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Revista Ipisis Libanis (Revista Eletrônica Acadêmica do ICBL) Revista Ipsis Libanis http://www.icbl.com.br/ipsislibanis/ Ano 1 Número 1 2016 46 A SHARIA E SUA INTERAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO E PRIVADO Najad Khoury 1 O profeta Maomé propagou uma nova ordem política-religiosa, o Islã, entre 622-632 D.C., com o intuito de unificar a Península Arábica. Ele recitava as palavras divinas, reveladas verbalmente pelo anjo Gabriel, que posteriormente foram agrupadas após sua morte no Alcorão, o Livro sagrado dos Muçulmanos. Maomé introduziu preceitos religiosos, recomendações, advertências éticas e morais e a direção para as condutas religiosa e social. Esse conjunto de instruções formou a base da Sharia, um compilado das primeiras leis escritas do incipiente Estado-Nação muçulmana que abrigava aproximadamente 100.000 habitantes. Devido à proximidade física e o convívio com outras comunidades, judaicas e cristãs, que habitavam a mesma península, a primeira fase da Sharia foi influenciada pelas leis e hábitos de Torá. Sobre essa confluência regida, primordialmente, pelo aspecto religioso, Gideon Libson 2 ressalta que: "Estudiosos estavam conscientes da semelhança geral dos dois sistemas jurídico-religiosos, sendo ambos casuísticos, formais, pessoais, relevantes para todas as áreas do comportamento humano, desenvolvidos principalmente pelos esforços da doutrina, em vez de pelo precedente judicial. Ambos não fazem a distinção entre Estado e religião, uma vez que ambos dão direito à precedência religiosa sobre o Estado 3 ”. Após a Hijra 4 , a migração da cidade natal Meca para Medina que marcou o inicio de calendário muçulmano, Maomé introduziu as primeiras leis administrativas para reger o convívio pacifico na 1ª cidade conduzida por princípios teocráticos através do tratado formal, aḥīfat al-Madīna, 1 MBA em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas. 2 Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém onde leciona as disciplinas Lei Judaica e Islâmica e Comparativo das Leis Judaicas e Islâmicas 3 https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0011_0_10121.html 4 A Hijra (Hégira): A migração para Medina, antiga Yathrib em 622 D.C., ano que celebra o início do calendário muçulmano.

A SHARIA E SUA INTERAÇÃO COM O DIREITO … · Devido à proximidade física e o convívio com outras comunidades, judaicas e cristãs, que habitavam a mesma península, a primeira

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A SHARIA E SUA INTERAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO E

PRIVADO

Najad Khoury1

O profeta Maomé propagou uma nova ordem política-religiosa, o Islã, entre 622-632 D.C., com o

intuito de unificar a Península Arábica. Ele recitava as palavras divinas, reveladas verbalmente pelo

anjo Gabriel, que posteriormente foram agrupadas após sua morte no Alcorão, o Livro sagrado dos

Muçulmanos. Maomé introduziu preceitos religiosos, recomendações, advertências éticas e morais

e a direção para as condutas religiosa e social. Esse conjunto de instruções formou a base da Sharia,

um compilado das primeiras leis escritas do incipiente Estado-Nação muçulmana que abrigava

aproximadamente 100.000 habitantes.

Devido à proximidade física e o convívio com outras comunidades, judaicas e cristãs, que

habitavam a mesma península, a primeira fase da Sharia foi influenciada pelas leis e hábitos de

Torá. Sobre essa confluência regida, primordialmente, pelo aspecto religioso, Gideon Libson2

ressalta que:

"Estudiosos estavam conscientes da semelhança geral dos dois sistemas jurídico-religiosos,

sendo ambos casuísticos, formais, pessoais, relevantes para todas as áreas do comportamento

humano, desenvolvidos principalmente pelos esforços da doutrina, em vez de pelo

precedente judicial. Ambos não fazem a distinção entre Estado e religião, uma vez que

ambos dão direito à precedência religiosa sobre o Estado3”.

Após a Hijra4, a migração da cidade natal Meca para Medina que marcou o inicio de calendário

muçulmano, Maomé introduziu as primeiras leis administrativas para reger o convívio pacifico na

1ª cidade conduzida por princípios teocráticos através do tratado formal, Ṣaḥīfat al-Madīna,

1 MBA em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas. 2 Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém onde leciona as disciplinas Lei Judaica e Islâmica e

Comparativo das Leis Judaicas e Islâmicas 3 https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0011_0_10121.html 4 A Hijra (Hégira): A migração para Medina, antiga Yathrib em 622 D.C., ano que celebra o início do calendário

muçulmano.

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elaborado com a preocupação de criar uma comunidade única entre os muçulmanos recém-

chegados e as comunidades judaicas e árabes existentes na cidade. Para este fim, instituiu uma série

de direitos e responsabilidades para por fim com as lutas internas, roubos, estupros e assassinatos.

Entretanto apesar de assumir a liderança religiosa e politica, Maomé atribuiu aos chefes religiosos,

judeus e cristãos, o direito de julgar os membros das suas congregações. Portanto, a Sharia nasceu

harmonizando com outras de leis dentro do mesmo espaço físico, característica essa que perdura até

hoje.

Como havia pouca escrita na época e seguindo as tradições locais, os versos de Alcorão eram

decorados e repetidos. Entretanto com a expansão do Império Muçulmano e a morte dos repetidores

em batalhas, surgiu-se a necessidade de unificar a administração dos territórios conquistados sob

uma nova ordem jurídico-religiosa. Assim, o conteúdo do Alcorão foi compilado e escrito anos após

a morte do Profeta, sob a orientação central dos primeiros Califas herdeiros, denominados

Rashidoun (os bem-guiados), que governaram entre 632-661 D.C.

A versão original do Alcorão tornou-se a primeira base escrita da Sharia, a jurisprudência Islâmica.

O Alcorão constituiu-se a 1ª referência legal e transformou o árabe a língua oficial do Império

Muçulmano.

Narrativas sobre a vida de Maomé, seus atos – Sunnah - e falas – Hadith - circulavam livremente

nos territórios conquistados, sendo também, reunidos e escritos séculos após sua morte. Ao

contrário do Alcorão, cuja legitimidade é incontestável, esses relatos não foram compilados por uma

autoridade central reconhecida por unanimidade. Além disso, foram repercutidos principalmente em

Damasco, distantes há mais de 1000 km de Meca e Medina na Península Arábica, onde o profeta

viveu, pondo em cheque a sua legitimidade. Esses relatos sempre estiveram sujeitos a interpretações

e contestações ao longo da história entre estudiosos das várias correntes da religião Islâmica.

Cada narrativa, Hadith, é baseada em duas partes: o conteúdo e a cadeia de narradores. Quando é

individual, dita por membro da Família do Maomé ou por membro dos seus companheiros, tende a

ser autêntica e aceita. Mas quando é fruto de várias repetições acaba perdendo a validade e sua

autenticidade tende a se enfraquecer.

As instituições religiosas espalhadas entre Damasco na Síria, Cairo no Egito, Qum no Irã e Riad na

Arábia Saudita concordam plenamente sobre o teor do Alcorão, um livro imutável cuja versão

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original é impressa até hoje. Entretanto, apesar da falta de consenso em relação às várias

interpretações e classificações, os estudiosos concordam que as Hadith e Sunna fazem parte plena

da Jurisprudência Islâmica, em similaridade com o Talmude para a religião judaica.

O Alcorão e a Hadith se originaram no deserto, onde predominavam hábitos tribais que não

atendiam às necessidades sociais e legais das diversas sociedades bizantinas, africanas, persas,

ibéricas e chinesas, as quais rapidamente foram agregadas sob domínio do Islã. Surgiu-se, então, a

necessidade de criar fontes legais mais abrangentes para governar todos os territórios ocupados.

Assim, o Islã criou várias Escolas de Pensamento para agregar às diversidades sócio-cultural-

religiosas no Império Muçulmano.

Entre as Escolas de Pensamento Sunitas5 encontram-se as Hanafita, Malikita, Shafiita e Hanbalita

(Salafita). As três primeiras escolas são moderadas e racionais, espalhadas fora da Península

Arábica, como no caso da Turquia, Egito, Indonésia e Marrocos entre outros. A última se destaca

pelo seu radicalismo religioso que prega o puritanismo e a volta à origem do Islã. Ela orienta a seita

Whabita6, que domina o poder na Arábia Saudita, da onde originou, Kuwait, Catar e Emirados

Árabes Unidos, e nutre os movimentos radicais da al-Qaeda, Boko Haram e do autodenominado

Estado Islâmico7.

A segunda facção do Islã, a Xiita8, desenvolveu outras Escolas de Pensamento distintas, as

Jaafaritas, Zaiditas e Alawitas predominantes no Irã, Iêmen e Síria.

O quarto elemento que compõe a Sharia é a Fatwa, o pronunciamento religioso emitido por

5 Maomé faleceu sem indicar claramente quem era o seu herdeiro. A disputa em torno da herança religiosa e política

criou cisma definitiva em 681 D.C, quando a Nação Muçulmana, Umma,se dividiu entre Xiitas e Sunitas. O 1º grupo

era composto pela linhagem familiar do Profeta, Ahl al-Bait, e o 2º era composto pelos novos Califas, descendentes dos

primeiros companheiros de luta, as-Sahaba, que expandiram o seu domínio para o Levante e transformaram Damasco

na próspera capital do novo Império Muçulmano.

6 Os Wahabitas compõem 1 % dos 1,25 bilhões de Sunitas no mundo. São aproximadamente 10 milhões que habitam

principalmente a Península Arábica. Porém, se distinguem no cenário internacional devido à sua riqueza colossal

oriunda da exportação de petróleo. Outra característica fundamental para esse reconhecimento é o financiamento

bilionário das Madraças Islâmicas (escolas religiosas) no exterior que ajuda a difundir sua mensagem com víeis político.

7 Acrônimo em árabe, DAESH, que atua atualmente na Síria e no Iraque. 8 Os xiitas são aproximadamente 250 no mundo.

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autoridade máxima islâmica - o Grand-Mufti em países sunitas e o Aiatolá em países xiitas -,

expressando o seu julgamento ou opinião sobre assunto relevante, religioso, social, cultural ou

comercial, não necessariamente localizado na sua jurisdição. A Fatwa tem efeito de Decreto Lei

emitida em Estado de exceção, podendo ser executada por qualquer muçulmano a qualquer hora e

em qualquer parte do mundo.

Portanto, a Sharia, a Jurisprudência Islâmica, é conceito que engloba o as quatro fontes citadas -

Corão, Sunnah, Hadith e Fatwa’s – regulando o comportamento dos seus seguidores e tolerando

variações na sua aplicação conforme a região e os hábitos locais.

Inicialmente a Sharia definiu a relação dos homens com Deus, como a hora e a forma de orar, se

alimentar, se higienizar e tributar. Entretanto, a partir de 624 D.C., após Maomé conclamar Medina

como a primeira Cidade-Estado, a Sharia adveio de mensagens messiânicas para formular as leis

que governavam as comunidades conquistadas pelo Islã. As revelações ditavam os trâmites legais e

eram contínuas; nas palavras de Paulo Gabriel Pinto, “O seu governo foi pautado por sucessivas

revelações da vontade Divina sobre questões de cunho jurídico9”.

A partir dessa segunda fase, instituiu-se o pagamento de proteção para a comunidade não

muçulmana que vivia sob o seu domínio e proibiu-se o porte de armas nas cidades, roubo, estupro e

assassinato. Definiu-se, também, os direitos matrimoniais, as permissibilidades nas relações

sexuais10 e recomendações, como não engravidar durante o período de amamentação. Deliberou-se

ainda sobre os direitos de herança, alimentos e a custódia dos filhos no caso de divórcio. Advertiu-

se contra a bebida alcoólica, os jogos de azar e a bruxaria, estipulando penalidades variáveis,

financeiras, castigos físicos ou a morte. O adultério, por exemplo, é penalizado com apedrejamento,

o roubo com corte de mão e a apostasia, com execução. Os “homens que se comportam como

mulheres”, podem enfrentar pena de morte11.

A Sharia tentou enquadrar todas as ações em várias categorias: obrigatórias, louváveis, permitidas,

desprezadas e não permitidas. A maioria dos atos se enquadra na categoria “permitida”, a menos

que haja prova ao contrário em qualquer uma das quatro fontes mencionadas anteriormente. O

9 Islã: Religião e Civilização Uma Abordagem Antropóloga- Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto pág. 43 10 O sexo tem que ser praticado frontalmente excluindo o período de menstruação. 11 O Irã trata homossexualismo como doença emocional e permite mudança de sexo à custa do seguro social do país. Na

Arábia Saudita a penalidade é capital.

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divórcio, por exemplo, é um ato desprezado no Islã sem associação com pecado, entretanto deve

ser considerado como último recurso, quando todos os outros meios de resolver os problemas entre

os cônjuges já tenham sido esgotados. A ingestão de bebidas alcoólicas não é recomendada no

Alcorão. Aquele que fazê-la está cometendo um pecado e será responsabilizado por isso no dia do

julgamento. Alguns países castigam o autor, enquanto outros ignoram. Novos hábitos constituem

novas interpretações. Por exemplo, dirigir um carro ou usar a internet é permitido, pois não existem

provas contrariando essas ações. Porém, enquanto a maioria dos países islâmicos como Irã, Egito,

Turquia, Síria e Iraque permite dirigir, a Arábia Saudita limita ou proíbe as mulheres de fazê-lo. Já o

ato de criar blogs que critiquem o governo é proibido em alguns países, caracterizando, assim,

interpretações locais da Sharia.

Podemos perceber que, como bem destaca Eduard Said, “não há um único Islã, mas vários” e o

assunto é bastante discutido entre os muçulmanos. Enquadrar o Islã em apenas uma vertente é um

erro comum que deve ser evitado. Afinal, “a diversidade é uma característica de todas as tradições,

religiões ou nações, mesmo que alguns de seus membros tenham futilmente tentado traçar fronteiras

ao seu redor e demarcar credo12”.

Entre os 57 membros da Organização de Cooperação Islâmica, os países que aplicam estritamente a

Sharia são: a Arábia Saudita, o Irã, a Mauritana e o Sudão. Nos outros países a Sharia convive com

outro sistema jurídico, contudo, regula o Direito da Família em todos.

Interação da Sharia com o Direito Internacional Privado

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) promulga a máxima autonomia na

prática da fé:

“Cada Estado Parte no presente Pacto compromete-se a respeitar e a garantir a todos os

indivíduos que se encontrem nos seus territórios e estejam sujeitos à sua jurisdição os

direitos reconhecidos no presente Pacto, sem qualquer distinção, derivada, nomeadamente,

de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política, ou de qualquer outra

opinião, de origem nacional ou social, de propriedade ou de nascimento, ou de outra

12 Edward W. Said, Cultura E Política pág. 138.

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situação13”

O artigo 18 do mesmo pacto reconhece que a liberdade de manifestar a religião ou as crenças se

prescreve se houver confronto com a segurança, ordem, saúde pública, moral, direitos fundamentais

e liberdades de outros.

“1. Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de

religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção

da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção,

individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em público como em privado, pelo

culto, cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino”.

2. Ninguém será objeto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou de adotar uma

religião ou uma convicção da sua escolha.

3. A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções só pode ser objeto de

restrições previstas na lei e que sejam necessárias à proteção de segurança, da ordem e da

saúde públicas ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem.

4. “Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e,

em caso disso, dos tutores legais a fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos seus

filhos e pupilos, em conformidade com as suas próprias convicções”14.

Os defensores dos direitos humanos cobram que em alguns países a lei Sharia não protege homens e

mulheres ou muçulmanos e não muçulmanos igualmente e, portanto, viola os acordos internacionais

de direitos humanos. Garantir o balanço aceitável entre o DIPr descrito no ICCPR e a Sharia tem

sido desafiador nesses países. Por exemplo, os xiitas na Arábia Saudita não podem orar em público

junto com os sunitas. No Iraque, onde os xiitas predominam no poder, os sunitas sofrem

descriminações. Os cristãos e outras minorias lidam com outras violações dos seus direitos, mesmo

que tenham habitado naqueles países antes do advento do Islã. Dentre essas atitudes

segregacionistas, citamos a limitação ao acesso a certos cargos públicos e a permissão da conversão

13 ICCPR International Covenant on Civil and Political Rights (1966), art 2, UN Treaty 14 Ibidem, Artigo 18.

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de um cristão ao islamismo enquanto o contrário não é admitido.

Países que aplicam o Direito de Família baseado na Sharia têm abordagens distintas para problemas

como divórcio, custódia de crianças, assistência alimentar e herança. Dependendo do país, o

divórcio pode ser obtido verbalmente pelo homem, porém as esposas não podem ter esta iniciativa,

exceto em caso de violência doméstica. Mesmo assim, elas só podem ganhar no máximo três meses

e dez dias de pensão alimentar e a criança passa da custódia da mãe para a do pai quando alcançar

sete anos. Na herança, a mulher ganha metade da parte do homem, o que aumenta a subjugação

feminina. Em resposta às críticas, alguns países apontam para o caráter islâmico especial do país,

afirmando que isso justifica uma ordem social e política diferente.

A complexidade dos sistemas jurídicos desafia fronteiras e sistemas legais soberanos, especialmente

quando se trata de casamentos inter-raciais ou religiosos envolvendo múltiplas nacionalidades e

residências.

A título de exemplo, citamos um caso de abdução de filhos brasileiros frutos de casamento de mãe

brasileira e pai libanês, com dupla nacionalidade. Apesar de um juiz brasileiro conceder a custódia à

mãe ou em regime compartilhado, o pai, segundo interpretação libanesa do Islã, tem o direito

exclusivo de custodia mesmo ter levado as crianças involuntariamente. Qualquer pleito que a mãe

tente levar adiante deve encontrar diversos obstáculos. Segundo o professor de direito internacional

da USP, Pedro Dallari:

“O direito libanês concede ao chefe da família muito mais prerrogativas. Esse contexto

cultural libanês realmente traz mais dificuldade para que a mãe consiga reaver a sua

criança”15.

Mesmo apresentando ordem jurídica brasileira de custódia legal, haverá discussão sob o DIPr que

paira ao fundo todas e quaisquer disputas legais internacionais. A questão que se coloca é: será que

no Líbano, um juiz abdicaria a sua jurisprudência e reconhecerá a ordem de custódia brasileira

cedendo assim, a determinação de um tribunal estrangeiro? Ao fazê-lo pode aparecer como se o

juiz libanês está diferindo o julgamento para um tribunal brasileiro, abandonando seu papel judicial,

ou subvertendo a ordem jurídica do Líbano ao interesse soberano do Brasil. Consequentemente a

jurisprudência do Líbano não vai apoiar a reivindicação da mão brasileira para reaver os seus filhos.

15 http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/08/mae-que-teve-filha-levada-por-pai-libanes-nao-ve-ha-quatro-meses.html

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O DIPr implica em aplicar a lei de um "outro sistema legal" como se fosse melhor do que a de “o

seu próprio sistema jurídico”. Sobre a problemática da custódia estrangeira em conflito com as leis

nacionais de uma nação, Anver Emon16 ao analisar o filme “Nunca Sem Minha Filha” 17., explica

que:

“A ordem de custódia estrangeira pode ter nenhum impacto. Em vez disso, a ordem de

custódia estrangeira põe em relevo a gritante e contínua importância da soberania do Estado

na formação e imperativos das leis”18.

Em 1980, a Conferência de Haia emitiu a Hague Abduction Convention onde os países signatários

criaram autoridades centrais para lidar com qualquer alegação de rapto internacional de crianças .

Estas autoridades centrais são importantes para a distribuição de informações, treinamento

judiciário local e facilitação do retorno automático de crianças para o que a convenção chama de

“residência habitual”.

Países de maioria muçulmana têm consistentemente recusado a ratificar a convenção. Eles

argumentam que a ratificação iria obrigá-los a violar a lei islâmica dada a sua compreensão dos

requisitos legais islâmicos sobre a custódia da criança, portanto, não são constitucionalmente

autorizados a validar tal convenção.

A Sharia, tal como aplicada pelos tribunais islâmicos, não é codificada e os juízes não estão

vinculados a precedente judicial. Logo, o alcance e o conteúdo da lei são incertos, contendo

"práticas que divergem do conceito de Estado de Direito”19.

Assim, as leis privadas da Sharia, como dito anteriormente, “não protegem os homens e mulheres

ou muçulmanos e não muçulmanos igualmente”. E ainda conflitam ou violam os tratados

internacionais de direitos humanos descritos na Carta Internacional dos Direitos Humanos das

16 Professor de Lei da Faculdade de Lei da Universidade de Toronto, conhecido internacionalmente sobre seu estudo da

lei islâmica em conjunto com múltiplas tradições legais. 17 Filme americano de 1991 baseado em fatos reais. Conta a história da fuga de uma mãe, cidadã americana, e sua filha

americana-iraniana do Irã. 18 http://www.islamicity.org/8170/islamic-law-and-private-international-law-the-case-of-international-child-abduction/ 19 "Rule of Law: Country Studies - Saudi Arabia". Democracy Web: Comparative Studies in Freedom. Albert Shanker Institute and Freedom House. ???????

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Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre

Direitos Civis e Políticos (1966) cujo preâmbulo confirma a igualdade de direitos entre homem e

mulher durante e depois da dissolução de casamento:

“Os Estados Partes no presente Pacto tomarão as medidas necessárias para assegurar a

igualdade dos direitos e das responsabilidades dos esposos em relação ao casamento, durante

a constância do matrimônio e aquando da sua dissolução. Em caso de dissolução, serão

tomadas disposições a fim de assegurar aos filhos a proteção necessária”20.

Segundo o relatório anual de 2015 do Freedom House, Think Tank com sede nos EUA que mede o

grau de liberdades civis e políticas no mundo, nenhum país muçulmano foi classificado como livre.

Dados de 2011 mostram que na Europa21 a taxa média de fertilidade entre as famílias com tradição

muçulmana gira em torno de 2,2, enquanto a taxa de fertilidade da população não muçulmana tem a

média de 1,5, portanto a diferença é de quase 50% e com projeção constante de 40% até o ano 2030.

Apesar de discussões em torno desse assunto, a Sharia não pode, por enquanto, ser aplicada em

países ocidentais, mesmo naqueles com presença ou influxo crescente de muçulmanos devido à

globalização da economia mundial e à emigração legal ou ilegal causada por crises que infligem os

países muçulmanos na África e Ásia.

A organização mais importante entre os países muçulmanos, A OIC, Organisation of Islamic

Cooperation, não conseguiu enfrentar os desafios até agora. Porém, ao longo da última década,

tonou-se um participante ativo nos debates internacionais em matéria de Direitos Humanos e criou a

Independent Permanent Commission on Human Rights (IPHRC) para promover o diálogo

permanente com a Danish Institute for Human Rights com o objetivo de proteger os "direitos

humanos e as liberdades fundamentais nos países membros”.

Entre as recomendações se encontra a:

“Affirmation of Shariah consistency with international human rights law by rejecting

20 ICCPR artigo 23/4 21 https://muslimstatistics.wordpress.com/2014/02/06/pew-fertility-rate-for-muslims-and-non-muslims-in-europe/ (fonte: PEW Research Center’s Forum on Religion&Public life. The future of the MuslimPopulation, January 2011).

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interpretations of Shariah that violate or undermine international human rights law and by

elaborating alternative interpretations that respect and further international human rights

law”22.

“A afirmação da consistência da Shariah com as leis do Direito Internacional Privado, refutando as

interpretações que a Sharia viole ou prejudique o Direito Internacional dos Homens, e elaborando

interpretações alternativas que respeitem as mesmas ” (tradução livre).

A interação dessa recomendação com o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos23, uma jurisdição

do Conselho da Europa, poderia levar o Tribunal de Justiça da União Europeia, a aceitar decisões da

Sharia abrindo o caminho para outros sistemas jurídicos a seguir os mesmos procedimentos.

A Fatwa e o Direito Internacional Público

No exemplo a seguir podemos perceber claramente o efeito de Fatwa sobre o destino da Síria dentro

do cenário atual de guerra civil e flagelo humano.

O acordo secreto Sykes-Picot, embaixadores da Inglaterra e França, em 1916 fatiou o Oriente

Médio, colocando a Síria sob o mandato francês que logo após a IWW, dividiu a Síria em várias

regiões administrativas (mapa1) baseadas em etnias religiosas ou divisão geográfica, cedendo um

dos territórios para abrigar uma minoria de quase um milhão de Alaúitas que praticavam preceitos

religiosos místicos distintos da maioria sunita do país que não os considerava muçulmanos. Ao

mesmo tempo diferem dos xiitas que apesar de considerar Ali como 1º Imã, o mesmo não era

considerado como divindade, como é no caso dos Alauítas24. Eram chamados de “Nusayris” até

1920, em homenagem ao seu fundador Muhammad Ibn Nusayr que viveu em 883 D.C.

Quando a França entrou em negociações com os nacionalistas sírios em Paris, em 1936, para a

independência da Síria, os Nusayris enviaram um memorando ao governo francês pedindo

22 http://www.orsam.org.tr/en/article_Print.aspx?ID=2509 23 Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de Estrasburgo ou TEDH foi criado em 1959 e tem a sua sede em Estrasburgo. Transformou-se num órgão permanente em 1 de novembro

de 1998. 24 Os Alauítas não são obrigados a orar cinco vezes ao dia, além de não ter mesquita como o resto dos muçulmanos.

Acreditam em sete reencarnações de Deus na terra para salvar a humanidade. Celebram as festividades cristãs e

muçulmanas simultaneamente e acreditam que o Imã Ali (da onde originou ou nome Alawitas) formava um triênio

divino com Maomé e um dos seus companheiros, Sleiman al-Farsi.

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independência e liberdade, pois não queriam se unir à Síria, uma vez que a sua comunidade se

comportava diferentes dos sunitas que os tratavam como hereges e queriam o Islã fosse à religião

oficial do país.

Figura 1: Divisão da Síria pela França em 1916

Fonte: ttps://www.google.com.br/search?q=alawites+in+Syria&client=firefox-a&rls=org.mozilla:pt-

BR:official&channel=nts&tbm=isch&imgil=TVGM3C

Para ganhar legitimidade religiosa um grupo de sheiks Alauítas havia emitiu Fatwa em 1926

declarando que: "Todo Alauíita é muçulmano e os que não aderem ao Islã, e negam que o Corão é a

palavra de Deus e Maomé é seu Profeta não são Alauítas.” E que “os mesmos são muçulmanos

xiitas (...) seguidores do Imã Ali". Essa Fatwa não foi acolhida como decisiva na Síria, pois tinha

sido emitida por autoridade religiosa local sem projeção nacional ou internacional.

Dez anos mais tarde, o Grande Mufti25 Muhammad al- Husayni, que serviu em Jerusalém entre os

anos de 1921-1938 e era conhecido como nacionalista árabe, queria a Síria unida na luta contra os

ocupantes ocidentais. Portanto, emitiu outra Fatwa em primeiro de julho de 1936 “reconhecendo os

alauítas da Síria como muçulmanos”.

Essa Fatwa tinha maior legitimidade, pois fora emitida por uma autoridade religiosa proeminente

em cidade sagrada importante o que pavimentou o caminho para a minoria Alauíta tomar o poder,

25 Máxima autoridade sunita da cidade

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pois a constituição da Síria determinava que o presidente tivesse que ser muçulmano. Esse fato se

concretizou 24 anos depois, em 1970, quando Hafez al Asaad ocupou o poder com mão de ferro até

a sua morte em 2000, quando repassou a presidência da Síria para o seu filho, Basher al-Assad, o

atual protagonista da crise naquele país. Quatro décadas mais tarde em 2011 a maioria sunita

pleiteou a sua queda, com o apoio de outros países muçulmanos, Arábia Saudita, Catar, Turquia e os

Estados Unidos o que levou o país a atual situação.

Havia outras causas que permitiram aos alauítas ocuparem o poder. Entre as quais, citamos o

alistamento militar desta etnia ao exército como reflexo de sua pobreza e do desinteresse das elites

sunitas sírias em servir o exército. Outro fator importante foi a ascensão ao poder do próprio Hafez

dentro do partido laico Baath para garantir legitimidade política pan-arábica Mas podemos deduzir

que se não fosse essa Fatwa que transformou os alauítas em sunitas não seria possível a ocupação

da presidência em 1º lugar.

Uma segunda Fatwa contnia mudou e continua remodelando curso da historia moderna do Oriente

Médio. Para manter o poder, como presidente, Hafez al-Assad embarcou em busca maior validade

religiosa a fim de provar que a crença alauíta fazia parte do Islã Xiita e se aproximas do Irã. Em

1972, o Aiatolá Hassan Shirazi, estudioso xiita de família iraniana que fora exilado no Líbano em

1970, emitiu outra Fatwa evidenciando a meta de Assad. Nela, Shirazi escreveu: “Primeiro de tudo,

os alauítas são os seguidores xiitas de Ali Ibn Abu Talib e em segundo lugar os alauítas e xiitas são

sinônimos em termos de crença e cada xiita é alauíta e todo alauíta é xiita”.

Essa Fatwa aproximou a Síria do Irã, afastando-a, na época, do Iraque, apesar de ambos falarem

árabe e serem governados pelos mesmos princípios do partido Baath que advogava o pan-arabismo

baseado na “união de língua para unir os povos árabes”.

Em consequência dessa aproximação, a Síria foi o único país árabe que apoiou o Irã na guerra

contra o Iraque entre 1980-1988 e fez parte da aliança militar que expulsou o Iraque do Kuwait em

1990.

A aliança estratégica entre a Síria e o Irã permitiu a este aumentar a sua projeção religiosa e política

no Oriente Médio contrariando, assim, os interesses da Arábia Saudita e dos Estados Unidos.

Segundo Martin Kramer26 os interesses eram convergentes mais do que a cosmologia religiosa: “A

26 http://martinkramer.org/sandbox/reader/archives/syria-alawis-and-shiism.

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sense of shared fate, not shared faith, bound these two regimes together”.

Conclusão

Podemos concluir que a Sharia, a jurisprudência Islâmica, é a mistura da Civil Law, que

basicamente significa que a principal fonte do Direito é a Lei, neste caso o texto do Alcorão serviria

como a base escrita, e Common Law, o conjunto de interpretações das normas do direito proferidas

pelo Poder Judiciário, neste caso a fonte seria a Sunna e Hadith, e as Fatwas que equivalem às leis

emitidas ou nos estados totalitários ou em Estado de Exceção. Apesar dos debates e em torno da sua

inteiração com o DIPr e DIP o caminho está longo pois exige mais mudanças nos países que

adotam a Sharia como lei do Estado. Mas como ocorreram adaptações no Islã, ao longo da historia,

às leis e costumes dos territórios conquistados nada impede a harmonização da Sharia com as leis

internacionais. Contudo o caminho é longo.

http://www.upi.com/Top_News/US/2013/05/19/Under-the-US-Supreme-Court-Islamic-law-in-US-

courts/64481368948600/

http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=356

http://www.frontpagemag.com/fpm/137513/what-sharia-dr-hans-jansen

https://pt.wikipedia.org/wiki/Charia

http://topics.nytimes.com/top/reference/timestopics/subjects/s/sharia_islamic_law/index.html

International Business Law and Its Environment

https://books.google.com.br/books?isbn...

https://www.aclu.org/bans-sharia-and-international-law

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000200014&script=sci_arttext

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http://www.huffingtonpost.com/qasim-rashid/shariah-law-the-five-things-every-non-

muslim_b_1068569.html (intersante)

http://digitalcommons.wcl.american.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1408&context=auilr

http://infielatento.blogspot.com.br/2011/06/lei-islamica-sharia-para-os-nao.html

http://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1482&context=cjil - bom

http://www.goethe.de/lhr/prj/daz/mag/igd/en9650179.htm

http://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2037&context=ilj (bom)

Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos fatwas -Abd al-Aziz ibn Baz

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Jewish and islamic law

https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0011_0_10121.html

http://forward.com/news/145351/exploring-ties-between-halacha-and-shariah/

http://www.americanthinker.com/articles/2010/12/no_comparison_shariah_and_jewi.html