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A Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e o seu papel
na institucionalização da Psiquiatria (1907-1928).
EDE CONCEIÇÃO BISPO CERQUEIRA∗
O presente estudo busca analisar o modo como a Sociedade Brasileira de Neurologia,
Psiquiatria e Medicinal Legal foi constituída enquanto sociedade científica, contribuindo para
institucionalização da especialidade médico-psiquiátrica, no período de 1907 a 1928, no Rio
de Janeiro. Procurando identificar, nas exposições e debates sobre casos clínicos e
diagnósticos, as preocupações dos médicos membros da Sociedade acerca da constituição da
prática psiquiátrica, assim como do seu próprio estatuto profissional. Para isso utilizo como
fontes primárias as atas de reuniões da SBNPML, publicadas no seu periódico oficial os
Arquivos Brasileiros1
A Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal foi fundada
durante uma reunião na Academia de Medicina, no Rio de Janeiro, em 17/11/1907, por um
grupo de 40 médicos, dentre os quais destacam-se nomes como os de : Miguel Couto, Juliano
Moreira, Fernandes Figueira, Carlos Eiras, Afranio Peixoto, Miguel Pereira, Carlos Seidl,
Ulysses Vianna Filho, Antonio Austregésilo, com o propósito, que segundo seus fundadores,
era de trabalhar em prol da maior difusão do estudo dos “ramos do conhecimento médico”
que a nomeavam, assim como “fazer uma grande propaganda em favor da melhora da sorte
dos alienados” e daqueles que a eles se dedicavam (ABPNCA, 1907: 435-436).
A Sociedade teve como órgão oficial de divulgação o periódico Arquivos Brasileiros
de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (1908-1918) enquanto uma sequência do
periódico Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins (1905-1907),
criado em 1905 por Juliano Moreira e Afranio Peixoto. Este primeiro periódico mudou de
nome, recebendo o mesmo nome da Sociedade ao tornar-se o órgão oficial desta entidade em
1908, mantendo porém, a numeração corrente do primeiro periódico (Amarante, 2004: 18;
Facchinetti; Cupello; Evangelista, 2010: s/p; Venancio, 2011: 414).
Os primeiros estatutos da Sociedade foram elaborados por uma comissão de médicos,
formada por Afrânio Peixoto, Henrique Roxo e Carlos Eiras, que foi designada por Juliano
∗ Fiocruz – Casa de Oswaldo Cruz, Mestranda do curso de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde,
Fiocruz. 1 Arquivos Brasileiros de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal (1908-1918) e Arquivos Brasileiros de
Neuriatria e Psiquiatria (1919-1928).
Moreira logo após a fundação da instituição (Amarante, 2004: 18). Estes estatutos passaram
por reformas em 1915, e novos estatutos foram aprovados em 1919, sendo reformados em
1923 e 1928. Mas em seu conteúdo foram preservados os objetivos da Sociedade sem grandes
mudanças, no intuito de concorrer para o “desenvolvimento e progresso das especialidades”;
divulgar a produção destas nos círculos científicos nacionais e estrangeiros; “estudar e
propagar recursos profiláticos contra o aparecimento e disseminação dos distúrbios mentais” e
“interessar-se pela sorte dos alienados e nervosos”, principalmente em relação às questões
médico-legais e “influindo por todos os meios ao seu alcance” para bem assisti-los (ABNP, 3º
trimestre, 1920. Atas da SBNPML, Sessão de 17/11/1920: 329).
Segundo os estatutos da Sociedade os nomes dos candidatos a tornarem-se membros
desta instituição eram indicados por um sócio ou por moção assinada por vários sócios. Para
ser membro da Sociedade existiam exigências especificas a serem cumpridas pelos candidatos
de acordo com as diferentes “classes de sócios”.Segundo cap. III dos Estatutos de 1919, que
trata sobre a admissão dos membros da Sociedade, as exigências para ser admitido como
sócio efetivo eram as mesmas para os candidatos a membros correspondentes, com a
diferença que, destes últimos, não seria exigido “residir na Capital Federal ou em lugar
próximo que lhe permita assistir as sessões”, como era cobrado dos efetivos. Em linhas gerais
era exigido de ambas as classes citadas satisfazer uma das seguintes condições: ter publicado
trabalhos sobre as especialidades ou ciências afins; ter exercido cargos oficiais ou hospitalares
relacionados às especialidades; ter sido interno das clínicas de psiquiatria, neurologia ou ter
estagiado no gabinete de Medicina Legal de uma das Faculdades do país; ser pessoa de
notório saber nas áreas que compunham a Sociedade; ser formado em medicina e ter sido
proposto para membro por três sócios efetivos, sendo aceito por maioria absoluta de votos
(ABNP, Ano II, 1º Trimestre, 1920: 59-61).
Em relação aos membros honorários, é citado que tal título poderia ser conferido a
médicos nacionais ou estrangeiros de “notória reputação científica nos assuntos da
Neurologia, Psiquiatria ou Medicina Legal”, tendo seu nome apresentado por pelo menos
treze membros, com proposta e justificativa, contendo títulos e méritos do indicado, e sendo
assinada por estes. Os membros efetivos também poderiam tornar-se honorários, após vinte
anos de serviços prestados à Sociedade, se fossem reconhecidos pelos membros desta como
dignos, com proposta igual à anteriormente citada e aprovação de pelo menos 2/3 dos votos
presentes, o que também valia para os estrangeiros (ABNP, Ano II, 1º Trimestre, 1920: 59-
61).Quanto a sócios que tenham deixado à Sociedade por exclusão, não aparecem registros,
uma vez que as atas das sessões em que as exclusões aconteciam, por serem secretas, não
foram publicadas no periódico. Aparecem apenas menções a sócios remidos em atas de 1915
e 1918 (SBNPML, sessões: 21/05/1915 e 10/04/1919).
A diretoria da Sociedade, segundo suas atas e estatutos de 1915, era composta pelo
presidente, vice-presidente, secretário geral, 1º e 2º secretários, tesoureiro, e três comissões
(neurologia, psiquiatria e medicina legal), cada uma composta por seis membros efetivos que
representassem a área. Com a aprovação da reforma dos estatutos em 1923, a Sociedade
passou a ter dois vice-presidentes na diretoria, e foram criadas as comissões de Assistência
profilática e curativa das neuropsicopatias e de Psicologia e Biologia aplicadas à
neuropsiquiatria. Após a decisão da Diretoria, em 1926, de realizar separadamente as sessões
relativas a cada uma das áreas contempladas pela Sociedade, as cinco comissões ficaram mais
independentes, cada uma tendo um presidente e um vice-presidente próprios (ABNP, 3º
trimestre, 1920: 73-76; Atas da SBPNML, 1908, 1920,1925 e 1927).
Mas, quem eram os médicos que constituíram tal sociedade científica? A SBNPML
reunia médicos de várias especialidades como pediatria, ginecologia, dermatologia,
oftalmologia, otorrinolaringologia e cirurgia, que trabalhavam no Hospício Nacional de
Alienados e em outros hospitais tanto da assistência pública como da privada, representantes
da medicina legal e aqueles médicos que estavam especializando-se no tratamento das
“doenças mentais e moléstias nervosas”, experimentando, construindo, legitimando e
delimitando novos campos da medicina e novas identidades profissionais e sociais como
psiquiatras e neurologistas (ou neuropatologistas). Médicos que estavam preocupados em
delimitar as fronteiras, até então difusas, entre as especialidades médicas, recém criadas no
Brasil, da psiquiatria e neurologia (neuriatria ou neuropatologia), diferenciando-as entre si e
em relação às “ciências afins”, como medicina legal e psicologia2.
2 Artigos que tratam sobre a psicologia são encontrados em seu conteúdo desde a publicação dos
primeiros números do periódico Arquivos Brasileiros em 1905 com o artigo de Maurício de Medeiros intitulado “O que é uma emoção?” ou do mesmo autor de 1908, o artigo “A questão dos métodos em psicologia”. Ver ABPNML, nº3-4, 1905:233/ ABPNML, nº1-2, 1908: 23.
Além dos médicos do então Distrito Federal, onde a SBNPML estava estabelecida,
faziam parte médicos de outros Estados brasileiros e também de países das Américas do
Norte, América Latina, Europa e Ásia, formando um grupo grande e bastante heterogêneo.
São atores sociais com interesses e funções diferentes, mas que partilhavam da identidade
profissional de médico, e, em maior ou menor grau, do entusiasmo por correntes teóricas
específicas.
Procuro pensar estes médicos como atores que participavam de setores diversos da
sociedade, vinculando-se a instituições assistenciais e de ensino, assim como a outras
associações científicas. Podemos citar, entre as instituições brasileiras, as Faculdades de
Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, hospícios de vários estados brasileiros como o
Hospício Nacional de Alienados (RJ), o Hospital Colônia do Juquery (SP), Hospício São João
de Deus (BA), clínicas particulares, a Liga Brasileira de Higiene Mental,3 o Manicômio
Judiciário. Estes médicos também transitavam pelas esferas do Executivo e do Legislativo, de
forma direta como o Dr. João Carlos Teixeira Brandão, que, eleito deputado estadual pelo Rio
de Janeiro, foi relator da primeira Lei Geral de Assistência aos Alienados em 1903 (Teixeira,
2005: 49-50), ou de forma indireta, por meio de alianças políticas.
As reuniões desta sociedade científica dividiam-se em sessões ordinárias,
extraordinárias e solenes. As sessões ordinárias eram iniciadas pelo presidente da mesa,
função que, durante a maior parte do período estudado, foi atribuída a Juliano Moreira,
enquanto presidente perpétuo4 da Sociedade. Em seguida eram lidas, pelo 1º ou 2º Secretário
da Sociedade, as atas da sessão anterior, para que fossem discutidas e votadas (ABNP, Ano II,
1ºTrimestre, 1920: 63-64).
3 A LBHM foi fundada no Rio de Janeiro, em 1923, pelo psiquiatra Gustavo Riedel, com o objetivo
inicial de melhorar a assistência aos doentes mentais; porém, a partir de 1926, as aspirações iniciais ampliam-se, visando à prevenção, eugenia e educação dos indivíduos Costa, 2006: 39-40.
4 Ainda não foi possível localizar, precisamente, o ano em que fica instituída a decisão de tornar Juliano Moreira presidente perpétuo da Sociedade. O que foi possível perceber, até agora, com a análise das fontes, é que tal mudança pode ter ocorrido entre 1915 e 1919, pois na reforma dos Estatutos da Sociedade publicada em 1915, nenhuma referência é feita sobre tal mudança no cargo da presidência da associação. Já em 1919, a reformulação dos Estatutos, publicada em 1920, incorpora a estes o cap. XIII art. 65, que, como “Disposição Transitória”, declara que a Sociedade manterá “a sua antiga resolução de considerar seu presidente perpétuo o atual consócio que exerce o cargo de presidente” ABNP, Ano II, 1º Trimestre, 1920: 71.
Na primeira parte das sessões eram feitos comunicados que versavam sobre
falecimentos de médicos da comunidade nacional e internacional, muitos destes também
sócios daquela instituição; votos de congratulações era dedicados aos membros, que
assumiam cargos em instituições médicas, ou recebiam títulos. Também havia informes sobre
os congressos nacionais e internacionais para os quais os representantes da Sociedade estavam
convidados a participar; falava-se sobre as revistas recebidas de outras comunidades
científicas e notícias da assistência aos alienados, em outros estados do Brasil (ABNP, Ano II,
1ºTrimestre, 1920: 64-65).
Na sequência as atas registram a segunda parte da reunião, ou “ordem do dia,” que no
cotidiano das sessões significava iniciar as apresentações de casos clínicos por um ou dois
médicos, que seriam debatidos pelos presentes; fazer uma comunicação sobre estudo
desenvolvido por um dos membros; ou apresentar um relatório sobre visita a instituições
nacionais e internacionais de produção do conhecimento ou assistência médica, como
universidades e hospitais. (ABNP, Ano II, 1ºTrimestre, 1920: 63-64).
Analisando as atas do período aqui estudado, percebe-se que os casos clínicos
geralmente eram referentes a pacientes do HNA, porém foram encontrados relatos de casos
cujo paciente estava aos cuidados de outras instituições de assistência, do Rio de Janeiro ou
de outros estados brasileiros como o Juquery em São Paulo. Em alguns casos o paciente
estava presente à reunião, como previam os estatutos da Sociedade, sendo examinado por
alguns dos médicos ali presentes, enquanto o relator do caso apresentava as informações que
compunham o histórico familiar do paciente, a anamnese, diagnóstico, etiologia e terapêutica
(Atas da SBNPML de 1908-1928).
Geralmente os debates concentravam-se no quesito do diagnóstico, já que a maior
parte dos casos consistia, segundo os médicos, em situações de definição difícil. Os casos
apresentados nestas discussões não parecem ser os mais comuns da clínica médica, mas
aqueles que trazem um elemento singular, que eles consideravam ser dignos da apreciação de
seus pares, seja pela dificuldade na definição do diagnóstico ou da terapêutica. Ou seja,
mesmo considerando que, alguns diagnósticos apareçam frequentemente nas reuniões, é
preciso estar atento, pois, em cada um deles, existe um diferencial que possibilitou sua
escolha, divulgação e discussão pelos médicos. Outro tipo de apresentação, relativo a clínica
médica, eram as comunicações que versavam sobre estudos desenvolvidos pelos médicos, a
respeito de determinado tipo de perturbação físico-moral e/ou forma de tratamento.
No estudo dos debates referentes ao uso de categorias para diagnosticar perturbações
físico-morais, é possível perceber a preocupação de alguns médicos, membros desta
instituição, para “que se fizesse uma fusão das classificações existentes, de que resultassem
uma que servisse de paradigma aos trabalhos da Sociedade” proposta apresentada por Antonio
Austregésilo em sessão de 1908. Na ocasião o Dr. Henrique Roxo alertou sobre a
impossibilidade da realização de tal ideia, “dada a divergência de base de cada classificação”.
Porém, após discussões, a proposta do Dr. Austregésilo foi aprovada pela maioria dos
membros presentes, ficando estabelecido uma comissão composta por Dr. Juliano Moreira,
Carlos Eiras, Ulysses Vianna Filho, Afranio Peixoto, Henrique Roxo e Austregésilo para
elaboração da classificação (ABPNML, n. 1 e 2 1908. Atas da SBNPML, Sessão de
05/04/1908: 212).
Contudo, a elaboração desta classificação de “doenças mentais” pela comissão
aprovada não se concretizou, o que levou Juliano Moreira, em 1910, a apresentar aos
membros da Sociedade uma classificação preparada por ele em conjunto com Carlos Eiras, a
pedido da Repartição de Estatística, propondo que esta fosse adotada como padrão. Nesta
ocasião Juliano Moreira solicita que os médicos façam a equivalência entre os termos
utilizados nas “papeletas” dos seus pacientes com os daquela classificação, adotada pela
Sociedade, utilizando-a nas estatísticas dos seus serviços (ABPNML, n. 1 a 4, 1912. Atas da
SBPNML, Sessão de junho/1910: 382-384). Em 1920, dez anos depois de ter apresentado a
classificação pela primeira vez à Sociedade, Juliano Moreira citava o apelo do demógrafo
Bulhões Carvalho para que a Sociedade reiterasse junto aos Estados “o pedido de
uniformização do agrupamento nosográfico dos distúrbios mentais, de acordo com o
esquema” que a Sociedade aprovou e Bulhões adotou nos quadros oficiais da estatística
(ABNP, 3º trimestre, 1920. Atas da SBNPML, Sessão de 17/11/1920: 328).
Além das sessões ordinárias, já apresentadas, existiam também as sessões
extraordinárias e as solenes que eram convocadas pelo presidente, ou requisitadas por cinco
membros efetivos, no mínimo. Estas, geralmente, serviam para homenagear representantes da
comunidade médica internacional e nacional, e para celebrar datas comemorativas como o 20º
aniversário da direção do Prof. Juliano Moreira na Assistência a Alienados Federal; o
aniversário da fundação do Hospício Pedro II, que segundo Juliano Moreira, marcava o
princípio da Assistência aos Alienados no Brasil e era uma data comemorativa registrada nos
estatutos da Sociedade (ABPN, s/n, 1925, SBNPML, sessão 18/07/1925: 177). Porém, o
principal marco festejado era o aniversário da fundação da Sociedade, comemorado
anualmente em sessão solene a partir de 1919, que geralmente marcava o término dos
trabalhos da Sociedade, a cada ano. Em algumas das sessões extraordinárias, como também
das ordinárias, era reservado um espaço na pauta para homenagear aqueles membros que
estavam regressando de viagens de estudos e participação em congressos internacionais. As
sessões extraordinárias também podiam ser secretas, não sendo mencionadas nas atas
publicadas no periódico, e encontradas em citação apenas nos Estatutos de 1919, que no cap.
V, art. 25, diz que a eliminação de membros da Sociedade só poderia ser feita em sessão
secreta, convocada especialmente para isto (ABNP, Ano II, 1ºTrimestre, 1920: 63).
Além dos temas referentes a clínica e a admissão de novos membros, eram também,
discutidos nas reuniões da Sociedade assuntos mais amplos de interesse científico e/ou
assistencial como: reforma na Lei de Assistência a Alienados de 1903; a assistência a
“alienados” em vários Estados do Brasil e em outros países; a incapacidade civil; a influência
do espiritismo nas “moléstias mentais”; a situação dos egressos dos estabelecimentos da
Assistência, dentre outros.
Por meio da análise dos debates registrados nas atas da Sociedade, é possível perceber
também, que à medida que as áreas da medicina que compunham a Sociedade se estruturavam
e especializavam, definindo seu campo de atuação profissional, referenciais teóricos e práticas
institucionalizadas, podiam ser notadas disputas internas na entidade por espaço e
legitimidade. Estas disputas, que nos primeiros anos da instituição eram mais sutis, começam
a ficar mais evidentes a partir de 1918, com a eleição da nova diretoria da Sociedade, que
estabelece os cargos de 2º secretários por área de conhecimento e dias e lugares diferentes
para realização das reuniões de cada seção da Sociedade: psiquiatria, neurologia e medicina
legal (ABPNML, 2º semestre, 1918. Atas da SBNPML, Sessão de 04/04/1918: 61-62).
Um exemplo é a sessão de 26/05/1918, realizada no Serviço Médico Legal da Polícia
sob a presidência do Dr. Moretzsohn Barbosa e dedicada a estudos de medicina legal
(ABPNML, 2º semestre, 1918. Atas da SBNPML, Sessão de 26/05/1918: 117), que abre uma
contenda dividindo os membros da Sociedade em dois grupos. Um deles era formado por
alguns peritos, membros da seção de medicina legal, contrários ao uso das perícias médicas
nas aulas práticas, ministradas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. A maior parte
dos membros da Sociedade defendia a manutenção da situação vigente e era contrária às
mudanças defendidas pelo grupo de peritos.
Com base no que foi publicado das atas da Sociedade, pode-se dizer em linhas gerais
que a contenda intitulada “A perícia médico-legal e o ensino” envolveu questões ligadas à
delimitação do campo de atuação de peritos e médicos forenses. Os debates acalorados sobre
tal questão se iniciaram na sessão do dia 29 de maio daquele ano, no HNA, onde estiveram
presentes, além dos médicos, também advogados e estudantes de medicina, o que não era
comum na maioria das reuniões, estendendo-se por várias sessões nos meses de junho e julho
(ABPNML, 2º semestre, 1918. Atas da SBNPML: 120-239).
Ao final destes meses de discussão, as sessões voltaram ao cotidiano, porém, alguns
dos membros da Sociedade ligados à medicina legal, que participaram dos debates naquelas
sessões, não mais estiveram na lista de presentes das sessões nos anos seguintes, ao ponto de
que, em 1927, Juliano Moreira, em um discurso pela data comemorativa do aniversário da
Sociedade, ressalta que “(…) os excelentes colegas da seção de medicina legal, de certo
tempo a esta parte, não nos tem querido honrar com sua maior assiduidade. Isto quer dizer que
se aproxima a oportunidade de ser criada entre nós uma Sociedade de Medicina Legal
autônoma (…)”. Pois não é justo, segundo ele, que não sejam publicados “o vasto contingente
de fatos observados pelos médicos legistas. Enquanto não chega este momento de tão útil
criação, a Sociedade (…) vai se contentando com os subsídios de psicopatologia forense que
os colegas Heitor Carrilho, Murilo Campos etc. vêm trazendo ao seu conhecimento” (ABNP,
I trim., 1928. Atas da SBNPML, Sessão de 17/11/1927: 62). Até o presente estágio de
andamento desta pesquisa, não foi possível apurar se após tal contenda ocorreram
desligamentos voluntários ou “eliminações” de membros da Sociedade, como previsto no cap.
V, art. 24 dos estatutos (ABNP, 3º trimestre, 1920: 63 e 70).
Tais situações de disputa de campo entre a medicina legal e as outras especialidades
que compunham a Sociedade ficam ainda mais evidentes em 1919, com a mudança no nome
do periódico para Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, suprimindo o termo
medicina legal.
Sobre tal mudança, os autores abaixo referidos citam que esta esteve ligada às
“determinações do governo, no sentido da máxima economia, impedindo, porém, a impressão
nas oficinas do Hospital Nacional”. Até então, eram os próprios internos do HNA que
realizavam a publicação, impressão e encadernação do periódico, com o objetivo “não só de
fazê-los ter uma atividade terapêutica durante o período de internação, mas também de que
não esquecessem sua profissão quando sua alta do Hospício fosse dada”. A partir deste
momento, em que a publicação do periódico deixa de estar diretamente ligada ao HNA, é
“proposta a alteração de seu título para Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria”,
ficando sua impressão a cargo de uma tipografia particular (Amarante, 2004: 19; Facchinetti
et al., 2010: s/p; Venancio, 2011: 414).
Para explicar a crise orçamentária do governo, que inviabilizava a publicação do
periódico no HNA, Amarante (2004) ressalta que o país estava vivendo “naquele momento
um período de pós-guerra, escassez e carestia de papel, tintas e demais materiais necessários
para publicações”, o que levou o grupo de médicos constituído por Juliano Moreira, Antônio
Austregésilo, Ulysses Vianna, Faustino Esposel, Heitor Pereira Carrilho e Waldemar de
Almeida a assumir os custos de publicação do periódico (Amarante, 2004: 19; Facchinetti;
Cupello; Evangelista, 2010: s/p). Pelo que podemos constatar através da análise das atas da
SBNPML, estes médicos arcavam com parte dos custos, ficando a outra parte por conta das
mensalidades dos sócios efetivos da Sociedade (ABNP, 1º trimestre, 1919. Atas da SBNPML,
Sessão de 27/03/1919: 187). Tal crise orçamentária também pode ser explicada pela
desorganização de abastecimento decorrente do caos urbano pelo qual a cidade do Rio de
Janeiro havia passado poucos meses antes, durante a epidemia de gripe espanhola de 1918.
Ainda sobre a mudança do nome do periódico, Facchinetti, Cupello e Evangelista
(2010) citam o argumento dos diretores da revista, em nota editorial, declarando que esta
mudança resultaria do “crescente desenvolvimento dos estudos nessas áreas. Quanto ao uso
do termo ‘neuriatria’, denota o início da separação dos campos da medicina e da psicologia,
processo reforçado pela divulgação das teorias psicanalíticas”, uma vez que “iatros é um
sufixo relativo a médico, e a neurologia adotou o termo neuriatria para reforçar sua
identificação com o campo médico, em especial a psiquiatria”. Em relação ao
desaparecimento do termo medicina legal, as autoras apenas ressaltam que a revista continuou
a veicular trabalhos desta área e que um periódico especifico sobre medicina legal, os
Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, seria publicado a partir de 1930
(Facchinetti, Cupello, Evangelista, 2010: s/p).
Parece-me que a explicação para tais fatos é muito mais complexa e diretamente
ligada a disputas internas entre as três áreas (neurologia, psiquiatria e medicina legal) no
âmbito institucional da Sociedade e no campo profissional destas ciências, pois as mudanças
nos Estatutos da Sociedade e no título do periódico compreendem apenas os aspectos mais
visíveis de uma questão mais ampla, que envolve aspectos da identidade de cada grupo e
legitimação das áreas. Acredito que, em 1919, o termo medicina legal só não foi excluído do
nome da Sociedade porque isto acarretaria uma perda considerável em número de sócios que
continuavam pagantes, mesmo que ausentes das sessões, e também porque obrigaria a
Sociedade a ser novamente fundada com o novo nome, representando um decréscimo no seu
prestígio frente às comunidades científicas nacionais e internacionais, uma vez que um dos
pontos que a legitimava era a sua longevidade em relação a outras agremiações. Segundo
Juliano Moreira, no 12º aniversário da Sociedade, em 1919, ela já era “a mais antiga entre as
congêneres de toda América Latina” (ABNP, I trim. 1928, Atas da SBNPML, Sessão de
17/11/1927: 61).
Os embates com a medicina legal nos anos seguintes a 1919 continuaram, só que de
forma mais esparsa, pelo menos no que pode ser lido nas atas das reuniões da Sociedade.
Como por exemplo quando, em 1924, o Dr. Xavier de Oliveira apresenta à Sociedade a
questão da falta de assistência do serviço médico-legal aos indivíduos que, ao passar pelas
delegacias, traziam a “indicação da necessidade da internação assinada por escriturários”. A
discussão retoma a questão da incapacidade civil, já discutida por Heitor Carrilho nas sessões
de 17 e 24/05/1920 e 30/04/1923, ressaltando que a responsabilidade pelas perícias passara
para o Serviço Médico-Legal, restringindo a atuação dos médicos clínicos. Ele cita o caso do
Prof. Afranio Peixoto, que não poderia mais atuar como perito no foro desta capital (ABNP,
III e IV trimestres, 1924 Atas da SBNPML, Sessão de 07/10/1924: 218). No mesmo ano foi
apresentada uma moção, sem autoria, registrada em ata, sobre perícias médico-legais
contestando a lei n. 16.273,5 de 30/12/1923, a qual, segundo o texto, restringia o exercício das
5 A lei citada não foi encontrada até o momento, mas do mesmo mês e ano foi localizado o Decreto
Presidencial 16.273, de 20/12/1923, que reorganiza a justiça do Distrito Federal. Este, na Seção VII, trata dos peritos médico-legais: Art. 167. “Nos exames de caráter médico-legal, são peritos privativos da Justiça os médicos do Instituto Médico-Legal do Distrito Federal, os professores de Medicina Legal
perícias médico-legais ao ponto de excluir professores das especialidades nas Faculdades de
Medicina e Direito (ABNP, III e IV trimestres, 1924. Atas da SBNPML, Sessão de
17/11/1924: 231).
Em relação às disputas por espaço no interior da Sociedade entre a neurologia e a
psiquiatria, estas percorreram um caminho mais longo, que torna-se mais visível a partir de
1924, com as mudanças nos cargos de diretoria estabelecidas na reforma dos Estatutos de
1923, que criavam a posição de 2º vice-presidente. E também, a partir de 1926, quando uma
nova deliberação da diretoria separa as sessões de neurologia e psiquiatria, ficando
estabelecido que cada Comissão da Sociedade elegeria um presidente e vice para que fossem
realizadas sessões especiais, “como já vinha ocorrendo com a de neurologia” (ABNP, III-IV
trim., 1926 Atas da SBNPML, Sessão de 28/06/1926: 162).
Estas mudanças parecem caracterizar um processo de disputas, por espaço e
legitimação, dentro da Sociedade, entre as áreas que a compunham. Tal processo fica bem
marcado na contenda de 1918 e também nos anos acima citados. Indicam também o princípio
de um processo de descentralização do controle teórico, administrativo centrado na pessoa de
Juliano Moreira durante as primeiras décadas da instituição. É possível perceber, por meio da
análise das atas da SBNPML, que, a partir de 1926, o espaço e poder de atuação de alguns
membros dentro da diretoria da entidade, como Ulysses Vianna, Waldemar de Almeida,
Henrique Roxo e Antonio Austregésilo, crescem. Os dois primeiros passam a ter uma
participação mais ativa e decisiva nas questões discutidas nas sessões, além de ocuparem
cargos da diretoria, e os dois últimos acumulam as funções de presidentes das comissões e
vice-presidentes da Sociedade − no caso de Austregésilo, em anos consecutivos (1927 e
1928). Situação que, a partir de 1930, concretiza-se com a instituição de uma presidência
compartilhada, onde as sessões eram presididas por Juliano Moreira, desempenhando um
papel de presidente geral ou de honra em conjunto com Henrique Roxo (na sessão de
psiquiatria), Austregésilo (na sessão de neurologia) e Tanner de Abreu (na sessão de medicina
legal). (Atas da SBNPML, sessões de 1930).
da Faculdade de Medicina, os médicos da Assistência a Alienados, inclusive do Manicômio Judiciário, e os funcionários técnicos dos laboratórios nacionais de análises ou institutos oficiais de física, eletricidade e química geral e industrial. Parágrafo único. Nos exames para o auto de corpo de delito de lesões corporais, envenenamento, crimes contra a honra da família e exames cadavéricos, os médicos-legistas do Instituto funcionarão, sempre, de preferência, como peritos únicos”.
Referências
ABPNCA: Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins
(1905; 1907)
ABPNML: Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal
(1908; 1911; 1914; 1915)
ABNP: Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria
(1919; 1920; 1924; 1925; 1926; 1927; 1928; 1930)
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