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Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 44, n. 1, 73-84 · 2010 73 A “Serenidade” do “Sítio do Estrangeiro”: possibilidades de diálogo entre Pierre Fédida e Martin Heidegger 1 Mauricio Rodrigues de Souza, 2 Belem Resumo: O presente trabalho representa uma tentativa de diálogo entre psicanálise e filosofia através das ideias de Pierre Fédida e Martin Heidegger. neste sentido, ao abordar respectivamente as noções de “sítio do estrangeiro” e de “serenidade”, enfatiza dois pontos específicos que sugerem interessantes aproximações entre si. Em primeiro lugar, há o apelo por uma espera que também pode ser lido como a desconfiança diante da ênfase contemporânea nas potencialidades da técnica. De maneira complemen- tar, há ainda o resgate proposto por ambos os autores de toda uma dimensão de mistério que se faria presente enquanto sombra constitutiva tanto do fenômeno transferencial quanto da razão esclarecida. Com efeito, tal aproximação pode ser tomada como um convite ou demanda para que analistas e filóso- fos resistam à tentação (e mesmo à pressão) dos resultados imediatos, mantendo a interpretação à certa distância estrangeira que favoreça a própria atividade elaborativa. Palavras-chave: psicanálise; filosofia; alteridade; serenidade; sítio do estrangeiro. Os contatos entre psicanálise e filosofia apresentam as idas e vindas características de uma mistura de admiração e desconfiança mútuas, associada, talvez, a um problema de ocupação de lugares no tribunal do saber. Tal mistura, aliás, como bem lembra Assoun (1978), já se fazia presente em diversas passagens da própria obra de Freud, sendo mais tarde retomada tanto por Jacques Lacan quanto por trabalhos filosóficos que hoje podem ser considerados “clássicos” na história da relação entre as duas disciplinas. Dentre eles, apenas a título de ilustração, vale citar os de Binswanger (1936/2006), Hyppolite (1971), Ricoeur (1977), Assoun (1989) e, em termos de Brasil, aqueles de Monzani (1989), Prado Júnior (1991) e Mezan (1998), todos passados em revista pelos recentes artigos de Caropre- so (2008) e Monzani (2008). Pois bem, buscando seguir a esteira dessa tradição, mas mantendo-se longe de qual- quer belicismo do passado e também de qualquer perspectiva reducionista, o presente tra- balho representa uma nova tentativa de diálogo entre psicanálise e filosofia. Desta feita, voltada para os conceitos de “sítio do estrangeiro” e “serenidade”, tais quais se apresentam nas obras de Fédida (1988, 1991a, 1991b, 1996) e Heidegger (2001). Como veremos, tal dis- cussão se travará no terreno da alteridade. Mas de que alteridade falamos? Trata-se daquela que, abdicando da tentação pragmático-imediatista imposta pela técnica, saiba fornecer um espaço suficiente para que o outro se desvele no seu próprio tempo e nos seus próprios termos. Diante disso, iniciemos por uma breve viagem rumo ao estrangeiro de nós mes- mos. 1 O presente artigo é a versão revisada e ligeiramente modificada de um trabalho originalmente apresentado na forma de comunicação oral no III Encontro nacional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise, realizado em niterói, RJ, de 24 a 27 de novembro de 2008. 2 Professor Adjunto II da Faculdade e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará e pesquisador do grupo Filosofia, Psicanálise e Cultura, vinculado ao diretório de grupo de pesquisa do CnPq. 0012010.indb 73 25.04.10 19:39:34

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RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.1,73-84·2010 73

a “serenidade” do “sítio do Estrangeiro”: possibilidades de diálogo entre Pierre Fédida e Martin Heidegger1

MauricioRodriguesdeSouza,2 Belem

Resumo:OpresentetrabalhorepresentaumatentativadediálogoentrepsicanáliseefilosofiaatravésdasideiasdePierreFédidaeMartinHeidegger.nestesentido,aoabordarrespectivamenteasnoçõesde“sítiodoestrangeiro”ede“serenidade”,enfatizadoispontosespecíficosquesugereminteressantesaproximaçõesentresi.Emprimeirolugar,háoapeloporumaesperaquetambémpodeserlidocomoadesconfiançadiantedaênfasecontemporâneanaspotencialidadesdatécnica.Demaneiracomplemen-tar,háaindaoresgatepropostoporambososautoresdetodaumadimensãodemistérioquesefariapresenteenquantosombraconstitutivatantodofenômenotransferencialquantodarazãoesclarecida.Comefeito,talaproximaçãopodesertomadacomoumconviteoudemandaparaqueanalistasefilóso-fosresistamàtentação(emesmoàpressão)dosresultadosimediatos,mantendoainterpretaçãoàcertadistânciaestrangeiraquefavoreçaaprópriaatividadeelaborativa.Palavras-chave:psicanálise;filosofia;alteridade;serenidade;sítiodoestrangeiro.

Oscontatosentrepsicanáliseefilosofiaapresentamasidasevindascaracterísticasdeumamisturadeadmiraçãoedesconfiançamútuas,associada, talvez,aumproblemadeocupaçãodelugaresnotribunaldosaber.Talmistura,aliás,comobemlembraAssoun(1978), jásefaziapresenteemdiversaspassagensdaprópriaobradeFreud,sendomaistarderetomadatantoporJacquesLacanquantoportrabalhosfilosóficosquehojepodemserconsiderados“clássicos”nahistóriadarelaçãoentreasduasdisciplinas.Dentreeles,apenasatítulodeilustração,valecitarosdeBinswanger(1936/2006),Hyppolite(1971),Ricoeur(1977),Assoun(1989)e,emtermosdeBrasil,aquelesdeMonzani(1989),PradoJúnior(1991)eMezan(1998),todospassadosemrevistapelosrecentesartigosdeCaropre-so(2008)eMonzani(2008).

Poisbem,buscandoseguiraesteiradessatradição,masmantendo-selongedequal-querbelicismodopassadoetambémdequalquerperspectivareducionista,opresentetra-balhorepresentaumanova tentativadediálogoentrepsicanáliseefilosofia.Desta feita,voltadaparaosconceitosde“sítiodoestrangeiro”e“serenidade”,taisquaisseapresentamnasobrasdeFédida(1988,1991a,1991b,1996)eHeidegger(2001).Comoveremos,taldis-cussãosetravaránoterrenodaalteridade.Masdequealteridadefalamos?Trata-sedaquelaque,abdicandoda tentaçãopragmático-imediatista impostapela técnica, saiba fornecerumespaçosuficienteparaqueooutrosedesvelenoseuprópriotempoenosseusprópriostermos.Diantedisso,iniciemosporumabreveviagemrumoaoestrangeirodenósmes-mos.

1 OpresenteartigoéaversãorevisadaeligeiramentemodificadadeumtrabalhooriginalmenteapresentadonaformadecomunicaçãooralnoIIIEncontronacionaldePesquisadoresemFilosofiaePsicanálise,realizadoemniterói,RJ,de24a27denovembrode2008.

2 ProfessorAdjuntoIIdaFaculdadeePós-GraduaçãoemPsicologiadaUniversidadeFederaldoParáepesquisadordogrupoFilosofia, Psicanálise e Cultura,vinculadoaodiretóriodegrupodepesquisadoCnPq.

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a alteridade do inconsciente e a estranheza da situação analítica: comentários sobre o “sítio do estrangeiro” na obra de Pierre Fédida

UmaboapossibilidadedeiniciarmosestepercursopelasreflexõesdePierreFédidaacercadaclínicaanalíticanoséoferecidaporumtrabalhoemqueopsicanalistafrancêsadota“Oinquietante”(Das Unheimliche),textopublicadoporFreudaindaem1919,comoinspiraçãoparaosseusargumentos(Fédida,1988)3.nestecaso,voltadosademarcaralgu-mascaracterísticaspartilhadaspelaangústiaepeloamortransferencial,como,porexem-plo,apresençaemambososcasosdamanifestaçãodeumretornodoreprimido.Alémdisso,acrescentaFédida(1988),tambémsetornariaviávelpensarocaráterunheimlichna/datransferênciapeloseupoderiopsicótico/alucinatórioque,apartirdoanalista,possibili-tariaaemergênciadeumduplodesteúltimo.

Comisso,sugereaindaFédida(1988),paraqueestivesseaptoalidarcomosinistrodatransferência,caberiaaoanalistamanterasimesmonochamadosítio do estrangeiro.Afinal,éaneutralidadedestelugardesilêncioenãorespostaquepoderiagarantiraooutro(aoanalisando)travarcontatocomaalteridadedoseupróprioinconsciente:

Comefeito,entreasdificuldadesdenossapráticadeanalistas,nãoédasmenoresadesemanterneste sítio do estrangeiroou,comodiriaFreud,numacenaradicalmentediferentedadopaciente(…)oanalistaocupao sítioconstitutivoe fundantedos lugaresdeuma falacujodestinatárionãopodeserelemesmo.Odestinatárioéalucinatoriamenteoobjetointernodetransferência,enquantoforsignificadoparaafalapelanãoresposta–por esta recusa em responder que é a con-dição de reserva da linguagem – enquantopossapertenceràcena psíquica,masestandoausente.(pp.80-83)Fédida(1988)prosseguealertandoparaosriscosdasaídadosítiodoestrangeiropela

viadaidentificaçãodoanalistacomolugaraelesugeridopelafaladoanalisando,processoessequeculminariaemuma fala de resposta.Estaúltimagerariaa“des-instauração”dasituaçãoanalíticae,consequentemente,acondiçãoparaaemergênciadeumoutrosinistroouinquietante.Trata-sedaquelepresentenacontratransferênciaenquantoretornosobreo

3 OriginalmentepresentenaquintaediçãodarevistaImago,“Oinquietante”detém,entreoutras,pelomenosumacaracterísticaqueoindividualizasobremaneira.ComobemlembraCesarotto (1996), trata-se do texto que funciona como “dobradiça” entre as chamadasprimeiraesegundatópicasfreudianas.noqueserefereaoescritoemsi,esteapresentaumaincursãodeFreud(1919/1981)peloterrenodaestética(especialmentealiterária)quedestacaumaideiaemparticular:aqueladequeasensaçãodedesassossego–despertada,porexemplo,pelacriaçãoartística–diriarespeitonãoexatamenteaalgodesconhecido,masaalgohámuitofamiliarque,posteriormentereprimido(leia-se:afastadodaconsciência),teimariaemretornar.Comefeito,apostandoemumarelaçãodiretaentreosentimentoinquietante,asatisfaçãoestéticaeapulsãodemorte,todosassociadospelaemergênciadeconteúdosinfantisanteriormentereprimidos,Freud(1919/1981)forneceaoleitoroespaçoparaumareflexãoacercadoinconscienteenquantoumestrangeirobastantepróximoemtermosdavidamental.Demaneiracomplementar,afirmaKofman(1973),aimportânciadetalreflexãoresidiriaaindanofatodeelanosconduzirrumoàinovadoraperspectivadeumestranhamentodoslimitesentre“positivo”e“negativo”,comoprazer(e,juntocomele,ador)passandoaadquirirasqualidadesdemisturaeheterogeneidade.

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A“Serenidade”do“SítiodoEstrangeiro”MauricioRodriguesdeSouza 75

analistadassombrastransferenciaisqueelenãoteriaconseguidoconterapósproduzi-lasapartirdasuaprópriapessoa.

Comosepodenotar,ostemasdalinguagem,dafamiliaridadeedadistânciaseapre-sentamnaordemdodia.Assiméque,emumtrabalhoposterior,Fédida(1991a)destacaacapacidadedalínguaem,aonomearascoisas,delasdeterminarumadistância“justa”,distânciaessa,aliás,necessáriaparaqueonomeadorevelea si mesmo. nestemesmosen-tido,Fédida(1991a)apontaaindaoquantoahabitualênfasenafunçãocomunicativadalínguasignificariaumaconsiderávelperda,jáque:“Descreverourepresentaraquiloquesevêprovocaumadissociaçãoentreolharefalae,assim,aperdadoolharquealínguaportaemsi”(p.52).

Emtalperspectiva,oatopoéticoaparececomoumaapropriaçãodopróprioapartirdeumsítiodefinidopeloestrangeiro:tradução,metáforae,importante,transferênciadesentidoparaalémdaquelesqueafunçãodescritivaoucomunicativadalínguaaplainae,com isso, simplifica.Comefeito, teríamosnestemesmoestrangeiroo fundode silênciosolicitadopelascoisasparaqueessas,sempreapartirdoseudesenhopróprio,pudessemsedeixartraduzirpelalíngua.

ÉdestaformaqueFédida(1991a)aproximaosterrenosdalíngua,dapoesiaedosonho,repletosdeimagensférteisempossibilidades.Oseguintetrechoresumebemoquedissemosatéagora,auxiliando-nosapensaraescutaanalíticanãoemtermosdeumain-tençãopragmáticaoumetacomunicativadalíngua,masnoestrangeiroquenelareside:

Écertamenteapartirdaexperiênciaadquiridapelosartistasepoetasquepodemosteracessoaesseduplomovimentodetraduçãoedetransferênciaaoqualaspalavrasnosconvidam.Ousoquefazemosdenossalíngua–ditamoderna–geralmentepermaneceprisioneirodasintençõesconscientesdesignificaredeumsaberdaquiloquequeremosdizerparanosfazercompreender.Opróprioépossessãodoeuávidoporresposta.Osítiodoestrangeiroficaentãosoterradosobafuncionalidadeexacerbadadacomunicaçãoapartirdomodelodeinterlocução.Alíngua(…)ameaça,então,fazer-nosesquecerqueapenasoestrangeiroquenelaresidetornapossívelaescuta.(p.58)

Aindacombasenessasideias,Fédida(1991a)enfatizaumpoucomaisadianteana-turezaparticulardaéticaqueregulamentaoencontroanalítico.Segundoele,estapressu-poriaumaneutralidadequepermitisseaescutadeumafalatransferencialcujodestinatárioéumausentequedeveriasersignificadoaoanalisandopelaviadainterpretaçãoequesobnenhumahipótesedeveriaserconfundidocomaprópriapessoadoanalista.Emoutrostermos,Fédida(1991a)maisumavezlegitimaolugar(ou,maisprecisamente,onãolugar)doanalistacomoumsítiodoestrangeiro:“…cujafalaseráambíguagraçasàvirtudedaspalavrasderessoarsegundoaambiguidade essencial queoamorlhesconfere”(p.59).

Devoltaaotemadalinguagem,Fédida(1991a)propõequeessamesmaambiguida-deessencialqueorientariaofenômenotransferencialeolugardeestrangeirodoanalistaaparecerianodiscursodoanalisando,qualificadopeloautorcomosintomae,consequen-temente,formaçãodecompromissoentreaconsciênciaeoinconsciente.Qualaimplica-çãodisso?Ora,quefariapartedafunçãodoanalistapossibilitaraseparaçãodaintençãopresentenoenunciadoconscientedaquelaoutramensagemsubliminarque,apartirdaí,poderiaserlidaenquantomanifestaçãodeumdesejoreprimidodenaturezainfantil.

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Ditodeoutra forma,Fédida(1991a)chamaanossaatençãoparaqueopoderderessonânciadaspalavrasproferidasnasituaçãotransferencialsejadespertadoesemani-feste(portanto,sejaescutado)a partirdo silêncio do analista.Enfim,queanãorespostadesseestrangeiromobilizeuma–porvezesensurdecedora–ressonânciaaserproduzidaeidentificadapeloprópriopaciente.Ou,ainda,quenamanutençãodajustadistânciadaqualfalamoshápouco,odiscursoatualdopacientepossapermitiraescutadeumdesejoinatual.

Comisso,aomesmotempoemquepropõequeainstalaçãodeumaanálisesomenteocorreria na quebra da estrutura da língua enquanto recursometacomunicativo (papeldaregrafundamentalelivre-associativa),Fédida(1991a)reafirmaosriscosembutidosnaconfusãodafunção do analistacomasuaprópriapessoa.Alerta-nos,portanto,paraane-cessidadeda alteridade empsicanálise frente aosperigos representadosporuma ilusãodesimetriaqueanulariatantoaspotencialidadesdafalaquantoaemergênciadoterceiroausenteaquemodiscursodoanalisandosedirigiria.

Destamaneira,constituiriaoofíciodopsicanalistaapermanentevigilânciaemrela-çãoaosrecobrimentospotencialmenteproduzidospelapresençadofamiliare,associadaaestatarefa,amanutençãodosilênciodoneutrocomoumaverticaldoestrangeiroqueseriaprópriaàdissimetriadasituaçãoanalítica.Aliás,destacaFédida(1991b)emumoutrotra-balho,édestamesmaverticalidade–emsimesmaumatoderevelaçãoedelinguagememtermosdeconstruçãoedeinterpretação–quedependeriaa(a)temporalidadedoencontroanalítico,eminentementemarcadopeloanacronismopróprioaosregistrosdosonhoedoinconsciente.

UmaboapartedestasquestõesviriaaserretomadaporFédida(1996)em“Ointer-locutor”.Comosugereoprópriotítulo,trata-sedeumtrabalhoeminentementevoltadoaotemadaalteridadeempsicanáliseequenosinteressadepertoporretornaràinquietante estranheza constituinteda transferência.nestesentido,ele seposicionacontraqualquerdomesticaçãooucategorizaçãoformaldofenômenosoboriscodebanalizá-lo,esvaziando,assim,aessênciadaprópriasituaçãoanalítica.

Com efeito, aomesmo tempo emque relembra amensagem freudiana de que aescutaanalíticadeveriaserorientadapeloparadigmadosonho(atemporal,alucinatórioeemperpétuomovimentoemudança),Fédida(1996)demonstracomosetornadifícilnãotecerseverasressalvasaoestabelecimentodeumafunçãometacomunicativada(contra)transferênciaque,emnomedeumapretensatécnica,acabariaporprivilegiarapessoadoanalistaenquantodestinatárioúltimodasformaçõesimagináriasdoanalisando.Eisoqueoautorqualificacomo“juridismodoraciocínio”,ouseja,atentativadeumdiscurso“ex-plicativo”(logo,nivelador)datransferência,fenômenoúnicoeimpassíveldetraduçãooureproduçãoexata.Afinal:

Emanálise,oquevemaopensamentonãoserámaisomesmoquandoomesmopensamentoretornar.Essesmovimentosquedeslocamoslugares(etalvezaslinhas!),fazendocomquecadalugarsejatransportadoporseudeslocamentoparatornar-seumoutrolugar,sãoosmovimentostransferenciais(…)Resultadapresenteexposiçãonãosomenteaideiadequequalquerdiscursodacomunicaçãoedarelação(qualquermetadiscurso)éradicalmenteinadequadoparaaexpres-sãodeumatransferência,mastambémdeque,emumaanálise,deveserpreservadaparaatrans-ferênciaestainquietantepotênciadememóriadaalmaqueageatravésdascópiasdeimagoparaasquaisa pessoa do analistaé,nosdoissentidosdotermo,atela.(pp.111-113)

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Sãoessesospressupostosqueconduzemopsicanalistafrancêsàhipótesedequeatransferênciadehojepossuiriaumvalorsemelhanteaodahipnosedeoutrora,comares-salvadequeessa–ahipnose–nãofossedesvinculadadasuarelaçãoíntimacomosonho.SegundoFédida(1996),talvalorhipnóticodofenômenotransferencialformariaacondi-çãodaescutaedainterpretaçãoconformeoparadigmaonírico.

Umefeito comoeste, porém, somente seria alcançávelporumanalistaque fossecapazdesustentarasformasimpressasnasuafigurapelaspalavrasproferidaspeloanali-sando.Assiméque,paraFédida(1996),aneutralidadedoanalistaaparececomoumasu-perfície de transparênciaque,nocampotransferencial,viabilizariaachamada“alucinaçãonegativa”.Trata-sedaformaçãoedesaparecimentodasimagensproduzidaspelopacienteemsuarelaçãoimagináriacomumterceiroabsolutamenteimplicadoe,noentanto,inva-riavelmente“ausente”dasessão.

Aliás,éopostuladodestanaturezaessencialmentemelancólicadatransferênciaquepermiteaFédida(1996)utilizaroanacronismopróprioàsituaçãoanalíticacomojustifica-tivaparaaproibiçãodequeainterpretaçãodofenômenotransferencialseformeforadocontextodainterpretaçãoonírica.Fielàssuasideias,oautorretomaaquiovalordosonhocomoparadigmaformadordaescutadopsicanalistaedafalainterpretanteparanovamen-tecriticaro“juridismo”dosdiscursosexplicativos,ligados,porseuturno,àameaçadeumengessamentodasituaçãoanalíticapelosditamesdatécnicanormativa:

E seaquia linguagemé, semdúvida,o sítioda situaçãoanalítica, suaexistência significaqueaneutralidade– essenegativo –doanalistanãopoderia serpensadacomoatitude técnicaoucomocomportamentonotratamento,amenosquesequeiraafirmarcomosuapróprianegação.O inevitável“narcisismo”doanalistamuitasvezesesquececomoa técnica facilmentese tornaridículaquandotomaolugardalinguagem,ouseja,quandoseexplicitaforadoatodeinterpretar.(p.154)

Deacordocomestaperspectiva,temosmaisumavezna linguagem–enãonoana-listaemsi–overdadeiro interlocutorempsicanálise, jáqueaesteúltimocaberiaumafunçãodenomeousemelhançaque,vaziaemtermosdeconteúdopróprio, remeteriaàausênciadeumentequeaquiaparecedenominadode“paidatransferência”.Écombasenestamesma linhade raciocínioqueFédida (1996) sugereumavinculaçãoentreoquequalificacomoumahodiernabanalizaçãodatransferênciaeoesquecimentonegligentedaestranheza da ausência.Ouseja,daestranheza da própria transferênciaenquantopresençadeumaausência.

TodaaargumentaçãodeFédida(1996)aponta,portanto,paraaconsideráveldifi-culdadedefalarmosemintersubjetividadenocontextodapsicanálise.Bem,anãoserqueautilizaçãodetalconceitoextrapolasseumacondiçãodediálogodepessoaparapessoa,levandoemcontaareferênciaaumoutrotransferencialquemarcariaotipobastantepecu-liardeencontroquetemlugarnaclínica.Ouseja,anãoserquesepudessepensá-lacomoumarelaçãoadoisnecessariamenteassimétricae(jáque)instanciadaporumterceiroau-sente.

EisoquadropropícioparaqueFédida(1996)resgateanoçãodeOutropropostapelatopologialacaniana,Outroesseindispensávelàtransferêncianasuaqualidadedeentidadenãomaisdotadadesubjetividadeedemasiadamentepersonalizadanoplanodaconsciên-cia,massimpensadacomo lugar delinguagem/significância(um“sítiodoestrangeiro”)

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que,porissomesmo,deveriaseverlivredoantropomorfismocartesiano.Qualoobjetivodoautoremtudoisso?Maisumavezsalientarovalordoespantocomapereneestranhe-zada transferência (leia-se: do inconsciente) comoumaespéciede antídotodiantedosperigosrepresentadospeloesquecimentoounegligênciadaradicalalteridadeinerenteàfunçãodoanalista.Assim,enalteceraindaavirtudedalinguagem,interlocutorúltimodofenômenotransferencial.Logo,daprópriapsicanálise.

Diantedoexposto,passemosagoraaalgunscomentáriosrelativosàfilosofiadeHei-degger(2001),aqual,comoveremos,podeserevelardegrandeinteressetambémparaapsicanáliseporpelomenosdoismotivos.Emprimeiro lugar,peloalertaquefazquantoaosperigosde,nasociedadedemercadocontemporânea,elevarmososobjetosdatécnicaaumaalturatalquepassemasignificarumapossívelameaçaaoexercíciocríticoecriativodonossobemmaisprecioso:acapacidadedereflexão.Emsegundo,peloresgatequeomesmoHeideggerpropõedenoçõescomoasde“mistério”e“serenidade”,associadasaumapeloparaque,paralelamenteàs imposiçõesdapragmata industrial,saibamosconcederumespaçosuficienteemnossopensamentoparaacomodarosmatizesdesombradaexis-tênciaquepoucoounadacostumamsercontempladaspelarazãoinstrumental.

a Serenidade em Martin Heidegger

Anoçãode serenidade (Gelassenheit)édebatidaemmaioresdetalhesnaobradeMartinHeideggeremumacomunicaçãopreparadaemvirtudedocentenáriodamortedomúsicoalemãoConradinKreutzer.notextoemquestão,Heidegger(2001),alémdeexaltarasqualidadesdofalecido,chamaaatençãodeseusconterrâneosparaapróprianecessidadedeseproferirumdiscursoquegarantisseummínimodereflexãosobreohomenageadoesuaobra.Porque,pergunta-seofilósofo,seriaprecisoumanarraçãoqueforçasseaaudi-ênciaapensarsobrealgoquelhediriarespeitodeumaformatãodiretaecontínua?Commostrasdeumestoicismolivredeilusões,éopróprioHeideggerquemresponde:

Aausência-de-pensamentoséumhóspedesinistroque,nomundoactual,entraesaiemtodaparte.Pois,hojetoma-seconhecimentodetudopelocaminhomaisrápidoemaiseconómicoe,nomesmoinstanteecomamesmarapidez,tudoseesquece.Domesmomodo,osactosfestivossucedem-seunsaosoutros.Ascomemoraçõestornam-secadavezmaispobres-em-pensamentos.Comemoraçõeseausência-de-pensamentosandamintimamenteassociadas.(p.11)

Contudo,paraHeidegger(2001),mesmonaausênciadepensamentoquecaracteri-zariaacontemporaneidadeaindaresidiriaumsolopotencialmenteprodutivo,jáquenãoseproporarefletirnãosignificarianecessariamenteaincapacidadeparaareflexão.Masointeressanteéquetalfugaderivariaprecisamentedoseunãoreconhecimentopelohomematual,oqualfacilmentesustentariaemseufavorofatodenuncahaversevistonahistóriaépocamais produtiva em termos de planos e pesquisas avançadas. SegundoHeidegger(2001),porém,taisideiasseriamsempredeumanaturezaespecial,poismetascomoasdasorganizaçõesempresariaisestariamcondicionadasporelementosprévioserelacionadosaosobjetivosquetencionamalcançar.Eisaíocálculoquecompõeopensamentoplanifi-cador,aquelecujacaracterísticaprincipalénuncaparar(portanto,nuncameditarenemrefletirsobresentidosparaascoisas).

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nostermosdeHeidegger(2001),haveria,então,doistiposdepensamento,ambos–cadaqualàsuamaneira–legítimosenecessários:ocálculoeareflexãoquemedita.Àseventuaisobjeçõesdequeapurareflexão“pairariasobrearealidade”,nadacontribuindoemtermospragmáticose,ainda,dequeseria“demasiadoelevada”paraosensocomum,Heidegger(2001)reconhecesomentequeopensamentoquemedita(assimcomooquecalcula)surgiriasimdemaneirapoucoespontânea,exigindo,emgeral,umconsiderávelesforço.Entretanto,ofilósofoalemãoadotaacrençadequeareflexãoseriaacessívelaqual-querpessoa,levando-seemcontaosseuslimitesehistóriadevida.Bastariaquemeditasse,porexemplo,sobreaspectosbásicosdasuaprópriaexistência–comoaterranatal,solopropícioaoenraizamentodetodagrandeobra.

ParaHeidegger(2001),contudo,nãohaveria–pelomenosnaAlemanhadaépoca–solosuficientementeforteparasustentarumvínculocomopovo,poisosquenãotiveramdedeixarasuaterraaestanãosesentiriampertencentes.nessedesenraizamentodestacar-se-iaopapeldosmeiosdecomunicaçãodemassa,osquais,estimulandoohomemàquiloquelheéalienígena,torná-lo-iamestranhoàsuaprópriaterranatal.Aquiresidiriaoespí-ritodaépocaemquenascemos.

Assim,emumfuturopróximo,estariaopotencialcriativodohomemfadadoàex-tinção,sendosubstituídopelapolíticaempresarialdaautomaçãoorganizadaecalculista?Porderivação,estamesmaquestãoconduzHeidegger(2001)aumaoutra,decarátermaisextenso:oqueocorreriananossahistóriaatual?Oque,enfim,acaracterizaria?Emumcontextomarcadopeladescobertadosusosdaenergiaatômica,arespostapareceresidirnapromessadefelicidadeofertadapelatécnicacientífica.Masoqueestariapordetrásdestaúltima?Umareviravoltaradicalnanossavisãodemundo(bemcomonanossarelaçãocomeste),representada,emúltimaanálise,pelalógica“esclarecida”edemercadoimpostapelosistemacapitalistadeprodução.

Frenteatalsituação,emqueatécnicadeterminaasrelaçõesdoshomensentresiedestescomanatureza,tornar-se-iadifícilprofetizarqualquerespéciededestinoparaahu-manidade.Issoemvirtudedospoderesdarazãoinstrumental,alémdefazeremdohomemumprisioneirodassuasprópriasinvenções,extrapolaremjáaforçadasuavontadeecapa-cidadededecisão.4ConformeHeidegger(2001),seriaesteúltimoaspectoomaisdignodepreocupação:odespreparodohomemcontemporâneoparalidarcomtaltransformaçãotecnicistadomundo,evidenciadonaameaçaanteriormentemencionadadeumtotalde-senraizamentodeobrascomoasartísticas.

A partir desta afirmação, de cunho aparentemente fatalista, torna-se inevitável aformulaçãoda seguintepergunta:quala saídapara sebrecar talprocesso, restituindoàhumanidadeumnovoefértilsoloparaoplantiodoseupotencialcríticoecriativo?ParaHeidegger(2001),umapossívelsoluçãoestariabempróximaanós(daíadificuldadeemenxergá-la):contraporopensamentoquecalculaaopensamentoquemedita,caracterizadopelaresistênciaaqualquerrepresentaçãounilaterale,consequentemente,pelaexigênciademedidasdecaráterconciliatório.Mascomopensarestaproposta,dadoonossograndeapegoaosobjetostécnicos,dosquaiscomoparasitastantodependemosparaviver?

Emresposta,Heidegger (2001)nospropõea simultaneidadededizermos simaoinevitávelcaráterutilitáriodosobjetosconstruídospelatécnica,mastambémquenegue-mosapossibilidadedequeestesabsorvamporinteiroaquiloqueteríamosdemaisíntimo:

4 noqueseriamauxiliados,pensaHeidegger(2001),pelofabulosoe,aomesmotempo,superficialaparatodosmeiosdecomunicaçãodemassa.

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nossacapacidadecrítica.Talatitude,sugereHeidegger(2001),seriaexpressapeloconceitofundamentaldasuaconferência:odeserenidade (Gelassenheit),onde:

…jánãovemosascoisasapenasdopontodevistadatécnica.Tornamo-nosclarividenteseveri-ficamosqueofabricoeautilizaçãodemáquinasexigemdenós,narealidade,umaoutrarelaçãocomascoisasque,nãoobstante,nãoésem-sentido.(p.24)

Éapartirdesta linhaderaciocínioqueHeidegger(2001)nos faladeumsentidoocultoeanteriorqueregeriaaatualtransformaçãodarelaçãodohomemcomanatureza,relaçãoessapermeadapelatécnica.Trata-se,aliás,deumsentidoqueseocultarianaproxi-midade(jáqueviriaaonossoencontro)equedeixariaanteverapenaspartedasuafacenosprodutosfinaisdamanufaturaedoprocessodefabricaçãoindustrial.Dizrespeito,portan-to,aumlusco-fusco,aalgoqueaosemostrarsimultaneamenteseretiraria,demandandodenósum“fazeredeixarfazer”(Tun und Lassen)queHeidegger(2001)caracterizaemseutraçoessencialcomo“mistério”.

Consequentemente,enquanto formade lidardeumamaneiramais sábiacomtalparadoxoqueconfundirianossossentidos,caberiaanósmanterumaconstanteatitudede“aberturaaomistério”(die Offenheit fur das Geheimnis),inseparável,porsuavez,deumespíritosuficientementeserenoparasuportarestaespera.Somenteaconjunçãodestesdoisfatores,enfatizaHeidegger(2001),dar-nos-iaaperspectivadoenraizamentoemumrevi-goradotipodesolodoqualpoderiambrotarnovasevivazesobrasimortais.5

Portanto,secaminharmosladoaladocomHeidegger(2001),veremosquearefle-xãoalcançariaumtraçoquasequesalvífico,aindamaisemumaépocacomoanossa,sobaqualpairariaarealameaçadeumdeslumbramentoquepoderiaconduzirahumanidadeaadotaropensamentoquecalculacomooúnicopossível,renegando,assim,asuaprópriaessênciareflexiva.Paramantermosospunhoserguidosdiantede taladversário,porém,caberiaconsiderarsempreostatusdaserenidadeedaaberturaaomistérioenquantofrutosdeumlabordeterminadoeininterruptodopensamento.

Poisbem,umavezexpostasemmaioresdetalhesasnuançasdasnoçõesde“sítiodoestrangeiro”e“serenidade”,passemosaofinaldopresentetrabalho.Aquifaremosumatentativadeaproximaçãoentreambassem,contudo,pretenderreduzirasperspectivasdePierreFédidaeMartinHeidegger,massimpromoverumdiálogoque,esperamos,revele-seprodutivo.

considerações finais

Se recapitularmos o nosso percurso até aqui veremos que iniciamos pela apostade Fédida (1988, 1991a, 1991b, 1996) nanecessidade de que o analista ocupeum sítiodoestrangeiro–lugardesilêncioenãoresposta–comocondiçãoparaqueoanalisando(elesim)entreemcontatocomooutrodesimesmodenominadoinconsciente.Comisso,

5 Temosaqui,naverdade,umdostraçosmais importantesdopensamentodeMartinHeidegger,emqueoser apareceemummovimentodepuro envio e retraimento,fontevirtualdetodasascoisasquebrotariaentreoaquieoacolá,osomeosilêncio,aexposiçãoeacamuflagem.Consequentemente,oacompanhardesteperpétuoemergir somente se tornaria possível mediante um aprendizado bastante especial: aquele da espera, de um deixar-se afetar peloinaudito,condiçãomesmadaaberturaaoconhecimentodooutroenquantopossibilidade (Heidegger,1989,1990).

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adentramosemumadiscussãoquepassouaenvolvertodaumadimensãodeordemtéc-nica.Afinal,opsicanalistafrancêschamavaanossaatençãoparaoperigodequealingua-gem, instrumentoprivilegiadopelapsicanálise, fosseutilizadaapenasenquanto recursometacomunicativo,nivelandoaspessoasdoanalistaedoanalisandoefazendocomqueseperdesseoquêdemisteriosodarelaçãotransferencial(presente,aliás,exatamentenasuaqualidadederelaçãoassimétrica).

Ditodeoutramaneira,acompanhamosdepertoasressalvasdeFédida(1996)ao“juridismodoraciocínio”enquantotentativadeumdiscursoexplicativo(logo,nivelador)datransferênciaquepoderiaviraocasionarumengessamentodasituaçãoanalítica.Issodesdequeaneutralidadeanalíticafossepensadaapenasemsuadimensãotécnica(nosen-tidode comportamentoounormade condutaprofissional), afastando-seda linguagemenquantolugarquecomportaonegativo,osilêncioeadistânciaqueenvolvemaspalavrasparatomarorumodeumesquecimentonegligentedaestranheza da ausência.Ouseja,daestranhezadaprópriatransferênciaenquantopresençadeumaausência.

JáemHeidegger(2001)pudemosnotartodaumapreocupaçãoquantoaoprejuízocausadoànossacapacidadecríticapeloidealpragmáticoeimediatistaquepermeiaasocie-dadecontemporâneaeindustrializada.nestestermos,enfatizamosoalertadoautorparaoatualperigorepresentadopelaspromessasdebem-estaroferecidaspelatécnicacientífica,aqual,caminhandoladoaladocomalógicademercado,maisemaismanteriaohomemescravodosobjetosdecunhotécnico,correndooriscodeversubjugadastantoaforçadasuavontadequantooseupoderiocríticoecriativo.

Assim, passamos a destacar a proposta heideggeriana do estabelecimento de umcontrapontoentreopensamentoquecalculaeopensamentoquemedita,sendoesteúlti-mocaracterizadopelaresistênciadiantedepráticasevisõesdemundounilaterais,jáqueimpostas apenas de acordo comos interesses da indústria.Mais adiante, corroborandocomtalperspectiva,acompanhamosaafirmaçãodeHeidegger(2001)acercadeumsen-tidoocultoeanterior (ouseja,nãopremeditadopelohomem)que,comoumasombra,tambémconstituiriatantoanossarelaçãoinstrumentalcomanaturezaquantoosobjetosfabricadospelatécnica.nessemesmosentido,vimosaindaoapelodofilósofoalemãoànoçãode “serenidade” enquantomotivaçãopara que saibamos aceitar a inevitabilidadedatransformaçãotecnicistadasociedade,evitando,porém,queestaabsorvaporinteiroonossobemmaisprecioso:acapacidadecrítica.

Umavezchegadoomomentodeconcluir, valeapenaenfatizarpelomenosdoispontosque,acreditamos,podemaproximarodebateclínicodeFédida(1988;1991a;1991b;1996)dafilosofiadeHeidegger(2001).Emprimeirolugar,temosoapeloporumaesperaquetambémpodeserlidocomoadesconfiançadiantedaprogressivaênfasenaspoten-cialidadesdatécnica,aquipensadaenquantopossívelenquadramentoquersejadaescutaanalítica,quersejadopensamentofilosófico.Demaneiracomplementar,umsegundoas-pectodizrespeitoaoresgatepropostopelosdoisautoresdetodaumadimensãodemistérioquesefariapresenteenquantosombraconstitutivadofenômenotransferencialetambémdarazãoesclarecida,demandandodeanalistasefilósofosa“serena”capacidadede,resis-tindoàtentação(emesmoàpressão)dosresultadosimediatos,manteremasimesmosacertadistânciaestrangeiraquefavoreçaaprópriaatividadeelaborativa.

Como se podenotar, tantoFédida (1988; 1991a; 1991b; 1996) quantoHeidegger(2001)apostamemhermenêuticasabertasaumaideiadeexperiênciacomopermanenteconstruçãoedevir,comportandoaameaçadedestruiçãoedelutonãocomoumfimemsi,

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mascomoaberturaaonovo.Énestestermosqueambosnosremetemaoexíliodohuma-no,àpassagemnoinfinitopercursodoser que,subtraindoanossaescutadofamiliar,podelibertá-laparaoestranho-em-nós,retirandoassimomantodenaturalidadequeencobreasalteridadesdosi mesmo.6Paraqueosacompanhemosdeperto,porém,somoscolocadosfrenteafrentecomoinstigantedesafiodedeixarmosdeladoacouraçadaproteçãonarcí-sicagarantidapelatécnica,renunciandoàlinguagemenquantorepresentaçãoplenaparaassimtentarmosviabilizarumlugarnopensamentoparaalacuna,paraumaimprevisívelrupturaqueapenasaspireaosentido.

Emúltimaanálise,temosnasconsideraçõessobreaclínicadeFédida(1988;1991a;1991b;1996)enafilosofiadeHeidegger(2001)aafirmaçãodocampodepossibilidadesabertopornarrativassubversivasemarcadasnãoporcertezasúltimasoupré-determina-das,masportorçõeseconstruçõesemconjuntoentreanalistaeanalisando,leitoreobra.Ouseja,oapelopelaaberturadesentido,aindaqueestapossaseassociaràangústiadosilêncio,doindeterminado.Porém,quãoconstrutivaestamesmaangústiapodesercasoaceitemosooblíquoemmovimentoemtermosdesubjetividade,casooptemosporumanãoprocuradobelo,porumanãoprocuradocômodo,masdosubversivamentecriativo.Questãoparaoestrangeirodenósmesmos,questãodeserenidade.

La “Serenidad” del “Sitio del extranjero”: posibles diálogos entre Pierre Fèdida e Martin Heidegger

Resumen: El presente trabajo representa una tentativa de diálogo entre psicoanálisis e filosofía a través de las ideas de Pierre Fédida e Martin Heidegger. Así, al trabajar respectivamente las nociones de “Sitio del extranjero” y “Serenidad”, enfatiza dos puntos específicos que sugieren interesantes aproximaciones entre ellos. En primer lugar, está el pedido por una espera que también puede ser tomado como la desconfianza frente al énfasis contemporánea en lo potencial de la técnica. De forma complementar, figura también el rescate propuesto por los dos autores de toda una dimensión de misterio presente como sombra car-acterística tanto del fenómeno transferencial cuanto de la razón esclarecida. En efecto, tal aproximación puede ser tomada como una invitación o demanda para que analistas y filósofos resistan a la tentación (y aunque a la presión) de los resultados inmediatos, manteniendo la interpretación a una cierta distancia extranjera que posibilite la propia actividad de elaboración.Palabras clave: psicoanálisis; filosofía; alteridad; serenidad; sitio del ajeno.

6 Trata-se,portanto,dereflexõesqueafirmamapossibilidadedequealgoseimponhademaneira prévia como um sendo experimentado sem necessariamente se subordinar àexigênciadarazãoinstrumental.Emoutraspalavras,comoumenigmaoucorpoestranhoque, irrompendonopretensamentesólidotecidodarealidade,criariaoqueFigueiredo(1996a) chamade super-real ouespaço do heterogêneo, oqual,bempróximoao sonho,permaneceria impassível de qualquer determinação pelo nosso repertório conceitual.Complementando estadiscussão,outras aproximações feitaspelomesmoautor entre apsicanáliseeafilosofiaheideggerianapodemserencontradasemFigueiredo(1993,1994,1995,1996b).

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The “Serenity” of the “Site of the Alien”: possibilities of dialogue between Pierre Fédida and Martin Heidegger

Abstract: This work represents an attempt of dialogue between psychoanalysis and philosophy through the ideas of Pierre Fédida and Martin Heidegger. By describing the notions of “site of the alien” and “seren-ity”, it emphasizes two specific points that suggest interesting proximities in their perspectives. First, there is the appeal for a wait that can also be read as a critique of nowadays’ emphasis in the potentialities of technique. Furthermore, there is the redemption proposed by both authors of a dimension of mystery that is seen as a constitutive shadow of transference phenomenon and enlightened reason. Such proximity may be taken as an invitation or demand for analysts and philosophers to resist the temptation (and even the pressure) for immediate results, in order to keep interpretation at a certain foreign distance that can incen-tive elaborative activity.Keywords: Psychoanalysis; philosophy; otherness; serenity; site of the alien.

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Ricoeur,P.(1977).Da interpretação: ensaio sobre Freud.RiodeJaneiro:Imago.(Trabalhooriginalpublicadoem1965)

[Recebidoem04/11/2009,aceitoem28/01/2010]

MauricioRodriguesdeSouza

[FaculdadedePsicologiadaUniversidadeFederaldoPará]RuaAugustoCorrêa,01(núcleoUniversitário)66075-900Belém,PATel:[email protected]

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