-temporal de pretérito imperfeito do indicativo na segunda pessoa do
plural (amava, amáveis; vendia, vendíeis) ou ainda a queda da consoante final
do afixo número-pessoal de primeira pessoa do plural diante de certos
pronomes átonos (damos; damo-nos). Considerando tal critério, vê-se que
somente o pronome átono acusativo de terceira pessoa sofre mudanças
morfofonológicas à semelhança dos afixos: o passa a lo/no. Já os demais
pronomes átonos não apresentam alterações em sua forma, o que descarta
qualquer tentativa de enquadrá-los como afixos segundo o critério aqui em
74
questão. Conquanto o pronome átono acusativo de terceira pessoa revele
idiossincrasias morfofonológicas em certos contextos, Vigário (1999) sustenta
que regras lexicais podem ser aplicadas a combinações de itens que não são
obtidas no léxico, o que rebateria a hipótese da natureza afixal do pronome
átono.
IV. Alterações semânticas — Idiossincrasias semânticas são típicas de afixos,
e não de clíticos. De fato, os afixos do português se prestam a produzir efeitos
semânticos em seus hospedeiros, especialmente os derivacionais: o sufixo de
grau, por exemplo, infunde à raiz à qual se liga noções de dimensão, ironia,
carinho. Já os pronomes átonos não possuem essa propriedade, porquanto
não produzem alterações semânticas no enunciado em que se inserem,
comportando-se como o sintagma nominal a que fazem referência. Por essa
razão, estariam mais próximos da categoria de clíticos que da de afixos.
V. Contexto de ligação — Clíticos podem vir ligados a material que já
contenha clíticos, mas afixos não podem vir ligados a material que já contenha
afixos. Considerando o português, deve-se acrescentar uma informação nesse
critério quanto aos afixos: estes admitem a co-ocorrência de outros afixos,
desde que não sejam de mesma natureza. Por exemplo, em lobas, ocorrem
dois afixos um após o outro, o de gênero e o de número, respectivamente; em
admiravelmente, aparecem também dois afixos, um sufixo formador de
adjetivos e um sufixo formador de advérbios, respectivamente. Assim, o que o
sistema bloqueia é a ocorrência simultânea de afixos de mesma natureza,
como em *desinfiel, em que há dois prefixos de negação4; *continuaçãomento,
em que há dois sufixos formadores de substantivo. Com relação ao pronome
átono, verifica-se que o sistema prevê que possa vir ligado a um material que já
contenha outro pronome átono, como em “Dá-se-lhe uma lição”; “Não se lhos
comprou”, tendo assim um comportamento de clítico e não de afixo.
Conforme se demonstrou acima, a aplicação ao português dos critérios
4 Na língua popular, porém, registra-se a ocorrência de um caso peculiar: desinfeliz.
75
propostos por Zwicky & Pullum (1983), na maioria dos casos, leva a crer que o
pronome átono não partilharia as propriedades de um afixo, o que tornaria
evidente o seu caráter mais clítico.
Contudo, o exame desses critérios evidentemente não fecha a discussão
sobre a natureza categorial do pronome átono português, porquanto há
estudos que, analisando esse mesmo elemento entre as línguas românicas,
defendem o seu caráter afixal, conforme aponta Vieira (2002). Para a defesa
do pronome átono como afixo, costumam ser aduzidos os seguintes fatos: (a)
o pronome átono é seletivo quanto ao hospedeiro sintático (conforme o critério
I); (b) a ligação do pronome acusativo de terceira pessoa a certas formas
verbais provoca alterações morfofonológicas tanto no verbo como no pronome;
(c) tal como o afixo que aparece adjacente à raiz a que se liga, o pronome
átono fica adjacente ao verbo; (d) o pronome átono altera-se em função de
exigências do seu hospedeiro (como o traço gramatical de caso na terceira
pessoa), assim como a seleção dos afixos flexionais é afetada pelas relações
gramaticais (de gênero, de número) do vocábulo que os contém; (e) os
pronomes átonos, tal como os afixos flexionais, pertencem a uma classe
fechada, isto é, constituem um inventário exaustivo de elementos, opondo-se
às classes abertas, como substantivo, adjetivo, verbo.
Por outro lado, considerar como afixos os pronomes átonos do
português significa admitir que estes sofreram um processo de
gramaticalização, que se dá, conforme descreve I. Duarte (2003), quando itens
lexicais perdem o seu valor referencial e predicativo e adquirem valores
associados a (i) classes de palavras cuja função essencial é estabelecer
conexões interlingüísticas, como as preposições e as conjunções; (ii) unidades
funcionais abaixo do nível da palavra, como os afixos. Na verdade, a tipologia
dos clíticos especiais apresentada anteriormente evidencia que esses
elementos se encontram em estágios distintos de gramaticalização em
português: por um lado, os que exibem conteúdo argumental ou predicativo e,
portanto, apresentam uma aproximação com os sintagmas que ocupam essas
posições; por outro, os clíticos passivo, ergativo e inerente, que se aproximam
dos afixos destransitivizadores. No entanto, também em I. Duarte (2003),
76
observa-se que mesmo os clíticos mais gramaticalizados, como o se em (38),
não seriam verdadeiros afixos, uma vez que não apresentam comportamento
próprio de um sufixo derivacional, como o da passiva verbal, conforme se
verifica em (39)-(41), isto é, ocorrência exclusivamente em posição pós-verbal
e em adjacência somente ao verbo principal que destransitivizam. Comparem-
se os exemplos de I. Duarte (2003: 846):
(38) (a) Entornam-se os cafés.
(b) Já se entornaram os cafés.
(39) (a) O empregado limpou os cafés já entornados.
(b) *O empregado limpou os cafés já dosentorna.
(40) Tinham-se entornado vários cafés.
(41) (a) Vários cafés tinham sido entornados.
(b) *Vários cafés tidos sido entorna.
Por conseguinte, a caracterização do pronome átono como afixo não é
unanimidade entre os estudiosos, havendo autores, entre os quais Vigário
(1999) e I. Duarte et al. (2001), que defendem a sua natureza categorial como
clítico. Os argumentos que são apresentados para dar suporte a essa posição
são os seguintes: (i) os clíticos especiais se ligam a uma instância sintática, e
não a raízes vocabulares; (ii) por não serem formas presas, têm os clíticos
pronominais mobilidade no enunciado, podendo apresentar-se antepostos ou
pospostos ao verbo. Com relação a esse segundo argumento, I. Duarte et al.
(2001: 9) chegam a afirmar que,
por muito próximos que se encontrem dos afixos, os clíticos sintácticos ainda são entidades distintas, pelo que não ocupam uma posição fixa relativamente a seu hospedeiro.
Em suma, os aspectos ora levantados acerca da natureza do clítico
pronominal do português permitem caracterizá-lo, mediante a observação do
77
seu comportamento diante do hospedeiro verbal a que se associa, como um
item lexical que partilha um estatuto intermediário entre os vocábulos
acentuados e os afixos, o que poderia explicar o comportamento desse
elemento no PB como um sintagma, segundo propõe Galves (1993, 2001) ao
descrever o enfraquecimento da concordância na variedade brasileira,
conforme foi exposto em 2.3.1.
3.2- Hipóteses
Assumindo as idéias defendidas por Galves sobre o fato de o PB e o PE
constituírem duas Línguas-I distintas (1998) e sobre o enfraquecimento da
concordância na variedade brasileira (1993, 2001), são as seguintes as
hipóteses que orientam este trabalho:
a) por focalizar a modalidade escrita num contínuo oralidade-letramento (cf.
seção 3.3), acredita-se que ambas as variedades apresentem como ponto
comum um significativo emprego de clíticos na representação do acusativo e
do dativo anafóricos de terceira pessoa, porém sob diferentes condições: no
PE, em todos os níveis do contínuo, por já ser esse uso parte da gramática,
Língua-I, dos indivíduos (cf. Freire, 2000); no PB, mais freqüente numa das
extremidades do contínuo, ou seja, nos textos de maior letramento, por serem
os clíticos elementos oriundos da aprendizagem (e não da aquisição) da língua
escrita codificada pela tradição literária, que representa a “norma oficial”,
construída à “imagem e semelhança” da norma portuguesa, que serve de base
ao ensino do português (cf. Pagoto, 1999);
b) com relação à variedade brasileira, devido à aprendizagem tardia dos clíticos
por meio da escolarização, espera-se encontrar a ocorrência de outras
estratégias de representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira
pessoa em todos os níveis do contínuo, particularmente as não sujeitas à
correção pela escola, o que já sinalizaria a implementação de tais estratégias
na modalidade escrita;
c) postula-se também que a implementação do objeto nulo em lugar dos clíticos
acusativo e dativo de terceira pessoa na escrita brasileira obedeça a uma
hierarquia referencial, a exemplo do que Cyrino, Duarte e Kato (2000)
78
propõem: um alto grau de ocorrência nos contextos [– referenciais], um grau
médio entre os contextos [+ referenciais; – animados] e um grau mais baixo
nos contextos [+ referenciais; + animados];
d) ainda em relação ao objeto nulo, espera-se que no PE ele seja
sintaticamente mais restrito do que no PB, conforme aponta Raposo (1986).
As hipóteses acima formuladas remetem a duas grandes questões
discutidas por Kato (no prelo): a natureza da escrita do adulto letrado brasileiro
e a maneira como ele obtém esse conhecimento lingüístico.
Acerca da primeira questão, especula-se que a escrita do letrado
brasileiro adulto se apresenta sob uma das seguintes formas: (a) como o
conhecimento gramatical de um indivíduo de alguma época passada, devido ao
caráter conservador das normas da modalidade escrita; (b) como o
conhecimento lingüístico do falante português, haja vista as prescrições da
gramática normativa em razão de acordos culturais entre Brasil e Portugal, com
vistas à unidade lingüística. No entanto, a autora supracitada acredita que a
escrita do letrado brasileiro hodierno se apresenta como algo distinto desses
dois primeiros modelos.
Quanto à segunda questão, o problema que se coloca é o possível
acesso à GU na aquisição/aprendizagem da escrita: a mesma autora defende
que o letrado brasileiro obtém esse conhecimento lingüístico mediante acesso
indireto, isto é, através da primeira gramática que, no caso, é a da língua
falada. Para fundamentar essa hipótese, a autora parte da idéia de que a
gramática da L1 contém uma periferia marcada em que valores paramétricos
opostos aos da gramática nuclear estariam presentes com caráter recessivo,
mas que poderiam se mostrar competitivos, durante a escolarização, em
relação aos valores que se encontram definidos na gramática nuclear.
Dessa forma, a confirmação das hipóteses formuladas para a presente
pesquisa certamente fornecerá suporte às idéias defendidas por Kato (no prelo)
a respeito da natureza da escrita e da maneira como esta é obtida pelo letrado
brasileiro adulto.
3.3- Metodologia
Para alcançar seus objetivos, este trabalho combina o arsenal teórico e
metodológico da Sociolingüística Variacionista aos pressupostos da teoria de
Princípios e Parâmetros na análise dos dados, seguindo uma das tendências
79
atuais dos estudos variacionistas.
Foram selecionadas duas amostras, uma para o PB e outra para o PE, a
partir de textos de jornais e de seus respectivos suplementos, representativos
do Rio de Janeiro e de Lisboa, além de histórias em quadrinhos de gibis que
circulam nas bancas dessas cidades.
Os diferentes gêneros textuais da amostra brasileira foram produzidos
entre os anos de 1995 e 2004, tendo sido colhidos aleatoriamente a partir dos
seguintes veículos: Jornal do Brasil, O Globo, gibis da Turma da Mônica e
gibis da Disney. Quanto à amostra portuguesa, os textos datam do período
entre 1998 e 2004 e foram colhidos aleatoriamente a partir dos seguintes
veículos: Diário de Notícias, Expresso, Público e gibis da Disney.
Os dados de escrita de cada amostra foram organizados num contínuo,
seguindo a metodologia proposta por Bortoni-Ricardo (2004), segundo a qual o
fenômeno da variação lingüística deve ser compreendido a partir de três
contínuos fundamentais: contínuo de urbanização, contínuo de oralidade-
letramento e contínuo de monitoração estilística. Como as amostras das duas
variedades não contemplam os contínuos urbanização, por não estarem
envolvidas variedades urbana versus rural, e monitoração estilística, por não
ser possível determinar com exatidão o grau de planejamento/espontaneidade
dos textos colhidos, optou-se por distribuir os dados das amostras no contínuo
oralidade-letramento. Num extremo, estão os dados cuja produção é mediada
pela língua escrita, sendo esta entendida como um padrão de comunicação
sistematizado pela tradição literária e altamente prestigiado nas camadas
sociais letradas; no outro extremo, estão aqueles cuja produção busca certa
transposição da fala para a escrita. Esse contínuo pode ser imaginado assim:
........................................►
Eventos de Eventos de oralidade letramento
Considerando a mediação da língua escrita, nos termos propostos por
Bortoni-Ricardo (2004), os gêneros textuais presentes nas duas amostras
foram distribuídos em três grupos no contínuo oralidade-letramento:
80
a) [+ oralidade/ – letramento]: tiras e histórias em quadrinhos — por se
caracterizarem como textos que intencionalmente tentam reproduzir a fala, não
tendo, pois, compromisso direto com a língua escrita;
b) [+ oralidade/ + letramento]: crônicas, trechos de fala transcrita em
reportagens e entrevistas transcritas — por serem textos que mantêm pontos
de contato com a língua codificada pela tradição gramatical, mas que também
se aproximam de eventos de oralidade devido ao seu caráter muitas vezes
humorístico, como nas crônicas, ou até mesmo mais coloquial, como no caso
das falas transcritas;
c) [– oralidade/ + letramento]: reportagens, editoriais, críticas de livro/filme e
artigos de opinião5 — por serem gêneros em que se percebe um maior
compromisso com a língua escrita padrão, uma vez que há uma cobrança
social de certas condições como objetividade, concisão, clareza e observância
das prescrições gramaticais.
A tabela a seguir apresenta o número de textos dos diferentes gêneros
utilizados para a análise:
Tabela 3.1. Quantidade de cada tipo de texto nas amostras levantadas
GRUPO TIPO DE TEXTO PB PE Tiras em quadrinhos 12 — [+ oralidade/ – letramento] Histórias em quadrinhos 27 20 Crônicas 16 17 Trechos de fala em reportagem 17 03
[+ oralidade/ + letramento]
Entrevistas transcritas6 29 07 Reportagens 53 26 Editoriais 02 03 Críticas de livro/filme 03 05
[– oralidade/ + letramento]
Artigos de opinião 15 05 TOTAL DE TEXTOS 174 86
A diferença no total de textos entre as duas amostras se explica pelo
fato de a ocorrência de contextos de acusativo e de dativo anafóricos ter sido
5 Esse tipo de texto tem como característica fundamental a exposição de idéias a respeito de um assunto à semelhança de uma redação dissertativo-argumentativa. 6 As entrevistas do PB eram curtas em contraste com as do PE, que eram bastante extensas, o que explica um número maior de entrevistas brasileiras.
81
mais freqüente nos textos do PE do que nos do PB, de modo que foi
necessário aumentar a quantidade de textos da amostra brasileira para
conseguir um equilíbrio no número de dados entre as duas variedades.
Mesmo sabendo, como admite Bortoni-Ricardo (2004: 62), que “não
existem fronteiras bem marcadas entre os eventos de oralidade e de
letramento” e que tais “fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições”,
pretende-se com a distribuição aqui proposta investigar, particularmente no PB,
até que ponto a tradição gramatical que serve de base ao ensino de português
consegue refletir-se ao longo do contínuo, quanto à realização do acusativo e
do dativo anafóricos de terceira pessoa, o que está em consonância com o
questionamento feito por Menon (1996) a respeito do que seria o padrão de
escrita efetivamente utilizado pela imprensa brasileira.
Entre os condicionamentos lingüísticos, procedeu-se ao levantamento de
variáveis dependente e independentes específicas para cada função, conforme
se passa a expor a seguir.
3.3.1- Função acusativa
Para a função acusativa, foi levantada como variável dependente o tipo
de realização do acusativo anafórico: clítico, pronome lexical, SN anafórico e
objeto nulo. Para a identificação deste, usou-se como critério a possibilidade
de sua substituição por um clítico acusativo. Observem-se os exemplos das
variantes candidatas à realização da variável:
a) clítico
(001) Esse livro me persegue há muito tempo. Comecei a escrevê-lo em
1967. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 28-03-1999 –
Entrevista)7
(002) Se é certo que a gente não escolhe a família, ainda assim
conhecemo-la. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-
2000 – Crônica)
7 Nos exemplos das amostras, a variante focalizada aparece sempre em negrito e em itálico, com o seu antecedente sublinhado. Além disso, são identificados entre parênteses a variedade do português, o veículo, a data da publicação e o tipo de texto.
82
b) pronome lexical
(003) Quando eu nasci, a enfermeira chorou! É que eu me desviei do tapa e o
médico acertou ela! (PB: Mônica, n.º 100, 1995 – História em
quadrinhos)
c) SN anafórico8 representado por
(i) lexemas com núcleo idêntico ao do SN antecedente, com ou sem
mudança de determinante
(004) Foi dele a iniciativa de reunir os partidos políticos e fazer um acordo
inédito que livrou a cidade dos galhardetes e de outras formas de
propaganda que sujaram a cidade em campanhas passadas. (PB: O
Globo, 12-09-2004 – Reportagem)
(005) Entretanto tive um caso com o Júlio Isidro que durou dois anos, e foi
uma fase engraçada da minha vida. Conheci o Júlio por via dessa
gente toda e começo a trabalhar com ele, curiosamente depois de nos
termos separado. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-
2000 – Entrevista)
(006) Nossa cultura é muito machista e terminamos por reproduzir essa
cultura quando botamos só as meninas para cuidar da casa. (PB:
Revista Domingo do Jornal do Brasil, 25-04-1999 – Entrevista)
(007) A colecção é fantástica, tem uns sapatos transcendentes e depois, no
meio disto tudo aparecem umas plataformas! Por que é que ela insiste
em fazer estas plataformas? (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 08-04-2000 – Entrevista)
8 As diferentes representações do SN anafórico apontadas neste trabalho foram descritas por Koch (1998) ao tratar da coesão referencial.
83
(ii) expressões sinônimas ou quase sinônimas
(008) Era preciso dar ocupação aos meninos e às meninas do morro, para que
eles não se percam. Temos necessidade de cursos, para ocupar os
jovens. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Trecho de fala em reportagem)
(009) Um clandestino! Capturem o intruso! (PE: Disney Especial, n.º 222,
outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(iii) nomes genéricos (coisa, trambolho, fato…)
(010) “Ah, sim! E traga o seu piano!” “Essa é boa! Como vou carregar esse
trambolho?” (PB: Almanacão de férias da Turma da Mônica, n.º 36,
2002 – História em quadrinhos)
(011) “Hem! Pensei que ele fosse alérgico a frutos do mar!” “É alérgico, sim!
Sempre que come estas coisas, ele tem pesadelos!” (PE: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(iv) epítetos, isto é, grupos nominais usados como expressões referenciais
graças ao conhecimento de mundo
(012) E foi apostando alto na sua teimosia que Nizan Guanaes a despachou
para uma conversa decisiva com Zeca Pagodinho [= cantor de pagode]
quando quis convencer o cantor a trocar o casamento com a cerveja
Schincariol por um “antigo amor”, a Brahma. (PB: O Globo, 12-09-2004
– Reportagem)
(013) Miguel Coelho chamou a António Mexia [= integrante do governo
português] “o ministro das boas notícias e das obras virtuais”, epíteto
que não pareceu perturbar o governante […] (PE: Público, 10-11-2004
– Reportagem)
84
(v) demonstrativo isso
(014) Preciso colocar mais fotos minhas nas paredes do apartamento. Ainda
não fiz isso por falta de organização, não por preguiça. (PB:
Suplemento Casa & Decoração do Jornal do Brasil, 02-05-2004 –
Entrevista)
(015) A grande faculdade é um povo conseguir gozar com as suas próprias
fraquezas. Julgo que o português não faz isso porque agora as
fraquezas também são demais… (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 04-03-2000 – Entrevista)
d) Objeto nulo ( __ )
(016) Meses atrás, viu um cavalete na vitrine, quase entrou e comprou __.
(PB: Caderno H do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
(017) Don Mendilairo olhou-o arrogante e perguntou-lhe pela licença de venda
no passeio em frente à fachada. O homem não tinha __. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
Na definição das variáveis independentes, foram levantados, com base
nos resultados obtidos nos trabalhos citados, os seguintes grupos de fatores:
a) Contínuo de oralidade-letramento: [+ oralidade/ – letramento]; [+ oralidade/
+ letramento]; [– oralidade/ + letramento] — Pretende-se verificar até que
ponto o processo de letramento, baseado na tradição gramatical que prescreve
o clítico, consegue de fato influenciar a expressão do acusativo anafórico de
terceira pessoa nas duas variedades do português. Na seção 4.1 do próximo
capítulo, aparecem exemplificados os diferentes pontos do contínuo com todas
as variantes usadas na realização da variável que ocorrem em cada um deles.
b) Antecedente do acusativo anafórico — Segundo os estudos diacrônicos de
Cyrino (1993, 1997), eram os contextos oracionais e predicativos que desde o
85
século XVI apresentavam variação entre o uso do clítico e do objeto nulo,
passando este último a generalizar-se na variedade brasileira, a partir do
século XIX. Em razão disso, tenciona-se investigar o grau de interferência do
tipo de antecedente do acusativo anafórico de terceira pessoa na escolha das
variantes candidatas à sua realização.
(i) SN9
(018) Enquanto os fiéis andam em kombis, o pastor viaja numa picape Land
Rover, ano 2003, com preço de mercado em torno de R$150 mil,
comprada por uma empresária só para transportá-lo. (PB: O Globo, 12-
09-2004 – Reportagem)
(019) A minha mulher no início não gostava nada da minha profissão. Eu
viajava muito e não a acompanhava quando eles estavam doentes, etc.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)
(ii) oração
(020) Isso dá um orgulho danado, porque já faz tempo que eu joguei lá e as
pessoas não esquecem __. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Entrevista)
(021) Mas também se vai desgastando o poder em Lisboa. São os próprios
intérpretes que o confessam, em desabafos desalentadores. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Crítica de livro)
9 Um ponto de investigação bastante interessante sobre a implementação do objeto nulo como estratégia alternativa ao clítico acusativo no PB pode estar nos antecedentes representados por nomes contáveis no singular sem determinante (SNs nus), como aparece nos exemplos abaixo: (i) Mulher é negócio tão bem bolado, que se você jogar __ pro alto não tem importância se der cara ou coroa. (PB: Segundo Caderno de O Globo, 26-07-2004 – Crônica) (ii) Quando acabava a água, pegava gelo num frigorífico aqui perto e derretia __. (PB: O Globo, 12-09- 2004 – Trecho de fala em reportagem) No entanto, por ter havido apenas duas ocorrências na amostra do PB (ambas com objeto nulo), não foi possível mantê-las como um fator à parte. Quanto à amostra do PE, não se registrou uma ocorrência sequer desse tipo de antecedente.
86
(iii) predicativo
(022) E, no entanto, se subúrbio é aquela parte da cidade que se distancia do
Centro, então Ipanema, Leblon e São Conrado também o são — mas
quem assume? (PB: Segundo Caderno de O Globo, 16-05-2004 –
Reportagem)
(023) O Pacheco Pereira andou por alguma coisa que se chamava de
Maoísmo, mas em meu entender não o era. (PE: Suplemento DNA do
Diário de Notícias, 26-02-2000 – Entrevista)
Acerca da categoria vazia em relação ao seu antecedente, Matos (2003:
884) propõe uma distinção entre o objeto nulo que aparece em contextos do
tipo (i) e o que ela chama de anáfora do complemento nulo, que ocorre nos
casos (ii) e (iii), sendo esta correspondente “a um constituinte frásico ou a um
pronominal demonstrativo invariável, o clítico o ou o pronome não-clítico isso,
que neste contexto denota uma situação e não uma entidade”. Como os
contextos oracionais e predicativos também podem manifestar-se como um
clítico acusativo, os casos de anáfora do complemento nulo foram
considerados, de um modo geral, ao lado do objeto nulo que retoma um SN,
uma vez que o foco deste trabalho é a realização do acusativo anafórico de
terceira pessoa nas duas variedades e não o objeto nulo em si mesmo. No
entanto, por ser pertinente, essa distinção será retomada na análise do fator
contexto de ilha sintática, uma vez que se revela importante na caracterização
do objeto nulo do PB em contraste com o do PE, conforme será exposto na
seção 4.1.1.4.
c) Forma verbal: formas simples flexionadas; formas simples não flexionadas
(infinitivo e gerúndio); formas complexas com tempo (locução com infinitivo,
com gerúndio e com particípio) — Segundo apontam trabalhos a respeito do
PB oral, como o de Duarte (1986), os únicos contextos em que o clítico
acusativo ainda aparece são as formas simples do indicativo, em especial o
presente e o pretérito perfeito, além das formas de infinitivo. Por conta disso,
87
busca-se investigar se a recuperação do clítico na escrita do PB apresenta as
mesmas restrições estruturais encontradas na fala em favor das demais
estratégias de realização do acusativo anafórico de terceira pessoa, o que
pode revelar diferenças significativas entre essa variedade e a européia.
d) Ordem do clítico — Esse grupo, que obviamente não se aplica às demais
variantes, está ligado ao interesse de investigar a forma mais freqüente de
manifestação do clítico acusativo (com ou sem o onset silábico) no PB e no PE:
em Freire (2000), por exemplo, os escassos clíticos da amostra brasileira
apareceram todos enclíticos a formas de infinitivo, ou seja, com o seu onset
sempre superficilizado. Pretende-se, pois, comparar o comportamento das
duas variedades no que diz respeito à forma de realização do clítico na escrita,
a fim de evidenciar mais diferenças substanciais entre elas.
(i) próclise a formas simples10 sem os tradicionais atratores do PE11
(024) Enquanto Alahyde fala, sua mãe a interrompe diversas vezes. (PB:
Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
(025) O Eanes é uma pessoa que poucas pessoas compreenderam. […] Por
isso o retratei com os relógios, por causa da precisão. (PE: Suplemento
DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)
(ii) próclise a formas simples com os tradicionais atratores do PE
(026) Conheci a Joanna quando a entrevistei no programa de rádio que fazia
na FM O Dia em 1996. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 03-
10-1999 – Entrevista)
10 As formas simples não flexionadas constituídas por infinitivo foram consideradas à parte. 11 Saber exatamente o que é um atrator e até que ponto ele atua na próclise do PE é algo bastante complicado para um brasileiro. Brito et al. (2003: 853), por exemplo, dizem que os atratores de próclise são “palavras funcionais pesadas” que c-comandam e precedem o clítico no mesmo sintagma
entoacional: (i) Acho que [ao João, a Maria ofereceu-lhe um livro.] SEnt
(ii) Acho [que ao João, a Maria lhe ofereceu um livro.] SEnt
88
(027) Casado, com perto de quarenta anos de idade e quatro filhos, o meu pai
caiu numa crise neuro-depressiva que o manteve fechado em casa mais
de uma década. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-
2000 – Crônica)
(iii) ênclise a formas simples sem os tradicionais atratores do PE
(028) Cinco meses depois da queda do regime de Saddam, uma carta do
Ministério da Educação chegou à escola de Abdul Karim Ma’ashan
mandando-o para casa. (PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 –
Reportagem)
(029) Toda a acção criativa de Saramago recria o real e transforma-o. (PE:
Público, 09-12-1998 – Trecho de fala em reportagem)
(iv) ênclise a formas simples com os tradicionais atratores do PE
(030) “Olha, papai! A Zilá consegue sentar sozinha!” “Mesmo se soltá-la?”
(PB: Zoé & Zezé em O Globo, 27-07-2004 – Tira em quadrinhos)
(031) Sonhei, há dias, com a senhora dos correios. […] Sei que foi meu cheiro
a sabão azul que inquietou-a, de certo modo. (PE: Suplemento DNA do
Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(v) próclise ao verbo auxiliar em locuções verbais
(032) Sua mãe, Narcisa, guarda as medalhas. Do contrário, Edinanci já as
teria dado aos amigos, como já fez com alguns troféus. (PB: O Globo,
16-05-2004 – Reportagem)
(033) A sua percepção da situação foi a de um sábio que vê a dureza da
realidade e entende — sem ser indulgente — que não a deve agravar.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Crônica)
89
(vi) ênclise ao verbo auxiliar em locuções verbais
(034) Marta Agrela tinha apenas três anos quando começou a trocar o
português da mãe por expressões inglesas. Por graça, a mãe tinha-a
inscrito no Kid’s Club da Lapa […] (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 11-03-2000 – Reportagem)
(vii) próclise ao verbo principal em locuções verbais
(035) Para ser franca, porque podia não o ser, os meus gostos literários são
menos gordos! (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-
2000 – Artigo de opinião)
(viii) ênclise ao verbo principal em locuções verbais com infinitivo
(036) Luiz Paulo Conde (PMDB), que disputa com Cesar a paternidade do
projeto, diz que vai ampliá-lo. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)
(037) Disse, sim, e dê-me essa caneta! Vou levá-la de volta e reclamar na
loja… mais tarde! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 –
História em quadrinhos)
(ix) ênclise ao infinitivo não integrante de uma locução verbal
(038) Seguir o modelo que deu certo e adaptá-lo à área industrial. (PB: O
Globo, 13-07-2003 – Entrevista)
(039) É brutal, de tal maneira que, quando acabámos, a minha vontade era
matar a Lola, mas matá-la mesmo. (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 04-03-2000 – Entrevista)
90
(x) próclise ao infinitivo regido por preposição
(040) Mas as cotações voltaram a subir depois das medidas duras que FHC
adoptara contra o estado rebelde e com o anúncio da reunião de 18
governadores estaduais aliados do Presidente, para o apoiar. (PE:
Expresso, 16-01-1999 – Reportagem)
(xi) ênclise ao infinitivo regido por preposição
(041) Acontecera que, discutindo a libertação do traficante Dudu para uma
visita familiar, equivocadamente atribuí a decisão de soltá-lo a um
parecer de psicólogos do sistema penal. (PB: Segundo Caderno de O
Globo, 04-08-2004 – Crônica)
(042) No caso do primeiro crepe, o ideal é que seja uma das meninas a
prepará-lo. (Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 –
Reportagem)
e) Transitividade verbal — Segundo os principais trabalhos sobre o PB oral
envolvendo a realização do acusativo anafórico de terceira pessoa, as
estruturas complexas, como em (iii), (vi) e (vii), favorecem o uso do pronome
lexical em detrimento do clítico, o que distancia a variedade brasileira da
lusitana, que não costuma usar o pronome lexical em função acusativa. Já o
clítico, por outro lado, ficaria restrito a estruturas simples (SVO). Por
conseguinte, tem-se o interesse em verificar se o comportamento dessas
estruturas na escrita é ou não similar ao que apontam os resultados das
pesquisas lingüísticas sobre a fala dos dois sistemas, podendo mais uma vez
evidenciar diferenças significativas entre eles.
(i) verbo transitivo direto + objeto direto (SN)
(043) É um álbum duplo, um disco ao vivo e outro gravado em estúdio com um
monte de convidados. Não sabia como defini-lo. (PB: Revista Domingo
do Jornal do Brasil, 07-11-1999 – Entrevista)
91
(044) Passado o tempo recebemos a carta de uma senhora de Luanda, que
vivia bem, e queria saber quem era a criança para a ajudar. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)
(ii) verbo transitivo direto + objeto direto (oracional)
(045) Citar nomes eu não posso porque o conselho de fonoaudiologia não
permite __. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 26-09-1999 –
Entrevista)
(046) O pai de Jonathan sabia que a tristeza passa com o tempo e o desamor
se esvai; que o medo dos outros é uma coisa para se enfrentar e que os
homens se fazem esse confronto. O filho é que não sabia __. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 – Crítica de livro)
(iii) verbo transitivo direto + objeto direto (SN) + predicativo (SN) ou oblíquo
(SP)
(047) Foi Rodrigo Pimentel que chamou a atenção de Padilha para a
inexistência de filmes brasileiros que mostrassem “o outro lado” da
“guerrilha urbana”. O diretor o considera co-autor de seu projeto
ficcional. (PB: Caderno B do Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Crítica de
filme)
(048) […] os herdeiros abriram a tal sala e encontraram-na atafulhada de tudo.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(049) É, admito, eu era o único no meu meio que via os quadrinhos como uma
coisa séria. O mundo da arte via os quadrinhos com desprezo. (PB:
Revista Domingo do Jornal do Brasil, 17-10-1999 – Entrevista)
(050) Pela segunda vez na história americana, a Câmara dos Representantes
aprovou ontem a destituição de um Presidente dos Estados Unidos, o
democrata Bill Clinton, acusando-o de perjúrio e obstrução à justiça.
(PE: Público, 20-12-1998 – Reportagem)
92
(iv) verbo transitivo direto + objeto direto (oracional) + oblíquo
(051) Acho que as mulheres são mais autênticas, apesar de não gostarem de
rótulos. É muito mais freqüente que elas determinem o fim do
casamento. Reparei isso em grupos de discussão que organizei. (PB:
Revista Domingo do Jornal do Brasil, 05-12-1999 – Entrevista)
(052) E pela experiência que eu tenho, em qualquer programa de TV, só se
encontra a fórmula ao 4º ou 5º episódio. Sinto isso na escrita. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Entrevista)
(v) verbo transitivo direto e indireto + objeto direto (SN) + dativo
(053) Uma secretária recebe as ligações e transfere __ para o cliente onde
quer que ele esteja. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 02-05-
2004 – Reportagem)
(054) Então... O Grande Bronka sabia o seu endereço e deu-o a nós! (PE:
Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 – História em quadrinhos)
(vi) verbo transitivo direto + objeto direto (SN) + oblíquo oracional
(055) Segundo a judoca paraibana, a música e o judô a ajudam a relaxar dos
problemas de fora do tatame. (PB: O Globo, 16-05-2004 – Reportagem)
(056) Margarida Marinho é actriz, escritora compulsiva de cartas, ouvinte
apaixonada de música, e sim, colaboradora do DNA. […] Desta vez,
convidámo-la a conversar conosco, sobre teatro, sobre a vida, sobre
sentimentos. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000
– Editorial)
(vii) verbo transitivo direto (causativo ou perceptivo) + sujeito marcado com
caso acusativo + oração infinita (gerúndio ou infinitivo)
93
(057) (Sobre Marcela) Já sei!! Uma vez ouvi ela dizendo que gostava de
poesia!! (PB: Cebolinha, n.º 210, dezembro de 2003 – História em
quadrinhos)
(058) Deve ser o Magricela! Mesmo a tempo! Deixa-o entrar, Boca Mole! Eu
trato deste tipo! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 –
História em quadrinhos)
(viii) verbo de ligação + predicativo anafórico
(059) Na verdade, os sindicatos têm cobranças que ultrapassam muito 1% da
renda anual, com contribuições confederativas, assistenciais. Nenhuma
é obrigatória, assim como a nova não será __. (PB: Jornal do Brasil,
02-05-2004 – Entrevista)
(060) Nunca tinha pensado nisto dessa maneira, porque não sou nada uma
feminista de queimar soutiens, embora não possa deixar de ser
feminista. Seria um pouco estranho não o ser num país de homens à
antiga… (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 –
Entrevista)
f) Contexto de ilha sintática — Segundo Raposo (1986), a ocorrência do
objeto nulo no PE, da mesma forma que o movimento de elementos qu-,
estaria condicionada a contextos que não constituíssem ilha sintática. Assim,
consoante esse autor, o objeto nulo não ocorreria dentro de orações relativas,
completivas nominais, subjetivas e adverbiais, contextos que normalmente
impedem a extração de constituintes. Em vista disso, o mesmo autor postulou
que o objeto nulo, na variedade lusitana, teria o comportamento de “variável”,
uma categoria vazia resultante de movimento para uma posição externa à
sentença. Por outro lado, Cyrino (1993, 1997) constatou que no PB a variante
nula em posição de objeto pode ocorrer livremente em qualquer contexto. Em
vista disso, será levada em conta a estrutura do sintagma complementizador,
94
que define os contextos que, nos termos de Raposo (1986), constituem ou não
uma ilha sintática, a fim de levantar diferenças entre o PB e o PE quanto ao
comportamento das variantes candidatas à representação do acusativo
anafórico de terceira pessoa.
(i) contextos que não constituem ilha sintática
→ oração coordenada
(061) Assine o jornal por um ano e todas as manhãs eu venho aqui e jogo ele
no lixo pra você! (PB: Mickey em O Globo, 16-05-2004 – Tira em
quadrinhos)
(062) Tem de acertar na bolinha e mandá-la para o buraco! (PE: Série Ouro
Disney, n.º 35, junho de 2001 – História em quadrinhos)
→ oração raiz ou principal
(063) Se algum deputado, por exemplo, extravasa dizendo um palavrão, você
não precisa reproduzi-lo. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 06-
06-1999 – Entrevista)
(064) Quando operei há mais de dois anos o David a uma situação muito
complicada e de péssimo prognóstico, não o conhecia de lado nenhum.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 – Crônica)
→ oração independente
(065) Pois o tai-chi-chuan é aquilo tudo e um pouco mais. Márcio Lacerda,
professor do Corpo Zen, em Ipanema, recomenda __ como uma
excelente atividade antiestresse. (PB: Jornal da Família de O Globo,
16-05-04 – Reportagem)
(066) Em relação às miúdas, a gente só as conhecia aos fins de semana.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 11-03-2000 – Entrevista)
95
→ oração objetiva direta e oração oblíqua
(067) Naquele dia eu deixei meu gramofone quebrado com o Peninha! Ele
disse que sabia consertar __! (PB: Pato Donald, n.º 2.269, junho de
2003 – História em quadrinhos)
(068) Contudo, Primakov já negou publicamente ter sonhos presidenciais,
afirmando que o Presidente não o encarregou de “novas funções”. (PE:
Público, 24-11-1998 – Reportagem)
(069) A equipe de Bush evitou fazer ataques pessoais ao democrata por ter
liderado o movimento contra a guerra, após voltar do Vietnã. Mas
também não fez nada para impedir outros republicanos de fazerem isso.
(PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
(070) Nalguns casos, os poetas lêem tão mal os seus poemas que o melhor é
mesmo limitarem-se a escrevê-los […] (PE: Suplemento DNA do Diário
de Notícias, 19-02-2000 – Crítica de livro)
(ii) contextos que constituem ilha sintática
→ oração completiva
(071) Se bem que não sei por que cargas d’água a modelo exclusiva
dos produtos Summer Spell tem tanta confiança no fato de tal fita
inocentá-la. (PB: Segundo Caderno de O Globo, 04-08-2004 – Crônica)
(072) (…) na ausência de uma maioria simples de países favorável à proposta
da Comissão, esta tem a obrigação de a formalizar. (PE: Público, 24-
11-1998 – Reportagem)
→ oração relativa
(073) Hum! Mas se eu levar o Sansão “pala” ela… Ela vai dizer que fui eu
quem pegou ele! (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 78, dezembro de
2003 – História em quadrinhos)
96
(074) Gostaria que ficasse claro que o meu objetivo não é defender o Herman.
Não necessita de ninguém que o defenda. (PE: Suplemento DNA do
Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
→ oração adjunta
(075) É que eu troco o segredo do meu cofre todo dia! Se eu esquecer __,
uso o psicopescador! (PB: Pato Donald, n.º 2.269, junho de 2003 –
História em quadrinhos)
(076) As japonesas só compravam plataformas porque as tornavam mais
altas. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 –
Entrevista)
→ oração interrogativa
(077) Puxa! Que boa idéia! Como é que eu não tive ela antes de você?! (PB:
Cebolinha, n.º 210, dezembro de 2003 – História em quadrinhos)
(078) Esse colar! Onde é que o foi buscar? (PE: Disney Especial, n.º 222,
outubro de 2004 – História em quadrinhos)
g) Traço semântico do antecedente — Os trabalhos de Cyrino (1997) e de
Cyrino, Duarte e Kato (2000) apontam que, nos processos de mudança
envolvendo a pronominalização, a realização plena do pronome inicia-se pelos
referentes mais substantivos. Já um processo em direção a uma categoria
vazia (um pronome nulo), ao contrário, começaria pelos itens menos
referenciais. As autoras propõem, então, uma hierarquia de referencialidade,
em que num dos extremos se têm os pronomes de primeira e de segunda
pessoas [inerentes/ + humanos], a seguir os de terceira pessoa, que podem ser
[+/– humanos; +/– animados], e finalmente, no extremo oposto, os itens menos
referenciais, como os sujeitos não argumentais, as proposições, entre outros.
Com o propósito de observar a aplicação dessa escala de referencialidade
97
quanto à ocorrência do objeto nulo na escrita das duas variedades,
estabeleceu-se este último grupo de fatores.
(i) [+ referencial12; + animado]
(079) Ou que o trabalhador não vale nada, se está desempregado, o que
significa que ninguém está disposto a remunerá-lo, sequer com a exígua
quantia do salário mínimo. (PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Artigo de
opinião)
(080) Nina, a personagem deste romance, está perto dos 30 anos e decidida a
tornar-se independente, alcançar o sucesso e livrar-se de Sven, o
amante narcisista que a sufoca há mas de dois anos. (PE: Suplemento
DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crítica de livro)
(ii) [+ referencial; – animado]
(081) Eu comecei a fazer o livro em setembro de 1997. A intenção era
terminar __ no carnaval de 1998 ou pouco depois, pra poder ter tudo
pronto e lançar __ em agosto de 1998, quando o hotel completou 75
anos. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 18-04-1999 –
Entrevista)
(082) A sua voz, a forma como a orientou, reflectiu a sabedoria e o carácter
reflexivo dos textos. (Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-
2000 – Crítica de livro)
(iii) [– referencial]13
(083) Na verdade, os poucos funcionários encarregados de vigiar presos em
liberdade condicional sequer sabem onde eles moram. A maioria
prefere não saber __. (PB: O Globo, 14-11-2003 – Crônica)
12 Esse termo foi aqui empregado para indicar o acusativo anafórico que retoma um SN que faz referência a uma entidade do mundo bio-social. 13 Usou-se esse termo para indicar tanto o acusativo anafórico oracional quanto o predicativo, que têm como correlatos o demonstrativo neutro isso, que, conforme lembra I. Duarte (2003: 827), não se enquadra “na definição tradicional de pronome pessoal”, uma vez que não designa “uma das entidades envolvidas no processo de comunicação”. Por conseguinte, [– referencial] é entendido aqui como o elemento anafórico que não faz referência a uma entidade do mundo bio-social.
98
(084) Ir ao Porto, se preciso for de avião, cortar o cabelo; contá-lo nas páginas
de um jornal incorrendo no pecado da vaidade e da pública vergonha.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
3.3.2- Função dativa
Para a função dativa, foi considerada como variável dependente o tipo
de realização do dativo anafórico: clítico, SP constituído por pronome lexical
ou por SN anafórico e dativo nulo. Para a identificação das variantes
alternativas ao clítico lhe, usou-se como critério a possibilidade de substituí-las
por esse mesmo elemento. Ademais, fez-se a opção de só investigar o dativo
argumental, porquanto se tornaria discutível e arbitrário determinar a ocorrência
de uma categoria vazia em lugar do clítico no dativo não argumental, pelo fato
de este não fazer parte da grade temática do verbo. Na seqüência, são
exemplificadas as variantes candidatas à realização da variável:
a) clítico
(085) Isso numa cidade em que o sujeito telefona para a emergência da polícia
comunicando que está sendo assaltado e lhe pedem até o CPF, como
aconteceu, segundo também li, durante o assalto de que o escritório de
Caetano Veloso foi alvo. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Crônica)
(086) Lamento, Lobinho! O malandro do teu pai já me deve mais de 20 quilos
de café! Não lhe empresto mais nada! (PE: Disney Especial, n.º 222,
outubro de 2004 – História em quadrinhos)
b) SP constituído por
(i) pronome lexical
(087) Fui aluno da Conceição […] Isso dá a ela latitude para falar mal de mim
à vontade. (PB: O Globo, 13-07-2003 – Entrevista)
(088) Atribui à sua educação a calma, o facto de não se irritar com os actores
e dar a volta ao lado humano das pessoas para tentar tirar o melhor
delas. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 –
Reportagem)
99
(ii) SN pleno
(089) Entre goles de guaraná, o trombonista lembra ter conhecido seu Nelson,
um sujeito conservador, simpático, bem informado sobre a vida de cada
boêmio da cidade, e que carregava um violão nas costas. O homem
sugeriu ao trombonista que participasse dos concursos das rádios
Nacional e Tupi. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 25-04-2004
– Reportagem)
(090) Regulei o relógio para atirar uma pedra ao telhado dos porquinhos de
cinco em cinco minutos… a noite toda! Acho que vou dar àqueles
gorduchos uma amostra do que está para acontecer! (PE: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
c) dativo nulo
(091) No fim, quando o cliente escolhe o que vai levar, Francisco oferece __ o
banheiro para que o comprador possa lavar as mãos depois de mexer
em tanta poeira. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 02-05-2004
– Reportagem)
(092) O cliente viu a minha lupa e perguntou-me se eu era detective! Como eu
respondi __ que sim, ele disse que precisava dos meus serviços! (PE:
Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
Na definição das variáveis independentes, foram levantados os
seguintes grupos de fatores:
a) Contínuo de oralidade-letramento: [+ oralidade/ – letramento]; [+ oralidade/
+ letramento]; [– oralidade/ + letramento] — Tal como na função acusativa, o
propósito deste primeiro grupo é investigar até que ponto a tradição gramatical,
que recomenda e prestigia o clítico na função de objeto indireto, consegue de
fato influenciar a representação do dativo anafórico de terceira pessoa nas
100
duas variedades do português. Na seção 4.2 do próximo capítulo, os
diferentes pontos do contínuo são exemplificados com todas as variantes
empregadas na realização da variável que aparecem em cada um deles.
b) Tipo de verbo — A classificação aqui proposta se baseia em Rocha Lima
(1998), já que os dados obtidos em cada amostra foram mais bem capturados
pela distribuição que esse autor faz dos casos de dativo argumental, ou seja,
os que figuram entre os verbos bitransitivos (dandi, dicendi e rogandi) e os que
ocorrem entre os verbos transitivos indiretos. Observem-se os exemplos das
amostras:
(i) bitransitivo dandi — protótipo: dar com seus correlatos e reversos
(093) Devo soltar o Tatá no quintal pra se exercitar e dar a ele duas colheres
de comida! (PB: O melhor da Disney: as obras completas de Carl
Barks, vol. 3, maio de 2004 – História em quadrinhos)
(094) Os meus colaboradores mais novos, em fase de formação acelerada,
aprendem com os mais velhos, como é natural, e embora procuremos
dar-lhes uma formação diversificada, acabam por apanhar todos os
vícios e virtudes daqueles com quem mais colaboram. (PE: Suplemento
DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Crônica)
(095) Recebem os invasores alimentos do Fome Zero, enquanto os bispos de
esquerda lhes fornecem transporte e toldos para a cobertura dos
barracos improvisados. (PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Artigo de
opinião)
(096) Os números são apenas uma síntese que ajuda a memória a não perder
o fio à meada, que no caso de Eduardo Gageiro é longa, mas
demonstram também o saldo parcial de sua dedicação: 19 países
concederam-lhe medalhas de ouro e primeiros prémios […] (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Reportagem)
101
(097) De tudo que se vê, desde que o governo completou um ano, ficou a
impressão de que o presidente e o PT já se livraram do espectro do
golpe de Estado que lhes tirou o sono. (PB: Jornal do Brasil, 02-05-
2004 – Artigo de opinião)
(098) E o ar, o ar parece aspergido por uma qualquer substância que lhe retira
o cheiro ácido e pegajoso que os cabeleireiros normalmente transpiram
[…] (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(ii) bitransitivo dicendi — protótipo: dizer com seus correlatos
(099) Eu me senti muito honrado pelo presidente Lula com o convite para
trabalhar na sua equipe. […] Disse para ele: se o senhor quiser, eu
ajudo onde for útil. (PB: Jornal do Brasil, 06-07-2003 – Entrevista)
(100) Liga para o Grande Bronka e diz-lhe que apanhei os agentes 00-Zéro e
Pata Hari! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 – História em
quadrinhos)
(101) Mas se for o caso, o contribuinte descobrirá assim que tentar enviar sua
declaração. O sistema vai informar __ que esta já foi efetuada e não
receberá outro documento. (PB: Jornal do Brasil, 25-04-2004 –
Reportagem)
(102) Chega um senhor que eu desconhecia e pergunta onde fica o ‘Século’.
Eu perguntei-lhe por que é que queria saber […] (PE: Suplemento DNA
do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)
(iii) bitransitivo rogandi — protótipo: pedir com seus correlatos
(103) Proust não estava na obra dele […] Mas quando uma dondoca pedia a
ele uma notinha, ele saía todo enrolado em flanelas para mendigar dos
colunistas a notinha da baronesa tal. (PB: Revista Domingo do Jornal
do Brasil, 28-03-1999 – Entrevista)
102
(104) (Sobre Don Mendilairo) […] o seu carro foi até a Plaza de la Paz e ficou
em frente ao estabelecimento de um homem que lhe pediu que o tirasse
para permitir acesso à sua loja. (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(105) Preciso achar essa tal de Kéli Kaki e cobrar __ uma explicação! (PB:
Pato Donald, n.º 2.269, junho de 2003 – História em quadrinhos)
(iv) transitivo indireto
(106) Com ela, uma das amigas mais próximas, o esportista conseguia se
abrir um pouco. Mesmo assim, teve apenas umas três ou quatro
“conversas de mano, mais reveladoras”. (…) Só que, volta e meia, a
intimidade lhe escapava14 sob a forma de lágrimas. (PB: O Globo, 16-
05-2004 – Artigo de opinião)
(107) Cidadão, o sr. Patinhas foi honesto ao admitir que o tesouro do Verde
Esperança não lhe pertencia! (PE: Tio Patinhas, n.º 224, agosto de
2004 – História em quadrinhos)
c) Ordem do clítico — O clítico dativo, tal como os demais clíticos, apresenta a
sua sílaba sempre com onset, o que o torna mais forte que o acusativo do
ponto de vista fonético. Dessa forma, espera-se encontrar diferenças de
comportamento entre os clíticos acusativo e dativo no PB, quanto à ordem em
relação ao seu hospedeiro verbal. Além disso, postula-se que também haja
diferenças de colocação do pronome dativo entre as duas variedades, o que
pode evidenciar mais ainda a distinção entre elas.
(i) próclise a formas simples15 sem os tradicionais atratores do PE
14 Segundo Luft (2003: 264), esse verbo pode ser construído como transitivo indireto na acepção de “manifestar-se por descuido, irreflexão, ingenuidade, cólera, falta de autodomínio, etc.: Escapou-lhe [ao réu] o nome de um cúmplice”. 15 Diferentemente da função acusativa, não foi necessário separar as formas simples não flexionadas constituídas por infinitivo das demais formas simples, já que o clítico dativo sempre se apresenta com onset silábico manifesto, não estando, pois, sujeito aos mesmos fenômenos morfofonológicos exibidos pelo clítico acusativo em contextos de infinitivo.
103
(108) Este ano, porém, o desempenho de Cesar nas pesquisas lhe confere
uma vantagem sobre os adversários […] (PB: O Globo, 12-09-2004 –
Reportagem)
(ii) próclise a formas simples com os tradicionais atratores do PE
(109) É aquela coisa do “Viagem aos seios de Duília”, do Anibal Machado, em
que o personagem se apaixona por uma menina que lhe mostrara os
seios em uma procissão e fica com aquele peito na cabeça. (PB:
Revista Domingo do Jornal do Brasil, 15-08-1999 – Entrevista)
(110) O PP tem tido um espaço e uma dimensão que lhe são dados sobretudo
pelo abandono dos ideais de luta da Esquerda. (PE: Suplemento DNA
do Diário de Notícias, 26-02-2000 – Entrevista)
(iii) ênclise a formas simples sem os tradicionais atratores do PE
(111) […] ela enfrenta as últimas provas com Tamino, apresentando-lhe a
flauta mágica e guiando-o no terror e no triunfo. (PB: Caderno H do
Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Crítica de livro)
(112) O homem não tinha. Mendilairo disse-lhe: “Arranjo-te uma desde que
não me aborreças para tirar o carro.” (PE: Suplemento DNA do Diário
de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(iv) ênclise a formas simples com os tradicionais atratores do PE
(113) O problema é que as transformações culturais e a ditadura de
comportamento da Zona Sul não só fizeram que o além-Zona Norte
parecesse mais longe, como também deram-lhe uma conotação
pejorativa, na qual até o mestre Aurélio embarcou. (PB: Segundo
Caderno de O Globo, 16-05-2004 – Reportagem)
104
(v) próclise ao verbo auxiliar em locuções verbais
(114) É que eu tenho dois netinhos! Aqui estão os chocalhos que lhes vou
dar! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 – História em
quadrinhos)
(vi) ênclise ao verbo auxiliar em locuções verbais
(115) Com a proposta apresentada, Governo e PS não podiam ter ajudado de
melhor foram Marcelo Rebelo de Sousa: a credibilidade ficou do lado
deste. Antes haviam-lhe oferecido, de vez, o calendário político. (PE:
Diário de Notícias, 10-11-1998 – Artigo de opinião)
(vii) ênclise ao verbo principal em locuções verbais
(116) A nova União Européia nasceu ontem com uma prioridade política:
concluir o mais rapidamente possível a nova Constituição que deverá
permitir-lhe fugir da paralisia e tramitar com êxito os objetivos políticos e
econômicos que justificaram a criação do bloco. (PB: Jornal do Brasil,
02-05-2004 – Reportagem)
(117) Deve ser algum ladrão… […] Vou arrancar-lhe a pele! (PE: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
d) Tipo de preposição introdutora do SP anafórico: <a>; <para>; outras — O
interesse por este grupo, embora só se aplique a uma das variantes, deve-se
ao fato de estudos, como os de Gomes (1999, 2001, 2003), terem apontado o
uso variável da preposição que introduz o SP dativo no PB, sendo em alguns
casos até suprimida. A referida autora registra uma expansão do emprego da
preposição <para> na variedade brasileira, que se deve muito provavelmente
ao “caráter neutro dessa variante em relação à preposição a, mais formal, e à
variante nula, estigmatizada” (cf. Gomes, 2003: 96). Como o presente trabalho
investiga a escrita num contínuo oralidade-letramento, tenciona-se observar a
105
distribuição das preposições usadas para introduzir o SP dativo anafórico ao
longo do contínuo nas duas variedades, a fim de verificar se há relação entre a
escolha da preposição e os contextos de menor ou maior letramento.
e) Traço semântico — O propósito desse grupo é checar se o apagamento do
dativo anafórico de terceira pessoa nas duas variedades tem alguma relação
com a animacidade do referente, o que ratificaria o estudo de Cyrino, Duarte e
Kato (2000) sobre a ocorrência da categoria vazia a partir de uma escala de
referencialidade.
(i) [+ animado]
(118) A conversa com Dona Lily foi boa e vou apresentar a ela nosso
programa para a população de rua. (PB: Revista Domingo do Jornal do
Brasil, 25-04-1999 – Entrevista)
(119) O Presidente sabia que a única maneira de “segurar” a crise era aprovar
no Congresso, naquele dia, quatro medidas provisórias essenciais à
reforma fiscal prometida ao Fundo Monetário Internacional, que lhe
permitirá equilibrar o orçamento (com mais receitas e menos despesas).
(PE: Expresso, 16-01-1999 – Reportagem)
(ii) [– animado] (120) Para ele, o grande personagem de todos os momentos do hotel era o
próprio hotel. Tenho a impressão que ele emprestou ao hotel esse
caráter de transcendência, de eternidade. (PB: Revista Domingo do
Jornal do Brasil, 18-04-1999 – Entrevista)
(121) Sempre apostei na cozinha tradicional portuguesa e na possibilidade de
lhe conferir uma actualidade e estética moderna. (PE: Público, 10-11-
2004 – Trecho de fala em reportagem)
Depois de codificados, os dados foram processados utilizando o pacote
de programas de regra variável GOLDVARB 2001, que permitiu observar a
distribuição das ocorrências e investigar os pesos relativos.
106
4- ANÁLISE DOS RESULTADOS
A partir de um contínuo oralidade-letramento, consoante a proposta de
Bortoni-Ricardo (2004), serão examinadas as ocorrências dos clíticos e das
demais variantes que com eles competem na representação do acusativo e do
dativo anafóricos de terceira pessoa, considerando os contextos lingüísticos
que estariam atuando na realização dessas duas variáveis, a fim de avaliar o
grau de implementação das formas alternativas aos clíticos de terceira pessoa
na escrita brasileira e na portuguesa. Pretende-se ainda alcançar dois
propósitos: (a) verificar, especialmente no PB, até que ponto os clíticos das
duas funções, praticamente extintos na fala, são recuperados na modalidade
escrita; (b) contemplar as diferenças de comportamento desses mesmos itens
lingüísticos nas duas variedades, o que certamente permitirá evidenciar as
características da escrita do letrado adulto brasileiro em contraste com a do
letrado português.
4.1- Função acusativa
Segundo foi exposto no primeiro capítulo, os trabalhos realizados sobre
o português falado no Brasil vêm apontando a ocorrência de três outras
estratégias de realização do acusativo correferente com um SN mencionado no
discurso (acusativo anafórico de terceira pessoa) em progressiva substituição
ao clítico de terceira pessoa: o pronome lexical (forma nominativa em função
acusativa), os SNs anafóricos e o objeto nulo. O cômputo geral dos dados,
distribuído de acordo com as variantes levantadas nas duas amostras, é
apresentado a seguir:
Tabela 4.1. Função acusativa: distribuição dos dados computados segundo a variante usada
Variedades Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo PB 189/406 47% 32/406 8% 58/406 14% 127/406 31%
PE 282/366 77% — — 40/366 11% 44/366 12%
Os resultados gerais apresentados na tabela acima revelam que o clítico
constitui estratégia significativa para representar o acusativo anafórico de
107
terceira pessoa na escrita das duas variedades, porém com uma diferença
marcante: enquanto no PE ele é de longe a variante majoritária (77%), no PB
aparece ligeiramente superado pelas demais variantes somadas (53%). Por
conseguinte, os resultados relativos à variedade brasileira apontam para um
fato contundente e inegável: já se encontram plenamente infiltradas na escrita
as estratégias alternativas ao clítico acusativo comuns na fala (cf. Freire, 2000),
destacando-se dentre elas o objeto nulo. Tais resultados demonstram ainda
que a influência da tradição gramatical sobre a modalidade escrita se faz
perceber com mais força na considerável redução do pronome lexical em
função de objeto direto, tão combatido por essa mesma tradição, não
conseguindo minimizar a freqüência das demais estratégias de representação
do acusativo anafórico de terceira pessoa: o SN anafórico e o objeto nulo
somados estão em equilíbrio com o clítico. Bem diferente é a situação do PE:
conquanto também já se encontrem na escrita essas duas variantes
alternativas ao clítico, não chegam a ameaçar a hegemonia deste, pois juntas
só representam 23% das ocorrências. Os resultados gerais podem ser mais
bem visualizados a partir do seguinte gráfico:
Gráfico I. Função acusativa: distribuição das variantes segundo a variedade do português
47%
77%
8%
0%
14%11%
31%
12%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Clítico Pronomelexical
SN anafórico Objeto nulo
PB
PE
108
O gráfico anterior chama a atenção para dois fenômenos quanto à
realização do acusativo anafórico de terceira pessoa na escrita: (a) o emprego
ainda bastante significativo do clítico no PB, não tão avassalador como no PE,
mas em quase metade das ocorrências de acusativo anafórico; (b) o uso do
objeto nulo, muito freqüente no PB, também já infiltrado no PE como estratégia
alternativa ao clítico.
Em vista disso, pretende-se observar sob que condições aparece o
clítico na escrita brasileira, já que na modalidade oral do PB o seu emprego se
mostra reduzido ou ausente, segundo evidenciam os principais trabalhos
acadêmicos sobre a questão comentados no primeiro capítulo. Do mesmo
modo, tenciona-se investigar os contextos de ocorrência do objeto nulo nas
amostras, a fim de apontar aspectos sobre a natureza desse elemento nas
duas variedades.
Para começar, um exame da distribuição das variantes através do
contínuo de oralidade-letramento pode contribuir para explicitar as diferenças
quantitativas e qualitativas entre elas no PB e no PE. Observe-se a próxima
tabela com a distribuição do número de ocorrências, seguida dos exemplos das
variantes em cada nível do contínuo:
Tabela 4.2. Função acusativa: distribuição das variantes no contínuo de oralidade-letramento
PB Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo Total [+ oralidade/ – letramento] 15 22 20 46 103 [+ oralidade/ + letramento] 70 10 24 57 161 [– oralidade/ + letramento] 104 — 14 24 142
PE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo Total [+ oralidade/ – letramento] 86 — 23 23 132 [+ oralidade/ + letramento] 109 — 11 14 134 [– oralidade/ + letramento] 87 — 6 7 100
a) [+ oralidade/ – letramento]
(i) clítico
(001) O Cebolinha vai adorar o computador! Só preciso dar um jeito dele não
quebrá-lo em dois minutos! (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 77,
outubro de 2003 – História em quadrinhos)
109
(002) Sujou as jóias de propósito para as distinguir! (PE: Série Ouro Disney,
n.º 35, junho de 2001 – História em quadrinhos)
(ii) pronome lexical
(003) Eu também já tive o meu bonequinho! Era o ursinho Bilu! Pra onde eu
ia, sempre levava ele! Na escola, no parque, no cinema… (PB:
Almanacão de férias da Turma da Mônica, n.º 36, 2002 – História em
quadrinhos)
(iii) SN anafórico
(004) Então quem aterrorizava as fábricas do tio Patinhas no Canadá não
eram os wendigos, e sim os índios nanicós! E eles raptaram o tio
Patinhas! (PB: Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004 – História em
quadrinhos)
(005) Quando ele morreu, o seu fantasma passou a sair à meia noite para
procurar a gaita de foles pelo castelo! E agora, graças a vocês, o
fantasma recuperou a sua gaita de foles! (PE: Disney Especial, n.º
222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(iv) objeto nulo
(006) Quase pronta, mãe! Só vou deixar um bilhete para o Zé. Tenho que
deixar __ onde ele não deixe de ver __! (PB: Zé do Boné em O Globo,
17-06-2004 – Tira em quadrinhos)
(007) “Excêntrico é pouco! Disse-me que um fantasma anda a roubar-lhe
coisas do castelo e exige que eu investigue o caso!” “E o senhor vai
investigar __?” (PE: Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 –
História em quadrinhos)
110
b) [+ oralidade/ + letramento]
(i) clítico
(008) Você ainda não se libertou nem vai se libertar nunca. Mas você pode
porque seus fantasmas são a matéria-prima com que trabalha. Os meus
só me rendem alucinações e não sei aproveitá-los literariamente,
artisticamente. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 28-03-1999 –
Entrevista)
(009) […] não posso comprar detergente suave para lavar as minhas duas
únicas camisas, mantenho-as bem limpas com sabão azul. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(ii) pronome lexical
(010) Enfim, como toda heroína de novela, Maria Clara é ingênua. Deixa ela
pensar que vai se dar bem com essa bobagem. (PB: Segundo Caderno
de O Globo, 16-06-2004 – Crônica)
(iii) SN anafórico
(011) O acidente do Rubinho na sexta-feira foi horrível. Ele quis ver o
Rubinho no hospital de Ímola. (PB: Seção de Esportes do Jornal do
Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)
(012) Eu não tinha noção nenhuma de composição ou de enquadramento e
foram eles que me ensinaram esses pormenores. (PE: Suplemento
DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)
(iv) objeto nulo
(013) Tinha uma leiteira de alumínio que pertenceu à minha avó, mas acabei
111
dando __ para uma grande amiga. (PB: Suplemento Casa & Decoração
do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)
(014) Quando digo isto parece que vou comer lagostas todos os dias e que
tenho carros de 18 mil contos. Não tenho __. Nem ambiciono __. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Entrevista)
c) [– oralidade/ + letramento]
(i) clítico
(015) O presidente recebia ovações matinais e no fim do dia as pesquisas o
louvavam. (PB: Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Artigo de opinião)
(016) Mas a Câmara, de maioria republicana, rejeitou o artigo que acusava
Clinton de abuso de poder, e também o que o acusava de perjúrio no
testemunho sobre o caso Paula Jones. (PE: Diário de Notícias, 20-12-
1998 – Reportagem)
(ii) SN anafórico
(017) A nova lei permite que os pequenos partidos formem uma “federação”.
Esse ponto garante que cada um mantenha sua própria organização ao
mesmo tempo que permite a eles disputar as eleições sob uma mesma
sigla partidária. Esta fórmula ajuda os pequenos partidos a atingirem a
cláusula do desempenho. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)
(018) Na verdade, a situação específica daquela mulher prendia-se, numa
leitura mais imediata, com questões económicas pelo simples facto de
ser dona de casa sem proventos e, desta forma, com a capacidade de
decisão diminuída. Dentro deste cenário, é possível explicar uma parte
substancial que levou aquela mulher a suportar tortura psicológica e
física por parte do marido. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias,
11-03-2000 – Artigo de opinião)
112
(iii) objeto nulo
(019) Esses dólares são taxados em 15% de imposto na hora da remessa,
mas não integram o artigo 3 do projeto da nova lei do audiovisual.
Poderiam integrar __. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Artigo de opinião)
(020) Mesmo o Partido dos Trabalhadores (PT, oposição) contribuiu, não
obstruindo as votações, como sempre faz __. (PE: Expresso, 16-01-
1999 – Reportagem)
Através de gráficos, serão exibidos os percentuais de ocorrência das
variantes candidatas à realização do acusativo anafórico de terceira pessoa ao
longo do contínuo, o que permitirá esboçar a tendência de uso dessas formas
dentro da modalidade escrita do PB e do PE. Veja-se o gráfico relativo à
variedade brasileira:
Gráfico II. Função acusativa: percentual de cada variante através do contínuo no PB
De início, chama a atenção a trajetória do clítico, pois de todas variantes
levantadas é a única que apresenta crescimento ao longo do contínuo: de
estratégia menos expressiva no extremo [+ oralidade/ – letramento], passa a
44%
73%
35%
17%15%
21%
0%6%
19% 15%
10%
45%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
+ oralidade + letramento
Clítico Pronome lexical SN anafórico Objeto nulo
113
representar quase a metade das ocorrências no nível intermediário e atinge
mais do que o dobro da soma das demais variantes no extremo [– oralidade/ +
letramento]. Quanto ao SN anafórico, observa-se que a sua freqüência se
mantém estável ao longo do contínuo, entre 10% e 19%, ocorrendo de um
extremo ao outro devido ao seu caráter não estigmatizado. Esse mesmo
caráter possui o objeto nulo, que também aparece em todos os pontos do
contínuo, todavia com um percurso inverso ao do clítico: de estratégia mais
empregada no extremo [+ oralidade/ – letramento], fica em ligeira desvantagem
em relação ao pronome acusativo no nível intermediário e cai
consideravelmente no extremo oposto em favor do clítico, porém não chega a
ser completamente suplantado, já que ainda representa quase 20% das
ocorrências.
De acordo com a proposta de Bortoni-Ricardo (2004), as três variantes
comentadas acima constituem traços graduais, uma vez que se manifestam ao
longo de todo o contínuo, ao contrário do pronome lexical que representa
nesse conjunto um traço descontínuo, visto que não está presente em todos os
pontos: de segunda estratégia mais usada num dos extremos, anula-se
completamente no outro, o que sinaliza o forte caráter estigmatizado dessa
variante nos contextos de maior letramento, podendo esta ser considerada
como marca típica de eventos de comunicação que contenham traços de
[+ oralidade], o que explicaria a sua ocorrência nos dois primeiros pontos do
contínuo.
Em linhas gerais, o exame do contínuo de oralidade-letramento no PB
evidenciou que, quanto mais próximo do extremo [+ letramento], maior é a
freqüência do clítico em relação às demais variantes na representação do
acusativo anafórico de terceira pessoa, ocorrendo nesse extremo o
desaparecimento do pronome lexical, o que de certa forma remete aos
resultados de Averbug (2000): em seu trabalho baseado em textos produzidos
por alunos de séries finais, desde o CA até a universidade, a autora revela que,
à medida que o nível de escolaridade — ou de contato com a cultura de
letramento, nos termos de Bortoni-Ricardo (2004) — sobe, cresce o uso do
clítico acusativo, caindo o emprego do pronome lexical até este anular-se
114
completamente. Deve-se ainda mencionar que os resultados de Averbug
(2000) sobre a escrita de universitários brasileiros estão bem próximos dos que
aparecem em Freire (2000) acerca do PE oral, visto que em ambos os casos
houve índices significativos de objetos nulos em competição com o clítico,
porém nenhuma ocorrência de pronome lexical em função acusativa. Tais
semelhanças sinalizam certamente uma forte influência da tradição gramatical,
fundamentada no modelo lusitano da língua, sobre a escrita no âmbito escolar
brasileiro, assunto que será retomado no capítulo quinto.
Por outro lado, verificou-se que, nos textos que se situam nos dois
primeiros níveis do contínuo, as características da fala apontadas nos trabalhos
lingüísticos se mantêm, isto é, o clítico aparece em desvantagem em relação à
soma das demais estratégias na representação do acusativo anafórico de
terceira pessoa, sobretudo no extremo [+ oralidade/ – letramento], em que ele é
a variante menos freqüente de todas. Em contrapartida, parece ser justamente
no extremo [– oralidade/ + letramento] que a variante prestigiada pela escola se
apresenta como a forma mais produtiva de realização da variável em foco. No
entanto, tal constatação não causa surpresa alguma, já que era natural esperar
que os textos representantes desse nível do contínuo tivessem um
compromisso maior com a tradição literária e gramatical: conforme lembra
Bortoni-Ricardo (2004: 52), a imprensa é uma das “agências padronizadoras”,
responsáveis por codificar a língua numa cultura de letramento. Por
conseguinte, aquilo que prescreve a tradição deverá aparecer com mais força
numa das extremidades do contínuo. Não obstante isso, os dados relativos à
variedade brasileira mostraram que nem no extremo [– oralidade/ + letramento]
essa mesma tradição é absoluta, porquanto até nesse ponto do contínuo o
clítico está em competição com outras variantes, que juntas chegam a
constituir quase 30% das ocorrências. Além disso, ainda é preciso checar sob
que condições esse clítico aparece, o que pode explicar a aparente diferença
de freqüência desse elemento na escrita em relação ao que os trabalhos
lingüísticos constataram na fala. É o que se pretende mais adiante com a
análise dos condicionamentos lingüísticos.
Observe-se agora o contínuo oralidade-letramento no PE através do
115
gráfico a seguir:
Gráfico III. Função acusativa: percentual de cada variante através do contínuo no PE
De acordo com o gráfico, verifica-se que o clítico desponta em todos os
pontos do contínuo como a variante majoritária, exibindo larga vantagem sobre
as demais. No que diz respeito a estas, nota-se que ocorrem equilibradas
entre si e, apesar de quantitativamente inferiores ao clítico, mantêm uma
freqüência estável ao longo do contínuo, conforme o demonstra a trajetória das
suas linhas no gráfico. Do mesmo modo, percebe-se que essas mesmas
variantes se mostram mais expressivas no extremo [+ oralidade/ – letramento],
uma vez que somadas constituem 34% das ocorrências. Guardando-se as
devidas proporções, esse ponto do contínuo mostra certa similaridade com a
língua oral: nos dados de Freire (2000) sobre a fala de informantes
portugueses com nível superior completo, o SN anafórico (25%) e o objeto nulo
(31%), se considerados separadamente, ficavam abaixo do índice do clítico
(44%), mas juntos conseguiam uma pequena vantagem sobre este último,
deixando equilibrada a disputa pelo número de ocorrências.
Após a análise da freqüência das variantes candidatas à representação
do acusativo anafórico de terceira pessoa no contínuo oralidade-letramento nas
duas variedades, perceberam-se diferenças fundamentais entre elas.
87%
17%
82%
66%
6%
17%
8%
10% 7%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
+ oralidade + letramentoClítico SN anafórico Objeto nulo
116
Enquanto no PE o clítico é uma variante bastante robusta e sobrepuja as
demais ao longo de todo o contínuo, no PB ele só alcança essa mesma
condição na extremidade [– oralidade/ + letramento], cuja configuração é muito
similar ao quadro geral do PE, haja vista a ausência do pronome lexical em
função acusativa nesse extremo do contínuo e o índice mais baixo de
ocorrência das demais variantes em favor do clítico. Essa similaridade se deve
muito provavelmente ao fato de o modelo de língua considerada culta no Brasil
ter sido estabelecido, como mostra Pagoto (1999), “à imagem e semelhança”
do português europeu moderno. Por esse motivo, a tradição escolar,
codificada nas gramáticas que servem de base ao ensino do português,
estabelece o clítico como única estratégia legítima de representação do
acusativo anafórico de terceira pessoa, entre outras tantas prescrições.
Contudo, a julgar pela distribuição dessa variante no contínuo de oralidade-
letramento do PB, tal tradição parece obter certo êxito somente num dos
extremos, o que indica não ser o uso do clítico uma opção que se possa
considerar espontânea na variedade brasileira para a representação do
acusativo anafórico de terceira pessoa, visto estar fortemente relacionado a
eventos de comunicação que contenham traços de [+ letramento], que estão
sujeitos, portanto, à pressão da tradição escolar ou, como prefere Bortoni-
Ricardo (2004), da cultura de letramento.
4.1.1- Condicionamentos lingüísticos
A investigação de fatores estruturais pode mostrar-se muito vantajosa no
estudo da representação do acusativo anafórico de terceira pessoa, visto que
permite avaliar não só quantitativamente mas sobretudo qualitativamente a
ocorrência de cada uma das variantes candidatas à realização da variável, em
especial o clítico no PB e o objeto nulo em ambas as variedades. Assim, foram
analisados fatores como o antecedente do acusativo anafórico, a forma verbal,
a ordem do clítico, a transitividade verbal, o contexto de ilha sintática e o traço
semântico do antecedente.
117
4.1.1.1- Antecedente do acusativo anafórico
A consideração da estrutura do antecedente do acusativo anafórico pode
contribuir para esclarecer o baixo ou o alto grau de freqüência de cada uma
das variantes focalizadas nas duas variedades, conforme se percebe pelos
resultados obtidos. Observe-se a próxima tabela:
Tabela 4.3. Função acusativa: distribuição das variantes segundo o antecedente
PB Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo SN 184/357 52% 32/357 9% 48/357 13% 93/357 26% Oração 4/34 12% — — 9/34 26% 21/34 62% Predicativo 1/15 7% — — 1/15 7% 13/15 86%
PE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo SN 265/328 81% — — 34/328 10% 29/328 9% Oração 10/27 37% — — 6/27 22% 11/27 41% Predicativo 7/11 64% — — — — 4/11 36%
Sobre o PB, a tabela acima revela que o clítico ocorre preferencialmente
com objetos cujo antecedente é um SN e mesmo assim em equilíbrio com a
soma das outras variantes (48%). Já na realização dos objetos oracionais e
dos predicativos anafóricos, o uso do clítico cai consideravelmente, cedendo
espaço ao SN anafórico e ao objeto nulo, o que evidencia a consolidação
crescente dessas estratégias na variedade brasileira, com destaque para o
objeto nulo que, nesses contextos, passa a ser de longe a variante majoritária.
Tais resultados certamente ratificam a tendência que Cyrino (1993, 1997) já
havia apontado em seus estudos diacrônicos sobre o objeto nulo no PB: desde
o século XVI, eram justamente os contextos oracionais e predicativos os
primeiros a apresentar variação entre o uso do clítico e do objeto nulo,
passando este, a partir do século XIX, a estender-se a outros contextos e a
intensificar-se na variedade brasileira. Com efeito, nos dados ora analisados, o
objeto nulo, além de exibir altos índices nos contextos oracionais e
predicativos, já aparece representando pouco mais de um quarto das
ocorrências dos objetos cujo antecedente é um SN, sendo de todas as
variantes alternativas ao clítico a mais empregada.
Finalmente, nota-se também a completa ausência do pronome lexical
com os objetos oracionais e predicativos, que pode ser explicada pelo fato de
118
nesses contextos o acusativo anafórico não representar uma entidade
participante do processo de comunicação, tradicionalmente chamada de
pessoa do discurso, o que bloqueia a ocorrência do pronome nominativo, que
possui traço [+ pessoa].
Com relação ao PE, observa-se que o clítico se mostra produtivo com
todos os tipos de estrutura, todavia com diferenças de freqüência. Entre os
objetos cujo antecedente é um SN, seu uso é esmagador em relação à soma
das demais variantes (19%). Já com os objetos predicativos, embora o clítico
ainda seja a variante majoritária, seu emprego aparece um pouco mais
reduzido do que no contexto anterior, dando margem a um crescimento do
objeto nulo (36%). Por fim, é justamente com os objetos oracionais que o
pronome acusativo aparece em desvantagem em relação às demais variantes
somadas (63%). Essas constatações indicam que no PE são os objetos
oracionais e predicativos os contextos que mais favorecem o emprego de
variantes alternativas ao clítico, destacando-se dentre elas o objeto nulo, que
chega a representar 41% dos dados relativos aos objetos oracionais. Nota-se,
entretanto, que essa variante no PE só apresenta maior freqüência nesses dois
contextos, que já se encontravam em variação desde o século XVI, segundo os
estudos de Cyrino (1993, 1997), sendo ainda muito tímido o emprego da
categoria vazia nos contextos que retomam um SN (9%), o que contrasta com
o PB (26%).
A partir da análise ora empreendida, verificou-se que, pelo menos em
parte, a natureza do antecedente do acusativo anafórico demonstrou ser
determinante no grau de freqüência do clítico e do objeto nulo nas duas
variedades, o que pode explicar a diferença entre elas no que diz respeito ao
quantitativo total dessas variantes. Por um lado, o total geral de clíticos no PE
é constituído não só por índices significativos nos contextos de objetos cujo
antecedente é um SN, como se dá na variedade brasileira, mas em todos os
contextos. Por outro, o quantitativo total de objetos nulos mostra-se maior no
PB pelo fato de a categoria vazia espraiar-se com um percentual representativo
inclusive entre os objetos que retomam um SN, o que contrasta com o PE, no
qual essa estratégia só ganha força nos contextos que já exibiam variação
119
desde o século XVI, o oracional e o predicativo, e mesmo assim tendo de
concorrer com o clítico que, conforme foi mencionado, ainda exibe percentuais
consideráveis nesses contextos. Por conseguinte, o comportamento diverso
das duas variedades quanto à distribuição das variantes segundo o
antecedente do acusativo anafórico sinaliza que elas seguem tendências
diferentes na realização da variável: o PB com a crescente generalização do
objeto nulo; o PE com a manutenção do clítico em todos os contextos.
Mesmo que só se considerassem os contextos em que o antecedente do
acusativo anafórico é um SN, ainda assim haveria diferenças qualitativas no
uso do clítico acusativo e do objeto nulo entre as duas variedades da língua,
conforme será evidenciado durante o exame dos demais condicionamentos
lingüísticos.
4.1.1.2- Forma verbal e ordem do clítico
Nesta seção, será apresentada a distribuição das variantes entre as
diferentes formas verbais, contemplando especialmente a ordem do clítico em
relação ao seu hospedeiro verbal, a fim de investigar sob que condições ocorre
a variante prestigiada pela tradição nas variedades brasileira e lusitana do
português. Observe-se a próxima tabela:
Tabela 4.4. Função acusativa: distribuição das variantes segundo a forma verbal
PB Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo Formas simples flexionadas 80/221 36% 26/221 12% 39/221 18% 76/221 34%
Formas simples não flexionadas 71/101 70% 2/101 2% 9/101 9% 19/101 19%
Formas complexas com tempo 38/84 45% 4/84 5% 10/84 12% 32/84 38%
PE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo Formas simples flexionadas 144/196 74% — — 22/196 11% 30/196 15%
Formas simples não flexionadas 61/70 87% — — 6/70 9% 3/70 4%
Formas complexas com tempo 77/100 77% — — 12/100 12% 11/100 11%
A tabela acima indica que, nos dados relativos ao PB, a ocorrência do
clítico só consegue superar a soma das demais variantes com as formas
verbais simples não finitas, especialmente com o infinitivo:
(021) Mas ao mesmo tempo ela pode valorizar outras realidades ao
120
mostrá-las… (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 06-06-1999 –
Entrevista)
Já com as formas verbais simples flexionadas e com as complexas
marcadas com tempo, o emprego do clítico fica em desvantagem em relação
às demais variantes juntas, destacando-se dentre estas o objeto nulo que,
nesses contextos, apresenta-se bastante expressivo, especialmente com as
formas complexas:
(022) Os filhos sempre souberam da profissão dela, mas esconderam __ dos
amigos. (PB: Caderno H do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
(023) Talvez tenha demorado tempo demais para fazer o projeto dedicado à
representação das grandes canções brasileiras. Deveria ter feito __ no
princípio da minha carreira. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil,
03-10-1999 – Entrevista)
(024) Nunca desejei algo como esse chinelo! Você vai vender __ pra mim,
não vai? (PB: Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004 – História em
quadrinhos)
(025) E a sua diferença para os outros é que ela dá as idéias e dois minutos
depois já está colocando __ em prática. (PB: O Globo, 12-09-2004 –
Trecho de fala em reportagem)
Do mesmo modo, não se pode desprezar o uso da categoria vazia no
contexto preferencial do clítico, isto é, com as formas verbais simples não
flexionadas, uma vez que representa aproximadamente 20% das ocorrências:
(026) Eu comecei a fazer o livro em setembro de 1997. A intenção era
terminar __ no carnaval de 1998 ou pouco depois […] (PB: Revista
Domingo do Jornal do Brasil, 18-04-1999 – Entrevista)
121
Quanto ao pronome lexical e ao SN anafórico, nota-se que, de um modo
geral, a freqüência de tais variantes se mostra quase sempre baixa, sendo um
pouco mais expressivas somente com as formas verbais simples flexionadas,
contexto em que, somadas, alcançam o índice de 30%:
(027) Ali, padre!! É aquela menorzinha!! Deixa que eu salvo ela!! (PB:
Cebolinha, n.º 210, dezembro de 2003 – História em quadrinhos)
(028) Não é bem assim, esta será uma votação ditada por muitos fatores,
sobretudo o eleitoral. Mas esta percepção torna a votação crucial. (PB:
O Globo, 16-05-2004 – Artigo de opinião)
Por conseguinte, a baixa freqüência dessas duas variantes sinaliza que,
na variedade brasileira, a disputa pelo número de ocorrências junto às
diferentes formas verbais fica praticamente entre o clítico e o objeto nulo.
Com relação ao PE, a tabela evidencia ser sempre o clítico a variante
predileta na realização da variável, uma vez que exibe percentuais bem acima
da soma das demais variantes com todas as formas verbais e não apenas com
as formas simples não flexionadas, como se observou no PB. Vejam-se os
exemplos:
(029) Os Metralhas! Vi-os antes de perder a consciência! (PE: Tio Patinhas,
n.º 224, agosto de 2004 – História em quadrinhos)
(030) […] trata-se de ensinar a “estar”, o que quer que isso seja, aproximando
o leitor do mundo dos “ricos, felizes e educados”, fazendo-o sonhar com
o dia em que receba Lilli Canelas em casa […] (PE: Suplemento DNA
do Diário de Notícias, 08-04-2000 – Crônica)
(031) Já com todos sentados novamente, o Presidente perguntou então pelo
“Van Gogh da panificação” e na sua pessoa agradeceu não só os pães e
os bolos como todo o serviço com que hospitaleiramente o tinham
122
recebido. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 26-02-2000 –
Crônica)
Por outro lado, as variantes alternativas ao clítico apresentam-se um
pouco mais perceptíveis somente com as formas simples flexionadas e com as
complexas marcadas com tempo construídas com infinitivo: somadas, essas
variantes alcançam os índices de 26% e 23%, nos contextos respectivos, o que
não chega ainda a comprometer a hegemonia da variante considerada padrão:
(032) Eu adoro o meu país. Adoro __. Amo profundamente o meu país. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Entrevista)
(033) “O que estão a fazer aos nossos cavalos, forasteiros?” “Eh! Eh!
Estamos apenas a olhar __, xerife!” “Conversa de treta! Eles iam
roubar-nos os cavalos!” (PE: Disney Especial, n.º 1222, outubro de
2004 – História em quadrinhos)
Na seqüência, passa-se a examinar a ordem do clítico acusativo em
relação ao seu hospedeiro verbal, a fim de descrever o comportamento dessa
variante nas duas variedades do português. Observe-se a tabela a seguir:
Tabela 4.5. Função acusativa: ordem do clítico nas duas variedades do português
Ordem PB PE Próclise a formas simples sem atrator 28/189 15% 2/282 1% Próclise a formas simples com atrator 45/189 24% 84/282 29% Ênclise a formas simples sem atrator 11/189 6% 58/282 21% Ênclise a formas simples com atrator 1/189 0,5% 4/282 1,5% Próclise ao verbo auxiliar em locuções verbais 1/189 0,5% 22/282 8% Ênclise ao verbo auxiliar em locuções verbais — — 3/282 1% Próclise ao verbo principal em locuções verbais — — 1/282 0,5% Ênclise ao verbo principal em loc. verbais com infinitivo 34/189 18% 41/282 14% Ênclise ao infinitivo não integrante de locução verbal 20/189 10% 23/282 8% Próclise ao infinitivo regido por preposição — — 31/282 11% Ênclise ao infinitivo regido por preposição 49/189 26% 13/282 5%
Acerca do PB, observa-se que o clítico aparece preferencialmente em
123
ênclise com as formas de infinitivo, cujos contextos somados representam mais
da metade do total de ocorrências desse elemento. Registre-se ainda que tal
colocação do clítico pode ser encontrada em todo o contínuo de oralidade-
letramento, sendo o modo mais usual de manifestação do pronome acusativo
no extremo de [+ oralidade] e no ponto intermediário. Vejam-se os exemplos a
seguir:
(034) Onde estão os pergaminhos encontrados nas escavações da cidade
perdida de Ambardambadar, diretor? Eu estou interessada neles!
Quando vou poder vê-los?. (PB: Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004
– História em quadrinhos)
(035) Quando comecei a ganhar algum dinheiro, com o disco ‘Cabeça
dinossauro’, comprei a câmera e passei a levá-la para todas as viagens.
(PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)
(036) O primeiro salão do high society em Ipanema foi o de Jambert.
Freqüentá-lo dava status, e o tempo de espera para o atendimento era o
termômetro do prestígio da cliente. (PB: Caderno H do Jornal do Brasil,
25-04-2004 – Reportagem)
Esse alto índice de ênclise em torno de formas verbais no infinitivo
parece sugerir que no PB há uma nítida preferência pela superficialização do
clítico acusativo como lo, de volume fonético mais expressivo que o. Cite-se
que essa mesma tendência foi também constatada em Freire (2000), que
investigou a fala de informantes brasileiros com nível superior completo, visto
que as poucas ocorrências encontradas do clítico acusativo apareceram todas
em ênclise com as formas de infinitivo. Tal preferência pela ênclise ao infinitivo
remete à hipótese de Nunes (1993) a respeito da influência de fatores fonéticos
sobre o comportamento do clítico acusativo na variedade brasileira: por ser
foneticamente mais fraco, esse item lingüístico depende de certos processos
para licenciar o onset da sua sílaba, porém a direção de cliticização à direita
124
exibida pelo PB não proporciona ao clítico meios de superficializar esse onset,
restando como alternativa para manifestá-lo a ênclise ao infinitivo, que se
consolida então como o contexto em que o clítico aparece mais resistente na
variedade brasileira. Como prova da força dessa tendência de colocação do
pronome acusativo, cite-se o fato de que o único caso de ênclise com atrator
da amostra brasileira se deu justamente com o futuro do subjuntivo numa
oração introduzida por conectivo. A forma desse tempo verbal, considerando
os verbos regulares, assemelha-se muito ao infinitivo: como a ênclise ao
infinitivo é o contexto mais propício ao uso do clítico acusativo, a forma verbal
simples de futuro do subjuntivo acabou sendo interpretada equivocadamente
como infinitivo:
(037) “Olha, papai! A Zilá consegue sentar sozinha!” “Mesmo se soltá-la?”
(PB: Zoé & Zezé em O Globo, 27-07-2004 – Tira em quadrinhos)
Deve-se registrar também que, nos contextos de infinitivo regido por
qualquer preposição, a ênclise foi categórica na amostra brasileira, ao contrário
do que se verifica no PE. Vejam-se os exemplos:
(038) Enquanto o pequeno Ayrton corria pelo pátio da casa com suas botinas
de cano curto a imitar sons de freadas e derrapagens, a irmã mais velha
limitava-se a consolá-lo depois dos incontáveis tombos. (PB: Seção de
Esportes do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
(039) Enquanto ele levava as namoradas para passear pelos jardins e contar
histórias da infância para impressioná-las, Marina começava a dar os
primeiros passos na profissão. (PB: Revista Domingo do Jornal do
Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
(040) Mas há muita coisa datada. Não pelo fato em si, mas pela forma de
encará-lo. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 15-08-1999 –
Entrevista)
125
(041) Na sua maré ascendente, o modelo liberal permitia eleger e reeleger
presidentes no primeiro turno […] Na sua fase descendente, condena ao
fracasso os governantes que insistem em mantê-lo […] (PB: Jornal do
Brasil, 06-07-2003 – Crônica)
Note-se, entretanto, que a superficialização do onset da sílaba do clítico
acusativo no PB não costuma ocorrer com formas verbais terminadas em /S/
(p. ex.: ele qui-lo; eu fi-lo), tanto é verdade que, quando aparecia o clítico
nesses contextos, a próclise era categórica na amostra brasileira:
(042) A situação de Maria Madalena Rastoldo não é muito diferente. […] A
necessidade de um corte de custo na empresa a fez perder o emprego.
(PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)
Do mesmo modo, deve-se mencionar que a superficialização do clítico
acusativo como no se apresentou muito escassa na amostra, uma vez que só
houve uma única ocorrência e mesmo assim no extremo de [+ letramento] do
contínuo:
(043) O senador nega tal ambição, mas os colegas do PT consideram-no um
candidato natural ao cargo. (PB: O Globo, 16-05-2004 – Reportagem)
De um modo geral, em contextos envolvendo formas verbais terminadas
em segmento nasal não precedidas pelos tradicionais atratores do PE, o clítico,
quando ocorria, figurava em posição proclítica, portanto sem o onset da sua
sílaba:
(044) Maria não ia dar a entrevista, a princípio ficou de longe. Os quatro filhos
a respeitam, assim como as colegas. (PB: Caderno H do Jornal do
Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
Tudo isso sugere que o processo de licenciamento do onset da sílaba do
126
clítico acusativo no PB não tem o mesmo estatuto que no PE, porquanto só
ocorre com formas verbais terminadas em /r/, o que sinaliza o caráter artificial
de tal processo na variedade brasileira, visto ser aprendido via escolarização e,
portanto, muito posteriormente ao processo natural de aquisição da linguagem,
já que brasileiros analfabetos não costumam apresentar o uso do pronome
acusativo, conforme registra Omena (1978). No entanto, a ênclise ao infinitivo
passou a ser, entre os brasileiros letrados, o único contexto em que é possível
a superficialização do onset da sílaba do clítico acusativo, processo que o torna
mais forte do ponto de vista fonético, à semelhança dos demais clíticos, o que
explicaria então o alto índice de clíticos acusativos ainda encontrado na
amostra brasileira.
Quanto às demais ocorrências do clítico acusativo na amostra do PB, a
maioria se concentrou no extremo de [+ letramento] do contínuo, junto a formas
verbais simples, prevalecendo a próclise, que correspondeu a 39% das
ocorrências do clítico, sendo destas 15% sem os tradicionais atratores do PE, o
que indica ser a colocação proclítica uma marca bem característica da
variedade brasileira, conforme assevera Vieira (2002):
(045) A distância entre a glória e o fracasso, no mundo de Ayrton Senna, era
medida em décimos de segundo. […] O temperamento arisco e
desconfiado o manteve à distância da maioria dos oportunistas […] (PB:
Seção de Esportes do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Artigo de opinião)
Diante do exposto, pode-se dizer que os resultados encontrados a
respeito da ordem do clítico acusativo na escrita brasileira corroboram os de
Duarte (1986) sobre a fala, que apontaram justamente os contextos de formas
verbais simples e de formas de infinitivo como os que ainda mantêm o pronome
acusativo. No entanto, a tabela 4.4 chama a atenção para um fato marcante na
variedade brasileira sobre o clítico: nos contextos de formas simples
flexionadas, ele fica em nítida desvantagem em relação à soma das demais
variantes (64%); só conseguindo ser mais expressivo que as demais
estratégias de representação do acusativo anafórico de terceira pessoa nos
127
contextos envolvendo formas de infinitivo. Por conseguinte, tal fato assinala
que, em linhas gerais, a manutenção do pronome acusativo que ainda se
percebe no PB está fortemente relacionada à presença de um contexto que
permita ao clítico recuperar o onset silábico, o que ratifica a hipótese de Nunes
(1993), aqui assumida nos termos expostos na seção 2.3.2 do capítulo
segundo, sobre a influência de fatores fonéticos no uso do clítico acusativo.
A respeito do PE, a tabela 4.5 exibe uma distribuição bem regular do
clítico, que aparece em profusão não apenas com o infinitivo, mas com todas
as formas verbais, em próclise ou em ênclise. Com as formas simples sem os
tradicionais atratores, prevaleceu a ordem enclítica, que também chegou a
aparecer com esses atratores, o que ratifica ser a ênclise o padrão de
colocação na variedade lusitana, como descrevem as gramáticas e como
apontaram os resultados da análise de Vieira (2002):
(046) Como trabalhador por conta de outrem, faço os meus papéis e
entrego-os à minha mulher. (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 11-03-2000 – Entrevista)
(047) Há mulheres. Infelizmente não enlevam a lama e o peito ao ponto de
me envolverem tortuosamente porque encontro-as sempre que quero,
nos lugares que me apetece, as vezes que forem precisas… (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
Registre-se também que, ao contrário do que se verifica no PB, o
pronome acusativo no PE não se apresenta preferencialmente como lo, mas
sob a forma o, que representou 72,5% do total das ocorrências de clíticos na
amostra, figurando inclusive em próclise ou em ênclise ao verbo auxiliar nas
locuções verbais:
(048) O desintegrador diabólico! Sim, nada o pode deter! (PE: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
128
(049) Antes de pôr as jóias no cofre, o Pateta tinha-as sujado com tinta! (PE:
Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 – História em quadrinhos)
Note-se que o clítico nos dois exemplos acima se liga ao verbo auxiliar,
que contém as marcas morfológicas de flexão, e não ao verbo principal que lhe
atribui caso, o que sem dúvida constitui uma evidência de que o PE possui uma
concordância rica, conforme sustenta Galves (1993, 2001). Por outro lado,
pode-se dizer que, no PB, tal ordem de colocação é praticamente nula: na
verdade, a amostra brasileira só apresentou um único exemplo de próclise ao
verbo auxiliar em locução verbal, que se situava no extremo [+ letramento] do
contínuo e num contexto em que não havia outra possibilidade de colocação,
sem que contrariasse a tradição gramatical:
(050) Sua mãe, Narcisa, guarda as medalhas. Do contrário, Edinanci já as
teria dado aos amigos, como já fez com alguns troféus. (PB: O Globo,
16-05-2004 – Reportagem)
Sobre os contextos envolvendo infinitivo no PE, a tabela demonstra um
comportamento variável do clítico nas locuções verbais: esse item lingüístico
pode aparecer tanto em próclise/ ênclise ao verbo auxiliar como em ênclise ao
verbo principal, conforme ilustram os exemplos a seguir:
(051) “Brills Content” é o nome de uma revista com apenas um ano de vida.
Não a podem comprar em Portugal, mas podem cheirá-la pela internet
(www.brillscontent.com) e perceber do que se trata. (PE: Suplemento
DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Reportagem)
(052) Mas daqui a dois ou três anos não sei o que vou fazer com os milhares
de diapositivos acumulados ao longo de uma vida. Porque me disse o
Vasco que posso guardá-los em dois ou três CD-Rom’s. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Crônica)
129
Por outro lado, se houver preposição regendo o infinitivo, observa-se
uma sistematização na ordem do clítico: ênclise com a; próclise com as
demais preposições:
(053) Há pessoas com colecções de milhares de CD’s e não estou a vê-las a
recomeçar tudo de novo […] (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 05-02-2000 – Crônica)
(054) Aqui, no cofre, estarão mais seguras do que no forte Knox! Apenas eu
conheço a combinação para o abrir! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35,
junho de 2001 – História em quadrinhos)
(055) O Luís Montez foi a única pessoa a lembrar-se de mim e eu não me
esqueço disso e seria incapaz de o trair. (PE: Suplemento DNA do
Diário de Notícias, 12-02-2000 – Entrevista)
Os exemplos acima apontam para o estatuto das preposições como
atratores de próclise no PE, com exceção da preposição a, que não está
marcada entre eles. Segundo Brito et al. (2003), esses vocábulos estão
marcados como palavras funcionais pesadas, sendo a próclise, portanto, o
padrão esperado. Contudo, pode ocorrer a ênclise numa frase não finita com
infinitivo não flexionado, conforme aparece no único dado desse tipo
encontrado na amostra:
(056) Não guardo os textos sequer. Imagino que se um dia forem precisos
alguém há de tê-los. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-
03-2000 – Entrevista)
De qualquer forma, considerando os contextos de infinitivo regido por
preposição da amostra lusitana, pode-se fazer a seguinte generalização quanto
à ordem do clítico: enquanto a ênclise é o padrão obrigatório com a preposição
a, a próclise é a colocação preferencial com as demais preposições.
130
Sem dúvida alguma, a análise da distribuição das variantes entre as
diferentes formas verbais e o exame da ordem do clítico em relação ao seu
hospedeiro verbal evidenciaram, uma vez mais, diferenças qualitativas entre as
duas variedades do português. É certo que a escrita de ambas apresenta uma
significativa presença do clítico acusativo, todavia a ocorrência dessa variante
no PE é muito mais regular e abrangente do que no PB, em que ela aparece
preferencialmente em contextos de ênclise a formas de infinitivo.
4.1.1.3- Transitividade verbal
A análise da estrutura projetada pelo verbo busca levantar os contextos
que favorecem a ocorrência de cada variante na realização da variável,
permitindo observar mais diferenças entre as variedades. Observe-se a tabela:
Tabela 4.6. Função acusativa: distribuição das variantes segundo a estrutura sintática da frase
PB Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo od (sn) 94/190 50% 12/190 6% 23/190 12% 60/190 32% od (oracional) 4/26 15% — — 4/26 15% 18/26 70% od (sn) + pred./obl. 72/119 61% 6/119 5% 17/119 14% 24/119 20% od (or.) + obl. — — — — 4/5 80% 1/5 20% od (sn) + dativo 2/16 12% 1/16 6% 4/16 25% 9/16 57% od (sn) + obl. (or.) 6/11 55% — — 4/11 36% 1/11 9% suj. + or. infinita 10/24 40% 13/24 52% 1/24 4% 1/24 4% pred. anafórico 1/15 7% — — 1/15 7% 13/15 86%
PE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo od (sn) 147/193 76% — — 23/193 12% 23/193 12% od (oracional) 5/17 29% — — 2/17 12% 10/17 59% od (sn) + pred./obl. 83/95 88% — — 6/95 6% 6/95 6% od (or.) + obl. 3/5 60% — — 2/5 40% — — od (sn) + dativo 13/17 76% — — 3/17 18% 1/17 6% od (sn) + obl. (or.) 13/16 82% — — 3/16 18% — — suj. + or. infinita 11/12 92% — — 1/12 8% — — pred. anafórico 7/11 64% — — — — 4/11 36%
No que diz respeito ao PB, a tabela anterior revela que, em estruturas
sintáticas simples com objeto direto que retoma um SN, o clítico está em
equilíbrio com a soma das demais variantes, destacando-se dentre estas o
objeto nulo, que representa 32% das ocorrências:
(057) E o filme é genial. Vi __ cinco vezes. (PB: O Globo, 12-09-2004 –
Entrevista)
131
Com as estruturas sintáticas que projetam um objeto direto (SN) e um
dativo, o uso do clítico cai consideravelmente em favor das demais estratégias
de realização da variável, com destaque mais uma vez para o objeto nulo, que
passa a exibir um índice de 57%:
(058) Se você disser pra mim amanhã “descobrimos uma maneira de banir a
arma de fogo de uma maneira geral”, eu pego as minhas armas […] e te
entrego __. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 11-07-1999 –
Entrevista)
Se forem consideradas as estruturas sintáticas simples com acusativo
anafórico oracional ou predicativo, o índice de ocorrência do objeto nulo
aumenta ainda mais, chegando a 70% e 86%, respectivamente, em detrimento
da variante prestigiada pela tradição, o que ratifica mais uma vez a tendência
de usar a categoria vazia nesses contextos, conforme já foi demonstrado na
seção 4.1.1.1 deste capítulo.
Por outro lado, as estruturas constituídas por objeto direto que retoma
um SN seguido de predicativo ou oblíquo parecem contradizer essa expansão
da categoria vazia no PB, uma vez que, em tais contextos, o clítico apresenta
um índice de 61% contra 20% de objetos nulos. No entanto, observou-se uma
interferência do fator contínuo de oralidade-letramento nesses resultados: de
todas as ocorrências de clíticos no tipo de estrutura sintática ora em questão,
60% figuravam no extremo de [+ letramento], o que explica, portanto, o alto
índice ainda apresentado pelo pronome acusativo, já que tal extremo do
contínuo costuma guardar muitos pontos de contato com a tradição gramatical,
que prescreve o clítico na realização do acusativo anafórico de terceira pessoa.
Não obstante isso, verifica-se que, paralelamente ao uso da variante
prestigiada pela tradição, aparecem também as demais estratégias de
representação da variável nas estruturas ora em análise, inclusive o pronome
lexical. Vejam-se os exemplos:
(059) Tudo o que o presidente queria era demonstrar o tamanho de sua
132
indignação, mas faltou quem o advertisse da leitura óbvia. (PB: O
Globo, 16-05-2004 – Artigo de opinião)
(060) “Vai, Marina! Começa!” “Querem deixar ela sossegada?” (PB:
Almanacão de férias da Turma da Mônica, n.º 36, 2002 – História em
quadrinhos)
(061) “Preciso falar com o delegado! É um caso de extrema emergência!”
“Ele não está! Depois de ter trancado o gerente do banco de Patópolis
numa cela, saiu correndo com uma caixa nas mãos! Devia conter
alguma coisa muito valiosa! Nunca vi o delegado tão agitado assim!
(PB: Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(062) Porque pegamos o mundo da mídia, da comunicação, das tecnologias e
enquadramos __ na análise sintática tradicional da escola. (PB: Jornal
do Brasil, 28-11-1999 – Entrevista)
Malgrado o número de estruturas do tipo objeto direto (SN) seguido de
oblíquo oracional encontrado na amostra ter sido quantitativamente pequeno,
percebeu-se a mesma interferência do fator contínuo, uma vez que o clítico,
variante majoritária nessas estruturas, só apareceu em eventos de
comunicação contendo traço de letramento, como mostra o exemplo seguinte:
(063) Para reforçar o caixa, alguns candidatos têm passado pessoalmente o
pires em encontros a portas fechadas com empresários. Além de
convencê-los a investir em política, têm outro desafio: aplacar a
desconfiança. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)
Já as poucas estruturas constituídas por objeto direto oracional seguido
de oblíquo não apresentaram uma ocorrência sequer de clítico, mas somente
de objeto nulo e de SN anafórico, prevalecendo o último:
133
(064) Do contrário, Edinanci já as teria dado aos amigos, como já fez __ com
alguns troféus. (PB: O Globo, 16-05-2004 – Reportagem)
(065) Preciso colocar mais fotos minhas nas paredes do apartamento. […]
Mas vou fazer isso em breve. (PB: Suplemento Casa & Decoração do
Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Entrevista)
Por fim, chamam a atenção no PB as estruturas complexas construídas
com os verbos denominados causativos e perceptivos, cujo complemento é
uma oração infinitiva encetada por um “sujeito acusativo”. Segundo a tabela,
há uma competição entre o pronome lexical e o clítico na disputa pelo total de
ocorrências dessas estruturas, com vantagem para o primeiro. Investigando
essas mesmas estruturas a partir do contínuo de oralidade-letramento,
constata-se uma distribuição: enquanto o pronome lexical só aparece nos
eventos de comunicação que apresentam traço de oralidade, o clítico figura
apenas nos eventos que contêm traço de letramento. Observem-se os
exemplos (066) e (068), que representam cada qual os extremos opostos do
contínuo, e os exemplos (067) e (069), que pertencem ao nível intermediário:
(066) “Aonde você está indo?” “A uma consulta com o doutor Charlat! Quero
ver ele me passar uma dieta!” (PB: Hagar, o horrível em O Globo, 04-
09-2004 – Tira em quadrinhos)
(067) Pouco antes da Copa, fui convocado por Zagallo para uma seleção
carioca e, ao me ver jogando num treino, ouviram ele dizer: “Não sabia
que este garoto jogava tanto!” (PB: O Globo, 12-09-2004 – Entrevista)
(068) O músico seguiu os conselhos, foi para os estúdios da Tupi e lembra de
histórias que mostram por que Jamelão, o cantor da Mangueira,
sustentava a pecha de mal-humorado — já naquela época. Enquanto
ensaiava uma de suas canções de acento jazzístico, o intérprete o
mandou parar com aquelas modernidades. (PB: Revista Domingo do
Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
134
(069) Tínhamos uma grande companhia que ficou à beira da falência,
conseguimos fazê-la sobreviver e, como uma árvore, dar bons frutos.
(PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 05-05-2004 – Entrevista)
Diante dos exemplos acima, percebe-se que as estruturas sintáticas
projetadas pelos chamados verbos causativos e perceptivos favorecem o uso
do pronome lexical, que é legitimado pela ocorrência no PB do infinitivo
flexionado, de modo que essa legitimidade tende a neutralizar o emprego do
clítico acusativo nessas estruturas. Note-se que tais construções já aparecem
em eventos de comunicação que apresentam traços não só de oralidade, mas
também de letramento, como os textos que se situam no nível intermediário do
contínuo: investigando esse nível separado dos demais, constatou-se que o
uso do pronome lexical nas estruturas ora em análise foi ainda maior,
apresentando um índice de 73%, em oposição a 18% de clíticos e a 9% de SNs
anafóricos. Por conseguinte, tais resultados sinalizam que, na escrita
brasileira, já não parece ser estigmatizado o pronome lexical que figura em
estruturas sintáticas projetadas pelos verbos tradicionalmente chamados
causativos e perceptivos.
A respeito do PE, a tabela demonstra que o clítico exibe larga vantagem
sobre as demais variantes em quase todos os contextos. Nas estruturas
sintáticas que representam a maior concentração dos dados, isto é, as simples
com objeto direto (SN) e aquelas com objeto direto (SN) seguido de predicativo
ou oblíquo, os índices da variante prestigiada pela tradição ultrapassam de
longe os percentuais obtidos com a soma das demais variantes:
(070) Uma cliente tinha comunicado o furto de uma pulseira preciosa! E eu
encontrei-a! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 – História
em quadrinhos)
(071) A obra terminara um tanto ou quanto irregular, desarmoniosa, com
peças desiguais. O meu filho mais velho, que entretanto se aproximara,
achou-a muito estranha; nunca tinha visto uma casa assim. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 – Crônica)
135
(072) O contrato foi celebrado e a vida do agricultor alterou-se a partir daí.
Tornou-se rico e temido, e trocou a companhia da família e a velha casa
onde viviam por uma rica mansão e uma diabólica amante que o
afastava da virtude. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-
02-2000 – Crônica)
Apenas nas estruturas simples com objeto direto oracional, ocorre
preferencialmente o emprego do objeto nulo (59%) em detrimento do clítico
(29%), conforme já foi demonstrado na seção 4.1.1.1 deste capítulo. No
entanto, nas estruturas com objeto direto oracional seguido de oblíquo, o
pronome acusativo já se mostra como a variante majoritária:
(073) Na altura desse desencanto do poeta, as grandes nações da Europa – a
Alemanha, a Áustria-Hungria, a Inglaterra, a Espanha – ainda não
tinham reconhecido a República, mas iam fazê-lo dali a dias. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Crítica de livro)
Finalmente, em estruturas constituídas de sujeito marcado com o caso
acusativo seguido de oração infinitiva, que são projetadas pelos verbos
causativos e perceptivos, evidencia-se no PE uma forte preferência pelo clítico
acusativo, cujo emprego em tais contextos é praticamente categórico:
(074) “Onde está o “tipo” do chocolate com natas?” “Ouvi-o falar em
experimentar a sauna… (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001
– História em quadrinhos)
Pelo exemplo anterior, que pertence ao extremo de [+ oralidade] do
contínuo, verifica-se que, na variedade lusitana, a ocorrência do clítico nas
estruturas ora focalizadas independe do traço de letramento do evento de
comunicação, ao contrário do que se constatou no PB, em que o sujeito com a
marca de acusativo só aparece em eventos que contenham esse traço.
Conforme demonstrou a análise das diferentes estruturas sintáticas
136
projetadas pelo verbo, as duas variedades do português mais uma vez
apresentaram diferenças significativas: enquanto no PB o objeto nulo disputa
com o clítico a hegemonia na realização do acusativo anafórico de terceira
pessoa na escrita, no PE o pronome acusativo mantém-se robusto e estável
em todas as estruturas de um modo geral, o que evidencia que essas duas
variedades seguem caminhos bem distintos.
4.1.1.4- Contexto de ilha sintática
De acordo com Raposo (1986), há, no PE, certos contextos sintáticos
em que o objeto nulo sofre marcante restrição, como nas orações subordinadas
subjetivas, completivas nominais, interrogativas, relativas e adjuntas. Tal
restrição, que atua no movimento de constituintes qu-, levou o autor a propor o
estatuto de “variável” para o objeto nulo, sendo os contextos enumerados
acima chamados de “ilhas”, a partir das quais um elemento não pode ser
extraído, o que então bloquearia o emprego do objeto nulo.
Conseqüentemente, este só seria licenciado nas orações independentes,
raízes, coordenadas e objetivas direta e indireta, que não constituem contexto
de ilha sintática. Com relação ao PB, os trabalhos de Cyrino (1993, 1997)
apontam que nessa variedade o objeto nulo não sofre a mesma restrição
descrita na variedade lusitana por Raposo (1986), visto que pode ocorrer
livremente em qualquer contexto sintático, o que elimina a possibilidade de
considerá-lo uma “variável”, como no PE.
Para testar a aplicabilidade dessas descrições diante da modalidade
escrita, investigou-se a interferência do contexto sintático na representação do
acusativo anafórico de terceira pessoa nas duas variedades. Observe-se a
tabela a seguir com os resultados:
Tabela 4.7. Função acusativa: distribuição das variantes segundo o contexto de ilha sintática
PB Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo Não ilha sintática 102/258 40% 28/258 11% 40/258 15% 88/258 34%
Ilha sintática 87/148 59% 4/148 3% 18/148 12% 39/148 26%
PE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo Não ilha sintática 175/238 73% — — 28/238 12% 35/238 15%
Ilha sintática 107/128 84% — — 12/128 9% 9/128 7%
137
Não obstante o alto índice de preenchimento da posição de objeto nas
construções que não representam ilha sintática, observa-se que é justamente
nesses contextos que se dá uma ocorrência maior da categoria vazia, não só
no PB, mas também no PE, o que não chega a ser uma surpresa, já que
Raposo (1986) descrevera a ausência de restrições nesses contextos para o
uso do objeto nulo na variedade lusitana. Vejam-se os exemplos a seguir:
(075) Cheguei meio por acaso para me apresentar no programa do Ary
Barroso. Disse meu nome, ele achou __ horrível […] (PB: Revista
Domingo do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Trecho de fala em
reportagem)
(076) Costumamos dizer: santos da casa não fazem milagres. Mas aqui
fizeram __. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 –
Entrevista)
Com relação aos contextos de ilha sintática, apontados pelo autor
supracitado como de restrição ao objeto nulo no PE, a tabela demonstra que a
escrita de ambas as variedades também tende a preencher a posição de
objeto, sendo o clítico a variante predileta, evidentemente com índice bem
maior na amostra portuguesa. Por outro lado, a tabela igualmente indica, tanto
no PB como no PE, a ocorrência da categoria vazia nesses mesmos contextos,
todavia com diferenças marcantes entre esses dois sistemas. Na amostra
brasileira, o objeto nulo representa sozinho pouco mais de um quarto das
construções com ilhas sintáticas, figurando não só com objetos oracionais e
predicativos, mas também com objetos cujo antecedente é um SN, o que
revela o caráter pronominal dessa variante no PB, uma vez que não há
restrições à sua ocorrência, tal qual demonstraram os estudos de Cyrino (1993,
1997). A seguir, vejam-se os exemplos com diferentes tipos de antecedentes:
(077) Há muitos candidatos que não podem fazer campanha em locais do Rio
cujos governantes, que não são do Estado, mas traficantes ou bandidos
138
“privados”, não permitem __. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Crônica)
(078) Tem horas em que é pai coruja. Tem horas em que não é __. (PB: O
Globo, 12-09-2004 – Entrevista)
(079) Pois bem, Cascão Holmes! Pode procurar o Sansão! Mas, se não
achar __, já sabe! (PB: Almanacão de férias da Turma da Mônica, n.º
36, 2002 – História em quadrinhos)
Já na amostra portuguesa, o índice de ocorrência do objeto nulo em
contextos de ilha sintática fica abaixo de 10%, aparecendo, na maioria das
vezes, com objetos oracionais e predicativos:
(080) A Brigite está a cozinhar para o tio Patinhas?! Como é que isso é
possível? Vamos recuar alguns dias para descobrir __… (PE: Tio
Patinhas, n.º 224, agosto de 2004 – História em quadrinhos)
(081) “Ele está cansado!” “E quem não está __? Era bom que o tio Patinhas
voltasse para casa!” (PE: Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 –
História em quadrinhos)
Entretanto, consoante o exposto na seção 4.1.1.1, sabe-se que o
acusativo anafórico oracional e predicativo já exibia alternância entre o uso do
clítico e da categoria vazia desde o século XVI, como mostram os estudos
diacrônicos de Cyrino (1993, 1997). Além disso, Matos (2003), propondo uma
distinção entre o objeto nulo com antecedente SN e a categoria vazia com
antecedente oracional ou predicativo, chamada de anáfora do complemento
nulo, assevera que, enquanto o objeto nulo no PE se encontra “excluído de
domínios de subordinação adverbial e relativa”, essas restrições “não afectam
os casos de Anáfora do Complemento Nulo” (p. 888). Por conseguinte, a
ocorrência da categoria vazia com antecedente oracional ou predicativo no PE
já não deve surpreender, mesmo que se dê em contextos de ilha sintática.
139
Por outro lado, foram também encontrados na amostra portuguesa
alguns poucos exemplos de objetos nulos cujo antecedente era um SN em
contexto de ilha sintática:
(082) Sem que te pudesse dar uma mão para apertares__, porque quando lá
cheguei ela já estava fria e já não me podias sentir. Porque quando a
quiseste apertar eu estava no meu carro fabuloso[...] (PE: Suplemento
DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
Diante de ocorrências no PE similares ao exemplo anterior, Kato e
Raposo (2001) revisaram o estudo deste último (1986), que apontava os
contextos de ilha sintática como uma restrição ao emprego do objeto nulo.
Segundo constataram mais recentemente esses dois autores, “o objeto nulo é
aceito por muitos portugueses em muitos contextos de ilhas” (p. 681). No
entanto, de acordo com os mesmos autores, a restrição ao objeto nulo deve-se
então a dois fatores, que atuariam nas duas variedades: o paralelismo sintático
e a animacidade do antecedente do acusativo anafórico.
O primeiro fator significa que um sujeito vazio “requer um antecedente
sujeito e o objeto, um antecedente objeto” (p. 683), enquanto o segundo se
refere ao fato de que as frases com objeto nulo “são aceitas quando o objeto é
não-humano, sentindo-se uma deterioração se este é humano” (p. 683). De
acordo com essa proposta, só seriam perfeitamente aceitas, tanto no PB
quanto no PE, as frases com objeto nulo cujo antecedente exercesse também
a função de objeto e fosse não-humano. Por razões didáticas, será comentada
nesta seção a possível interferência do paralelismo sintático na ocorrência do
objeto nulo, deixando-se a questão da animacidade do antecedente do objeto
para a seção seguinte, que tratará desse assunto.
Sem dúvida alguma, os exemplos (079) do PB e (082) do PE ilustram
muito bem a restrição relacionada ao paralelismo sintático, todavia uma análise
mais detalhada das amostras revela que as duas variedades se distinguem no
acatamento a tal restrição. De fato, enquanto no PE não foram encontradas
ocorrências de objeto nulo com antecedente na função de sujeito, no PB tais
casos apareceram, tanto com antecedente não-humano quanto humano:
140
(083) O relógio que tenho na parede da sala não é bem herança, pois fui eu
que comprei __, em uma feira de antigüidades na Praça 15. (PB:
Suplemento Casa & Decoração do Jornal do Brasil, 02-05-2004 –
Entrevista)
(084) Tôni só se meteu em confusões e a mãe dele teve que ir buscar __!
(PB: Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
Diante disso, pode-se inferir que a restrição ao objeto nulo com
antecedente na função de sujeito só vale para o PE, não afetando o PB, o que
de todo não contraria a proposta de Kato e Raposo (2001), que até admitem
que “o objeto nulo do PB pode ter um antecedente em posição-A, mas que este
não pode ser humano” (p. 682). Entretanto, a ocorrência de exemplos como
(084), no mínimo, põe em xeque essa última restrição, assunto que será
retomado na seção seguinte.
Por ora, a partir de uma análise mais refinada, separando os casos de
objeto nulo das ocorrências de anáfora do complemento nulo, conforme a
proposta de Matos (2003), podem-se constatar diferenças marcantes entre as
duas variedades focalizadas. Na escrita brasileira, verifica-se que o objeto nulo
pode aparecer livremente com qualquer tipo de oração, com antecedente
humano ou não-humano, sendo a mais expressiva de todas as variantes
alternativas ao clítico. Já na escrita portuguesa, o objeto nulo só é um pouco
mais freqüente nos contextos que não representam ilhas sintáticas, sendo a
sua ocorrência bastante marginal nos contextos de ilha sintática, em geral com
antecedente de traço não-humano.
4.1.1.5- Traço semântico
Em função do que foi sinalizado na seção anterior, mostra-se bastante
profícua uma abordagem que leve em conta o traço semântico do antecedente
do acusativo anafórico no estudo da sua representação na escrita brasileira e
portuguesa. Observe-se a tabela seguinte:
141
Tabela 4.8. Função acusativa: distribuição das variantes segundo o traço semântico
PB Clítico Pron. Lexical SN anafórico Objeto nulo [+ referencial; + animado] 115/164 70% 22/164 14% 20/164 12% 7/164 4% [+ referencial; – animado] 68/192 35% 10/192 5% 28/192 15% 86/192 45% [– referencial] 6/50 12% — — 10/50 20% 34/50 68%
PE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo [+ referencial; + animado] 133/157 85% — — 22/157 14% 2/157 1% [+ referencial; – animado] 132/171 77% — — 12/171 7% 27/171 16% [– referencial] 17/38 45% — — 6/38 16% 15/38 39%
Segundo a tabela acima, com objetos de traço semântico [+ referencial;
+ animado], não há diferenças substanciais entre as duas variedades quanto
ao uso do clítico, uma vez que este é de longe a variante predileta tanto no PB
quanto no PE:
(085) Quando passa o vendedor de empada, vai cumprimentá-lo e ainda faz
propaganda para quem está na loja. (PB: Revista Domingo do Jornal
do Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
(086) Longe de ter falhado, a intuição de Margarida Cardoso conduzia-a
certeira para novo projecto, em 99, a curta metragem “Entre nós”. (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 – Entrevista)
Conforme foi referido na seção anterior, Kato e Raposo (2001) apontam
a animacidade do antecedente como um fator que impõe restrição à categoria
vazia nas duas variedades. Por conseguinte, esses mesmos autores
demonstram certa reserva quanto à ocorrência do objeto nulo com antecedente
de traço semântico [+ humano]: no PE, consideram-no agramatical; no PB,
questionam a sua gramaticalidade. No entanto, foram encontrados, na amostra
brasileira, casos de objeto nulo com antecedente [+ humano], conforme foi
exemplificado em (084). Por sua vez, I. Duarte (2003) apresenta uma proposta
teórica semelhante quanto ao fator animacidade. Segundo ela, construções
com objetos nulos dentro de ilhas, que no PB são gramaticais, também o
podem ser para alguns falantes do PE, segundo foi demonstrado em (082).
Observem-se mais exemplos de objetos nulos em ilha sintática das duas
variedades:
142
(087) […] eles devolviam os ternos com as carteiras dentro e tínhamos de
correr atrás para devolver __. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Trecho de
fala em reportagem)
(088) “São os pedaços de couro usados nas patas dos cavalos! E aqui está o
furado!” “Aposto que eles deixaram aqui para usar __ da próxima vez
que brincarem aos índios!” (PE: Disney Especial, n. 222, outubro de
2004 – História em quadrinhos)
Por outro lado, segundo essa mesma autora, construções com objeto
nulo seriam bloqueadas, especialmente no PE, pela presença de duas
condições simultâneas: dentro de ilhas e com antecedente de traço [+
animado]. De fato, na amostra portuguesa, ocorreu um único caso de objeto
nulo dentro de ilha sintática e com antecedente [+ animado] ao mesmo tempo:
(089) O artigo IV foi rejeitado por 285 votos contra 148. Ele acusava
nomeadamente o Presidente de se ter conduzido de uma maneira que
levou __ a um mau uso e abuso das suas altas funções, influenciando a
conduta da justiça e a conduta das investigações judiciais e contrariando
a autoridade do poder legislativo. (PE: Diário de Notícias, 10-12-1998 –
Reportagem)
Entretanto, o objeto da construção anterior pode ter uma interpretação
genérica, o que torna discutível a ocorrência do objeto nulo referencial,
validando assim a proposta de I. Duarte (2003) para o PE. Já no PB, ao
contrário, a ocorrência de objeto nulo em ilha com antecedente [+ animado]
não deixa margem a dúvidas, como mostra o exemplo seguinte:
(090) O nome foi abolido por Ary Barroso, que, ao ver aquele rapaz magro,
bom de papo e talentoso no trombone, batizou __ de Raulzinho. (PB:
Revista Domingo do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
143
Considerando as amostras ora analisadas, constata-se que as restrições
apontadas por Kato e Raposo (2001) para o uso do objeto nulo não se aplicam
ao PB, uma vez que nessa variedade tal variante pode ocorrer com
antecedente em função que não seja de objeto (cf. 4.1.1.4) e com traço
semântico humano ou não-humano. No que diz respeito ao PE, por outro lado,
tais restrições são mais aplicáveis, visto que o objeto nulo, na amostra dessa
variedade, só ocorre com antecedente que exerça a mesma função e
preferencialmente com traço semântico não-humano, já que apareceu apenas
um único caso de objeto nulo com antecedente humano (089). No entanto, tal
ocorrência, que se deu em contexto de ilha sintática, parece ter uma
interpretação genérica, comum às línguas que não admitem objeto nulo
referencial. Por essa razão, pode-se dizer que não se aplica ao PB, mas
somente ao PE, a restrição formulada por I. Duarte (2003), segundo a qual o
objeto nulo é bloqueado em contexto de ilha sintática e com antecedente [+
animado] simultaneamente.
Retornando agora especificamente à questão da animacidade do
antecedente do acusativo anafórico, nota-se que, na variedade brasileira, o
pronome lexical em função acusativa é favorecido quando o antecedente é [+
animado]: de todas as variantes alternativas à variante considerada padrão, tal
elemento foi o que apresentou o maior índice de ocorrência:
(091) Para mim, ver Maria Lenk nadar, merecidamente aplaudida pelo público,
foi um privilégio excepcional. Estou louca para ver ela, e as outras
sereias vintage da turma da mamãe, repetindo a dose no próximo
mundial, daqui a dois anos. (PB: Segundo Caderno de O Globo, 17-06-
2004 – Crônica)
Com os objetos de traço [+ referencial; – animado], as diferenças entre
as duas variedades tornam-se mais significativas. No PB, o clítico representa
menos da metade do total de ocorrências, favorecendo o uso das demais
variantes candidatas à realização da variável:
144
(092) “Mas é só um lacinho! Pra que ele serve?” “Eu estava com ele no meu
dedo o dia todo! Nem lembrava por que eu tinha colocado ele aí!” (PB:
Almanacão de férias da Turma da Mônica, n.º 18, 1995 – História em
quadrinhos)
(093) Mas cortar a cana é coisa que o presidente não admite de jeito nenhum.
Afinal de contas, se cortarem a cana, o que é que vão beber no
churrasco? (PB: Segundo Caderno de O Globo, 16-05-2004 – Crônica)
(094) Ele, menino, 13 anos, vivia com a revista debaixo do braço, lia __
e relia __. (PB: Caderno H do Jornal do Brasil, 25-04-2004 –
Reportagem)
No PE, ao contrário, a variante considerada padrão mantém-se bastante
robusta, embora já ceda espaço à ocorrência das demais variantes, conforme
mostram os exemplos seguintes:
(095) “Pôxa! Não percebo nada! O primo Alarico disse na carta que a estrada
era boa!” “Deixa-me ver essa carta, Pateta!” (PE: Disney Especial, n.º
222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(096) “Os pedaços de couro usados nas patas dos cavalos! E aqui está o
furado!” “Aposto que eles deixaram __ aqui para usar __ da próxima vez
que brincarem aos índios!” (PE: Disney Especial, n.º 222, outubro de
2004 – História em quadrinhos)
Finalmente, com o acusativo anafórico [– referencial], que compreende o
oracional e o predicativo, que Matos (2003) aponta como passíveis de anáfora
do complemento nulo, as diferenças entre as duas variedades acentuam-se
ainda mais. No PB, a categoria vazia desponta como a variante predileta,
superando com larga vantagem o uso do clítico:
145
(097) Sei que os wendigos estão nos seguindo! Posso sentir __! (PB: Tio
Patinhas, n.º 471, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(098) Descobri que não só não era a mulher maravilha, como não precisava
ser __. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 05-12-1999 –
Entrevista)
No PE, a variante prestigiada pela tradição ainda aparece de maneira
bem expressiva, ficando em equilíbrio com a categoria vazia, tal como já
ocorria desde o século XVI, segundo os estudos diacrônicos de Cyrino (1993,
1997):
(099) Mendilairo Turpante y Morón era o mais corrupto político da república de
Estripa. O mais corrupto. E todos o sabiam. (PE: Suplemento DNA do
Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)
(100) “Acredita em mim, Brigite! O Patacôncio quer apenas a tua receita!” “Eu
sei __!” (PE: Tio Patinhas, n.º 224, agosto de 2004 – História em
quadrinhos)
(101) A diferença entre aquilo que entendeu como insensibilidade da minha
parte relativamente aos professores não o é de todo ou, doutra forma,
nem sequer pensaria no assunto […] (PE: Suplemento DNA do Diário
de Notícias, 05-02-2000 – Artigo de opinião)
(102) Deve continuar a ser um canal público, mas um canal público que não
faça de conta que não é __, ou seja, que se bata com as privadas, que
seja uma alternativa às outras duas. (Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 12-02-2000 – Entrevista)
Em suma, pode-se estabelecer como generalização o fato de que as
duas variedades do português passam a seguir caminhos opostos nos
146
contextos envolvendo objetos que não contenham o traço [+ animado]:
enquanto no PE o clítico permanece como a variante mais expressiva, no PB
prevalece o objeto nulo:
(103) Vou falar disso no meu próximo livro. Ainda não comecei a escrever __,
mas é um livro para o ano 2000. (PB: Revista Domingo do Jornal do
Brasil, 05-12-1999 – Entrevista)
(104) Estão sempre a pedir-me para fazer retratos, mas eu só os faço quando
há empatia com a pessoa. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias,
05-02-2000 – Entrevista)
Ficou evidenciado, pois, que o objeto nulo no PB, ao contrário do que
ocorre no PE, já é usado para representar o acusativo anafórico com qualquer
traço semântico. No entanto, registra-se uma freqüência mais reduzida dessa
variante em contextos com antecedente [+ animado]. Em decorrência disso,
verifica-se que a implementação da categoria vazia na variedade brasileira
obedece a uma hierarquia referencial, segundo propõem Cyrino, Duarte e Kato
(2000): um grau mais alto com os objetos de traço [– referencial], um grau
intermediário com os de traço [+ referencial; – animado] e um grau mais baixo
com os de traço [+ referencial; + animado]. Tal constatação vem justamente
corroborar uma das hipóteses deste trabalho. Por conseguinte, a escrita
brasileira recupera o clítico acusativo respeitando essa hierarquia de
referencialidade.
Após a análise quantitativa dos fatores levantados para a função
acusativa, procedeu-se à investigação dos pesos relativos, feita a partir de uma
célula para o PB e outra para o PE, opondo o clítico às demais variantes. Em
ambas as amostras, o programa GoldVarb 2000 selecionou como mais
significativos para a ocorrência do clítico acusativo os seguintes fatores:
contínuo de oralidade-letramento, traço semântico e forma verbal. Como foram
obtidos em rodadas diferentes, os pesos só podem ser lidos na linha horizontal.
Os resultados serão exibidos nas tabelas seguintes:
147
Tabela 4.9. Clítico em função acusativa: pesos relativos do fator contínuo
Variedade [+ oralidade/ – letramento] [+ oralidade/ + letramento] [– oralidade/ + letramento]
PB 0,17 0,48 0,77 PE 0,34 0,54 0,64
Input PB: 0,45 Input PE: 0,78
Tabela 4.10. Clítico em função acusativa: pesos relativos do fator traço semântico
Variedade [– referencial] [+ referencial; – animado] [+ referencial; + animado]
PB 0,14 0,39 0,73 PE 0,18 0,48 0,60
Input PB: 0,45 Input PE: 0,78
Tabela 4.11. Clítico em função acusativa: pesos relativos do fator forma verbal
Variedade Formas simples flexionadas
Formas complexas com tempo
Formas simples não flexionadas
PB 0,39 0,48 0,73 PE 0,44 0,49 0,66
Input PB: 0,46 Input PE: 0,77
Os pesos relativos obtidos vêm exatamente ratificar as hipóteses
levantadas sobre as duas variedades. Na escrita brasileira, o clítico acusativo
só mostra sinais de resistência mediante as seguintes condições: (a) em
eventos de letramento; (b) com antecedentes de traço semântico animado; (c)
sob a forma lo, haja vista a sua maior incidência com as formas verbais simples
não flexionadas (fora as complexas marcadas com tempo e constituídas por
locuções verbais com infinitivo), sempre em ênclise. Por fim, não se pode
deixar de mencionar o fato de que, na amostra brasileira, o primeiro fator
selecionado pelo programa foi justamente o contínuo, o que sinaliza ser o
pronome acusativo um item lingüístico típico do processo de letramento, visto
que não costuma estar acessível no processo natural de aquisição da
linguagem, conforme evidenciam muitos trabalhos sobre o PB oral.
Quanto à escrita portuguesa, embora os pesos mais altos também se
situem no extremo [+ letramento], verifica-se que a distância entre os pesos se
mostra, em geral, bem menor que no PB. Na verdade, os pesos das duas
variedades não podem ser comparados entre si, uma vez que provêm de
rodadas diferentes. Dessa forma, são os percentuais que permitem observar
mais claramente a presença robusta do clítico em todos os pontos do contínuo
no PE, ao contrário do que se verifica no PB. Ainda assim, percebe-se que o
clítico cede certo espaço à ocorrência das demais variantes em contextos
148
localizados: (a) em eventos de oralidade; (b) com antecedentes de traço não
animado, sobretudo não referencial. Já com as formas verbais, a distribuição é
mais regular. Por outro lado, deve-se registrar que o clítico do PE, cuja
ocorrência também foi favorecida pelas formas verbais simples não
flexionadas, não apareceu nesses mesmos contextos apenas em posição
enclítica, como no PB, mas também em próclise. Quanto ao primeiro fator
selecionado pelo programa para a amostra portuguesa, foi indicado o traço
semântico, sinalizando que o clítico se mantém bastante robusto nos contextos
mais referenciais, de modo que é especialmente nos menos referenciais que
ele cede mais espaço às demais variantes, em especial do objeto nulo.
Em vista da análise empreendida sobre a função acusativa, ficou
evidente que as diferenças entre as duas variedades sobre o uso do clítico
encontradas na língua falada também se manifestam na escrita: enquanto no
PB a variante prestigiada pela tradição aparece preferencialmente em eventos
de letramento e sob certas condições estruturais, no PE ela se mostra sempre
estável e independe do grau de letramento e de contextos estruturais. Por um
lado, essas diferenças fornecem indícios a favor da hipótese de Galves (1998),
segundo a qual esses dois sistemas constituem duas Línguas-I distintas; por
outro, sinalizam que a escrita do adulto brasileiro letrado não é a mesma do
letrado português, conforme postula Kato (no prelo) em trabalho mais recente.
4.2- Função dativa
Segundo foi demonstrado no primeiro capítulo, os trabalhos acadêmicos
que tratam da realização do objeto indireto stricto sensu correferente com um
SN presente no discurso (dativo anafórico de terceira pessoa) registram a
ocorrência das seguintes variantes usadas em substituição ao clítico: categoria
vazia e SP anafórico, sendo este com a forma tônica do pronome ou com SN
pleno. O cômputo geral dos dados, distribuído de acordo com as variantes
levantadas nas duas amostras, é apresentado a seguir:
Tabela 4.12. Função dativa: distribuição dos dados computados segundo a variante usada
Variedades Clítico SP anafórico Objeto nulo PB 41/155 26% 65/155 42% 49/155 32% PE 90/108 83% 3/108 3% 15/108 14%
Os resultados gerais sobre a função dativa apontam que, do ponto de
149
vista quantitativo, a diferença entre as duas variedades quanto ao emprego do
clítico é bem mais profunda do que a encontrada na função acusativa: na
variedade brasileira, a variante prestigiada pela tradição constitui apenas um
quarto do total de dados. Quanto à variedade lusitana, essa mesma variante
representa quase a totalidade das ocorrências de dativo anafórico de terceira
pessoa. Por conseguinte, enquanto no PE as estratégias alternativas ao clítico
se mostram bastante periféricas, no PB ostentam, somadas, o expressivo
índice de 72%, destacando-se dentre elas o SP anafórico. Tal constatação
sinaliza um fato contundente na variedade brasileira: também na função dativa
as estratégias alternativas à variante considerada padrão já estão plenamente
infiltradas na escrita, o que evidencia uma influência limitada da tradição
escolar na recuperação do clítico na modalidade escrita brasileira. Os
resultados gerais podem ser mais bem visualizados a partir do seguinte gráfico:
Gráfico IV. Função dativa: distribuição das variantes segundo a variedade do português
Pela disposição visual do gráfico, já se nota uma diferença marcante
entre as duas variedades: enquanto no PE o clítico ostenta larga vantagem
sobre as demais estratégias de realização da variável, no PB verifica-se certo
equilíbrio entre as três variantes, o que é confirmado pelo fato de nenhuma
26%
83%
42%
3%
32%
14%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Clítico SP anafórico Objeto nulo
PB
PE
150
delas representar sozinha a metade do total de dados da amostra. No entanto,
é incontestável o fato de que, na variedade brasileira, a variante menos usada
é o clítico, que cede espaço ao objeto nulo e ao SP anafórico, sendo este a
variante predileta na expressão do dativo anafórico de terceira pessoa.
Embora seja a variante menos empregada na amostra do PB, o clítico
exibe ainda um percentual de ocorrência até bem alto se comparado com os
resultados dos trabalhos sobre a língua oral, que registram um uso escasso ou
até ausente dessa mesma variante na representação do dativo anafórico de
terceira pessoa (cf. Silveira, 2000; Freire, 2000). Em decorrência disso,
pretende-se observar sob que condições aparece esse clítico na escrita
brasileira, sempre contrastando com o seu uso na escrita lusitana. Do mesmo
modo, serão investigados os contextos de ocorrência das demais variantes nas
duas amostras, a fim de apontar aspectos característicos da escrita do letrado
adulto brasileiro e português.
Tal como na função acusativa, será feito o exame da distribuição das
variantes através do contínuo de oralidade-letramento para explicitar as
diferenças quantitativas e qualitativas entre elas no PB e no PE. Observe-se a
próxima tabela com a distribuição do número de ocorrências, seguida dos
exemplos das variantes em cada nível do contínuo:
Tabela 4.13. Função dativa: distribuição das variantes no contínuo de oralidade-letramento
PB Clítico SP anafórico Objeto nulo Total [+ oralidade/ – letramento] 01 21 06 28 [+ oralidade/ + letramento] 08 22 21 51 [– oralidade/ + letramento] 32 22 22 76
PE Clítico SP anafórico Objeto nulo Total [+ oralidade/ – letramento] 18 01 08 27 [+ oralidade/ + letramento] 43 — 03 46 [– oralidade/ + letramento] 29 02 04 35
a) [+ oralidade/ – letramento]
(i) clítico
(105) Minha filha ainda cabe no meu colo… E gosta de ouvir canções de
ninar… E gosta de chocalho… E chupeta… E de comer a papinha que
eu lhe dou… (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 78, dezembro de 2003
– História em quadrinhos)
151
(106) “Acredita em mim, Brigite! O Patacôncio quer apenas a tua receita!” “Eu
sei! Só lhe dei atenção para te provocar ciúmes! A receita foi sempre
tua!” (PE: Tio Patinhas, n.º 224, agosto de 2004 – História em
quadrinhos)
(ii) SP anafórico
(107) O Cebolinha vai adorar o computador! […] Vou aproveitar que ele está
dormindo pra montá-lo e dar uma boa lida no manual! E amanhã cedo
ensino tudo direitinho pra ele! (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 77,
outubro de 2003 – História em quadrinhos)
(108) Regulei o relógio para atirar uma pedra ao telhado dos porquinhos de
cinco em cinco minutos… a noite toda! Acho que vou dar àqueles
gorduchos uma amostra do que está para acontecer! (PB: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(iii) objeto nulo
(109) A mamãe gastou um tempão preparando refeição para nós! Tudo o que
tinha a dizer __ era um “obrigado”… e não “como estão seus pulsos
depois de abrir todas essas latas?” (PB: Zé do Boné em O Globo, 04-
08-2004 – Tira em quadrinhos)
(110) “Já sei! É o tio Donald que ainda está a tocar!” “Acho que fomos
malvados ao deixá-lo sozinho!” “Vamos dizer __ que agimos mal!” (PE:
Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
b) [+ oralidade/ + letramento]
(i) clítico
(111) São divertidos os candidatos: querem que os eleitores lhes confiem a
gestão dos impostos que pagam […] (PB: O Globo, 12-09-2004 –
Crônica)
152
(112) Mas também já pensei que não me vou realizar através da minha filha.
[…] Preocupa-me, não, tenho essa atenção: transmitir-lhe uma série de
valores que muitas vezes estão em desuso, mas que não consigo não
ter. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 –
Entrevista)
(ii) SP anafórico
(113) Fiz essa música belíssima em especial para Roberto, mandei para ele,
mas não foi possível para ele gravar. (PB: Revista Domingo do Jornal
do Brasil, 03-10-1999 – Entrevista)
(iii) objeto nulo
(114) O atendimento é sofrível. Já avisei ao gerente e dei __ um prazo para
que o atendimento melhore. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Trecho de fala
em reportagem)
(115) O jovem interno, através do mesmo sistema computadorizado, intercalou
a informação escrita e os gráficos acompanhantes, de uma forma digna
de um Spielberg, fazendo mesmo aparecer pequenos excertos de
intervenções cirúrgicas. Fiquei de tal modo encantado com a tecnologia
que tive de pedir __ uma repetição para me concentrar apenas na crítica
científica. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 –
Crônica)
c) [– oralidade/ + letramento]
(i) clítico
(116) Hoje Ricardo tem uma pequena agência de publicidade e só aceita a
quantidade de clientes que lhe permita trabalhar direito e sem estresse.
(PB: Jornal da Família de O Globo, 16-05-2004 – Reportagem)
153
(117) Margarida Marinho tem 37 anos, um filho chamado Manuel, um amor
pelo teatro, uma paixão pela escrita, um medo invulgar da morte, e uma
lucidez que lhe permite afirmar, peremptoriamente, não saber onde vai
“montar a tenda amanhã”. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias,
19-02-2000 – Reportagem)
(ii) SP anafórico
(118) A nova lei permite que os pequenos partidos formem uma “federação”.
Esse ponto garante que cada um mantenha sua própria organização, ao
mesmo tempo que permite a eles disputar as eleições sob uma mesma
sigla partidária. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)
(119) Rui Sá não está disposto a permitir que a Câmara do Porto lave as mãos
das responsabilidades quanto ao destino dos inquilinos privados que
foram ou estão em vias de ser despejados devido ao risco de ruína dos
prédios em que vivem. Na reunião camarária de ontem, o comunista
apresentou uma proposta, a votar na reunião da próxima semana, em
que recomenda que a autarquia assegure um tecto a esses inquilinos,
imputando aos senhorios o custo desse mesmo realojamento. (PE:
Público, 10-11-2004 – Reportagem)
(iii) objeto nulo
(120) Em seus ensinamentos ao Príncipe, Maquiavel recomendou __ que más
notícias e decisões amargas sejam anunciadas de uma vez só. (PB:
Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Editorial)
(121) Lá em baixo, no palco, os estudantes de Direito faziam uma espécie de
aquecimento (…) Pedro Wilson olhava para eles, mandava __ uma
piada, respondia às provocações bem humoradas de um elemento da
produção ou de um actor. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias
– 08-04-2000 – Reportagem)
154
Tal como na função acusativa, serão exibidos, por meio de gráficos, os
percentuais de ocorrência das variantes candidatas à realização do dativo
anafórico de terceira pessoa ao longo do contínuo, a fim de aferir a tendência
de uso dessas formas dentro da modalidade escrita do PB e do PE. Veja-se o
gráfico relativo à variedade brasileira:
Gráfico V. Função dativa: percentual de cada variante através do contínuo no PB
Conforme se percebe pelo gráfico, o clítico dativo apresenta uma
trajetória ascendente no contínuo: com uma ocorrência bastante inexpressiva
no extremo de [+ oralidade] e ligeiramente mais alta no nível intermediário,
aumenta bruscamente a sua freqüência no extremo oposto, quando somente
então alcança a condição de variante majoritária. No entanto, note-se que,
mesmo no extremo de [+ letramento], a ocorrência do clítico dativo não chega a
representar a metade do total de dados, de modo que as demais variantes
somadas (58%) o superam, diferentemente do que ocorreu com o clítico
acusativo nesse mesmo ponto do contínuo. Por conseguinte, pode-se inferir
que, também na escrita, o processo de perda de clíticos que fazem referência à
terceira pessoa se mostra mais avançado na função dativa que na acusativa, à
semelhança do que foi constatado no PB oral por Freire (2000). Ainda sobre o
uso do clítico dativo ao longo do contínuo, pode-se considerá-lo, segundo a
proposta de Bortoni-Ricardo (2004), praticamente como um traço descontínuo,
42%
16%3,5%
75%
43%
29%41%
29%21,5%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
+ oralidade + letramento
Clítico SP anafórico Objeto nulo
155
uma vez que houve apenas uma única ocorrência desse elemento no extremo
de [+ oralidade], exibida em (105), o que revela ser o pronome dativo, em
referência à terceira pessoa, uma forma não característica de eventos de
comunicação predominantemente marcados com traço de oralidade. Em vista
disso, vê-se que os resultados desse extremo se aproximam bastante dos
encontrados na língua oral. Já as estratégias alternativas ao clítico dativo, ao
contrário, apresentaram uma presença mais significativa em todos os pontos
do contínuo, constituindo assim traços graduais. No que diz respeito a tais
variantes, observa-se uma trajetória bastante interessante: no extremo de [+
oralidade], o SP anafórico supera de longe o objeto nulo; no nível intermediário,
enquanto aquele sofre uma redução, este aumenta a sua freqüência, havendo
um equilíbrio entre os dois; no extremo de [+ letramento], ambas as variantes
cedem certo espaço ao clítico, mas representam juntas pouco mais da metade
do total de dados, exibindo percentuais idênticos de ocorrência.
Em suma, o exame do contínuo de oralidade-letramento na amostra
brasileira evidenciou que a freqüência do clítico dativo na escrita está
diretamente relacionada a eventos de comunicação que se aproximem do
extremo de [+ letramento]. Por outro lado, nos dois primeiros pontos do
contínuo, sobretudo no extremo [+ oralidade/ – letramento], mantêm-se as
características da fala descritas pelos trabalhos lingüísticos sobre a função
dativa, que foram comentados no primeiro capítulo, isto é, o abandono
progressivo da variante prescrita pela tradição em favor do SP anafórico e do
objeto nulo. Além disso, mesmo no extremo [– oralidade/ + letramento],
constatou-se que o clítico dativo está longe de ser uma variante dominante,
uma vez que ainda tem de competir duramente com as demais formas de
realização do dativo anafórico de terceira pessoa. Resta investigar, todavia,
sob que condições esse clítico ainda é recuperado nos eventos de
comunicação com traço de letramento, pois, como se sabe, os resultados sobre
a modalidade oral do PB apontam o seu desaparecimento progressivo na
referência à terceira pessoa. Certamente, a análise dos condicionamentos
lingüísticos poderá contribuir para elucidar essa questão, conforme será
mostrado na seção seguinte. Na seqüência, veja-se o contínuo oralidade-
156
letramento no PE através do próximo gráfico:
Gráfico VI. Função dativa: percentual de cada variante através do contínuo no PE
Examinando o gráfico, percebe-se de imediato que não há diferenças
substanciais entre os extremos, porquanto o clítico sempre aparece como a
variante majoritária, superando com larga vantagem as demais estratégias em
todos os pontos do contínuo, o que vem corroborar a afirmação de Berlinck
(1996), segundo a qual a expressão do dativo anafórico de terceira pessoa na
variedade lusitana corresponde ao paradigma proposto para a língua padrão
nas gramáticas que servem de base ao ensino de português no Brasil, isto é, o
uso da forma lhe(s). Isso é revelador quando se pensa na imensa distância
entre a prescrição gramatical e o uso brasileiro. Com relação às demais
variantes, chama a atenção o SP anafórico que, em contraste com o largo uso
encontrado na variedade brasileira, apresenta-se no PE como um traço
descontínuo, uma vez que se nota a sua ausência num dos pontos do
contínuo. Já o objeto nulo, apesar de quantitativamente inferior ao clítico,
manifesta-se como um traço gradual, pois aparece ao longo de todo o
contínuo, exibindo índices mais expressivos que o SP anafórico,
particularmente no extremo [+ oralidade/ – letramento], conforme o demonstra
a trajetória da sua linha no gráfico. Por fim, observa-se que é nesse mesmo
extremo que a escrita portuguesa manifesta uma variação maior na realização
83%93%
67%
3,5% 0% 6%
7% 11%
29,5%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
+ oralidade + letramento
Clítico SP anafórico Objeto nulo
157
do dativo anafórico de terceira pessoa, visto que as estratégias alternativas ao
clítico somadas constituem 33% do total de dados desse ponto do contínuo, o
que obviamente não chega a ameaçar a hegemonia do pronome dativo.
De um modo geral, a análise da freqüência das variantes candidatas à
representação da variável no contínuo oralidade-letramento permitiu constatar
diferenças fundamentais entre as duas variedades: enquanto no PE a variante
padrão para expressar o dativo anafórico de terceira pessoa é por excelência o
clítico, no PB a variável em foco é expressa preferencialmente pelo SP
anafórico. Na variedade brasileira, este só fica em desvantagem em relação ao
pronome dativo na extremidade [– oralidade/ + letramento], o que se explicaria
pelo fato de esse extremo do contínuo tentar aproximar-se do modelo de língua
culta constituído a partir do uso lusitano, que prefere o clítico, e imposto pela
tradição gramatical especialmente na elaboração dos chamados textos de
caráter formal. No entanto, a julgar pela baixa freqüência do clítico dativo nos
dois primeiros níveis do contínuo e pela competição acirrada desse elemento
com as demais variantes no extremo [– oralidade/ + letramento], deduz-se que
tal tradição já não vem obtendo tanto êxito. Conseqüentemente, pode-se dizer
que, na variedade brasileira, o emprego do clítico como estratégia de
representação do dativo anafórico de terceira pessoa só ocorre via
aprendizagem e mesmo assim restrito a contextos de mais formalidade.
Mediante a análise ora empreendida, foram levantados indícios de que o
clítico dativo não possui o mesmo estatuto nas duas variedades. Na escrita
portuguesa, esse item lingüístico apresenta-se abundante e estável ao longo
de todo o contínuo, certamente uma conseqüência do seu largo uso na língua
oral (cf. Freire, 2000), o que explica o seu emprego independente do gênero de
comunicação escrita. Na modalidade escrita brasileira, ao contrário, o uso do
clítico está sujeito ao fator contínuo de oralidade-letramento, já que é
praticamente nula a sua ocorrência na modalidade oral (cf. Silveira, 2000;
Freire, 2000). Por conseguinte, o uso do pronome dativo que ainda aparece na
escrita brasileira se restringe basicamente a eventos de letramento, pelo fato
de os textos que se inscrevem nessa categoria manterem pontos de contato
com a tradição gramatical, que recomenda o clítico.
158
4.2.1- Condicionamentos lingüísticos
No intuito de avaliar não só quantitativamente mas também
qualitativamente as variantes candidatas à representação da variável, os dados
das amostras foram submetidos à análise de grupos de fatores lingüísticos ou
estruturais, como tipo de verbo, ordem do clítico, tipo de preposição introdutora
do SP anafórico e traço semântico.
4.2.1.1- Tipo de verbo e ordem do clítico
Como este trabalho investiga somente o dativo argumental, os dados
das duas amostras foram distribuídos em quatro grupos distintos, definidos a
partir da classificação de Rocha Lima (1998) para os verbos que projetam um
complemento dativo, a saber: bitransitivo dandi, bitransitivo dicendi, bitransitivo
rogandi e transitivo indireto. Observe-se a tabela seguinte:
Tabela 4.14. Função dativa: distribuição das variantes segundo o tipo de verbo
PB Clítico SP anafórico Objeto nulo Bitransitivo dandi 36/96 37% 44/96 46% 16/96 17% Bitransitivo dicendi 3/42 7% 13/42 31% 26/42 62% Bitransitivo rogandi 1/14 7% 6/14 43% 7/14 50% Transitivo indireto 1/3 33% 2/3 67% — —
PE Clítico SP anafórico Objeto nulo Bitransitivo dandi 58/64 90% 3/64 5% 3/64 5% Bitransitivo dicendi 23/33 70% — — 10/33 30% Bitransitivo rogandi 4/5 80% — — 1/5 20% Transitivo indireto 5/6 83% — — 1/6 17%
Quanto ao emprego do clítico dativo, a tabela acima evidencia
diferenças substanciais entre as duas variedades: no PE, esse item lingüístico
é de longe a variante predileta com todos os tipos de verbo; no PB, ao
contrário, ele jamais figura como a estratégia majoritária na representação do
dativo anafórico de terceira pessoa, cedendo espaço às demais variantes. No
entanto, observa-se que, na variedade brasileira, os verbos bitransitivos dandi
parecem constituir o contexto mais favorável à recuperação do pronome dativo,
haja vista o fato de que a quase totalidade das ocorrências desse elemento,
entre as quais o único caso no extremo de [+ oralidade/ – letramento] exposto
159
em (105), tenha se dado justamente com tais verbos.
Considerando o uso das demais variantes, percebem-se mais diferenças
entre as duas variedades. No PB, o SP anafórico consolida-se como a variante
padrão na realização da variável, sendo bastante pujante em todos os
contextos, exceto nos representados pelos verbos bitransitivos dicendi, embora
também com esses verbos seu uso também não seja inexpressivo. Vejam-se
os exemplos:
(122) Um dos melhores comediantes da época da chanchada no cinema
brasileiro, Catalano, diferentemente de Oscarito e Grande Otelo, com
quem formava uma trinca impagável, não ficou muito presente na
memória popular. O Canal Brasil devolve a ele o lugar que Catalano
sempre mereceu na história do cinema nacional. (PB: Segundo
Caderno de O Globo, 04-08-2004 – Crônica)
(123) Só na última terça-feira o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pareceu se
dar conta da realidade e transmitiu ao governador de Minas Gerais,
Aécio Neves, sua preocupação. Aécio disse a Lula para ficar tranqüilo,
o encontro não seria contra o governo, mas a favor dos Estados. (PB:
Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Artigo de opinião)
(124) É que este é o milk-shake que eu e o Zecão sempre tomávamos juntos!!
Eu vou lá pedir desculpa pra ele! (PB: Cebolinha, n.º 208, outubro de
2003 – História em quadrinhos)
(125) Acostumados a trabalhar com música, os irmãos Fernando e Marcelo
Viana, netos de Pixinguinha, não suportavam o som de buzinas e
motores do Centro. […] “Não preciso estar aqui todos os dias” — explica
Marcelo Viana. O dia-a-dia nas salas virtuais também agrada ao
herdeiro, que considera boa a convivência com pessoas de ramos
variados. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 02-05-2004 –
Reportagem)
160
No que diz respeito ao PE, o emprego do SP anafórico se restringe aos
verbos bitransitivos dandi e mesmo assim com uma ocorrência muito pouco
expressiva:
(126) Regulei o relógio para atirar uma pedra ao telhado dos porquinhos de
cinco em cinco minutos… a noite toda! Acho que vou dar àqueles
gorduchos uma amostra do que está para acontecer! (PB: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
Apesar de em proporções bem diferentes, verifica-se que, em ambas as
variedades, o objeto nulo pode aparecer com todos os tipos de verbos
bitransitivos. Observem-se os exemplos:
(127) Senna terminou a temporada em nono lugar, com 13 pontos, e no ano
seguinte conseguiu uma vaga na Lotus — equipe capaz de fazê-lo
vencer, apesar de não oferecer __ um carro para que disputasse o título
contra a Maclaren e Williams. (PB: Seção de Esportes do Jornal do
Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
(128) O Patinhas veio por causa da receita e eu decidi entregá-la __! (PE: Tio
Patinhas, n.º 224, agosto de 2004 – História em quadrinhos)
(129) Enquanto Alahyde fala, sua mãe a interrompe diversas vezes. Com a
dicção prejudicada, um cateter no nariz para emergências, o queixo solto
e a tremedeira do Parkinson, ela diz __ o tempo todo: “Alahyde,
fósforo.” (PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
(130) Interrogado por Barradas sobre o que pensava da intervenção de
Portugal ao lado dos Aliados na I Guerra Mundial, Couceiro
responderia __: “Estou de acordo, mas apenas numa perspectiva de
futuro.” (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 –
Crítica de livro)
161
(131) Se eu tivesse que tomar alguma atitude contra ele [= o tenente-coronel
Costa Filho], tomaria logo depois da nossa reunião, em fevereiro. Usaria
meu poder político, meu poder de governo e ia ao coronel Josias Quintal
(ex-secretário de segurança pública) e pediria __ a sua saída. (PB:
Jornal do Brasil, 25-05-2003 – Trecho de fala em reportagem)16
Por outro lado, nota-se que é especialmente com os verbos bitransitivos
dicendi que o uso do objeto nulo se mostra mais produtivo nas duas
variedades: no PB, a categoria vazia passa a ser a variante majoritária com
um índice de 62%; no PE, não obstante abaixo do clítico, já representa 30% do
total de dados. Tais constatações remetem ao trabalho de Benvenutti (2002:
145), segundo a qual “o apagamento pronominal tem, na seleção da variante
DICENDI para complemento nulo, sua mais importante caracterização”. Por
conseguinte, pode-se inferir que parecem ser justamente os contextos
representados por verbos bitransitivos dicendi o ponto de partida da mudança
lingüística na expressão do dativo anafórico de terceira pessoa, conforme foi
verificado na análise das duas amostras.
Quanto aos verbos transitivos indiretos (SVOI), a sua ocorrência foi
baixa nas duas amostras, com apenas três dados no PB e seis no PE:
naquele, prevalecendo o SP anafórico; neste, sendo categórico o clítico.
Em vista do exame dos dados distribuídos entre os diferentes verbos
que projetam um argumento dativo, evidenciaram-se dois fenômenos: (a) o
contraste entre as duas variedades, com o clítico pujante no PE mas em franco
processo de substituição por outras variantes no PB; (b) a similaridade entre
esses dois sistemas no que diz respeito à implementação do complemento
dativo nulo, mais freqüente com os verbos bitransitivos dicendi. Entretanto, a
manutenção da variante prescrita pela tradição no PE e o seu crescente
desuso no PB em favor de outras estratégias sinalizam que esses dois
sistemas seguem caminhos bem diversos.
Na seqüência, passa-se a examinar a ordem do clítico dativo em relação
ao seu hospedeiro verbal, a fim de levantar diferenças entre as duas 16 O único caso de objeto nulo dativo com verbo bitransitivo rogandi do PE já foi exemplificado em (115).
162
variedades. Observe-se a próxima tabela:
Tabela 4.15. Função dativa: ordem do clítico nas duas variedades do português
Ordem PB PE Próclise a formas simples sem atrator 9/41 22% — — Próclise a formas simples com atrator 26/41 63% 51/90 57% Ênclise a formas simples sem atrator 3/41 7,5% 29/90 32% Ênclise a formas simples com atrator 2/41 5% — — Próclise ao verbo auxiliar em locuções verbais — — 4/90 4,5% Ênclise ao verbo auxiliar em locuções verbais — — 1/90 1% Ênclise ao verbo principal em locuções verbais 1/41 2,5% 5/90 5,5%
Sobre o PB, a tabela acima revela que o clítico se restringe praticamente
a formas simples, finitas ou não, ocorrendo a próclise tanto em contextos com
os tradicionais atratores do PE, quanto em contextos sem esses elementos:
(132) Cabe a tarefa ao capital privado, que não se aplicaria nessas áreas, se a
legislação não lhe desse segurança atual e futura. (PB: Jornal do
Brasil, 02-05-2004 – Artigo de opinião)
(133) Além disso, o país já está negociando acordos similares com a China e a
Índia e esta semana a Indonésia lhe ofereceu fornecer gás, em
substituição ao argentino. (PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 –
Reportagem)
Devido a um único dado, não se pode tecer considerações sobre a
colocação do clítico com locução verbal no PB, porém deve-se registrar que o
pronome dativo apareceu nesse dado em ênclise ao verbo principal, isto é,
àquele que lhe confere papel temático:
(134) A nova União Européia nasceu ontem com uma prioridade política:
concluir o mais rapidamente possível a nova Constituição que deverá
permitir-lhe fugir da paralisia e tramitar com êxito os objetivos políticos e
econômicos que justificaram a criação do bloco. (PB: Jornal do Brasil,
02-05-2004 – Reportagem)
163
Entre os casos de ênclise, a amostra brasileira apresentou a ocorrência
de dois dados com os tradicionais atratores do PE, o que comumente se
explica como um fenômeno de hipercorreção, que se deve à tendência,
encontrada em alguns indivíduos, de generalizar a ênclise, na tentativa de
reproduzir o modelo europeu da língua, cuja direção de cliticização não é à
direita, como na variedade brasileira, mas à esquerda, conforme assinala
Nunes (1993). Veja-se exemplo a seguir:
(135) Ele diz que conhecia Luciana e que conversava com ela quando foi
agredido com um soco que arrancou-lhe um dente e o derrubou no
chão. (PB: O Globo, 19-09-2004 – Reportagem)
Acerca do PE, a tabela exibe uma distribuição mais regular do clítico,
que aparece não só com as formas verbais simples, mas também com as
complexas. Na ausência dos tradicionais atratores, ocorre categoricamente a
ênclise com as formas simples, não tendo havido uma ocorrência sequer dessa
mesma ordem na presença dos referidos atratores:
(136) O ministro dos Negócios Estrangeiros, julgo que era o Rui Patrício. […]
E num desses almoços o correspondente da Associated Press
perguntou-lhe: Sr. ministro, por que é que o Gageiro foi preso? […]”
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)
Já os casos de próclise da amostra portuguesa apareceram todos com
os tradicionais atratores, entre os quais as formas de infinitivo regidas por
preposição, que ainda não aparece descrita nas gramáticas de cunho
normativo como atrator, embora no PE as preposições, com exceção de <a>,
sistematicamente configurem contexto de próclise, conforme registram Brito et
al. (2003). Observem-se os exemplos:
(137) O que aqui está em causa parece ser o espírito das organizações não
governamentais que servem causas humanitárias contando com a
164
bondade de quem lhes dedica tempo e atenção. (PE: Suplemento DNA
do Diário de Notícias, 12-02-2000 – Artigo de opinião)
(138) António Mont’ Alverne — o nome artístico que escolheu — costuma
treinar piano duas horas por dia. […] Só devia começar as aulas deste
instrumento no 9º ano, mas a vontade de começar era tanta que pediu à
irmã de um colega, que fez o último grau do Conservatório, para lhe dar
umas aulas e já está a aprender. (PE: Suplemento DNA do Diário de
Notícias, 11-03-2000 – Reportagem)
(139) Quando vi que o Bafo-de-Onça estava hospedado no hotel, lembrei-me
de encenar um roubo fingido e de lhe atribuir a culpa, escondendo nele
a única jóia verdadeira que me restava! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35,
junho de 2001 – História em quadrinhos)
Por outro lado, chamam a atenção no PE as ocorrências do pronome
dativo com as formas verbais complexas, visto que a distribuição desse
elemento se mostra equilibrada entre o verbo auxiliar e o principal,
diferentemente do que se verifica no PB. Observem-se os exemplos abaixo:
(140) Foi a rapidez com que a vida de meu pai se alterou que me conduziu a
associar as duas situações. Mas encontrei outras semelhanças: os
pequenos negócios que lhe têm permitido juntar algum dinheiro que ele
recusa a partilhar […] (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-
02-2000 – Crônica)
(141) Com a proposta apresentada, Governo e PS não podiam ter ajudado de
melhor foram Marcelo Rebelo de Sousa: a credibilidade ficou do lado
deste. Antes haviam-lhe oferecido, de vez, o calendário político. (PE:
Diário de Notícias, 10-11-1998 – Artigo de opinião)
(142) Vejo ali uma senhora! Vou perguntar-lhe! (PE: Série Ouro Disney, n.º
165
35, junho de 2001 – História em quadrinhos)
A partir do exposto, constata-se que a ordem do clítico dativo apresenta
comportamento diverso nas duas variedades: no PB, esse item lingüístico
mostra-se praticamente restrito a formas simples e preferencialmente em
posição proclítica; no PE, figura tanto com formas simples (em próclise na
presença de atratores e em ênclise na ausência dessas condições), quanto
com formas complexas, registrando-se especialmente a sua cliticização junto
ao verbo auxiliar, o que não se deu na amostra brasileira. Por conseguinte,
depreende-se que no PE a relação do clítico com o seu hospedeiro é
gramatical, conforme já descrevera Galves (1998), uma vez que aquele se
cliticiza em torno do verbo auxiliar, portador dos morfemas de tempo e de
concordância. No PB, ao contrário, essa relação se mostra lexical, já que o
clítico, quando aparece em locuções verbais, liga-se ao verbo principal, que lhe
atribui caso.
4.2.1.2- Tipo de preposição introdutora do SP anafórico
Outro aspecto bastante interessante na investigação da variável é o tipo
de preposição que rege as variantes tônicas, uma vez que, segundo Gomes
(2003), haveria no PB uma progressiva expansão do emprego da preposição
para por esta apresentar caráter neutro, em oposição à preposição <a>,
considerada típica de contextos formais, e à variante nula, tida como
estigmatizada. Examine-se a tabela seguinte:
Tabela 4.16. Função dativa: distribuição do SP anafórico segundo a preposição regente
Variedade a para outras preposições PB 36/65 56% 21/65 32% 8/65 12% PE 2/3 67% — — 1/3 33%
Através da tabela acima, verifica-se que no PB a preposição <a> exibe
uma ocorrência maior que as demais, o que pode ser explicado pelo fato de a
modalidade escrita mais freqüentemente manter pontos de contato com o que
Bortoni-Ricardo (2004) chama de cultura de letramento, que eleva o seu grau
166
de formalidade e, conseqüentemente, propicia o emprego da preposição <a>,
apontada como mais comum em contextos formais. Veja-se o exemplo abaixo
extraído da amostra brasileira:
(143) O propósito maior da educação sexual para adolescentes é dar a eles
informações necessárias para que compreendam melhor o assunto e,
com isso, possam ter uma vida sexual melhor. (PB: O Globo, 19-09-
2004 – Reportagem)
Não obstante essa relação da modalidade escrita com a cultura de
letramento, já se nota, na variedade brasileira, uma ocorrência considerável da
preposição <para> regendo as formas tônicas de dativo em todos os pontos do
contínuo de oralidade-letramento, conforme ilustram os exemplos seguintes:
(144) Um elefante! Preciso dar quatro fardos de feno e 20 quilos de
amendoim pra ele! (PB: O melhor da Disney, vol. 3, maio de 2004 –
História em quadrinhos)
(145) Conheci Joanna quando a entrevistei no programa de rádio que fazia na
FM O DIA em 1996. A entrevista foi um sucesso. Rendeu muitas cartas
para Joanna. (Revista Domingo do Jornal do Brasil, 03-10-1999 –
Entrevista)
(146) Os quatro filhos a respeitam, assim como às suas colegas. […]
Orgulha-se da educação que deu para eles. (PB: Caderno H do Jornal
do Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
Foram encontrados ainda no PB casos de dativo anafórico expressos
por SPs encetados por outras preposições, totalizando um índice de 12%. Em
tais construções de dativo, também descritas por Berlinck (1996), não costuma
ser comum o uso das preposições <a> ou <para>, quando aquelas se
apresentam sob a forma de SP:
167
(147) Lembro do dia em que o Ayrton ia bater o recorde de pole positions
consecutivas. […] O Prost entrou depois e tomou a pole position dele.
(PB: Seção de Esportes do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)
(148) No entanto, como restava ainda um vão de comunicação entre os
ambientes, pôs nele uma porta de correr sulcada em marcenaria
embutida na parede. (Suplemento Casa & Decoração do Jornal do
Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
(149) “Escuta aqui, Cebolinha… A Mônica está de acordo em ficar um ano
sem bater na gente?” “Ainda não falei com ela!!” (Almanaque do
Cebolinha, n.º 77, outubro de 2003 – História em quadrinhos)
Quanto ao PE, apesar de haver apenas três ocorrências de SPs
anafóricos na representação da variável, chama a atenção a ausência da
preposição <para>, ocorrendo tão somente dois casos com a preposição <a> e
outro em que o SP é normalmente construído com a preposição <de>:
(150) Regulei o relógio para atirar uma pedra ao telhado dos porquinhos de
cinco em cinco minutos… a noite toda! Acho que vou dar àqueles
gorduchos uma amostra do que está para acontecer! (PB: Disney
Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)
(151) Atribui à sua educação a calma, o facto de não se irritar com os actores
e dar a volta ao lado humano das pessoas para tentar tirar o melhor
delas. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 –
Reportagem)
A despeito dos poucos dados de SPs anafóricos encontrados na
amostra do PE, ficou evidente que as duas variedades manifestam
comportamentos distintos no uso da preposição que rege as variantes tônicas
na realização do dativo anafórico de terceira pessoa: enquanto a preposição
168
<para> não ocorre na escrita portuguesa, ela aparece empregada com
freqüência cada vez maior na escrita brasileira, de modo que já passa a
competir com a preposição <a> em qualquer ponto do contínuo de oralidade-
letramento.
4.2.1.3- Traço semântico
Assim como na função acusativa, investigou-se também o traço
semântico do antecedente do dativo anafórico de terceira pessoa, embora o
clítico dativo seja prototipicamente [+ animado], conforme lembra Rocha Lima
(1998). Os resultados são exibidos na tabela seguinte:
Tabela 4.17. Função dativa: distribuição das variantes segundo o traço semântico
PB Clítico SP anafórico Objeto nulo [+ animado] 35/135 26% 54/135 40% 46/135 34% [– animado] 6/20 30% 11/20 55% 3/20 15%
PE Clítico SP anafórico Objeto nulo [+ animado] 77/94 82% 3/94 3% 14/94 15% [– animado] 13/14 93% — — 1/14 7%
A partir da tabela, observa-se que no PB o clítico dativo em referência à
terceira pessoa, praticamente inexistente na fala, apresenta baixo índice de
recuperação na escrita, tanto com os antecedentes de traço [+ animado], como
com os de traço [– animado], sendo largamente superado pela soma das
demais variantes: 74% e 70%, respectivamente. Já o PE exibe situação
completamente diversa, visto que a variante prestigiada pela tradição ainda se
mantém robusta com antecedentes de ambos os traços. Por outro lado, em
ambas as variedades, percebe-se que, com os antecedentes de traço
semântico [+ animado], há uma ocorrência não desprezível de objetos nulos, o
que se deve em grande parte aos dados envolvendo verbos dicendi que,
conforme foi exposto em 4.2.1.1, estão mais sujeitos ao apagamento do
complemento dativo:
(152) Cheguei meio por acaso para me apresentar no programa do Ary
Barroso. Disse __ meu nome, ele achou horrível… (PB: Revista
Domingo do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)
169
(153) Às tantas, pergunta Teresa Maia e Carmo ao Almirante Rosa Murtinho:
“O que sentiu quando morreu o general Spínola?” E, sem meias
medidas, ele respondeu __: “O que senti? Que já cá não devia
estar […]” (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 –
Editorial)
Tais ocorrências do objeto nulo talvez sugiram que existem contextos ou
situações em que seria o dativo um elemento opcional, o que estaria em
consonância com a descrição de Rocha Lima (1998: 249), que afirmava ser o
objeto indireto “facilmente dispensável em muitas situações”. No entanto, não
se pode negar que a ocorrência de complemento dativo nulo é muito mais
incidente no PB, o que opõe este ao PE, em que esse complemento quase
sempre aparece preenchido com o clítico, mesmo em contextos envolvendo
verbos dicendi (cf. tabela 4.14), como é exemplificado a seguir:
(154) Aos quatro anos esta princesinha sonha que quando crescer vai ser uma
princesa de verdade. E não adianta dizer-lhe que as princesas só
existem nos contos de fadas e nos desenhos animados […] (PE:
Suplemento DNA do Diário de Notícias, 11-03-2000 – Reportagem)
Em suma, os resultados ora apresentados levam à seguinte
constatação: o uso do SP anafórico no PB e do clítico no PE como variantes
prediletas na expressão da variável independem do traço semântico do
antecedente do dativo anafórico, o que é ilustrado abaixo pelos exemplos com
antecedentes de traço [+ animado] seguidos dos de traço [– animado]:
(155) Gabriella, por sua vez, deixou para trás uma carreira brilhante para viver
no Rio com o marido, que deu a ela a mansão. (PB: Revista Domingo
do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Reportagem)
(156) Mesmo activo, o meu pai tinha um emprego numa estação de rádio
local, que nunca lhe rendeu algum dinheiro. (PE: Suplemento DNA do
Diário de Notícias, 05-02-2000 – Crônica)
170
(157) Principalmente quando utilizam uma linguagem maluca chamada
“gramelô”, na qual os sons adquirem o significado que cada um quer dar
a eles. (PB: Jornal do Brasil, 02-05-2004 – Reportagem)
(158) As formas do Yale emprestam-lhe uma imagem de invulgar robustez.
(PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Reportagem)
Conseqüentemente, tal constatação aponta para dois fenômenos: por
um lado, a manutenção do sistema pronominal tal como descrito pela tradição
no PE; por outro, a crescente consolidação da mudança lingüística no PB, com
a substituição do clítico dativo pelo SP anafórico já presente na escrita.
Após a análise quantitativa dos fatores levantados para a função dativa,
foram investigados os pesos relativos, a partir de uma célula para o PB e outra
para o PE, opondo o clítico às demais variantes. Nas duas amostras, o
programa GoldVarb 2000 selecionou como mais significativos para a
ocorrência da variante prestigiada pela tradição os seguintes fatores: contínuo
de oralidade-letramento e tipo de verbo. Os resultados serão exibidos nas
tabelas seguintes:
Tabela 4.18. Clítico em função dativa: pesos relativos do fator contínuo
Variedade [+ oralidade/ – letramento] [+ oralidade/ + letramento] [– oralidade/ + letramento]
PB 0,12 0,40 0,72 PE 0,24 0,69 0,44
Input PB: 0,21 Input PE: 0,86
Tabela 4.19. Clítico em função dativa: pesos relativos do fator tipo de verbo
Variedade Bitransitivo dandi Bitransitivo dicendi Bitransitivo rogandi Transitivo indireto
PB 0,67 0,21 0,21 0,63 PE 0,62 0,28 0,41 0,46
Input PB: 0,22 Input PE: 0,85
Sem dúvida alguma, os pesos relativos reforçam as hipóteses
levantadas sobre as duas variedades. Na escrita brasileira, o clítico dativo só
se mantém mediante duas condições: (a) em eventos de letramento; (b) com
171
verbos bitransitivos dandi17. Tal como na função acusativa, o primeiro fator
selecionado pelo programa foi justamente o contínuo, o que sinaliza ser o
pronome dativo um item lingüístico típico do processo de letramento. A prova
disso é que, nos dados pertencentes ao extremo de [+ oralidade/ – letramento],
praticamente foi nula a presença do clítico, o que aproxima esses resultados
dos obtidos para a língua falada, que não costuma apresentar clíticos de
terceira pessoa, segundo demonstram muitos trabalhos sobre o PB oral.
Graças a esse processo de letramento, o clítico dativo na referência à terceira
pessoa ainda exibe certa incidência nos pontos do contínuo marcados com o
traço de [+ letramento], todavia praticamente restrito ao verbo dar com os seus
correlatos e reversos, o que indica não ser tão bem sucedida assim a
recuperação na escrita de uma forma praticamente extinta na fala espontânea,
mesmo na dos que passaram pela escola.
Com relação à escrita portuguesa, observa-se que não há uma
correlação entre presença do clítico e letramento: o peso obtido no ponto
intermediário do contínuo, os contextos de [+ oralidade/ + letramento], deixa
isso bem claro, o que indica que outros fatores que não o letramento devem
estar em jogo nessa variedade quanto ao emprego do clítico. Conquanto o
pronome dativo seja a variante mais freqüente em praticamente todos os
contextos, nota-se que esse elemento cede certo espaço à ocorrência das
demais variantes em contextos localizados: (a) em eventos de oralidade; (b)
com os verbos bitransitivos dicendi. Com relação ao fator contínuo, a amostra
portuguesa exibiu uma incidência maior das variantes alternativas ao clítico no
extremo de [+ oralidade/ – letramento], havendo um uso maciço do pronome
dativo nos demais pontos marcados com o traço de [+ letramento]. Quanto ao
tipo de verbo, o clítico, nas duas variedades, cede considerável espaço ao
objeto nulo com os verbos dicendi, o que parece ser uma tendência geral.
Em razão da presente análise a respeito da função dativa, evidenciou-se
que as diferenças entre as duas variedades sobre o emprego do clítico
17 Não obstante o valor 0,63 exibido pelos verbos transitivos indiretos, estes só apresentaram três ocorrências na amostra, sendo apenas uma com o uso do clítico. Assim, não se levou em conta esse alto valor, visto que um único caso de clítico junto a esse tipo de verbo não parece suficiente para determinar um contexto de resistência desse item lingüístico na escrita brasileira.
172
encontradas na modalidade oral também aparecem na escrita: enquanto no
PB a variante prestigiada pela tradição aparece preferencialmente em eventos
de letramento e restrita a um tipo de verbo, no PE ela se mostra sempre
robusta e independe do grau de letramento e de qualquer contexto estrutural.
Tal como na função acusativa, essas constatações podem fornecer indícios a
favor da hipótese de Galves (1998), segundo a qual os dois sistemas
constituem duas línguas-I distintas, o que implica, pois, dois conhecimentos de
escrita: um do letrado brasileiro, outro do letrado português.
A propósito dessa questão, os resultados obtidos acerca do PB em
contraste com o PE, tanto na função acusativa quanto na dativa, evidenciaram
dois fatos que indicam a forma como se apresenta o conhecimento do letrado
brasileiro em relação à escrita, sendo esta uma das questões levantadas por
Kato (no prelo) em trabalho mais recente. O primeiro diz respeito à incidência
maior dos clíticos somente mediante certas condições de ordem estrutural,
como o acusativo em contextos com infinitivo e o dativo em contextos com
verbos bitransitivos dandi. O segundo é a inegável infiltração de variantes
alternativas aos clíticos não discriminadas pela escola, como o uso irrestrito do
objeto nulo na função acusativa e o largo emprego do SP anafórico na função
dativa: ambas as variantes com freqüência muito baixa no PE escrito. Por
conseguinte, tais constatações sinalizam que a escrita do letrado brasileiro
adulto não representa o conhecimento gramatical de sincronias passadas nem
se identifica com o conhecimento do falante português contemporâneo, o que
vem ao encontro da hipótese de Kato (no prelo) sobre a natureza do
conhecimento da escrita do letrado brasileiro.
Outra questão levantada por essa mesma autora diz respeito à maneira
como o indivíduo adquire esse conhecimento escrito, o que se daria, segundo
ela, mediante o acesso indireto à GU (Gramática Universal), via L1. Com
efeito, os resultados ora obtidos trazem algumas evidências que vão ao
encontro dessa hipótese, uma vez que o letrado brasileiro parece obter o seu
conhecimento escrito mediante a primeira gramática, a língua falada, haja vista
a presença de clíticos na escrita brasileira mas ainda em competição com as
variantes largamente empregadas na língua oral. Segundo a referida autora,
173
isso se explica pelo fato de os valores paramétricos opostos aos da gramática
nuclear, presentes em caráter recessivo na periferia marcada da gramática da
L1, passarem a competir, durante a escolarização, com os valores que já se
encontravam definidos na gramática nuclear. Portanto, é o processo de
escolarização, que se dá bem depois da aquisição natural da linguagem, o
responsável pelo aparecimento dos clíticos acusativo e dativo na fala
monitorada e na escrita do letrado brasileiro adulto, porém sem conseguir
suprimir a ocorrência das demais variantes usadas em lugar desses elementos,
conforme foi exaustivamente demonstrado neste capítulo.
174
5- CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE CLÍTICOS
Conforme foi apontado no primeiro capítulo, diferentes estudos sobre a
língua oral no Brasil têm registrado a praticamente consumada perda dos
clíticos acusativo e dativo na referência à terceira pessoa, o que evidentemente
distancia o PB do PE, já que este apresenta uma freqüência bastante robusta
desses itens lingüísticos na fala (cf. Freire, 2000). Ademais, a análise das duas
amostras de língua escrita empreendida neste trabalho igualmente evidenciou
diferenças substanciais entre essas duas variedades: na escrita portuguesa,
os clíticos das duas funções figuram em profusão, independentemente de
qualquer contexto; na modalidade escrita brasileira, tais elementos aparecem
preferencialmente em contextos de letramento e sob certas condições
estruturais. Não obstante tais constatações sobre o PB, sabe-se que a escola
se lança à tarefa de ensinar a chamada norma oficial, que prevê o uso de
formas muitas vezes estranhas à fala corrente brasileira, entre as quais os
referidos clíticos de terceira pessoa. Assim, partindo de alguns aspectos
relacionados à formação histórica do PB e à ulterior constituição da norma
oficial adotada no Brasil, pretende-se levantar uma discussão a respeito das
estratégias comumente empregadas pela escola na sua tarefa de ensinar os
clíticos de terceira pessoa.
5.1- A formação histórica do PB
Certamente não é de hoje que as diferenças entre o PB e o PE têm
levado muitos lingüistas interessados nesse campo a investigar o porquê de a
variedade brasileira ter assumido características que tanto a distinguem da
portuguesa. Na busca por respostas a essa questão, muitos estudiosos
apresentam pontos de vista divergentes que se inscrevem, basicamente, em
duas grandes correntes teóricas: uma que fundamenta as origens do PB num
processo histórico de transmissão irregular (Lucchesi, 2003); outra que atribui
os chamados traços peculiares do PB à variação que sempre existiu no
sistema (Naro & Scherre, 2003), evidentemente maximizada e acelerada pelo
contato do português com outras línguas em terras brasileiras.
175
É sabido que, nos primeiros séculos da colonização, havia o uso de uma
“língua geral” de origem tupi, que serviu como instrumento de comunicação
entre índios, brancos e africanos, perdurando essa situação lingüística até o
século XVIII, quando somente então o português passou a ser de fato a língua
predominantemente falada no Brasil. Por conseguinte, para Lucchesi (2003),
nas origens do PB está a aquisição de um modelo de L2 com simplificação da
morfologia flexional, visto que essa aquisição foi operada por uma população
de adultos falantes de outras línguas, caracterizando um processo de
transmissão lingüística irregular. Tal processo é entendido pelo autor em
questão como o contato massivo e prolongado entre a língua do segmento que
detém o poder político e a língua dos segmentos dominados, porém com pouco
ou nenhum acesso dos falantes de outras línguas aos modelos prestigiados da
língua alvo. Assim, para o mesmo autor, muitas estruturas do PB “podem ser
relacionadas historicamente ao massivo contato entre línguas que marca os
primeiros séculos da história sociolingüística do Brasil” (p. 278), o que
explicaria, portanto, os processos de variação e de mudança na variedade
brasileira.
Por outro lado, Naro & Scherre (2003: 287) propõem uma revisão do
termo transmissão lingüística irregular nas origens do PB, que consideram
como um caso de nativização, conforme indica o excerto a seguir:
O termo mais apropriado para rotular a aquisição de uma nova língua por uma comunidade de adultos seria NATIVIZAÇÃO, já que, em algumas circunstâncias, o que costuma acontecer de fato é que uma língua vinda de fora se torna a língua nativa da comunidade, que perde parcial ou totalmente a plena funcionalidade de suas línguas maternas anteriores.
Além disso, os mesmos autores defendem que no PB não existem
características estruturais novas oriundas do contato entre línguas ou da
nativização do português entre os segmentos de falantes de outras línguas e
os seus descendentes. De acordo com essa hipótese, as estruturas
lingüísticas tidas como tipicamente brasileiras teriam sempre existido na língua
desde a sua fase mais antiga, podendo ser inclusive encontradas no PE
contemporâneo. Para fundamentar semelhante hipótese, os autores ora
176
referidos aduzem exemplos de variação na concordância (verbal e nominal)
tanto do português arcaico, quanto do PE atual, o que evidenciaria que esse
fenômeno não é exclusividade do PB. Na seqüência, são transcritos alguns
desses exemplos (op. cit.: 293-294):
(01) a todos aqueles que se fazem (3ª pl.) afora da carreira do pecado e
torna (3ª sg.) a dereita carreira. (Português arcaico: A Demanda do
Santo Graal, XXI, 160, p. 223)
(02) Entom os parentes ouve (3ª sg.) conselho e confessaram (3ª pl.)
(Português arcaico: Os Diálogos de São Gregório, 1.24.23)
(03) aqueles que, da gente d’ Alexandria, reinou (3ª sg.) no Egipto.
(Português arcaico: Vida e Feitos de Júlio César, p. 554, 1.12)
(04) A questão é tanto mais preocupante quando se sabe que as ajudas
compensatórias por hectare, mecanismo introduzido a partir da reforma
da PAC, surge hoje como condicionante fundamental da evolução do
rendimento dos agricultores. (PE contemporâneo: Correio da Manhã,
25-09-1995)
(05) […] das duas pedras que tá no mêio do lanço; tenho cinquenta e um
ano. (PE contemporâneo: Ericema, Alves 1993: 190)
(06) os nossos agasalhos é estes; as raízes enterrado na carne (PE
contemporâneo: Lisboa, Mira 1954: 149-150)
Os exemplos acima demonstram, pois, que a variação na concordância
representa uma deriva latente no sistema, todavia com uma freqüência média
maior no PB que no PE, segundo observam Naro & Scherre (2003). Estes
apontam ainda outros fenômenos considerados como tipicamente brasileiros
que também aparecem em dialetos do PE (p. 294), entre os quais os seguintes:
177
a) primeira pessoa realizada variavelmente com a forma verbal de terceira
pessoa: “Eu na quinta-feira apanhou 2 kilos de pólves.” (Alves 1993: 190);
b) concordância variável de gênero: “A cedrêra é muito bom p’ra chás.”
(Ratinho 1959: 240);
c) supressão variável de preposição: “Nunca me lembrê fazenda.” (Cruz 1991:
177).
Do mesmo modo, Coutinho (1976: 337-341) já corroborara a hipótese
de que estruturas sintáticas consideradas próprias do PB, também chamadas
de brasileirismos, não eram desconhecidas no português arcaico, conforme se
pode perceber a partir dos principais casos levantados por ele acompanhados
dos seus respectivos exemplos:
a) pronome nominativo em função acusativa
(07) Os cardeais, outrossim, privaram ele d’algum direito, se o no papado
tinha. (Fernão Lopes, D. Fernando, c. 46)
(08) Desque vi ela. (Canc. da Vaticana, 585)
b) emprego da preposição em com verbos de movimento
(09) Mas quãdo souberon como Hercolles era uijndo em Espanha… (Da
História Geral, apud Leite de Vasconcelos, Textos arcaicos, p. 55)
(10) Era vindo nesta terra. (João de Barros, Clarimundo, II, p. 345)
c) ordem variável dos clíticos, inclusive próclise sem atrator
(11) Aqui parou chorando amargamente,
E mostrando na vista mil afeitos
Dizia: Que! Me deixas finalmente? (Castro, Ulisséia, X, 113)
(12) Achei onde perdi-me, o meu tesouro… (Antônio Ferreira, Obras
completas, vol. I, p. 66)
178
(13) Eu, Senhor, vos peço por mercê, que queirais me dar vossa bênção e
licença. (Rui de Pina, Cron. d’El-Rei D. Duarte, p. 110)
d) verbo chamar seguido da preposição de
(14) Que te chame de ratinha. Tinhosa cada meia hora… (Gil Vicente, vol. II,
435)
e) verbo no plural, concordando com o sujeito coletivo geral no singular
(15) de toda cristãidade que estã ẽ grã coyta… (J. Nunes, Crest. Arc., p. 19)
(16) Tôda esta clerezia tinham tochas acesas nas mãos. (Garcia de
Resende)
f) verbo impessoal haver com flexão no plural
(17) E ainda hajam outras razões. (Vieira, Inéd., vol. II, p. 32)
(18) E se ainda houverem prolixos ociosos editores. (Filinto, Obras, vol. VI,
p. 41)
A partir dos exemplos arrolados das fases antiga e contemporânea do
PE, pode-se inferir que a nativização do português por falantes de outras
línguas em terras brasileiras não parece ter produzido características
estruturais novas. Ao contrário, pelo menos muitas das estruturas alegadas
como típicas do PB sempre existiram no sistema, podendo ser encontradas
ainda hoje em falares rurais ou não padrão de Portugal. Por exemplo, casos
de próclise do clítico em posição inicial absoluta ou ao verbo principal — como
em (11) e (13), respectivamente — fornecem elementos adicionais para supor
que tais ocorrências não sejam uma inovação do PB. No entanto, sabe-se que
no Brasil a freqüência e a distribuição de estruturas variáveis foram
aumentadas consideravelmente durante o processo de nativização, ou seja,
passaram de um estágio de variação de pequenas proporções para uma
179
variação bem mais saliente. Segundo Naro & Scherre (2003), isso se explica
pelo fato de o processo de nativização, com o contato entre as línguas
indígenas, africanas e portuguesa, ter maximizado e acelerado os fenômenos
variáveis que já existiam em Portugal, de modo que, nesse complexo ambiente
sociolingüístico, eles assumiram uma freqüência quantitativamente mais
expressiva, dando ao PB a sua feição característica.
5.2- A constituição da norma oficial no Brasil
Os fenômenos variáveis que sempre existiram no sistema tomaram
dimensões tão grandes durante o processo de nativização da língua
portuguesa no Brasil, que acabaram tornando o PB uma variedade bem distinta
do PE, o que também foi favorecido, segundo Naro & Scherre (2003: 295),
pela “falta quase total de uma norma estável e geralmente aceita durante o
período de aquisição do português como primeira língua no Brasil.” No
entanto, a partir da segunda metade do século XIX, esse cenário de ausência
normativa muda completamente com o surgimento da chamada norma culta
oficial.
De acordo com Pagoto (1999), essa norma se estabeleceu no Brasil à
imagem e semelhança da norma então vigente em Portugal, como parte de um
projeto de nação elaborado pela elite, que assim pretendia distanciar-se dos
demais segmentos da população. Em decorrência disso, criou-se um
paradoxo: à medida que o Brasil consolidava a sua independência política da
ex-metrópole, reforçava os laços de dependência cultural a partir da adoção
dos padrões lingüísticos lusitanos que divergiam bastante do PB, que já havia
ampliado consideravelmente a freqüência de estruturas variantes com
ocorrência marginal no PE e, por isso, com pouco prestígio social. Por essa
razão, a norma oficial brasileira diverge tão profundamente da língua oral
usada pelos brasileiros no cotidiano, sendo apenas adotada em situações
específicas, como por exemplo na escrita formal. Conseqüentemente, tem-se
no Brasil um distanciamento ainda maior entre o que se fala e o que se
escreve.
180
5.3- O desafio de ensinar o emprego de clíticos
Em meio a essa diferença entre fala e escrita no Brasil, à escola caberia
ensinar a norma culta oficial aos alunos, sendo socialmente cobrada no
desempenho dessa função. Por conseguinte, ela teria a tarefa de recuperar
(ou seria ensinar?) formas que já não fazem parte do sistema lingüístico dos
alunos. Sem dúvida, ensinar a norma oficial significa ensinar uma segunda
língua, visto que os alunos, ao entrarem na escola, já possuem uma gramática
completa, adquirida num processo natural, desde os primeiros meses de idade,
a partir de dados fornecidos pelos que os cercam.
No intuito de proporcionar as condições para a aprendizagem de
estruturas prescritas pela norma oficial que não fazem parte da gramática do
aluno, a escola lança mão de algumas estratégias. Como o foco deste trabalho
é a realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa, serão
examinados os meios pelos quais escola tenta recuperar os clíticos na
representação dessas variáveis. Para isso, foram obtidos alguns livros
didáticos mais recentes que foram aprovados pelo MEC, tanto do ensino
fundamental quanto do ensino médio, uma vez que permitem vislumbrar, pelo
menos em parte, a prática escolar. Torna-se imperioso dizer, entretanto, que
não se pretende traçar aqui uma análise crítica completa a respeito do
conteúdo gramatical veiculado nessas obras, tarefa que excede os limites
deste trabalho, mas sim levantar alguns aspectos relativos ao tratamento
dispensado aos clíticos de terceira pessoa, que suscitarão algumas reflexões
sobre o ensino de Língua Portuguesa na escola. Assim, as estratégias
presentes nas obras consultadas foram as seguintes:
a) as “correções” baseadas na chamada norma culta
(19) Conforme a norma padrão da língua, aquela que é mais prestigiada na
nossa sociedade, NÃO PODEMOS ESCREVER18: pegou ela, mas
pegou-a. (Ensino Fundamental: Oliveira et al. Tecendo Textos: ensino
de Língua Portuguesa através de projetos. 6ª série, 1999, p. 129)
18 Nos exemplos relativos aos livros didáticos, os grifos em itálico ou em negrito já faziam parte do original. Assim, é de responsabilidade deste trabalho apenas o recurso de escrever em caixa alta, usado para pôr em evidência a estratégia em questão.
181
(20) Observe a fala do guarda: “… eu conheço ele.” Do ponto de vista da
gramática normativa, essa frase está correta? Por quê? CORRIJA-A,
se for o caso. Não, pois HÁ ERRO no emprego do pronome. Pela gramática
normativa, a forma CORRETA seria: eu o conheço. (Ensino fundamental:
Faraco & Moura. Linguagem nova. 7ª série, 2004, p.102 – livro do
professor)
(21) Observe a frase do texto 2: “Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…”
O pronome lhe equivale a “a você, a ele, a ela, ao senhor, à senhora…”.
Exerce, em geral, a função de objeto indireto. O verbo conhecer é um
verbo transitivo direto; pede objeto direto. O texto está escrito em
linguagem coloquial, por isso tem a construção “lhe conhecia”.
REESCREVA A FRASE, ADEQUANDO-A À NORMA CULTA. Eu ainda
não o conhecia. (Ensino fundamental: Faraco & Moura. Linguagem nova.
6ª série, 2004, p.144 – livro do professor)
(22) Assim sendo, frases como “Visitei ‘ele’ no domingo” são incorretas na
norma culta. CORRIGINDO-A, temos: Visitei-o no domingo. (Ensino
médio: Ferreira et al. Novas palavras: Português – Ensino Médio.
Volume único, 2003, p.393)
(23) Na função de complemento verbal, USAM-SE OS PRONOMES
OBLÍQUOS, e NÃO OS PRONOMES RETOS. Convidei ele.
(construção não aceita pela norma culta) � Convidei-o. (construção
aceita) […] NÃO SÃO ACEITAS PELA NORMA CULTA construções
em que o pronome o (e flexões ) aparece como complemento de verbos
transitivos indiretos, assim como as construções em que o pronome lhe
(lhes) aparece como complemento de verbos transitivos diretos: Eu lhe
vi ontem. (não aceito)/ Eu o vi ontem. (aceito); Nunca o obedeci. (não
aceito)/ Nunca lhe obedeci. (aceito) (Ensino médio: Terra & Nicola.
Português: de olho no mundo do trabalho. Volume único, 2004, p. 241)
182
b) os exercícios de substituição
(24) Evite repetir palavras, SUBSTITUINDO as palavras ou expressões
grifadas por um pronome: a) O pagamento das mensalidades estava
atrasado. Papai não tinha como pagar as mensalidades da escola. b)
Ela admirava os peixinhos. Seguia os peixinhos até perder os peixinhos
de vista. […] (Ensino Fundamental: Oliveira et al. Tecendo Textos:
ensino de Língua Portuguesa através de projetos. 6ª série, 1999, p. 130)
(25) Nas orações a seguir, indique se o termo sublinhado funciona como
objeto direto ou objeto indireto. Depois, SUBSTITUA-O
adequadamente por um dos seguintes pronomes: o, a, os, as, lhe ou
lhes. a) Foi à cidade e resolveu rapidamente todos os problemas
relativos à administração da fazenda. b) Junto com outros envelopes, o
carteiro entregou a Mariana uma carta sem o nome do remetente. […]
(Ensino médio: Ferreira et al. Novas palavras: Português – Ensino
Médio. Volume único, 2003, p.450)
(26) Reescreva as orações, SUBSTITUINDO o termo destacado por o(s),
a(s) ou lhe(s): a) Ele reconheceu o amigo. b) Ofereceu aos amigos
um jantar. […] (Ensino médio: Maia. Português – Série novo ensino
médio. Volume único, 2005, p. 368)
De um modo geral, os livros consultados também descreveram os
contextos em que ocorrem as alterações morfofonológicas do pronome
acusativo, conforme se ilustra a seguir:
(27) Os pronomes o, a, os, as podem ou não sofrer alterações, quando
empregados após o verbo ou no meio dele. […] Quando o verbo
termina em vogal oral, esses pronomes não se alteram: Trouxe-o agora.
Deixe-a em boas mãos. Quando os verbos terminam em r, s ou z, há a
queda dessas consoantes finais e os pronomes alteram-se para lo, la,
183
los, las: Aplaudi-los foi gratificante. (aplaudir os) Vendê-las-ei amanhã.
(venderei as — vender as hei) Meu trabalho, fi-lo muito bem. (fiz o)
Quando os verbos terminam em ditongos nasais (am, em, ão, õe, õem),
os pronomes alteram-se para no, na, nos, nas: Encontraram-na ontem.
Eles têm-na como filha. Dão-nos aos flagelados. (Ensino fundamental:
Mesquita & Martos. Português: Linguagem & Participação. 7ª série,
1998, pp. 104-105)
No entanto, segundo indicam os trabalhos sobre o PB oral, parece que
as estratégias comumente usadas pela escola na tentativa de recuperar os
clíticos de terceira pessoa não têm produzido os resultados esperados. Em
Freire (2000), que analisou a fala de informantes com nível universitário,
constatou-se que na função acusativa a influência do fator escolar só é
marcante na redução do emprego de formas estigmatizadas pela escola, como
o uso do pronome lexical (4%), mas é praticamente nula na reabilitação do
clítico (3%). Quanto à função dativa, o fracasso parece ser ainda maior, visto
que a ausência do clítico lhe na referência à terceira pessoa foi total na
amostra de língua falada. Por conseguinte, pode-se inferir que o efeito do
trabalho da escola não se deixa mostrar na língua oral. E o que dizer da
modalidade escrita? O trabalho de Averbug (2000) revelou que é
particularmente na escrita que se percebe algum resultado mais visível sobre a
atuação da escola na recuperação das variantes prescritas pela tradição
escolar, visto que em sua amostra apareceu um índice de 40% de ocorrência
do clítico acusativo em textos de informantes com nível superior. Do mesmo
modo, o presente trabalho constatou uma presença significativa dos clíticos
acusativo e dativo na amostra de língua escrita do PB, porém em contextos
que apresentaram o traço de [+ letramento], o que indica que o uso dos clíticos
acusativo e dativo na escrita brasileira parece ser mais um fenômeno de
morfologia estilística que gramatical, segundo a observação de Kato (1996), ou
seja, no PB esse uso não é comum em qualquer evento de comunicação, como
no PE, mas somente em eventos com marca de formalidade.
Por outro lado, têm-se evidências de que a aprendizagem desses clíticos
184
pelo estudante brasileiro não se dá sem problemas: em redações de alunos já
no último ano do ensino médio, são comuns os chamados usos irregulares dos
clíticos de terceira pessoa, conforme evidenciam os seguintes exemplos,
extraídos de redações de vestibular:
(28) Felizmente, os frutos brotaram, mas os foram colhidos para uma minoria
[…] (UFRJ, concurso de seleção 2001)
(29) O povo que cada vez mais ignorante, deixa-se levar por uma mídia, que
traz notícias manipuladas para o confortá-lo. (UFRJ, concurso de
seleção 2001)
(30) O futuro que o Brasil espera e sempre esperou não parece chegar, pois
fez pouco para merecer-o. (UFRJ, concurso de seleção 2001)
(31) […] gerando assim uma outra idéia de academia, onde antes tinham a
finalidade de proporcionar uma boa saúde, agora muitos buscam-a para
realizar uma tarefa: obter músculos. (UFRJ, concurso de seleção 2005)
(32) Com todos esses problemas o Brasil ainda pensa em ser um país do
futuro, mas um país que quer servir com a educação de pessoas que o
vão o construir, não pode ter uma população que tenha diferença social.
(UFRJ, concurso de seleção 2001)
(33) Agindo de maneira ideológica ela exerce grande influência no estilo de
vida adotado pela sociedade. Muitas vezes ela procura convencer as
pessoas da necessidade de adquirir um determinado produto, alegando
que o mesmo as trará beleza e alegria. (UFRJ, concurso de seleção
2005)
(34) Muitos acabam deixando de lado o seu valor de corpo perfeito e
saudável para satisfazer uma regra que a sociedade o impôs, fazendo
com que percam sua identidade […] (UFRJ, concurso de seleção 2005)
185
(35) Muitas delas ficam nas nuvens, eufóricas querendo andar pelas ruas
(por toda parte), para mostrar para todos, para ficarem olhando-lhes.
(UFRJ, concurso de seleção 2005)
Pelos exemplos anteriores, constata-se que muitos alunos, mesmo
concluindo o ensino médio, apresentam uma aprendizagem imperfeita dos
clíticos de terceira pessoa: em (28) observa-se um emprego totalmente
equivocado do clítico, visto que se trata de uma construção em voz passiva; em
(29) ocorre um caso de hipercorreção; em (30), (31) e (32) percebem-se
problemas quanto à posição do clítico, aparecendo uma evidente hesitação em
(32); em (33) e (34) verifica-se o emprego equivocado do clítico acusativo em
função dativa, inclusive quanto à flexão de número em (34); por fim, em (35)
nota-se o uso do pronome dativo em lugar do acusativo. De um modo geral,
tais ocorrências irregulares do clítico corroboram a artificialidade das variantes
prestigiadas pela tradição gramatical na variedade brasileira e sinalizam a
insuficiência das estratégias empregadas pela escola na tentativa de ensiná-las
aos aprendizes, além da ineficiência das “regras” sobre as alterações
morfofonológicas do pronome acusativo.
Retomando o propósito inicial desta seção, sabe-se que, por razões de
ordem sociocultural, a escola não poderia se eximir de ensinar a norma oficial,
haja vista as diversas situações em que esta é exigida. No entanto, na
execução dessa tarefa, o professor de Língua Portuguesa deve ter consciência
de que existe uma profunda diferença entre a língua prescrita pelas gramáticas
e a língua que seus alunos trazem de casa. Portanto, se o propósito é levar ao
conhecimento do aluno a língua formal, o ensino de clíticos de terceira pessoa
deveria basear-se não em meras recomendações proibitivas ou em exercícios
artificiais de substituição, mas na percepção dos escritores brasileiros de hoje
sobre esse fato gramatical, obtida a partir da leitura de textos produzidos pela
imprensa, que remetem a situações reais e representam o que efetivamente
constitui a norma culta brasileira. No entanto, a julgar pelos trechos
reproduzidos dos livros didáticos, percebe-se que estes ainda não costumam
apresentar essa preocupação.
186
CONCLUSÃO
Não obstante a freqüência até certo ponto expressiva de clíticos na
escrita brasileira, ainda assim foram constatadas significativas diferenças entre
o PB e o PE quanto à realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira
pessoa na modalidade escrita, o que remete às hipóteses formuladas no início
do trabalho.
Na função acusativa, confirmou-se a previsão de que o clítico ocorreria
nas duas variedades sob diferentes condições. No PE, esse item mostrou-se
robusto em todos os pontos do contínuo oralidade-letramento e em qualquer
contexto. Já no PB, ele somente apareceu mais expressivo em eventos de
comunicação marcados com o traço de [+ letramento] e preferencialmente em
contexto de ênclise ao infinitivo, ou seja, com o onset da sua sílaba
superficializado, o que está perfeitamente em consonância com o padrão
silábico do português. A esse respeito, tal contexto foi o único em que Freire
(2000) encontrou o pronome acusativo na fala, o que indica ser justamente
essa estrutura a que mais favorece a recuperação do clítico acusativo através
do processo de letramento. Do mesmo modo, confirmou-se, nessa mesma
variedade, uma ampla implementação das variantes alternativas ao uso do
pronome acusativo na escrita, haja vista o fato de, somadas, terem
representado mais da metade do total de dados, sobressaindo entre elas o
objeto nulo. Por outro lado, a análise do traço semântico do antecedente do
acusativo anafórico revelou que a implementação dessa última variante no PB
obedece de fato a uma hierarquia referencial, conforme já fora previsto por
Cyrino, Duarte e Kato (2000): uma incidência maior de objeto nulo com
antecedentes menos referenciais e menor com os mais referenciais, sobretudo
com os que apresentam o traço [+ animado], constituindo estes justamente um
dos contextos que mais favorecem a manutenção do clítico na escrita. Por
outro lado, deve-se destacar a pertinência da distinção entre objeto nulo e
anáfora do complemento nulo proposta por Matos (2003), uma vez que permite
investigar com mais propriedade as ocorrências da posição vazia do objeto em
ilhas sintáticas: em tais contextos, enquanto o PB apresenta indiferentemente
187
tanto a ocorrência da anáfora do complemento nulo quanto do objeto nulo, o
PE prefere aquela a este, o que corrobora as restrições ao objeto nulo na
variedade lusitana descritas por Raposo (1986) e I. Duarte (2003).
Com relação à função dativa, as diferenças entre o PB e o PE foram
ainda maiores: enquanto este exibiu uma ocorrência maciça do clítico ao longo
de todo o contínuo oralidade-letramento, aquele apresentou um emprego mais
expressivo desse elemento somente no extremo de [+ letramento] e mesmo
assim representando menos da metade do total de dados desse ponto do
contínuo. Paralelamente a isso, confirmou-se mais uma vez a plena
implementação de estratégias alternativas à variante prescrita pela tradição na
escrita brasileira, num grau até maior do que na função acusativa, visto que
elas representaram somadas mais de 70% do total de dados da amostra,
destacando-se o SP anafórico. Apesar de o uso da forma lhe em referência à
terceira pessoa na escrita do Brasil estar praticamente condicionado a eventos
de comunicação de [+ letramento], a amostra brasileira revelou ainda a
influência de um fator lingüístico: os verbos bitransitivos dandi foram
identificados como os contextos mais propícios à manutenção desse uso. Já
na amostra portuguesa, o pronome dativo ocorreu independentemente de
qualquer fator de ordem estrutural. Tais constatações comprovaram, pois, que
o emprego do clítico de terceira pessoa se dá sob diferentes condições nas
duas variedades.
De um modo geral, os resultados aqui obtidos fornecem argumentos a
favor da hipótese de Galves (1993, 2001) sobre o enfraquecimento da
concordância no PB, porquanto os clíticos de terceira pessoa (interpretados
como elementos de concordância) praticamente ausentes na fala são
recuperados na escrita com muitas restrições estruturais. No PE, ao contrário,
esses clíticos são amplamente empregados na modalidade escrita, tal como na
língua oral, o que apenas vem corroborar essa variedade como um sistema de
concordância rica. Por conseguinte, há indícios de que os clíticos acusativo e
dativo não possuem o mesmo estatuto nas duas variedades, uma vez que no
PE a ocorrência desses elementos se mostra copiosa e estável ao longo de
todo o contínuo oralidade-letramento, ao contrário do PB, no qual se percebe
188
que o emprego das mesmas variantes se deve a uma nítida influência da ação
escolar, conforme se deduz pelo enorme contraste entre os dois extremos do
contínuo no que diz respeito à freqüência desses elementos.
Por outra parte, a diferença de freqüência e de comportamento dos
clíticos acusativo e dativo encontrada na modalidade escrita do PB em cotejo
com a do PE vem justamente confirmar as hipóteses levantadas por Kato (no
prelo) sobre duas grandes questões discutidas por ela: a natureza da escrita
do adulto letrado brasileiro e a maneira como ele obtém esse conhecimento.
Sobre a primeira questão, os resultados deste trabalho fornecem
argumentos que ratificam a hipótese, defendida pela referida autora, segundo a
qual a escrita do letrado adulto brasileiro não representa o conhecimento
gramatical de sincronias passadas nem se identifica com o conhecimento do
falante português contemporâneo. Na verdade, no que diz respeito à
realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa, pode-se
dizer que o conhecimento do letrado brasileiro manifesta dois fenômenos bem
peculiares: (a) uma incidência maior das variantes consideradas padrão
somente sob condições de ordem estrutural, como o clítico acusativo em
contextos com infinitivo e o clítico dativo em contextos com verbos bitransitivos
dandi; (b) a plena infiltração de variantes alternativas aos clíticos não
discriminadas pela escola, como o uso irrestrito do objeto nulo na função
acusativa e o emprego avassalador do SP anafórico na função dativa: ambas
as variantes com ocorrência muito marginal na escrita portuguesa.
Quanto à segunda questão, o presente trabalho levanta alguns aspectos
que vão ao encontro da hipótese de Kato (no prelo), que postula o acesso
indireto do indivíduo à GU (Gramática Universal) na aquisição/ aprendizagem
da escrita, uma vez que os resultados obtidos sinalizam que o letrado brasileiro
parece obter o seu conhecimento da escrita através do acesso à primeira
gramática, a língua falada, o que seria confirmado pela presença de clíticos na
escrita brasileira em forte competição com as variantes largamente
empregadas na língua oral, conforme foi sobejamente demonstrado durante a
análise dos dados.
Em suma, o presente trabalho evidenciou que o fenômeno do
enfraquecimento da concordância na variedade brasileira atinge a configuração
189
pronominal da terceira pessoa também na escrita, o que já vem ocorrendo na
modalidade oral há bastante tempo, ou seja, não se pode negar a ampla
infiltração das variantes alternativas aos clíticos nos textos produzidos pelas
novas gerações de escritores, conforme já havia intuído Menon (1996). Com
efeito: na amostra aqui analisada, essas variantes chegaram a representar
53% dos dados na função acusativa e 74% na função dativa.
Resta, contudo, checar os possíveis efeitos do enfraquecimento da
concordância na variedade brasileira sobre as demais pessoas gramaticais,
visto que uma observação impressionística de construções do PB
contemporâneo já aponta casos no mínimo intrigantes, como o seguinte:
“Beija eu
Beija eu
Beija eu, me beija
Deixa o que seja ser” (Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay)
Casos como esse são comumente justificados pelo que se chama de
“licença poética”, tal qual ainda se diz do pronome reto de terceira pessoa em
função acusativa quando aparece em músicas. No entanto, construções com o
pronome nominativo de primeira pessoa em função acusativa vez ou outra se
mostram recorrentes na música popular do Brasil, como também ilustra o verso
“Vida leva eu” de Zeca Pagodinho. Mencione-se ainda o fato de que o
pronome de primeira pessoa, que na fala aparece quase invariavelmente no
caso nominativo como sujeito de infinitivos regidos pelos verbos causativos e
sensitivos (deixa [eu ver]), também pode ser encontrado sob essa mesma
condição na escrita, em eventos de [+ oralidade/ + letramento] como as
crônicas:
Só queria combinar com Meg para da próxima vez abrir a porta e deixar
eu dormir em paz. (Jornal do Brasil, 02-07-1999 – Crônica)
Pode-se inferir que as ocorrências acima apresentadas constituem um
190
indício de que o enfraquecimento da concordância na variedade brasileira já
poderia estar afetando as demais pessoas gramaticais. Diante disso, abre-se
um campo bastante fecundo de investigação, que poderá levantar mais
características do PB tanto na modalidade oral, quanto na escrita: tarefa a ser
empreendida em trabalhos futuros como continuidade da presente pesquisa.
Por fim, como este trabalho levanta questões relativas ao ensino de
Língua Portuguesa, não se poderia deixar de tecer algumas considerações a
respeito da prática escolar na sua tentativa de transmitir formas previstas pela
tradição gramatical em meio ao processo de mudança lingüística por que passa
o PB. Conforme expõe Pagotto (1999), sabe-se que, por razões de ordem
histórica e cultural, a norma oficialmente adotada no Brasil, inspirada no PE
moderno, ainda é prestigiada pela escola, visto que esta constitui uma das
agências padronizadoras da língua (cf. Bortoni-Ricardo, 2004: 52), ou seja, é
integrante do conjunto de instituições sociais que “são depositárias e
implementadoras das culturas de letramento”. Por conseguinte, ela teria a
tarefa de recuperar os clíticos prescritos por essa norma oficial na realização
do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa. Entretanto, os
resultados obtidos nesse intento pouco ou nada são percebidos na modalidade
falada, conforme se verifica em Freire (2000). Além disso, nem mesmo na
escrita essa recuperação é total, uma vez que trabalhos como este e o de
Averbug (2000) revelaram, ao lado dos clíticos, uma presença expressiva das
variantes alternativas ao seu uso.
Não raramente, entram em cena também os agentes conservadores,
assim denominados por Kato (1996), que se arrogam a função de zelar pela
observância da norma culta, defendendo, em colunas de jornal ou em
programas de televisão, um ensino dogmático da língua tida por eles como
padrão:
Já afirmei várias vezes que ninguém morre por dominar registros lingüísticos diferentes dos usados no dia-a-dia. Ninguém morre por entender, por exemplo, que, em “Ela não se matou. Procurem-na.” (de “Desaparecimento de Luísa Porto”, de Carlos Drummond de Andrade), o “na” se refere a “ela”, que, no contexto, é a própria Luísa Porto. (NETO, Pasquale Cipro. Folha de São Paulo, 11-12-2003)
191
No entanto, atitudes como essa não parecem ser o melhor caminho para
lidar com a questão do ensino de clíticos, pois se deve levar em conta o fato de
que a aprendizagem dos clíticos pelo falante brasileiro nem sempre se dá sem
problemas, como costumam demonstrar as redações de alunos do ensino
médio, o que põe em xeque, portanto, as estratégias empregadas pela escola
na tentativa de recuperar as variantes prestigiadas pela tradição gramatical.
Por tudo isso, fica evidente que, se o propósito é ensinar os clíticos de
terceira pessoa prescritos pela norma oficial, o professor de Língua Portuguesa
deveria assumir as seguintes atitudes: (a) ter consciência do atual processo de
mudança por que passa o sistema lingüístico brasileiro, o que conseqüente
aumenta no Brasil a natural distância que sempre existiu entre fala e escrita; (b)
levar os seus alunos ao contato direto com textos produzidos pela imprensa,
que revelam a sensibilidade das novas gerações de letrados a respeito do que
efetivamente vem a ser a norma culta brasileira usada em eventos de
letramento. Somente a partir dessas atitudes, o professor de Língua
Portuguesa poderia ser mais bem sucedido em sua tarefa de ensinar clíticos,
uma vez que estes seriam apresentados a seus alunos como variantes
estilísticas, isto é, próprias de contextos específicos, como os eventos de
comunicação marcados com o traço de letramento. Além disso, apareceriam
com as demais variantes e certamente com a feição atual que os letrados
brasileiros lhes têm dado, como resultado desse processo de aquisição/
aprendizagem a que Kato (no prelo) se refere, uma feição bem diferenciada da
que é apresentada em livros, em manuais de redação e em colunas de jornais.
192
FREIRE, Gilson Costa. (2005) A realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa na escrita brasileira e lusitana. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 204 pp.
RESUMO
Estudos sobre o português falado no Brasil vêm demonstrando um
significativo decréscimo no uso dos clíticos acusativo e dativo de terceira
pessoa, substituídos por outras variantes, tais como pronomes tônicos, SNs
anafóricos ou SPs, e por uma categoria vazia. O português europeu, por outro
lado, exibe um sistema rico de clíticos de terceira pessoa, o que corrobora a
hipótese de Galves, segundo a qual o português brasileiro (PB) e o português
europeu (PE) constituem dias línguas-I. Poucos trabalhos, entretanto, abordam
o uso dos clíticos e suas formas variantes na escrita padrão, que é o propósito
do presente estudo, com base em uma amostra constituída de diferentes
gêneros textuais distribuídos ao longo de um continuo oralidade-letramento. Os
resultados apontam consideráveis diferenças entre as duas variedades:
embora o processo de escolarização consiga recuperar ambos os clíticos em
PB, eles estão em clara competição com as variantes encontradas na fala; no
PE, como esperado, eles aparecem como estratégias preferenciais. Da mesma
forma, os resultados mostram a influência do contínuo proposta, bem como os
fatores lingüísticos que facilitam a recuperação dos clíticos perdidos, tais como
a estrutura sintática e o traço semântico do referente. Finalmente, o trabalho
contribui para discutir o modo pelo qual se desenvolve a gramática do letrado e
permite algumas reflexões sobre o papel da escola na tarefa de ensinar formas
ainda presentes na escrita embora ausentes da fala.
193
FREIRE, Gilson Costa. (2005) A realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa na escrita brasileira e lusitana. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 204 pp.
ABSTRACT
Studies about spoken Brazilian Portuguese (BP) show a significant
decrease in the use of third person accusative and dative clitics, replaced by
other variants, such as nominative pronouns, anaphoric NPs and PPs and by a
null category. On the other hand, spoken European Portuguese (EP) exhibits a
rich system of third person clitics, which corroborates Galves´s hypothesis that
BP and EP are different I-Languages. Few works, however, approach the use of
such clitics and their suppletive strategies in written language, which is the
purpose of the present study, based on a sample of different types of texts
distributed along a continuum orality-literacy. The results show considerable
differences between both varieties: even though schooling can recover both
clitics in BP, they are in clear competition with the other variants found in
speech; in EP, as expected, they appear as preferential strategies. In the same
way, the results show the influence of the continuum proposed, as well as the
linguistic factors that facilitate the recover of the lost clitics in BP, such as, the
syntactic structure and the semantic feature of the referent. Finally, the work
allows some insights about the development of the grammar of a literate
individual and some reflections about the role of the school in the task of
teaching forms still present in written language, though absent in speech.
194
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202
ANEXO
Listagem dos veículos usados na composição das amostras
PORTUGUÊS BRASILEIRO
Jornais
Jornal do Brasil, 28-11-1999
Jornal do Brasil, 25-05-2003
Jornal do Brasil, 06-07-2003
Jornal do Brasil, 10-08-2003
Jornal do Brasil, 25-04-2004
Jornal do Brasil, 02-05-2004
O Globo, 12-07-2003
O Globo, 13-07-2003
O Globo, 14-11-2003
O Globo, 16-05-2004
O Globo, 25-07-2004
O Globo, 27-07-2004
O Globo, 04-09-2004
O Globo, 12-09-2004
O Globo, 19-09-2004
O Globo, 30-09-2004
Suplementos de jornais
Caderno B do JB, 02-05-2004
Caderno H do JB, 25-04-2004
Caderno H do JB, 02-05-2004
Casa & Decoração do JB, 25-04-2004
Casa & Decoração do JB, 02-05-2004
Esportes do JB, 25-04-2004
Jornal da Família de O Globo, 16-05-2004
Revista Domingo do JB, 28-03-1999
Revista Domingo do JB, 18-04-1999
203
Revista Domingo do JB, 25-04-1999
Revista Domingo do JB, 06-06-1999
Revista Domingo do JB, 11-07-1999
Revista Domingo do JB, 15-08-1999
Revista Domingo do JB, 19-09-1999
Revista Domingo do JB, 26-09-1999
Revista Domingo do JB, 03-10-1999
Revista Domingo do JB, 17-10-1999
Revista Domingo do JB, 07-11-1999
Revista Domingo do JB, 05-12-1999
Revista Domingo do JB, 25-04-2004
Revista Domingo do JB, 02-05-2004
Segundo Caderno de O Globo, 16-05-2004
Segundo Caderno de O Globo, 16-06-2004
Segundo Caderno de O Globo, 17-06-2004
Segundo Caderno de O Globo, 26-07-2004
Segundo Caderno de O Globo, 30-07-2004
Segundo Caderno de O Globo, 04-08-2004
Segundo Caderno de O Globo, 12-09-2004
Gibis
Almanacão de Férias da Turma da Mônica, n.º 18, 1995
Almanacão de Férias da Turma da Mônica, n.º 36, 2002
Almanaque do Cebolinha, n.º 77, outubro de 2003
Almanaque do Cebolinha, n.º 78, dezembro de 2003
Cebolinha, n.º 210, dezembro de 2003
Magaly, n.º 333, 2002
Mônica, n.º 100, 1995
O melhor da Disney, vol. 3, maio de 2004
Pato Donald, n.º 2.269, junho de 2003
Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004
204
PORTUGUÊS EUROPEU
Jornais
Diário de Notícias, 10-11-1998
Diário de Notícias, 20-12-1998
Expresso, 16-01-1999
Expresso, 24-01-1999
Público, 24-11-1998
Público, 09-12-1998
Público, 20-12-1998
Público, 10-11-2004
Suplementos de jornais
DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000
DNA do Diário de Notícias, 12-02-2000
DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000
DNA do Diário de Notícias, 26-02-2000
DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000
DNA do Diário de Notícias, 11-03-2000
DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000
Gibis
Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004
Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001
Tio Patinhas, n.º 224, agosto de 2004