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A RELIGIÃO PÓS-MODERNA EM ZYGMUNT BAUMAN Marcelo do Nascimento Melchior 1 marcelomelchior @yahoo.com.br 1- INTRODUÇÃO A Liquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos “forasteiros indesejáveis”, e portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças investidas nas “medidas duras e decisivas” se desvanecem tão logo se apresentam.”(BAUMAN, 2004,p.129) Zygmunt Bauman apresenta a modernidade com algumas particularidades referentes ao processo de vida na qual as pessoas perpassam o seu cotidiano. Principalmente no que remete-se aos conceitos que temos “pré-estabelecidos”, construindo cognitivamente “verdades” absolutas. A proposta de modernidade líquida é apresentada a partir da estrutura de cada índividuo. As pessoas não estão dispostas a abrir mão dos projetos individuais em nome dos projetos coletivos. Nesse processo os interesses individuais sobrepõem aos do grupo, cada um vivendo para sim não havendo mais a coletividade a união entre as pessoas. A modernidade criou um conjunto de padrões bem como condutas que determinam os sujeitos e suas possibilidades. Essas determinações provocam mudanças no sujeito, pois, a imposição de padrões de vida traz conseqüências de exclusão para o indíviduo, que não consegue ser aquilo que ele é, mas sim o que a modernidade o impõe. “ A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem defeituosa não está hoje na agenda – pelo menos não na agenda daquele domínio em que se supõe que a ação política resida. O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política”(BAUMAN,2000,p.12) Na modernidade líquida os padrões não estão dados, nem são impostos, eles são vistos como características individuais. “Os fluidos se movem facilmente(...), diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho”(BAUMAN,2000,p.8) Nesse contexto existem vários empecilhos, “pois os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem”(BAUMAN,2000,p.22). Mesmo tendo algumas barreiras o líquido consegue imergir o sólido, “des-construindo” e permeando o sólido com características diferenciadas, possibilitando um re-significado as coisas. Papel fundamental, é a libertação dos padrões que a sociedade autoritária impõe as pessoas, “uma sociedade que desenvolve em grande medida as necessidades materiais e mesmo culturais do homem”(BAUMAN,2000,p.12). Seguindo esse pensamento, temos como características fundamentais a ‘fluidez’ que o homem pós-moderno possui. Fazendo com que todas as relações sociais que são 1 Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Educação pela mesma instituição. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás – UFG.

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A RELIGIÃO PÓS-MODERNA EM ZYGMUNT BAUMAN

Marcelo do Nascimento Melchior1

marcelomelchior @yahoo.com.br

1- INTRODUÇÃO

A Liquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos “forasteiros indesejáveis”, e portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças investidas nas “medidas duras e decisivas” se desvanecem tão logo se apresentam.”(BAUMAN, 2004,p.129)

Zygmunt Bauman apresenta a modernidade com algumas particularidades referentes ao processo de vida na qual as pessoas perpassam o seu cotidiano. Principalmente no que remete-se aos conceitos que temos “pré-estabelecidos”, construindo cognitivamente “verdades” absolutas.

A proposta de modernidade líquida é apresentada a partir da estrutura de cada índividuo. As pessoas não estão dispostas a abrir mão dos projetos individuais em nome dos projetos coletivos. Nesse processo os interesses individuais sobrepõem aos do grupo, cada um vivendo para sim não havendo mais a coletividade a união entre as pessoas. A modernidade criou um conjunto de padrões bem como condutas que determinam os sujeitos e suas possibilidades.

Essas determinações provocam mudanças no sujeito, pois, a imposição de padrões de vida traz conseqüências de exclusão para o indíviduo, que não consegue ser aquilo que ele é, mas sim o que a modernidade o impõe. “ A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem defeituosa não está hoje na agenda – pelo menos não na agenda daquele domínio em que se supõe que a ação política resida. O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política”(BAUMAN,2000,p.12)

Na modernidade líquida os padrões não estão dados, nem são impostos, eles são vistos como características individuais. “Os fluidos se movem facilmente(...), diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho”(BAUMAN,2000,p.8)

Nesse contexto existem vários empecilhos, “pois os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem”(BAUMAN,2000,p.22).

Mesmo tendo algumas barreiras o líquido consegue imergir o sólido, “des-construindo” e permeando o sólido com características diferenciadas, possibilitando um re-significado as coisas. Papel fundamental, é a libertação dos padrões que a sociedade autoritária impõe as pessoas, “uma sociedade que desenvolve em grande medida as necessidades materiais e mesmo culturais do homem”(BAUMAN,2000,p.12). Seguindo esse pensamento, temos como características fundamentais a ‘fluidez’ que o homem pós-moderno possui. Fazendo com que todas as relações sociais que são

1 Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Educação pela mesma instituição. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás – UFG.

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estabelecidas, não possuem mais, o caráter de concretude, pois ‘nada é eterno’, neste sentido a religião, os relacionamentos amorosos, a vida profissional e familiar...enfim, as relações de um modo geral, na visão de Bauman são influenciadas por essa ‘liquidez’.

2- CARACTERÍSTICAS QUE ESTÃO PRESENTE NO HOMEM PÓS-MODERNO

a) Pluralidade: Não existe um padrão, uma forma, uma uniformidade, uma antropologia, mas projetos antropológicos, uma variedade de projetos, resultando em contradições e fragmentos. “A tolerância, ao lado do pluralismo, é outro valor básico”.

b) Novidade: O homem pós-moderno é aberto, criativo, não preso a formas e tradições, identificadas como “velhas” e “ultrapassadas”. A novidade não está somente em dar forma nova ao tradicional, mas criar algo genuinamente autêntico e com tom moderno.

c) Secularização: O homem moderno não procura acabar com Deus e as formas religiosas. Simplesmente desloca para o universo amplo de realidades que o circunda. Não é Deus, não é o universo, mas ele é o centro. Tudo passa a existir e ter valor enquanto serve de resposta às necessidades e desejos.

d)Racionalidade: Uma racionalidade pragmática, onde vale a experiência e se busca compreender sempre melhor a realidade das coisas, a partir dos ditames da razão. Somente existe aquilo que foi decifrado e decodificado pelo microscópio. A técnica aperfeiçoa a natureza e a molda para os fins e interesses humanos. Conseqüentemente, não existem mitos e os esquemas lógicos e científicos são os que dominam.

e) Imersão no universo: O homem moderno se descobre imerso num universo maior que o circunda. Sente-se parte dele e tem a tendência a deixar-se levar pelos ventos. Suas fraquezas encontram nas forças da natureza justificativa plausível e desfruta os prazeres como partes do seu instinto.

Vivemos numa era em que “esperar” se transformou num palavrão. Gradualmente erradicamos (tanto possível) a necessidade de esperar por qualquer coisa, e o adjetivo do momento é “instantâneo”. Não podemos mais gastar meros 12 minutos fervendo uma panela de arroz, de modo que foi criada uma versão de dois minutos para microondas. Não podemos ficar esperando que a pessoa certa chegue, de modo que aceleramos o encontro...Em nossa vidas pressionadas pelo tempo, parece que o cidadão (...) do século XXI não tem mais tempo para coisa alguma. (BAUMAN, p.13, 2009)

O individuo que percebe e projeta uma infinidade de possibilidades. Um homem auto-confiante, rodeado de abundância e que consegue facilmente resolver seus problemas econômicos. O que outrora a sorte reservava para poucos, hoje é considerado um direito de todos.

Agraciado pela inovação técnica, científica e pela mudança social, marcada pela liberdade, a democracia e a produção industrial. A pós-modernidade resgata o valor da subjetividade, do emocional acima do racional e do sujeito mergulhado na imensidão do universo.

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Esse sentimento só pode vir de um sentimento do tempo, do tempo preenchido com seus cuidados – sendo estes o fio precioso com que se tecem as telas resplandecentes da ligação e do convívio. A receita ideal de Friedrich Nietzsche para uma vida feliz, plenamente humana – um ideal que ganha popularidade em nossos tempos pós-modernos ou ‘líquidos modernos’ , é a imagem do Super homem, o grande mestre da arte da auto afirmação, capaz de evadir ou escapar de todos os grilhões que restringem a maioria dos mortais comuns. O Super-Homem é um verdadeiro aristocrata – “os poderosos, os bem situados, os altivos, que pensavam que eles mesmos eram bons, e que suas ações eram boas” quer dizer, até se renderam à reação e à chantagem do ressentimento vingativo de ‘todos os vis, os pobres de espírito, os vulgares os plebeus’, recuaram e perderam sua auto-confiança e determinação. (BAUMAN, p. 28, 2009)

A pessoa rodeada de direitos e que dispõe de um aparato social fortemente voltado para ele. A consciência progressiva dos direitos individuais e sociais fizeram os homens todos iguais, realidade nunca experimentada antes. Mergulhado na liberdade e cercado de direitos que lhe garantem essa liberdade. Um homem projetado para o futuro. Tudo é calculado em vista do futuro. Vive para o futuro e em vista do futuro. Percebe que tem responsabilidades com o futuro.

O ser humano que faz a experiência de ser parte do cosmos, liberto de todo controle, aberto para novas experiências. Um homem que se nega a sujeitar-se a uma ideologia, seja capitalista ou socialista, que resgata a subjetividade e exige sua expressão, em todos os sentidos.

3- VIDA SEM DEUS – SECULARIZAÇÃO

A religião, na verdade, é a consciência da insuficiência humana, é vivida na admissão da fraqueza... A mensagem invariável do culto religioso é: ‘do finito ao infinito, a distância é sempre infinita...’ (...) nós deparamos com dois caminhos inconciliáveis de aceitar o mundo e a nossa posição nele, nenhum dos quais pode ufanar-se de ser mais racional do que o outro...Uma vez feita, qualquer escolha impõe critérios de julgamento que, infalivelmente, a apóiam numa lógica circular: se não há nenhum Deus, só critérios empíricos devem guiar-nos o pensamento, e critérios empíricos não conduzem a Deus, se Deus existe ele nos dá pistas sobre como perceber Sua mão no curso dos acontecimentos, e com a ajuda dessas pistas reconhecemos a razão divina do que quer que aconteça. (BAUMAN, p.209, 1998)

O termo “secularização” engloba vários componentes. Geralmente se compreende como a “vida sem Deus e sem religião”. Isto porque no passado eram esses componentes a ditar a visão de mundo, a auto-compreensão e definição humana e a orientação do agir. A tentativa de estabelecer um binômio ou oposição como Deus-mundo, fé-razão, ciência-crença, não são verdadeiros deste período. Na verdade, a secularização não quer eliminar Deus e a religião, mas simplesmente fazer que ocupem o seu novo espaço dentro do novo horizonte de compreensão. Na visão e compreensão do homem moderno, o centro do universo passa a ser ele mesmo. Deus e o mundo passam para um segundo ou terceiro plano.

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Alguns fatos são responsáveis por esse fenômeno, mas surtiram efeitos no próprio homem, na sua visão de mundo e de si mesmo. Colaboraram para isso: Copérnico e a confirmação de que o sol é o centro do universo; Galileu Galilei e a descoberta de que a terra gira ao redor do sol; Charles Darwin e a sua teoria de que o homem descende do macaco; Sigmund Freud e a intuição de que o homem é um conjunto de emoções não muito diferentes dos outros animais. A moderna genética também exerce uma forte e atual presença: reduz o indivíduo e suas manifestações a fatores de genes e DNA.

(...) o humanismo não estava tão pronto para poder tornar-se tudo o quanto pudesse querer, como pronto para querer tornar-se o que realmente se podia (dada a ampla, embora não necessariamente infinita, riqueza do potencial humano): querendo apenas essas coisas por que se pode fazer algo prático e concreto para tornar-se verdadeiras. A vida após a morte claramente não pertence a essa categorias de coisas. A idéia de auto-suficiência humana minou o domínio da religião institucionalizada não prometendo um caminho alternativo para a vida eterna, mas chamando a atenção humana para longe desse ponto; concentrando-se em vez disso, em tarefas que o ser humano pode executar e cuja as conseqüências eles podem experimentar enquanto ainda são ‘seres que experimentam’ – e isto significa aqui nessa vida. (BAUMAN, p.209, 1998)

O homem passa a ocupar a primazia no conjunto da realidade global, tudo é orientado em sua direção e desbanca a Deus. No entanto, ele se descobre pouco consistente e frágil. A certeza e organização e explicação do universo cedem espaço para a incerteza e tudo aquilo que é provisório.

Porém, o termo “secular” engloba alguns outros elementos os quais merecem atenção, como, por exemplo, a valorização da experiência como forma de conhecer o universo e a si mesmo. As pessoas querem cada vez mais experiências e não aceitam não poder realiza-las. Para isto não basta somente a comprovação científica. Cada pessoa se torna um cientista, querendo “experimentar tudo e de tudo!”, como direito que lhe cabe. Não basta mais “aquilo que nossos pais nos contaram”, senão aquilo que cada um mesmo experimenta. O fator de avaliação dessas experiências não é objetivo, mas subjetivo, a partir dos efeitos, resultados e do papel que a mesma experiência joga no universo de sensações pessoais. Nesse caso, a mesma experiência pode ser vista como positiva ou como negativa, dependendo dos sujeitos implicados na mesma.

Nessa tentativa não existem fronteiras. A vida passa a ser medida a partir das experiências realizadas. O limite a ser alcançado é único: a globalidade. Assim, muitos se colocam a caminho, literalmente montados em suas bicicletas, embarcações, balões, carros, etc., afinal, não existem limites. Aventurar-se em busca do novo, do diferente, ir além-fronteiras. No fundo, o fato revela o interior insaciável desse homem moderno. Ele quer conhecer a Deus, a si mesmo e o mundo, estabelecer novos paradigmas de compreensão do universo. No fundo, descobre-se o antigo desejo humano de conhecer-se a si mesmo.

Num mundo em que todos os meios de vida são permitidos mas nenhum é seguro, elas mostram coragem suficiente para dizer, aos que estão ávidos de escutar, o que decidir de maneira que a decisão continue segura e se justifique em todos os julgamentos a que interesse. A esse respeito o

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fundamentalismo religioso pertence a uma família mais ampla de soluções totalitárias ou protototalitárias, oferecidas a todos os que deparam a carga da liberdade individual excessiva e insuportável. (BAUMAN, p.229, 1998)

Somente a partir da experiência é que começa a elaborar uma resposta e ação pessoal. Porém, tudo é muito frágil e provisório, afinal, a experiência não se esgota. O amanhã poderá ser diferente e, nesse caso, as determinações de hoje poderão não ser as mesmas de amanhã.

O importante é não ter amarras, não se aprisionar a nada. Se, no passado, o estabelecimento de Deus e seu senhorio no universo resultavam no estabelecimento de verdades absolutas e um papel periférico ao homem, agora não existem absolutos. Tudo é muito provisório, relativo, em vir-a-ser. Tudo é projeto, não existe nada acabado.

Esse processo colabora para que o homem moderno passe a uma fase de auto-assunção, comparado à maioridade, onde se reconhece como responsável por si e por sua própria história, responsável pelo universo e pelos demais.

O retorno ao sagrado, ao esotérico, ao demoníaco e o culto ao mal são fenômenos da pós-modernidade. Formas religiosas e crendices consideradas ultrapassadas e infantis retornaram com novas forças e novos ares. Pelas avenidas, bairros, nas cidades e mesmo em pequenas cidades do interior, se vêem símbolos, ritos, imagens, pessoas e igrejas de credos diferentes. Há situações, algumas engraçadas e outras conflitivas, nas quais numa mesma família se encontram vários credos e tendências religiosas. Em pouco tempo é possível ver diversos templos e formas religiosas, tanto in loco quanto via satélite.

Muitas pessoas estão totalmente mergulhados na fé, organizam a vida a partir dela e não abrem mão da participação ativa. São xiitas, ortodoxos, crentes e se reconhecem pertencentes ao mundo dos já salvos e com a missão de salvar os “perdidos”, os “infelizes”; outros são totalmente indiferentes a uma única instituição religiosa, dando preferência às soluções rápidas e preenchimento de um vazio de sentido. Muitos simplesmente se limitam a afirmar crer numa “energia universal”, no “ser superior”, mas que é tão distante quanto eles próprios o são dele. Ao lado disso tudo, cresce o número daqueles que se denominam “sem religião”, o que não significa que sejam ateus.

Este fenômeno não se restringe a uma camada social. São ricos e pobres, doentes e sãos, professores universitários e serventes de pedreiro. Todos professam sua crença e a manifestam na medida de suas necessidades. Empresários participam de culto evangélico, militares participando de missa, populares fazendo oferta à Iemanjá, motoqueiros carregando a imagem de N. Sra. Aparecida. Chegamos ao tempo em que a religião é de alguma tribo: surfistas, eskaitistas, homossexuais, empresários liberais, etc.

Será que Deus venceu a batalha? Será que o Deus morto dos filósofos passados acordou e resolveu retomar seus poderes e as rédeas da história?

Na verdade, o que existe é a formação do “coquetel religioso”. O homem pós-moderno vive a religião “à la carte”, de tipo “self-service”, numa mistura de vários aspectos que mais interessam e satisfazem as exigências e necessidades momentâneas. Na busca do sentido da vida, cria-se o deus e a religião pessoal: “Jesus Cristo sim, Igreja não”. O “boom” religioso revela isto: seitas, cultos, esoterismos, filosofias orientais, yoga, etc., num verdadeiro “misticismo difuso e eclético”, onde se vive a preferência religiosa e o “suave consumismo religioso”. A razão disso se encontra também no fato de o sagrado ter-se libertado do domínio da religião, isso é, qualquer pessoa pode atribuir-se o título de “bispo”, missionário e oferecer o serviço religioso como qualquer serviço de tele-entrega rápida e soluções milagrosas.

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O homem moderno não serve a Deus, mas se faz servir dele. Culto e Igreja, na medida do necessário e “quando sobra um tempinho”, afinal, tudo o que é demais, faz mal. A fidelidade a uma única Igreja e a uma única visão de Deus são prejudiciais, pois, segundo o homem moderno, há outras facetas e aspectos que devem ser privilegiados e que uma única religião não completa. Assim, da missa de domingo se passa para o centro espírita de terça-feira, para a leitura e meditação da palavra de Deus no culto evangélico de quarta à noite, para a terreiro de umbanda de sexta-feira e para a fazenda budista de sábado.

O resultado disto é o que se vê: ofertas religiosas as mais variadas possíveis. Igrejas, academias, farmácias e motéis é o que mais se vê nas ruas. São as instituições que mais proliferam e, no fundo, cada uma responde na medida exata ao que o homem moderno busca. O comércio religioso, em muitos casos, assume as mesmas características de qualquer oferta de produto, em nada diferente da venda de celulares, eletrodomésticos, carros, programas eróticos, etc. São ofertas religiosas em anúncios de jornais, rádios, outdoors, panfletos em esquinas movimentadas, liquidação de bênçãos e oração de cura pela metade do preço. O missionário que faz milagres, o “professor” que lê o futuro, a “irmã” que dá conselhos, o padre que faz show missa, o mestre que faz curso de meditação. Em tudo aparece a fuga do vazio, do anonimato e da vida sem sentido. O importante não é o que se crê e nem a medida desta crença, mas como forma de identificação com alguns outros e de autonomia, como demonstração da autonomia pessoal que se demonstra até mesmo na capacidade de comandar o próprio Deus.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

_____,Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

_____,Medo Liquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

_____,O Mal Estar da pós – modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

_____,Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

_____,Amor Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

_____,Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

_____,ÉTICA PÓS – MODERNA. São Paulo: Paulus, 1997.

TEOLOGIA DA MORTE DE DEUS: INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE DIETRICH BONHOEFFER

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E SEU ATEÍSMO CRISTÃO2

Considerações iniciais

Dietrich Bonhoeffer é conhecido fora do meio teológico como um opositor de Adolf Hitler, é que, assim como Karl Barth e Paul Tillich se opuseram a apropriação feita pelo Regime Nazista de símbolos cristãos, produzindo uma resposta veemente a esse. Nessa época Bonhoeffer assim como os outros dois já eram teólogos muito respeitados na Alemanha e na Europa, tendo Bonhoeffer uma posição de destaque entre esses, com uma produção teológica de altíssimo valor. Por isso, destacamos Bonhoeffer pelo seu pensamento e não meramente por ter sido opositor de Hitler ou considerado um mártir da fé cristã protestante.

Bonhoeffer e o Nazismo

Apesar de ser a intenção desse trabalho uma análise do pensamento bonhofferiano será destacado brevemente o seu envolvimento com a já citada oposição ao governo de Hitler.

Entre os teólogos anteriormente citados Dietrich Bonhoeffer foi quem teve o fim mais trágico, sendo que após o Concílio de Barmen3 o teólogo assumiu uma posição política mais radical, ingressando na resistência militar ao regime, na qual em conjunto com o general Beck e o almirante Canrer, participaram de um plano para assassinar Hitler. O plano fora descoberto e o teólogo preso em 5 de abril de 1943, ficando detido em uma seção militar em Tegel nas proximidades de Berlim durante dezoito meses. No princípio de 1945 Bonhoeffer foi transferido para o campo de concentração de Bunchenwald, onde fora enforcado em 8 de abril, pouco antes da queda do Terceiro Reich. Aconteceu o que ele e Barth diziam desde o princípio de sua resistência ao nazismo “A única coisa que o nazismo pode fazer contra nós é nos matar.” (MONDIN, 2003, p. 204).

Sua obra

Fora enforcado pelo nazismo aos 39 anos. Mesmo com sua morte precoce, podem ser destacadas algumas obras de elevada importância que o coloca entre os grandes teólogos do século XX. Diferentemente do que alguns possam pensar que Bonhoeffer só é respeitado por ser um mártir cristão, afinal já era um teólogo altamente importante quando vivo. Dentre suas principais obras podem ser destacadas: Sanctorum Comunio4 (1930), Ark und Sein: Transzendentalphilosophie und Ontologie in der Sistematichen Theologie (1931), Nachfolge (1937), (Imitação), Etik (1939), (Ética) e um livro póstumo que é uma coletânea de cartas enviadas pelo teólogo a amigos e à família quando estava na prisão em Berlim, Widerstand und Ergebung: Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft (1951), (Resistência e Submissão), esse último um livro magnífico, que mostra uma fé incrivelmente inabalável, quando o autor passava por um momento de turbulência extrema, com certeza é um livro que merece ser lido, não apenas por teólogos e cristãos, mas por todos aqueles que se sensibilizam com os sentimentos humanos.

2 Makchwell Coimbra Narcizo Universidade Federal de Goiás Graduando em História [email protected] 3 Concílio que se postou contra o Governo Social-Nacionalista. Contando com grandes lideranças do protestantismo alemão. Nesse concílio fora redigida a Confissão de Barmen, um dos documentos cristãos mais importantes do século XX. 4 As obras com referência em português entre parênteses são as que existem tradução para o português e edição brasileira.

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Suas influências

Dentre seus principais influenciadores podem ser destacadas: Lutero (o qual o autor tentou atualizar para a modernidade), Kant (trabalhando com a concepção de limites da razão), Harnack (mesmo indo contra seu antigo mestre, que era adepto da teologia liberal, tão criticada por Bonhoeffer), Thomas de Kemps (adotando seu conceito de imitação), Karl Holl e Renhold Seeberg (promotores do chamado “renascimento luterano”) e Karl Barth e Emil Brunner (apesar de ter rompido com esses posteriormente).

Pensamento (A Teologia da Morte de Deus)

Bonhoeffer é o principal precursor do que ficou conhecido como: “Teologia da Morte de Deus” ou “Ateísmo Cristão” ou ainda “Cristocentrismo a-religioso”. No qual o teólogo ao ver a ineficácia da pregação cristã ao homem moderno, sendo que o autor não identifica o ateísmo como uma heresia ou meramente uma aversão à igreja, pois, nada mais é do que um traço essencial do homem moderno, que imerso nas conquistas da modernidade, não consegue mais ser um homem religioso; sendo assim, propõe a libertação da mensagem bíblica, fazendo isso em termos a-religiosos que é o único que o homem moderno compreende e pode compreender.

A questão está centrada justamente na natureza da teologia na interpretação de Bonhoeffer, na medida em que para esse para uma melhor interpretação da mensagem cristã é necessário que se faça antes uma secularização dessa mensagem. O problema é que, existe uma linguagem cujo qual a mensagem cristã está posta, sendo essa uma linguagem idealista que é na verdade a linguagem clássica. Assim, para uma correta compreensão da mensagem cristã, que é o principal fundamento do teólogo de Wroclaw é necessário que essa seja feita uma substituição dessa linguagem para uma linguagem mais moderna. Assim, sua interpretação é mais radical que a de Rudolf Bultmann, que propõe rever as vestes mitológicas da mensagem cristã assim como suas bases filosóficas, para Bonhoeffer é necessário ir além, é necessário mudar a linguagem religiosa que fora expresso originalmente. (MONDIN, 2003, 211).

Para Bonhoeffer a questão não é separar Deus e os milagres como propõe Bultmann (BULTMANN et. Al., 1999; 2003a; 2003b), mas sim os interpretar abertamente em um sentido “não-religioso”, já que para o autor essa é uma exigência do homem moderno.

Segundo Bonhoeffer houve uma crescente secularização da igreja, que para ele independendo do país ser católico ou protestante, houve no período da Reforma uma emancipação do homem perante Deus. Esta é celebrada como a emancipação do homem na consciência, na razão e na cultura, e como a justificação do secular enquanto tal. A fé bíblica dos Reformadores em Deus afastou-os do mundo, acontecendo com o mundo da seguinte maneira:

Preparou-se de tal forma para o florescimento das ciências matemáticas e experimentais que, ao passo que os cientistas dos séculos XVI e XVII ainda eram crentes, quando a fé em Deus decaiu, restou apenas um mundo racionalizado e mecanizado. (BULTMAN, 1939, Apud: MONDIN, 2003, p. 221).

Assim, a razão emancipada conquistara o mundo, levando a um triunfo da ciência técnica, o que relegou a igreja de um lugar de domínio a um “não lugar” frente às necessidades do mundo. Levando não apenas a uma negação teórica da existência de Deus, mas segundo Mondin (2003, 222) a uma hostilidade a Deus. Até por isso como argumenta Mondin (2003, 222): “Aí está a característica do ateísmo ocidental. Ele não pode desfazer-se de seu passado. Não pode ser essencialmente senão

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uma religião”, essa não renegação de seu passado faz com que esse ateísmo seja diferente de outros ateísmos como de alguns gregos, indianos ou chineses.

Assim, conclui Bonhoeffer:

Seria um erro grosseiro identificar o ateísmo com a aversão à igreja: o ateísmo é um traço essencial do homem moderno, que, depois das conquistas da ciência e da técnica, não pode mais ser um homem “religioso” (...) O homem moderno aprendeu a enfrentar qualquer problema, mesmo os importantes, sem recorrer a hipótese da existência e da intervenção de Deus. (BULTMAN, 1939, Apud: MONDIN, 2003, p. 222).

Bonhoeffer propõe o abandono das técnicas tradicionais tanto da teologia quanto das pregações, que podem ser encaradas como uma ofensa a modernidade não religiosa, fazendo uma atualização teológica e hermenêutica da mensagem cristã, que tem como essência o próprio Cristo, devendo ser apenas cristocêntrica. Assim, a pregação deve ser baseada não na vivencia de cada homem como era (é) feito até então, mas de um Deus que possa explicar o mundo.

Como fazer isso então, já que o homem moderno aprendeu a resolver seus problemas sem recorrer à hipótese da existência de Deus? A questão para Bonhoeffer é que o que designamos chamar Deus está confinado fora das coisas da vida, além do mais as respostas que antes deveriam ser dadas por Deus, saíram da alçada de da igreja e da teologia, sendo respondidas (ou tentativas de respostas) pela psicanálise, sociologias ou pela medicina. Assim, para Bonhoeffer a única chance de a igreja se fazer valer levando sua mensagem para uma maior parte do mundo é ter coragem de rever os fundamentos de sua mensagem: “O único modo de sermos honestos é reconhecer que devemos viver no mundo etsi deus non deuretur, como se Deus não existisse.” (BONHOEFFER, 2003, 241).

Como então deve ser a relação da igreja com esse mundo “des-religiozizado”, já que o cristão tem o dever de passar a frente as “boas novas” do evangelho? A resposta de Bonhoeffer é simples, pelo exemplo, pois assim, talvez, com o exemplo cristão, possa se fazer com que os outros intuam o conteúdo da fé desses. Nas palavras de Bonhoeffer:

Que o cristão permaneça no mundo, mas não pela bondade da criação ou por sua responsabilidade em relação ao curso do mundo, mas por amor ao Corpo de Cristo encarnado e por amor a igreja. Que permaneça no mundo para empenhar-se no ataque contra ele e que viva a vida de sua vocação secular para mostrar-se ainda mais como um estrangeiro nesse mundo. (BULTMAN, 1937, Apud: MONDIN, 2003, p. 224).

A intenção de Bonhoeffer não é como muitos podem interpretar e têm intepretado alguns, de fazer a linguagem cristã adotar uma linguagem seular, mas sim, de faze-la perder a eficácia frente ao testemuno.

Como expresso anteriormente esse teólogo morrera jovem, no auge de sua produção, assim, não pode concluir alguns de seus pensamentos e tampouco responder a algumas indagações a esse. Como a questão de como funciona então essa circularidade entre o cristão que testemunha o mundo a religioso? Na medida em que, as pessoas que porventura aceitem a mensagem cristão estão nesse mundo a-religioso. Além de não ter visto a falência da religião da ciência após a destruição da Europa, que muito se deu por ideais cientificistas ou se apoiando nessas.

Não concordamos com quem liga diretamente o pensamento de Bonhoeffer e sua “Teologia da Morte de Deus” com o que ficou conhecida em especial na década de 1960 como “Teologia Radial”. Esse pensamento tratava que uma vez que Deus não era empiricamente verificável, a visão do mundo

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bíblico foi tida por mitológica e inaceitável para a mente moderna. A verdade é que essa ala teológica se apropriou não tanto do pensamento bonhoefferiano, afinal a questão da morte de Deus está presente no Ocidente desde muito tempo, passado desde Nietzsche a Dostoievski, o que esses teólogos apropriaram de fato de Bonhoeffer foi mais um vocabulário do que o pensamento propriamente dito.

No Brasil Bonhoeffer nunca foi muito conhecido nem mesmo nos círculos acadêmico-teológicos, entretanto isso começa a mudar, nos últimos anos há uma campanha de divulgação do pensamento do teólogo, feita especialmente pala Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangélica Luterana no Brasil (IECLB). Em 1995 na ocasião do cinqüentenário do assassinato de Bonhoeffer, a EST promoveu o “dia de Bonhoeffer”, no qual estudantes e teólogos tiveram como pauta a vida e a teologia do teólogo alemão. Desde então obras do autor passaram a ser publicadas e republicadas.

No caso de Bonhoeffer não se pode falar de uma influência posterior à Segunda Guerra Mundial, afinal esse não sobreviveu a ela, sendo silenciado um dos teólogos mais brilhantes que o protestantismo já produziu, entretanto, é importante ressaltar que no período em que esteve prezo sua teologia ressaltava ainda mais a necessidade da mensagem cristã atingir o homem moderno, mas infelizmente não pode desenvolver seu pensamento. A teologia bonhoeffiana veio denunciar que o homem moderno não aceitava a pregação cristã e que algo deveria ser feito para que atingisse esse objetivo, talvez seja essa a grande contribuição desse autor à teologia do século XX. Na crise em que a modernidade vive, sendo criticada por algumas correntes, o pensamento bonhoefferiano se faz ainda mais necessário para os cristãos.

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Título: A “doença” do ateísmo entre os gregos

Autor: Hermisten Maia Pereira da Costa

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Vinculação Institucional: Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

Titulação Acadêmica: Doutor

E-mail: [email protected]

Grupo de Pesquisa: Ateísmo e Crítica Religiosa

Resumo:

Partindo da compreensão de Platão de que o ateísmo é uma doença (Platão, Leis, 908c), examino preferencialmente as obras primárias, investigando de forma introdutória alguns autores da Grécia antiga, especialmente, Xenófanes, Heráclito, Empédocles e Sócrates, analisando as suas críticas à religião prevalecente, avaliando se tais críticas eram sinais de ateísmo ou resultado de uma perspectiva da inconsistência da religião dominante.

A “doença” do ateísmo entre os Gregos

Hermisten Maia Pereira da Costa

Introdução

A Religião é um fenômeno universal. A Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Arqueologia e a História, entre outras ciências, têm demonstrado de forma convincente que a religião está presente em todas as culturas antigas e modernas. Por isso, podemos falar do homem como sendo um ser religioso. O homem procura desesperadamente um significado para a sua vida, tentando encontrar um equilíbrio entre os seus extremos existenciais: a vida e a morte, o ser e o nada, a ordem e o caos. Dentro desta perspectiva, o caminho religioso é, quase que invariavelmente seguido pelo homem na busca de significado para o seu existir. A experiência religiosa é universal, assumindo características pessoais e, ao mesmo tempo universais. Do mesmo modo que minha experiência é particular e pessoal, ela tem em si os mesmos ingredientes da experiência do outro: todos desejam o mesmo equilíbrio, ainda que não pelos mesmos caminhos e com nomes diferentes. A religião é um apanágio do ser humano.

O grande etnólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), inicia o seu livro Magia, Ciência e Religião, com esta afirmação: “Não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia” (MALINOWSKI, [s.d], p. 19).

Na Antigüidade, Cícero (106-43 a.C.), Plutarco (50-125 AD) e outros, constataram este fato. Cícero observou que não há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal e selvagem, que não tenha em si a convicção de que há Deus (Ver: CICERO, 1972, I.17; II.4).

Mas, o que significa religião? Ainda que não possamos responder a questão apenas pela simples explicação da palavra, acreditamos que esta pode fornecer-nos algumas pistas. A palavra “religião” é de origem incerta. Cícero (106-43 a.C.), associa a palavra ao verbo latino “relegere” (reler, ler com cuidado) (CICERO, 1972, II.72-74). Cícero, assim explicou: “Aqueles que cumpriam cuidadosamente com todos os atos do culto divino e por assim dizer os reliam atentamente foram

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chamados de religiosos de relegere, como elegantes de eligere, diligentes de diligere, e inteligentes de intellegere; de fato, nota-se em todas estas palavras o mesmo valor de legere que está presente em religião” (CICERO, 1972, II.28). Deste modo, a religião seria o estudo diligente acompanhado da observância das coisas que pertencem aos deuses (MULLER, 1985, p. 262).

No entanto, a explicação mais famosa, relaciona a origem da palavra à “religio” e “religare” (religar) trazendo a idéia embutida de “religar-se com Deus”. Essa explicação encontra-se em Lactâncio (c. 240-c. 320) – Divinae Institutiones, (c. 304-313) e Agostinho (354-430) – De Civitate Dei (1990, Vol. I, X.3, p. 373 e X.32, p. 410-414) e De Vera Religione.

Lactâncio que discorda da explicação de Cícero, diz: “Nós dissemos que o nome religião (religionis) é derivado do vínculo de devoção, porque Deus ligou o homem a Ele, e o prende por devoção; porque nós O temos que servir como um mestre, e ser-Lhe obediente como a um pai” (LACTANTIUS, 1994, IV.28, p. 131).

Agostinho, após falar do que não devemos adorar, afirma: “Que a nossa religião nos ligue, pois, ao Deus único e onipotente” (AGOSTINHO, 1987, 55, p. 145).

Thomas Hobbes (1588-1679) em 1651, vai um pouco além, concluindo que a religião é exclusividade do ser humano: “Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra em outras criaturas vivas” (1974, p. 69).

1. A Antigüidade Pagã: Os deuses, nossos companheiros:

Na Antigüidade não era raro ou anormal, um homem ser chamado de “filho de deus”. O mundo estava cheio de homens considerados divinos, semideuses e heróis nascidos de “casamentos” dos deuses com os mortais. Tais homens se diziam filhos de deus e, por isso, eram em alguns casos, até mesmo adorados, como manifestações da divindade. Mesmo o Novo Testamento apresenta alguns indícios deste costume entre os pagãos (Atos dos Apóstolos 8.9-11; 12.21,22; 14.11,12; 28.6).

O episódio narrado por Lucas em Atos 14.8-18 ilustra bem a crença do povo. E, neste caso, há algo curioso: Júpiter e Mercúrio, os quais foram identificados pelo povo como sendo Barnabé e Paulo, respectivamente (At 14.12), eram associados à região pela literatura latina. Ovídio (42 a.C.-18 d.C.), em sua obra principal, Metamorfoses, narra que o pobre casal, Filemon e Báucis, hospedou em sua humilde casa, Júpiter e Hermes (= Mercúrio), que vieram à sua cidade disfarçados de mortais à procura de uma hospedagem, e que não conseguiram pousada em nenhuma das mil casas da região, exceto na do casal. Filemon e Báucis, por este ato de hospitalidade, conta-nos Ovídio, foram recompensados sendo poupados do dilúvio que destruiu as casas de seus vizinhos não hospitaleiros, tendo, inclusive, num ato simultâneo a sua pequena casa transformada num templo e, a pedido receberam a incumbência de serem sacerdotes e guardiões do santuário de Júpiter e, conforme solicitaram, Filemon e Báucis, morreram juntos (OVÍDIO, 1983, VIII, p. 214-216).

Esta lenda que já era bem conhecida nos tempos de Paulo e Barnabé, esclarece porque tão prontamente o povo os identificou com tais divindades após o milagre realizado por Deus através deles. Além disso, a idéia de que as divindades assumissem temporariamente uma forma humana, já fazia parte da religiosidade do povo. Homero, o grande poeta grego, em sua Odisséia, escrita por volta do séc. IX a.C., registrou: “Os deuses tomam às vezes a figura de estrangeiros, vindos de longes terras e, sob aspectos diversos, vão de cidade em cidade, a fim de ficarem conhecendo quais os homens soberbos e quais os justos” (1979, XVII, p. 162).

Em outra passagem, na mesma obra, Homero narra como a deusa Palas Atena, filha de Zeus (= Júpiter), se aproximou em determinado momento, do seu protegido, Ulisses. “Dele se abeirou Atena, sob o aspecto de um adolescente pastor de ovelhas, gentil como são os filhos dos príncipes, os ombros

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recobertos de dupla e fina capa, trazendo nos pés reluzentes sandálias e na mão um cajado” (1979, XIII, p. 123).

Ulisses, no diálogo que se sucede após a identificação da deusa, diz: “Deusa, quando te aproximas de um mortal, muito dificilmente este te reconhecerá, por hábil que seja, porque tomas todos os aspectos” (1979, XIII, p. 125).

O fato é que na Antigüidade a história estava repleta de intervenções divinas e, de certa forma o povo era governado pela divindade, visto que, especialmente no Oriente, o rei era tido como filho de algum deus. No Egito, o monarca reinante era considerado divino, sendo concebido como uma geração física do deus supremo, chamado Ré; o rei era uma espécie de epifania (manifestação) do próprio deus. Na Arábia, o rei era adorado como se fosse deus. Para os sumerianos, babilônios e árabes, o rei era visto como filho adotivo de um ou de vários deuses.

Os colonizadores gregos em suas conquistas chefiados por Filipe da Macedônia (c. 382-336 a.C.) e posteriormente por seu filho, Alexandre o Grande (356-324 a.C.), assimilaram tais idéias mesclando-as com a sua mitologia tradicional, que por si só já era bastante complexa. Dentro deste sincretismo religioso, encontramos o imperador romano, sendo chamado de Divi Filius; os gregos criam que muitos homens descendiam fisicamente dos deuses; a ascendência divina é que determinava a existência dos reis, filósofos, sacerdotes e justos.

Tais crenças proliferavam, assumindo particularidades em cada cidade e até mesmo em cada família, crescendo ainda mais o número de divindades, sendo somado a isto, um processo intenso de “canonização” dos homens. O historiador Fustel de Coulanges (1975, p. 117-118), escreveu sobre este processo:

“Todo homem, tendo prestado algum grande serviço à cidade, desde aquele que fundara até outro que lhe conseguira alguma vitória ou aperfeiçoara suas leis, tornava-se um deus para essa cidade. Nem sequer se torna necessário ter sido grande homem ou benfeitor; bastava haver impressionado vivamente a imaginação de seus contemporâneos e ter-se tornado alvo de tradição popular, para qualquer pessoa se tornar herói, isto é, um morto poderoso cuja proteção fosse desejada e cuja cólera temida (...). Os mortos, fossem quais fossem, eram os guardas do país, sob condição de se lhes prestar culto”.

Por isso que, por mais que recuemos na história, sempre acharemos no Oriente, povos, tribos e famílias, que alegam serem provenientes de um ancestral divino.

Havia também, homens que eram considerados como que possuidores de habilidades divinas para realizarem milagres, sendo chamados de homens divinos. Existiam os círculos dos “espirituais” que entendiam que uma pessoa podia tornar-se divina mediante o desenvolvimento do conhecimento de Deus. Em síntese, a idéia de filho de deus, refletia uma confusão existente no conceito de divindade e humanidade, acarretando, via de regra, uma diminuição da idéia de deus e, também, por outro lado, uma elevação do homem.

2. A Crítica Grega à Religiosidade Predominante:

Na Grécia antiga, ateísmo era a acusação comum feita àqueles que fizessem crítica à religião predominante. Se a pessoa fosse pública ou influente, essa acusação poderia servir como forma de vingança ou, para desacreditá-lo diante da opinião pública. O caso mais conhecido é o do filósofo

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Sócrates (469-399 a.C.), que entre outras acusações teve a de “.... não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades novas” (PLATÃO, 1972, 24b-c, p. 17).5

Mas, na realidade – apesar de listas antigas de “ateus” gregos (GUTHRIE, 1995, p. 220-221), cuja crença é denominada por Platão (427-347 a.C.) de “doença” (PLATÃO, 1999, IX, p. 357-358, 402) – tem sido extremamente difícil provar além de qualquer contestação, que algum pensador grego tivesse sido ateu “puro”. No entanto, o que acontecia era coisa diferente: apesar do paganismo grego da Antigüidade ser cheio de lendas e superstições, de quando em quando alguns pensadores se levantavam contra as crenças e costumes populares, declarando algo de relevo. Muitas das críticas estavam relacionadas – ainda que não solitariamente –, à fragilidade moral dos deuses tão candidamente descrita nas obras de cunho histórico-religioso e que dominavam a mente dos povos. Encontramos, por exemplo, a percepção de que os homens tendiam a fazer seus deuses à sua imagem e semelhança. Aliás, esta é uma característica do ser humano, projetando o seu mundo a partir de si mesmo, dando uma espécie de “troco” a Deus.

Entre os filósofos da Antigüidade que souberam criticar com discernimento as práticas religiosas do seu tempo, destacamos Xenófanes (c. 570-c.460 a.C.), Heráclito (c. 540-480 a.C.) e Empédocles (c. 495-455 a.C.).

Xenófanes faz uma crítica mordaz a Homero e Hesíodo, dizendo:

"Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.

"Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo, adultério, e fraudes recíprocas.

"Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.

"Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria forma.

"Os etíopes dizem que os seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos" (1977, Fragmentos 11-16).

Xenófanes propunha uma visão próxima ao monoteísmo ou pelo menos, um “politeísmo não antropomórfico” (GUTHRIE, 1995, p. 211), mas, ainda assim, cosmológico, identificando, conforme pontua Aristóteles, o uno, ou seja, o universo, como sendo Deus (ARISTÓTELES, 1973, p. 223). Xenófanes (1977, Fragmento 23) escreve: “Um único deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais”. Na realidade, Xenófanes destaca um deus supremo acima dos demais deuses e dos homens (GILSON, 2006, p. 55).

Reale e Antiseri acentuam que “depois das críticas de Xenófanes, o homem ocidental poderá nunca mais conceber o divino segundo formas e medidas humanas”. (REALE; ANTISERI, 1990, Vol. 1, p. 48).

Heráclito – a quem, juntamente com Sócrates, Justino considera cristão antes de Cristo (JUSTINO DE ROMA, 1995, p. 61-62) –, ridiculariza o

5Evidentemente, há inúmeros outros casos. Um outro bem conhecido é o de Diágoras de Melos – aliás, em todas as menções feitas ao seu nome, aparece o apelido de “o ateísta” –, discípulo de Demócrito, que foi acusado de impiedade quando ensinava em Atenas (411 a.C.) devido ao seu suposto ateísmo (Vejam-se: CICERO, 1972, I.1. p. 69; III.88-90, p. 232; GUTHRIE, 1995, p. 220-221).

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antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea, dirigindo a sua crítica à prática do sacrifício como meio de purificação, e às orações feitas às imagens: “Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, como se fosse possível conversar com edifícios, ignorando o que são os deuses e os heróis” (HERÁCLITO, 1977, Fragmento 5). Talvez isto revele o que Heráclito expressa no Fragmento 79: "O homem é infantil frente à divindade, assim como a criança frente ao homem." Todavia devemos ressaltar que ele não era irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via. (HERÁCLITO, 1977, Fragmentos 14 e 67).

Heráclito, fugindo da idéia de fatalismo, entendia que o homem é responsável pelos seus atos, portanto, afirma: "O caráter é para o homem um demônio" (dai/mwn). (1977, Frag., 119).

Empédocles fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:

"Bem aventurado o homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina; desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses.

"Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou de apanhá-la com as mãos, principais caminhos pelos quais a persuasão penetra o coração do homem.

"Pois o seu corpo (da divindade) não é provido de cabeça humana; dois braços não se erguem de seus ombros, nem tem pés, nem ágeis joelhos, nem partes cobertas de cabelos; é apenas um espírito; move-se, santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosmos com rápidos pensamentos". (1977, Fragmentos, 132-134).

Na História Grega, o século V a.C., costuma ser denominado, "Século de Ouro" ou "Século de Péricles". Dá-se neste período o grande desenvolvimento democrático de Atenas. As assembléias e tribunais dependiam da habilidade retórica dos seus participantes. O discurso era o meio mais eficaz de adquirir influência, poder e honrarias ou de se defender dos inimigos. A Retórica adquiriu um "status" de inigualável arma política, assegurando a vitória a quem soubesse usá-la melhor. Escrever Jaeger (1989, p. 236):

"A faculdade oratória situa-se em plano idêntico ao da inspiração das musas aos poetas. Reside antes de mais nada na judiciosa aptidão para proferir palavras decisivas e bem fundamentadas. (...) A idade clássica chama de orador o político meramente retórico. (...) Neste ponto, devia basear-se na eloqüência toda a educação política dos chefes, a qual se converteu necessariamente na formação do orador".

Este século é marcado por profundas modificações; a vitória nas guerras médicas, quando foram expulsos os invasores persas das terras helênicas [Maratona (490); Salamina (480) e Platéia (479)], trouxe prosperidade no comércio, aumento de sua riqueza e, sobretudo, desenvolvimento e esplendor da sua cultura. Péricles (499-429 a.C.) deu uma Constituição democrática à Atenas, e a vida política e civil da cidade, tomou novos aspectos, despertando um novo interesse intelectual. A preocupação pelo mundo que foi característica das épocas anteriores, cede lugar agora, à preocupação com o homem. Neste contexto surgiram os sofistas, facundos oradores, retóricos e fundamentalmente pedagogos que tinham como meta a educação dos nobres, especialmente na Gramática, na Literatura, na Filosofia, na Religião e, principalmente na Retórica.

Os sofistas foram mestres que tiveram grande influência no 5º e 4º séculos antes de Cristo. Deles partiram críticas severas à religião praticada. Protágoras (c. 480-410 a.C.), por exemplo, partindo do princípio de que o homem é o senhor e padrão de toda realidade, conduziu seu pensamento pelo

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pleno subjetivismo, dizendo: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são" (Apud PLATÃO, 1988, 152a; 160c). Deste conceito, ele deduz o seu agnosticismo teológico que, segundo nos parece, era o único caminho possível para ser coerente com o seu pensamento relativista: “Quanto aos deuses, não posso saber se existem nem se não existem nem qual possa ser a sua forma; pois muitos são os impedimentos para sabê-lo: a obscuridade do problema e a brevidade da vida do homem" (DIÓGENES LAERCIO, 1947, X, p. 581-582).

Um seu contemporâneo, ainda que não sofista, Melisso de Samos, também partilhava do mesmo agnosticismo, conforme testemunho de Diógenes Laércio: “Dos deuses, dizia que não se deve dar explicação definitiva. Pois não se os pode conhecer” (MELISSO DE SAMOS, 1977, Doxografia 3).

Trasímaco de Calcedônia, entendendo que a justiça é sempre a do mais forte (PLATÃO, 1993, 338e-339a; 343c-344c), sustentava que os deuses foram inventados pelos governantes com o objetivo de assustarem os homens. No entanto, caso eles existam, não têm providência nem se preocupam com os assuntos humanos (PLATÃO, 1993. 336b; 338c; 1999, 889e). Aliás, o conceito de um deus indiferente aos problemas humanos, não era estranho no V/IV séculos a.C. conforme indica Platão (427-347 a.C.), ainda que combatendo esta acepção (XENOFONTE, 1972, I.4.10ss.; PLATÃO, 1999, 885B; 888c. Livro X, p. 402; 1993, 365d-e).

Outro sofista, Pródico de Céos (c. 470-?), entendia que a origem da religião estava associada à gratidão dos homens, que denominaram de deuses as coisas úteis à vida, tais como o sol, a lua, os rios, os lagos, o alimento e o vinho (CICERO, 1972, I.118; GUTHRIE, 1995, p. 221-224).

Platão (427-347 a.C.), com discernimento correto, entendia que um dos males de sua época era a corrosão da religião praticada por supostos sacerdotes e profetas – que ele chama de mendigos e adivinhos –, os quais exploravam a credulidade das pessoas, especialmente das ricas. Dentro do quadro descrito, uma das fórmulas usadas por esses líderes religiosos, era fazer as pessoas crerem que poderiam mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de sacrifícios ou, através de determinados encantamentos; os deuses seriam, portanto, limitados e aéticos, sem padrão de moral, sendo guiados pelas seduções humanas:

“Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de que têm o poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encantamentos, de curar por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime cometido pelo próprio ou pelos seus antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena despesa, prejudicarão com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a serem seus servidores – dizem eles – graças a tais ou quais inovações e feitiçarias. Para todas estas pretensões, invocam os deuses como testemunhas, uns sobre o vício, garantindo facilidades (...). Outros, para mostrar como os deuses são influenciados pelos homens, invocam o testemunho de Homero, pois também ele disse: ‘Flexíveis até os deuses o são. Com as suas preces, por meio de sacrifícios, votos aprazíveis, libações, gordura de vítimas, os homens tornam-nos propícios, quando algum saiu do seu caminho e errou’ (Ilíada IX.497-501)” (1993, 364c-e).

Platão faz críticas severas, especialmente a Homero e Hesíodo por terem forjado conceitos de Deus que, segundo ele, não correspondiam à realidade (1993, 377d; 382a-383a; 388b-d); por isso, tais lendas – que eram mescladas de elementos verdadeiros e falsos (1993, 377a) – não deveriam ser contadas às crianças e aos jovens, visto que elas corromperiam a formação dos mesmos. As primeiras histórias a serem contadas, deveriam ser as mais nobres, que orientassem no sentido da virtude (1993, 378e). Para ele, Deus estava acima de nossa capacidade racional e, mesmo que fosse percebido, seria incomunicável: “..., descobrir o autor e o pai deste universo é um grande feito, e quando se o descobriu, é impossível divulgá-lo a todos” ([s.d], 28).

Platão, com acuidade acentua que o Criador que formou o universo é um ser pessoal e bom:

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“Ele era bom, e naquele que é bom nunca se lhe nasce a inveja. Isento de inveja, desejou que tudo nascesse o mais possível semelhante a ele. (...) Deus quis que tudo fosse bom: excluiu, pelo seu poder, toda imperfeição, e assim, tomou toda essa massa visível, desprovida de todo repouso, mudando sem medida e sem ordem, e levou-a da desordem à ordem, pois estimou que a ordem vale infinitamente mais que a desordem” ([s.d], 29-30).

Há também um aspecto interessante: ainda que a questão do monoteísmo não seja discutida entre os filósofos gregos; daí: “deus” e “deuses” serem expressões intercambiáveis; há um fragmento – muito citado entre os antigos –, escrito por Antístenes de Atenas (c. 450-360 a.C.), primeiramente sofista e depois discípulo de Sócrates (469-399 a.C.), no qual diz, conforme menciona Cícero (106-43 a.C.): “Antístenes (...) em seu livro A Filosofia Natural, destrói o poder e a personalidade dos deuses ao dizer que embora a religião popular reconheça muitos deuses, há somente um Deus na natureza” (CICERO, 1995, I.32).

Considerações Finais:

Ao que parece, não existiu de fato ateísmo entre os gregos. A crítica feita à religiosidade oficial era, na realidade, uma crítica não aos deuses, mas, aos equívocos das concepções que ameaçavam à genuína compreensão teológica. Posteriormente, apologistas cristãos, inspirados nessas críticas e de outros filósofos gregos e romanos – “impacientes com as divindades inúteis” –, usariam métodos semelhantes para criticarem a religião grega e a de outros povos (GREEN, 1984, p. 16).

Nos séculos posteriores ao Novo Testamento, a questão da adoção de concepções filosóficas gregas não foi pacífica; havia quem concordasse (Justino e Clemente de Alenxandria) e outros que entendiam que o Cristianismo nada tinha a ver com o pensamento pagão (Taciano e Tertuliano). No entanto, o que acabou por prevalecer foi a consciência de que todas as coisas provêm de Deus e, que as concepções verdadeiras da realidade – ainda que nos lábios de ímpios (Cf. At 17.28;Tt 1.12) –, podem ser instrumentos úteis para a elaboração e transmissão da verdade divina. Isto porque qualquer tipo de conhecimento parte de Deus, que é a sua fonte inesgotável; portanto, toda verdade é proveniente de Deus, havendo inclusive pontes entre o que pensadores pagãos disseram e a plenitude da verdade conforme revelada nas Escrituras. Essas pontes evidenciam-se de modo transparente no comentário feito no segundo século, por Justino (c. 100-165 AD):

“.... se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que estimais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que apresentamos demonstração, por que nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? Assim, quando dizemos que tudo foi ordenado por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma de Platão; ao falar sobre conflagração, outro dogma dos estóicos; ao dizer que são castigadas as almas dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que as dos bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos poetas e filósofos; que não se devem adorar obras de mãos humanas, não é senão repetir o que disseram Menandro, o poeta cômico, e outros com ele, que afirmaram que o artífice é maior do que aquele que o fabrica” (1995, p. 37-38).

Agostinho (354-430) valoriza a Filosofia; contudo, para ele nem todos os chamados filósofos o são de fato, visto que o filósofo é aquele que ama a sabedoria. "Pois bem – argumenta Agostinho –, se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus" (1990, Vol. I, VIII.1).

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As palavras de Justino Mártir (c. 100-165 AD) permanecem como princípio regulador: “... Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável”. (JUSTINO DE ROMA, 1995b, XIII.4, p. 104).

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A Providência nas Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, de Matias Aires

Mannuella Luz de Oliveira Valinhas,Doutoranda PUC-Rio

[email protected]

Apresentação

Matias Aires Ramos da Silva de Eça nasceu em São Paulo a 27 de março de 1705 e lá viveu até os 11 anos de idade, quando se mudou para Portugal desde então, não mais retornou ao Brasil. Seu pai, José Ramos da Silva gozava de uma situação abastada na colônia, situação essa que se tornou ainda melhor no Reino.6 A fortuna paterna possibilitou a Matias Aires o estudo nos melhores colégios portugueses. Em 1722, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, licenciando-se em artes em 1723, abandonando-a em seguida. Em 1728, retirou-se de Coimbra, seguindo para Madri e, depois, Paris, onde se graduou em Direito pela Sorbonne, no período de 1728/1733. Além disso, freqüentara cursos de ciências positivas e naturais, principalmente química, física e matemática, com os mais importantes professores do seu tempo. De volta a Portugal, Matias Aires preferiu viver a maior parte do seu tempo no campo, mas a morte de seu pai, em 1744, o obrigou a ir para Lisboa assumir o cargo de Provedor da Casa da Moeda, que exerceria até 1761, quando foi, então, afastado por motivos misteriosos. Nesta ocasião, a escolha de viver retirado do convívio com o mundo social, que já tinha sido uma opção, passa então, a ser praticamente uma necessidade. Matias Aires faleceu a 10 de dezembro de 1763 e deixou dois filhos naturais.

Publicadas pela primeira vez em 1752, as Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, junto com o Problema da Arquitetura Civil Demonstrada (1777), são as obras mais importantes de Matias Aires. As Reflexões... tiveram ainda mais uma edição em vida do autor (1761) e outras duas póstumas, ainda no século XVIII: em 1778 e 1786 (todas de Lisboa). Durante todo o século seguinte a obra não tornou a ser reeditada, o que veio a ocorrer já no século XX, depois que Solidônio Leite chamou a atenção para

6 Ele era Familiar do Santo Ofício, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda. Para o conhecimento da vida de José Ramos da Silva e de seu filho, Matias Aires, ver: ENNES, Ernesto. Dois Paulistas Insignes: José Ramos da Silva e Matias Aires Ramos da Silva e Eça. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1944.

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o autor no seu Clássicos Esquecidos.7 A partir de então, seria relativamente comentado, apesar da carência de estudos que o tomassem como objeto principal.8

O texto é composto por 163 reflexões irregulares quanto ao tamanho, todas elas voltadas à exploração da vaidade e seus efeitos sobre o homem e a sociedade. A vaidade é encarada de uma maneira pretensamente neutra por Matias Aires, que, apesar de considerá-la um vício, vê também muitas qualidades e atitudes louváveis provindo dela, com seu modo analítico de observar que a natureza de cada coisa também se compõe de seu defeito.9 Assim, a vaidade pode ser negativa – quando se trata de engendrar vícios humanos; como também, num certo sentido, pode ser construtiva: quando se trata de fundamentar a representação (porque a vida é um teatro, e dificilmente encontra-se atitudes que não sejam representações) das virtudes.10 Assim, a vaidade pode ser dividida em: vaidades negativas (destrutivas) ou positivas (não são virtudes, mas podem gerá-las, através do desejo de parecer virtuoso aos demais, o que obriga o homem a agir de maneira efetivamente virtuosa, se o sentimento propulsor não foi “nobre”, e o resultado da ação for virtuoso, importa mais o resultado).

Análise da crítica às “Reflexões...”

Duas polêmicas básicas giram em torno da obra de Matias Aires: 1) como ele nasceu no Brasil mas se mudou para Portugal aos 11 anos de idade, um dos problemas se coloca em torno de qual a é tradição da qual ele faz parte: se da brasileira ou da portuguesa. Assim, alguns autores brasileiros nem sequer o mencionam como parte da nossa inteligência, como é o caso de Antônio Cândido na sua Formação da Literatura Brasileira.11 Posições parecidas com essa são as de José Veríssimo e de Wilson Martins. Ambos os autores, além de colocar Aires dentre a tradição portuguesa,12 tornando, portanto, quase que irrelevante o fato de ele ter nascido no Brasil, ainda o colocam como um escritor e pensador “menor”13, cujas idéias não se desenvolvem de forma brilhante ou que apresentam grandes novidades. Opondo-se completamente a essa visão, Ernesto Ennes situa a obra de Matias Aires como a primeira produção genuinamente brasileira e a maior contribuição do Brasil para a cultura portuguesa.14

7 LEITE, Solidônio. Clássicos Esquecidos. S/D 8 O estudo mais respeitado sobre Matias Aires é o de Tristão de Ataíde, publicado como prefácio às Reflexões... em 1942. Não encontrei registro de um estudo exaustivo sobre a sua obra. AMOROSO LIMA, Alceu (Thristão de Atayde). Introdução. In: AIRES, Matias. Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens ou Discursos Moraes Sobre os Effeitos da Vaidade offerecidos a El-Rei Nosso Senhor D. Josepho I. São Paulo, Livraria Martins, 1952. 1ª. Edição: 1752. 9 AIRES, Matias. Op. Cit. 1952. Número 125. 10 CÉSAR, Constança Marcondes. As "Reflexões" de Matias Aires. Revista Brasileira de Filosofia, vol. XIX, fascículo 73, janeiro-março,1969. 11 CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte; Itatiaia, 1979. (Vol. 1). 12 “Seria, pois, um espírito de pura formação portuguesa, apenas melhorando, ou somente modificado, quanto à cultura, pela estadia em França...” VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira:Bento Teixeira 1601 a Machado de Assis. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1969. Pág. 93. “Não é livro que pertença à literatura brasileira ou a nossa inteligência...” MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. São Paulo; Cultrix, 1978. (vol. 1)Pág. 142. 13 “(...) é um daqueles ‘clássicos menores’ que fazem a honra ‘das literaturas’, se é verdade que só grandes clássicos compõem ‘a Literatura’...” VERÍSSIMO, José. Op. Cit. Pág. 94. 14“(...) esse brasileiro ilustre, que pensou e escreveu a obra magnífica que é decerto das mais valiosas contribuições do Brasil Colonial para o cabedal literário da metrópole.” ENNES, Ernesto. A casa onde o Doutor Matias Aires pensou e escreveu as “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens”. In: Estudos Sobre História do Brasil. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1947. pág. 209. Ver também: ENNES, Ernesto. Op. Cit. 1944.

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Além disso, a vontade de firmar valores genuínamente nacionais, “brasileiros”, gera alguns preconceitos em relação à literatura produzida no período colonial, já que é complicado estabelecer definitivamente a nacionalidade de um escritor ou obra colonial, o que gera polêmicas do tipo: se um escritor nasceu no Brasil e estudou em Portugal, sua obra estaria inserida na tradição literária brasileira ou portuguesa?15 Tal indefinição pode contribuir para a falta de interesse em relação a autores cuja produção acaba por ser pouco considerada, justamente por não fornecer o índice esperado de natividade.16 Entretanto, mais significativo que apontar tais polêmicas como demonstrativas da inadequação da busca de uma nacionalidade genuína é o anacronismo da própria idéia de nacionalidade quando referida às práticas textuais do período colonial.

A outra polêmica que envolve Matias Aires é a da sua filiação intelectual: ele viveu em plena época do Iluminismo, viveu a maior parte do tempo em Portugal17, mas estudou na França durante alguns anos e admirava os progressos do conhecimento científico das ciências positivas e naturais. A polêmica básica gira em torno de classificá-lo ou como um remanescente do século XVII ou como um expoente do Iluminismo francês em Portugal. Aliás, a própria crítica Sua admiração pelas ciências positivas e a crença no progresso desse mesmo conhecimento torna-se mais visível no seu livro Problema da Arquitetura Civil Demonstrada, publicado em 1777 e elaborado por causa do terremoto de Lisboa, ocorrido no ano de 1755. Assim, costuma-se dizer que sua ligação com o século XVII estaria expressa de forma explícita nas Reflexões... por ter um caráter misantropo e pessimista; e seu espírito progressista se demonstraria no Problema da Arquitetura...

Essa posição que coloca o autor como que dividido e/ou tendo em si elementos de duas épocas diferentes, é expressa por Alceu Amoroso Lima. Este apresenta Matias Aires como um “elo” que ligaria duas culturas: “Matias Aires não foi um homem do seu tempo, ele foi empirista como o século XVIII; e providencialista como o século XVII (...).”18 Interpretadas dessa forma, As Reflexões... tornam-se, somente, um elo de transição entre duas épocas, o que as fazem perder muito de sua complexidade e valor. Matias Aires passa a ser, somente, um anunciador das novas idéias e métodos de conhecimento. A obra perde seu sentido de coesão e unidade ao ser tratada dessa forma. As principais razões usadas para filiar Matias Aires ao século XVII são: uma visão depreciativa do homem, 15 VERNEY (1713-1792), considerado o primeiro “verdadeiro” iluminista português, tem seu interesse voltado para os conhecimentos exatos para a educação pela razão, “ele fez a crítica do ensino de filosofia em Portugal à luz do ideário iluminista, mas sem nunca por em dúvida a superioridade da Revelação e da Graça divinas sobre o mecanismo da natureza e da razão humana. A presença desse princípio escolástico no bojo do “modernismo” português é uma prova de que não se pode, impunemente, ver no momento das reformas pombalinas da instrução pública uma atitude filosófica absolutamente contrária à tradição espiritualista portuguesa. Infelizmente, não foi essa a interpretação que prevaleceu na historiografia filosófica brasileira. O simples fato de o pensamento filosófico português ter-se voltado, no século XIX, sobre questões de origem, isto é, questões pertinentes à origem escolástica do seu tradicional aristotelismo, foi suficiente para rotular de ‘tradicionalismo’ essa atitude, com toda a carga semântica negativa do termo. Inversamente, o simples fato de a intelectualidade brasileira, no mesmo período, ter-se socorrido da língua francesa para modernizar-se, assimilando as questões e os temas da filosofia moderna por intermédio de autores franceses, foi suficiente para se constatar, falsamente, uma “diversidade original de interesses” entre as filosofias brasileira e portuguesa.” In: CERQUEIRA, Luiz Alberto A modernização no Brasil como problema filosófico. In: Impulso - Revista de Ciências Sociais e Humanas, vol. 12, nº 29, 125-136. Piracicaba/SP: Unimep, 2001. 16 A busca de uma literatura genuinamente nacional vai valorizar de maneira hierárquica a produção intelectual brasileira, como se gradativamente se fortalecesse um pensamento tipicamente nacional. Mais uma vez citando um comentário de José Veríssimo sobre Matias Aires: “Ele seria o melhor dos nossos moralistas se de fato a sua obra não valesse principalmente ou quase somente como uma curiosidade literária daqueles tempos, sem tal superioridade de pensamento ou de expressão que lhe determine a integração nas nossas letras, e menos qualquer repercussão ou influxo nelas”.VERÍSSIMO, José. Op. Cit. Pág. 94. 17 Caberia, ainda uma discussão sobre a especificidade da Ilustração portuguesa. Sobre isso, ver: MORSE, Richard M. O espelho de Própero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo; Cia. das Letras, 1995. 18 AMOROSO LIMA, Alceu. Introdução. In: AIRES, Matias. Op. Cit. 1952. Pág. 10.

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a certeza da corrupção completa e irremediável da natureza humana, a sua impotência diante do poder implacável da providência e de sua manifestação temporal; a outra principal característica que leva a classificá-lo como um remanescente do século XVII é sua crítica ao poder da razão como força capaz de guiar as ações humanas. Matias Aires coloca a razão como, ao mesmo tempo, efeito e causa da vaidade, mas é certo de que seu desenvolvimento é gerado pela vaidade do reconhecimento.19 Nesse sentido, ele não compartilha da fé iluminista na razão pura. Antônio Paim20 afirma que o pessimismo de Matias Aires muito mais o aproxima dos homens do século XVII do que dos iluministas, além do fato de ele não ter conseguido se libertar da escolástica e dos ensinamentos jesuítas. Assim também se exprime Ernesto Ennes, afirmando que apesar de a obra ter sido escrita no século XVIII, ela deve ser analisada como a de um autor do século XVII.21

Numa análise que valoriza o contrário exato dentro da obra de Matias Aires, está a interpretação de Jacinto Prado Coelho. Este autor afirma que o ceticismo de Aires em relação ao homem é totalmente compensado pela confiança na razão pragmática. Matias Aires seria, então, um “lúcido e fervoroso representante do Iluminismo em Portugal.”22 Retirar elementos que coloquem o autor como obscurantista ou iluminista significa não valorizar a obra como um todo, já que Matias Aires tinha idéias que poderiam tanto ser creditadas ao iluminismo quanto a uma descrença na razão como guia da humanidade em direção ao progresso. Tais idéias, por vezes contraditórias fazem parte de um tempo quando as novas idéias ainda não estavam definidas ou pelo menos cristalizadas em sua forma final (se é que idéias cristalizam-se), como usualmente as conhecemos.

Por fim, a análise de Constança Marcondes César23 parece-se com a de Alceu Amoroso Lima, apesar de ela não colocar o autor entre dois mundos distintos. De acordo com Constança, Matias Aires elabora uma filosofia cujo conteúdo moral pode ser encarado como contrário ao século das luzes, mas isso não a faz descolada do seu tempo. Apesar de as respostas dadas por Matias Aires não traduzirem de maneira absolutamente clara o “espírito iluminista”, as questões levantadas e abordadas pelo autor estão diretamente ligadas à problemática em voga durante aquele período. O autor tão somente discorda do uso desenfreado da razão como explicação mais correta para tudo o que existe, e sua aceitação sem problematizar que a razão também é uma faculdade humana, e, portanto, imperfeita.

Tais críticas partem da idéia de uma certa coesão doutrinária do século XVIII (e de outras épocas), e procuram encaixar as idéias de um autor às idéias que posteriormente foram destacadas e escolhidas ara representar um dado período, considerando todo o resto como obsoleto e desprovido de sentido ou de pertinência. Aqui pretende-se tentar fazer uma leitura das “Reflexões...” como uma produção do seu próprio tempo, sem procurar definir os pontos onde se encaixam a este ou aquele modelo teórico, mas como algo que faz sentido em si mesmo.

Após a breve exposição feita acima sobre as principais modelos de interpretação das idéias de Matias Aires, vamos ressaltar aquelas das quais nos ocuparemos neste texto: a idéia de “natureza”, de

19 “São raros os que nas letras buscam a ciência; o que buscam, é utilidade e aplauso (...)” AIRES, Matias. Op. Cit. Número 118. 20 PAIM, Antônio. “As idéias filosóficas difundidas na colônia até a expulsão dos Jesuítas”. In: História das Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo; Editorial Grijalbo, 1967. 21 “Embora pertençam ao século XVIII pelo momento em que foram escritas e pela data que apresentam na folha de rosto, a verdade é que a obra de Matias Aires tem de ser analisada como a de um autor do século XVII, (...). E é-o pelo carácter que apresenta, pelas concepções que formula, pelos temas que desenvolve, pela maneira de se exprimir, pelos conceitos que tira, pelas imagens que cria, pelos pensamentos que revela, pelas influências que manifesta.” ENNES, Ernesto. Op. Cit. 1947. Pág. 38. 22 COELHO, Jacinto do Prado. O Humanismo de Matias Aires: Entre o Cepticismo e a Confiança. Revista Brasileira de Filosofia, no. 57, janeiro-março, 1965. Pág. 06. 23 CÉSAR, Constança Marcondes. “As ‘Reflexões’ de Matias Aires” In: Revista Brasileira de Filosofia, vol. XIX, fascículo 73, janeiro-março,1969.

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“Providência” e de “nobreza”, sempre esclarecendo que o teor dessa abordagem não se propões a atrelar o pensamento de Matias Aires à idéias de seus estudiosos, antes, trata-se de tentar compreender como tais idéias são mostradas em sua obra, e como a essas noções se articulam à idéia de nobiliarquia como entendida pelo autor.

A Natureza e a Providência

A partir do fim do século XVII até início do século XVIII o paradigma mecanicista atinge a inteligência européia em diversas áreas, embora a arquetipologia mecanicista não seja uma invenção iluminista. A partir de então, a explicação da totalidade física torna-se mecanicista, o que não equivale a materialista ou ateísta. Longe de questionar a fé, tal mecanismo seria capaz de ilustrar a onipotência divina e de sua Criação, a partir da equivalência entre desígnios de Deus e Leis Naturais.24 Assim, o corpo, como explorado por Matias Aires, tem, na sua criação, o movimento inicial, que é dado por Deus, e continua em movimento através da alma, mas sua existência física está sujeita às leis da natureza, leis de perpétuo movimento, como as outras criações divinas. O sopro divino que anima o corpo humano está na alma, e o que anima a natureza está nos fenômenos naturais. O corpo humano passa, então, a fazer parte dessa mesma natureza, criada por Deus (a origem Divina do Homem e da Natureza não é questionada), mas com uma existência “profana”. Deus é o criador do movimento e sua quantidade é constante; ele não continua sendo a causa particular dos fenômenos, que, a partir do primeiro movimento, desdobram-se regularmente: “A vida consiste no movimento: quem primeiro o causa é que se diz ser o princípio dele; mas não se segue daqui, que a causa que depois se move fique com alguma porção do princípio que a moveu.”25

Há dois sentidos para o uso do termo natureza no texto de Matias Aires: quando se refere ao mundo natural, do qual os homens fazem parte, e que é uma criação divina; e outro, quando trata da essência das coisas, dos fenômenos naturais e do próprio homem.

No sentido de criação divina, a natureza compõe o mundo e suas partes, é um “retrato da Onipotência,”26 e sua grandeza indica a “majestade da causa.” A perfeição da natureza se mostra na força dos seus elementos e na admiração que ela nos causa, mesmo quando seu efeito é destrutivo: “A mesma desordem e confusão das coisas nos recreia; o furor dos elementos causa um espetáculo perfeito: o ar com seus bramidos, a terra com seus tremores, a água com seus combates, o fogo com seus incêndios.”27 A providência, para a conservação do mundo, suscitou em toda a natureza o amor; a conservação do mundo depende, pois, do amor, mesmo entre seres que nos parecem insensíveis. A natureza é uma metamorfose constante, que a tudo vai alterando para se perpetuar em movimento. Tudo o que compõe a natureza é passível dessa mudança, e destruição, inclusive o homem.28

Aquilo que compõe o homem, e que não se resume a seu corpo, ou seja, a parte moral do homem, sua essência, também é chamada por Matias Aires de natureza humana. A natureza humana propende para o mal, quanto maior é sua imersão na sociedade. Para Matias Aires, o homem não

24 O newtonianismo generaliza o paradigma mecanicista para o mundo orgânico e humano. Newton afirma que Deus é a Causa Primeira de todos os fenômenos naturais, e também o responsável pela harmonia da natureza.Ver: CUNHA, Norberto Ferreira da. “A Física do Corpo Humano em Luís Antônio Verney” In: CUNHA, Norberto Ferreira da. Elites e Acadêmicos na Cultura Portuguesa Setecentista. Lisboa; Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2001. pp. 219 a 246. 25 AIRES, Matias. Op. Cit. Número 160. 26 Ibidem. Número 94. 27 Ibidem. Número 94. 28 Quanto menos corpo, mais duráveis podem ser as coisas: aquilo que existe na imaginação dura mais porque não está submetido ao tempo da natureza. “A imaginação não é cousa tão sem corpo quanto nos parece; talvez que não tenha de menos que o ser mais sutil, e desta qualidade o que pode resultar é o ser mais durável.” Ibidem. Número 125.

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nasce bom, nem mal, nasce como uma infinita possibilidade. A vaidade é que vai esculpindo seu caráter, numa relação entre a resistência dos homens à vaidade e sua aceitação. À medida que aumenta a capacidade de racionalização do homem, aumenta sua vaidade, porque a vaidade é comunicada, através do discurso. Quando se nasce, apenas se pode distinguir as coisas por instinto, pela natureza pura. Apenas sente-se dor ou prazer em termos sensoriais, mas, com o tempo, a vaidade vai se comunicando, pelo contato social, e o bem ou o mal, não dependem de si mesmos ou de nós, mas da opinião.29 A partir de então, com a vaidade, a natureza do homem propende para o mal, “no exercício do mal achamos uma doçura e de naturalidade.”30 Quanto mais instruída, mais vaidosa fica a natureza humana, e mais dependente da aprovação dos outros para se alcançar a felicidade. Ao contrário dos partidários do racionalismo como possibilidade de libertação do homem, e essa libertação como condição de felicidade,31 Matias Aires afirma o verdadeiro contrário: não só que a razão não tem essa capacidade emancipadora radical como também que pode gerar mais insatisfação, uma vez que a razão quer e precisa do constante reconhecimento e aprovação de uma comunidade.

São raros os que nas letras buscam a ciência; o que buscam é utilidade e aplauso; este é objeto da vaidade, aquêle da ambição; outros há que quando buscam as ciências, nelas buscam tudo, não só interesse, louvor e aprovação dos homens, mas também um quase domínio deles; as letras são armas com que querem adquirir sobre os mais homens um direito de conquista.32

A idéia de distinção nobiliárquica

De acordo com Matias Aires, os homens são criados iguais por Deus, com um mesmo princípio que anima, conserva, debilita e acaba.33 A vaidade é que cria e comunica a diferença entre os homens ao longo da vida, através do contato social, da comunicação, “como contágio contraído no trato e conversação dos homens”34 e de acordo com o papel a ser representado no teatro do mundo.

A vaidade e a fortuna são as que governam essa farsa da vida; cada um se põe no teatro com a pompa com que a fortuna e a vaidade o põem; ninguém escolhe o papel; cada um recebe o que lhe dão. Aquêle que sai sem fausto, nem cortejo, e que logo no rosto indica que é sujeito à dor, à aflição e à miséria, êsse é o que representa o papel de homem. A morte está de sentinela, em uma mão tem o relógio do tempo, na outra tem a foice fatal, e com esta, de um golpe certo e inevitável, dá fim à tragédia, corre a cortina e desaparece (...) Assim acaba o homem, assim acabam as suas glória, e só assim acaba sua vaidade.35

29 Ibidem. Número 83. 30 Ibidem. Número 75. 31 Ver: HAZARD, Paul. A Felicidade. In: HAZARD, Paul. O Pensamento Europeu no Século XVIII – de Montesquieu a Lessing. Lisboa; Editorial Presença, 1989. 32 AIRES, Matias. Op. Cit. Número 128. 33 Ibidem. Número 79. 34 Ibidem. Número 38. 35 Ibidem. Número 79.

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Ao morrer, os homens se tornam mais uma vez iguais, apesar de tentarem, até o fim, até a hora da morte, ou mesmo depois dela, se distinguir através da vaidade: “nessa hora em que estamos para deixar o mundo, ou em que o mundo está para nos deixar (...) com vanglória antecipada nos pomos a antever aquela cerimônia, a que chamam as nações as últimas honras, devendo antes, chamá-la vaidades últimas.”36

As diferenças entre os homens encontram-se no exterior, há corpos mais débeis e mais robustos; no interior, ou seja, na essência, não há nenhuma, já que os homens são compostos do mesmo modo, e organizados da mesma forma, e por isso mesmo, sujeitos às mesmas vaidades e paixões. A própria natureza não fez os homens maus ou bons, e os homens não são, pois, virtuosos ou viciosos por natureza, mas por ocasião. O desejo de reconhecimento por parte dos outros homens leva ao encontro do vício ou da virtude, dependendo de qual garantirá maior admiração social. Essa mesma igualdade é algo insuportável para os homens, que por isso buscaram artifícios para se distinguir, e o principal deles, foi a instituição da nobreza. A nobreza foi formada pela composição de muitas vaidades “especulativas e sutis,”37 para fazer a sociedade crer que se pode comunicar características morais através do sangue.

Segundo Matias Aires, há três tipos de nobreza: a antiga, que se baseava na mitologia e na descendência de heróis para ser nobre; a moderna nobreza, que também é de origem, mas tem seu fundamento no sangue, na sucessão familiar; e a nobreza fundamentada nas ações nobres, no reconhecimento Real dessas ações.

Apesar de a nobreza européia moderna fundamentar sua distinção num elemento natural – o sangue – é a fortuna, e o “costume” (“o costume é tudo, as coisas não são nada; o de que fazemos tanto caso não é mais do que os homens significam ou explicam o respeito”)38 que dotam o sangue dessas características, e não a natureza. A natureza faz o sangue das espécies igual,

o mesmo modo, a mesma arte, os mesmos ingredientes de que a natureza serve para fazer o sangue de um leão , de um elefante ou de uma águia, são os mesmos de que se serve também para formar o sangue de uma pomba rústica, ou de um cordeiro manso; as produções são diversas, a fábrica é a mesma; não há diferença nos princípios, nas figuras sim.39

Mas, enquanto as espécies animais se distinguem umas das outras por suas características particulares,40 os homens, querem se distinguir em relação aos mesmos homens, então encontraram no sangue um depositário de características morais, supostamente perpetuadas pela família, através da descendência.41 As características poderiam existir no sangue de modo “intelectivo, imaterial e

36 Ibidem. Número 2. 37 Ibidem. Número 139. 38 Ibidem. Número 87. 39 Ibidem. Número 138. 40“Se o elefante fôsse presumido, seria por ter corpulência, não por ter o sangue de elefante: e ainda no que toca a corpulência, a presunção seria a respeito de outros animais de menos estatura, e não a respeito de outros elefantes.” Ibidem. Número 139. 41“Talvez por entenderem que as sucessões se continuam pelo sangue, e que êste, derivado de uns a outros, sucessivamente continua em uma mesma descendência, conservando nela um caráter particular, distinto e determinado.” Ibidem. Número 141.

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etéreo, mas parece que nem assim podia ser, porque aquilo que é vão, de nenhuma sorte existe.”42 Os inconvenientes desse tipo de nobreza, além da sua própria fragilidade por ser algo criado arbitrariamente pelo homem, é que não suporta a prova da experiência: como as árvores, que parecem que de um mesmo tronco saem mais galhos, e que esses participam da mesma seiva vital, sendo, portanto uma mesma árvore, mas, isso é só aparente, porque muda a terra, e o alimento, e por isso o sangue das árvores. Assim acontece com os homens: o sangue está em movimento e em mudança, daí que sua constante renovação é o que garante a vida, porque a falta de movimento e de transformação significa morte. De modo que o sangue, não pode ser o depositário da nobreza, já que é mutável e incerto. A vaidade, apoiada na história é que dá o fundamento à essa nobreza que se diz de sangue.

Deixemos finalmente o sangue em paz; êle não descansa, e todo o seu trabalho é para ser sangue, e não para ser êste ou aquêle sangue: de que serve a arte de introduzir naquele líquido admirável, qualidades arbitrárias e civis, se a verdade é que êle só tem as qualidades naturais? Para que é fazer do sangue autor daquilo que só é autor a vaidade.43

A nobreza moderna é uma espécie de corrupção da nobreza antiga, que, segundo o autor, tinha mais “corpo”, isso porque iam buscar nos deuses os seus ascendentes, ficando, assim, humanos, mas participando de certas diferenciações extra-humanas, o que possibilitava, então, uma diferenciação mais “real”, uma vez que não se reconheciam como inteiramente homens, justificando, pois, uma diferença real em relação aos outros homens. Com o fim da crença nos deuses, a nobreza, que poderia se extinguir, encontrou outra forma de existência: humanizou-se por completo, a mitologia converteu-se em genealogia.

Há um terceiro tipo de nobreza, que diferencia os homens por sua ação, por suas obras, por atos heróicos e particulares e não por uma suposta natureza distinta. Assim essa nobreza só pode ser dada pela Providência que é capaz de diversificar o que é igual. A principal diversidade da Providência é o monarca, que tem a origem do seu poder em Deus, que o colocou na posição de “árbitro do mundo”44 e, que, portanto, participa, de certa forma, da substância divina, podendo, pois, reconhecer nobreza nos atos de alguns homens, e oferecer títulos de nobreza a esses indivíduos por suas ações. Assim, a nobreza só existe por vontade real, e não por diferenças inatas dos homens. Esse tipo de graça é pessoal, e não pode ser passada através de sucessão familiar ou de outro tipo:

Os Reis são os que glorificam os homens, isto é, os que os enobrecem, e desta sorte, recebem a nobreza por graça, e não por sucessão; por favor, e não por herança; permanecem nobres enquanto permanece a graça que os ilustra; persiste aquela prerrogativa enquanto o favor existe; se êste se retira, logo a nobreza acaba.45

42 Ibidem. Número 140. 43 Ibidem. Número 143. 44 Ibidem. Número 163. 45 Ibidem. Número 163. Duas considerações merecem ser feitas a partir desse trecho: Matias Aires mais uma vez reforça que a origem do poder Soberano encontra-se em Deus, e é dada pessoalmente ao Rei; e, o fato de admitir a nobreza heróica, por feitos e obras, mas ofertada por graça somente pelo Soberano, indica que o autor inclina-se à centralização monástica que será colocada em prática por Pombal (sem querer aqui colocar Matias Aires como um possível atevisor do pombalismo ou “ideólogo” do mesmo), além de ser um “elogio” à nobiliarquia portuguesa, que se distinguia das demais nobiliarquias européias – baseadas na posse de terras – por adquirir

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Para Matias Aires, a nobreza e seu contrário, a vileza, são substâncias incorpóreas, e por isso, vãs. A valorização das coisas que existem, coisas, portanto, corporificadas, é pelo fato de que, se elas existem, são criações divinas, e os costumes, a nobreza e as diferenças sociais são quimeras sem valor algum, pois são criações puramente humanas. A nobreza pode ser uma forma de escapar às leis e se dar aos vícios, porque garante impunidade. Mas, assim como a vaidade, ou outros vícios, se bem usada – ou seja, através de merecimento e reconhecimento Real, a instituição da nobreza faz com que a sociedade funcione de maneira mais organizada:

todos sabem que os homens são iguais, enquanto homens; mas nem por isso deixam de entender que há uma nobreza que os distingue, e que os faz ser homens melhores.46

O certo é que a nobreza bem entendida, não se fêz para canonizar o erro; ela foi sabiamente achada para servir de estímulo e companheira das virtudes; para enobrecer as ações ilustres, e não para ilustrar as viciosas; para ser atendida pelo que obrasse digno de atenção, e não pelo que fizesse indignamente, para servir a razão, e não para a dominar; para ser exemplo, e não regra; para fazer os homens bons, e não para os perverter; para os distinguir pela nobreza de espírito , e não pela nobreza da carne; para os fazer melhores de uma melhoria de ânimo, e não de corpo: finalmente, para fazer mais clara a luz, e não para fazer clara a sombra.47

Apesar de todos os homens serem iguais em essência, há algumas particularidades físicas que distinguem os homens; estas são expressas pela semelhança entre os membros de uma mesma família ou pelas diferenças entre os povos de regiões distintas, de acordo com o clima e região: “os indivíduos, porém, de cada espécie, não são tão uniformes, que não tenham em si um caráter particular com que se distinguem uns dos outros.”48 A cor é uma das mais fortes marcas de diferenciação entre os homens. Mas essa distinção é uma marca natural, somente física, passível, pois, de mudança, uma vez que está submetida ao tempo (por isso mesmo, extinguível) e a novas composições.49 Essas diferenças naturais poderiam ser um argumento a favor da idéia de nobreza, mas, sendo uma marca natural, feita pela Providência, não pode ser usada para fundamentar uma instituição arbitrária e criada pelos homens como a nobreza de origem.

Os homens podem apresentar diferenciações físicas, porque na Criação houve divisão de uma mesma matéria original, o que garante a igualdade do ser. Todos os homens são compostos a partir dos mesmos elementos, tem as mesmas propriedades e, sobretudo, o mesmo fim.

títulos por seus feitos. Ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 2004. Fica, aqui, uma questão, a da sucessão do trono. Como é escolhido o Rei, se o sangue, segundo Matias Aires, não carrega características extra-biológicas? Poderíamos pensar que o sangue Real, este sim, seria portador dessa vontade da Providência? 46 AIRES, Matias. Op. Cit. Número 155. 47 Ibidem. Número 161. 48 Ibidem. Número 157. 49 Ibidem. Números 157/158.

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Conclusão

As idéias professadas por Matias Aires no livro “Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens”, são idéias marcadas pela inserção nas discussões que estavam em voga por toda a Europa Central. As questões da natureza humana, da Providência Divina, da racionalidade todas participam dos mais acirrados debates. Situar Matias Aires como, por um lado, representante de atraso português é uma redução que não permite que se compreenda sua obra em seus próprios termos, bem como colocá-lo como representante das Luzes em Portugal também é destacar algumas passagens em suas obras em detrimento de outras, buscando essa adequação. A solução de tratá-lo como “híbrido” entre duas culturas ainda não é a forma mais acertada, uma vez que tal designação parte do pressuposto de rupturas bruscas entre os séculos XVII e XVIII, como se ambos fosse irreconciliáveis. Neste texto, tentamos compreender de que maneira o autor articula suas idéias acerca de Providência e Natureza dentro de uma lógica que faz sentido sem recorrer a enquadramentos doutrinários.

Fonte:

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COELHO, Jacinto do Prado. “O Humanismo de Matias Aires: Entre o Cepticismo e a Confiança” In: Revista Brasileira de Filosofia, no. 57, janeiro-março, 1965.

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RELIGIÃO E SOCIEDADE EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS: O ESPAÇO DA CRÍTICA

Philippe Delfino Sartin

Graduando em História pela Universidade Federal de Goiás

INTRODUÇÃO

Memórias de um Sargento de Milícias – ou seja, de como a personagem principal, Leonardo, malandro inveterado, filho do burlesco Leonardo Pataca, tornou-se um sargento de milícias. E como isso foi possível na sociedade carioca à época de Dom João VI.

Publicando aos capítulos num suplemento de jornal, Manuel Antônio de Almeida elaborou uma narrativa crítica sobre os costumes de seu tempo. A obra é uma atualização de determinado aspecto considerado definidor da sociedade de então. Dessa perspectiva, as conclusões morais adquirem um caráter secundário. O livro lança mão de determinado recurso estético para expressar as condições da ação humana nos interstícios do Rio de Janeiro.

Conta a tradição, que o romance de 1854 é fruto do trabalho do autor sobre os relatos de um velho sargento de polícia, quando das suas peripécias no âmago das relações de poder, sua convivência com conflitos e, sem dúvida, uma visão particular a respeito do agir.

É uma crítica da relação entre os homens e seus valores. Possui, sobretudo, um caráter universal.

Da oscilação. Em artigo por diversas vezes citado, Antônio Cândido coloca as Memórias como o primeiro romance genuinamente brasileiro, imune a visões do tipo elitista que até então predominavam – se não intencionais, ao menos ao nível da linguagem.

E, aplicando à obra sua teoria crítica1, chega à seguinte conclusão:

“O seu caráter de princípio estrutural, que gera o esqueleto de sustentação, é devido à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas como modos de existência que por isso contribuem para atingir essencialmente os leitores.” (1970, p. 12)

Tais circunstancias definidoras da ação humana representam para ele, uma dialética entre ordem e desordem que constrange a personagem principal, Leonardo, que, sendo o eixo narrativo, agrupa à volta de si estereótipos de cada um dos pólos. Assim teríamos, simetricamente, Luisinha, objeto dos primeiros amores de Leonardo e Vidinha (o nome é significativo, talvez irônico), uma aventura de nosso memorando:

Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico. A primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem não há relação viável fora do casamento, pois ela traz consigo herança, parentela, posição e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua graça e da sua

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curiosa família sem obrigação nem sanção, onde todos se arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e do prazer ” (1970, p. 15).

O predomínio da primeira situação como desfecho da narrativa, representa um compromisso romântico típico – marcando inclusive uma posição sintética em relação ao conjunto da obra, que, em seu início, não aderia sequer às imposições formais de um romance, correspondendo mais a uma descrição em quadros e núcleos relativamente independentes (se assemelhando mais a uma novela), da sociedade joanina. Voltaremos a esse ponto adiante.

Citando mais uma vez Antônio Cândido,

“Poderíamos dizer que há, deste modo, um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo, depois de terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois pólos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pólo convencionalmente positivo” (1970, p.13).

Por outro lado, a idéia de um “mundo sem culpa” advém da equivalência dos dois tipos de ações – ordeiras e desordeiras, conforme o plano social em que as personagens principais se encontrem.

Como se vê, é uma argumentação extremamente sólida. Mas eu gostaria de fazer duas perguntas que Antônio Cândido não fez: o que significa, dentro de Memórias de um Sargento de Milícias, este “oscilar entre dois pólos”? E, num segundo momento, qual o sentido das críticas religiosas do seu autor? Este artigo tenta responder a tais indagações.

HISTÓRIA E CRÍTICA

Um livro – um mundo, uma perspectiva sobre o mundo, uma perspectiva. Sobretudo, uma unidade. Pressuposto indispensável à interpretação, e no entanto certamente fragilizado no caso de Manuel Antônio de Almeida, onde se nos afigura, não dissociado de um certo esforço ordenador, duas posições, ou dois momentos. Não considero que essa divisão obedeça a limites internos de composição rígidos.

O primeiro desses momentos remete à escolha do referencial da narrativa, ou seja, a delimitação de um tempo e um espaço onde há a comunicação entre a ficção e a História2. Quando o autor se refere à sociedade carioca que podemos situar entre 1808 e 1821, ele está na realidade falando de sua própria época, ou seja, por volta da década de 1850.

“Era no tempo do rei”, na primeira página, a primeira linha. Frase definidora, porque breve e direta, abre remetendo a um sentido, causa além disso uma impressão3. Não se trata de qualquer tempo. O laconismo se autoriza pela suposição da comunidade de juízos a respeito do período joanino no Brasil por parte dos leitores, “certa atmosfera cômica e popularesca” (CÂNDIDO, 1970, p. 5). Época alvo das invectivas do autor – “bela época” (p. 11), “abençoada época” (p. 12), “devotos tempos” (p. 24), e de seus grifos irônicos; época que concorre como instrumento das críticas de Manuel Antônio de Almeida.

Críticas cujo alvo são, digamos sem rodeios, não as relações dialéticas entre ordem e desordem, ou o embate entre uma classe dominante e uma camada baixa – e isso bem notou Antônio

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Cândido - tampouco da obtenção de juízos morais sobre as transgressões das personagens. Ela ocorre na relação entre o público e o privado.

O autor está teorizando sobre a sua realidade social, histórica. E ele o faz destacando determinado aspecto que permeia as relações entre as personagens bem como as suas caracterizações, isto é, a distância entre as motivações individuais e as justificações sociais. O tempo do rei é pleno de significações porque é propício historicamente – por ser origem, por assim dizer – desse aspecto sobre o qual o autor se conscientizou e se propôs a retratar.

O tempo do rei estaria carregado de comportamentos regidos pela plasticidade das performances num nível público (note-se o destaque dado a influência da condição física dos meirinhos de “outrora” na sua imponência, no primeiro capítulo), os compromissos com certa camada social e a contradição causada entre os imperativo da vontade popular. O caso do batismo de Leonardo é ilustrativo: “Fazia um belo efeito cômico vê-lo (o Leonardo pai) em trajes de ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhando um monótono zunzum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria” (parte I, capítulo I, p. 14).

É notável, mesmo nas composições humorísticas – o humor é sem dúvida um objetivo explícito -, a preocupação do autor com o aspecto formal, a conduta, as representações corporais, os gestos, o que parece falso, o que transgride; ele critica as aparências, a formalidade, o drama, o ritual, a pompa, a caricatura, o inautêntico.

O Leonardo Pataca, enquanto meirinho, uma classe que “gozava então de não pequena consideração” (parte I, capítulo I, p. 11), constitui o romântico, meloso, “romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha” (parte I, capítulo IV, p. 26), supersticioso, que dá mais badaladas no sino da Igreja à hora do nascimento da filha só por precaução, que tira fortuna, enfim: o tipo decadente do romântico.

Talvez a frase definidora do romance seja uma a respeito de um José Manuel, pretendente ardiloso com ares de golpista que se coloca entre Leonardo e Luisinha: “Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara” (parte I, capítulo 21, p. 89). Eis aqui a matéria para um livro.

RELIGIÃO

Matéria que exige diversas considerações. Que se tornarão mais justificadas quando tratarmos da religião. Há pelo menos três eventos religiosos que eu pretendo destacar.

O primeiro deles se passa no início da narrativa (capítulo IV). Leonardo Pataca, doido de amores por uma cigana, adentra um mangue nos arredores da cidade em busca de um mago, para “tirar fortuna”, isto é, para conseguir os favores amorosos da cigana, agora fora de seu alcance. São-lhe receitadas um sem-número de práticas mágicas e, não surtindo o efeito desejado, decide-se à submissão a um ritual que constituiria, palavras do autor, a “última prova”, interpretemos, o ápice das técnicas dominadas pelo mago. Acontece que durante a cerimônia, são todos surpreendidos pela chegada do major Vidigal “o árbitro supremo” que “exercia enfim, uma espécie de inquisição policial” (parte I, capítulo V, p. 28), e o meirinho é preso, sendo depois alvo constante das piadas.

O segundo evento abre a segunda parte do romance. Oura vez Leonardo Pataca é o protagonista. Desta vez, trata-se do nascimento de sua filha e das práticas da sua comadre – parteira, beata de mantilha, benzedeira de quebranto. São narrados os procedimentos rituais para a execução da operação especializada – com certo exagero, certamente – que envolve o que muitas vezes é chamado de sincretismo religioso. Aqui não há qualquer ridicularização de nenhuma das ações.

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Algumas considerações devem ser feitas sobre esses dois episódios. Ambos mantém um vínculo estreito com práticas mágicas.

“Decidiu-se finalmente a sujeitar-se à última prova, que foi marcada para a meia-noite em ponto na casa que já conhecemos. À hora aprazada lá se achou o Leonardo; encontrou na porta o nojento nigromante4, que não consentiu que ele entrasse do modo em que se achava, e obrigou-o a pôr-se primeiro em hábitos de Adão no paraíso, cobriu-o depois com um manto imundo que trazia, e só então lhe franqueou entrada. A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro, que não nos cansaremos em descrever; entre outras coisas, cuja significação só conheciam os iniciados nos mistérios do caboclo, havia no meio uma pequena fogueira. Começando a cerimônia o Leonardo foi obrigado a ajoelhar-se em todos os ângulos da casa, e recitar as orações que já sabia e mais algumas que lhe foram ensinadas na ocasião, depois foi orar junto da fogueira. Neste momento saíram do quarto três novas figuras, que vieram tomar parte na cerimônia, e começaram então, acompanhando-os o supremo sacerdote, uma dança sinistra em roda do Leonardo (parte I, capítulo IV, pp. 26-27).”

Por outro lado, no caso da comadre:

“A padecente estava, porém a morrer de susto: nem se moveu à exortação da comadre. Entretanto o tempo ia passando, e a pobre rapariga a sofrer; já lhe tinha a comadre arranjado de um modo diverso os bentinhos no peito, já tinha inclinado mais sobre a cama a palma benta, e ainda nada de novo (...) Continuava o tempo a passar: a comadre saiu do quarto e veio acender uma nova vela benta a Nossa Senhora, e depois de uma breve oração voltou ao seu posto. Tirou então do bolso da saia uma fita azul comprida e passou-a em roda da cintura a Chiquinha; era uma medida de Nossa Senhora do Parto” (parte II, capítulo I, pp. 98-99)

Observemos os adjetivos do primeiro caso: nojento, imundo... implicam sem dúvida um juízo do autor. Ainda temos a fogueira, de significado obscuro num suposto ritual de necromancia5, sem falar da nudez de Leonardo; a dança “sinistra”. Tudo parece muito supérfluo, muito desnecessário. Do ponto de vista da prática religiosa certamente. Mas não da narrativa, pois o suor que caracterizava o Leonardo após repetir o ritual por ordem do Vidigal, certamente tinha origem no seu esforço em dançar e na fogueira. São elementos religiosos se prestando ao destaque do ridículo.

Vejamos mais um trecho:

“Naquele tempo acreditava-se muito nestas coisas, e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão. Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os industriosos! E não era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições” (parte I, capítulo IV, p. 25)

Há sempre os que abusarão da boa fé, como caso do nigromante ou da D. Maria, tia de Luisinha, sempre com suas demandas; também José Manuel consegue impressiona-la com seu desempenho em processos judiciais, visto que a mulher era louca por uma “demanda”. Tanto o ritual quanto o processo, são criticados por serem performances, encenações, ritos desnecessários, que eram costume inclusive:

“D. Maria tinha bom coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres, porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes: era a mania das demandas”(parte I, capítulo XVII, p.75)”.

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Num caso a cabana, no outro o tribunal. São as encenações que preocupam nosso autor. Como as festas religiosas se prestando à ostentação, feitas não por fé, mas por moda.

No segundo caso que eu havia destacado, não há quaisquer juízos desse tipo. Extremamente relevante, é a ausência da palavra superstição6 para designar as práticas da Comadre.

O que diferencia esses dois episódios, é que na relação entre a parteira e a cliente (parturiente), há um comprometimento de ambas as partes entre si, e como prática religiosa. No caso do mago e do consulente, apenas o Leonardo acredita nos efeitos da magia a que se submete. Ainda: não há pagamento no caso da parteira, mas há no caso do caboclo. As críticas se dirigem a este e não àquela. O que se conclui é que o juízo negativo não está calcado sobre a religião ou sobre a magia (para manter uma separação), e sim sobre a sua prática enquanto linguagem que recobre outras motivações que nada têm de espirituais. É uma crítica à falsa religiosidade7.

Crítica da religião – enquanto linguagem para expressão de vontades individuais, como uma técnica ou uma ferramenta. Como no caso da fortuna (para ambos os lados – o mago que quer lucrar, e o Leonardo que quer a cigana), no caso do Pataca falando em danação8, do mestre de cerimônias que quer poder (a ser analisado maio adiante), do compadre que quer o afilhado (Leonardo Filho) rico e bem posicionado como padre. A questão é da religião deslocada de seu contexto. Não há quaisquer preocupações soteriológicas. Manuel Antônio de Almeida critica o imediatismo. Talvez pela presença de uma mentalidade católica9. No caso da comadre, não há críticas – ela não usa de meios religiosos para conseguir prestígio, ou levar a bom termo os planos de casar seu afilhado. Ela tem uma posição bem definida: usa do sincretismo (não enunciado, como vimos) para algo bom (o nascimento de uma criança).

II

É aqui que percebemos o segundo momento a que eu me remetia no início da minha argumentação. A desordem não repousa num compartimento social. Oscilar entre ordem e desordem significa poder escolher entre ambas. Significa que, primeiramente, essa distinção é inútil; em segundo lugar, que ela está nas personagens; em terceiro, que os valores estão sendo relativizados pelo autor. Há duas ordens diferentes. Há uma diferenciação entre o que é a tradição e o que não é. Há tanta ordem em uma missa católica quanto na cerimônia do parto realizada pela comadre10. E tanta ordem aqui, quanto desordem no caso do caboclo do mangue, onde tudo cheira a embuste.

O autor abstrai. Fazendo isto, situa a religião como uma escolha. Num primeiro nível o catolicismo e a magia11. A Igreja se torna uma alternativa. Num segundo nível, a religião se torna uma alternativa.

A escolha é sentida quando surge a questão da inversão. Toma-se consciência de uma ordem que é transgredida. No mangue não há ordem qualquer.

Mas, quando não se faz uma inversão, não há transgressão.

Ordem e desordem – para ser mais correto – ambigüidade, que é vivida num nível existencial e não social.

Esse é o sentido das abstrações. Vejamos num exemplo, a percepção aguçada do autor: “(...) decidiu por isso a buscar com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar” (parte I, capítulo IV, p. 26), a respeito do infortúnio coma cigana e a busca do caboclo do mangue. Ele está teorizando sobre a ação humana.

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A ambigüidade das personagens é utilizada pelo autor para captar os dois lados extremamente coerentes (portanto, passíveis de escolha), duas tradições – uma oficial, objeto de da alta literatura até então, comprometida com a Igreja e o Estado, e outra, anônima, das ruas,onde impera a vontade individual e também os agrupamentos, os objetivos comuns – a diversão, a sobrevivência diária, a família, a comunidade.

Isso se aplica ao caso da comadre parteira e não do mago do pântano. Aqui não há coesão. O transgredir toma o lugar do escolher.

Nos momentos de crítica está manifesta a consciência histórica do autor; em outros, a tradição é dominante, pois ele apenas retrata as ditas superstições sem ao menos enunciá-las enquanto tais. No primeiro caso, é o embuste que se afigura por trás do ritual (ritual magic12) que é objeto de crítica; no segundo não há o distanciamento (desprendimento, separação) necessário para tornar as operações do parto enquanto mágicas. Há reciprocidade, relação. Há sim, e isso é extremamente interessante, a crítica ao não comprometimento com o sincretismo, como se vê: “Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isto. ‘Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.’ São palavras de Jesus Cristo! Já se vê que a comadre era forte em história sagrada” (parte II, capítulo I, p. 99). Isso me lembra uma passagem de Victor Hugo: “Não sejas feiticeiro, mas, se o és, faze teu ofício.”13

Mas porque estava eu a falar de consciência histórica? Trata-se do seguinte: Manuel Antônio de Almeida cria, no interior de sua narrativa, uma metáfora para expressar sua conscientização de um aspecto que lhe chama atenção, e que conforme foi dito várias vezes, é o falso, a hipocrisia, a distancia entre ação, intenção e justificação. Essa metáfora é o “tempo do rei”.

Criando essa heterogeneidade temporal propícia a uma crítica da transgressão histriônica - porque por ela dominada – o autor tem condição de ilustrar as conexões que estabelece para as orientações da ação humana. Quando as ações se afiguram ridículas, percebe-se o esforço em deixar transparecer uma diferenciação temporal – é o exagero da inversão que se atualiza com a narrativa de um tempo de performances exacerbadas. Ele reelabora os dados da sua realidade social até transformar as personagens em tipos ambíguos, facilmente caracterizáveis por suas posições. Exagera para ilustrar. Com Stuart Clark14 ou Roberto DaMatta15, podemos dizer que o autor está ritualizando.

“Desse modo, o ritualizar, como o simbolizar, é fundamentalmente deslocar um objeto de lugar – o que traz uma aguda consciência da natureza do objeto, das propriedades do se domínio de origem e da adequação ou não ao seu novo local. Por isso, os deslocamentos conduzem a uma conscientização de todas as reificações do mundo social, seja no que elas têm de arbitrário, seja no que tem de necessário. É por isso que o mundo do teatro, com sua verdadeira artificialidade e arbitrariedade, é capaz de comover. Pois vejo no artificial, e no representado uma representação do meu mundo social. E, pelo artificial, acabo por me comover e me mobilizar pelo real que, no palco e por meio de atores, está inteiramente deslocado” (DaMatta, 1997, p. 99).

III

A oscilação então num pano existencial. O Leonardo como herói. Leonardo é aquele que não mantém as aparências. Não se reprime, não se submete à ordem, ou ao que uma determinada moral assim que assim define a ação humana. É o herói porque consegue romper com quaisquer impedimentos: nem a malandragem (a liberdade? A desordem?) o prende, tanto que não se impede de casar quando a ocasião surge, não tendo nunca tentado senão por amor, não por interesse.

Isso nos leva até aquele terceiro evento religioso ao qual me referia acima. Quando Leonardo era ainda criança, ocupava o cargo de ajudante de missas. Após realizar uma travessura – jogar cera

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derretida de uma vela que segurava, durante a missa, numa vizinha que lhe “agourava” – e receber o sermão do mestre-de-cerimônias, decide se vingar e humilha-lo em público durante um sermão que tradicionalmente proferia – e era então muito aguardado -, revelando diante de sua comunidade, seu caso com uma cigana (sim, a mesma de Leonardo Pataca).

O episódio, descrito no capítulo 14 da primeira parte, traz consigo algumas curiosidades. A primeira delas é a que abre o episódio:

“O mestre-de-cerimônias era um padre de meia-idade, de figura menos má, filho da Ilha Terceira, porém que se dava por puro alfacinha: tinha-se formado em Coimbra; por fora era um completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanapalo, que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; era pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido; porém interiormente era sensual como um sectário de Mafoma” (parte I, capítulo XIV, p. 60).

Aqui temos outra vez a crítica quanto à ostentação de uma figura que contraste coma verdadeira pessoa. A farsa. O padre que se envolve com mulheres, era, aliás, algo relativamente comum na literatura inquisitorial lusófona. Mas quero destacar acima de tudo, as relações que Manuel Antônio de Almeida estabelece: quando trata das condições existenciais do mestre-de-cerimônias, utiliza-se de uma metáfora, “por fora era um completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanapalo”; uma ilustração, enfim, para tornar o leitor sensível às conexões estabelecidas e às críticas que pretende empreender. Mais relevante ainda, é o que vem a seguir: “que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro”. Ou seja, o autor está aludindo à atividade literária e a uma tradição satírica. Assim, não apenas abstrai quanto à atividade humana, mas ao ofício do literato: evidenciar as contradições e o ridículo de se sustentar as aparências numa sociedade aristocratizada.

O segundo ponto de destaque é um embate travado entre o mestre-de-cerimônias e um pregador italiano que começou o sermão em função de seu atraso – obra de Leonardo.

“Foi uma verdadeira cena de comédia, de que a maioria dos circunstantes ria-se a não poder mais; os dois meninos, autores principais da obra, nadavam em um mar de rosas.

— Ó mei cari fratelli! exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga, la voce del la Providenza...

— Semelhante às trombetas de Jericó, rouquejava por outro lado o mestre-de-cerimônias...

— Piage al cor... acrescentava o capuchinho.

— Anunciando a queda de Satanás, prosseguia o mestre-de-cerimônias.

E assim levaram por algum tempo os dois, acompanhados por um coro de risadas e confusão, até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto, murmurando despeitado:

— Che bestia, per Dio!” (parte I, capítulo XIV, p. 63).

Reparemos nas palavras de ambas as partes, pois elas formam uma verdadeira antítese, que pode ser ilustrada assim:

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Mestre – poder – voz rouca – trombetas – queda do diabo

X

Capuchinho – voz meiga, aflautada – caros irmãos – voz da Providência – calma ao coração

Notável é a alusão ao diabo. Como em toda a narrativa, em que o termo aparece modificado (endiabrado, diabrura), por 24 vezes, aqui tem também uma conotação interjetiva. Na fala do mestre-de-cerimônias, a linguagem é um instrumento; o foco é a performance, é o ato de falar. O diabo, assim como as outras palavras, são aqui manifestações da força (a rigor, num sentido religioso, cratofanias). Isto é, concordando com esse uso da religião para se promover, temos o sermão, que, nos diz Manuel Antonio de Almeida, “aquele sermão anual era o meio por que ele esperara chegar a todos os fins, a que contava dever toda a sua elevação futura; era o seu talismã” (parte I, capítulo XIV, p. 61).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Como sempre acontece aquém tem muito o que escolher (...)” ( parte I, capítulo XVIII, p. 79). Leonardo não tem padrão algum eu seguir; regra e transgressão têm para ele o mesmo valor.

As críticas do autor caminham na seguinte direção: trata-se da ausência de “valores autênticos”, ou de uma clareza na interiorização das normas morais – que torna julgamentos de tal ordem irrelevantes – que orientem as ações no desdobrar existencial da personagem. Uma crítica à decadência de alguns ideais. O tempo do rei é um artifício, irônico, porque não trata-se do tempo do rei. É o tempo da obra. Esclarecem-se assim as críticas aos sistemas de ensino de então. Tanto o mestre-de-aulas (parte I, capítulo XII, p. 54) quanto o mestre-de-rezas (parte II, capítulo IV, p. 110), são os mais afamados porque são os mais rígidos. Ora, se algo é demonstrado no enredo é que severidade pouco adianta se não há um sentido, ou se um valor não é defendido sem que haja contradição – para nosso autor isso é virtualmente impossível.

Quanto à ausência de preocupações soteriológicas, ela se ajusta muito bem à ausência de projetos individuais. A religião católica é pouco útil para as questões de ordem prática e cotidiana.

Como processo psicológico a superstição apresenta-se como um lógica necessária e clara. É uma solução dependente da vontade individual. Farás tal processo para tal ato. (...) Fundamenta-se na confiança de poder dispor, evitar, afastar, dispersar, aproximar as grandezas imortais,fazendo-as ou tornando-as acessíveis e dóceis aos interesses pessoais, do agente supersticioso.(CASCUDO, 1971, p. 155)

Também quanto às questões morais, a mentalidade mágica expressa pelas personagens destas memórias em seus atos cotidianos, é mais uma vez, reveladora.

“Se a religião tem uma pretensão ética, a magia é, por seu lado, eminentemente amoral, ou seja, não se preocupa com as questões morais. Não se trata, no entanto, de ser imoral, que seria posicionar-se contra as normas e valores. Não há preocupação alguma com aquilo que pode ser entendido como o Bem ou o Mal” (GUERRIERO, 2003, p. 81).

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A sociedade que aparece na expressão de sua peculiar imagem tornada consciente é a que oscila entre a aparência e os devaneios da vontade. Predomina o gesto, a performance, que se imiscui nos diversos domínios da narrativa. Até mesmo no caso das práticas mágicas – como a necromancia do pântano ou a catarse16 do parto – não é a finalidade da ação que é condenada, tampouco sua performance, mas o que nelas parece acessório e inautêntico.

Ao equacionar aspectos religiosos e sociais – a contradição performática – o autor coloca a religião como apenas mais uma alternativa orientadora e a relega ao plano de um mero “valor desvalorizado”. Esse é o sentido da oscilação das personagens e da crítica religiosa: não há mais valores que ofereçam aos homens um caminho para a felicidade. Se é que um dia houve.

NOTAS

1 – “Sabemos ainda que o externo (o social) importa não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno” (CÂNDIDO, 1967, p. 4)

2 – É relevante o diálogo entre ficção e verdade do ponto de vista da literatura. Sempre haverá abstração em ambas as partes (literatura e história) e ambas utilizam de elementos ficcionais para constituir narrativas, mas no segundo caso, há um compromisso auto-regulador com a verdade (segundo Jörn Rüsen).

3 – É um recurso utilizado muitas vezes pelo autor. “Daí sua influência moral” (p. 11); “Assim chegou aos sete anos” (p. 15); “Daí a pouco começou o fado” (p.33). É um impressionismo.

4 – Jean Claude Schmitt (1999, p. 27) sugere que o termo se refira à magia negra, conotação que marca a diferenciação para necromante (que advinha pelos mortos, invocando). No nosso caso, isso tem pouca importância.

5 – Não parece que o autor se refira apenas à adivinhação no evento do pântano, tratando de fortuna. Ele quer resultados práticos sobre o livre arbítrio da cigana. O que talvez aproxime a descrição da antiga magia ritual. Seu historiador é Norman Cohn: “ Through ritual magic, one could, without effort, master the arts and the sciences; one could compel the love of the mate one wanted; one could win the favour of the great and so advance one’s career; one could discover the whereabouts of hidden or buried treasure; one could foresee one’s future.” (2000, p. 107).

6 – “A superstição é uma sobrevivência de cultos desaparecidos. [no nosso caso eu acrescentaria marginalizados oficialmente] Ficam vestígios atualizando proibições ou atos vocatórios de infelicidades de outrora. Superstição, super-stitio, o-que-sobreviveu. Ajustam-se psicologicamente aos elementos religiosos contemporâneos, sempre condicionados à mentalidade popular. Permanecem no automatismo mímico, enunciação de frases afastadoras do Mal, ou renúncias denunciando os limites lícitos das devoções diluídas no tempo. É um reflexo associado” (CASCUDO, 1971, pp. 150 – 151). É uma posição sólida,mas também discutível. Não há lago em si que seja superstição. Mas o nosso autor provavelmente sabe disso.

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7 – É marca dos tribunais portugueses da inquisição esse tipo de preocupação, conforme os trabalhos de Francisco Bethencourt, Laura de Mello e Souza, Márcia Moisés Ribeiro e Geraldo Pieroni mostram claramente.

8 – “— Você está já em vida no inferno!... pois logo um padre?!...

A cigana interrompeu-o:

— Havia muitos meirinhos para escolher, mas nenhum me agradou...

— Mas você está cometendo um pecado mortal... está deitando sua alma a perder...

— Homem, sabe que mais? você para pregador não serve, não tem jeito... eu como estou,

estou muito bem; não me dei bem com os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...

— Pois então tem alguma coisa que dizer de mim?... Hei de me ver vingado... e bem

vingado.

— Ora! respondeu a cigana rindo-se.

E começou a cantarolar o estribilho de uma modinha.

O Leonardo compreendeu que falando-lhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida. Retirou-se murmurando:

— Faço uma estralada, dê no que der...”

9 – O autor usa determinada tradição para conferir facticidade à sua narrativa. O sentido é alcançado com recurso a lugares comuns pertencentes a uma mentalidade mágico-religiosa, a exemplo do início do capítulo X (“Explicações”) da primeira parte do livro. Lançar mão de determinada causalidade – como a crença no destino – revela uma relação de compromisso, ou para me isentar de imputar-lhe uma ideologia, limites para a representação, ou um campo específico de suas críticas.

10 – “Dizer que uma crença uma crença é no racional é falar sobre a maneira que ela se sustenta em relação em relação às outras crenças” (Alasdair McIntyre). (CLARK, 2006, p. 14)

11 – Na verdade não há uma separação, ao meu ver, entre as duas significações históricas.

12 – Ver nota 5.

13 – Os Trabalhadores do Mar, Outros Pontos Ambíguos de Gilliatt.

14 – Sigo a sugestão da “escrita como performance ritual”, dada por Stuart Clark (2003, p. 133)

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15 – “Qual o propósito desse exagero, que chega a atingiras raias da caricatura? Parece-me que ampliar, ou de diminuir, ou descolorir desse modo, é uma forma primordial de abstração” (DaMatta, 1997, p. 99)

16 – “— Soprai, menina, continuava sempre dentro a comadre, soprai com Nossa Senhora, soprai com S. João Batista, soprai com os Apóstolos Pedro e Paulo, soprai com os anjos e serafins da Corte Celeste, com todos os santos do paraíso, soprai com o Padre, com o Filho e com o Espírito Santo. Houve finalmente um instante de silêncio, que foi interrompido pelo choro de uma criança.” (parte II, capítulo I, p. 99).

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, MANUEL Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Martin Claret, 2005.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

_________________. "Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias)" in: Revista do Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Paulo, USP, 1970, pp. 67-89.

CASCUDO, Luís da Câmara. Tradição, ciência do povo – Pesquisas na Cultura Popular do Brasil. São Paulo: Perspectivas, 1971

CLARK, Stuart. Pensando com Demônios. São Paulo: Edusp, 2006.

COHN, Norman. Europe’s Inner Demons. Chicago: Chicago University Press, 2000.

DaMatta, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

GALVAO, Walnice Nogueira. Religious hybridism in the Brazilian literature. Imaginario. [online]. June 2006, vol.12, no.12 [cited 22 September 2007], p.369-385. Available from World Wide Web: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-666X2006000100020&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1413-666X.

GUERRIERO, Silas. A magia existe? São Paulo: Paullus, 2003.

HUGO, Victor. Os trabalhadores do Mar. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

SCHMITT, Jean Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.