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7/21/2019 A Recriação Do Pícaro Na Literatura Brasileira o Malandro
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ARTIGO Letrônicav. 4, n. 1, p. 122-135, julho 2011
A recriação do pícaro na literatura brasileira: o personagemmalandro
Altamir Botoso1
Antonio Candido (1970, p. 67-89), no seu estudo “Dialética da malandragem”,
dedicou-se à análise do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel
Antonio de Almeida, procurando refutar a tese de que a obra possa ser filiada à
picaresca espanhola2. Esse estudo é referência fundamental para a caracterização teórica
do romance malandro, razão pela qual nos deteremos no exame de seus principais
aspectos.
Na introdução, Candido arrola três autores que trataram de definir o gênero
romanesco a que a obra pertenceria. José Veríssimo, em 1894, definiu-a como romance
de costumes, considerando as inúmeras descrições de lugares e cenas do Rio de Janeiro,
no tempo do rei Dom João VI. Já para Mário de Andrade a história de Leonardo Pataca
é um romance de tipo marginal, que se aproxima do de Apuleio, Petrônio e do Lazarillo
de Tormes, porque todos apresentam “personagens anti-heróicos que são modalidades
1 Altamir Botoso é professor de língua e literaura espanhola e hispano-americana da UNIMAR e doPrograma de Pós-Graduação em Letras - Área de Concentração: Literatura Comparada e Literaturas deLíngua Portuguesa.2 O romance picaresco é uma modalidade literária que abrange um conjunto de obras escritas na Espanha,nos séculos XVI e XVII. Seu eixo centra-se no pícaro, personagem de baixa condição social, que procura
obras constituem o núcleo clássico, ou picaresca clássica: Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, publicada em 1554, Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán, cuja primeira parte apareceu em 1599 e asegunda, em 1604, e El Buscón, de Francisco de Quevedo, que vem a público no ano de 1626. Esseslivros apresentam a história de um anti-herói que, valendo-se de sua astúcia, tenta integrar-se à sociedade,narrando ele próprio as suas aventuras e desventuras de forma autobiográfica. Para mais informações,leia-se: GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol e
algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
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Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.123, jul./2011.
de pícaro” (CANDIDO, 1970, p. 67). Em 1956, Darcy Damasceno afirmou não ser
possível considerar as Memórias como obra picaresca, pois neste livro há um pícaro
mais adjetival que substancial e lhe faltam as marcas peculiares do gênero picaresco.
Damasceno aceitou a designação de romance de costumes para a obra.
A seção I do estudo de Antonio Candido centra-se na argumentação de que as
Memórias não são um romance picaresco. O crítico não concorda com o
posicionamento de Josué Montelo. Este acreditava que Manuel Antonio de Almeida
teve nas obras La vida de Lazarillo de Tormes e Vida y hechos de Estebanillo González
os modelos para escrever seu romance. Para Antonio Candido, Montelo supervalorizou
analogias fugazes e não provou que as Memórias são obra picaresca, mas admite que
seu autor possa “ter recebido sugestões marginais de algum outro romance espanhol ou
feito à maneira dos espanhóis, como ocorreu por toda a Europa no século 17 e parte do
18” (CANDIDO, 1970, p. 68). A seguir, inicia uma comparação das características do
“memorando” brasileiro com o pícaro espanhol, apoiando-se nas teorias de Frank
Wadleigh Chandler e Angel Valbuena y Prat.
O primeiro aspecto abordado é a questão do narrador. Se nos romances
picarescos é o próprio pícaro quem narra suas aventuras, o mesmo não ocorre no livrode Manuel Antonio, o qual apresenta um narrador onisciente e “sob este aspecto o herói
é um personagem como os outros, apesar de preferencial; e não o instituidor ou a
ocasião para instituir o mundo fictício, como o Lazarillo, Estebanillo, Guzmán de
Alfarache, a Pícara Justina ou Gil Blaz de Santillhana” (CANDIDO, 1970, p. 68).
Em seguida, o crítico brasileiro aponta duas afinidades entre Leonardo Filho e os
pícaros espanhóis: a origem humilde e a itinerância. No entanto, com relação à origem,
faltaria a Leonardo um traço fundamental do pícaro: “o choque áspero com a realidade,
que o obriga à mentira, à dissimulação e ao roubo” (CANDIDO, 1970, p. 69). O
personagem das Memórias já “nasce malandro feito” (CANDIDO, 1970, p. 69) e a sua
malandragem não é “um atributo adquirido por força das circunstâncias” (CANDIDO,
1970, p. 69), como no caso dos pícaros. Por outro lado, a origem humilde e o abandono
não o levam à condição servil, que nos romances espanhóis é essencial para que o
pícaro mova-se e ganhe experiência, “vendo a sociedade no conjunto” (CANDIDO,
1970, p. 69).
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Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.124, jul./2011.
O crítico assevera, então, que Leonardo é um anti-pícaro, com vocação de
fantoche, que termina casado e recebe cinco heranças, sem que nada tivesse feito para
que isso ocorresse.
Na seção II do referido estudo, Antonio Candido (1970, p. 71) volta a negar que
Leonardo seja um pícaro e afirma que ele é um malandro:
Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo deuma tradição folclórica e correspondendo, mais do que se costumadizer, a certa atmosfera cômica e popularesca do seu tempo, no Brasil.
Malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário deAndrade em Macunaíma.
Efetivamente, com Memórias, o personagem malandro inaugura uma nova
vertente na “novelística brasileira”: o romance malandro, que se consolida com a
publicação da rapsódia macunaímica e amplia-se com os malandros do pós-milagre.
No final da seção II, Antonio Candido (1970, p. 71) chega, ainda que
brevemente, a definir o que seja o malandro: “O malandro, como o pícaro, é espécie de
um gênero mais amplo do aventureiro astucioso, comum a todos os folclores.” A
esperteza, a agilidade, a sagacidade, a capacidade de improviso são algumas das
características mais marcantes do malandro, que renega o trabalho e procura viver do
jogo, da trapaça, da gigolotagem e até de pequenos furtos.
O autor, na terceira parte do ensaio, atesta que o romance de Manuel Antonio de
Almeida não é um documentário que reproduz a sociedade do tempo de Dom João VI.
Sua primeira metade, que vai até o capítulo XXVII, tem o aspecto de crônica e, a partir
daí, há uma segunda, que tem mais características de romance, e na qual a figura do
filho de Leonardo domina a narrativa. Na quarta e quinta partes, o crítico, com base na
dialética da ordem e da desordem, faz uma análise das relações dos personagens. De um
lado, de acordo com esta dialética, estão aqueles que “vivem segundo as normas
estabelecidas” (CANDIDO, 1970, p. 77), cujo grande representante é o major Vidigal;
de outro, aqueles que estão ou vivem em oposição, ou ainda têm integração duvidosa
em relação a elas. A ordem liga-se a um hemisfério positivo e a desordem, a um
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hemisfério negativo. Leonardo transitará entre estes dois pólos, até ser finalmente
absorvido pelo positivo, integrando-se à sociedade pelo casamento e pelo recebimento
das heranças.
Até este ponto, tentamos resumir as principais idéias de Antonio Candido,
contidas em seu ensaio. Apesar de o crítico basear a sua comparação do pícaro com o
malandro em teorias discutíveis de Chandler 3, concordamos com ele no que diz respeito
ao fato de Leonardo não ser um pícaro. Entretanto, este personagem pode ser
aproximado aos pícaros espanhóis, cujas armas principais no relacionamento com a
sociedade são a astúcia e a imobilidade. Ele rejeita o trabalho. Seu percurso na obra
também é marcado, em algumas partes, pela itinerância, embora essa se restrinja apenas
ao Rio de Janeiro.
Em suma, consideramos com o professor Candido que Leonardo não é um
personagem picaresco stricto sensu, assim como a obra em questão não se ajusta
plenamente às convenções do gênero picaresco, mas importa ressaltar que Memórias de
um sargento de milícias traz ao primeiro plano a figura do malandro como descendente
cultural de uma linhagem de anti-heróis protagônicos, inaugurada justamente pelo
romance picaresco espanhol. Ater-se tão somente a elementos como a autobiografia, o
serviço a vários amos e o choque áspero com a realidade, para caracterizar o pícaro ou
um provável romance picaresco, revela-se insuficiente. Desde o Lazarillo de Tormes e
seus correlatos textuais formadores do núcleo clássico picaresco, o Guzmán de
Alfarache e El Buscón, as demais obras designadas como picarescas transgrediram o
modelo inicial. A autobiografia, em alguns casos, cedeu lugar a um narrador em terceira
pessoa, mas com o ponto de vista centrado no herói; por outro lado, já no próprio
espaço intertextual canônico, observam-se importantes variações. Por exemplo, se
Lázaro teve vários amos, Guzmán terá apenas uma meia dúzia, apesar da extensão do
romance, e Pablos, apenas um. O fato é que dentro do que se convencionou chamar
“gênero picaresco”, a transgressão, a recriação, a transformação são marcas constantes:
Assim é como surgem as variações que incomodam tanto aos críticose que constituem, em compensação, seu valor mais significativo, poisainda permanecendo no mesmo leito original, cada obra oferece uma
3 Chandler “limita-se a identificar o pícaro como um anti-herói e a entender o romance picaresco como
uma autobiografia do mesmo, caracterizada pela falta de plano e pela presença do humor, sendo que o pícaro seria um mero pretexto para a descrição da sociedade”. GONZÁLEZ, Mario M. A saga do anti-
herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994, p. 284.
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Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.126, jul./2011.
personalidade própria. O Lazarillo inicial conta sua vida a „VossaMercê‟, mas outros a contam a um „senhor‟, a um vigário ou um cura,ao leitor, a um amigo poeta... O primeiro conta-a para explicar seu„caso‟; os outros o fazem para escarmentar, para adquirir fama, paradivertir... Um começa desde a infância, outro desde quando estava noventre de sua mãe... Um menciona os pais, outro acrescenta os avós etataravós... O moço é substituído pela moça... O monólogo torna-sediálogo... A autobiografia é agora relato em terceira pessoa... O protagonista se converte em testemunha... O que era mendigo na rua éagora criado num convento, pajem na corte, soldado na guerra... O quenão havia saído de sua cidade, viaja agora pela Espanha, pela Europa,chega ao Oriente, e acaba na América... O rapaz bom, mas travesso,torna-se um bêbado empedernido, um ladrão e malfeitor, umcriminoso e assassino... O filho de ninguém chega a ser soldado,escudeiro, homem de bem, até aristocrata... Alguns superam suacondição miserável e se „estabelecem‟ na sociedade, outros não...Alguns se arrependem e mudam de vida, outros não, ou terminam
condenados à morte... Onde havia um pícaro, agora há dois... Se antesnão havia amor, agora há... (BRAIDOTTI, 1979, p. 112-113, traduçãonossa).
Como se observa, o personagem picaresco adquiriu novas características, passou
por transformações e transfigurações, sem, contudo, distanciar-se radicalmente do
modelo iniciado pelo Lazarillo e continuado e alargado pelo Guzmán e pelo Buscón. As
demais obras classificadas como picarescas mantiveram viva a figura do anti-herói.
Novos autores desenvolveram e ampliaram a figura do pícaro. Se estes autores
“tivessem querido simplesmente imitar ou copiar literalmente o modelo original, ter -se-
iam metido em um beco sem saída. Só a variedade lhes oferecia um futuro seguro, e isto
foi o que os salvou do esquecimento e contribuiu para seu êxito” (BRAIDOTTI, 1979,
p. 113, tradução nossa). Essa variedade demonstrou ser o pícaro um ente ficcional
dinâmico, sempre aberto a novas possibilidades, a adquirir novas características e a
aclimatar-se tão bem em terras estrangeiras.
Em solo brasileiro, o malandro, sem dúvida, pode ser visto como uma recriação
do pícaro espanhol. Embora quase cinco séculos os separem, muitas afinidades e
semelhanças acabam por uni-los. O estudo de Antonio Candido, apesar de pôr reparos a
essa possibilidade, analisa, com toda a propriedade que é peculiar ao autor, a figura do
malandro literário, apresentando-o como um indivíduo fora das normas estabelecidas
(ordem), que usa a astúcia e a recusa ao trabalho como forma de ascensão social. Tais
características são traços constantes dos pícaros que conhecemos e, em última instância,
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contradizem o que o mestre insiste em minimizar: que o malandro Leonardo possa ser
aproximado dos anti-heróis espanhóis.
Ao que consta, Antonio Candido não voltou a se manifestar sobre este assunto.
No entanto, anos após a publicação da “Dialética da malandragem”, em 1989, num
artigo sobre o que ele considera como a nova narrativa brasileira, faz a seguinte
colocação: “E mesmo numa indicação muito incompleta, não é possível omitir a curiosa
vertente satírica de corte picaresco, de que é manifestação Galvez, imperador do Acre
(1976), de Márcio Souza, anti-saga desmistificadora dos aventureiros da Amazônia.”
(CANDIDO, 1989, p. 212).
Teria o crítico revisto suas idéias expostas na “Dialética” e concluído que o
pícaro e o malandro poderiam ser aproximados? Não o sabemos e nem é possível sabê-
lo apenas com esta alusão breve e “incompleta”. E, na verdade, isto já não tem
importância, uma vez que o estudo comparado entre malandros e pícaros foi e continua
sendo um terreno fértil para os pesquisadores. Destacam-se, no tocante a este aspecto, as
pesquisas desenvolvidas por Mario González, que culminaram em seu já citado estudo
A saga do anti-herói, e numa série de dissertações de mestrado defendidas na USP. Os
malandros Macunaíma, Amphilóphio das Queimadas Canabrava, Atahualpa (tio e
sobrinho) e João Miramar, por exemplo, já foram lidos e analisados à luz da picaresca
clássica nos seguintes trabalhos: A picaresca espanhola e ‘Macunaíma’ de Mário de
Andrade, de Heloisa Costa Milton (1986); ‘Mi tio Atahualpa’: a sagração do herói na
terra do carnaval , de Maria Teresa C. de Souza (1987); Galvez, o pícaro nos trópicos,
de Rubia Prates Goldoni (1989); Amphilóphio das Queimadas Canabrava: um pícaro
caboclo?, de Maria Eunice Furtado Arruda (1990); ‘Bildungsroman’ e picaresca em
‘Memórias sentimentais de João Miramar’ e “Amar, verbo intransitivo’ , de Daniel
Argolo Estill (1996). Vale destacar, todavia, que para nós foi gratificante descobrir que
o mestre, ainda que minimamente, relaciona o malandro Galvez com o pícaro espanhol.
O malandro, tal qual o pícaro, transferiu-se das ruas para a ficção. A sua
linhagem, se assim podemos chamá-la, começa com Leonardo Pataca, afirma-se com
Macunaíma, passa pelos demais malandros citados anteriormente e prossegue em várias
obras que ainda vamos mencionar. No terreno ficcional, o malandro apresentará os
mesmos traços fundamentais do estereótipo do brasileiro: “vagabundagem, preguiça,
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Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.128, jul./2011.
Ligado ao vocábulo malandro está o termo malandragem, com um sentido
semântico negativo, que significa o ato, a qualidade ou o modo de vida daquele que a
pratica. A carga negativa advém do fato de estar embutido no seu conceito a lesão ou
danos a terceiros. O ato de malandragem supõe um sujeito (o malandro) que o pratica e
um paciente que o sofre (a vítima ou o otário, dependendo do caso). O engano, a trapaça
e o prejuízo são os motores mais comuns de uma ação malandra. Roberto Goto (1988,
p. 11) observa que
No imaginário da sociedade nacional, [a malandragem] costuma
sintetizar certos atributos considerados específicos ou identificadoresdo brasileiro: hospitalidade e malícia, a ginga, a finta, o drible, amanha e o jogo de cintura, muito apreciados no futebol e na política, aagilidade e a esperteza no escapar de situações constrangedorasligadas ao trabalho e à repressão, o „jeitinho‟ que pacifica contendas,abrevia a solução de problemas, fura filas, supre ou agrava a falta deexercício de uma cidadania efetiva.
A malandragem brasileira é, de fato, um traço peculiar da forma de ser nacional,
expressa em gestualidades diversas como o “jeitinho”, a safadeza, a ascensão social com pouco esforço. O tipo que a encarna, na vida social e na esfera da cultura, é obviamente,
o malandro. É importante acrescentar, no entanto, que ela cobra vigor ao ser encarada
como “um espaço de liberdade dado aos mais talentosos” (GOTO, 1988, p. 105), o que
faz supor, para o malandro, uma vitalidade própria. Essa espécie de “talento”, aliás, é o
que não falta ao nosso anti-herói que, “desenvolvendo travessuras num mundo aberto ou
aproveitando as brechas de um mundo fechado”, tem na malandragem o exercício e a
“expressão de uma liberdade, efetiva ou anunciada” (GOTO, 1988, p. 107). Ela, porassim dizer, garante a sua liberdade, desvia-o do trabalho e permite-lhe a sobrevivência
no universo do ócio.
A figura do malandro suscitou estudos em diversas áreas, dentre elas a da
literatura e a da sociologia. Com relação a esta última, o livro de Roberto da Matta,
Carnavais, malandros e heróis, tornou-se uma obra de consulta obrigatória para quem
deseja estudar e conhecer o malandro mais a fundo. Para ele, “o malandro é um ser
deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás
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Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.129, jul./2011.
definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de
andar, falar e vestir-se” (DA MATTA, 1990, p. 216).
Cabe aqui apontar que o malandro aprende a usar a sua esperteza, o seu savoir
vivre, para escapar das malhas do trabalho regular e disciplinado, que o impediriam de
circular livremente e cerceariam a sua tão prezada liberdade.
A definição de malandro dada pelo antropólogo Da Matta pode ainda ser
complementada. O malandro possui outros traços e particularidades que lhe são
inerentes e que compõem o seu perfil. Cláudia Matos (1982, p. 55) ressalta o seu caráter
de ser de fronteira dentro do sistema social:
o próprio malandro é um ser da fronteira, da margem. [...] Ele não se pode classificar nem como operário bem comportado, nem comocriminoso comum: não é honesto mas também não é ladrão, émalandro. Sua mobilidade é permanente, dela depende para escapar,ainda que passageiramente, às pressões do sistema. [...] A poética damalandragem é, acima de tudo, uma poética da fronteira, dacarnavalização, da ambigüidade.
O malandro é, portanto, um indivíduo marginalizado socialmente, que está fora
da ordem estabelecida e que, ao mesmo tempo, procura tirar partido dessa ordem a
qualquer custo, como os pícaros. A ficção que o consagra como protagonista reinventa,
no plano poético, essa condição.
O romance malandro apresenta como protagonista um anti-herói, que não se
enquadra na ordem legal e nem se extravia dela. É um individualista que pretende
ascender socialmente não pelo trabalho, mas pela astúcia, e que parodiará osmecanismos ascensionais observados na sociedade da qual ele faz parte, para conseguir
seu intento. Em algumas obras, o malandro deixa de lado o seu individualismo e passa a
ser porta-voz de projetos políticos alternativos, que contribuiriam para uma mudança
social. Geralmente estes projetos, utópicos e quixotescos, acabam em lutas armadas,
com a derrota do próprio malandro (GONZÁLEZ, 1994, p. 353-357).
Nesta parte, consideramos oportuna uma catalogação das obras que alguns
autores como Mario Miguel González (1994), Edward Lopes (1970), Erwin Theodor
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Botoso, Altamir
Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.130, jul./2011.
Rosenthal (1975), consideram como romances malandros brasileiros. Em ordem
cronológica, os seguintes livros são aceitos como romances ou relatos malandros:
1852-53: Manuel Antonio de Almeida: Memórias de um sargento de milícias
1920: Hilário Tácito: Madame Pommery
1924: Mário de Andrade: Memórias sentimentais de João Miramar
1928: Mário de Andrade: Macunaíma , o herói sem nenhum caráter
1933: Oswald de Andrade: Serafim Ponte Grande
1961: Jorge Amado: Os velhos marinheiros
1963: João Antonio: Malagueta, Perus e Bacanaço
1968: Marcos Rey: Memórias de um gigolô
1971: Ariano Suassuna: A pedra do reino
1976: Márcio Souza: Galvez: Imperador do Acre
1978: Paulo de Carvalho Neto: Meu tio Atahualpa
1979: Moacyr Scliar: Os voluntários
1979: Fernando Sabino: O grande mentecapto
1980: Edward Lopes: Travessias
1980: Luís Jardim: O ajudante de mentiroso: novela picaresca
1980: Marcos Rey: Malditos paulistas: romance policial-picaresco
1982: Haroldo Maranhão: O tetraneto del-rei
1984: Napoleão Sabóia: O cogitário
1994: José Roberto Torero: Galantes memórias e admiráveis aventuras do virtuoso
Conselheiro Gomes, o Chalaça
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Botoso, Altamir
Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.131, jul./2011.
1997: André Heráclio do Rêgo: Memórias de um amarelo mofino: romance episódico,
memorial, épico, picaresco e escatológico
1998: Marcos Rey: Fantoches
2007: Homero Fonseca: Roliúde
2007: Ruy Castro: Era no tempo do rei: um romance da chegada da corte
Temos consciência de que algumas obras mais recentes poderiam integrar o rol
de obras malandras elencado acima, mas acreditamos que a lista que elaboramos
comprova que, de fato, o romance da malandragem vem se firmando na literatura
brasileira como uma vertente bastante fecunda e que merece ser estudada com mais profundidade. Baseados nesta premissa, vamos comentar o romance Malditos paulistas:
romance policial-picaresco, de Marcos Rey, buscando destacar algumas aproximações
entre o romance picaresco e o romance malandro brasileiro.
Em Malditos paulistas, Marcos Rey fundiu duas modalidades narrativas: a
história de um malandro e uma trama policial. A inserção da trama policial no romance
malandro, a nosso ver, comprova mais uma vez que o romance é um gênero que
transgride constantemente seus próprios modelos e revitaliza a tradição. O malandro,
dentre as muitas máscaras que utiliza, assume o papel de detetive.
No “romance policial- picaresco” de Marcos Rey, Raul, um rematado velhaco,
narra suas aventuras e desventuras. Ele candidata-se a uma vaga de motorista, na
mansão do milionário Duílio Paleardi. São onze os candidatos ao cargo. Cada um deles
vai sendo dispensado, até que sobram apenas dois: Raul e um catarinense. A partir da
dispensa dos seis primeiros candidatos, o narrador, numa referência explícita a O caso
dos dez negrinhos, de Agatha Christie (1985), chega a citar versos de uma canção
infantil do referido livro e que aparecem parodiados em Memórias de um gigolô:
“Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez o arenque defumado, e então ficaram
três. [...] Três negrinhos passeando no zoo. E depois? O urso abraçou um, e então
ficaram dois. [...] Um deles se queimou, e então ficou só um.” (REY, 1980, p. 12-15).
O efeito desse intertexto, na passagem em apreço, revela-se bastante cômico. No
livro de Agatha Christie, dez pessoas são convidadas a passar um fim de semana numailha e, uma a uma, vão sendo assassinadas. Na estante da sala da casa onde estão os
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Botoso, Altamir
Letrônica, Porto Alegre v.4, n.1, p.132, jul./2011.
personagens, há dez estatuetas de negrinhos e, a cada morte, uma delas desaparece. Em
Malditos paulistas, o artifício empregado serve para caracterizar a “eliminação” dos
candidatos e dar a tônica do livro, nos capítulos seguintes: a narrativa de suspense, de
enigma a ser desvendado, permeada pelo humor e também pelo fato de o personagem-
narrador Raul enganar o leitor, conforme comentaremos mais adiante.
Raul é selecionado para o serviço. Mantém casos amorosos com as empregadas
da casa e trabalha pouco. Tudo vai muito bem até que uma jóia muito valiosa de Alba,
mulher de Duílio, é roubada. A polícia é chamada e encontra a jóia no painel de um dos
carros dirigidos por Raul. Ele é preso, mas nega veementemente que tenha sido o autor
do delito. Fica na prisão por algum tempo e é libertado pelo patrão, que o contrata como
seu secretário. A esta altura, um homem que freqüentava a mansão dos Paleardi,Johanson Olsen, é encontrado morto. O próprio Raul começa a investigar e nos
capítulos finais, descobre que o patrão é traficante de diamantes e que matara Olsen
para que este não denunciasse a ele e a seus comparsas. Contudo, a afamada jóia
desaparece pela segunda vez e o narrador-personagem, que acabara sendo demitido do
emprego como secretário, retorna à casa dos patrões, à noite, furtivamente, para apanhar
a jóia que ele próprio, afinal, havia escondido no painel do carro que dirigia:
Minha mão rumou para o sul, na curva abismal do painel, [...]. [...]meus dedos haviam interrompido o trajeto à primeira e esperadaresistência. Iniciei a Operação Descolagem. Não usara chiclete, comoa Polícia precipitadamente afirmara. [...] Numa e noutra vez pregara-acom tiras bem finas de esparadrapo escuro. Solta, apertei-a com forçana mão espalmada. [...] guardei a valiosa jóia azul-guanabara no bolso. (REY, 1980, p. 178).
Totalmente indigno de confiança, o narrador surpreenderá o leitor ao revelar-lhe
que é o ladrão, posto que, nos capítulos anteriores, jurara ser inocente. Este recurso foi o
mesmo utilizado por Agatha Christie (s/d) em O assassinato de Roger Ackroyd , no qual
o médico que narra a história é também o assassino. Mas o culpado só é revelado no
final da obra. Tal expediente narrativo é muito eficiente para a manutenção do suspense
ou do mistério de um texto porque:
mantém o enigma enganando sobre a pessoa da narração: uma pessoaé descrita do interior, quando já é assassino; tudo se passa como se em
uma pessoa houvesse uma consciência de testemunha, imanente aodiscurso, e uma consciência de assassino, imanente ao referente; só o
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entrelaçamento abusivo dos dois sistemas permite o enigma.(BARTHES, 1972, p. 50).
Raul assume esses dois posicionamentos levantados por Barthes: é testemunha,
na qualidade de narrador que relata o que vê, e é criminoso, enquanto personagem que
realiza o furto. Definitivamente, o culpado não é o mordomo, mas o próprio doador da
narrativa.
Em síntese, Raul assemelha-se aos pícaros clássicos porque o seu relato também
é autobiográfico, embora abarque apenas o período de uns poucos meses, quando ele
trabalha na mansão da família Paleardi e se apossa da jóia furtada.
Além disso, tal como os protagonistas picarescos, valer-se-á da astúcia para
poder sobreviver, desprezará o trabalho rotineiro e sempre viverá de empregar
expedientes e estratagemas que possam livrá-lo de qualquer conflito e do universo
massacrante do trabalho assalariado.
No final de sua história, Raul, por intermédio da jóia roubada, poderá passar a
fazer parte da sociedade burguesa, sem ter que trabalhar, uma vez que o dinheiro que
conseguirá com a venda da jóia, possibilitar-lhe-á viver no ócio e sem preocupaçõesmonetárias por um bom período de tempo. Desse modo, notamos que o malandro de
Malditos paulistas também se aproxima dos pícaros clássicos pelo fato de buscar,
incansavelmente, um modo de integrar-se à sociedade e de ter boa vida sem depender de
um patrão para tal propósito.
A narrativa de Raul, além de apresentar vários pontos de contato com a
picaresca clássica, é também uma paródia do romance policial, principalmente dos de
Agatha Christie, concretizando o efeito de comicidade, conforme já comentamos.
Enfim, o personagem malandro pode ser visto como uma recriação do
personagem picaresco nas letras brasileiras e comprova a evolução e a expansão do
romance picaresco clássico dos séculos XVI e XVII, revelando que a literatura é
marcada pelo dinamismo, que resgata a tradição literária do passado, recriando-a no
presente, por meio da intertextualidade, da paródia, do pastiche e, assim, o pícaro
clássico revive nas criações literárias de diversos países, recebendo outrasdenominações, como é o caso do malandro na literatura brasileira.
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Recebido em: 12/03/2011Aceito em: 02/06/2011E-mail do autor: [email protected]