A reforma do Acolhimento Familiar de crianças: conteúdo, alcance e fins

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  • 8/6/2019 A reforma do Acolhimento Familiar de crianas: contedo, alcance e fins

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    Paulo Delgado* Anlise Social, vol. XLV (196), 2010, 555-580

    A reforma do acolhimento familiar de crianas:contedo, alcance e fins do novo regime jurdico

    Como se define e caracteriza, na actualidade, o acolhimento familiar em Portugal?Qual a expresso que assume no sistema de proteco, quais os principais obstculose desafios que enfrenta? O objectivo deste artigo reflectir sobre o acolhimentofamiliar a partir do seu novo quadro normativo (o Decreto-Lei n. 11/2008, de 17de Janeiro), caracterizar os diferentes tipos de acolhimento nele propostos, bem comoos mecanismos de seleco e de formao das famlias de acolhimento, os processosde preparao, acompanhamento e cessao da colocao, e apresentar algumasreflexes sobre o futuro do acolhimento familiar em Portugal.

    Palavras-chave: lei; proteco infantil; acolhimento familiar; mudana.

    The reform of childrens foster care: content, extent and goalsof the legal system

    How can foster care in Portugal be defined and characterized today? How relevantis it in the child protection system? What main obstacles does it have to overcomeand what challenges is it facing? The purpose of this article is to reflect upon fostercare, on the basis of its new legal framework (Decreto-Lei n. 11/2008, 17 January),analyzing the different types of fostering it foresees, as well as the mechanisms offoster career selection, training, and support. In its conclusion, the paper presentsa number of ideas on the future of foster care in Portugal.

    Keywords: law; child care; foster care; change.

    INTRODUO

    O acolhimento familiar tem na sua origem graves problemas de maustratos, num contexto familiar adverso para o desenvolvimento da criana, noqual a famlia biolgica perde a capacidade de ser, naturalmente, uma famlia.A existncia do acolhimento familiar e a fora que manifesta so a repetidademonstrao que, face a essa origem, h espao para o amor, bom senso,competncia, humor, empenho e resilincia (Sinclairet al., 2005, p. 250).

    * Escola Superior de Educao, Instituto Politcnico do Porto, Rua Dr. Roberto Frias,602, 4200-465 Porto, Portugal. e-mail: [email protected].

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    Quando assim sucede, so os acolhedores que configuram, mesmo que provisoriamente, a imagem e o contedo que a famlia em si deve contercomo espao de afecto, de segurana e de abrigo.

    No novo diploma, o legislador optou pelo termo famlia natural para sereferir aos familiares de crianas e jovens que com eles residissem, sob a suaguarda. Quando a criana retirada do seu contexto para ser colocada emacolhimento familiar, vive, regra geral, com os pais, ou com um deles, e junto dos seus irmos, quando os tem. Vive por vezes com os avs ou tiosou, no mesmo agregado, com estes parentes e os pais. Excepcionalmente,poder viver com pessoas com as quais no partilha laos de parentesco ouencontrar-se institucionalizada, mas na maioria das situaes vive com afamlia biolgica.

    Por famlia natural entendemos o espao de vida privado que carac-teriza um grupo de pessoas que vivem como uma famlia, independente-mente dos laos de parentesco que as unem, isto , partilhando afectos,tarefas, problemas, tenses, memrias e o projecto de um futuro comum.O conceito de famlia, assim descrito, interessa-nos para este efeito comoum espao de intimidade que se destaca do espao residencial, do lar oudo centro de acolhimento, que so espaos pblicos, com padres derelacionamento e culturas necessariamente distintas das familiares. Fala-

    mos, portanto, dos laos que unem um pequeno grupo de pessoas quevivem um espao, partilham um leque de sentimentos e um imaginriocomum. David (2000, p. 69) sintetiza este gnero de relaes, salientandoa importncia das experincias geradoras de pequenos prazeres cmpli-ces, dos risos, dos risos malucos, dos jogos partilhados, das aventuras emgrupo, das emoes solidrias e da constituio de uma memria comumhumanizante.

    Os desejos das crianas acolhidas no diferem das aspiraes das outrascrianas: querem sentir-se amadas, integradas e escutadas, que a sua vida

    seja o mais normal possvel, que respeitem as suas origens, que os planospara a sua vida sejam claros e previsveis e que o acolhimento constitua umaoportunidade para desenvolverem as suas competncias na famlia, na escolaou no emprego (Sinclair, 2005).

    De acordo com os dados do Plano de Interveno Imediata (Instituto daSegurana Social, 2007 e 2008), que faz a caracterizao das crianas e jovens em situao de acolhimento, em 2007 eram 11 362 as crianasacolhidas em Portugal, rondando as 12 2452 em 2006. Os traos essenciaisdo sistema que aqueles documentos revelam so o grande nmero de crian-

    as acolhidas, os longos perodos de permanncia em acolhimento, a baixamobilidade e uma tendncia, ainda que ligeira, para a reduo do nmero deentradas face ao nmero de sadas (taxa de desinstitucionalizao).

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    A reforma do acolhimento familiar de crianas

    Medidas de colocao em Portugal (2006-2007)

    (a) Em 2006 no foi possvel apurar a resposta relativamente a 239 crianas. Em 2007no foi possvel apurar a resposta relativamente a 180 crianas e 20 encontravam-se em localdesconhecido.

    (b) Inclui o Centro de Apoio Vida, o Lar Residencial, o Acolhimento de Emergnciae o Apartamento de Autonomizao.

    Fonte: Instituto da Segurana Social (2007 e 2008).

    [QUADRO N. 1]

    Distribuio das crianas pelas medidas de colocao (2006 e 2007)

    GRFICO 1]

    8 000

    7 000

    6 0005 000

    4 000

    3 000

    2 000

    1 000

    0

    Nmerodecrianas

    LarCentro deacolhimentotemporrio

    Acolhi-mentofamiliar

    com laosde

    parentesco

    Acolhi-mentofamiliar

    sem laosde

    parentesco

    Acolhi-mentoespecializado

    Outros

    2006 2007

    Fonte: Instituto da Segurana Social (2007 e 2008).

    De 2006 para 2007 acentua-se a colocao em instituio, que passa arepresentar cerca de 82% no total do sistema, correspondentes a 9333 crian-

    Medidas de colocao(a)

    LarCentro de

    acolhimentotemporrio

    Acolhimentofamiliar com laos

    de parentesco

    Acolhimentofamiliar sem laos

    de parentesco

    Acolhimentoespecializado(b)

    2006

    7 267

    2007

    7 079

    2006

    1 674

    2007

    1 843

    2006

    1 471

    2006

    1227

    2007

    979

    2007

    850

    2007

    411

    2006

    367

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    as (7079 em lar, 1843 em centro de acolhimento temporrio e 411 emacolhimento especializado). Em acolhimento familiar encontravam-se nomesmo ano 1829 crianas, correspondentes a cerca de 16% do total, pre-

    dominantemente com idades entre os 12 e os 17 anos de idade. Trata-se deuma estada de carcter prolongado, uma vez que aproximadamente 92% dascrianas acolhidas nas famlias com laos de parentesco estavam acolhidash mais de um ano, o mesmo sucedendo com 87% das crianas acolhidasnas famlias sem laos de parentesco. Sensivelmente metade das crianas decada um destes grupos estava em regime de acolhimento h mais de seisanos (51% nas famlias com laos de parentesco e 45% nas famlias semlaos de parentesco).

    No grupo de crianas em acolhimento familiar predominava ligeiramente

    a colocao em famlias com laos de parentesco, onde se encontravam 979crianas, correspondendo a cerca de 54% do total das crianas. Esta reali-dade acentuar-se- nos dados relativos ao ano de 2008, com a cessao damodalidade de acolhimento em famlias com laos de parentesco, que passaa ser considerada, de acordo com o novo regime legal, uma medida quedecorre em meio natural de vida da criana.

    O desenvolvimento normal de uma criana necessita do envolvimento deum ou mais adultos que dela cuidem e que com ela brinquem e partilhemactividades (Bronfenbrenner, 2005). Este envolvimento depende, por sua

    vez, de polticas e prticas pblicas que providenciem oportunidade, esta-tuto, recursos, encorajamento, estabilidade, exemplo e, acima de tudo, tempopara a parentalidade, pelos pais, mas tambm por outros adultos no ambienteda criana (Bronfenbrenner, 2005, p. 262). Um sistema adequado e eficien-te de pagamento contribui para aumentar o leque de famlias de acolhimentoe, por consequncia, aumenta as probabilidades de colocao para as crian-as que precisam de uma famlia para crescer. Aumenta tambm a respon-sabilidade dos acolhedores e as tarefas ou actividades que devem cumprir,nomeadamente perante a famlia biolgica, ao substituir uma tradio mera-

    mente assente num esprito de voluntariado por uma interveno capaz decombinar aquela generosidade com uma tica cientfica e tcnica (Kelly,2000; Berridge, 1999 e 2001; Corrick, 1999).

    Este artigo rev o trabalho de alguns autores que se tm debruado sobreo acolhimento familiar e analisa as opes que o legislador consubstanciouno novo diploma jurdico que regula a medida, confrontando-as com aquelesmodelos tericos. Remete ainda para as opes tomadas noutros sistemas de proteco, procurando legitimar a pertinncia da sua utilizao face a umgrupo significativo de crianas e jovens em perigo.

    Uma vez definido o conceito legal de acolhimento familiar, procedemosa uma descrio das principais modalidades de acolhimento, analisamos osistema de remunerao institudo e prosseguimos com a interpretao das

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    um meio substitutivo que garanta a segurana, o afecto e o respeito pelapersonalidade, pelo nome, origem e identidade (artigo 1.).

    O decreto-lei que institucionalizou pela primeira vez o acolhimento fami-

    liar foi revogado, decorridos treze anos, pelo Decreto-Lei n. 190/92, de 3de Setembro. Durante o perodo de vigncia do Decreto-Lei n. 190/92entrou em vigor a lei de proteco de crianas e jovens em perigo (Lein. 147/99, de 1 de Setembro), que inclui uma vez mais o acolhimentofamiliar no elenco das medidas de proteco, procedendo sua definio eenumerando os tipos de famlias de acolhimento e as modalidades de aco-lhimento familiar (artigos 46. a 48.). A lei substitui a palavra menores pelaexpresso crianas e jovens, apagando-se, assim, e desta forma mera-mente simblica e formal, algum do estatuto de menoridade que esta palavraem si inelutavelmente carrega (Guerra, 2000, p.13).

    Entre os principais traos (Delgado, 2007) caracterizadores do acolhi-mento familiar em Portugal desde a sua institucionalizao, em 1979, e aolongo de um perodo de quase trinta anos poderemos incluir, de formagenrica, os seguintes: (a) previsibilidade do regresso famlia biolgica;(b) transitoriedade da colocao; (c) indefinio do conceito famlia deacolhimento em lar profissional; (d) classificao restrita da famlia biol-gica nuclear, permitindo o acolhimento familiar na famlia (alargada) com

    laos de parentesco; (e) celebrao de contrato de prestao de servio eretribuio pelo servio de acolhimento prestado; (f) falta de campanhas de promoo e divulgao da medida; (g) carncias ao nvel da seleco e doacompanhamento tcnico; (h) inexistncia de formao inicial para as famliascandidatas e de formao contnua para as famlias em actividade; (i) baixonvel social e econmico das famlias de acolhimento, associado aos baixosnveis de escolaridade; (j) falta de associaes que representem e apoiem asfamlias de acolhimento.

    No sistema de proteco portugus predomina, de modo crescente, o

    acolhimento em instituio e o acolhimento familiar encontra-se bem distanteda expresso que a principal medida de colocao assume. Esta evoluocoloca vrias questes, nomeadamente a da falta de qualificao das respos-tas, a da definio de critrios orientadores da escolha e a da avaliao dasmedidas ou a relacionada com a articulao (e a circulao) entre as respos-tas. Martins (2006, p. 105) acrescenta a este quadro a imagem negativa edepreciada das instituies de acolhimento, interiorizada pelos seus profissio-nais, criando uma situao ambgua e ambivalente: oferece-se uma respostade proteco infantil que no se recomenda; critica-se veementemente uma

    soluo que, no entanto, mantida e prolongada; advoga-se a extino da-quela que constitui a opo mais representativa no conjunto das respostas deproteco infantil.

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    A reforma do acolhimento familiar de crianas

    O NOVO ENQUADRAMENTO LEGAL DO ACOLHIMENTO FAMILIAR

    O Decreto-Lei n. 190/92 manteve-se em vigor mais de quinze anos, at

    publicao do Decreto-Lei n. 11/2008, de 17 de Janeiro, o qual estabeleceo novo regime de execuo do acolhimento familiar actualmente em vigor.Esperava-se que a revogao operada pudesse contribuir para uma apostaefectiva na promoo do acolhimento familiar, a alternativa mais clara paraa colocao institucional, tendo em conta a realidade da maioria dos pasesocidentais.

    No novo diploma, o legislador reafirma a definio de acolhimento fami-liar que consta da lei de proteco de crianas e jovens em perigo. Destemodo, o acolhimento familiar consiste na atribuio da confiana da criana

    ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma famlia habilitadas para o efeitoe visa a integrao da criana ou do jovem em meio familiar e a prestaode cuidados adequados s suas necessidades e bem-estar e a educaonecessrias ao seu desenvolvimento integral (artigo 2.). De acordo comBarber e Delfabbro (2004, p. 10), o acolhimento familiar deve ser o modo privilegiado de colocao de crianas fora de casa porque to prximoquanto possvel da forma como a maioria das pessoas vive actualmente.

    Os traos estruturantes do acolhimento familiar, tal como so definidos pelo Decreto-Lei n. 11/2008, sintetizam-se da seguinte forma: (a) previsi-

    bilidade do regresso famlia biolgica; (b) transitoriedade da colocao;(c) regulamentao do acolhimento em lar profissional; (d) classificaorestrita do mbito da medida, permitindo a colocao apenas na famlia semlaos de parentesco; (e) retribuio uniforme pelo servio de acolhimentoprestado, com excepo do acolhimento de crianas com problemas e neces-sidades especiais; (f) alargamento e aprofundamento dos requisitos e condi-es de candidatura no processo de seleco dos acolhedores; (g) aposta noaumento do nvel social e econmico das famlias de acolhimento, associadoa nveis mnimos de escolaridade; (h) consagrao de um perodo prvio de

    preparao e de cessao da colocao; (i) possibilidade de manuteno doscontactos entre a criana e os ex-acolhedores aps a cessao da colocao.

    Para que a pessoa ou a famlia sejam declaradas idneas para acolher necessrio o preenchimento de um conjunto de requisitos e o cumprimentode vrias fases integradas no processo de seleco. E para desempenhardevidamente a sua funo, de modo a garantir o ambiente familiar necessriopara o desenvolvimento integral e o bem-estar da criana acolhida, os aco-lhedores precisam de estabilidade, de apoios financeiros, de uma remunera-o, de formao e acompanhamento na fase inicial da estada, no seu de-

    curso e quando cessa a vida conjunta. sobre estes aspectos que incidem as seces seguintes do artigo, o qual

    se situa no espao de confluncia entre o discurso legislativo ou institucional,

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    Um dos desafios que se colocam ao acolhimento familiar o de reconhe-cer que a sua finalidade no forosamente a de garantir o regresso dacriana famlia biolgica, porque esse regresso com frequncia impos-

    svel, e a essa ideia no se podem nem devem subordinar todos os esforosde acompanhamento e avaliao. Se esse regresso no for positivo, podeoriginar uma espiral descendente de mudanas sucessivas, fracasso escolar,relaes problemticas e incertezas sobre a identidade familiar (Schofield eWard, 2008, p. 48). A esse desafio pode-se responder com a consagraodo acolhimento permanente ou de longa durao e com o apoio efectivo dasfamlias acolhedoras. Sinclair (2005) concluiu que o acolhimento familiarprolongado especialmente positivo quando garante estadas longas na mes-ma famlia, como sucede no sistema portugus.

    O diploma mantm, todavia, a ideia do regresso a famlia biolgica comofinalidade principal do acolhimento (artigo 3.). No prev explicitamente oacolhimento prolongado ou de longo prazo, at maioridade ou autonomiade vida do jovem acolhido, o que sucede frequentemente quando a medida decretada. O acolhimento pode constituir um mbito adequado ao desen-volvimento da criana quando lhe proporciona um sentido de permanncia ede estabilidade e um conceito de famlia que, a partir desta experincia,constri, ou construra, no futuro. No reconhecer esse papel (como sucede

    no regime espanhol ou no Reino Unido) fragiliza o estatuto e a finalidade doacolhimento familiar e ignora as suas potencialidades.Anuncia-se para breve uma nova medida, o apadrinhamento civil, que se

    situar entre a adopo e o acolhimento familiar, mas cujos contornos econtedos no so ainda conhecidos. A permanence ordersurge na Escciacomo um dos caminhos para responder s necessidades expressas e vistacomo uma opo capaz de proporcionar estabilidade a um nmero signifi-cativo de crianas que no podem viver com as famlias biolgicas, mas paraquem a adopo no a melhor escolha. Esta medida, que ser implementada

    ao longo de 2009, procura assegurar a mais crianas oportunidades dedesenvolvimento e de sucesso por intermdio da permanncia e do sentimen-to de pertena a uma famlia. Em rigor, estas crianas passam a ter duasfamlias permanentes: a biolgica e a de acolhimento, para a qual poder sertransferida parte das responsabilidades (e dos direitos) parentais, permitindo--lhe tomar decises em reas como as frias ou o tratamento mdico. Estanova figura apresenta ainda como vantagens o facto de possibilitar diferentesgraus de contacto com a famlia biolgica e a manuteno do apoio prestadoaos acolhedores, nomeadamente o apoio financeiro. Refira-se, alis, que a

    criana abrangida por uma permanence orderse mantm no sistema de proteco e que s as autoridades competentes (as autoridades locais, nocaso do Reino Unido) podem apelar ao tribunal a sua aplicao.

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    Independentemente do que vier a ser consagrado em Portugal nestedomnio e da relao que se vier a estabelecer com o acolhimento familiar,o novo regime jurdico no contempla, como se viu, os inmeros casos em

    que a criana deseja e pode manter o contacto com a famlia biolgica(inviabilizando-se deste modo a adopo), apesar de a incapacidade paraassumir o exerccio das funes parentais a impedir de manter as crianas sua guarda. Nem sempre o regresso a casa conduz a bons resultados. Porvezes tem, inclusivamente, o efeito perverso de colocar a criana numasituao pior do que aquela em que se encontrava antes da interveno(Axford, 2008).

    O novo diploma integra a classificao j prevista na lei de proteco decrianas e jovens em perigo do acolhimento em lar familiar e em lar profis-

    sional. Esta ltima modalidade destina-se a acolher crianas com problemase necessidades especiais, tais como situaes de deficincia, doena crnicaou questes de foro emocional e comportamental. Nesta modalidade podemser acolhidas at um mximo de duas crianas (n.os 1 e 2 do artigo 9.) eos acolhedores devem ter competncias tcnicas especficas, que se presu-mem associadas experincia de trabalho com crianas e deteno dehabilitaes adequadas.

    O grau de especializao revela a eficcia do sistema quando garante aresposta individual mais apropriada a cada caso concreto. O nosso sistema

    no consagra modalidades especficas de acolhimento que traduzam factorescomo o tempo (previsvel) de estada, a idade da criana, o percurso nosistema de proteco ou problemticas especficas, definindo um perfil quasenico para as famlias de acolhimento e as competncias exigidas aos aco-lhedores. A prpria definio de lar profissional acaba por ser, dentro daexcepo, demasiado ampla e indefinida. O acolhimento em lar profissional,que se integra no conceito de acolhimento especializado ou de tratamento,garante, noutros sistemas de proteco, como o norte-americano, uma remu-nerao reforada, uma contratualizao com os servios sociais, o envolvi-

    mento na planificao dos casos como se fossem membros da equipa deacolhimento, formao mais longa, contnua e intensa do que nos acolhimentosregulares e o acolhimento de apenas uma criana de cada vez (ibid.).

    No apndice 1 procede-se comparao entre as modalidades de acolhi-mento previstas no quadro legal portugus e nos sistemas galego e escocs,a qual revela a aposta de tendncia minimalista do legislador portugus.

    A lei estabelece critrios para a escolha da famlia de acolhimento (artigo25.), trs dos quais relacionados com a criana idade, no separao defratrias e proximidade geogrfica com a famlia natural e apenas um

    relativo aos acolhedores a adequao ao perfil e situao da criana oujovem. Mas a distino associada escolha pensada a partir de cada casoconcreto, incidindo sobre os acolhedores agrupados de forma homognea

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    numa nica categoria. Esta lgica reactiva poderia ter sido substituda poruma abordagem preventiva, distribuindo-se os acolhedores, na fase de selec-o, por categorias previamente definidas que respeitassem a heterogeneida-

    de de intenes, competncias e perfis de quem se dispe a acolher e que procurassem responder aos problemas existentes. O que pressupunha umlevantamento de necessidades de acolhimento a partir da prtica, de modoa assegurar que as modalidades correspondessem s exigncias e a incen-tivar a seleco do tipo ou tipos de famlias mais necessrios no sistema.

    O SISTEMA DE REMUNERAO

    A questo do pagamento um dos temas mais controversos no acolhi-mento familiar. Em diversos sistemas consagra-se a atribuio de um sub-sdio de manuteno (para suportar os gastos que decorrem do quotidianoda criana acolhida) e uma remunerao pela actividade prestada pelos aco-lhedores (subsdio de retribuio ou salrio). A organizao de um sistemade remunerao adequado contribui para refutar alguns mitos sobre o aco-lhimento, como o de que basta a vontade de ajudar e de fazer o bem paraacolher, de que educar a criana acolhida equivalente a educar outro filho,de que para acolher no necessria qualquer preparao ou formao, de

    que a criana acolhida ficar para sempre acolhida ou de que o pagamentoem dinheiro no concilivel com a dedicao e o afecto indispensveis paraacolher a criana em casa. Clarividente, Schofield (2003, p. 240) declara queo altrusmo e o desejo de proporcionar cuidados familiares s crianas emsituaes adversas [] devem ser respeitados e bem recebidos, tal como necessrio respeitar as competncias de que os acolhedores indubitavelmenteprecisam.

    O dinheiro no pode ser o nico motivo para quem decide acolher, mas um factor importante que no deve ser omitido. justo que um trabalho

    to difcil e complexo seja remunerado, porque o acolhimento envolve des-pesas que competem ao Estado e, sem remunerao, o sistema inevitavel-mente discriminatrio, no permitindo que certas famlias, que tm rendi-mentos mais baixos, possam acolher (Sinclair, Gilbs e Wilson, 2004). Noconstituindo a primeira nem a principal motivao para o acolhimento, no lgico, todavia, que a implicao nesta actividade tenha de ser feita custado seu patrimnio (Amors e Palacios, 2004, p. 244), especialmente se ocusto do acolhimento for superior ao da educao de um filho prprio, seentrarmos em linha de conta com as despesas que resultam das visitas e dos

    contactos com a equipa de acolhimento, com os contactos telefnicos e comoutros custos directos produzidos pela estada, como padres alimentaresdistintos, destruio de equipamentos, moblia ou brinquedos, a frequncia

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    de actividades extracurriculares, perodos de frias, etc. (Verity, 1999). Emsuma, por necessidade ou por reconhecimento, a remunerao dos acolhe-dores apresenta-se, a priori, como um direito.

    Apesar de pago, o acolhimento no deixa de gerar uma relao pessoale de proximidade, porquanto resulta da abertura da casa e da famlia, doespao mais ntimo e nuclear, a um ou mais estranhos (Petrie, 2007). Exigeum acolhimento caloroso e afectivo, acompanhado simultaneamente por umadistncia apropriada que permita a reflexo e suporte o desenvolvimentoe o bem-estar da criana ( Petrie, 2007, p. 77). Esta perspectiva do aco-lhimento como um trabalho contribui para evitar que os acolhedores desen-volvam um sentimento de posse em relao criana acolhida e desenvol-vam elos de participao inclusiva com as famlias biolgicas (Kirton,

    Beecham e Ogilvie, 2007, p. 6). Berridge (1999) destrina o acolhimentofamiliar tradicional, que voluntrio, mal pago e em que os acolhedores sedistanciam da famlia biolgica, do acolhimento familiar profissional, assentena formao, na remunerao, na competncia e na cooperao com osoutros actores. Em Frana, os acolhedores (assistantes maternelles) benefi-ciam desde 1977 de um estatuto profissional (David, 2000; Biarns, Bouchere Mesnier, 1999) semelhante ao que atribudo aos profissionais que traba-lham em instituies (Bosse-Platire et al., 1999). Verity (1999) interroga--se, por sua vez, sobre a qualidade do desempenho dos outros profissionais

    que trabalham junto de crianas, se no fossem pagos ou se o pagamentofosse muito reduzido.

    No novo quadro legal, a remunerao do acolhimento mantm o figurinoanterior, subdividindo-se no subsdio de manuteno (145,86 por crianaem 2008) e na retribuio mensal pelos servios prestados (168,20 ), a queos familiares da criana seus acolhedores deixam de ter acesso, conformecomentrio anterior. Estes so os valores que abrangem todas as famlias deacolhimento, independentemente da experincia ou competncias que mani-festem. No se prev qualquer incentivo para o aperfeioamento do desem-

    penho em termos de progresso na carreira, soluo que se articula, semdvida, com as modalidades de acolhimento. Uma excepo a este panora-ma, j prevista no quadro legal anterior, a duplicao do valor da retribuiomensal (336,40 ) no acolhimento de crianas com problemas e necessida-des especiais. Mas, enquanto a lei revogada se referia apenas s situaes dedeficincia, o novo regime passa a abranger, neste regime de duplicao, oacolhimento de crianas com doena crnica e problemas do foro emocionale comportamental (n. 2 do artigo 35.), a que corresponde, no seu conjunto,o acolhimento em lar profissional.

    Corre-se, todavia, um risco. Se o acolhimento familiar no for divulgadoe promovido de um modo efectivo, pode suceder que no apaream acolhe-dores dispostos a constiturem-se como lar profissional, a resposta pensada,

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    daqui para o futuro, para essas situaes especficas. Face escassez ouinexistncia de lares profissionais, se as crianas no tm lugar no acolhimentoem lar familiar, podero ser involuntariamente excludas do sistema de acolhi-

    mento familiar, o que seria condenvel e discriminatrio. O aperfeioamentodeste sistema depende, em grande parte, da aposta que as instituies polticase sociais estiverem dispostas a fazer no recrutamento, na seleco e no acom- panhamento capaz do acolhimento em lar profissional e no reconhecimento prvio de que o profissionalismo e a vida familiar, na qual os acolhedoresactuam como pais, no so incompatveis (Schofield e Ward, 2008).

    A comparao entre os sistemas de remunerao nos sistemas portugus,galego e escocs (v. apndice 1) permite-nos constatar a predominncia dadiversidade de valores e de complementos das prestaes. O sistema galego o que disponibiliza os valores mais baixos, no pagando qualquer retribui-o pela prestao da actividade e verificando-se uma diminuio do valor por cada criana acolhida. Em contrapartida, admite a possibilidade de osacolhedores solicitarem apoio para gastos extraordinrios, cuja concretizaorequer um sistema de pagamento transparente, eficaz e capaz de devolver oudisponibilizar as quantias quando elas so necessrias (Delgado, 2008).O modelo escocs disponibiliza valores substancialmente mais elevados e umesquema de progresso na profisso, associado a ganhos salariais. Nos mon-

    tantes referentes ao subsdio de manuteno esto previstas as quantiasnecessrias para a aquisio do equipamento indispensvel ao acolhimento. igualmente possvel requerer pontualmente, e a ttulo excepcional, o apoio para gastos extraordinrios.

    Entre ns, o modelo mantm as opes do Decreto-Lei n.190/92 quantoaos valores e componentes da remunerao. Aos valores monetrios, que semantm deficitrios para fazer face s despesas associadas ao acolhimentonum contexto em que os acolhedores tm um maior nmero de obrigaes(artigo 21.), o legislador acrescenta agora a possibilidade de atribuio do

    equipamento indispensvel ao acolhimento [alnea f) do n. 3 do artigo 20.].Essa possibilidade atribui, todavia, famlia de acolhimento o nus de propore fundamentar o montante solicitado (n. 4, artigo 20.), opo que noparece ser a mais adequada. O papel dos acolhedores no o de pedir, talcomo o papel da entidade de enquadramento no o de oferecer ou dispo-nibilizar [alnea g) do n. 1 do artigo 11.]. A um direito corresponde umdever, cujo cumprimento no pode ficar dependente do grau de diligncia,conhecimento ou capacidades comunicativas do seu titular. E nestas cir-cunstncias cabe equipa de acolhimento informar, colocar e discutir estas

    questes, em vez de esperar que os acolhedores o faam, para evitar sen-timentos de desconhecimento, embarao, hesitao ou, inclusive, de humi-lhao (Triseliotis, Borland e Hill, 2000).

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    Aos acolhedores ainda negada a possibilidade de requererem a coberturade despesas extraordinrias relacionadas com a sade e com a educao, oque nos parece igualmente penalizador. Uma criana pode necessitar, pon-

    tualmente, desse tipo de despesas, independentemente de ter problemas ounecessidades especiais, que acabaro por recair sobre o oramento familiardos acolhedores.

    O regime fiscal (n. 2 do artigo 21.) e da segurana social (artigo 37.)aplicvel as famlias de acolhimento no sofreu qualquer alterao. O aco-lhimento equiparado a uma prestao de servios, como noutra actividade,tendo-se perdido a oportunidade de apostar numa efectiva promoo damedida, como sucede, por exemplo, na Esccia.

    SELECO E FORMAO DAS FAMLIAS DE ACOLHIMENTO

    A nova lei aposta numa seleco mais cuidada dos acolhedores (artigos17. e seguintes). Para tal no ser alheio o facto de o acolhimento excluir,doravante, as pessoas com laos de parentesco com a criana (artigo 7.).Quando a criana era acolhida pela sua famlia alargada, a seleco eramitigada por critrios de proximidade e de afectividade, e no eraminvulgares os acolhimentos que ocorriam, de facto, dentro da famlia e s

    depois eram regularizados ao abrigo do acolhimento familiar. Sem laos deparentesco, a seleco dos acolhedores passa a constituir a primeira fase do processo, a montante da colocao.

    Os requisitos da seleco constam dos artigos 14. a 16. e neles desta-cam-se a escolaridade mnima obrigatria e a exigncia de os interessadosno serem tambm candidatos adopo, aspectos normativos inovadores,que pretendem estabelecer parmetros de qualidade no desenvolvimento damedida. Concordamos com o segundo, mas discordamos do primeiro crit-rio, se a interpretao da norma exigir a frequncia de nove anos de esco-laridade a todos os candidatos, independentemente do nmero de anos deescolaridade obrigatria definidos para o perodo em que estudaram. Deacordo com os dados do INE (2009), referentes ao 2. trimestre de 2009,o nvel de escolaridade mais elevado completo da populao activa portugue-sa entre os 25 e os 64 anos coloca 46,2% da populao deste grupo abaixodos nove anos de escolaridade, o que significa que estes podero ver-seimpossibilitados de se candidatarem ao processo de seleco (2,6% no tmqualquer nvel de escolaridade concludo, 25,4% concluram apenas o 1. ciclodo ensino bsico e 18,2% terminaram o 2. ciclo do ensino bsico). A baixaqualificao acadmica no , por si s, um factor incapacitante para oacolhimento. com certeza um factor relevante que dever ser ponderadono processo de seleco, mas no deve traduzir-se num factor de discrimi-nao das famlias com menos habilitaes.

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    O processo de seleco inclui entrevistas sociais e psicolgicas, visitasdomicilirias e uma anlise curricular, tratando-se de uma candidatura aacolhimento em lar profissional (artigo 18.). A deciso deve ser tomada e

    comunicada no prazo de seis meses (artigo 19.), sendo necessrio garantiro cumprimento desta determinao.

    O processo de seleco admite a candidatura de pessoas singulares,desde que tenham idade superior a 25 e inferior a 65 anos, salvo tratando--se de casais ou de parentes que vivam em economia comum, em que aexigncia daquele requisito s se aplica a um dos elementos. Nada refere,expressamente, sobre a possibilidade de casais do mesmo sexo se poderemvir a tornar acolhedores, ao contrrio do que sucede com a adopo, quelhes vedada. Na interpretao assumida publicamente pela secretria de

    Estado adjunta e da Reabilitao (jornal Pblico, de 18-1-2008), a nova leidelimita o mbito do acolhimento a casais compostos por duas pessoas desexo diferente, interpretao que se fundamenta nos efeitos especficos quea lei das unies de facto atribui (independentemente de os casais serem domesmo ou de sexo diferente) e que se limitam aos mbitos restritos nelaenumerados.

    Entre os requisitos de candidatura inclui-se ainda dispor de condies desade necessrias, possuir condies de higiene e habitacionais adequadas,exercer a actividade a ttulo de actividade profissional principal ou secund-

    ria, no ter sido condenado pela prtica de certos crimes especificados naalneag) do artigo 14. e no estar inibido do exerccio das responsabilidades parentais ou ter esse exerccio sujeito a limitaes, aproximando-se o pro-cesso de seleco do novo diploma dos padres previstos noutros pases (v.apndice 1).

    A alnea a) do artigo 16. refere que os membros da famlia candidatadevem revelar capacidade afectiva e equilbrio emocional. A teoria doattachment (Bowlby, 1969 e 1988; Ainsworth et al., 1978) pode servir dereferncia terica para se proceder seleco e ao acompanhamento dos

    acolhedores, identificando-se nestes processos o seu estilo de attachment, o padro de relacionamento que mantm com os outros que ser seguro,quando a pessoa em causa tem uma expectativa positiva de apoio e decuidado dos que lhe esto prximos, e inseguro, quando as expectativas prevem o abandono, a ofensa ou a traio. A identificao deste padroantev a disponibilidade dos candidatos para a relao de proximidade, a suacompetncia para prestar e buscar apoio no acolhimento (Bifulco et al.,2008).

    A teoria do attachmentpermite compreender o desenvolvimento humano,

    as interaces e interdependncias que o caracterizam e reestruturam, bemcomo identificar os factores que condicionam ou facilitam a construo deuma base de segurana que permite que a criana se sinta confiante para

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    explorar o que a rodeia e interagir com estranhos. No caso especfico doacolhimento familiar, esta perspectiva possibilita a compreenso das transi-es que ocorrem na vida da criana acolhida, a separao dos pais e o

    desenraizamento do seu contexto, a que se sucede a colocao num mundonovo e desconhecido, numa casa e num contexto de vida alternativo, eorienta a interveno na prtica de modo a prevenir os riscos e a promovera integrao e o desenvolvimento adequado da criana.

    O Decreto-Lei n. 11/2008 no inclui a formao inicial no processo deseleco (artigos 17. a 19.), como chegou a estar previsto no projecto dealterao. Corre-se o risco, uma vez mais, de esta ser adiada, ou mesmo nochegar a realizar-se. A formao surge como uma competncia da entidadede enquadramento [alnea e) do n. 1 do artigo 11.], ao nvel da formao

    inicial e contnua, e, simultaneamente, como um direito e uma obrigao dosacolhedores [alneas b) e c) do n. 3 do artigo 20. e alnea h) do n. 1 doartigo 21.], sem especificar o tipo de formao abrangido.

    Convm recordar que a lei anterior sobre o acolhimento familiar tambmprevia a formao do acolhedor e o acompanhamento regular do acolhimen-to, para referir dois aspectos essenciais na execuo da medida. Se a lei sse concretiza na prtica, h que garantir as condies efectivas para a suaaplicao.

    PREPARAO DA COLOCAO E ACOMPANHAMENTO DO ACO-LHIMENTO

    O diploma prev um perodo de preparao do acolhimento (artigos 27.e seguintes), aspecto positivo e igualmente inovador no modelo e que esttambm contemplado noutros sistemas (v. apndice 1). A aceitao informa-da depende da informao que os acolhedores possam receber sobre ascondies de sade, educao e problemas da criana e da sua famlia [alnea

    a) do n. 3 do artigo 20.]. Idealmente, ocorrem encontros entre os acolhe-dores e a famlia biolgica antes do incio da estada (artigo 27.) e esta ltima preparada para a separao (artigo 28.), bem como a criana, que se deveintegrar gradualmente na famlia de acolhimento (n. 2 do artigo 29.). Boas prticas que a lei passou a acolher e que devem ser cumpridas desde quea situao no seja excessivamente urgente.

    O acompanhamento do acolhimento deve ser peridico e regular [alnead) do n. 2 do artigo 11.] e muito mais intenso do que tem sido. Disponi- bilidade e continuidade, sem intermitncias ou ausncias prolongadas, o

    que se exige da entidade de enquadramento. O acompanhamento deve aten-der particularmente ao contacto e incluir o apoio da famlia biolgica, como ponderadamente se afirma na alnea e) do mesmo artigo, reforada pela

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    alnea b) do artigo 22., que reconhece esse apoio como um direito. Naverdade, a maioria dos pais vive a separao com uma diversidade dedifceis sentimentos, que podem incluir uma combinao de tristeza, luto,

    culpa, raiva e vazio, assim como perda de identidade, que se associam a umsentimento de estigmatizao (Schofield e Beek, 2008, p. 81).

    O coordenador de caso da entidade de enquadramento competente ointerlocutor privilegiado da famlia biolgica, da criana e dos acolhedores. fundamental assegurar que a criana s regressa a casa quando a situaoque conduziu colocao tiver mudado e quando tanto a criana, commaturidade para expressar a sua opinio, como os pais desejarem tentar denovo (Sinclair, 2005). Estes dados so recolhidos atravs de um sistema deacompanhamento adequado.

    No nos parece, deste modo, que compita s famlias de acolhimentoassegurar as condies para o fortalecimento das relaes da criana ou do jovem com a famlia natural [alnea c) do n. 1 do artigo 21.]. Trata-se,claramente, de uma tarefa da entidade que acompanha a famlia biolgica, aque a famlia de acolhimento deve somar o seu contributo, no dificultandoo contacto e colaborando dentro das suas possibilidades no processo derecuperao do papel parental da famlia biolgica, como bem se afirma,alis, na alnea c) do artigo 16. A famlia de acolhimento acolhe a criana,no a sua famlia. Como observam Triseliotis, Borland e Hill (2000, p. 233),

    se for essa a inteno, ento necessrio um acompanhamento mais eficaz,atravs de formao contnua especfica sobre o projecto de vida e nosacordos para a colocao, que se reflicta nos nveis de remunerao. Osmesmos autores concluram no mesmo estudo que o trabalho de acolher acriana retira aos acolhedores as energias necessrias para trabalhar com osseus pais, e Sinclair (2005) concorda que aquela aspirao no foi acompa-nhada pelos esquemas de remunerao ou processos de formao adequados profissionalidade desejada.

    Imbudo do esprito e da letra da Conveno dos Direitos da Criana,nomeadamente no seu artigo 12., o legislador atribui criana com mais de12 anos, ou com idade inferior mas com maturidade suficiente para com-preender o sentido da interveno, o estatuto de participante na tomada dedecises relativas ao acolhimento. Com efeito, a criana tem direito a serouvida pela instituio de enquadramento no processo de escolha da famliade acolhimento, no processo de elaborao do plano de interveno, naexecuo da medida (artigos 24. e 29.), bem como na fase de avaliao daexecuo da medida, com vista sua prorrogao, alterao ou cessao[alnea e) do n. 2 do artigo 6., n. 4 do artigo 31. e n. 1 do artigo 33.].Deve, portanto, ser ouvida sobre a hiptese de regresso a casa ou sobre a

    sua permanncia junto da famlia de acolhimento, e a sua opinio deve serescutada, periodicamente, enquanto estiver abrangida pelo processo de pro-teco (Sinclair, 2005; Schofield e Beek, 2008).

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    CESSAO DO ACOLHIMENTO

    A cessao pode estar prevista e planificada, como sucede no caso do

    retorno a casa ou da adopo, ou pode ocorrer no processo de formainesperada, como sucede nomeadamente quando surgem graves dificuldadesde relacionamento entre acolhedores e acolhido. Ingley e Earley (2008)concluram num estudo recente que a colocao de uma outra criana namesma famlia pode ter um impacto negativo na estabilidade e nos progressosda criana que j estava acolhida, dificuldades que podem, inclusivamente,originar a ruptura da estada e os subsequentes sentimentos de rejeio e defracasso na criana e nos acolhedores. A anlise do processo de attachment,do ponto em que se encontra, das suas fraquezas e foras, pode ser um

    indicador importante a ter em conta na planificao da nova colocao.Quando o acolhimento termina de forma prevista, possvel preparar a

    criana e os acolhedores para a separao, semelhana do que sucede nosmodelos galego e escocs (v. apndice 1). A nova lei prev igualmente apreparao da sada, que deve efectuar-se com uma antecedncia adequada,no inferior a um ms, e envolver acolhedores, criana e famlia biolgica(artigo 33.). A vida em comum termina, e o momento, sempre difcil, serainda mais doloroso quando a coabitao se prolongou por muitos meses ouanos.

    A relao, todavia, poder prolongar-se, dependendo de cada caso, e, por princpio, dever prolongar-se se for essa a vontade de acolhido e acolhe-dores, no respeito pelos laos afectivos e pela cumplicidade emocional quefazem parte da sua histria e, logo, da identidade pessoal dos envolvidos.A utilizao do capital emocional acumulado ao longo da relao no deveser desperdiada (Sinclair, Gibbs e Wilson, 2004; Sinclair, 2005).

    O legislador reconhece a importncia do contacto aps o termo damedida (artigo 34.), na condio de contar com a concordncia da equipatcnica e de no contar com a oposio da famlia biolgica, opo que

    merece uma segunda reflexo. No parece, de facto, que a posio dafamlia biolgica, opondo-se ao contacto, possa constituir um princpio gerala seguir. Dever constituir antes um elemento fundamental a ter em conside-rao na tomada de deciso, mas no inviabilizador, por si s, do contacto,sempre que este se justifique, no interesse superior da criana. E haver casosem que o direito informao e ao contacto entre os acolhedores e a crianaacolhida, se desejado de modo recproco, ser no s legtimo, mas de elemen-tar justia, e s poder ser postergado por razes srias e fundadas.

    A cessao do acolhimento de forma planificada deve, pelo exposto,

    incluir igualmente a preparao da famlia biolgica, a anteceder e durante afase inicial da reunificao (Amors e Palacios, 2004), semelhana dosapoios previstos para as famlias de acolhimento. O apoio particularmente

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    necessrio se a opo for o regresso, mas no o deixa de ser se a decisofor a passagem para outra opo (acolhimento residencial, uma nova famliade acolhimento, constituio de tutela, etc.), especialmente se a criana for

    encaminhada para adopo, contexto em que a famlia deve ser ajudada alidar com a separao definitiva. De igual modo, a cessao pode e deve sercuidadosamente preparada quando o acolhimento termina com a maioridade.

    A transio para a vida adulta no se reduz a questes prticas e finan-ceiras, uma vez que a maioria dos jovens necessita e deseja o apoio emo-cional da famlia de acolhimento, particularmente quando a estada se prolon-ga at emancipao. Schofield e Beek (2008, pp. 96-97) referem o benefcio do apoio quando os tempos so difceis, assim como para cele-brar com a famlia quando as coisas correm bem, ou simplesmente ter onde

    almoar aos domingos, isto , o enorme poder de pertencer famliaacolhedora, com os seus direitos, rituais e deveres. Esta mudana implicatambm a renegociao das relaes com a famlia biolgica, os reajustamen-tos que as transformaes e os acontecimentos da vida de ambos admiteme motivam.

    CONCLUSES

    Num trabalho desenvolvido recentemente conclumos que o acolhimentofamiliar se caracteriza, no sistema portugus de proteco de crianas e jovens em risco, pela reduzida visibilidade, pela generalidade, pelohumanitarismo e pela transitoriedade (Delgado, 2007).

    A pouca visibilidade resulta da escassez de informao e de dados dis-ponveis, da ausncia de campanhas de divulgao e de materiais informa-tivos, da no realizao de conferncias, encontros ou palestras sobre atemtica. A comunidade cientfica portuguesa tem privilegiado, na escassainvestigao produzida no mbito da proteco da infncia, outras vertentes

    da interveno socioeducativa, como a adopo ou a problemtica da violn-cia.A generalidade, que caracteriza as modalidades de acolhimento, o sistema

    remuneratrio, o processo de seleco dos acolhedores, a inexistncia deformao inicial e contnua, a escassez de apoios e os processos de acom-panhamento e de avaliao das colocaes.

    O humanitarismo, associado ao reduzido montante que disponibilizadoaos acolhedores (verba deficitria para suportar as despesas associadas aoacolhimento), menor preparao para lidar com situaes problemticas,

    menor abertura para a actualizao de saberes, menor capacidade para orelacionamento com a famlia biolgica e com a equipa tcnica responsvelpelo acolhimento, menor capacidade para lidar com a cessao do acolhi-

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    mento e inexistncia de uma entidade que represente os acolhedores epromova a sua participao na tomada de decises sobre os acolhimentos esobre a medida.

    A transitoriedade, que impe legalmente o regresso famlia biolgica,que no acontece, na prtica, na maioria dos casos, porque a criana per-manece no acolhimento at sua maioridade ou autonomia, na transio paraa vida adulta.

    Lentamente, todavia, comearam a surgir em Portugal pequenos sinais demudana. O acolhimento familiar comea a ser discutido nos principaiscanais televisivos, nos noticirios e nos principais jornais dirios. O discursopoltico actual aposta claramente na reduo do nmero de crianas institu-cionalizadas, acompanhando a crescente sensibilidade social para a proble-

    mtica da infncia e da juventude, para o risco e para os maus tratos quese lhes associam e para a imperiosa necessidade de se apostar numa prticaefectiva de proteco das crianas e dos jovens, de modo a garantir o seuadequado desenvolvimento. So ainda publicados alguns artigos e os primei-ros livros sobre o acolhimento familiar, a par do incio do desenvolvimentode projectos de investigao e de trabalhos acadmicos sobre a medida.

    A entrada em vigor da nova lei (Decreto-Lei n. 11/2008, de 17 deJaneiro) constitua, neste contexto, uma oportunidade para orientar umaruptura com a teoria e a prtica do acolhimento familiar. Se verdade que

    o problema principal desta prtica (e, por consequncia, da institucionaliza-o das crianas) no reside na lei, tambm certo que a mudana legislativaserve para definir orientaes e lanar desafios que no s permitam, maspotenciem, o desenvolvimento de melhores prticas na preparao, execuoe avaliao da medida.

    Deram-se passos positivos quando se excluram do mbito do acolhimen-to as famlias com laos de parentesco com a criana acolhida, quando seprocurou concretizar a distino entre lar familiar e lar profissional e quandose previu uma seleco mais cuidada dos acolhedores, um perodo de pre-

    parao do incio e da cessao do acolhimento, o apoio famlia biolgicae a hiptese de manuteno do contacto entre acolhedores e acolhidos depoisda cessao do acolhimento, com a ressalva apresentada. Aguardemos pelaefectiva concretizao destas ltimas mudanas, ao nvel da seleco, forma-o, acompanhamento e avaliao da medida.

    Perdeu-se, todavia, a oportunidade para integrar a formao inicial doscandidatos ao acolhimento no processo de seleco; especializar a medida,ao nvel dos tipos de famlias de acolhimento, do sistema remuneratrio, doprocesso de seleco e da formao preparatria e contnua; de aumentar o

    montante dos apoios previstos como compensao pelo acolhimento para umnvel que permita fazer face s despesas com as crianas acolhidas e/ourepensar o regime fiscal e o regime de descontos obrigatrios; consagrar o

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