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A SIGNIFICAÇÃO DE T1ETAZ0EIZ NUMA ODE ANACREÔNTICA No vol. ni de Éumaniîas (pág. 3-10) publicou o malogrado pro- fessor brasileiro Aluízio Faria Coimbra (1) um artigo, no qual, rejei- tando a acepção de voar que unanimemente tem sido atribuida ao particípio jceraGÚeíç da Ode anacreôntica n.° 33 (40) da edição Bergk- -Hiller, pretende demonstrar que o verdadeiro sentido daquela palavra é abrir-se {-- abrir os braços) (2). Nas observações que se seguem mostraremos que a acepção condenada é a única admissível e que carecem de exactidão várias outras afirmações devidas ao mesmo A.. I A identidade etimológica dos verbos nezávw/M, jréxoficu e TIíTIXOí, admitida por A. C, suscita fortes dúvidas de ordem semântica. O sen- tido de 7texáwv[ii {estender, desdobrar, abrir) diverge muito dos de néxopiai (voar) e TZíTIXCD (cair) (3). Dos dicionários etimológicos de que temos conhecimento (4) (e são os mais recentes) nenhum sugere a unidade etimológica e o mesmo se verifica com relação às últimas edições dos dicionários de Lid.- (1) Designá-lo-emos pelas iniciais A. C, ou apenas por A. (Autor), e a Ode anacreôntica que deu origem ao artigo e a estas observações, por anacreôntica 33. (2) Pág. 8-9. (3) Adiante examinaremos um princípio de confusão que sê deu entre nexávvv/u e néro^m, em um reduzido número de casos e procuraremos as causas que a originaram. (4) Dictionnaire étymologique de la langue grecque, par Emile Boisacq, 2. a ed., 1923; Etymologisches Wôrterbuch des Griechischen, von J. B. Hofmann, 1949; Vergleichendes Wôrterbuch der indogermanischen Sprachen, Walde-Pokorny, 1928,1933.

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A SIGNIFICAÇÃO DE T1ETAZ0EIZ

NUMA ODE ANACREÔNTICA

No vol. ni de Éumaniîas (pág. 3-10) publicou o malogrado pro­fessor brasileiro Aluízio Faria Coimbra (1) um artigo, no qual, rejei­tando a acepção de voar que unanimemente tem sido atribuida ao particípio jceraGÚeíç da Ode anacreôntica n.° 33 (40) da edição Bergk--Hiller, pretende demonstrar que o verdadeiro sentido daquela palavra é abrir-se {-- abrir os braços) (2). Nas observações que se seguem mostraremos que a acepção condenada é a única admissível e que carecem de exactidão várias outras afirmações devidas ao mesmo A..

I

A identidade etimológica dos verbos nezávw/M, jréxoficu e TIíTIXOí,

admitida por A. C , suscita fortes dúvidas de ordem semântica. O sen­tido de 7texáwv[ii {estender, desdobrar, abrir) diverge muito dos de néxopiai (voar) e TZíTIXCD (cair) (3).

Dos dicionários etimológicos de que temos conhecimento (4) (e são os mais recentes) nenhum sugere a unidade etimológica e o mesmo se verifica com relação às últimas edições dos dicionários de Lid.-

(1) Designá-lo-emos pelas iniciais A. C, ou apenas por A. (Autor), e a Ode anacreôntica que deu origem ao artigo e a estas observações, por anacreôntica 33.

(2) Pág. 8-9. (3) Adiante examinaremos um princípio de confusão que sê deu entre

nexávvv/u e néro^m, em um reduzido número de casos e procuraremos as causas que a originaram.

(4) Dictionnaire étymologique de la langue grecque, par Emile Boisacq, 2.a ed., 1923; Etymologisches Wôrterbuch des Griechischen, von J. B. Hofmann, 1949; Vergleichendes Wôrterbuch der indogermanischen Sprachen, Walde-Pokorny, 1928,1933.

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44 CARLOS SIMÕES VENTURA

-Sc. (1) e de Bailly (2), nas breves indicações etimológicas neles con­

tidas. O último, na edição revista por Chantraine, nem sequer admite

a identidade etimológica de nèxofAm e JúTIXCO, aceita por Hofmann.

Pelo que toca o verbo TiexávwfM, a acepção de voar entrou na língua

escrita em data avançada e limita-se ao aoristo passivo sTisxáadrjv —

factos bem significativos, que não oferecem qualquer apoio à tese

duma raiz comum a mxávvvfu e a Jtéxo/nai. Mais tarde nos ocupa­

remos de êjteráaOfjv e da nova acepção que tomou. Aqui somente

diremos que com as palavras «a partir de Aristóteles voltou o aoristo

Ttexaodeíç, de Tiexávvvfii, à ideia de voar» (3) afirma A. C. implicita­

mente que aquela forma já tinha significado voar, o que uma simples

consulta aos léxicos prova ser inteiramente contrário aos factos.

Com as significações que associa à raiz *pet- constitui A. C. quatro

grupos principais, Entre elas acham-se a de abrir {desdobrar) e a de

voar que neste momento nos interessam de modo particular. Obser-

ve-se desde já que A. C. se viu compelido a distinguir diversos grupos

de ideias por aquela mesma fundamental divergência de sentidos que

determinou os etimologistas a ver no elemento *pet- duas (ou mesmo

três) raízes distintas, correspondentes às ideias de abrir (desdobrar,

estender), voar e talvez cair.

É, pois, antes o sentido do que a forma que decide neste caso,

que no grego se apresenta suficientemente ciaro. Considerando

7iexávvv/M, abrir e nexo/uai (e Jiérapiai), voar, é evidente que nem um

nem outro contém no seu tema qualquer elemento susceptível de

alterar o sentido do elemento JIEXCL-, que é uma das formas das res­

pectivas raízes (4). Se, apesar disto, as significações diferem tanto,

só uma conclusão é lícito tirar: trata-se de verbos etimologicamente

distintos (5).

(1) Designação abreviada de A G reek-English Lexicon, compiled by Henry George Liddell and Robert Scott. A New Edition Revised and Augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones (1925-1940).

(2) Dictionnaire grec-français, par M. A. Bailly, 1950. (3) Pág. 8. (4) liera- ascende a *peta-, visível em neravvvfu (formado sobre o aor.

èjtéraaa, por analogia com outros presentes em -vvv/u) e em néxa-nm; nêtofim resultou do desaparecimento de *a antes da vogal temática, que, por sua vez, não implica qualquer acréscimo de sentido.

(5) Distinção semelhante se nota no lat. pateo, estar aberto {acessível a) e peto, lançar-se sobre, atacar, que A. C. também filia na mesma raiz *peU.

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TIETAZQEIZ NUMA ODE ANACREÔNTICA 45

A despeito de serem semanticamente distintos, parece terem-se produzido por mais do que uma vez começos de confusão, E se esta não atingiu proporções mais vastas, dada a coincidência do elemento radical, foi isso devido à rigorosa repartição dos graus vocálicos pelos dois verbos. Observa-se, efectivamente, que no aoristo e no futuro o grau zero, *pt-, do elemento radical, coube ao verbo nêxo{xai, ficando o grau e representado nos mesmos tempos de Tteráwvfii. Como per­feito de Tiéropcm serviu uma forma de grau o do vocalismo radical, a que andava associado um sentido especial. É certo que o voca­lismo radical do perf. médio-passivo de nexáwvjxi apresenta o grau zero (1), não só do elemento radical propriamente dito, como do ele­mento vocálico que colabora com aquele na constituição dum elemento mais complexo, daqueles a que diversos A A. continuam a dar o nome de raízes dissilábicas, coincidindo assim com o vocalismo do aoristo médio de néxojxai.

Da mais antiga colisão entre os dois verbos resultou o emprego das formas compostas âvanráç e ãvamáfievai do aoristo de néro/nat na acepção de estender e abrir, respectivamente; a primeira é uma leitura devida a Zenódoto, do v. 351 do c. T da Ilíada (2); a segunda ascende a Parménides (séc. vi a. C.) e parece estar em vez do particípio do perfeito (2).

Estaremos em face duma simples confusão morfológica dos ver­bos 7iezávvvf.u e nérofiai? Não deixa, contudo, de surpreender que formas dum verbo naturalmente intransitivo, como é Ttèxofiai, tomas­sem o sentido de Tiexávvvjui, substituindo junto do complemento objectivo formas do Último: cp. %£ÏQaq ntxáaaag e %eÏQaç ãvaTixáç.

Em ambos os casos parece tratar-se, não da substituição do sentido de voar do verbo Tiéxopai pelo de estender, abrir, mas sim do emprego de formas daquele verbo como se pertencessem ao verbo nexavvvjii. Dada, porém, a existência de duas raízes *pet-, que se distinguiam apenas pelo sentido, não estaremos antes em presença de formas comuns aos dois verbos, apenas diferentes na significação?

Em sentido inverso, deu-se, a partir de Aristóteles (séc. iv a. C) , a passagem do aoristo de forma passiva hnzxaaO-nv e seus compostos à significação de voar. Veremos como poderia ter-se dado a aquisição do

(1) A forma nsnhao/iai do perf. médio-passivo é mais recente. (2) Cf. Lid-Sc. Salvo nos casos expressamente indicados, os exemplos são

extraídos deste dicionário.

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46 CARLOS SIMÕES VENTURA

novo significado. Neste momento importa examinar os aspectos morfológicos da questão. Tem-se considerado ejiExaaOqv como uma forma de jierávwfii, mesmo quando significa voar. A existência de néxafiai ao lado de néro/xai poderia levar-nos a pensar que se trata dum aoristo passivo do primeiro destes verbos. Mas, tanto quanto os documentos permitem supor, antes de Aristóteles èjcexáadrjv signifi­cava apenas abrir-se, e, por outro lado, os aoristos ligados a mxopiai são, como vimos, caracterizados pelo grau zero do vocalismo do ele­mento radical.

II

Há no artigo de A. C. várias afirmações insólitas que vamos comentar. '

Lê-se a pág. 8-9: «Tão próximos são os dois sentidos [de voar e desdobrar, abrir, isto é, abrir as asas] que sempre, quando empregado com valor médio ou reflexivo e em referência a um pássaro (1), se entendia abrir-se naturalmente como voar, pois tal é o objecto do gesto de abrir as asas. Para a criatura humana, diversamente conformada, abrir-se é, porém, abrir, estender os braços. Comprovo-o com esta cita de Opiano de Apameia, Cyneg. m, 106: jiejixa^iÉvm TIEQI xénva [léya nXaíovaiv ywaïxeç, abraçadas aos filhos, mulheres choram ruidosa­mente. O valor do perf. méd.-pass., com os braços estendidos, altera-se neste exemplo, em pequena medida, por força da presença de TIEQí,

elemento que serve de prevérbio aos verbos do sentido de abraçar: nsQinXeHOfiai, TteoiXa^ávco, Tieomréaaofiai, 7iEQiéi(o. Más não está aqui menos clara a ideia de estender os braços, porquanto tal gesto se inclui no de abraçar. Note-se, de acréscimo, que na voz activa, com objecto expresso, nenhuma dúvida pode oferecer mxávvojxi seguido, p. ex., de %£ÏQ(i, %s~iQaç, ou %BïQS. [...] A expressão a^fpo) %sÏQ8... nexáoaaç, tendo estendido as mãos, se vê também empregada [...] em xni, 549, do mesmo poema [i. e., da Ilíada].

«Ê pois indiscutível a relação entre nexáwvfii e a ideia de alongar os braços para alguém. E, segundo vimos, as formas médias e pas­sivas, de valor reflexivo, não reclamam a expressão do complemento directo, visto como Oxtêm implícito».

(1) E se o ser alado for uma abelha, um mosquito, etc.? Cf. Lid.-Sc, s. v. nétOjjLM.

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IIETAZQEIZ NUMA ODE ANACREÔNTICA 47

Em oposição com as ideias contidas no texto transcrito, ver-se-á que

abrir-se, só por si, não é abrir, estender os braços; que o valor do perf.

médio-passivo TtEntafiévai não é abraçadas, com os braços estendidos; que

hom. ãfMpoj %sÏQ£... nsxáaaaç, significa tendo estendido as mãos, porque

o objecto %EÏQe, mãos, está expresso e não porque haja uma relação

entre Tietávvv/M e a ideia de alongar os braços para alguém; e, final­

mente, que nas formas médias e passivas, de valor reflexivo (1), não

está implicito o complemento directo.

Examinaremos sucessivamente na longa transcrição que fizemos,

os significados atribuidos a TiE-zawv/M, em geral, e ao aoristo êjieráadrjv

e perf. méd.-pass. Tienrafiévai, em particular.

Segundo A. C. existe uma relação, que considera indiscutível,

«entre Jiexavvvfii e a ideia de alongar os braços para alguém».

Uma tal relação, diremos nós, teria de ser permanente, i, e,, sempre

que ao espírito se apresentasse a ideia que em grego se exprime por

meio de nexávvvfjit, o sentido não seria somente estender, alongar, mas

estender, alongar os braços. Por outros termos: expressa pelo verbo

siexáwvpi, a ideia de estender, alongar teria por complemento natural,

integrado no conteúdo semântico daquele verbo, a noção de bra­

ços (2). Como explicar, porém, que nem uma só vez 7ierávvv/.u tivesse

sido usado em sentido absoluto (3), como seria de esperar, uma vez

que na sua significação já estava contido o objecto da acção, e

(1) Emprego aqui naturalmente a mesma nomenclatura que o A.. (2) Estamos procurando interpretar rigorosamente o pensamento de A. C.

quanto ao significado que atribuía ao verbo nerávvvfii. Atente-se na expressão abrir, estender os braços, dada como correspondente a imráaBm' e nestoutras, abra­çadas e com os braços estendidos, dadas como equivalentes do particípio do per­feito médio-passivo.

(3) O passo de Teócrito (Id. 16, 6), em que houve junto de neráaaç omissão do nome que significa porta, facto observável igualmente no latim e nas línguas românicas do nosso conhecimento, sem excluir o português, não nos ensina que o verbo nexávwpii deva tomar-se em sentido absoluto; o complemento objectivo existe, bem que inexpresso. Trata-se apenas de um de vários casos em que era tida como supérflua a expressão dum nome por ser de grande frequência o seu emprego em determinadas frases ou expressões. Outros nomes omitidos são OIKOç, (OU òó{ioq), em expressões como eíç Ilqiáfioio, iv 'AXxivoio, etc., e rj/iéça junto de vareoaía. Com neráoaç subentende-se naturalmente diigav, ainda que nem todos os comentadores concordam neste ponto. Para Cholmeley, por ex., a palavra omitida é olnov, ao passo que para Kinaston é %sioaç. Não importa a dúvida dos modernos; o complemento de nemoaç estava com toda a nitidez no pensamento de Teócrito. O verbo é transitivo.

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48 CARLOS SIMÕES VENTURA

viesse, pelo contrário, sempre seguido de complemento objectivo (1),

expresso, não somente por xeWa (e XEíQe> Xe^Qa?)> m a s P o r muitos

outros nomes, tais como: íaría, eïfiara, nènXov, OVQCLV, nvXaç, e t c?

E se do verbo simples passarmos aos compostos, outros exemplos

poderão adicionar-se aos precedentes: bastará citar núycova, rgí^mva

TirsQvyaç. Esta possibilidade de jterávvvfíi se aplicar aos mais diver­

sos objectos prova justamente que não tem com qualquer deles rela­

ções particulares de sentido.

Pode talvez con»ecturar-se como o autor de tão estranha doutrina

foi levado a formulá-la.

No artigo que motivou estas observações, o seu A. não fez qual­

quer referência ao dicionário de Walde-Pokorny, que, no entanto, dir-

-se-ia conhecer. Lê-se, com efeito, no Vergleichendes WÔrterbuch:

«1. pet- (peta) ausbreiten (bes. die Arme)». «Especialmente os braços»,

eis as palavras que podem ter impressionado o espírito de A. C , que as

julgaria (?) (2) aplicáveis ao grego. Quer-nos parecer que, de se referir

a ideia de estender à noção de braços, no ramo germânico,

não se segue necessariamente que se tenha de considerar q facto como

indo-europeu. Para Hofmann a r. *pet- significa simplesmente «aus­

breiten», estender, abrir, desdobrar. E, se é lícito exprimir dúvidas

quanto ao indo-europeu, pelo que toca o grego, é o exame dos factos

desta língua e não pormenores próprios doutras muito diferentes, que

(1) A. C, raciocinando da maneira oposta, escreveu: «Note-se de acrés­cimo que na voz activa, com objecto expresso, nenhuma dúvida pode oferecer nsTávw/u seguido, por ex., de %eíQfi, xF'QaÇ o u xslge». A conclusão a tirar é muito outra: se o complemento %£ÏQa> X£íQe> %£lôaÇ> v e m expresso à parte, é porque não está contido no sentido de nerdvvvfu; caso contrário, havia de ser possível registar, pelo menos na fase mais antiga da língua, sinais do emprego daquele verbo desacom­panhado das formas %HÏQa, Xe^Qe e XE^QaS> naturalmente supérfluas. Quanto a outros nomes, o seu emprego como complementos objectivos seria incompreensível, se o verbo neráwvfii tivesse o sentido que A. C. lhe atribui. Um exemplo basta para demonstrar o que temos em vista: a frase nètaú" íaría significa «abriu (desdobrou) as velas» onde o complemento é íaría «velas» e não %£ÎOOQ «mãos, braços». Como se há-de conciliar o objecto acidental, velas, com o objecto natural e permanente, braços, com o qual está relacionado neráwv/u, no dizer de A. C?

(2) A dúvida que temos sobre este pormenor procede do seguinte: Walde--Pokorny, ao mesmo tempo que definem ind.-eur. pet- (peta-) «ausbreiten (bes. die Arme)», dão como significado de gr. nerdwv/iii, nírrqiu e nírvco, «breite aus»,' desdobro, estendo.. Sentir-se-ia A. C, mesmo assim, animado a atribuir ao grego o sentido peculiar de dados vocábulos próprios do ramo germânico ? Ou terá outra origem a ligação que estabelece entre nexávvvfa e a noção de braços ?

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nETAIQEIZ NUMA ODE ANACREÔNTICA 49

permite determinar com precisão o sentido de nuráwvfM, que é abrir,

estender, desdobrar e não contém a mínima alusão a qualquer conceito

nominal.

Segue-se mostrar que tão pouco as formas médias e passivas têm

implícita, como complemento directo, a noção de braços, ou outra.

Importa, para isso, observar alguns casos da expressão, pela voz activa

e depois pela voz passiva, da ideia de abrir (estender, desdobrar).

Voz activa: 1 — âvenéxaae (xrjv dvgav): abriu (a porta).

2 — ÈKTièxaae (xà~ Ttxegvyag) abriu (as asas).

Voz passiva: 1 — mèxáoQqoav (dvoerga): abriu-se (a porta).

2 — èmtáaOrj (referido a um ser alado) lit. abriu-se

(depois, voou).

Em ambos os casos da activa há um objecto sobre que incide a

acção (a. transitiva), mas ao passo que no primeiro exemplo o objecto

(porta) é estranho ao sujeito, no segundo o objecto (asas) é uma

parte do sujeito, que, consequentemente, ao praticar a acção

atinge uma parte do seu próprio ser. A importância desta diferença

surge com toda a evidência quando se dá expressão passiva ao pensa­

mento. Com efeito, na passiva, a sorte (muito diversa) do sujeito da

activa e do objecto directo depende de este último ser alheio ao sujeito,

ou, pelo contrário, parte integrante dele. Assim, no caso 1 (objecto

directo estranho ao sujeito) — ãvenéxaoe xr\v Bvgav, abriu a porta — o

sujeito (mais propriamente, o agente) deixa de ser um elemento pre­

ponderante na passiva, podendo mesmo não se mencionar, ou porque

é desconhecido ou porque não se quer dar a conhecer ou ainda porque

é desprovido de interesse: êjtex áadr/áav õvpexoa, a porta foi aberta,

ou a porta abriu-se. No caso 2, em que o objecto é parte do sujeito —

ènmxaae xàç Titégvyaç, abriu as asas — o sujeito continua, na passiva,

a desempenhar a função de sujeito e além disso desempenha também

a de agente (1): ênexáodr], abriu-se (2). Podemos chamar-lhe sujeito-

-agente.

(1) É muito frequente em grego esta acumulação das duas funções de sujeito e agente. Vid. sobre esta matéria André Prévôt, Laoriste grec en -Ot]v, Paris, 1934, pág. 99 e seg.

(2) Convém esclarecer a equivalência abriu-se = voou. Quando èjceTáa6t] tem por sujeito um ser alado, significa voou e esta acepção está documentada a par-

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50 CARLOS SIMÕES VENTURA 4

Quanto ao objecto, é fácil de ver a diferença de tratamento: ao objecto directo, quando alheio ao sujeito da activa, corresponde na passiva um elemento na função de sujeito (i. e. o elemento que sofre a acção); quando, porém, constitui parte do sujeito, pode(l) suceder que não haja na passiva qualquer expressão que o represente. É o que claramente mostra èjisráaO-r] abriu-se, referido a um ser alado. Apontadas as diferenças, convém dizer, antes de prosseguir, que ambos os tipos de passiva têm de comum o que é essencial à voz pas? siva ou seja indicar que um acto ou estado atinge o sujeito, consoante a expressão exacta de A. Prévôt (2).

Sendo êjteráaOT] (e seus compostos) referido a um ser alado, não há necessidade de indicar expressamente a parte em que incide a acção para se saber que é nas asas. Estas são, com efeito, a única parte em que o sujeito-agente alado exerce a acção expressa por aquela forma do aoristo passivo.

Compreende-se, por outro lado, que só em casos como este, em que está por natureza indicada a parte do sujeito-agente em que se dá a incidência da acção, se possa prescindir de a mencionar exprès-? sãmente, sem risco de ambiguidade. Resulta do exposto que, se em

tir de Aristóteles; cf. pág. 45. É, porém, de presumir que, visto tratar-se duma forma do verbo nisxáwvni, como é opinião corrente, antes de pas«»r àquela acepção, èneráaBi] teria, mesmo referido a um ser alado, o sentido comum de abriu-se. É visível como se passou duma significação para a outra. A acção de abrir-se, quando se dá num ser alado cujo nome exerce a dupla função de sujeito e de agente, incide naturalmente sobre a parte que naquele é susceptível de se abrir — as asas. Ora, abrir as asas é condição de voar. Portanto, abriu-se é, neste caso, o mesmo que abriu as asas, acto que é, ou pode ser, seguido por outro, cuja expressão é voou,

'Ejteráadtj, referido a seres alados, antes de significar voou, teria, pois, repetimos, o sentido de abriu-se=abriu as asas, que, contudo, não vemos documentado. Consideramo-lo, a pesar disso, porque, por um lado, êneráodr} alguma vez se usou naquela estrita acepção, e por outro, A. C, na sua inter­pretação, partiu da ideia de abrir-se; daí quisemos partir também para mostrar precisamente que o sentido de neraadeíç, na anacreôntica 33, não pode ser abrir-se, mas voar.

(1) Dizendo «pode», temos em vista salvaguardar a hipótese de, mesmo ncstf caso do sujeito-ageate, se indicar de qualquer forma a noção que na activa exercia as funções de objecto directo. Aqui, porém, interessa mantermo-nos dentro dos limites em que A, C. colocou a questão, considerando apenas o caso em que a parte do sujeito-agente que sofre a incidência da acção não vem indicada de nenhum modo. Aliás, é esse o problema que A. C, levantou — saber se a incidência da acção se dá nas asas ou nos braços de Eros.

(2) Op. cit., pág. 217 e ainda pág. 102.

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nETAIOEIE NUMA ODE ANACREÔNTICA 51

vez de uma, forem duas ou mais as partes do sujeito em que, por vir­tude da sua constituição, se pode exercer a acção, este tipo de frase tornar-se-ia obscuro, a não ser que interviesse a analogia para limitar, por ex., aos braços, a incidência da acção, no caso do sujeito-agente ser o homem, visto os braços serem neste o que as asas (1) são nas aves. Que saibamos, este emprego analógico de èneráaOrjv não está documentado, o que dá margem a pensar que tal analogia nunca se teria produzido. Fora deste caso, só poderia evitar-se a ambigui­dade mediante o emprego dura ti^o de frase mais complexo, em que a parte do sujeito atingida pela acção fosse claramente expressa. No âmbito destas notas apenas cabe, porém, considerar o tipo de frase mais simples, ou seja, constituído por êjteráodrj, tendo por sujeito o que na activa era objecto directo ou por sujeito-agente um ser de natu­reza alada.

Examinando o aoristo èneráaBrj, independentemente de qualquer sujeito ou sujeito-agente, a fim de fixar o valor de cada elemento com­ponente do tema, apura-se que, pelo elemento radical Tisra- aquela forma encerra estritamente a ideia de abrir; e que pelo elemento -Brj-o sujeito, qualquer que ele seja, é atingido pela acção. O sentido é pois, tão somente abriu-se ou foi aberto. Onde está aqui implí­cito o complemento directo? Onde há aqui qualquer referência próxima ou remota a uma noção nominal (2) que A. C. pre­tende sejam os braços com a mesma razão com que poderia afirmar que são as asas,?

Associemos agora a êTteráaOrj um sujeito que, conforme vimos, pode ser ou simplesmente sujeito — êTieráaõrjoav OVQETQCI, a porta abriu se,

foi aberta; ou sujeito-agente: êneráadr} {um ser alado, ou seja, uma ave

(õQVIç), uma abelha (fiéhaaa), etc.), abriu-se (posteriormente, voou).

No primeiro exemplo, èneráodrjoav Ôégerga, a porta abriu-se,

é visível que da combinação do sujeito com o predicado não

(1) Encolher as asas significa em português familiar encolher os braços. Não vemos, porém, que alguma vez em grego a noção de asas se tenha substituído à de braços.

(2) Para que uma noção nominal possa estar contida no sentido dum verbo é preciso que este tenha no seu tema um elemento de natureza nominal. É o que sucede nos chamadas verbos denominativos, v. g. eúòai/.iovíÇo}, considero feliz, do t. cvôaifiov- de eòòaífimv, feliz; e ôovkóoi, reduzo à condição de escravo, escravizo, do t. ôovlo- de ôovkoq, escravo.

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52 CARLOS SIMÕES VENTURA

resulta qualquer alteração no sentido do último, que continua expri­

mindo pura e simplesmente abriu-se.

Prestemos, porém, agora atenção à forma da passiva que mais

especialmente interessa aqui, ou seja aquela em que o sujeito é ao mesmo

tempo agente. 'EjieráaBr] indica que a acção de abrir (e só abrir) atingiu

o sujeito e foi por ele praticada. Vimos que, sendo o sujeito um ser

alado, não há necessidade de mencionar à parte o órgão de incidência

da acção — as asas — visto que tal órgão está definido por natureza.

Neste caso, ensxaadr é abriu-se, i.e., abriu as asas (e daí, mais tarde, voou).

Vimos igualmente que, por analogia com abriu as asas, aquela forma

teria significado abriu os braços, se tal analogia se produziu, o que resta

provar. Aparecem-nos, portanto, dois elementos novos—asas e braços—

o primeiro com o sujeito ave, o segundo com o sujeito homem. Daqui só

uma conclusão se pode tirar, mas essa clara e precisa: se as ideias de

natureza nominal surgem somente quando se considera um sujeito-

-agente, é com este elemento da frase e de modo algum com o verbo

que temos de as relacionar. Aliás, não é isso intuitivo? Não são as

asas parte integrante da ave, os braços parte integrante do homem?-

Não é quando se procura definir o sujeito homem e o sujeito ave que

aqueles órgãos são naturalmente considerados ? A afirmação de que

há em èjieráadr) um complemento directo implícito não tem, portanto,

a menor consistência. Trata-se dum estranho erro de localização:

a ideia nominal que A. C. viu implícita no verbo devia vê-la no sujeito

pois que a este pertence e respeita (1).

(1) Tão dominado estava pelo que supunha ser a boa interpretação do par-> ticípio nexaoBníç da anacreôntica 33, que tendo escrito (pág. 9) abrir as asas, depois abrir os braços, parece ter esquecido o complemento asas para só se lembrar do complemento braços. À mesma causa se deve certamente que não tenha tirado todas as consequências do que pensou e exprimiu a respeito de ênsráadtjv. Se se tivesse dado a um trabalho de reflexão, teria reconhecido que, admitir a existência do com­plemento implícito num caso, equivalia a admiti-la em todos, qualquer que fosse, o sujeito, visto tratar-se dum elemento de sentido que considerava integrado na signi­ficação do próprio verbo, e anomalias como estas: aporta abriu-se (^aporta abriu os braços), a ave abriu-se (=« ave abriu os braços), haviam de parecer-lhe lógicas consequên­cias da opinião que defendia. O complemento implícito pertence ao verbo (é A. C. que o diz), faz portanto parte do seu conteúdo semântico, que não se altera com a substi­tuição dum sujeito por outro. Deste modo, teria sucessivamente chegado a uma dupla conclusão, fatal à sua interpretação: o complemento implícito tinha de sef apenas um e achar-se presente em todos os casos, qualquer que fosse o sujeito. Esta­mos certos de que um exame da questão, assim ordenado, o teria impedido de persistir na sua ideia. Cf. o que dissemos pág, 47 e segs. a propósito de nerávw/ti.

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nETASQEIE NUMA ODE ANACREÔNTICA 53

Na anacreôntica 33, ènexáaQrj exprime a acção a um tempo sofrida e praticada por um sujeito dotado de asas e de braços ^Eros, filho de Afrodite, deus do Amor—e, segundo A. C , não significa voou, como supõem editores e comentadores, mas sim abriu os braços. O que acabamos de escrever acerca daquela forma e o que anterior­mente dissemos a respeito de Tterávvv/M mostra bem quanto é inexacta tal interpretação. Não vamos expender de novo as razões pelas quais se prova o absurdo de considerar implícito no verbo um complemento braços com o mesmo fundamento :om que poderíamos considerar um complemento asas. Apenas diremos, resumidamente, que, enquanto na activa o sujeito exerce a acção numa parte do seu próprio ser, expressa à parte, em acusativo (emprego transitivo do verbo, é o caso de êxnéraoe ràç Ttrégyyaç), na passiva o sujeito sofre a acção (o que, conforme vimos, é essencial à noção passiva) e neste caso, como em muitos outros, no grego, pratica-a em si mesmo, é portanto sujeito--agente, podendo ficar inexpressa a noção correspondente ao objecto directo da activa, contanto que, ou o contexto ou a constituição do sujeito, a indiquem claramente. Afastada, portanto, a noção nominal de braços, estranha ao verbo, com que A. C. gratuitamente determina a parte do sujeito em que se dá a incidência da acção, fica o sentido próprio de meraodrj abriuse, desdobrou-se, que não permite identificar a parte do sujeito especialmente atingida pela acção, visto que Eros tanto pode abrir os braços, como as asas. Como resolver o problema de saber em qual dos dois órgãos se dá a acção? Duma só maneira : atri­buindo ao aor. êjiexáaOr] a significação de voar, que já tinha havia mui­tos séculos e que tradutores e comentadores, com justificada razão, lhe têm dado.

«Abrir-se é abrir, estender os braços», escreve A. C . Para o com­provar socorre-se do seguinte passo de Opiano (Cyneg., m, 106): Tiejirafiévai JCSQÍ réxva fxéya xXaíovoi yvvaïxeç, que, como Se vai ver, apenas serviu para aumentar o engano em que se deixou irreme­diavelmente cair.

O particípio passivo Tienra/uêvai define o estado do sujeito yvvaïxeç, em consequência duma acção nele, e por ele, realizada, Significa, portanto, abertas, estendidas, desdobradas. Aqui o sujeito é ao mesmo tempo agente e é um ser dotado de braços; Ttejira/névoç ocorre, porém, na mesma acepção de aberto, estendido, desdobrado, junto de nomes designadores de noções que nada têm que ver com a

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54 CARLOS SIMÕES VENTURA

de braços, como nvXai, portas, nèlayoq, mar, x&aq, velo, ãxavdoç, acanto e outros. Demonstrámos que em caso algum ne,xáwvp,i está relacionado com a ideia nominal de braços, O absurdo da concepção surge, porém, na sua plenitude quando se trata de coisas a que aquela é inteiramente alheia, como porta, velo, acanto, etc. (1).

Voltando ao perfeito passivo, também aqui é possível descobrir a origem do equívoco em que incorreu o A..

O passo de Opiano acha-se registado nos dicionários de Bailly e de Líddell-Scott. O primeiro define assim Tterávwfu na voz média: «se déployer, se répandre» e traduz o passo de Opiano: «jeter ses bras autour de qqn, le tenir embrassé»; o segundo não traduz o passo, mas define a voz passiva: to be spread on all sides e o partidpio do. perfeito: spread wide, opened wide.

Bastava A. C. ter prestado alguma atenção às definições dos dois dicionários para se não deixar empolgar pela ideia do aparente auxílio que a tradução de Bailly trazia à sua concepção a respeito do verda­deiro sentido de Tteraodelç, na anacreôntica 33. Viu as palavras bras e embrassé e não foi preciso mais nada para se exprimir desta maneira(2): «Para a criatura humana [...] abrir-se é, porém, abrir, estender os braços»; «o valor do perf. méd-pass. com os braços, estendidos, altera-se, etc».

Porque é que não tendo o fr. (se) déployer, (se) répandre, qualquer espécie de ligação com bras, se lê, contudo, na tradução do passo de Opiano não só aquela palavra mas uma forma do seu derivado embrasser? Eis o que importa investigar. A expressão nenrapsvai TIEQí réxv«significa literalmente «abertas (desdobradas, estendidas) em volta dos filhos». ' E Bailly, entendendo que o que as mães estendem em torno dos filhos para os defender são os braços, fez a mencionada tradução, que tem

(1) A. C. exprime-se (ou parece exprimir-se) como se o verbo neráwvfii, em todas as suas formas, se usasse apenas referido a seres dotados de asas ou braços, esquecendo mesmo por último, as asas, para só considerar os braços, quando afirma: «é pois indiscutível a relação entre nsxávvvjii e a ideia de alongar os braços.» Não podemos, evidentemente, admitir que para o A. a ideia de braços estava presente no verbo quando isso convinha à sua demonstração e ausente quando não convinha, tão estranha coisa seria. Se neravvvfu contivesse referência a braços, num caso, havia de contê-la em todos, e em todas as suas formas, por absurdas que sejam as conclusões. Cfr. pág. 52. n. 1.

(2) Cf. pág. 46.

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nETASQEIE NUMA ÔDË ANACREONTIC A 5 3

o defeito de ser demasiado precisa em face dum original que é de sua natureza vago, impreciso, se não obscuro (1). A ideia de braços teria portanto nascido da combinação do estado expresso pelo particípio nenrafiévog estendido, desdobrado e atribuído ao sujeito, com o movi­mento envolvente indicado por TCSQÍ e acusativo. Teria nascido, dissemos nós, mas no espírito de quem? de Opiano? vimos que no escólio a Cyneg., 111, 106, se dá Ttenra/iévcu como equivalente de Qmró/xevai, que, repetimos, exclui qualquer referência à ideia de braços. A esta, demasiado precisa, é talvez preferível a ideia muis vaga, mas, por isso mesmo, mais conforme com a expressão original, dum movimento envolvente, não estritamente dos braços, mas de todo o corpo. Uma tradução como «desdobradas em torno dos filhos», além de estar mais próxima do sentido próprio do participio nenxapiêvai, oferece, pelo seu carácter vago, mais vasto campo à faculdade de imaginar. Mas entenda-se como entender (2), o resultado, para o caso que estamos procurando aclarar, é o mesmo: não é no verbo que está contido o conceito nominal, de braços ou outro qual­quer, que a expressão TIEQL xêxva possa sugerir, mas sim no sujeito (3). Nesta falha de localização está a causa essencial de A. C. ter con­cebido e confiado à escrita coisas tão estranhas acerca dum verso anacreôntico.

(1) A interpretação de Bailly não é a única. Lehrs leu nemá/nevai e traduz: «volitantes circum liberos». Mair na versão destinada à Colecção Loeb, seguiu a lição de Lehrs, entendendo: «women fall upon their children's necks». Cf. o escólio nenrafiévac Qinrófisvai «lançando-se», que não contém a mínima alusão a braços ou a qualquer outra noção de valor nominal.

(2) Nem se afasta mesmo a hipótese duma acção analógica exercida por uma expressão de que, contudo, não temos conhecimento, constituída por um nome de ave e o particípio nsTCTa/iévoç, se não antes pelo nome megvyec «asas» e o mesmo particípio (cf., na voz activa, âerovç òiajienETaxóxaç, ràç nrêgvyaç, Diodoro Sículo, 17, 115), embora a acção analógica devesse dar-se mais naturalmente entre as expressões aves desdobradas (= a. com as asas d.) e mulheres desdobradas — com os braços (semelhantes às asas) desdobrados. Nesse caso, o estado, embora referido ao nome da ave, respeitaria especialmente às asas como a única parte susceptível de ser qualificada com o particípio neiuapLÉvoç, {desdobrado, aberto) ; cf. o que se disse a propósito de êTteráaõ^v.

(3) Aqui, como no caso de ènexáaBr} (cf. pág. 52), o conceito nominal apa­rece com o sujeito; logo, é com este e não com o verbo que temos de o relacionar.

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56 CARLOS SIMÕES VENTURA

III

Depois de ter procurado vincular a ideia nominal de braços ao particípio nexaadsic, A. C , não podendo deixar de reconhecer que Eros tinha asas, sentiu, contudo, que esse facto constituia um grave obstáculo à sua laboriosa interpretação. E compreende-se porquê. Recordemos um tópico essencial na teoria do A.: «empregado com valor médio ou reflexão e em referência a um pássaro, entendia[-se] abrir-se naturalmente como voar». Aplicado a Eros, o particípio Tteiaodeíç só pode, pois, significar tendo-se aberto, abrindo-se = tendo voado, voando, visto que o filho de Afrodite tinha asas como um pássaro, era Tizeoóeiç ã>ç õQVIç(\), e tendo asas, abrir-se entende-se naturalmente como voar, de acordo com o A., que, para fazer subsistir a sua interpretação, só tinha um meio: tirar a Eros a capacidade de voar (2). Cumpre-nos, nesta série final das nossas observações, resti-tuir-lha.

Eros, já o dissemos, tinha asas, com que sua mãe o dotara, não por mero enfeite, mas para ter nelas um meio rápido de deslocação. •

Fazendo tábua rasa dos juízos que a Antiguidade formulou a respeito daquela divindade, A. C. descreve-a nestes termos: «criança frágil», «o poeta anacreonteu pintou[-o] mais infantil, mais delicado, mais tímido, mais ingénuo». «Essa criaturinha simples e assustadiça não dispõe da superioridade do voo».

Ler isto é sentir um assomo de ternura pelo deusinho aguilhoado e dolorido. Estamos, porém, longe da verdade.

Para conhecer Eros e penetrar os sentimentos da Anti­guidade a seu respeito, basta percorrer Teócrito, Bíon, Mosco e os epigramas amorosos da Antologia Palatina. Não é já, evi­dentemente, o Eros de Anacreonte, temerosa divindade, pode-

(1) Mosco, Eros fugitivo, v. 16. IlreQÓen;, lit. provido de asas, nregá, palavra que, como lat. penna, asa1 designa etimologicamente o órgão do voo, pois se liga à r. *pet-, voar. Cf. Hofmann, op. cit.. As asas serviam portanto a Eros, como a qualquer outro ser delas provido, para voar, e muito nos admira que alguém se lembrasse de dizer o contrário.

(2) Eis as palavras textuais: «Essa criaturinha fi. e. Eros] [...] não dispõe da superioridade do voo». Caso singular: nega-se a possibilidade de voar a Eros que tinha asas e delas fazia incontestável uso, como veremos, e rejeita-se a acepção de voar de neraodsíç, que na anacreôntica 33 não pode ter outra.

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nETAESEIE NUMA ODE ANACREÔNTICA 57

roso senhor dos deuses, dominador dos homens, que fere a golpes de machado (1), que a poesia alexandrina nos dá a conhecer; mas é, em todo o caso, um ser maldoso {a%êxXioç) (2), de más entranhas (tcaxal cpQÉveç) (3), funesto (ovXoç) (4), cruel (âviagóç) (5), terrível (ôeivóç) (6), doloroso (àgyaXéoç) (7), selvagem (ãyQtoç) (8), {ãváfjLBQOç) (9), insolente (dgaavc) (10), praga dos mortais (fíQoxoXoi-yóç) (11), odioso a todos {nãaiv êuiéyO st ai) (12), um monstro completo (jtávra Teoaç) (13), alma em nada parecida com a sua beleza {{xoQcpã vóov ovòèv ofioiov) (14), de riso acer o {mxQa ye\ã){\5) e arco traiçoeiro (ôóhov) (16).

É esta a verdadeira e pouco recomendável personalidade do Eros alexandrino.

Combinando dois indícios, a ausência duma alusão ao emprego das asas no Eros ladrão de mel e a fragilidade que considera própria daquele que chama o «herói das duas composições», A. C. emite, como vimos, o juízo de que Eros não possuía capacidade de voo. A des­crição, baseada nos textos, que acima esboçámos daquela divindade, mostra, porém, que a sua fragilidade era aparente e disfarçava uma actividade pérfida e cruel, um poder terrível e maléfico. E era para dar relevo a tais atributos que poetas e escultores se compraziam em o representar em figura de criança débil. Ouçamos Legrand(17): «Eros

(1) Anacreonte 48 (46). (2) Antologia Palatina, 1. v, epigrama 57 (segundo a numeração de «Les

Belles Lettres»). (3) Mosco, Eros fugitivo, v. 8, (4) Mosco (?) Epigrama, v. 2. (5) Teócrito, Idílio II, v. 55. (6) Antol. Palat. 1. v, epigrama 175. (7) Teócrito, Idílio i, v. 98. (8) Antol. Palat., 1. v, epigrama 177. (9) Mosco, Eros fugitivo, v. 10.

(10) Antol. Palat., \. v, epigrama 177. (11) Antol. Palat., 1. v, epigrama 180. (12) Antol. Palat., 1. v, epigrama 177. (13) Antologia Palatina, 1. v, epigrama 178. Monstro horrível, eis como o

oráculo, interrogado pelo pai de Psique, teria designado Eros, sem o nomear. Cf. Pierre Grimai, Dictionnaire de la Mythologie grecque et romaine, Paris, 1951.

(14) Bíon, Fragmento xi, 5. (15) Antologia Palatina, I. v, epigrama 180. (16) Antolog. Palatina, 1. V, epigrama 188. (17) Bucoliques grecs, il, Paris, Les Belles Lettres, 1951, pág. 135.

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58 CARLOS SIMÕES VENTURA

est représenté ici, comme toujours à l'époque alexandrine sous les

traits d'un enfant; Moschos développe (no Eros fugitivo) le contraste

qui existe entre sa débilité apparente et les maux terribles qu'il cause,

entre sa gentillesse et sa cruelle perfidie.

Dans les carrefours où Kypris le soupçonne de rôder, à quoi

s'occupe-t-il ? Il s'occupe à la chasse à l'homme. Rien n'indique

qu'il soit inconscient de sa force et de ses méfaits. Malgré sa taille

réduite et sa panoplie conventionnelle, il reste un digne cadet du redou­

table Éros d'Anacréon».

Se é ilusória a fragilidade de Eros, não o são menos a timidez e a

ingenuidade que A, C. lhe atribui(1), A descrição atrás esboçada

e as palavras de Legrand opõem a tais predicados o mais

completo desmentido. Vejamos ainda o que a este respeito escreveu

Pierre Grimai (op. cit., s. v. Eros): [.] toujours — et c'est là un thème

favori des poètes — sous l'enfant apparemment innocent ou devine le

dieu puissant, qui peut, au gré de sa fantaisie, causer des blessures

cruelles».

O Eros alexandrino não era, pois, nem frágil, nem tímido nem

ingénuo.

O Eros das anacreônticas era, como o da poesia alexandrina, repre­

sentado em figura de criança débil: tinha de comum com ele a perfídia

e o poder maléfico (basta recordar a anacreôntica 31, que refere como,

depois de ter recebido agasalho e carinho, despede um dardo traiçoeiro

contra quem dele se apiedara), bem como o riso com que remata os seus

actos de crueldade ou responde ao desespero de suas vítimas (2).

Longe de vermos nele a criança frágil, tímida e ingénua, julgamos que,

pelo contrário, o Eros dos poetas anacreônticos, no que toca à activi­

dade malfazeja, é o digno continuador do Eros dos alexandrinos.

A. C. podia ter visto que na anacrôntica 33, como no Eros ladrão de

mel, composição que ascende talvez à época alexandrina, o pequeno

drama da ferroada da abelha com os consequentes uivos do deus, é

mero pretexto para, pela boca de Citera, lembrar àquele que a dor

causada pelo aguilhão duma abelha é nada à vista dos tormentos devi­

dos aos seus dardos.

(1) Cf, pág, 56. (2) Com a anacreôntica 31 comparem-se os epigramas 176-180 do I. v da

Antologia Palatina.

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nETAZQEIS NUMA ODE ANACREÔNTICA 59

Sendo a fragilidade de Eros aparente, nenhuma base fica para supor aquela divindade incapaz de voar, coisa que ninguém antes de A. C. se lembrara de dizer. Por nossa parte, podemos, com base nos textos, provar o contrário.

No poema figurado Asas,, de Símias, contemporâneo de Teócrito, Eros é œxvjihr]ç (1), de rápido voo; no Eros fugitivo, de Mosco, h<pínxaxai(2), voa, tem como sujeito Eros; no fragmento xi de Bíon, a mesma personagem é dita Ttxavóq (3), que voa e nos epigramas 177 e 179 do 1. v da Antologia Palatina, as palavras imoTixáfAevuç tendo voado, voando, do 1.° e èxnêxaoov, voa, do 2.°, referidas a Eros, não deixam dúvidas acerca da sua capacidade de voar. E que o mesmo deus conservou essa capacidade para além da época imperial, é o que permite igualmente concluir a Ode a Adónis morto (4), naquele passo em que os Amores partem voando (notava!,) à cata do javali que matou Adónis. A estes testemunhos, podemos agora acrescentar o da ana-creôntica 33. cujo Eros A. C. indevidamente privou da faculdade de voar.

Concluindo. A. C. procurou demonstrar que mxávvvjii. está relacionado com a ideia de alongar os braços; que ènexáodrjv, na ana-creôntica 33, não significa voar mas abrir, estender os braços; que o particípio do perfeito médio passivo deve entender-se com os braços estendidos e que Eros «não dispõe da superioridade do voo».

Contra tal interpretação e doutrina ficou demonstrado que jiexávvv/M não tem com a ideia de alongar os braços qualquer relação ; que ênexáaOí] na anacreôntica 33, não significa abriu, estendeu os bra­ços (acepção aliás nunca documentada), mas sim voou; que a noção nominal de braços é alheia ao perfeito médio-passivo e que Eros fazia uso das suas asas.

Coimbra, 7 de Abril de 1953.

CARLOS SIMÕES VENTURA

Cf.

(1) (2) (3) (4)

V.

V.

V.

V.

legrand,

Q_

16. 6. 7. np.

Esta cit..

composição pág. 110.

parece datar dos primeiros séculos bizantinos,

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