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ANA PAULA DE SOUZA A SOCIEDADE METONIMIZADA NO ESPAÇO DO ROMANCE NADA DE CARMEN LAFORET Cuiabá 2007

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ANA PAULA DE SOUZA

A SOCIEDADE METONIMIZADA NO ESPAÇO DO

ROMANCE NADA DE CARMEN LAFORET

Cuiabá

2007

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ANA PAULA DE SOUZA

A SOCIEDADE METONIMIZADA NO ESPAÇO DO

ROMANCE NADA DE CARMEN LAFORET

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em

Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato

Grosso - UFMT, como requisito parcial para obtenção do título

de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários

Orientadora: Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André

Instituto de Linguagens da UFMT

Cuiabá

2007

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iii

BANCA EXAMINADORA

Membros titulares

____________________________________________

Profa. Drª María de la Concepción Piñero Valverde (Examinadora Externa)

Universidade de São Paulo – USP

____________________________________________

Profa. Drª Franceli Aparecida da Silva Mello (Examinadora Interna)

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT

___________________________________________

Profa. Drª Rhina Landos Martínez André (Orientadora)

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT

Cuiabá-MT, 25 de Maio de 2007.

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iv

A Maria José e Paulo, meus pais, pela

compreensão eterna e incondicional.

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v

AGRADECIMENTOS

Ao final desta longa e vacilante caminhada de solidão aparente, é gratificante

olhar ao redor, re-visitar um passado ainda recente e perceber que os meus lentos e

hesitantes passos estiveram sempre sondados de bem perto por pessoas queridas,

às quais ternamente agradeço

À Profa. Drª. Rhina Landos Martínez André, pela tolerância em relação às

minhas inúmeras limitações como pesquisadora iniciante e por sempre ter

acreditado em um potencial, do qual eu mesma muitas vezes duvidei;

À Profa. Drª. María de la Concepción Piñero Valverde e à Profa. Drª. Célia

Maria Domingues da Rocha Reis, profissionais e pesquisadoras às quais admirei

silenciosamente desde a primeira vista, sem imaginar o quão importantes seriam

suas perspicazes visões sobre o meu estudo;

À Profa. Drª. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento, por ter me apresentado

ao que mais tarde seria o cerne desta dissertação: a sofrida Espanha de pós-guerra,

a sensibilidade artística de Carmen Laforet e seu relato, Nada. À profa. Drª.

Magnólia devo ainda o entusiasmo sincero demonstrado ao saber do andamento do

meu estudo, colocando-me em contato com a Profa. Drª. Margareth Santos, quem

gentilmente cedeu sua tese de doutorado sobre Nada, o que agradeço pois,

contribuiu para o enriquecimento do meu olhar sobre o romance;

Pela atenção dos coordenadores, professores e funcionários do Programa de

Mestrado, e ao Estado de Mato Grosso que por meio da FAPEMAT, concedeu-me

uma bolsa no período de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2007;

Ao meu irmão, Diego, pelos instantes de descontração nos momentos mais

sufocantes, além do apoio tecnológico, claro;

À Vera, amiga em todos os momentos, pelas conversas infindas, por atender

aos telefonemas intermináveis e pela partilha das angustias e esperanças do

processo.

Ao Rodney, pela estima, pela ajuda técnica ao final do trabalho e pelas

conversas.

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vi

Às companheiras de orientação, Ariágda e Patrícia, por repartir os mesmos

anseios e conquistas;

À Rosy, pela especial atenção dedicada a mim e ao trabalho nos instantes

finais;

Aos colegas de turma Cláudia, Degmar e Marinete, simplesmente por

estarmos lado a lado no trajeto;

A todos aqueles a quem não mencionei: amigos, familiares, alunos, ex-

alunos, colegas de trabalho e de estudos, que acompanharam ou ao menos

compreenderam meu período de introspecção;

Finalmente, agradeço a Deus pelo maravilhoso dom da vida renovado a cada

novo dia e pelas infinitas graças e dons confiados e enviados a mim, sem que eu

fizesse por merecê-los.

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vii

RESUMO

SOUZA, A. P. de. A sociedade metonimizada no espaço do romance Nada de Carmen Laforet. Dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagem. Orientadora: Rhina Landos Martinez André. Cuiabá: UFMT, 2007.

Nesta dissertação, investigamos a caracterização do espaço como elemento

estrutural relevante na composição do romance Nada da escritora espanhola

Carmen Laforet. Para isto, analisamos detalhadamente as figuras de personificação,

metáforas e sinestesias que compõem os trechos descritivos de cunho

impressionista e expressionista, que constituem respectivamente a exterioridade dos

diversos ambientes de Barcelona, no início dos anos 1940, e o interior da casa da

Rua Aribau, cidade e residência onde vive a protagonista-narradora ao longo do

desenrolar da trama narrativa. Para abstrair as múltiplas significações que nos

oferece a caracterização do espaço interno da casa, bem como sua relação com os

personagens que a habitam, apoiamo-nos no que postula Gaston Bachelard em A

poética do espaço. Os ambientes externos da cidade de Barcelona são lidos na

perspectiva cartográfica do que teoriza Michel de Certeau em A invenção do

cotidiano. A metáfora da negação estabelecida pelo ambiente interno da residência

e as simbologias ora positiva, ora negativa, recriadas nos diversos lugares da cidade

de Barcelona, são compreendidas a partir do conceito de Mundo demoníaco e

Mundo apocalíptico elaborado por Northrop Frye em Anatomia da Crítica.

Encontramos evidências na composição espacial que comprovam a correlação dos

símbolos da casa e da cidade como metonímias representativas da violenta

realidade social vivida na Espanha, durante o imediato pós-guerra civil.

Palavras-chave: Nada, Carmen Laforet, espaço e romance.

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viii

ABSTRACT

SOUZA, A. P. de. The metonym society in the space of the romance Nothing of Carmen Laforet. . Master Thesis in Language Studies. Supervisor: Rhina Landos Martínez André. UFMT, Cuiabá, 2007.

In this paper we investigate the space characterization as excellent structural

element in the composition of the romance Nothing of the Spanish writer Carmen

Laforet. For in such a way, we at great length analyze the prosopopeicas,

metaphorical and sinestesicals figures that compose the descriptive stretches of

impressionist and expressionist matrix, that they respectively constitute the exterior of

diverse environments of Barcelona at the beginning of years 1940, and the interior of

the house of the Street Aribau, city and residence where the protagonist-narrator

throughout uncurling of the tram lives narrative. To abstract the multiple meanings

the characterization of the internal space of the house offers to them, as well as its

relation with the personages inhabit who it, is supported in what it claims Gaston

Bachelard in the Poetical one of the space. The external environments of the city of

Barcelona are chores in the cartographic perspective of what Michel de Certeau

theorys in the Invention of the daily one. A metaphor of the negation established for

the internal environment of the residence, and the symbols however positive,

however negative, recreates in the diverse places of the city of Barcelona, is

understood from the concept of demonic World and apocalyptic World elaborated by

Northrop Frye in Anatomy of the Critical. Finally we try to find evidences in the space

composition that prove the correlation of the symbols of the representative house and

the city as metonyms of the violent social reality lived in Spain, during the immediate

civil postwar period.

keywords: Nothing, Carmen Laforet, space and novel.

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ix

RESUMEN

SOUZA, A. P. de. La sociedad como metonimia en el espacio de la novela Nada de Carmen Laforet. Disertación de Maestría en Estudios de Lenguaje. Orientadora: Rhina Landos Martínez André. Cuiabá: UFMT, 2007.

En esta disertación investigamos la caracterización espacial como elemento

estructural relevante en la composición de la novela Nada de Carmen Laforet. Por lo

tanto, analizamos detalladamente las figuras de personificación, metáforas y

sinestesias que componen los trechos de descripción de estilo impresionista y

expresionista, que constituyen respectivamente la exterioridad de los diversos

ambientes de Barcelona, en el inicio de los años 1940, y el interior de la casa de la

Calle Aribau, ciudad y vivienda donde la protagonista y narradora vive a lo largo de

la narrativa. Para abstraer las múltiples significaciones que nos ofrece la

caracterización del espacio interno de la casa, y su relación con los personajes que

la habitan, buscamos apoyo teórico en lo que postula Gaston Bachelard en La

poética del espacio. Los ambientes externos de la ciudad de Barcelona son leídos

desde el punto de vista cartográfico idealizado por Michel de Certeau en La

invención de lo cotidiano. La metáfora negativa establecida por el ambiente interno

de la vivienda, y las simbologías ora positiva, ora negativa, recriadas en los diversos

lugares de la ciudad de Barcelona, son comprendidas a partir de los conceptos de

Mundo demoníaco y Mundo apocalíptico elaborados por Northrop Frye en Anatomía

de la crítica. Encontramos evidencias en la composición espacial que comprueban la

correlación de los símbolos de la casa y de la ciudad como metonimias

representativas de la violenta realidad social vivida en España, durante la inmediata

posguerra civil.

Palabras-clave: Nada, Carmen Laforet, espacio y novela.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ..................................................................................................v

RESUMO................................................................................................................... vii

ABSTRACT ...............................................................................................................viii

RESUMEN ................................................................................................................. ix

Introdução ...................................................................................................................1

1) Espanha - anos 1940: O ambiente social como referência para o espaço ficcional3

1.1) A violência reproduzida nos lares espanhóis....................................................7

1.2) A literatura num espaço social de escassez...................................................11

2) A casa da Rua Aribau: um olhar na intimidade da sociedade espanhola de pós-

guerra........................................................................................................................23

2.1) Considerações preliminares: o espaço como elemento romanesco...............23

2.2) A casa da Rua Aribau: O mundo demoníaco .................................................28

2.2.1) Devaneios da infância: A casa da Rua Aribau entre o passado e o

presente .............................................................................................................39

2.2.2) A sala de jantar: palco dos desentendimentos familiares ........................46

2.2.3) Os personagens e seus espaços individuais ...........................................50

3) O romance Nada: A escrita narrativa como cartografia da cidade de Barcelona..65

3.1) Barcelona: imagens representativas do mundo divino ...................................69

3.2) Barcelona em companhias masculinas: as decepções e o poder curativo da

cidade ....................................................................................................................78

3.3) El Barrio Chino: um mundo demoníaco dentro de Barcelona.........................87

3.4) O adeus a Barcelona......................................................................................92

Considerações Finais................................................................................................97

REFERÊNCIAS.......................................................................................................103

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Introdução

Uma renovação de estética narrativa, surgiu, na Espanha do século XX, após

a conturbada crise política que levou esse país à deflagração de um dos mais

violentos episódios da humanidade, denominado Guerra Civil Espanhola, sob o

poder repressivo da ditadura franquista.

Intitulada, por críticos e estudiosos espanhóis, como Narrativa de pós-guerra

civil, essa literatura exprimia: o sentimento espanhol de derrota, a frustração dos

ideais políticos e a angústia da falta de horizontes e perspectivas.

A estética do tremendismo, que narra ambientes e ações de forma

exacerbada, grotesca e com fortes tons de violência, é, primeiramente, empregada

no romance precursor dessa renovação narrativa – La familia de Pascual Duarte

(1942) de Camilo José Cela. Seguindo pelo mesmo viés, a jovem escritora Carmen

Laforet, obtém o Premio Nadal ao entregar ao público o romance Nada.

A narrativa de título curioso revela uma história semelhante à trajetória de

vida da própria autora: Andrea, uma jovem órfã de apenas dezoito anos de idade,

desembarca na cidade de Barcelona para cursar Letras e Filosofia. Na cidade

“adorada en sus sueños por desconocida” (Laforet, 2003, p. 13), a protagonista-

narradora vai viver com a família materna em uma casa localizada na região central

da capital catalã. A residência, assim como tantos outros edifícios das principais

urbes espanholas, sobrevive ao rastro de destruição provocado pela guerra, embora

mantenha registradas, em suas paredes, as marcas da violência. Ao adentrar este

espaço irreconhecível pela sua memória infantil, Andrea descobre que não é apenas

o edifício que se encontra entre escombros. Estão também destroçadas a dignidade

e a esperança de seus familiares. Como forma de compensação para a frustração

latente no interior da casa da família, a personagem se sente reconfortada nos

diversos ambientes da cidade de Barcelona, sobretudo na universidade, lugar onde

estabelece relações de amizade e onde se permite experienciar a liberdade que sua

alma juvenil anseia.

Tendo em vista a relevância com que a autora caracteriza a ambiência

romanesca e a evidente oposição estabelecida entre os espaços interno e externo,

propusemos realizar, no presente trabalho, um estudo do ambiente, no romance

Nada. A finalidade foi ressaltar a riqueza com que esse aspecto estrutural está

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configurado na obra, procurando abstrair dessa análise as possíveis relações que o

espaço ficcional mantém com a realidade social que o contextualiza.

O estudo está organizado em três capítulos. No primeiro, pensamos na

relevância, pelo pouco conhecimento que se tem, no Brasil, sobre a história e a

cultura espanholas, em delinear um panorama que apresente as coordenadas

históricas, sociais e culturais que permeiam a produção literária de Carmen Laforet,

nos primeiros anos de sua carreira, levantando também dados sobre sua fortuna

crítica.

No segundo capítulo e antes da análise literária, realizamos leituras

sistemáticas sobre o que teorizam alguns críticos a respeito do espaço como

elemento de constituição do romance. Nossa observação se pautou no sentido

dialético do interno para o externo. Com base no que postula o filósofo francês

Gaston Bachelard, em A poética do espaço, sobre as imagens poéticas da casa,

como correspondentes psicológicas da própria alma humana, analisamos as figuras

do ambiente interno da casa da família de Andrea. Para a interpretação dessas

figuras que se configuram, no romance, como metáforas, sinestesias e

personificações, e para evidenciar a negatividade que esse espaço simboliza na

compreensão do todo narrativo, utilizamos o conceito de Mundo demoníaco

desenvolvido por Northrop Frye em Anatomia da crítica.

No terceiro e último capítulo desta dissertação, verificamos a relação entre a

constituição do espaço ficcional da Barcelona dos anos 1940 e do espaço urbano

propriamente dito, por meio da cartografia que a narradora nos oferece da cidade,

de acordo com o conceito de leitura do espaço urbano desenvolvido por Michel de

Certeau.

Com fundamento nas figuras de estilo, que compõem os diversos ambientes

da capital catalã, pesquisamos em que medida esse ambiente coletivo estabelece

oposição em relação ao espaço interno da casa da família da protagonista, como um

pólo de positividade que pode ser entendido, a partir da metáfora do Mundo divino

de Frye. No conjunto de imagens negativas que a narradora também cria sobre o

espaço urbano de Barcelona, evidenciamos de que maneira a difícil realidade social

da Espanha, durante os anos de escassez do imediato pós-guerra, materializa-se

nos ambientes externos descritos ao longo do romance.

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1) Espanha - anos 1940: O ambiente social como referência para o espaço ficcional

Guerra (fragmento) Un fantasma de estandartes, una bandera quimérica, un mito de patrias: una grave ficción de fronteras. Músicas exasperadas, duras como botas, huellan la faz de las esperanzas y de las entrañas tiernas. Crepita el alma, la ira. El llanto relampaguea. ¿Para qué quiero la luz si tropiezo con tinieblas? Pasiones como clarines, coplas, trompas que aconsejan devorarse ser a ser, destruirse piedra a piedra. Relinchos. Retumbos. Truenos. Salivazos. Besos. Ruedas. Espuelas, espadas locas abren una herida inmensa. Después, el silencio, mudo de algodón, blanco de vendas, cárdeno de cirugía, mutilado de tristeza. El silencio. Y el laurel En un rincón de osamentas. Y un tambor enamorado, como un vientre tenso, suena detrás del innumerable muerto que jamás se aleja. (Miguel Hernández, Poesía)

Enquanto o mundo assistia à deflagração da Segunda Guerra Mundial, o

Estado Espanhol, agora sob o domínio do governo ditatorial de Francisco Franco,

mantinha uma postura de neutralidade em relação ao conflito internacional que se

expandia pela Europa e atraía as atenções da comunidade mundial. Apesar da

dependência em relação aos governos nazi-fascistas da Alemanha e da Itália, ao

longo dos três anos de duração da Guerra Civil, de acordo com Antonio Domínguez

Ortiz (2000, p. 347), Franco optou por não se envolver na Segunda Guerra Mundial,

alegando o desgaste militar e econômico sofrido pelo país nos anos anteriores. A

reciprocidade entre Mussolini, Hitler e o ditador espanhol dissipava-se

gradativamente à medida que Franco percebia o interesse alemão e italiano sobre

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territórios espanhóis e admitia a possibilidade de aceitar a ajuda econômica dos

aliados na reconstrução da nação.

O país se encontrava, sob escombros, em uma situação de penúria

econômica e de depressão social, após o término da Guerra Civil que, de 1936 a

1939, havia separado a Espanha em dois blocos opostos. Embora existissem, no

interior de cada um deles, profundas divergências políticas e ideológicas

identificamos em um dos grupos, combatentes da causa republicana coligados em

uma Frente Popular1 que detinha o poder legítimo até o ano de 1936, quando foi

acometido por um golpe de estado organizado pelo Exército Espanhol, aliado às

diferentes agremiações da direita tradicionalista2.

Após três anos de violentos combates, a vitória dos militares insurgentes

apoiados pela direita aconteceu, segundo Ortiz (2000, p. 339), em razão do eficaz

apoio dos governos totalitários, do eficiente avanço militar e depois da morte dos

principais líderes do levante. Contribuíram com a derrocada da causa republicana,

por exemplo, a falta de unidade entre os díspares interesses dos grupos políticos

envolvidos naquela coligação, além de uma ajuda externa pouco eficaz e

financeiramente inviável, devido ao seu alto custo.

Segundo Martin Blinkhorn (1994, p. 78-9), a Guerra Civil Espanhola deixou

como saldo, ao país, a cifra de mais de um milhão de mortos e uma economia

destroçada pelos gastos gerados pelo conflito. A situação se agravou por causa das

crises da indústria, ainda incipiente, e da agricultura castigada por subseqüentes e

rigorosas secas, pela migração de trabalhadores do campo para as cidades e pelas

baixas materiais e humanas sofridas no meio rural, onde muitas das batalhas foram

travadas.

Esse delicado quadro econômico rapidamente evoluiu para uma profunda

desigualdade social. A destruição provocada pela Guerra Civil deixou a população

sem moradia e a crise agro-econômica ocasionou a falta de alimentos e de recursos

essenciais. Como medida paliativa, o governo criou um sistema de racionamento de

provisões para as famílias mais afetadas, entretanto, sua organização era 1 Segundo Martin Blinkhorn (1994, p. 12), a Frente Popular era constituída por uma ampla coligação que reunia republicanos e o Partido Socialista. Com a deflagração da Guerra Civil, uniram-se a esse grupo conservadores, nacionalistas, católicos bascos, catalanistas, republicanos moderados e de esquerda, socialistas da direita e da esquerda, comunistas stalinistas e anti-stalinistas, além de anarquistas, todos empenhados em coibir o avanço do fascismo na Espanha. 2 De acordo com Blinkhorn (1994, p. 60), o grupo que se opunha aos republicanos era denominado insurgente, nacionalista ou fascista, e reunia militares rebelados, falangistas, carlistas, monarquistas, alfonsistas, conservadores independentes e católicos.

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ineficiente. A escassez de produtos inflacionou os preços, gerando um comércio

ilícito que enriquecia uma elite minoritária que se beneficiava da decadente situação

do país. O isolamento da Espanha, durante a Segunda Guerra Mundial, dificultou

ainda mais o seu processo de reconstrução.

Todos esses fatores, que levantamos como elementos desencadeadores da

agravante crise espanhola, segundo José Luis Comellas (1989, p. 313), impediam a

imediata retomada do equilíbrio social da nação, contribuindo para a instauração do

autoritarismo, como melhor veículo ideológico capaz de garantir a conformidade da

sociedade em relação à demora em restaurar o país.

De acordo com Comellas (1989, p. 308), os primeiros anos do Governo

Franco foram tempos difíceis, tempos de perseguição das liberdades políticas, com

a supressão dos diversos partidos e com a formação de um forte esquema

repressivo. O regime franquista foi um dos mais longos da história da Espanha e se

caracterizou por uma uniformidade estável e uma evolução gradual e lenta. Franco

não apresentava exatamente o perfil de um líder militar apto para permanecer no

cargo por tanto tempo. À princípio, seu maior mérito foi a condução de parte do

Exército Espanhol, desde o norte da África até a tomada de determinadas regiões do

território peninsular. Posteriormente, a não-vinculação explícita da imagem do

General, com os diferentes grupos políticos que o apoiaram, favoreceu sua

continuidade na liderança. Apesar da indefinição ideológica da postura de Franco

como Chefe de Estado, seu governo tinha, como principal pilar, a ordem militar

calcada no apreço pelos tradicionais valores espanhóis de respeito à Igreja, à Pátria

e à Família como instituições soberanas, ideário comum entre os distintos grupos

conservadores que o ampararam.

Para José Ramón Montero (1986, p. 100-2) e demais historiadores, o período

compreendido entre 1939 e 1945 aproximadamente, foi o momento em que a

ditadura franquista mais se aproximou da feição totalitária e fascista que

predominara na Europa. Aos poucos, o Governo Espanhol foi se afastando desse

modelo, à medida que a Falange3 começou a perder seu prestígio e Franco

introduziu a fé católica como um dos construtos ideológicos de seu regime. Essa

valorização do aspecto religioso distinguia-se claramente do perfil político dos

3 Organização política fundada em 1933, pelo General José Antonio Primo de Rivera. Constituía, segundo Blinkhorn (1994, p. 88) um partido conservador que se inspirava no fascismo italiano. Foi um dos núcleos do movimento nacionalista. Seus líderes exaltavam a violência, idealizavam um estado totalitário e imperialista, além de tentar angariar apoio junto à classe trabalhadora, prometendo um socialismo radical demagógico.

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totalitaristas alemães e italianos, o que provocou certo distanciamento entre o Chefe

do Estado Espanhol e seus antigos aliados. Segundo Julio Rodríguez Puértolas

(1987, p. 81), a religiosidade fazia mais sentido que o ateísmo no contexto do povo

espanhol, tradicionalmente católico.

Nesse primeiro período do regime franquista, a sociedade espanhola se

encontrava claramente dividida. O topo da pirâmide estava ocupado por uma

pequena elite composta pela aristocracia tradicional e conservadora, pelos

envolvidos diretamente com a cúpula do poder político e militar e pelos novos ricos

que acumulavam capital por meio de atividades ilícitas. A corrupção se tornou

prática comum nesse segmento social que apoiava o autoritarismo como melhor

saída para a crise. O restante da sociedade estava organizado em outras duas

partes: uma reduzida e resistente classe média e uma ampla classe de miseráveis.

Dentre esses dois últimos grupos, havia uma pequena minoria que se opunha

ideologicamente ao regime, mas que se mantinha silenciosa ante a implacável

censura que impedia qualquer manifestação contrária ao sistema. Em contraposição

a esse reduzido grupo, concentrava-se uma grande massa alienada que se movia

dentro de uma atmosfera letárgica e que por esta razão não encontrava qualquer

motivação para questionar a repressão instaurada.

Parte da Igreja Católica assumiu, nesses primeiros anos, um importante papel

no apoio ao autoritarismo de Franco. Segundo Montero (1986, p. 102), por meio da

ACNP (Asociación Católica Nacional de Propagandistas), a Igreja desempenhou

uma relevante função ideológica na consolidação do autoritarismo, sobretudo entre

os anos de 1939 a 1945. As estratégias de ação desse segmento da Igreja eram as

de se aliar ao Exército e aos grupos políticos conservadores, aproximar-se da

Falange para desvesti-la de sua feição totalitarista e se impor na sociedade a partir

da retomada do controle sobre a educação escolar e de alguns setores da

economia.

A escritora Carmen Martín Gaite (1987, p. 17) lembra que, à princípio, Franco

recebeu o apoio do Papa Pio XII. Apesar de ambos manterem, entre si uma obscura

e indefinida relação, o líder da Igreja no Vaticano anunciava em seus discursos,

certa predileção pela Espanha, um país reconhecidamente católico de onde sairia a

salvação do mundo. Franco, com sua postura de apreço pelo tradicionalismo

católico espanhol, representava perfeitamente o ideal do então criado concepto de

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españolidad4, que os republicanos haviam conseguido macular ao se deixar

influenciar pelo ateísmo do comunismo soviético e pelo materialismo das novas

potências econômicas, que começavam a despontar no cenário do capitalismo

internacional.

Martín Gaite além disso relata como era o cotidiano da sociedade espanhola

de pós-guerra, ou seja, a história das micro-relações estabelecidas naquele contexto

sócio-cultural. A ditadura franquista não afetava apenas as coordenadas políticas e

econômicas do país, como influenciava também nos hábitos e no posicionamento da

sociedade.

1.1) A violência reproduzida nos lares espanhóis

O país convivia com uma propaganda oficial que condenava o desperdício

econômico e exigia obediência a um padrão comportamental claramente

influenciado pela doutrina da Igreja Católica e pelos ideais dos grupos

conservadores, ambos os segmentos responsáveis pela manutenção da ideologia

do Estado junto à população.

Esta nova etapa histórica do país preconizava moderação e cautela por parte

de toda a sociedade, passível de repreensão caso houvesse qualquer desvio dos

modelos comportamentais vigentes. Menções à história recente do país estavam

proibidas, em contraposição à valorização de um passado longínquo, que remontava

ao período em que a Espanha se orgulhava de ser um Império, uma das maiores

potências políticas e econômicas do mundo. Personalidades desse passado eram

convertidas em exemplos da luta incansável e da abnegação do povo espanhol;

estavam vetadas as alusões aos problemas atuais que o recém terminado conflito

havia trazido como conseqüências para a nação. A dura realidade de miséria,

destruição, repressão e violência era escamoteada por um discurso corrente de

vitória dos nacionalistas, representados ideologicamente pela imagem positiva dos

bons que derrotaram a face má da sociedade espanhola - os republicanos.

4 Conceito ideológico criado e sustentdo pela propaganda oficial, sobretudo nos primeiros anos da ditadura franquista. Este conceito traduzia a imagem idealizada do cidadão espanhol autêntico, ou seja, católico, conservador, respeitador das normas de moral impostas e das instituições soberanas como a Igreja, o Estado e a Família. Um trabalhador incansável e consciente da necessidade de seu sacrifico individual para a reconstrução coletiva do país. (Martín Gaite, 1987, p. 19)

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O trabalho infatigável do cidadão espanhol era colocado como único meio de

contribuir para com a reconstrução, não apenas da economia, como também do

sentimento de moralidade do país. A necessidade de economizar os escassos

recursos materiais se estendia às relações afetivas das pessoas, configurando uma

psicopatologia social. Era como se viver plenamente constituísse também uma forma

de desperdício imperdoável. Esse cuidado com os gastos desnecessários, tanto de

dinheiro como de energia vital, manteve-se perene na sociedade espanhola por

décadas, mesmo depois de passado o período de maior pobreza.

A economia de sentimentos afetava diretamente o contato entre os seres

humanos, o que se traduzia em frígidas e ríspidas relações familiares e em um

convívio superficial. As pessoas construíam para, e entre, si, máscaras de felicidade

aparente, que ocultavam a realidade de casais que se suportavam em

relacionamentos arruinados, tudo em prol da manutenção do bom exemplo de vida

conjugal para os filhos. Estes últimos, que passaram pelo desconforto de atravessar

a infância e a adolescência durante esse obscuro período da história espanhola,

foram os mais prejudicados pela economia de afeto e amargaram o ressentimento

pela falta de atenção orgulhosamente negada por seus pais. Por essas razões,

constatamos que, a atmosfera familiar reproduzia, no interior dos lares espanhóis, a

mesma asfixia tensa e pesada que cerceava, a espontaneidade das relações

sociais, para além das paredes do ambiente doméstico.

Nenhum outro segmento da sociedade espanhola sentiu mais o peso da

manutenção desse discurso de equilíbrio aparente, de laboriosidade e de respeito às

sacralizadas instituições espanholas, do que a classe média. Responsável pela

produção e pelo consumo que alavancava a crise econômica e enriquecia a elite

minoritária, era na classe média que o discurso oficial repercutia e se perpetrava

como importante recurso de sustentação do status quo, uma vez que, para a classe

miserável, o ideal de trabalho e sacrifício não fazia sentido algum se comparado às

desumanidades vividas cotidianamente.

No seio desta classe, a figura da mulher representava uma peça fundamental

no tocante à disseminação da ideologia oficial, pois era ela a responsável por

reproduzi-la no interior do microcosmo familiar. Nesse período da história da

Espanha, houve grande retrocesso em relação às conquistas femininas iniciadas

nas primeiras décadas do século XX. Esse retorno ao antigo e tradicional perfil da

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mulher autenticamente5 espanhola, era visto de forma positiva, pois o discurso oficial

fazia crer que, ao negar a modernidade, o país se preservava de uma série de

problemas enfrentados pelas nações estrangeiras.

A partir de então, o objetivo mais digno para o qual a mulher devia se dedicar

era o matrimônio, instituição social intocável que devia transmitir uma aparência de

felicidade constante, ainda que dissimulada. Como mães, estas mulheres eram

conduzidas a reproduzir na relação com os filhos a mesma lógica da contenção

econômica, o que se refletia na escassez de afetividade. As crianças e os jovens

espanhóis eram educados sob a austeridade que a própria sociedade demonstrava

e exigia das pessoas. Entretanto, nem todas as jovens conseguiam, naqueles anos

do imediato pós-guerra, encontrar um esposo, uma vez que a Guerra dizimara boa

parte da população masculina em idade produtiva. A Espanha era um país de

mulheres viúvas e solteiras que repentinamente se viram responsáveis pelo sustento

de suas famílias.

Convenientemente, essas mulheres se converteram em mão-de-obra útil para

um mercado de trabalho praticamente devastado de trabalhadores. Pensando nessa

contingência econômica, a Falange criou uma organização intitulada Sección

Femenina, um aparato ideológico que, além de contribuir para a valorização do perfil

feminino estabelecido pelo discurso vigente, responsabilizava-se também pela

formação técnica e profissional das mulheres em fase produtiva. A Sección

Femenina se organizou institucionalmente por meio das Escuelas Municipales del

Hogar, cujo ingresso era obrigatório para as mulheres solteiras ou viúvas, com idade

entre 17 a 35 anos, que desejassem continuar os estudos ou ser admitidas como

profissionais em carreiras públicas ou em empresas privadas vinculadas ao Estado.

Em geral, a vida das mulheres mantenedoras de lares era bastante penosa, o que

fazia com que a maioria delas continuasse desejando o matrimônio como

oportunidade de deixar a sacrificada e desvalorizada condição de solteira.

Pilar Primo de Rivera6, Delegada Nacional da Sección Feminina, em suas

aparições públicas, ocupava-se de enfatizar o perfil ideal para a mulher espanhola: 5 Nesse período, propagava-se o ideal de que a mulher espanhola era a mujer muy mujer, ou seja, alguém que apesar de valorizar a própria feminilidade, era consciente de sua posição inferior naquela sociedade predominantemente machista. Esta mulher atendia a um perfil comum: devia ser católica, boa mãe e esposa exemplar, dedicada à família, servil ao esposo, aos irmãos e aos pais, além de ser trabalhadora e prendada. Devia observar, sobretudo, a conduta cristã e posicionar-se contrária à extravagância disseminada pelo feminismo. (Martín Gaite, 1987, p. 27) 6 Filha do General José Antonio Primo de Rivera, ex-ditador espanhol. Pilar Primo de Rivera fundou a Sección Femenina da Falange e foi sua Delegada Nacional por 43 anos, todo o tempo de existência da instituição, sendo a principal porta-voz do modelo de mulher ideal para a Espanha da época.

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donas de casa modestas, econômicas, submissas, prudentes e preservadoras da

moral e das tradições que o feminismo ameaçava. Segundo a ideologia sustentada

pelo franquismo, as mulheres deviam abdicar do cuidado extremado com a beleza

física, zelando apenas por uma imagem higiênica e agradável, porém discreta. A

mulher que insistisse em resgatar os valores da emancipação feminina, geralmente

associados e reduzidos à futilidade e ao consumismo atribuído às mulheres

estrangeiras, era considerada uma traidora do concepto de españolidad.

Nesse contexto, a relação entre os gêneros tornou-se significativamente

complexa. Com a proibição da educação mista, os universos masculino e feminino

foram afastados e a amizade entre rapazes e moças era vista com acentuado

preconceito. A exploração da prostituição expandiu-se devido à pobreza extremada

da classe miserável e instigada por uma cultura machista que permitia aos homens

jovens o prazer barato como forma de auto-afirmação de sua masculinidade. Em

contrapartida, no ambiente familiar da classe média, extremamente matriarcal, havia

uma supervalorização das figuras femininas, protegidas por pertencerem às boas

famílias. Entretanto, podemos observar que esta mesma sociedade que resguardava

as suas mulheres de bem, também as culpava pelo desequilíbrio familiar, o qual era

considerado um fracasso no desempenho do papel social feminino.

Diante de todo esse cenário de miséria material que se constatava na

destruição das cidades e do campo, na fome e na desigualdade social, vemos uma

sociedade submersa numa profunda crise de valores que redundava em posturas de

violência extremada ou de profunda alienação. Esse status quo, benéfico para a

classe dominante, era mantido por um discurso oficial que procurava ocultar a

crueldade de toda a realidade por meio da repressão e da disseminação de um

pensamento acrítico, segundo o qual, somente o trabalho exaustivo, a economia e o

silêncio seriam capazes de levar o país à restauração.

A dificuldade da sociedade espanhola em sobreviver e estabelecer relações

minimamente humanas de convívio permeia os diferentes processos de produção

artística da época, conforme veremos a seguir, dando especial atenção à arte do

fazer literário.

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1.2) A literatura num espaço social de escassez

Ao pensarmos as diferentes manifestações artísticas, na Espanha, no início

dos anos 1940, consideramos o ambiente social que, à princípio, parecia avesso e

estéril à sensibilidade estética. A privação dos contingentes básicos para a

população como o alimento e a moradia, dificultavam o investimento econômico para

as artes em geral. A dignidade humana, esfacelada pelo desemprego e pelas

humilhantes condições de vida, repercutiu num silêncio de quem, privado do direito

de se expressar, acabou por se habituar ao vazio expressivo e a aceitar com

naturalidade a ausência do desejo de manifestação criativa.

Vários estudiosos desse período histórico e artístico da Espanha, entre os

quais Angel Basanta (1985, p. 11) e Rodríguez Puértolas (1987, p. 84), afirmam que,

durante o imediato pós-guerra, a vida cultural no país sofreu significativa alteração,

sobretudo por conta do exílio e do desaparecimento de artistas e intelectuais

perseguidos pelo autoritarismo franquista. Pese a isso, o isolamento político ao qual

a Espanha foi submetida, acarretou também um isolamento cultural. A circulação no

país da produção literária internacional estava censurada, assim como estavam

proibidas as obras escritas por autores espanhóis exilados. O governo fomentava a

tradução e a leitura de literatura estrangeira de qualidade questionável, além de

incentivar uma produção literária de apologia declarada ao regime franquista. A

criação de prêmios literários como o Nadal7 em 1945, procurava estimular a

produção literária ante aquele cenário de completa estagnação.

Isto nos conduz a entender que, dentro desse contexto, dois posicionamentos

artísticos podiam ser observados: a atitude evasiva daqueles que preferiam ignorar

os últimos acontecimentos históricos e a realidade vivida; uma postura oposta,

nutrida pela necessidade de ao menos relatar o cotidiano da violência velada e

consentida.

Os escritores que permaneceram no país habituaram-se a uma produção

literária sufocada pela arbitrariedade, o que gerou um forte sentimento de auto-

censura. Segundo Basanta (1985, p.11), a inacessibilidade à produção literária

internacional, e à boa parte da literatura espanhola, fez com que os jovens escritores

7 Prêmio instituído no ano de 1945 para estimular a criação literária e artística na Espanha. O país vivia um momento de crise no setor cultural devido ao exílio e a morte de vários de seus melhores artistas durante a Guerra Civil. Carmen Laforet foi a primeira autora a receber o prêmio por sua inaugural obra Nada, publicada no mesmo ano de fundação do prêmio que é, ainda nos dias atuais, um dos mais tradicionais naquele país.

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da geração literária que começava a despontar, assumissem uma postura de

autodidatismo e criassem uma forma diferente de expressar esteticamente o que se

vivia durante aqueles anos de opressão, sem ferir, no entanto, os limites da censura.

Essa nova geração de escritores foi denominada por vários estudiosos como

Generación de 1936, uma vez que a maior parte de seus autores viveu o horror da

Guerra Civil durante sua juventude e começou sua produção literária durante o

conflito, intensificando-a após o seu término, em 1939. Esse grupo de autores

encontrou na prosa, a força expressiva para uma literatura realista, porém, isenta de

partidarismos políticos e de crítica social aguda. Seu objetivo consistia apenas em

registrar um valioso testemunho da vida na Espanha durante o imediato pós-guerra.

No decorrer do levantamento de informações críticas, constatamos que

estudiosos da literatura espanhola concordam em afirmar que, após a Guerra, a

primeira obra a romper o silêncio criativo no país foi o romance La familia de Pascual

Duarte (1942) de Camilo José Cela. De acordo com Rodríguez Puértolas (1987, p.

93-4, 109), Cela parte da tradição do romance picaresco8 espanhol para, com uma

linguagem apurada embora repleta de violência e ironia, criar um relato

autobiográfico de um assassino brutal. O protagonista Pascual Duarte relata seus

crimes e sofrimentos procurando se redimir por meio de um raciocínio determinista

que, segundo o crítico, justifica seu comportamento como sendo reflexo do ambiente

social desequilibrado do qual fora vítima durante toda a sua vida. Ao retomar certos

tons formais da narrativa espanhola realista do século XIX e ao optar pela violência

expressiva e narrativa do estilo tremendista9, Cela procura renovar sua escritura

oferecendo ao leitor certa multiplicidade de pontos de vista e perspectivas. Esse

romance apresenta também elementos existencialistas, ao tratar do vazio da

existência humana e da inadequação do ser ao seu entorno social. Segundo Oscar

Barrero Pérez (1992, p. 59), a narrativa de Cela apresenta o processo de

desumanização do ser por meio de uma visão completamente negativa do homem,

8 Segundo Felipe B. Pedraza Jiménez e Milagros Rodríguez Cáceres (1991, p. 62-3), a picaresca é

um gênero romanesco que surgiu na Espanha no século XVI. Nessas narrativas o protagonista, advindo de classes sociais inferiores, relatava à maneira de autobiografia os infortúnios pelos quais passara ao longo da vida na luta pela própria sobrevivência. Esse personagem constituía, portanto, um autêntico anti-herói, que se opunha ao ideal medieval do herói das novelas de cavalaria. Tinha como características a inteligência e a sagacidade para livrar-se dos problemas imediatos sem importar-se com a nobreza de seus atos, justificados sempre pelas agruras às quais fora submetido durante sua existência. 9 Oscar Barrero Pérez (1987, p. 263-5), define o tremendismo como uma técnica narrativa que enfatiza o grotesco, o repulsivo e a violência das relações humanas com a finalidade de chocar o leitor. Através da ótica do tremendismo tem-se uma visão pessimista do mundo e do homem, reduzido à condição primitiva de animal e sujeito às degradantes imposições do meio social.

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que se relaciona afetivamente de maneira superficial, tornando-se incapaz de

expressar sentimentos de nobreza e elevação de espírito.

Outra obra que surge nesse cenário sócio-cultural é o

romance Nada, um relato autobiográfico escrito pela jovem autora

Carmen Laforet que, aos 23 anos de idade, vence a primeira convocatória do Premio

Nadal e publica sua primeira obra.

No romance de Laforet, o enredo recupera a memória recente da protagonista

Andrea, narrando o decorrer de um ano na vida da jovem órfã que, aos 18 anos de

idade, deixa uma pequena cidade no interior da Espanha para estudar em

Barcelona. Nesta cidade, a personagem se vê obrigada a conviver com parte de sua

família materna, pessoas com as quais não mantinha contato desde a infância.

Trata-se de seres que representam a decadente classe média espanhola e que

demonstram, em sua constituição psicológica perturbada, as conseqüências da

violência da recém terminada Guerra Civil. Num retrato realista da penúria material e

humana provocada por um regime arbitrário, a realidade do entorno social se traduz

em desentendimentos brutais pelo domínio do poder nas micro-relações familiares.

Ao longo da narrativa, a protagonista atravessa o caminho de transição entre a

adolescência e a vida adulta. Esse processo, naturalmente conturbado em sua

própria essência, torna-se potencialmente doloroso para Andrea, que acumula mais

decepções que encantos ao ter sua existência cindida entre um decadente espaço

doméstico de relações humanas degradadas e o espaço universitário, lugar onde a

jovem não encontra mais que superficiais amizades que reforçam a inferioridade de

sua condição social.

Segundo Domingo Ródenas de Moya (2001, p. 220-1), as obras La familia de

Pascual Duarte de Cela e Nada de Laforet, tornaram-se importantes referências

para a literatura espanhola de sua época sendo consideradas, na ocasião de suas

publicações, acontecimentos sócio-literários que romperam com o modelo narrativo

e o padrão temático vigentes. Para o crítico, trata-se de romances que re-

significaram todo um cenário cultural e literário sufocado pelo silêncio imposto por

uma censura institucionalizada:

La primera nota discordante en la calma amordazada de los primeros años cuarenta la dio Camilo José Cela con su Pascual Duarte, inspirado en una estética feísta, llena de sordidez y violencia, que pronto se conoció como tremendismo. La segunda, con ecos de

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escándalo, la dio Carmen Laforet con Nada. (Ródenas de Moya, 2001, p. 221)

Uma das principais inovações estéticas constatadas nessas narrativas foi a

de propor o abandono do realismo tradicional, para apresentar um encontro entre

ficção e realidade social. Essa junção está representada por meio de descrições

agressivas e exacerbadas da degradante condição humana vivida pela população

espanhola, durante os anos que sucederam o fim da Guerra Civil.

Voltando-nos especificamente para a crítica em torno da obra laforetiana,

destacamos, como um dos elementos relevantes, a preocupação dos estudiosos de

sua narrativa, com a relação estabelecida entre os relatos ficcionais da autora e sua

própria trajetória de vida. Em Nada, por exemplo, a característica autobiográfica está

no fato de que a história de Andrea guarda estreita analogia com um determinado

período da juventude de Laforet, quando a escritora também deixou o interior do

país para dar continuidade aos seus estudos na capital catalã. Esse detalhe

biográfico apresenta uma habilidade de Laforet como narradora: sua forma

perspicaz e criativa de se nutrir de personagens e histórias de sua própria vida

cotidiana para construir seres ficcionais e enredos romanescos. Em Nada, Andrea

sugere ser a própria Laforet aos dezoito anos de idade e recém chegada a

Barcelona. O choque que a personagem sofre ao redescobrir a cidade arrasada pela

guerra e pela escassez do pós-guerra, parece ser o mesmo sentimento que invade a

jovem escritora que, assim como sua heroína, precisa viver junto à família materna,

percebendo as cicatrizes que a violência deixara nas pessoas. Sobre a relação

autobiográfica entre escritora e personagem, comenta a própria Laforet numa

entrevista compilada e publicada pela jornalista Imaculada de la Fuente:

El ambiente, el tipo de personajes, era mi vida en Barcelona y, por lo tanto, no necesitaba preparar un personaje de mi edad y viviendo en un tiempo determinado en una determinadísima ciudad que yo viví (te digo esto porque sé muy bien que tú sabes que eso no quiere decir que yo pensase hacer biografía). (…) a Andrea no tuve que inventármela, por el hecho de que tenía la edad que yo tenía al llegar a Barcelona y la misma capacidad de sorpresa. (Laforet apud De la Fuente, 2005, p. 13)

Conforme percebemos nesse depoimento, a autora sempre fez questão de

esclarecer que seus romances não eram apenas autobiografias. Segundo Joaquín

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Entrambasaguas, o assunto que merece ser discutido, não é a possível classificação

dos romances laforetianos como autobiografias. Para o estudioso, há que se

ressaltar a forma como a escritora transforma aspectos de sua vida particular, em

ricos elementos para a ficção:

Difícil o imposible es probar lo que de autobiografía deja un autor en su creación, y más aún si éste lo niega, como corrientemente ha hecho Carmen Laforet, (…) la autobiografía es el fundamento de las dos novelas10 de Carmen Laforet, (…) en lo que tienen de motivos, de líneas generales, para que la autora los eleve, transformándolos, a la categoría de creación literaria. (Entrambasaguas apud De La Fuente, 2005, p. 12)

Segundo a crítica especializada na obra de Laforet, outro elemento

romanesco construído com propriedade pela autora, são as personagens, sobretudo

aquelas que representam os papéis femininos. Ao criá-las, a autora se desvencilha

do arquétipo das protagonistas das chamadas novelas rosas11. De acordo com

Teresa Rosenvinge (2005, p. 7), estudiosa dedicada às personagens femininas da

narrativa laforetiana, a escritora se tornou uma espécie de precursora do romance

feminista em plena Espanha franquista. A importância de suas personagens

femininas para a literatura e para a sociedade espanhola da época, dá-se pelo fato

de que se trata, ou de mulheres pouco convencionais para o seu contexto, ou de

arquétipos perfeitamente reconhecíveis naquela realidade sócio-cultural. Laforet

representava, por meio dos papéis femininos, uma visão realista e livre de

idealismos sobre o cotidiano da mulher espanhola. Sua preocupação estava em

relatar a amargura diária imposta às mulheres, vítimas da repressão de um discurso

oficial que pretendia torná-las repetidoras e mantenedoras do respeito aos valores

morais e religiosos de subjugação feminina, conforme explica Rosenvinge:

Para medir el valor exacto que tiene la obra de Carmen Laforet hay que recordar que lo que escribió fue escrito en la peor España posible, en un país maniatado donde las mujeres solteras y casadas

10 O estudioso se refere aos dois primeiros romances de Laforet: Nada e La isla y los demonios. 11 Literatura popular de qualidade questionável que circulava entre o público leitor feminino na Espanha nas primeiras décadas do século XX. Segundo a professora Valéria de Marco (2000, p. 251-2), as protagonistas das novelas rosas apresentavam perfis bastante corriqueiros. Tratava-se de mulheres geralmente jovens, castas, ingênuas, virtuosas e laboriosas que passavam boa parte da ação narrativa preocupadas em empreender uma difícil batalha contra o mal, da qual saiam sempre vitoriosas. Como prêmio, obtinham o casamento perfeito com um herói idealizado, o que coroava os romances com um clássico e previsível final feliz.

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eran ciudadanas de segunda a las que se les exigía obediencia, recato, sumisión, laboriosidad, etcétera. Mujeres de las que se dudaba cuando osaban traspasar la frontera entre el mundo de lo privado, la casa y la familia, y lo público, ya a las que se quiso educar sólo para ser estupendas amas de casa, deliciosas y poco más. Carmen Laforet demostró lo que las mujeres eran escribiendo sobre ellas, mujeres de carne y hueso, mujeres reales con las que creó un extenso retrato literario al que siempre se deberá acudir cuando alguien quiera saber cuál fue el papel de las mujeres durante el franquismo y cuál fue el papel que se les quitó. (Rosenvinge, 2005, p. 10)

No caso específico do romance em estudo, verificamos que a protagonista

Andrea é uma personagem que atrai de forma especial a atenção da crítica, por ser

a primeira personagem a apresentar o anti-convencionalismo que Laforet atribuiria

às suas heroínas ao longo de sua produção literária. Segundo Martín Gaite (1999, p.

102-5), a originalidade da construção da protagonista do romance Nada é um dos

maiores méritos dessa narrativa. Desprovida de atributos de beleza física, frustrada

em todas as suas tentativas de envolvimento com o sexo oposto e com um

comportamento nada habitual para o seu tempo, a jovem estudante é uma perfeita

anti-heroína. Andrea surge no cenário ficcional de Nada com a dupla função de

narrar e protagonizar. Entretanto, o curioso desse romance está no fato de que, as

vivências e experiências da personagem são postas em segundo plano. Andrea não

protagoniza de fato sua própria história. O valor literário da personagem se encontra

além de seu papel de protagonista. O aspecto primordial de sua concepção está em

seu perspicaz olhar sobre o entorno social, ou seja, em sua função de observar e

narrar. Andrea é, antes de mais nada, uma relatora da realidade sócio-histórica

conflituosa que a envolve, o que a torna mais que uma simples narradora -

transforma-a em testemunha de uma sociedade caótica, conforme explica Martín

Gaite:

Precisamente lo innovador de Nada está en que Carmen Laforet ha delegado en Andrea para que mire y cuente lo que sucede a su alrededor, en que no la ha ideado como protagonista de novela a quien van a sucederle cosas, como sería de esperar, sino que la ha imbuido de las dotes de testigo. (Martín Gaite, 1999, p. 104–5)

A riqueza da narrativa laforetiana é de uma sensibilidade intensa e particular,

pois a autora transpõe às linhas da ficção, a frustração da personagem que é

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consciente da sua impossibilidade em protagonizar sua própria vida e entende a sua

limitação reduzida apenas à obrigação de observar:

Poco a poco me había ido quedando ante mis propios ojos en un segundo plano de la realidad, abiertos mis sentidos solo para la vida que bullía en el piso de la calle de Aribau. Me acostumbraba a olvidarme de mi aspecto y de mis sueños. (Laforet, 2003, p. 42-3)12

Neste fragmento da narrativa, a protagonista relata o conflito interior sofrido

no momento em que percebe que sua existência se resume à sua condição de

narradora e, finalmente, compreende que será por meio desta função que os

transtornos das pessoas atormentadas pelos sofrimentos da guerra e expostas à

miséria do pós-guerra tornar-se-ão públicos. Essa contingência lhe é imposta e a

protagonista sequer resiste, entregando-se ao papel para o qual fora destinada,

abdicando de seus desejos e expectativas. A consciência da personagem evolui e

chega ao final do romance sob a forma de uma constatação definitiva: “Unos seres

nacen para vivir, otros para trabajar, otros para mirar la vida. Yo tenía un pequeño y

ruin papel de espectadora. Imposible salirme de él. Imposible libertarme.” (p. 208)

Os diversos ambientes de degradação aos quais Andrea é exposta ao longo

da narrativa, exercem sobre ela um poder destrutivo tão intenso que a personagem

se vê prisioneira de sua condição de narradora. A partir disso analisamos que,

constituir a natureza psicológica de uma protagonista-narradora com tais aspectos

de profundidade, produz um efeito bastante relevante para a literatura de um país

destroçado por uma miséria capaz de se personificar em diversas feições. Por isto,

Ródenas de Moya afirma e considera Andrea uma personagem mais complexa do

que o protagonista criado pelo precursor de Laforet no romance La familia de

Pascual Duarte:

En efecto, Andrea es una opaca caja de resonancia de lo que sucede a su alrededor; conocemos el entorno social y humano en el que se mueve pero nos sustrae el alma de la muchacha. (...) La complejidad de la narradora de Nada supera con creces la del bárbaro Pascual Duarte de Cela y puede considerarse el primer brote de inquietud técnica en la narrativa de posguerra. (Ródenas de Moya, 2001, p. 222)

12 Todas as citações referentes ao romance em estudo serão extraídas da seguinte edição da obra: LAFORET, Carmen. Nada. Barcelona: Ediciones Destino S. A., 2003. Repetiremos, portanto, somente o número da página correspondente a cada citação.

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Com a publicação desse romance, Laforet conseguiu romper o silêncio do

poeta exilado Juan Ramón Jiménez13 que, homenageado na epígrafe do romance14,

destaca outro aspecto da obra: o fato de se tratar de uma narrativa sem assunto15.

Para o poeta, Nada é um romance que não possui um enredo de núcleo único, é

escrito como se houvessem várias histórias que se entrelaçam com temáticas de

relevância pouco aparente. Podemos ler essa fragmentação do enredo de Nada,

como signo representativo da própria dispersão de toda a sociedade espanhola que,

por sua vez, provocava o esfacelamento da subjetividade de cada indivíduo que a

compunha.

Ressaltamos que, apesar do caráter de denúncia que o romance propõe, sua

autora nunca teve ligação com vertentes políticas ou ideológicas. Sua narrativa é

isenta de partidarismos e é despretensiosa politicamente, conforme afirmam os

escritores espanhóis Imaculada de la Fuente e Agustín Cerezales. Este último,

escritor e filho da autora (2005, p. 8), amplia a questão e esclarece que, apesar da

isenção partidária, toda a produção narrativa de Laforet traz consigo uma constante

necessidade de relatar a realidade social do seu entorno, independentemente da

sociedade na qual estivesse inserida e de quais fossem os problemas observados. A

sensibilidade artística da escritora esteve sempre voltada para as classes ou grupos

mais oprimidos pelo poder, fosse ele econômico ou institucional. Segundo De la

Fuente, a oposição velada que Laforet parece sustentar contra o regime autoritário

instaurado na Espanha, não está calcado em convicções políticas. Sua postura de

denúncia parte da sensibilidade de uma jovem artista que consegue transpor à

experiência narrativa uma vivência obscura e sufocante que afeta não somente ela,

como a toda a sociedade espanhola de seu tempo:

Yo lo que creo es que ella es una chica que se educa en la libertad, no vivió la Guerra Civil. Y yo creo que Carmen no está alerta, no tiene una prevención ante el franquismo, es decir, que ella no tiene una defensa política ante el franquismo. Le viene encima, como se le viene encima a tanta gente que no está preparada ni politizada. Y ella sin hacer una crítica al franquismo, crítica que no hace, lo que ocurre es que por la vía de la experiencia se da cuenta

13 Um dos poetas mais expressivos da literatura espanhola, pertencente à Generación de 98. Retirou-se para o exílio logo após o fim da Guerra Civil Espanhola e o início da ditadura franquista. 14 Carmen Laforet utilizou como epígrafe para o romance um fragmento do poema Nada de Juan Ramón Jiménez que transcrevemos a seguir: A veces un gusto amargo/ un olor malo, una rara / Luz, un tono desacorde, / Como realidades fijas / Nuestros sentidos alcanzan / Y nos parecen que son / La verdad no sospechada ... (Laforet, 2003, p. 11). 15 Expressão empregada pelo próprio poeta ao emitir o primeiro parecer sobre o romance.

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de que ella no respira y ahí entonces está su antifranquismo. (De la Fuente, 2005, p. 10)

Essa capacidade de perceber a tensão social subjacente e manifestá-la

esteticamente, paradoxalmente aliada à juventude de Laforet, parece constituir um

antagonismo que merece destaque na opinião de vários críticos, entre os quais,

Barrero Pérez, que se surpreende pela visão desiludida e realista da jovem escritora,

refletida na construção de uma atmosfera romanesca negativa e desesperançada.

Este seria, segundo o crítico, o elemento dissonante, no contexto da literatura da

época, e o que confere à autora um status de precursora da narrativa espanhola que

seria produzida a partir dos anos 1950:

(…) sorprendió a ciertos medios por el doble motivo de su juventud y el pesimismo de su planteamiento, al final del cual quedaba una sensación de vacío que no parecía propia de una muchacha de 23 años que viviera en una España en que los jóvenes todavía cantaban al amor o evocaban sus experiencias bélicas. En Nada, por el contrario, se hablaba de psicologías atormentadas (en la línea del tremendismo), de frustración, desilusiones y fracasos, de desamor y soledad. (…) De alguna forma, C. Laforet, mucho más que un Cela que ya parecía maduro tras su primera novela, fue la avanzadilla de los jóvenes neorrealistas que surgirían en el panorama literario hacia 1950. (Barrero Pérez, 1992, p. 65).

Rodríguez Puértolas também ressalta a singularidade da composição do

universo ficcional de Nada, por causa do impacto que sua publicação produziu nos

leitores de sua época, ao apresentar personagens vazios, bárbaros e atormentados,

envoltos em um contexto existencial tão injustificável quanto a vida deles próprios -

uma esfera de sufocamento, isolamento e mesquinhez:

En ese mundo de Nada, deprimente y oscuro, la falta de comunicación humana es uno de sus rasgos distintivos, un mundo cerrado en sí mismo y sin conexiones con el exterior; en este hecho, precisamente, a pesar de sus pretenciones realistas, radica la absoluta falta de una explicación lógica del porqué de la existencia de estos seres situados al margen de la vida de la calle y de la ciudad, de una sociedad que no vemos en absoluto y que, sin duda les ha conformado y deformado. Como acaso también la censura ha conformado y deformado a Nada. (Rodríguez Puértolas, 1987, p. 113)

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Tendo em vista este breve apanhado histórico e crítico acerca da obra em

estudo, podemos ressaltar que a latente denúncia da crise social vivida, na

Espanha, durante o imediato pós-guerra e exposta nas páginas desse romance, é

um ponto de culminância das opiniões dos diversos estudiosos que se dedicaram à

análise de Nada.

Esta característica está expressa nos mais diversos componentes estéticos

da narrativa e o objeto de nosso estudo consiste em verificar de que maneira estas

coordenadas sócio-históricas e culturais estão plasmadas na composição espacial

do romance.

Para uma análise da ambiência romanesca da obra Nada, não podemos

ignorar a dicotomia que se estabelece à princípio na oposição entre os dois espaços

fundantes da narrativa - o ambiente doméstico e o urbano, conforme afirma Ródenas

de Moya (2001, p. 238): “El espacio narrativo, en Nada, está inequívocamente

dividido en dos, el espacio interior, sombrio y torvo de Aribau, y el espacio exterior

de las calles barcelonesas(…)”. (sublinhado nosso)

Desse modo, Laforet estabelece ante os olhos do leitor um paradoxo entre o

interior da casa da rua Aribau, em oposição evidente ao externo da cidade de

Barcelona. O primeiro ambiente, descrito a partir de sensações visuais, olfativas e

auditivas que enfatizam a escuridão, a sujeira, o odor, a desorganização e o aspecto

de envelhecimento e inutilidade dos objetos, constitui o que Salvatore D’Onófrio

(2004, p.97-8), entende como representação de um espaço atópico16: um símbolo

negativo da estada de Andrea na cidade de Barcelona e sua existência angustiante

entre aquelas pessoas degeneradas espiritualmente.

Em contrapartida, os ambientes externos da cidade de Barcelona, apesar das

destruições deixadas pela Guerra Civil e constatadas pela protagonista em seus

passeios por suas ruas e demais espaços aparecem, na maioria das vezes, por

meio de sensações positivas de luminosidade, cor, brilho, cheiros e sabores

agradáveis. Estes lugares são, conseqüentemente, o que D’Onófrio classifica como

espaços utópicos17, pois indicam um sentido positivo, simbolizado por lugares

idealizados, desejáveis e, portanto, agradáveis para quem os ocupa. A cidade de

Barcelona, na significação da narrativa, guardaria a liberdade e a oportunidade de

16 De acordo com o teórico, a palavra tópico vem do grego topos que significa lugar. Acrescida do prefixo a (atópico), essa palavra assume uma conotação negativa, ou seja, passa a representar um lugar desagradável à sensibilidade de quem o ocupa. 17 A palavra tópico acrescida do prefixo u (utópico) estabelece um sentido de positividade.

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novas experiências vividas por Andrea. Nos diferentes espaços da capital catalã, a

protagonista se permitiria dar vazão à imaginação, como se essa atitude de busca

pela liberdade representasse o desejo de um país que precisava tomar fôlego e se

reconstruir sobre as cinzas e os escombros da violência embora, muitas vezes,

esses espaços também se deixem abater pela melancolia que pairava em toda

aquela sociedade.

Esse possível contraponto entre os ambientes e a simbologia dos lugares

ficcionais, faz-nos questionar a função do espaço como forma de testemunho de

uma realidade social consternada. Tanto quanto as ações narrativas, a ambiência

parece relatar com precisão e veracidade o que se pretende denunciar.

A pesquisadora Adriana Minardi, autora do artigo Trayectos urbanos: paisaje

de la posguerra en “Nada”, de Carmen Laforet, el viaje de aprendizaje como

estratégia narrativa, explica como a autora realiza, na escrita, a transposição do

olhar de Andrea sobre o ambiente circundante. Essa estratégia empregada por

Laforet é, segundo Minardi, o que possibilita ao leitor ler os lugares e deles extrair as

informações sobre o contexto que está representado na dinâmica do macro-espaço

social, re-significado no micro-espaço narrativo:

Si Andrea habla, es porque habla sobre, no porque se cuestione acerca de si misma; Andrea no necesita un destinatario que construya el sentido, no persuade; Andrea muestra con sus trayectos los efectos del entorno. No habla pero termina hablando por medio de un contexto. Hace hablar a la ciudad, hace hablar al espacio de lo interno (la casa de la calle de Aribau) y de lo externo (Barcelona, sus calles, y la universidad). El viaje es la metáfora clave y la estrategia textual que posibilita la denuncia de lo que se silencia. La mirada provee lecturas, enmascaradas bajo la descripción; Andrea justifica su enunciación mediante la mediación de la mirada. Nadie habla, se describe lo que resulta visible; en fin, se enmascara lo obtuso con la mediación: la de lo obvio. (…)

Esto se refleja en Nada pero la funcionalidad política del olvido también fue permeable; en esa permeabilidad funciona el desvío, en tanto desconstrucción que permite la lectura de los espacios como huellas, en tanto esquema indicial de una situación socio-histórica. La memoria de la guerra civil se recupera como instancia presente. Se recupera in praesentia en la Barcelona herida y emergente. (Minardi, 2005, p. 1) (sublinhado nosso)

Assim como nos sugere Minardi, nesse estudo pretendemos ler as pegadas

deixadas pela narradora protagonista na configuração espacial do romance, a fim de

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verificar como a autora os constrói esteticamente, bem como quais poderiam ser

seus significados no contexto interno do romance e no externo, ou seja, na

perspectiva da realidade social que o envolve.

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2) A casa da Rua Aribau: um olhar na intimidade da sociedade

espanhola de pós-guerra

A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Incessantemente reimaginamos a sua realidade: distinguir todas essas imagens seria revelar a alma da casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa. (...)

Portanto, no plano de uma filosofia da literatura e da poesia em que nos colocamos, há um sentido em dizer que “escrevemos um quarto”, que “lemos um quarto”, que “lemos uma casa”.

(Gaston Bachelard, A poética do espaço, p. 33-6)

2.1) Considerações preliminares: o espaço como elemento romanesco

Antes de analisar a espacialidade no romance Nada, teceremos algumas

considerações a respeito da ambiência como categoria estrutural do texto em prosa,

a fim de revisar a teoria que orienta a análise da composição espacial da narrativa,

bem como os pressupostos que encaminharão o nosso estudo, estabelecendo

nossa postura analítico-metodológica.

O teórico Gilberto Defina (1975, p. 105), apresenta uma concepção preliminar

de ambiente narrativo ao afirmar que o espaço ficcional é “(...) a localização, o

cenário, a situação no espaço, o ‘decor’ da obra narrativa (...)”, o lugar “(...) onde os

fatos narrados acontecem. O meio, onde reina o clima no qual se desenvolve a

ação, a estória”. A conceituação de Defina nos parece válida, à medida que pontua,

de maneira inicial, uma forma de compreender o ambiente romanesco como o

elemento que proporciona o cenário no qual o enredo se desenvolve.

Entretanto, para além dessa concepção do espaço narrativo como moldura

para o desenrolar da trama ficcional, há uma outra funcionalidade para esse aspecto

estrutural do romance que é destacada por diversos teóricos, entre os quais

D’Onófrio (2004, p. 96-7), para quem o ambiente romanesco é duplamente funcional

à medida que atua como parte do imaginário do escritor ajudando-o, na composição

da instância ficcional da obra, e opera como um recurso estético capaz de vincular a

narrativa à realidade social que a envolve, conferindo verossimilhança ao texto

ficcional.

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Esta segunda percepção sobre o espaço narrativo, mais completa e

aprofundada, parece-nos adequada para a compreensão da ambiência do romance

Nada. A obra apresenta uma configuração espacial complexa, detalhadamente

elaborada e reconhecidamente importante para um entendimento mais profícuo da

narrativa, devido à relevância das coordenadas sócio-históricas que influenciam o

romance que propõe à sociedade, uma retroprojeção de sua própria imagem.

O ambiente, como categoria estrutural da obra narrativa, é apresentado ao

longo dos textos, por meio de descrições que o autor realiza dos espaços por ele

imaginados. Por isso, para realizar um percurso interpretativo seguindo as marcas

espaciais de um romance e tentando desvendar a multiplicidade de seus sentidos,

devemos nos ater a uma análise detalhada dos trechos descritivos, pois, segundo

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, é por meio desse recurso textual que o escritor

transmite ao leitor os signos para uma compreensão do espaço romanesco:

(...) a descrição é um elemento textual privilegiado de que o narrador dispõe para produzir o “efeito de real” a que se refere Barthes e por isso mesmo os indícios e sobretudo as informações da diegese se encontram com tanta freqüência e com tanta relevância nas descrições. Pode-se designar esta função da descrição como função indicial e informativa. Esta função manifesta-se (...) na caracterização do espaço social – um espaço indissociável da temporalidade histórica -, quer na pintura do espaço telúrico e geográfico – a topografia, na terminologia antes mencionada -, em geral representado nas suas conexões com o espaço social e concebido como um factor que condiciona ou determina os estados e as ações dos personagens. (Aguiar e Silva, 1986, p. 740-1)

Nesse fragmento, Aguiar e Silva extrapola a função da descrição meramente

ilustrativa e corrobora a afirmação de D’Onófrio sobre a relação entre espaço

ficcional e espaço real como forma de atribuir ao texto um tom verossímil. Além

disso, o teórico acrescenta que a composição espacial, em alguns casos, pode ser

elaborada em consonância com a caracterização dos personagens, definindo suas

atitudes ao longo do desenvolvimento das ações narrativas. Para Boris Tomachevski

(apud Dimas, 1985, p. 41), por exemplo, a criação poética do ambiente literário - a

descrição, no caso particular da prosa - é de fundamental importância, pois esta não

se configura apenas como elemento estético da obra, ela interage também e

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inclusive como um componente ideológico, trazendo para o interior da ficção a

sociedade retratada a partir da visão de mundo do artista.

Uma leitura das descrições narrativas do romance Nada coloca-nos diante da

recriação de ambientes sociais reais da Barcelona do início dos anos 1940. Temos

como exemplares daquela organização social a casa da Rua Aribau, onde Andrea

vive com seus familiares, além dos diversos ambientes da cidade de Barcelona,

como a universidade, as ruas, as praças, as igrejas, os parques e as praias. Desse

modo, percebemos que a casa e os diferentes lugares da cidade, possibilitam ser

lidos como signos, unidades particularizantes que pertencem a um campo semântico

maior. É como se os símbolos da casa e da cidade representassem, num todo

completo, a sociedade espanhola de pós-guerra. Nesse sentido, o que observamos

é o desenvolvimento de um possível processo de metonimização, a configuração de

uma figura de linguagem que, no dizer de vários teóricos, pode ser entendida como

um recurso de transnomeação18. Na definição de D’Onófrio (2004, p. 47-8), a

metonímia é “(...) um tropo construído não por similaridade, mas por contigüidade

semântica (...)” cujo “sentido novo conferido pela conotação metonímica é inerente,

co-natural e, portanto, contíguo ao próprio objeto;”. De acordo com Nilce Sant’anna

Martins (2003, p.102), sempre há entre os substantivos envolvidos no processo

metonímico, “uma relação de interdependência, coexistência e similaridade”. Desse

modo, podemos dizer que parece haver no romance Nada, uma analogia entre a

casa, que é uma unidade na composição da cidade, e ambos esses símbolos

sugerem a materialização, no contexto intrínseco à obra, da sociedade espanhola de

pós-guerra.

Na narrativa em estudo, tanto as imagens ficcionais da casa como as da

cidade de Barcelona, estão fundamentadas em descrições realizadas a partir de

aspectos sensoriais que, ora ressaltam sentimentos positivos, ora recriam imagens

negativas. Essa polarização dos espaços literários entre o bom e o mau, o céu e o

inferno, simbologias tão presentes no inconsciente coletivo da sociedade ocidental,

recebem, no campo da teoria literária, a distinção por meio dos termos locus

amoenus e locus horrendus respectivamente, conforme esclarece Aguiar e Silva:

18 Segundo Massaud Moisés (1999, p. 334-5), o termo metonímia vem do grego metonymía, e representa a junção do termo meta que significa mudança, associado ao termo ónoma que corresponde a nome. Por isso a idéia de transformação do nome, ou seja, uma maneira de se referir a um determinado objeto ou ser, utilizando uma expressão que o substitua sem deixar de manter para com o elemento referencial certa proximidade semântica.

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Em muitos romances, as descrições são portadoras de conotações que configuram um espaço eufórico ou disfórico, idílico ou trágico, que é inseparável das personagens, dos acontecimentos e da mundividência plasmada na diegese: o espaço, numa mescla inextrincável de parâmetros físicos, psíquicos e ideológicos, pode ser representado como locus amoenus ou como locus horrendus, como cenário de rêverie ou de angústia, como convite à evasão ou como condenação ao encarceramento, como possibilidade de libertação ascensional ou de queda e enredamento no abismo. (Aguiar e Silva, 1986, p. 742)

Essa separação metodológica, que a teoria da literatura concebe, está, no

dizer de Aguiar e Silva, estritamente relacionada à significação desses ambientes na

interpretação romanesca e à caracterização dos comportamentos dos personagens

que ocupam esses espaços antagônicos. Conforme mencionamos no primeiro

capítulo deste estudo, o crítico Ródenas de Moya, ao analisar brevemente o espaço

narrativo do romance Nada, o dicotomiza na dinâmica dos lugares adversos (casa e

cidade), determinando para cada um deles uma conotação de aprisionamento e de

liberdade, paralelamente. O estudioso afirma ainda que, apesar da simplicidade da

linguagem de Laforet e de seu estilo obscuro e sucinto, algumas passagens

descritivas apresentam autêntico lirismo, ao serem compostas por sensações que

resultam em imagens poéticas esteticamente bem elaboradas que reforçam essa

oposição:

Numerosas imágenes concertadas muestran que existe una deliberada voluntad de conseguir un efecto estético determinado, sea el de la asfixia de Aribau, la inconsciencia de Andrea o la esperanza de futuro. Es posible discernir unas imágenes de índole impresionista y otras de índole expresionista. Carmen Laforet recurre al impresionismo descriptivo para presentar el choque que la ciudad, sus calles y edificios producen en Andrea, que en general resulta deslumbrada. Luces y colores son aprehendidos como estímulos sensoriales primarios que reflejan, haciéndolos aflorar, deseos sublimados de cambio y elevación. Sin embargo, la descripción del interior de Aribau se hace con el recurso a técnicas expresionistas de distorsión de la realidad. La estética de lo disforme, monstruoso, oscuro y extraño le permite a la escritora construir con economía de medios una atmósfera asfixiante en la que se simboliza no sólo el empobrecimiento de la familia sino su degeneración moral y la funesta falta de salidas hacia el futuro. (Ródenas de Moya, 2001, p. 246-7) (sublinhado nosso)

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Ao distinguir a contraposição entre os espaços do romance, Ródenas de

Moya contribui com um importante dado para a nossa análise ao identificar as

descrições dos diversos ambientes externos da cidade de Barcelona e do ambiente

interno da casa da Rua Aribau, como descrições impressionistas e expressionistas,

respectivamente.

Segundo Massaud Moiséis (1999, p. 286-7) o impressionismo é uma

concepção artística que se originou nas artes plásticas, quando o objetivo era

retratar os ambientes exteriores por meio de detalhes visuais observados a partir da

incidência da luz que se projetava nos objetos, obtendo como resultado diferentes

tons cromáticos. Na literatura, essa técnica é empregada para dar plasticidade às

imagens. Nas descrições minuciosas, há uma preocupação maior em relatar as

sensações experimentadas, ante a contemplação dos ambientes e dos objetos que

os compõem do que em descrevê-las propriamente. Essa técnica é empregada por

Laforet no romance Nada, como veremos detidamente nas análises posteriores,

sobretudo nos momentos nos quais Andrea se entrega a um profundo

deslumbramento com a riqueza arquitetônica da cidade de Barcelona e com a

beleza de seus ambientes naturais. No entanto, é importante salientarmos que, nem

todos os contatos estabelecidos entre a protagonista e a cidade são de sublimação

artística ou de elevação da alma humana. Também, há passagens que evidenciam

a decepção da jovem com Barcelona, uma metrópole que cresce

desordenadamente, refletindo o desastre da guerra e a recessão do pós-guerra.

Entretanto, remetamo-nos às descrições do interior da casa da Rua Aribau,

nas quais, segundo Ródenas de Moya, a autora se utiliza da técnica expressionista

para obter o padrão estético da negatividade. De acordo com D’Onófrio (2000, p.

347), o expressionismo é uma concepção artística que surgiu, no início do século

XX, na Europa, e se originou também das artes plásticas. Seu principal intuito era o

de possibilitar a profunda expressão do eu, com um ponto de vista que partia

sempre do interior para o exterior. De modo preliminar, verificamos que o uso da

técnica expressionista, na configuração dos ambientes internos da casa da Rua

Aribau, pode ser justificado pela necessidade que a protagonista sente de se auto-

afirmar ante aquele cenário composto por objetos e seres que, de tão degenerados,

suprimem a individualidade da personagem, tentando transformá-la em mais um

elemento do espaço decadente. Por meio da representação caótica, distorcida e

alegórica, própria do expressionismo, a autora parece estabelecer sua crítica ao

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autoritarismo, à hipocrisia e à miséria vigentes na sociedade espanhola da época.

Entretanto, não podemos nos distanciar do fato de que o expressionismo propõe

uma visão subjetiva do entorno social, exatamente como ocorre no romance Nada,

no qual temos uma narradora-protagonista, que é quem se responsabiliza por nos

oferecer as informações sobre o espaço narrativo. Logo, a posição do foco narrativo

não é de imparcialidade, pois Andrea atua como personagem desse espaço, e os

indícios que ela nos fornece sobre a ambiência passam pelo filtro de sua

subjetividade. Esse tipo de ambientação romanesca é o que Osman Lins (apud

Dimas, 1985, p. 22) chama de ambientação reflexa, ou seja, quando nossa análise

está sujeita às lentes de um narrador que ao mesmo tempo é protagonista e,

portanto, está interessadamente envolvido na ação narrativa.

As imagens expressionistas e impressionistas apresentadas nas descrições

do romance estão compostas a partir de sensações particulares de Andrea.

Desvendá-las, pressupõe que utilizemos como ferramenta metodológica, o conceito

de topoanálise desenvolvido por Gaston Bachelard (2005, p. 20). De acordo com o

filósofo, esse recurso analítico pressupõe um estudo psicológico da vida íntima por

meio de um exame da composição espacial. Para tanto, referências ao tamanho, às

proporções dos ambientes, à quantidade e ao tipo de objetos que os compõem,

além da interpretação dos múltiplos sentidos que o espaço desencadeia a partir de

estímulos sensoriais sonoros, táteis, gustativos, olfativos e visuais são elementos

úteis no processo de decifração dos signos textuais do romance em estudo. Trilhar

os caminhos da escrita laforetiana, buscando as pistas deixadas pelos símbolos por

ela criados, é a tarefa à qual nos dedicaremos nas páginas que seguem.

2.2) A casa da Rua Aribau: O mundo demoníaco19

Em A poética do espaço, Bachelard (2005, p. 20) associa seu conhecimento

científico com sua própria experiência de mundo e concebe, sob a metáfora da casa

elaborada pelo psicanalista suíço Carl G. Jung20, uma teoria que coloca a moradia

como referência ao estudo da psique humana, a partir da relação que o homem

19 Expressão empregada por Northrop Frye em Anatomia da crítica para analisar certa categoria de imagens que serão exploradas na análise da obra Nada. 20 Carl G Jung, psicanalista suíço que metaforizou a alma humana comparando-a à constituição de uma casa antiga, na qual há uma sobreposição de camadas construídas mais recentemente sobre camadas construídas anteriormente.

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estabelece com o espaço físico que ocupa. Para comprovar essa hipótese, o filósofo

analisa imagens poéticas presentes em diversos trechos de obras literárias, nos

quais a casa é recriada como símbolo que guarda os segredos mais íntimos da alma

humana.

Nesse estudo, Bachelard (2005, p. 19) fundamenta alguns conceitos como o

de topofilia, termo que compreende o estudo do valor que o ser humano atribui aos

seus espaços, os quais podem ser subdivididos em três diferentes tipos de

ambientes. Os espaços do ódio e do combate seriam as esferas de hostilidade, os

lugares descritos como atmosferas asfixiantes onde se dão as lutas e os

sofrimentos, nos quais imperam sentimentos negativos e vis como o ódio, a inveja, a

vingança e a mesquinhez.

Esses espaços são repulsivos para o homem e geralmente aparecem na

literatura associados às imagens apocalípticas de purgatório e inferno. No entanto,

esse tipo de ambiente não é o centro da análise de Bachelard que, em sua obra, dá

prioridade ao estudo dos espaços felizes ou louvados, ou seja, os lugares positivos

que representam aconchego, segurança, proteção e guardam as lembranças

positivas do homem. Nesse sentido, a casa seria, na teoria do filósofo, uma das

principais simbologias representativas dentre os lugares aprazíveis ao espírito

humano. A terceira categoria de espaço trata dos ambientes idealizados, desejáveis

e agradáveis, os ambientes delineados nos sonhos do homem, mas que na

perspectiva do real nem sempre atendem às expectativas do imaginário.

Segundo Bachelard, em muitas das imagens poéticas por ele analisadas nos

diferentes trechos das obras literárias estudadas, o ser humano não apenas

descreve os ambientes concretos que fazem parte de sua realidade vivenciada,

como também idealiza outros lugares nos quais gostaria de estar ou de viver. Em

alguns casos, o imaginário criado em torno desses espaços inventados torna-se

absolutamente real para quem o imagina, conforme explica o autor:

Ao seu valor de proteção, que pode ser positivo, ligam-se também valores imaginados, e que logo se tornam dominantes. O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem. (Bachelard, 2005, p. 19)

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Andrea, a jovem protagonista e narradora do romance Nada, vivia até os

dezoito anos de idade em uma pequena cidade do interior da Espanha, em

companhia de uma prima que se responsabilizava por seus cuidados desde a morte

de seus pais. Em toda a narrativa, há poucas referências a essa etapa que antecede

a vinda da protagonista a Barcelona, cidade que ela conhece ainda na infância,

quando para lá viajava em companhia da mãe para visitar a família. Desde a

meninice, Andrea não retornara à capital catalã. Porém, a personagem sempre

guardara consigo a aprazível promessa de um dia ali regressar para dar

continuidade aos seus estudos, como seu pai planejara ainda em vida. Contudo, a

distância física e temporal que separava a protagonista da cidade onde desejava

desfrutar seu futuro, não impedia que, em seu imaginário, Barcelona fosse um lugar

acalentado. Nos sonhos de Andrea, aquele espaço era um símbolo que

representava um importante marco divisor de sua existência, pois para a

protagonista, o fato de partir do interior rumo à capital catalã, significaria uma

transformação em sua vida. Na fantasia da jovem estudante, a pacificidade

interiorana seria substituída pela excitação do convívio na grande cidade e por todas

as novas possibilidades que isso lhe ocasionaria.

A primeira descrição de ambiente no romance Nada, é um detalhamento da

Estação Ferroviária de Barcelona no momento da chegada de Andrea. Nessa

passagem, encontramos indícios que comprovam as expectativas positivas que a

personagem nutria sobre seu reencontro com a cidade acariciada em sua

imaginação:

El olor especial, el gran rumor de la gente, las luces siempre tristes, tenían para mí un gran encanto, ya que envolvía todas mis impresiones en la maravilla de haber llegado por fin a una ciudad grande, adorada en mis ensueños por desconocida.

Empecé a seguir – una gota entre la corriente – el rumbo de la masa humana que, cargada de maletas, se volcaba en la salida. (p. 13)

Essa descrição, responsável pela abertura da narrativa, apresenta-nos um

discurso em primeira pessoa do singular e localizado temporalmente no passado, a

partir dos usos dos Pretéritos Indefinido e Imperfecto do Indicativo da língua

espanhola. Ambas as constatações conferem ao romance um tom de relato, no qual

a protagonista Andrea narra o instante de sua chegada à cidade de Barcelona.

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Nesse trecho descritivo, há uma predominância de substantivos devido à

necessidade que a personagem tem de caracterizar o ambiente no qual acaba de

adentrar. Esse recurso lingüístico resulta em um efeito que possibilita a introdução

do leitor no mesmo ambiente no qual se encontra a narradora. O espaço da Estação

Ferroviária de Barcelona é configurado a partir de sinestesias que mesclam os

sentidos visual e olfativo (olor especial), e também auditivo (gran rumor de la gente).

O cheiro, por meio de um processo personificador, é singularizado com o emprego

do adjetivo especial. A fabulosa multidão, metaforicamente comparada às águas de

um caudaloso rio, confere um conveniente anonimato à personagem (gota entre la

corriente). O adjetivo triste personifica o recurso visual da luz, transformando-a em

uma claridade oblíqua, tolhida de sua plena capacidade de iluminar. Essa mesma

luz, ainda que tristemente, ilumina a esperança que parece reluzir nos olhos da

jovem que deposita, naquela cidade, as promessas de superação fantasiadas em

seu imaginário. Nesse instante, Barcelona é, para a protagonista, exatamente, o que

sua ilusão produzira, e os anseios idealizados significam, para ela, muito mais que a

terrível realidade vindoura.

Ao deixar aquele primeiro ambiente, Andrea finalmente parte para o

avassalador encontro com aquela que seria o objeto de seus sonhos - a cidade de

Barcelona:

Un aire marino, pesado y fresco, entró en mis pulmones con la primera sensación confusa de la ciudad: una masa de casas dormidas; de establecimientos cerrados; de faroles como centinelas borrachos de soledad. Una respiración grande, dificultosa, venía con el cuchicheo de la madrugada. Muy cerca, a mi espalda, enfrente de las callejuelas misteriosas que conducen al Borne, sobre mi corazón excitado, estaba el mar. (p. 14)

Tal como amantes que se revêem depois de longa espera, o encontro entre a

jovem e o espaço onírico da cidade se dá por meio de um impacto paradoxalmente

delicado, representado pela figura sinestésica de um ar que confunde a sensação

olfativa do mar à percepção tátil do peso e do frescor (un aire marino, pesado y

fresco). Essa mistura de sentidos representa o próprio tumulto sensitivo do encontro

da personagem com a cidade. A respiração profunda e insuficiente faz com que

Andrea absorva Barcelona, por meio da umidade revigorante do ar litorâneo, que

exigia de seus pulmões uma capacidade superior aos seus limites. É como se a

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cidade oferecesse à protagonista mais do que ela, com sua pacatez interiorana,

estivesse preparada para receber. A primeira imagem que a narradora nos fornece

da cidade está composta pela personificação de casas adormecidas, e

estabelecimentos fechados, como se ninguém aguardasse por sua chegada. A

iluminação da cena mantém o mesmo tom de opacidade da passagem anterior, ao

comparar metaforicamente os faróis das ruas com vigias embriagados, ou seja

tomados pelo cansaço e pela sonolência. O aspecto sonoro da imagem é transmitido

pela personificação da madrugada que silenciosamente cochicha seus indefinidos e

naturais ruídos. Por trás dessa inicial impressão está o mar, signo da infinidade de

novas oportunidades que a cidade parece guardar especialmente para a jovem.

Ao sair da inércia paralisante daqueles instantes de contemplação, Andrea

lança um olhar à sua volta e percebe que, assim como os demais viajantes, tem de

buscar um meio de chegar à casa dos parentes, que não a esperam na Estação,

devido ao atraso de sua chegada. Durante os conturbados anos de pós-guerra, era

comum a falta de trens e de veículos de transporte urbano. A bordo de um antigo

carro movido a tração animal, a protagonista empreende o primeiro passeio pela

cidade que parece lhe receber como quem acolhe um filho querido que à casa torna:

Corrí aquella noche en el desvencijado vehículo por anchas calles vacías y atravesé el corazón de la ciudad lleno de luz a toda hora, como yo quería que estuviese, en un viaje que me pareció corto y que para mí se cargaba de belleza.

El coche dio la vuelta a la plaza de la Universidad y recuerdo que el bello edificio me conmovió como un grave saludo de bienvenida. (p. 14)

Durante a desconfortável, porém instigante viagem, Barcelona e seus

diversos lugares ganham, sob o olhar da narradora, traços que os humanizam, como

por exemplo, no uso do substantivo corazón para metaforizar o centro da cidade. A

imagem da personificação do edifício da universidade é de grande valor nessa

passagem, pois esse lugar representa o motivo pelo qual Andrea retorna à cidade de

sua família: a continuidade de seus estudos universitários. Além disso, é exatamente

em torno àquele espaço que circulam todas as esperanças da protagonista em uma

vida mais excitante, por isso, é natural que dentre todos os ambientes barceloneses,

a universidade represente o mais caro às emoções de Andrea. Em uma época na

qual a Espanha retrocede nas conquistas femininas e quando a miséria assola a

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maior parte da população, é extraordinário que uma jovem órfã e pobre tenha a

oportunidade de vir a uma capital de província para ingressar na universidade.

Entretanto, as expectativas positivas que a protagonista cultiva sobre a capital

catalã começam a ser contrariadas no momento em que o carro adentra a Rua

Aribau, uma espécie de ante-sala da casa da família de Andrea. Com surpresa e

temeridade, a narradora relata a assombrosa visão que a imagem do edifício lhe

provoca:

Levanté la cabeza hacia la casa frente a la cual estábamos. Filas de balcones se sucedían iguales con su hierro oscuro, guardando el secreto de las viviendas. Los miré y no pude adivinar cuáles serían aquellos a los que en adelante yo me asomaría. Con la mano un poco temblorosa di unas monedas al vigilante y cuando él cerró el portal detrás de mí, con gran temblor de hierro y cristales, comencé a subir muy despacio la escalera, cargada con mi maleta.

Todo empezaba a ser extraño a mi imaginación; los estrechos y desgastados escalones de mosaico, iluminados por la luz eléctrica, no tenían cabida en mi recuerdo. (p. 15)

A personificação das imensas janelas de ferro escuro fechadas parece armar

a casa de resistentes escudos em posição de defesa. A sonoridade do ruído

estridente dos cristais e dos ferros estremecidos ao bater da porta põe fim ao

agradável deleite proporcionado pelo passeio ao longo das ruas de Barcelona e

introduz a personagem em uma realidade caótica que não tem lugar em seus

sonhos de adolescente. Andrea não reconhece nos desgastados pisos da escadaria

do edifício o mesmo lugar onde passava deliciosas férias em companhia da mãe.

Essas figuras visuais e sonoras negativas são um prenúncio da decepção que

aguarda a personagem no interior daquela residência.

Depois de ter a intimidade inundada pela cidade de Barcelona, Andrea tem de

praticar o exercício contrário: invadir o ser daquelas pessoas cujo tempo apagou de

suas lembranças, assim como desfigurou a imagem que a jovem guardara da casa

da família, quando das suas visitas infantis.

Sobre essa relação entre subjetividade e espaço, Bachelard explica que,

realizar um estudo da imagem poética da casa, é conhecer a intimidade do ser

humano que a ocupa:

Com a imagem da casa, temos um verdadeiro princípio de integração psicológica. Psicologia descritiva, psicologia das

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profundidades, psicanálise e fenomenologia poderiam, com a casa, constituir esse corpo de doutrinas que designamos pelo nome de topoanálise. Analisada nos horizontes teóricos mais diversos, parece que a imagem da casa se torna a topografia do nosso ser íntimo. (Bachelard, 2005, p. 20)

Portanto, adentrar a casa da Rua Aribau é, para a protagonista de Nada,

adentrar a intimidade daqueles completos desconhecidos, e essa tarefa será

bastante dolorosa. O primeiro contato com o interior da casa e com os seres que a

habitam é narrado a partir da metáfora do pesadelo:

Luego me pareció todo una pesadilla. Lo que estaba delante de mí era un recibidor alumbrado por la

única y débil bombilla que quedaba sujeta a uno de los brazos de la lámpara, magnífica y sucia de telarañas, que colgaba del techo. Un fondo oscuro de muebles colocados unos sobre otros como en las mudanzas. Y en primer término la mancha blanquinegra de una viejecita decrépita, en camisón, con una toquilla echada sobre los hombros. Quise pensar que me había equivocado de piso, pero aquella infeliz viejecilla conservaba una sonrisa de bondad tan dulce, que tuve la seguridad de que era mi abuela.” (p. 15)

A escuridão contribui para dar o efeito de um angustiante sonho ruim, do qual

a jovem gostaria de despertar. A decadência financeira dos parentes de Andrea, que

outrora pertenceram à prestigiada classe média espanhola, é evidente na presença

dos objetos de valor descuidadamente sujos e mal acomodados. A falta de luz,

comum durante os primeiros anos do pós-guerra civil em que o recurso ficara

escasso e se tornara extremamente caro, também denuncia o empobrecimento dos

habitantes da residência. A cena compõe uma moldura de horror, ao ser delineada,

a partir de descrições expressionistas distorcidas.

Desse momento em diante, a luminosidade e o frescor com que Andrea é

recebida pela cidade de Barcelona, contrapõem-se à obscuridade, ao calor

sofocante e ao aire estancado y podrido do interior da casa. Se a cidade parece ter

recepcionado Andrea de braços abertos com as saudações da universidade, junto à

família materna a estudante é acolhida pelo sorriso senil de uma anciã que sequer

sabe que está diante da própria neta. Depois da avó, os demais personagens vão

surgindo como fantasmas em um cenário de terror. O tio Juan, impressionantemente

magro, como um cadáver, é o primeiro familiar a aparecer, sendo sucedido por

Antonia, a empregada que, vestida em trajes negros, é acompanhada pelo cão,

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também negro, como uma espécie de extensão dela mesma. Gloria, a esposa de

Juan, figura entre os demais personagens envolta em uma brancura pálida e

enferma, que contrasta com seus longos e revoltosos cabelos vermelhos.

Finalmente, avista a tia Angustias, pessoa destoante, entre os demais, por sua altura

e beleza discreta. Exercendo a autoridade de quem se crê superior, é ela quem põe

fim ao espetáculo de horrores proporcionado pela cena, repreendendo a sobrinha

pelo atraso e ordenando que todos se recolham. Andrea que, até aquele momento,

não havia deixado abater-se pelo cansaço da viagem, agora se sente, além de

exausta, espantosamente sucia. Na esperança de livrar-se das sensações negativas

que a haviam tomado, desde sua entrada naquela casa, a personagem se submete

aos hilos brillantes da água fria, durante um demorado banho. No banheiro, onde

não há calefação, a protagonista amplia a sua visão, na descrição de mais um dos

ambientes da casa, e sua aversão aumenta à medida que ela se sente cada vez

mais inserida naquele degradado espaço:

!Qué alivio el agua helada sobre mi cuerpo! ¡Qué alivio estar fuera

de las miradas de aquellos seres originales! Pensé que allí, el cuarto de baño no se debía utilizar nunca. En el manchado espejo del lavabo - ¡qué luces macilentas, verdosas, había en toda la casa! – se reflejaba el bajo techo cargados de telas de arañas, y mi propio cuerpo entre los hilos brillantes del agua, procurando no tocar aquellas paredes sucias, de puntillas sobre la roñosa bañera de porcelana.” (p. 18-9)

Nessa passagem, a água, ainda que fria, cumpre seu papel como elemento

purificador, único recurso capaz de depurar não só o corpo como também o espírito

de Andrea, depois daquele repugnante contato com a casa e os parentes. No

entanto, assim como os demais ambientes do interior da casa da Rua Aribau, o

banheiro segue os mesmos padrões de falta de luminosidade, sujeira e descuido

dos objetos. Entretanto, para além do caráter de abandono com que o banheiro é

descrito, é interessante observar como sua condição estática ganha mobilidade. Ao

assumir um caráter personificador, o lugar interage com a personagem produzindo

alegoricamente, outra cena de terror:

Parecía una casa de brujas aquel cuarto de baño. Las paredes tiznadas conservaban la huella de manos ganchudas, de gritos de desesperanza. Por todas partes los desconchados abrían sus bocas desdentadas rezumantes de humedad. Sobre el espejo, porque no cabía en otro sitio, habían colocado un bodegón macabro de

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besugos pálidos y cebollas sobre fondo negro. La locura sonreía en los grifos retorcidos.

Empecé a ver cosas extrañas como los que están borrachos. Bruscamente cerré la ducha, el cristalino y protector hechizo, y quedé sola entre la suciedad de las cosas. (p. 19)

Comparado a um ambiente fantasmagórico, o espaço do banheiro é

metaforizado sob a locução adjetiva casa de brujas. A partir da narração ilusória de

Andrea, o lugar é personificado, produzindo ações no imaginário da narradora. Ali,

como em outros ambientes da casa, constata-se o abandono de objetos de valor

que pertencem ao passado da residência; no caso, um objeto de arte deslocado da

copa e mal acomodado no banheiro, bloqueava o reflexo de imagens pelo espelho.

Nesse fragmento do romance, há um predomínio de adjetivos e locuções adjetivas

que sugerem negatividade como: casa de brujas, tiznadas, ganchudas, gritos de

desesperanza, desdentadas, macabro, pálidos, negro, retorcidos, extrañas,

borrachos e suciedad, em oposição a apenas dois adjetivos positivos: cristalino e

protector. Isso sustenta a idéia de que, ao final do banho, os elementos repulsivos

que compõem aquele ambiente conseguem absorver por completo a protagonista,

envolvendo-a em uma aura de impureza mais poderosa que el cristalino y protector

hechizo dos hilos brillantes de agua.

Ao sair do banheiro, Angustias surge para encaminhar a sobrinha para o

quarto, preparado para ser, no interior da casa da Rua Aribau, o espaço que

pertence a Andrea, o lugar da sua individualidade:

No sé como pude llegar a dormir aquella noche. En la habitación que me habían destinado se veía un gran piano con las teclas al descubierto. Numerosas cornucopias – algunas de gran valor – en las paredes. Un escritorio chino, cuadros, muebles abigarrados. Parecía la buhardilla de un palacio abandonado, y era, según supe, el salón de la casa.

En el centro, como un túmulo funerario rodeado por dolientes seres- aquella doble fila de sillones destripados -, una cama turca, cubierta por una manta negra, donde yo debía dormir. Sobre el piano habían colocado una vela, porque la gran lámpara del techo no tenía bombillas. (p. 19)

Desde o instante em que o velho carro introduz Andrea pela Rua Aribau, suas

frustrações se acumulam incessantemente. À princípio, o desapontamento de ser

uma viajante a quem ninguém espera, soma-se à decepção de reencontrar um

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espaço que, de tão degenerado, em nada se assemelha às suas memórias infantis.

Ao ter de ocupar um quarto improvisado que outrora fora a sala principal da casa e

agora serve como sótão, lugar de escuridão e de despejo dos objetos inúteis,

metaforizado como buhardilla de un palacio abandonado, a jovem se sente como

mais um móvel indesejado e sem valor, recostado sem nenhuma importância, em

um canto qualquer da casa. Isso faz com que as negativas impressões de Andrea se

potencializem. Nesse momento, torna-se claro, para ela, o fato de que não é bem

aceita naquele ambiente e de que ali será impossível estabelecer relações

harmônicas e sequer, minimamente humanas.

A protagonista é mal recebida no seio da família materna porque, num lar

assolado pela pobreza extremada, abrigar mais um conviva significa mais despesas.

Em uma época em que os problemas financeiros se refletem em economia afetiva, a

jovem sobrinha não é acolhida com o carinho de uma família, que pretende apoiá-la

na nova jornada de sua vida, e acaba sendo recebida como mais um peso sobre

uma miséria que não tem como ser mais desastrosa.

O pesadelo que começara ao adentrar o hall da casa e ganhara proporções

horripilantes durante o banho, agora está completo com o novo cenário que se

apresenta ante os olhos de espanto da protagonista. O quarto arranjado para

Andrea tem em comum com os demais espaços do interior da casa da Rua Aribau, a

imundície, a falta de luz e uma reunião de objetos dispensados no cotidiano da

bizarra família. Dentre as tantas quinquilharias acumuladas no quarto da

protagonista, encontramos inclusive artefatos de arte, como o piano, além dos

muitos quadros e desenhos. Isto nos oferece indícios de que aquela família, em

algum momento de sua história, teve um poder aquisitivo que lhe proporcionara o

consumo de bens culturais. A realidade presente, no entanto, indica que aquelas

pessoas perderam, não apenas o prestígio financeiro, como também o apreço pelo

belo, pelo prazer do gozo estético, daí a metáfora palacio abandonado. A narradora

descobre a materialização da imagem do inferno ao visualizar, entre as antigas

cadeiras de estofamento estragado, seres que velam a morte, em uma cena fúnebre

que se completa com a cama, envolta em tecidos negros.

Para Andrea, dormir em tal ambiente resulta algo extremamente sofrível. A

personagem nota ainda que, além das sensações visuais negativas, o ar

condensado daquele espaço a sufoca. Sem alternativa, ela busca, no exterior da

casa, algum bálsamo que alivie seu espírito desgastado:

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Al fin fueron dejándome con la sombra de los muebles que la luz de la vela hinchaba llenando de palpitaciones y profunda vida. El hedor que se advertía en toda la casa llegó en una ráfaga más fuerte. Era un olor a porquería de gato. Sentí que me ahogaba y trepé en peligroso alpinismo sobre el respaldo de un sillón para abrir una puerta que aparecía entre cortinas de terciopelo y polvo. Pude lograr mi intento en la medida que los muebles lo permitían y vi que comunicaba con una de esas galerías abiertas que dan tanta luz a las casas barcelonesas. Tres estrellas temblaban en la suave negrura de arriba y al verlas tuve unas ganas súbitas de llorar, como si viera amigos antiguos, bruscamente recobrados. (p. 20)

A luz trêmula da vela confere movimento aos móveis e demais objetos ao

alternar jogos de luz e sombra, constituindo uma personificação. A imagem olfativa

do mau cheiro sufoca a personagem que ultrapassa as barreiras da desorganização,

da sujeira, da escuridão, rompendo o escudo de terciopelo y polvo (substantivos que

contrapõem o requinte do passado e o abandono do presente), e consegue

estabelecer um vínculo entre os ambientes interno e externo. Ao abrir a janela do

quarto, a protagonista permite a entrada da cidade de Barcelona, que traz consigo a

luminosidade natural de um céu de estrelas personificadas que tremulam sob a

paradoxal suave negrura da noite. A busca desesperada pelo contato com o exterior

sugere um ato de resistência que Andrea procura empreender contra o medo e a

certeza de que, sua estada junto a aqueles seres horripilantes, naquele espaço

repudiado, rapidamente tornaria a sua vida um inferno existencial. Ao invadir a

negatividade do interior da casa da Rua Aribau, Barcelona reconstitui, ainda que por

poucos instantes, as quase olvidadas expectativas oníricas, devolvendo-as à jovem

protagonista:

Aquel iluminado palpitar de las estrellas me trajo en un tropel toda mi ilusión a través de Barcelona hasta el momento de entrar en ese ambiente de gentes y de muebles endiablados. Tenía miedo de meterme en aquella cama parecida a un ataúd. Creo que estuve temblando de indefinibles terrores cuando apagué la vela. (p. 20)

O brilho das estrelas devolve à protagonista a ilusão sobre a cidade e isso lhe

dá forças para permanecer naquele ambiente horripilante. Entretanto, assim como

Andrea se vê refém da imundície do banheiro ao interromper a fluidez da água sobre

seu corpo, ela sucumbe à repugnância do quarto ao obstruir sua única fonte de

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luminosidade, entregando-se finalmente a uma morte simbólica representada na

metáfora da cama-túmulo.

2.2.1) Devaneios da infância: A casa da Rua Aribau entre o passado e o

presente

Por conseguinte, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores oníricos consoantes. Já não é em sua positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. (Bachelard, 2005, p. 25)

Segundo Bachelard, as imagens poéticas advindas de situações do estado de

inconsciência do sonho, podem revelar experiências positivas sobre os espaços

recordados.

Na manhã seguinte à sua chegada a Barcelona, Andrea desperta associando

os ruídos da Rua Aribau aos sons que escutava em sua infância, quando ali se

hospedava em suas férias com a família. Entorpecida pelo sono mal dormido e pelo

desconforto provocado pelas temerosas impressões da noite anterior, a personagem

experimenta instantes de semi-consciência e, como em um devaneio, retoma as

prazerosas sensações pueris do passado:

Inmediatamente tuve una percepción nebulosa, pero tan vívida y fresca como si me la trajera el olor de una fruta recién cogida, de lo que era Barcelona en mi recuerdo: este ruido de los primeros tranvías, cuando tía Angustias cruzaba ante mi camita improvisada para cerrar las persianas que dejaban pasar ya demasiada luz. O por las noches, cuando el calor no me dejaba dormir y el traqueteo subía la cuesta de la calle de Aribau, mientras la brisa traía olor a las ramas de los plátanos, verdes y polvorientos, bajo el balcón abierto. Barcelona era también unas aceras anchas húmedas de riego, y mucha gente bebiendo refrescos en un café… Todo lo demás, las grandes tiendas iluminadas, los autos, el bullicio, y hasta el mismo paseo del día anterior desde la estación, que yo añadía a mi idea de la ciudad, era algo pálido y falso, construido artificialmente como lo que demasiado trabajado y manoseado pierde su frescura original. (p. 21-2)

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As emoções de Andrea naquele confuso despertar são indefinidas, próprias

do estado de inconsciência ou de devaneio, porém suas lembranças são reais e

metaforicamente comparadas ao sentido olfativo de frutas frescas. O dado imediato,

que vincula o presente vivido ao passado das recordações da personagem, é a

figura auditiva do barulho dos bondes que circulam pela Rua Aribau, sinal da

modernidade e da prosperidade da cidade. Nesse momento, Andrea não é a jovem

de dezoito anos. É a menina que tinha o sono velado por tia Angustias que, numa

atitude protetora, obstrui a passagem da luz do sol a fim de prolongar o repouso da

sobrinha. Nesse instante, a protagonista não poderia imaginar o quanto esta mesma

tia, outrora cuidadosa e carinhosa, iria obstruir-lhe a própria vida, controlando seus

passos e atitudes.

A Barcelona das reminiscências de Andrea é uma cidade em pleno verão,

absorvida por toda a positividade que a estação da luz e do calor pode trazer à

memória e aos sonhos humanos. O constante movimento de veículos e pessoas que

se divertem, a luminosidade e o sentido tátil estimulado ora pelo calor, ora pelo

frescor da brisa que oscila a copa das árvores, configuram a imagem positiva que

Andrea criou sobre a cidade de Barcelona, esforçando-se por nutri-la

imaginariamente, até o dia do seu reencontro.

Ao abrir os olhos, a personagem não acredita que, agora, seu corpo se

encontra materialmente presente no espaço acalentado em seus sonhos, do mesmo

modo como não pode crer no mausoléu no qual se tornara aquela casa que, no

passado, pelo manter de portas e janelas escancaradas, permitia a invasão da

alegria do verão. Como em uma continuidade do devaneio, prostrada na cama e

visualizando o empoeirado retrato de seus avós recém-casados na parede do

quarto, Andrea simula mentalmente a emoção de sua avó ao entrar pela primeira

vez na casa que seria a guardiã dos segredos de sua futura família: “Me gustaría

vivir aquí – pensaría al ver a través de los cristales el descampado -, es casi en las

afueras, !tan tranqüilo!, y esta casa es tan limpia, tan nueva...” (p. 22). Na visão

presente da protagonista, em contraste com a imagem advinda do passado por meio

das hipotéticas lembranças de sua avó, não há nada de limpo ou de novo no

semblante da casa. Se para a matriarca da família, no passado, a cidade de

Barcelona e a Rua Aribau revelavam promessas de serenidade, para a neta, no

presente, ambos os espaços evocam idéias exatamente contrárias: “Fue su puerto

de refugio la ciudad que a mí se me antojaba como palanca de mi vida.” (p. 23).

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Na continuidade, a personagem retoma aspectos cada vez mais detalhados

do passado da casa e da família, materializando na linguagem literária o que teoriza

Bachelard sobre a íntima relação entre o devaneio e o passado:

E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um ânimo imemorial se abre para além da mais antiga memória. (...) É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós. (Bachelard, 2005, p. 25-6)

O elo que a protagonista mantém com a casa da Rua Aribau por meio de

suas recordações é indissolúvel em sua memória, e marca um dos principais eixos

de contraste ao redor do qual a narrativa é organizada: a oposição entre o passado

e o presente. O paradoxo que contrapõe a imagem da casa nas duas etapas de sua

história é evidenciado em trechos como o que expõe a maneira como o edifício foi

transformado no lar da família de Andrea:

Aquel piso de ocho balcones se llenó de cortinas- encajes, terciopelos, lazos -; los baúles volcaron su contenido de fruslerías, algunas valiosas. Relojes historiados dieron a la casa su latido vital. Un piano - ¿cómo podía faltar? -, sus lánguidos aires cubanos en el atardecer. (p. 23)

A cena da ocupação inicial da casa pode ser dividida em imagens visuais e

sonoras. Os substantivos cortinas, encajes, terciopelos e lazos e a personificação do

baú que despeja objetos decorativos, alguns inclusive de grande valor, demonstram

o cuidado visual com que a casa foi adornada à princípio, e o poder aquisitivo da

família à época. Os adereços personificam a casa como se ela estivesse adornando-

se para receber uma nova família que iria traçar, naquele espaço, uma nova e

promissora história de vida. A primeira imagem sonora traz o som compassado dos

relógios que deram ao lar o pulsar de uma vida, metaforizado na expressão latido

vital. O piano, a segunda imagem sonora, compõe a melodia particular da casa que

soa suavemente na última oração do trecho.

As mudanças sofridas pela casa vieram, em primeira instância do exterior, ou

seja, da Rua Aribau, seu apêndice natural:

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Mientras tanto, la calle de Aribau crecía. Casas tan altas como aquélla y más altas aún formaron las espesas y anchas manzanas. Los árboles estiraron sus ramas y vino el primer tranvía eléctrico para darle su peculiaridad. La casa fue envejeciendo, se le hicieron reformas, cambió de dueños y de porteros varias veces, y ellos siguieron como una institución inmutable en aquel primer piso. (p. 23)

A cidade de Barcelona, assim como muitas outras importantes cidades

européias, experimentou uma explosão demográfica e arquitetônica nas duas

primeiras décadas do século XX. A Rua Aribau, uma das mais antigas e principais

vias do centro da capital catalã também cresceu, nessa passagem do texto,

personificada, a cidade se desenvolve como um ser humano, as árvores crescem

esticando seus galhos como membros. A circulação do bonde elétrico simboliza a

chegada da modernidade tecnológica, que incomoda a tranqüilidade dos primeiros

habitantes que para ali haviam se mudado em busca de calmaria. A casa segue o

curso natural da vida humana, deixa se abater pelo desgaste do tempo e envelhece

sufocada pelos edifícios posteriormente construídos, apesar do esforço de seus

moradores para mantê-la jovem. A transitoriedade de alguns não abala a

permanência da família de Andrea naquele mesmo endereço. Entretanto, não é

apenas a imagem material que a casa possuía no passado que tem uma conotação

mais amena. Conforme recorda a protagonista, as relações de convivência entre os

seres que ocupam o lugar são também mais agradáveis:

Cuando yo era la única nieta pasé allí las temporadas más

excitantes de mi vida infantil. La casa ya no era tranquila. Se había quedado encerrada en el corazón de la ciudad. Luces, ruidos, el oleaje entero de la vida rompía contra aquellos balcones con cortinas de terciopelo. Dentro también desbordaba; había demasiada gente. Para mí aquel bullicio era encantador. Todos los tíos me compraban golosinas y me premiaban las picardías que hacía a los otros. Los abuelos tenían ya el pelo blanco, pero eran aún fuertes y reían todas mis gracias. ¿Todo esto podía estar tan lejano?... (p. 23)

A casa que já não é mais a mesma quando da chegada dos avós de Andrea a

Barcelona, está ainda distante da obscura estagnação constatada pela jovem em

seu retorno à capital catalã. Em um estágio intermediário de degeneração, parece

haver semelhanças entre a cidade em pleno desenvolvimento e o interior do edifício,

sacudido em movimentos de felicidade evidente. Nesse trecho, o substantivo

corazón aparece novamente como metáfora, para simbolizar o centro da cidade de

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Barcelona. A cena é descrita com o auxílio de figuras visuais (luz), auditivas (ruídos)

e táteis (oleaje). A evolução urbana invade a casa representada na sinédoque dos

balcones que tentam proteger-se do avanço da cidade, usando como escudo as

pesadas cortinas de terciopelo. Não somente a casa envelhece como também seus

habitantes: é o que sinaliza a metonímia pelo blanco para a velhice dos avós de

Andrea. No espaço querido do passado, a protagonista é sempre bem recebida, com

uma amabilidade descontraída que de certo modo a ampara, embora a indagação

final (¿Todo esto podía estar tan lejano?...), deixe claro que todo o passado de bem-

querer não voltará mais. Sobre esse sentimento de aconchego transmitido pela casa

por meio das lembranças antigas, explica Bachelard:

Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel. Imóvel como Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. (...) Quando se sonha com a casa natal, na extrema profundeza do devaneio, participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem temperada do paraíso material. É nesse ambiente que vivem os seres protetores.” (Bachelard, 2005, p. 25-7)

Diante do valor de segurança que a casa tem nas recordações passadas de

Andrea, perguntamo-nos: o que teria transformado seres protetores e um ambiente

aprazível, em seres repudiados e num espaço asfixiante, respectivamente? Parece-

nos um tanto quanto ínfimo afirmar apenas que a casa da Rua Aribau e o

comportamento de seus habitantes se modificaram, exclusivamente, por causa do

crescimento e da modernização da cidade de Barcelona. No entanto, alguns

parágrafos mais adiante, encontramos a informação que nos possibilita elucidar

essa questão. A narradora relata em uma breve passagem que, há exatamente três

anos, com a morte de seu avô e o empobrecimento da família, foi tomada a decisão

de permanecer apenas com uma das metades da extensão que a casa ocupava no

andar do edifício. Essa alteração no modo de organizar o espaço, pode explicar as

modificações na vida daquelas pessoas:

Las viejas chucherías y los muebles sobrantes fueron una verdadera avalancha, que los trabajadores encargados de tapiar la

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puerta de comunicación amontonaron sin método unos sobre otros. Y ya se quedó la casa en el desorden provisional que ellos dejaron. (p. 24)

Os adjetivos qualificativos que os objetos receberam no momento da

decoração inicial da casa, nessa passagem, transformam-se em adjetivos

depreciativos como viejas e sobrantes. Os artefatos decorativos agora sem nenhum

valor, foram acomodados de qualquer maneira (avalancha), obstruindo a principal

via de comunicação das pessoas com seus vizinhos, o que representa a

incomunicabilidade das pessoas durante o silêncio imposto pela violência da guerra

e pela repressão do pós-guerra. A desordem dos objetos sobrantes é explicada

então por uma mudança de ordem econômica. Entretanto, é preciso que nos

aprofundemos na significação dessas modificações e suas implicações no cotidiano

da família da casa da Rua Aribau.

Parece-nos interessante para tanto, observar a correlação entre os fatos da

ficção e seu encadeamento com a realidade dos fatos históricos. Andrea

desembarca na Estação Ferroviária de Barcelona, logo após o fim da Guerra Civil

Espanhola, no segundo semestre de 1939. Por conseguinte, podemos inferir que a

morte de seu avô ocorreu exatamente no ano em que o conflito havia começado,

1936. O falecimento do patriarca da família aconteceu em um momento em que

milhares de espanhóis perderam suas vidas, sucumbindo diante da incapacidade de

líderes republicanos e nacionalistas, que não tiveram habilidade para levar o país à

liberdade democrática por meio de vias pacíficas. Na mesma época da morte do avô

de Andrea, começara a derrocada do sonho republicano e ascendera o triunfo do

autoritarismo.

A deterioração material da casa da Rua Aribau é algo semelhante ao que se

podia constatar em tantos outros edifícios da cidade de Barcelona, uma das

principais sedes dos aliados republicanos e palco de algumas das mais violentas

batalhas travadas durante a guerra. A falta de recursos essenciais à vida humana

como, luz, higiene e alimento, era uma privação que afetava a grande maioria da

população espanhola e não apenas aos familiares de Andrea.

Perante essa conjuntura social totalmente desequilibrada, a família da

protagonista de Nada parece ser apenas um dos muitos exemplares das

conseqüências desastrosas que a Guerra Civil Espanhola trouxera para a população

daquele país. Com a morte do patriarca e a ausência temporária de seus filhos

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Román e Juan, tios de Andrea que combateram na Guerra a favor da causa

republicana, a única fonte de renda da família era o salário de Angustias. Esta,

empregara-se como secretária de um homem que também tinha problemas com o

governo pelo caráter irregular de suas atividades comerciais e políticas. Após o fim

da guerra, Juan retorna à casa casado com Gloria e sem condições de sustentar à

própria família, devido ao fracasso de seu trabalho como artista plástico e ao natural

desprestígio das artes naquela época. Em tempos em que o dinheiro estava escasso

para a compra de alimentos, consumir cultura parecia, no mínimo, algo incoerente.

Sem alternativa, Gloria aposta no jogo de cartas os quadros pintados pelo marido, a

fim de impedir que seu filho morra de fome. Román, em situação oposta à do irmão,

utiliza a atividade de músico profissional para encobrir sua relação com os negócios

indevidos. Entretanto, o dinheiro ganho com a ocupação ilegal é egoisticamente

empregado em seu exclusivo benefício.

Ao analisar detidamente a ambientação ficcional criada por Laforet para o

romance Nada, levantamos, até o momento, alguns aspectos relevantes. Em

primeiro lugar, interpretamos a simbologia da cidade de Barcelona como um lugar

idealizado positivamente no imaginário de Andrea porque, numa instância passada,

era aquele o espaço que preservava as melhores lembranças que a protagonista

guardava em sua memória. O aconchego da casa dos avós e o modo afável como a

personagem era tratada por seus parentes durante suas viagens de férias,

possibilitaram-lhe sonhar com esse espaço como o único detentor de seu brilhante

futuro. Em segundo lugar, ao retornar à cidade, as expectativas da protagonista em

relação à Barcelona parecem se cumprir até o momento em que ela adentra a Rua

Aribau e a casa de seus parentes. Em meio à sujeira, à escuridão, ao ar asfixiante e

à desorganização dos objetos e móveis, Andrea assimila, aos poucos, a degradação

que, no transcorrer do tempo, havia tomado conta de toda a residência. Nessa

narrativa, a decadência material do edifício atua como reflexo de toda a calamitosa

penúria econômica pela qual passava a Espanha naqueles anos de imediato pós-

guerra. E, para particularizar a realidade social espanhola no microcosmo

representado pela casa da Rua Aribau, fazendo das coordenadas sociais da época

um elemento estilístico interno ao foco narrativo, a escritora escolhe o espaço

romanesco como um signo representativo da miséria coletiva.

Toda a realidade negativa apreendida por meio da descrição dos ambientes

internos da casa da Rua Aribau, contrapõe-se às memórias infantis da protagonista.

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As mudanças sofridas pela casa e pela família por ela abrigada, têm estreita relação

com o processo de desenvolvimento da própria cidade de Barcelona. No entanto,

como marco dessa transformação, citamos a morte do avô de Andrea e sua

referência temporal direta com o início da Guerra Civil Espanhola. O devaneio a

partir do qual a protagonista contrasta o passado e o presente, permite-nos

estabelecer as devidas distinções entre as diferentes épocas históricas da existência

da família e de sua residência. Sendo assim, a Guerra Civil Espanhola e o valor

negativo que ela agregou à sociedade, nos anos 1940, constitui um importante

marco na história daquelas pessoas e de seu espaço doméstico.

Não obstante, o descuido com que a casa é preservada, possibilita-nos

constatar não apenas a materialização da pobreza, como também nos permite

entender as motivações que levam os personagens a estabelecer entre si, relações

de mesquinhez e desumanidade. Entre pessoas privadas do essencial para a

manutenção da existência humana, ou seja, o alimento, torna-se compreensível que

haja desequilíbrio e repulsa no envolvimento entre os seres humanos. Como muitos

dos sentidos do romance Nada podem ser apreendidos por meio de um estudo das

significações do espaço, poderíamos dizer que há, no interior da casa da Rua

Aribau, um ambiente que serve de perfeito cenário para os conflitos vividos por seus

moradores - a sala de jantar. É a esse lugar que dirigimos agora o foco de nossa

análise.

2.2.2) A sala de jantar: palco dos desentendimentos familiares

Ao se despertar do devaneio matinal, a partir do qual rememora a casa e sua

vivacidade pregressa, Andrea retorna à realidade sufocante, obscura e degradada

da casa da Rua Aribau, sobre a qual, a incidência dos raios solares da manhã,

revela novos aspectos de decadência:

La habitación con la luz del día había perdido su horror, pero no su desarreglo espantoso, su absoluto abandono. Los retratos de los abuelos colgaban torcidos y sin marco de una pared empapelada de oscuro con manchas de humedad, y un rayo de sol subía hasta ellos. (p. 24)

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O quarto improvisado para Andrea, sob o efeito visual da luz do sol, não tinha

mais o aspecto amedrontador que a assustara na noite anterior, embora a

desorganização, a sujeira e o abandono permanecessem os mesmos. A figura visual

que ilumina o ambiente estende sua claridade para a parede escura e suja, na qual

a jovem visualiza um antigo retrato de seus avós. A jovialidade retratada no passado

contrasta com o envelhecimento do presente e devolve à personagem o sentido da

realidade perdido durante alguns instantes do seu despertar. Ao sair do aposento

que tanto lhe perturbara durante a noite, Andrea entra em contato com um novo

ambiente, a sala de jantar, onde sugestivamente, conheceria uma outra faceta da

penosa realidade de sua família, a falta de recursos econômicos também para a

alimentação:

Al abrir la puerta de mi cuarto me encontré en el sombrío y cargado recibidor hacia el que convergían casi todas las habitaciones de la casa. Enfrente aparecía el comedor, con un balcón abierto al sol. Tropecé, en mi camino hacia allí, con un hueso, pelado seguramente por el perro. No había nadie en aquella habitación, a excepción de un loro que rumiaba cosas suyas, casi riendo. Yo siempre creí que aquel animal estaba loco. En los momentos menos oportunos chillaba de un modo espeluznante. Había una mesa grande con un azucarero vacío abandonado encima. Sobre una silla, un muñeco de goma desteñido. Yo tenía hambre, pero no había nada comestible que no estuviera pintado en los abundantes bodegones que llenaban las paredes, y los estaba mirando, cuando me llamó tia Angustias. (p. 25)

Adjetivos negativos voltam a ser usados para caracterizar o novo ambiente:

sombrio e cargado. O caráter de desequilíbrio se apresenta na jocosa figura de um

dos animais (o loro), que repete neuroticamente os desagravos que nada mais são

que reproduções automáticas de tudo quanto se presencia naquele palco de

discórdias. O vazio da mesa, do recipiente de açúcar e a irônica imagem do alimento

presente apenas de forma figurativa nos quadros dispostos na parede, indicam que,

naquela casa, também, se passa fome. No cenário da alimentação desprovido de

comida, o animal parece valer mais que o homem, pois o cão é o único ser a ter a

possibilidade de realizar uma refeição matinal.

Depois de uma longa e desagradável conversa com Angustias, Andrea

conhece o tio Román e se sente inundada por um misto de fascínio e pavor. Ao

mesmo tempo em que a seduz, a sobrinha percebe que o tio é quem manipula os

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demais habitantes da casa, provocando, por exemplo, os desentendimentos entre

Juan e sua esposa, Gloria. Ali, naquela imunda e vazia sala de jantar, a jovem

estudante presencia a primeira de muitas outras cenas de violento conflito que seus

parentes lhe proporcionariam:

Guardó el arma en el bolsillo. Yo la miré relucir en sus manos, negra, cuidadosamente engrasada. Román me sonreía y me acarició las mejillas; luego se fue tranquilamente, mientras la discusión entre Gloria y Juan se hacía violentísima. En la puerta tropezó Román con la abuelita, que volvía de su misa diaria, y la acarició al pasar. Ella apareció en el comedor, en el instante en que tía Angustias se asomaba, enfadada también, para pedir silencio.

Juan cogió el plato de papilla del pequeño y se lo tiró a la cabeza. Tuvo mala puntería y el plato se estrelló contra la puerta que tía Angustias había cerrado rápidamente. El niño lloraba, babeando.

Juan entonces empezó a calmarse. La abuelita se quitó el manto negro que cubría su cabeza, suspirando.” (p. 30)

No primeiro encontro entre Andrea e Román, o tio cuida de sua arma, objeto

intrinsecamente relacionado à morte, que atua como um signo que indica a

possibilidade de abater uma daquelas desprezíveis vidas, reduzidas à mediocridade,

por desentendimentos domésticos. Além dos evidentes traços de desequilíbrio que

caracterizam o ser de Román, sua personalidade encerra certa duplicidade. O

mesmo homem capaz de semear a discórdia entre o irmão e a cunhada, levando

Juan ao quase assassinato de Gloria, mostra uma outra face de carinho e atenção

para com a mãe, como quem tenta manter uma imagem positiva.

O desfecho do desentendimento, como todos os que se dão entre os

familiares de Andrea, é agressivo. Nesse trecho, como em todas as cenas que

envolvem a sala de jantar, as informações sobre o ambiente narrativo nos são dadas

por meio de uma ambientação dissimulada ou oblíqua, na qual segundo Lins (apud

Dimas, 1985, p. 26): “os ‘atos’ da personagem (...) vão fazendo surgir o que a cerca,

como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos”. Por isso o predomínio,

nessas passagens, de verbos dentre as demais classes de palavras, devido a uma

preocupação maior da narradora em transmitir dados sobre o ambiente, não por

meio de descrições carregadas de substantivos e adjetivos, mas a partir de verbos

que demonstram a relação entre as ações dos personagens e o espaço que os

circunda.

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Nesse episódio, o que provoca a perplexidade de Andrea não é apenas a

violência explicitada nas relações familiares, como também a naturalidade pacífica e

habitual com que os demais personagens aceitam e assistem à pequena tragédia

íntima. Para a maioria dos familiares, esses acontecimentos se tornaram

espetáculos encarados como normais no cotidiano daquele lar. Parece

surpreendente também, a nulidade da autoridade de Angustias perante os irmãos,

justamente ela que, minutos antes, em uma conversa com a sobrinha, parecia ser a

força controladora de toda a família.

Algum tempo depois, em outra cena demonstrativa da brutalidade e da

irracionalidade das relações entre aqueles seres, Andrea tem a definitiva certeza de

que a dominação de Angustias não passa de invencionices de mulher frustrada e de

que o controle de tudo e de todos passa pela manipulação de Román. Entretanto,

nessa oportunidade, a protagonista se vê envolvida no conflito, como

desencadeadora da discórdia.

Ao revistar a mala da sobrinha, Román sente falta de um lenço que a jovem

ganhara da avó por ocasião de sua primeira comunhão. O músico informa o fato a

sua irmã Angustias, que rapidamente acusa Gloria pelo roubo. Isso desperta a ira de

Juan que, para defender a esposa, expõe o adultério da irmã. O palco para mais

essa cena de violência é novamente a sala de jantar, uma espécie de coração negro

da casa, onde lateja o que há de pior em cada ser humano:

Cuando subíamos las escaleras de la casa oíamos gritos que salían de nuestro piso. La abuela se acogió a mi brazo con más fuerza y suspiró.

Al entrar encontramos que Gloria, Angustias y Juan tenían un altercado de tono fuerte en el comedor. Gloria lloraba histérica.

Juan intentaba golpear con una silla la cabeza de Angustias y ella había cogido otra como escudo y daba saltos para defenderse.

Como el loro chillaba exitado y Antonia cantaba en la cocina, la escena no dejaba de tener su comicidad. (p. 68)

A escada, imbuída de seu sentido de verticalidade e ascensão, aproxima a

entrada da casa à sala de jantar e leva Andrea e sua avó ao encontro do espaço das

desavenças. Ali, os objetos também assumem a função de armas de ataque e

defesa, ao passo que as atitudes debochadas do animal e da empregada, ajudam a

compor o aspecto grotesco e cômico que a cena adquire.

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Ao desmentir o roubo de Gloria e declarar que o lenço fora dado como

presente a sua amiga Ena, Andrea desfaz a convulsiva aglomeração, aliviando o

ambiente da sala de jantar e enviando cada um de seus parentes aos seus lugares

de direito. Angustias se refugia com sua vergonha em seu quarto, lugar que lhe

pertence e lhe protege. Juan e Gloria, em outro espaço, dão prosseguimento, como

era de costume, à discussão iniciada na sala de jantar. Ambos não são capazes de

impedir que qualquer problema os afete, ainda que não diga respeito exatamente a

eles. A sonoridade da discussão do casal alcança os sentidos de Andrea que a

compara ao som de uma tempestade que se afasta. Naquela frustrada manhã de

natal, a fome gera, na personagem, uma alucinação que recria, na Rua Aribau, a

imagem gustativa das guloseimas festivas que se contrapõem ao amargor da

existência da protagonista, aprisionada no interior daquela insana residência: “Aquel

día de Navidad, la calle tenía aspectos de una inmensa pastelería dorada, llena de

cosas apetecibles.” (p. 70-1)

Durante os difíceis anos do princípio da ditadura franquista, a miséria em seus

mais diversos aspectos e a repressão, afetaram negativamente a vida da sociedade

de diferentes formas. Entretanto, a fome, fosse por falta de dinheiro ou pela própria

escassez de alimento, era algo que causava nas pessoas um sofrimento imediato

que provocava reações das mais inesperadas e adversas. A escolha da sala de

jantar, como cenário para a demonstração do desequilíbrio das relações entre os

familiares de Andrea, simboliza de que maneira a privação de uma necessidade

fisiológica vital pode alterar as atitudes do ser humano.

Para além das tragédias desse cotidiano familiar, analisamos os demais

ambientes da residência, a fim de verificar de que modo cada personagem se

relaciona com seu espaço individual, tornando-o extensão de si próprio ou

permitindo-se influenciar por ele.

2.2.3) Os personagens e seus espaços individuais

No romance Nada, Laforet tem, como já observamos, intensa preocupação

com o detalhamento da ambientação romanesca. Entretanto, essa mesma

dedicação estilística não acontece quando se trata de traçar o perfil dos

personagens que compõem a narrativa. Os fragmentos do texto dos quais a

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narradora se ocupa em descrever os seres ficcionais da obra estão claramente

atrelados à caracterização do ambiente, que cada um deles ocupa nos diversos

espaços do interior da casa da Rua Aribau, e os dados sobre esses lugares acabam

por reafirmar ou mesmo complementar elementos sobre o personagem.

Para Bachelard, o espaço ocupado individualmente por um ser humano pode

oferecer informações sobre ele por meio da observação que se faz do modo como o

mesmo ocupa seus ambientes particulares:

Portanto, é preciso dizer como habitamos nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo”.

Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. (Bachelard, 2005, p. 24)

Pensando na correlação entre os personagens e os ambientes a eles

subjacentes, analisamos os trechos de descrição dos componentes da família de

Andrea, no intuito de traçar paralelos entre eles e o espaço que cada um ocupa no

interior da residência. Ao realizar esse estudo, verificamos de que modo, suas

atitudes e sua visão de mundo estão representadas na organização espacial que os

circunda, e em que medida seus comportamentos estão condicionados por

influência da ambiência ficcional.

Ao ser recebida pela avó, após sua chegada à casa da família materna,

Andrea conhece os parentes com os quais deveria conviver a partir de então. A

primeira descrição da narradora ao leitor é sobre seu tio Juan:

La anciana seguía sin comprender gran cosa, cuando de una de las puertas del recibidor salió en pijama un tipo descarnado y alto que se hizo cargo de la situación. Era uno de mis tíos, Juan. Tenía la cara llena de concavidades, como una calavera a la luz de la única bombilla de la lámpara. (p. 16)

A magreza extraordinária de Juan, agravada por sua alta estatura, é o único

dado físico que temos sobre o personagem e esse aspecto é descrito pela narradora

por meio do emprego do adjetivo descarnado, uma palavra introduzida pelo prefixo

de negação des, que sugere ênfase não à característica de ser magro apenas, mas

evidencia a falta, a necessidade de algo. Sua face é metaforicamente comparada a

uma caveira, com suas cavidades ressaltadas pelo sentido visual da má iluminação.

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A magreza de Juan simboliza não somente a falta de alimentação adequada,

fato comum na maior parte das residências espanholas à época, como também

indica a estreiteza da vida de um homem que viu seus ideais ruírem com a derrota

na guerra. Essa decepção ideológica afeta sua relação conjugal com a esposa

Gloria, em quem o personagem descarrega violentamente sua frustração. Ressoa

também em sua postura de pai relapso e na sua incompetência profissional como

artista plástico decadente.

Essas primeiras impressões sobre o personagem se estendem na ambiência

do seu estúdio de arte:

El aspecto de aquel gran estúdio era muy curioso. Lo habían instalado en el antiguo despacho de mi abuelo. Siguiendo la tradición de las demás habitaciones de la casa, se acumulaban allí, sin orden ni concierto, libros, papeles y las figuras de yeso que servían de modelo a los discípulos de Juan. Las paredes estaban cubiertas de duros bodegones pintados por mi tío en tonos estridentes. En un rincón aparecía, inexplicable, un esqueleto de estudiante de Anatomía sobre un armazón de alambre (…) (p. 35)

O espaço por hora destinado ao exercício artístico de Juan, como outros

lugares da residência, é um ambiente reaproveitado pela falta de uso. O ateliê segue

os mesmos padrões de sujeira, desorganização e inutilidade dos demais lugares da

casa. Embora não possamos afirmar que esta configuração espacial determina

ações próprias do personagem, podemos notar, de acordo com o que salienta

Bachelard, que alguns elementos da organização do ambiente simbolizam

características do ser que o ocupa. Para se manter economicamente, Juan dá aulas

de artes plásticas e pinta quadros que dificilmente vende, pois sua estética traz

imagens duras e estridentes, figuras que refletem seu estado de espírito perturbado

pela violência presenciada e sofrida durante a guerra. Entretanto, o mais

interessante aspecto daquele ambiente é a presença do esqueleto, referência direta

à metáfora da narradora que compara o tio a uma caveira, como se aquela estrutura

de ossos fosse a personificação do próprio Juan, miserável em sua constituição

física, medíocre em sua manifestação artística e humilhado em sua condição

humana.

A segunda personagem retratada na descrição da narradora é a figura de

Gloria, esposa de Juan:

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Detrás de tío Juan había aparecido otra mujer flaca y joven con los cabellos revueltos, rojizos, sobre la aguda cara blanca y una languidez de sábanas colgadas, que aumentaba la penosa sensación del conjunto. (p. 17)

Gloria, assim como o esposo, exibe uma magreza agravada por uma palidez

enferma que permite a Andrea imaginá-la por meio da imagem de um fantasma

coberto por lençóis brancos. Entretanto, seus cabelos de aspecto e cor

escandalosos contrastam com a alvura de sua pele. Neles, a protagonista enxerga

certa rebeldia, como indícios de que algo naquele ser poderia gerar interesse aos

olhos da narradora, como veremos nas descrições que seguem:

En la atmósfera pesada de su cuarto ella estaba tendida sobre la cama igual que un muñeco de trapo a quien pesara demasiado la cabellera roja. Y por lo general me contaba graciosas mentiras intercaladas a sucesos reales. No me parecía inteligente, ni su encanto personal provenía de su espíritu. Creo que mi simpatía por ella tuvo origen el día en que la vi desnuda sirviendo de modelo a Juan. (p. 35)

Nesse trecho, a languidez flácida do corpo de Gloria é comparada a uma

boneca de pano desarticulada e essa redução da mulher, por meio de uma

comparação a um objeto inanimado, indica sua irrelevância como ser humano

perante os demais personagens. De fato, ninguém é mais humilhado e ignorado na

residência da Rua Aribau que Gloria, uma espécie de ser expiatório de todas as

culpas, relegada a essa situação por sua origem humilde e pelo caráter duvidoso e

obscuro de suas atividades que nunca se definem claramente: ora prostituta, ora

viciada no jogo de cartas e ocasionalmente ladra de objetos sem valor. À princípio,

Andrea não vê na personagem inteligência nem outra característica que a torne uma

pessoa especial, entretanto, sua opinião sobre a esposa do tio começa a mudar ao

vê-la contribuindo com a rudimentar arte produzida pelo marido:

Gloria, enfrente de nosotros, sin su desastrado vestido, aparecía increíblemente bella y blanca entre la fealdad de todas las cosas, como un milagro del Señor. Un espíritu dulce y maligno a la vez palpitaba en la grácil forma de sus piernas, de sus brazos, de sus finos pechos. Una inteligencia sutil y diluida en la cálida superficie de la piel perfecta. Algo que en sus ojos no lucía nunca. (p. 36)

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A nudez de Gloria é destacada pela alvura de sua pele que, nesse momento,

deixa de ser fantasmagórica e pálida, para transformar-se em um fino tecido

uniforme, de uma beleza esplêndida, sobrenatural e contrária a tudo o que se vira

até então no interior daquela casa. A partir disso, a narradora passa a encontrar na

personagem uma inteligência discreta e o paradoxo entre as figuras cromáticas

branca e vermelha de sua pele e de seus cabelos respectivamente, refletem-se em

seu espírito contraditoriamente dulce y maligno a la vez.

Na descrição do quarto de Glória, encontramos elementos que sugerem a

alternância de sua personalidade dividida entre a placidez de sua alva pele e a

urgência de seus rebeldes cabelos vermelhos:

El cuarto de gloria se parecía algo al cubil de una fiera. Era un cuarto interior ocupado casi todo él por la cama de matrimonio y la cuna del niño. Había un tufo especial, mezcla de olor a criatura pequeña, a polvos para la cara y a ropa mal cuidada. Las paredes estaban llenas de fotografías, y entre ellas, en un lugar preferente, aparecía una postal vivamente iluminada representando los gatitos. (p. 34)

Por um lado, sob a metáfora da fera, podemos explicar o misto de beleza e

rebeldia que Gloria encerra dentro de si. Por outro lado, a mesma expressão a

desumaniza e a reduz a uma animalização. A estreiteza de seu quarto indica a

insignificância com a qual a personagem é tratada pela família e a sua condição

aviltante. Gloria é espancada pelo marido como um animal indefeso: às vezes,

quase até a morte, além de ser manipulada pela insanidade de Román e de ser alvo

constante das críticas moralistas da cunhada Angustias. Seguindo um padrão

comportamental vigente à época, Gloria se subjuga a todo tipo de afronta,

sucumbindo aos poderes de Juan e Román, figuras representativas de uma

sociedade machista. Deste mesmo modo, aceita a repressão do julgamento

preconceituoso de Angustias, que se auto-considera um modelo de virtude feminina

e condena a esposa do irmão por sua procedência social inferior e por suas atitudes

anti-convencionais.

No entanto, como uma fera imbuída de um forte instinto materno, Gloria se

veste todas as noites e sai para buscar o sustento de sua cria apostando no jogo de

cartas, os decadentes quadros pintados pelo marido, em um cassino improvisado e

ilegal, montado na casa de sua irmã. As figuras olfativas do quarto de Gloria

representam uma antítese ao misturar o mau cheiro de seu descuido com as roupas,

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com sua vaidade de mulher que se reconhece bela. Os gatos retratados e expostos

na parede de seu quarto são uma metáfora para a beleza e a agressividade felina de

Gloria, ao mesmo tempo em que não deixam de marcar o menosprezo com o qual é

tratada pela família.

A terceira pessoa a se apresentar, ante os olhos da narradora na noite de

sua chegada a Barcelona, é sua tia Angustias:

Entonces supe que aún había otra mujer a mi espalda. Sentí una mano sobre mi hombro y otra en mi barbilla. Yo soy alta, pero mi tía Angustias lo era más y me obligó a mirarla así. Ella manifestó cierto desprecio en su gesto. Tenía los cabellos entrecanos que le bajaban a los hombros y cierta belleza en su cara oscura y estrecha. (p. 17)

Na descrição física da personagem, podemos apontar alguns elementos que

nos apoiarão na análise de suas ações. Sua alta estatura, por exemplo, remete-nos

à idéia de uma relação de assimetria que se estabeleceria logo de início entre a tia e

a sobrinha. O gesto depreciativo de Angustias, ao chamar a atenção de Andrea para

si, tomando-lhe o queixo e voltando-o para ela, indica a autoridade que aquela

mulher pretende exercer sobre a jovem. Angustias é uma mulher frustrada pela

solidão de sua condição de solteira e se auto-vitima pelo fato de, com seu miserável

salário de secretária, ter de sustentar toda a família. Ideologicamente dominada pelo

discurso oficial que exigia das mulheres espanholas ser exemplo de conduta moral

para as gerações mais jovens, a tia persegue a sobrinha desde sua chegada a

Barcelona, condenando sua postura e tentando enquadrá-la no padrão feminino

comum à época.

A discreta beleza que a narradora observa em Angustias, faz com que a

personagem se distancie dos demais moradores da casa, expostos geralmente de

forma bizarra e medonha.

Ao descrever o quarto de Angustias, notemos como a autora constrói esse

espaço em consonância com o perfil traçado anteriormente para a personagem:

El cuarto de mi tía comunicaba con el comedor y tenía un balcón a la calle. Ella estaba de espaldas, sentada frente al pequeño escritorio. Me paré, asombrada, a mirar la habitación porque aparecía limpia y en orden como si fuera un mundo aparte en aquella casa. Había un armario de luna y un gran crucifijo tapiando otra

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puerta que comunicaba con el recibidor; al lado de la cabecera de la cama, un teléfono. (p. 25)

A preocupação com a higiene, a organização, a boa mobília e a presença dos

símbolos da religiosidade, reforçam a distinção entre Angustias e os outros

moradores da casa, além de indicar certa superioridade e autonomia financeira,

como se a miséria que assolava toda a casa não alcançasse aquele dormitório.

Outro detalhe que diz muito da personalidade de Angustias, é a posição de seu

quarto, em relação aos outros cômodos. Em seu dormitório, há duas portas, ligadas

a pontos chaves da casa: uma, voltada para a sala de jantar, lugar onde a família se

reúne normalmente e onde se travam as violentas discussões: a outra, voltada para

o hall de entrada, elo principal entre a casa e o ambiente exterior, a Rua Aribau.

Além disso, ali se encontra um outro importante meio de comunicação, o único

telefone da família. As portas e o telefone são signos de interação com o mundo

exterior e símbolos do controle autoritário que a personagem pensa manter sobre os

outros parentes. A necessidade de dominação, a preocupação com o asseio e a

aparência são características que determinam o ser de Angustias. Uma personagem

que representa o coletivo de mulheres da classe média espanhola decadente que se

esforçava para cumprir, no microcosmo familiar, o papel de alavancas da redenção

da Espanha de pós-guerra, por meio da preservação da moral, dos bons costumes

cristãos, do trabalho incansável e da economia extremada.

Assim como Angustias, o personagem Román, é descrito a partir de

características que o distinguem dos demais habitantes da casa da Rua Aribau,

embora também seja afetado pelo mesmo tom de amargura e violência que permeia

a atmosfera da residência da Rua Aribau: “Un hombre con pelo rizado y la cara

agradable e inteligente se ocupaba de engrasar una pistola al otro lado de la mesa.

Yo sabía que era otro de mis tíos: Román.” (p. 28)

Pelo aspecto físico atraente, a sensibilidade artística da música e a

inteligência, Román, à princípio, fascina a sobrinha mais do que qualquer outro

familiar. Seu quarto, assim como o de Angustias, apresenta elementos que o

distinguem em relação aos outros ambientes narrativos:

Román no dormía en el mismo piso que nosotros: se había hecho arreglar un cuarto en las buhardillas de la casa, que resultó un refugio confortable. Se hizo construir una chimenea con ladrillos

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antiguos y unas librerías bajas pintadas de negro. Tenía una cama turca y, bajo la pequeña ventana enrejada, una mesa muy bonita llena de papeles, de tinteros de todas épocas y formas con plumas de ave dentro. Un rudimentario teléfono servía, según me explicó, para comunicar con el cuarto de la criada. También había un pequeño reloj, recargado, que daba la hora con un tintineo gracioso, especial. Había tres relojes en la habitación, todos antiguos, adornando acompasadamente el tiempo. Sobre las librerías, monedas, algunas muy curiosas; lamparitas romanas de la última época y una antigua pistola con puño de nácar.

Aquel cuarto tenía insospechados cajones en cualquier rincón de la librería, y todos encerraban pequeñas curiosidades que Román me iba enseñando poco a poco. A pesar de la cantidad de cosas menudas, todo estaba limpio y en un relativo orden. (p. 37)

Román ocupa, na verticalidade do edifício da Rua Aribau, uma posição de

superioridade, de onde manipula os demais personagens que habitam o andar de

abajo, de acordo com o que afirma o próprio personagem: “¿Tú no te has dado

cuenta de que yo los manejo a todos, de que dispongo de sus vidas, de que

dispongo de sus nervios, de sus pensamientos...?” (p.85).

Embora este espaço seja um antigo sótão improvisado, com o rendimento de

seus negócios ilícitos, Román conseguiu transformá-lo em um espaço confortável,

limpo, organizado, aquecido pelo calor da lareira e adornado por uma grande

estante que guarda todo tipo de objetos antigos. A presença desses objetos inúteis e

o excesso de relógios, revelam certo saudosismo do personagem em relação ao

passado e uma preocupação com o tempo atual, que transcorre de forma letárgica,

como que prolongando sua infelicidade de homem atormentado pelos horrores

vistos e vividos durante a guerra.

Torturado por seus demônios internos, ao final da narrativa, Román põe fim à

sua existência de forma trágica. Andrea, chocada com a morte do tio, tem

dificuldades para aceitar o fato. Esse processo de aceitação acontece apenas

quando a sobrinha re-visita o ambiente anteriormente ocupado pelo personagem:

Un día subí arriba, al cuartito de la buhardilla. Un día en que no pude aguantar el peso de este sentimiento, vi que lo habían despojado todo miserablemente. Habían desaparecido los libros y las bibliotecas. La cama turca, sin colchón, estaba apoyada de pie contra la pared, con las patas al aire. Ni una graciosa chuchería, de aquellas que Román tenía allí, le había sobrevivido. El armario del violín aparecía abierto y vacío. Hacía un calor insufrible allí. La ventanita que daba a la azotea dejaba pasar un chorro de sol de fuego. Se me

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hizo demasiado extraño no poder escuchar los cristalinos tictac tictac de los relojes…(p. 267)

Como era habitual entre os familiares de Andrea, rapidamente, os objetos

pertencentes a Román foram retirados do antigo sótão. As ausências do instrumento

musical e da sonoridade dos vários relógios simbolizam a partida do obscuro tio de

Andrea. Quando Román morre é verão e a estação invade o antigo quarto com um

calor e uma luminosidade demasiados sufocantes para a jovem. É por meio da

visualização do espaço da individualidade de Román, devidamente modificado e

esvaziado por sua morte, que sua ausência torna-se real para a protagonista.

Quanto ao espaço ocupado pela narradora e apresentado nas páginas

anteriores de nossa análise, sabemos que se trata de um ambiente de horror e

rejeição. A condição de Andrea como ser indesejável naquela residência é

reafirmado quando da partida de Angustias, momento no qual a sobrinha ocupa o

espaço da tia, a fim de habitar um lugar mais confortável e menos ultrajante:

Entré en el cuarto de Angustias y el blando colchón desguarnecido me dio la idea de dormir allí mientras ella estuviera fuera. Sin consultarlo a nadie trasladé mis ropas a aquella cama, no sin cierta inquietud, pues todo el cuarto estaba impregnado del olor a naftalina e incienso que su dueña despedía, y el orden de las tímidas sillas parecía obedecer aún a su voz. Aquel cuarto era duro como el cuerpo de Angustias, pero más limpio y más independiente que ninguno en la casa. Me repelía instintivamente y a la vez atraía a mi deseo de comodidad. (p. 78)

Andrea é atraída até o quarto da tia pelo irresistível desejo pelo conforto.

Entretanto, a comodidade da alcova gera certa hesitação na protagonista, pois, por

meio do sentido olfativo e da personificação das cadeiras que ainda parecem

obedecer ao apelo sonoro da voz de Angustias, a narradora sente a presença

autoritária da tia. Ao comparar a rigidez do ambiente à inflexibilidade do corpo e do

próprio ser de Angustias, a sobrinha se sente rejeitada por aquele espaço, ao

mesmo tempo em que paradoxalmente, se deixa seduzir pela comodidade que

nenhum outro lugar da casa poderia lhe proporcionar.

No entanto, o aconchego de Andrea se desfaz em pouco tempo, porque a

sobrinha é surpreendida com o retorno inesperado e desagradável da tia:

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Angustias volvió en un tren de medianoche y se encontró a Gloria en la escalera de la casa. A mí me despertó el ruido de las voces. Rápidamente me di cuenta de que estaba durmiendo en un cuarto que no era el mío y de que su dueña me lo reclamaría.

Salté de la cama traspasada de frío y de sueño. Tan asustada, que tenía la sensación de no poder moverme aunque, en realidad, no hice otra cosa: en pocos segundos arranqué las ropas de la cama y me envolví con ellas. Tiré la almohada, al pasar, en una silla del comedor y llegué hasta el recibidor envuelta en una manta, descalza sobre las baldosas heladas, en el momento en que Angustias entraba de la calle seguida del chófer con sus maletas y conduciendo a Gloria por un brazo. (p. 88)

Angustias retorna na sugestiva hora das bruxas e, como um algoz, apanha

Andrea em um ato ilícito. Despertada pela sonoridade das vozes em possível

discussão que sobem pelas escadas, entorpecida pelo sono e imobilizada pelo frio,

a jovem instintivamente volta para seu quarto, numa tentativa desesperada e inútil

de não ser descoberta. Se quando da sua chegada, a protagonista é obrigada a

ocupar uma antiga e inutilizada sala de estar, também não é no quarto da tia que

Andrea encontra um lugar com o qual possa se identificar. Nem sequer com a

partida definitiva de Angustias a personagem obtém a privacidade desejada:

Entré en el cuarto de Angustias, que desde unos días atrás había heredado yo, y al encender la luz encontré que habían colocado sobre el armario una pila de sillas de las que sobraban en todas partes de la casa y que allí amenazaban caerse, sombrías. También habían instalado en el cuarto el mueble que servía para guardar la ropa del niño y un gran costurero con patas que antes estaba arrinconado en la alcoba de la abuela. La cama, deshecha, conservaba las huellas de una siesta de Gloria. Comprendí en seguida que mis sueños de independencia, aislada de la casa en aquel refugio heredado, se venían al suelo. Suspiré y empecé a desnudarme. Sobre la mesilla de noche había un papel con una nota de Juan: “Sobrina, haz el favor de no encerrarte con llave. En todo momento debe estar libre tu habitación para acudir al teléfono”. (…) El día me había traído el comienzo de una vida nueva; comprendía que Juan había querido estropeármela en lo posible al darme a entender que, si bien se me cedía una cama en la casa, era sólo lo que se me daba. (p. 111-2)

Andrea volta à sua difícil realidade de rejeição, ao perceber que o lugar

habitado por ela se tornara uma espécie de depósito de objetos velhos e incômodos.

A má acomodação dos móveis confere ao ambiente a característica da

desorganização, comum a toda a casa e expressa pelo adjetivo sombrias. Com a

ausência de Angustias, toda a degradação que domina a casa da Rua Aribau parece

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invadir o quarto outrora preservado da decadência. A intimidade de Andrea é

invadida de todas as formas e o autoritarismo de Juan enfatiza o aspecto

comunitário que aquele espaço representa para a família.

Conforme afirma Bachelard, espaço e ser humano estão correlacionados.

Verificamos isto na análise das analogias entre personagens e espaços ficcionais

por eles ocupados individualmente no todo da ambiência narrativa. A decadência do

estúdio de artes de Juan representa seu próprio declínio como homem, assim como

o quarto de Gloria sintetiza a ambigüidade de seu caráter de subserviência e

rebeldia. Angustias reproduz em seu espaço o mesmo perfil austero, higiênico,

organizado e sacralizado que tenta manter sobre sua própria identidade de mulher

exemplar. Os múltiplos objetos inutilmente acumulados no sótão ocupado por

Román, em meio a tantos outros objetos de arte, revelam o desequilíbrio de sua

alma, o que culmina no extermínio de sua própria vida, cujo ato apenas seu

ambiente individual pôde testemunhar. A protagonista, quer seja em seu primeiro

dormitório improvisado, quer seja na ocupação indevida do quarto da tia, tem sua

condição de ser indesejável evidenciada pela falta de respeito dos demais

personagens em relação à sua privacidade espacial.

Não podemos afirmar, entretanto, que as atitudes dos seres ficcionais desse

romance estão condicionadas ou determinadas pela caracterização de seus

ambientes particulares. No entanto, observamos que a autora propõe para as

descrições espaciais desses lugares, uma correspondência de sentidos e valores

específicos de cada personagem que se refletem, propositadamente, na maneira

como seus espaços são organizados. Isso explicita o que Bachelard expõe sobre a

vinculação dialética do ser humano em relação aos ambientes que o pertencem,

como uma autêntica mostra de sua identidade.

2.3) A casa da Rua Aribau: Imagens representativas do mundo

demoníaco

Nortrhop Frye em Anatomia da crítica (1991, p. 53), diferentemente da maioria

dos historiadores da literatura, organiza a produção literária por meio de uma

periodização seqüencial estabelecida temporalmente numa leitura transversal, na

qual o estudioso encontra relação de similaridade entre textos literários produzidos

em diferentes épocas, sob a ótica de diferentes estéticas artísticas.

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Desse modo alternativo, de pensar a literatura no tempo histórico,

desvencilhando-se da tradicional distribuição em escolas de pensamento estético, o

autor cria uma teoria dos modos ficcionais, elaborada a partir dos distintos níveis

que os personagens podem assumir em cada tipo de obra.

Ao aproximarmos o romance Nada de Laforet a uma leitura, sob a luz da

teoria dos mythos de Frye, concluímos que a personagem Andrea, pode ser

entendida como uma personagem representante do quarto nível, no qual o

protagonista é, por suas qualidades inerentes, equiparado ao ser humano da

realidade sócio-histórica: alguém sujeito às inevitáveis leis da natureza e do mundo.

Esse romance é, portanto, no dizer de Frye, um Vanity Fair, uma narrativa na qual a

heroína está desprovida de predicados que a tornam especial ou sobre-humana,

suas possibilidades atitudinais estão circunscritas aos mesmos atributos de qualquer

outro ser humano que pertença ao plano do real.

Na análise que realizamos anteriormente sobre os demais personagens,

relacionando-os aos espaços ficcionais da narrativa e dando ênfase aos seres que

compõem a bizarra família que habita a casa da Rua Aribau, verificamos que os

mesmos se enquadram no quinto nível da categorização de Frye. Por se tratar de

pessoas inferiorizadas pela condição humana de servidão e de humilhação, na qual

suas ações adquirem a conotação do ridículo, do absurdo e do grotesco, estes

personagens caracterizam o que o teórico (1991, p. 54-5) denomina pharmacos:

seres que surgem no mundo ficcional apenas para representar o sofrimento do

homem e salientar sua posição medíocre diante da vida, sem possibilidades de

encontrar na própria existência algum meio de redenção.

Essas características apontadas, tanto em relação à protagonista quanto em

relação aos demais personagens do romance Nada, constituem o modo narrativo

irônico, descrito por Frye e exemplificado pelo mesmo por meio de ficções nas quais

as pessoas estão sempre sujeitas às limitações corriqueiras da humanidade, o que

possibilita que haja identificação entre a ficcionalidade e a realidade vivida pelo

leitor.

O modo de ficção irônico, por sua vez, está compreendido em uma das quatro

grandes divisões que Frye propõe para a literatura: o mythos do

inverno.21Subjacente a essa categoria está o recurso discursivo da ironia, que

21 Cada uma das divisões remete a mitos baseados na idéia cíclica das quatro estações do ano.

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sugere que o padrão mítico segue os parâmetros da própria existência humana,

numa tentativa de retratar na ficção a ambigüidade e a complexidade das relações

estabelecidas entre os homens, isenta, portanto, de idealizações. Este mythos se

aproximaria do que a crítica tradicional denomina como ficção realista, uma

concepção estética que não pode estar circunscrita apenas ao realismo do século

XIX se pensarmos que, ao longo da história literária, coexistiram produções que se

preocuparam, de diferentes formas, em retratar as muitas realidades vividas nas

diversas coletividades humanas.

No mythos do inverno, a representação da condição humana é coerente com

a realidade e, especificamente, dentro do modo irônico, há três fases de

caracterização da obra de ficção. Portanto, podemos dizer que o romance Nada se

ajusta ao que Frye (1991, p. 293) define como a última das três fases, na qual a

narrativa geralmente apresenta uma sociedade dividida em classes, onde aqueles

que pertencem ao nível superior ou dominante, enfatizam sua superioridade material

agindo de forma sádica e cruel para com as castas menos favorecidas. É o que

vimos anteriormente na análise das relações familiares de Andrea e é também o que

constatamos a seguir nos trechos posteriores, nos quais a heroína vive seguidas

frustrações, sendo constantemente punida por sua condição social inferior. À

princípio, a condenação da protagonista parte de sua própria família, que a ignora e

a humilha no microcosmo da casa da Rua Aribau, e conforme averiguaremos

posteriormente, Andrea é inferiorizada também nas relações com seus amigos,

jovens estudantes de condição social superior que reforçam a posição econômica

desprestigiada da protagonista.

Com relação aos personagens que compõem, em especial, a repulsiva família

da narradora, podemos dizer que se trata de figuras humanas atormentadas,

caracterizadas a partir de elementos hediondos e idiotas, para os quais a vida é

imposta de maneira alienante. Nesta terceira e última fase do modo irônico, a

atmosfera em geral é impiedosa e desesperançada e o mal encontra personificação,

por meio de personagens pontuais, como é o que podemos observar em Angustias,

com seu intenso desejo pelo exercício do autoritarismo sobre os demais familiares e,

sobretudo, sobre a sobrinha. É o que verificamos também na configuração

psicológica atormentada de Román que procura, por meio de sua manipulação

ensandecida, frustrar o frágil convívio conjugal do irmão e da cunhada. Na figura de

Juan, encontramos evidências de um comportamento violento que dissimula, ao

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menos no interior do ambiente doméstico, a valorização e o respeito que a

sociedade há muito não lhe presta.

Entretanto, o objetivo do nosso estudo para o romance Nada está

concentrado em sua configuração espacial, de modo que após essas considerações

preliminares que aproximam nosso possível leitor do pensamento teórico de Frye,

podemos tecer algumas considerações sobre as análises até então realizadas, com

o intuito de explicar as imagens poéticas da casa da Rua Aribau, a partir de

categorias simbólicas elaboradas por Frye para as ficções que se enquadram, como

anteriormente situamos, no mythos do inverno e na terceira ou última fase do modo

irônico.

O aspecto exterior da residência da família de Andréa, no momento da

chegada da protagonista à cidade de Barcelona, o hall de entrada onde a avó a

recebe, o banheiro, o quarto improvisado e a sala de jantar, cenário dos muitos

desentendimentos familiares, são espaços que nos oferecem um conjunto de

imagens negativamente construídas. A falta de claridade dos ambientes, sua frieza

envolvida por um ar fétido e asfixiante e a degradação dos objetos constituintes da

moradia, estabelecem perfeita simetria com o perfil dos seres humanos que a

ocupam. Os comportamentos perturbados que culminam nas extremadas e violentas

discussões e agressões, parecem refletir toda a negação do espaço físico que

circunda os personagens.

Segundo Frye, os símbolos ligados à mitologia do inferno são denominados

Imagens demoníacas, que são definidas pelo autor da seguinte forma:

Opuesta al simbolismo apocalíptico está la presentación del mundo que el deseo rechaza totalmente; el mundo de la pesadilla y del chivo expiatório, del cautiverio, del dolor y dela confusión; el mundo tal como es antes de que la imaginación humana comience a trabajarlo y antes de que alguna imagen del deseo humano, tal como la ciudad o el jardín, se haya establecido sólidamente; mundo también del trabajo pervertido o inútil, de ruinas y catacumbas, instrumentos de tortura y monumentos de insensatez. (Frye, 1991, p. 195)

Ao adentrar pela primeira vez a casa de sua família materna, Andrea pensa

viver um pesadelo do qual deseja desesperadamente despertar. Naquele espaço,

todos de algum modo expiam certa dose de culpa. A protagonista se sente culpada

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por sua posição social inferior e por estar vinculada a uma família no seio da qual

imperam, não apenas a pobreza material, como também a miséria espiritual.

Angustias pune o próprio delito, o adultério, com a reclusão no convento. Da mesma

maneira, Gloria busca sua sobrevivência, ainda que indigna, submetendo-se à

violência do marido que se sente, por sua vez, frustrado por não ser capaz de

proporcionar o sustento da própria família. A esposa de Juan se auto-flagela

triplamente ao aceitar a manipulação de Román que a condena pelo fascínio de sua

beleza, por sua origem vulgar e pelo julgamento da cunhada Angustias, que a vê

como um modelo execrável de feminilidade. A avó admite passivamente a relação

brutal entre seus filhos como pena para seu fracasso como dirigente de uma família

arruinada. Nessa ferocidade doentia, Román não suporta o peso de sua própria

culpa e escolhe o suicídio como forma de expiação.

No mundo perturbado da casa da Rua Aribau, Andrea é vítima do

autoritarismo prisional e irracional de Angustias e da mediocridade de sua própria

vida absorta em meio a seres que sua índole libertária repudia. Sofre

silenciosamente com as dores físicas da fome que a corroem e com as dores morais

das relações torpes e insignificantes. Por isso, as ambientações expressionistas

descritas por ela oferecem várias metáforas funestas como: casa de brujas, bodegón

macabro, túmulo funerario rodeado por dolientes seres, muebles endiablados e

cama parecida a un ataúd, entre outras.

Desse modo, a casa da Rua Aribau parece aproximar-se das descrições do

mundo inorgânico que, segundo Frye, são espaços nos quais a vida plena não pode

imperar:

También es este el lugar de las imágenes del trabajo pervertido:

instrumentos de tortura, armas de guerra, armaduras e imágenes de un mecanismo muerto que, al no humanizar a la naturaleza, resulta tan desnaturalizado como inhumano. (Frye, 1991, p. 199)

Ao ser um ambiente contrário à promoção da vida digna e íntegra, a casa da

família de Andrea parece, por muitas vezes, um lugar irreal e inacreditável pelo teor

de desumanidade que concentra em seu medonho interior. Nada se enquadra no

que Frye (1991, p. 204) nomeia como modelo mimético baixo, ou seja, uma ficção

na qual há certa correlação entre enredo e mitologia. Portanto, adotamos a categoria

do mundo demoníaco com a finalidade de desvendar as analogias imagéticas que a

casa da Rua Aribau parece estabelecer com o inferno da mitologia bíblico-cristã.

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3) O romance Nada: A escrita narrativa como cartografia da

cidade de Barcelona

Essa história começa ao rés do chão, com passos. São eles o número, mas um número que não constitui uma série. Não se pode contá-lo, porque cada uma de suas unidades é algo qualitativo: um estilo de apreensão táctil de apropriação cinésica. Sua agitação é inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares.

(Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, p. 176)

No segundo capítulo analisamos detalhadamente as descrições que

configuram o espaço interior da casa da Rua Aribau, lugar onde a protagonista vive

com a família, no transcorrer da trama narrativa do romance Nada. Ao investigar a

composição do ambiente interno da residência, procuramos encontrar evidências

sígnicas que comprovassem a analogia entre a atmosfera microcósmica da família

de Andrea, como recriação da violência generalizada e velada, à qual estava

subjugada a população espanhola durante os primeiros anos da ditadura franquista.

Notamos então que a caracterização espacial do romance oferece elementos que

condizem com a realidade vivida à época: um conjunto de sentimentos negativos,

impregnados de miséria e mesquinhez, provocadas pela recessão do país e pela

repressão das liberdades, o que contribuía para a reprodução de condutas

conturbadas no ambiente doméstico.

Nesta etapa, voltamos nossa atenção para o espaço exterior da casa da Rua

Aribau numa tentativa de ler o espaço urbano por meio do olhar da narradora. Esta

reconstrói, a partir de seu relato descritivo, a capital catalã e sua organização sócio-

espacial durante aqueles anos posteriores ao término da Guerra Civil Espanhola.

Ao primeiro contato da protagonista com a cidade de Barcelona no

desembarque na Estação Ferroviária, confirmam-se suas expectativas em relação

ao lugar recriado em seu imaginário e acalentado em seus sonhos juvenis.

Entretanto, o reencontro com os parentes e com a degradada residência por eles

habitada, gerou na narradora um profundo sentimento de frustração em relação ao

que ela imaginara para sua vida durante sua estada na capital catalã. Desde suas

visitas infantis transcorrera certo tempo, e Barcelona mudara muito. A cidade havia

se desenvolvido; afinal, era uma das principais urbes espanholas da época, além de

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ter sofrido, como poucas outras cidades do país, o desgaste provocado pelo conflito

civil. Logo, ao se encontrar novamente com a cidade que guardava as promessas de

seu futuro, a personagem re-vive e re-conhece o espaço que se faz novo ante seus

olhos de viajante recém chegada.

No entanto, os primeiros passeios pela cidade, ao contrário do que Andrea

imaginara, são impressionantemente desagradáveis, pois a protagonista os realiza

em companhia de sua autoritária tia Angustias que assume, para si, a tarefa de

educar e mostrar à sobrinha os perigos que Barcelona pode oferecer a uma jovem

ingênua vinda do interior. Desse modo, nos primeiros trajetos realizados pelas ruas

da cidade, a visão da narradora é limitada pela arrogância da tia, que lhe apresenta

Barcelona a partir do que sua concepção julga que seja necessário conhecer. Em

seu discurso, Angustias costuma comparar metaforicamente a capital catalã a um

inferno, lugar onde o demônio pode assumir diferentes e irresistíveis formas. Esta

personagem, conforme comentamos anteriormente, é um perfeito simulacro da

hipócrita ideologia que dominava o comportamento das mulheres espanholas de

classe média nas primeiras décadas do século XX. Em uma sociedade machista e

patriarcal, na qual a fêmea é concebida para o único fim de reprodução e

constituição familiar, Angustias tem sua feminilidade frustrada por não ter

conseguido se casar e ter filhos. Por isso, deseja cumprir seu papel de propagadora

dos ideais de preservação da moral e dos valores cristãos, por meio de sua relação

com a sobrinha, vendo em si mesma um exemplo de virtude. A partir dessa atitude

da tia, Andrea entende que o penoso cárcere ao qual está submetida no interior do

edifício da Rua Aribau, pode se prolongar em passeios ao longo dos quais a cidade

de Barcelona lhe é apresentada através da ótica preconceituosa e distorcida de

Angustias:

Cogida de su brazo corría las calles, que me parecían menos brillantes y menos fascinadoras de lo que yo había imaginado. (…)

Aquellos recorridos de Barcelona eran más tristes de lo que se puede imaginar. (p. 32)

A expressão cogida de su brazo, indica a obrigatoriedade com que a jovem

acompanha a tia pelas ruas de Barcelona. O verbo correr, empregado pela

narradora, imprime ao passeio um ritmo apressado, como se Angustias arrastasse a

sobrinha sem lhe dar tempo para que algo ou alguém chamasse sua atenção. O

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advérbio de intensidade menos, ao acompanhar os adjetivos brillantes e

fascinadoras, confere-lhes uma conotação negativa, como se ofuscasse a

luminosidade sedutora com a qual a cidade envolvera Andrea na noite de sua

chegada. O adjetivo triste encerra em si todo o sentimento da personagem em

relação aos passeios que, para ela, escondem a riqueza de possibilidades que a

cidade poderia lhe oferecer.

Sob a vigilância constante e implacável de Angustias, o único percurso que a

protagonista pode realizar é o do caminho de ida e volta da casa à universidade. Em

um de seus retornos diários, ela narra, envolta por um sentimento de amargura, os

efeitos do outono sobre as ruas da capital catalã:

El tiempo era húmedo y aquella mañana tenía olor a nubes y a neumáticos mojados… Las hojas lacias y amarillentas caían en una lenta lluvia desde los árboles. Una mañana de otoño en la ciudad, como yo había soñado durante años que sería en la ciudad el otoño: bello, con la naturaleza enredada en las azoteas de las casas y en los troles de los tranvías; y sin embargo, me envolvía la tristeza. Tenía ganas de apoyarme contra una pared con la cabeza entre los brazos, volver la espalda a todo y cerrar los ojos. (p. 42)

Nessa descrição, a umidade do dia é absorvida por meio de sensações táteis

e olfativas. A manhã sinestesicamente exala um aroma de nubes, possivelmente

carregadas pelo peso de ocasionais chuvas que, ao umedecer as ruas, desprende a

figura olfativa do cheiro da borracha dos pneus em atrito com o asfalto. Metaforizada

como uma chuva que, ao invés de serenar, cai das árvores, as folhas são como

gotas de água e com uma cor amarelada: movimento e coloração típicos do outono.

A cena é de uma beleza evidente e é exatamente idêntica ao que Andrea recriara

em seu imaginário sobre como seria o outono em Barcelona, com folhas secas

caindo e cobrindo as coberturas dos edifícios e os trilhos do bonde. Entretanto, o

conector adversativo sin embargo, opõe a beleza da Barcelona outonal ao estado de

espírito da narradora que confessa sua melancolia por meio da expressão: me

envolvía la tristeza. Nem todo o esplendor da chegada da nova estação é capaz de

apagar a consternação que a personagem sente por estar aprisionada entre seres

medíocres e repulsivos. Ao voltar as costas e esconder o olhar para toda aquela

imagem que a insulta com sua exuberância, a protagonista revela a indignação de

estar em um lugar desejado sem poder experimentá-lo e vivenciá-lo, devido a uma

limitação que autoritariamente lhe é imposta. A arbitrária relação da protagonista,

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com o espaço urbano de Barcelona, personifica-se por meio da personagem

Angustias, quem no contexto extrínseco à ficção, remete-nos a própria restrição do

regime franquista, que recaía de modo mais cruel sobre a população espanhola

feminina. O confinamento de Andrea dentro do sufocado mundo representado pela

casa da Rua Aribau e a barreira imposta por Angustias à liberdade da protagonista

em percorrer, conhecer e vivenciar a cidade são elementos que podem ser lidos

como metáforas referentes às privações materiais e sentimentais às quais estava

sujeita a juventude espanhola.

Entretanto, por sua própria índole libertária e por seu comportamento anti-

convencional, a protagonista não aceita passivamente essa restrição. Afinal, Andrea

se encontrava no lugar com o qual sempre sonhara e privar-se de experimentá-lo

era algo terrível. Com o passar do tempo, esta descobre que não precisa ser refém

da autoridade da tia e essa percepção se dá quando ela é acometida por uma forte

febre que lhe provoca profundas mudanças:

No sé a qué fueron debidas aquellas fiebres, que pasaron como una ventolera dolorosa, removiendo los rincones de mi espíritu, pero barriendo también sus nubes negras. El caso es que desaparecieron antes de que nadie hubiera pensado en llamar al médico y que al cesar me dejaron una extraña y débil sensación de bienestar. El primer día que pude levantarme tuve la impresión de que al tirar la manta hacia los pies quitaba también de sobre de mí aquel ambiente opresivo que me anulaba desde mi llegada a la casa. (p. 55)

Nesse trecho, a febre tem o significado simbólico de um processo de

metamorfose que retira a protagonista de sua posição de vítima da tirania de

Angustias e da asfixia da atmosfera familiar e a empurra, com toda sua ânsia juvenil,

em direção à cidade e às pessoas que ali viria a conhecer. Nessa imagem, o corpo

de Andrea pode ser comparado a uma casa que tem seus mais recônditos e íntimos

espaços remexidos por uma ventolera dolorosa. O adjetivo dolorosa indica que o

processo de transformação é sofrível, porém necessário, como único recurso capaz

de remover sua infelicidade, metaforizada na figura de nubes negras que obstruem a

passagem dos raios solares que deveriam inundar de luz seu corpo-morada. O

movimento de remoção da manta simboliza o desbloqueio da personagem que se

liberta, a partir desse momento, para sentir a cidade da maneira como sempre

imaginara, ignorando as recomendações impositivas da tia e se entregando a

passeios furtivos por Barcelona, vivenciando-a intensamente.

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Na estrutura do enredo, esse desejo da protagonista em experimentar a

cidade acontece quando ela se relaciona com seres exteriores ao mundo restrito da

casa da Rua Aribau. Os primeiros passeios pela cidade são realizados em

companhia de sua nova amiga Ena e são completamente diferentes dos passeios

limitadores realizados ao lado de Angustias.

A partir disso, e nas descrições dos diversos ambientes de Barcelona a

cidade assume uma conotação positiva, contrastando o mundo opaco da Rua Aribau

com um novo e iluminado mundo que se descortina ante os olhos da personagem.

Essa oposição é tão intensa que Andrea deseja que essas duas órbitas adversas

nunca descubram uma à outra:

Me juré que no mesclaría aquellos dos mundos que se empezaban a destacar tan claramente en mi vida: el de mis amistades de estudiante con su fácil cordialidad y el sucio y poco acogedor de mi casa. (p. 60)

Sobre essa dicotomia latente comentava Ródenas de Moya ao identificar na

estética das descrições laforetianas a oposição entre o expressionismo e o

impressionismo.

3.1) Barcelona: imagens representativas do mundo divino22

Ignorando as recomendações da tia e se sentindo totalmente livre, Andrea

narra o primeiro e prazeroso passeio pelas ruas de Barcelona:

Por primera vez me sentía suelta y libre en la ciudad, sin miedo al fantasma del tiempo. Había tomado algunos licores aquella tarde. El calor y la excitación brotaban de mi cuerpo de tal modo que no sentía el frío ni tan siquiera – a momentos – la fuerza de la gravedad bajo mis pies. (p. 107)

A indiferença à autoridade de Angustias recupera Andrea do doloroso temor

pelo passar das horas, metaforizado na expressão fantasma del tiempo. Os

adjetivos suelta e libre indicam o estado de espírito da personagem, o modo como

ela se sente em relação à possibilidade de vivenciar a cidade. Ao vagar por

22 Referência à outra categoria de imagens elaboradas por Frye em Anatomia da crítica e que será explorada a seguir.

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Barcelona, a personagem começa uma busca indefinida por um lugar que entre em

consonância com a profusão de sentidos agradáveis que a dominam:

No sabía si tenía necesidad de caminar entre las casas silenciosas de algún barrio adormecido, respirando el viento negro del mar o de sentir las oleadas de luces de los anuncios de colores que teñían con sus focos el ambiente del centro de la ciudad. Aún no estaba segura de lo que podría calmar mejor aquella casi angustiosa sed de belleza que me había dejado escuchar a la madre de Ena. La misma Via Layetana, con su suave declive desde la Plaza de Urquinaona, donde el cielo se deslustraba con el color rojo de la luz artificial, hasta el gran edificio de Correos y el puerto, bañados en sombras, argentados por la luz estelar sobre las llamas blancas de los faroles, aumentaba mi perplejidad. (p. 108)

O prazer do gozo estético provocado pelo sentido auditivo aguçado pela

música da mãe de Ena no sarau, leva a protagonista a deixar a casa e a caminhar

sem destino pelas ruas do centro de Barcelona. Nessa passagem, casas e bairros

são personificados respectivamente pelos adjetivos silenciosas e adormecido.

Imagens sinestésicas mesclam o sentido tátil com o sentido visual (viento negro e

ondas de luces). O edifício dos correios e o porto são sinestesicamente molhados

pela sombra da noite e ganham um contorno prateado, conferido pelo brilho das

estrelas, evidenciado pela iluminação artificial urbana. Pela primeira vez, Andrea se

permite deslumbrar com a beleza da cidade que encerra, em si, as metáforas para a

sua liberdade e para as suas expectativas sobre uma vida mais significativa.

Em seu relato, a narradora nomeia as ruas por onde passa, um detalhe que

confere verossimilhança ao texto e aproxima o leitor do percurso realizado.

Sobre a importância de identificar os ambientes reais no âmbito ficcional,

explica Michel de Certeau:

É mais que uma “idéia”. Seria necessário multiplicar as comparações para explicar os poderes mágicos de que dispõem os nomes próprios. Parecem carregados pelas mãos viajadoras que conduzem enfeitando-as.

Ligando gestos e passos, abrindo rumos e direções, essas palavras operam ao mesmo título de um esvaziamento e de um desgaste do seu significado primário. Tornam-se assim espaços liberados, ocupáveis. Uma rica indeterminação lhes vale, mediante uma rarefação semântica, a função de articular uma geografia segunda, poética, sobre a geografia do sentido literal, proibido ou permitido. (Certeau, 1996, p. 185)

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Ao citar os nomes reais das ruas do centro antigo de Barcelona, essas vias

públicas deixam de ser apenas uma referência espacial para adquirir sentidos

particularizantes para o leitor que, mesmo não conhecendo a cidade, é capaz de se

situar no mapa narrativo traçado pela protagonista.

O obstinado caminhar de Andrea, pelas ruas da cidade, entre seus

tradicionais edifícios, pode ser entendido como um processo de produção lingüística.

Ao escolher o trajeto e executá-lo, a narradora estaria selecionando palavras e

produzindo enunciados, transmitindo mensagens por meio dos percursos traçados

na grande teia de possibilidades formativas que é a cidade. No caso, o espaço

urbano atua como um código lingüístico tal qual a língua escrita, de acordo com

Certeau:

O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos. Vendo as coisas no nível mais elementar, ele tem com efeito uma tríplice função “enunciativa”: é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização sonora da língua); enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, “contratos” pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é “alocução”, “coloca o outro em face” do locutor e põe em jogo contratos entre colocutores). O ato de caminhar parece portanto encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação. (Certeau, 1996, p. 177)

O caminhar de Andrea é metáfora que simboliza seu modo de narrar. As

direções, por ela tomadas, são como palavras que unidas, configuram um todo

espacial e narrativo circunscrito não só à instância da ficção, como também da

recriação. Para o leitor, esta é uma experiência que o aproxima do que a

personagem vivencia.

Durante esse caminhar, a cidade incita, em Andrea, o mesmo

deslumbramento que o canto da mãe de Ena lhe provocara minutos antes.

Entretanto, a personagem ainda busca, no espaço coletivo de Barcelona, um lugar

que traduza toda a experiência artística obtida na casa de sua amiga. Em uma

imagem personificada, a cidade parece evocar a protagonista a um lugar especial, o

único capaz de saciar sua sinestésica sed de belleza:

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Oí, gravemente, sobre el aire libre de invierno, las campanadas de las once formando un concierto que venía de las torres de las iglesias antiguas.

La Via Layetana, tan ancha, grande y nueva, cruzaba el corazón del barrio viejo. Entonces supe lo que deseaba: quería ver la Catedral envuelta en el encanto y el misterio de la noche. Sin pensarlo más me lancé hacia la oscuridad de las callejas que la rodean. (p. 108)

O som dos sinos das igrejas antigas, nessa passagem, pode ser interpretado

como as vozes da cidade que cantam uma melodia que atrai a personagem para

aquele que, talvez, seja o único lugar capaz de reunir toda a intensidade artística da

qual ela necessita: a Catedral Gótica da Sagrada Família. A Via Layetana é que

parece conduzir Andrea ao encontro do monumento. Extasiada pelo desejo de

sublimação, a personagem se lança pelas estreitas ruas que contornam a igreja,

sem recear a escuridão que as envolve. Aliás, é sob o efeito da escuridão que

Andrea deseja contemplar a igreja. A descrição da caminhada até a Catedral é

tomada de ansiedade e expectativa:

Nada podía calmar y maravillar mi imaginación como aquella ciudad gótica naufragando entre húmedas casas construídas sin estilo en medio de sus venerables sillares, pero a las que los años habían patinado también como un encanto especial, como si se hubieran contagiado de belleza.

El frío parecía más intenso encajonado en las calles torcidas. Y el firmamento se convertía en tiras abrillantadas entre las azoteas casi juntas. Había una soledad impresionante, como si todos los habitantes de la ciudad hubiesen muerto. Algún quejido del aire en las puertas palpitaba allí. Nada más.

Al llegar al ábside de la Catedral me fijé en el baile de luces que hacían los faroles contra sus mil rincones, volviéndose románticos y tenebrosos. (p. 108-9)

Nesse momento, a protagonista entende que o único lugar capaz de saciar

seu intenso desejo pela arte é a Catedral, metaforizada como ciudad gótica, uma

referência à grandiosidade e à audácia do projeto arquitetônico de um dos maiores

monumentos góticos. No profundo silêncio da noite, na qual Barcelona parece uma

cidade fantasma (como si todos los habitantes de la ciudad hubiesen muerto), ouve-

se apenas o sussurro do vento ao ranger as portas de algumas residências.

Perplexa diante do portal da Catedral, iluminado sinestesicamente por um baile de

luces e pelo efeito da iluminação pública que reflete na arquitetura gótica do arco de

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entrada, Andrea é tomada por sentimentos contraditórios representados pelos

adjetivos románticos e tenebrosos. No entanto, sua contemplação continua:

Sin embargo, apreté el paso hasta llegar a la fachada principal de la Catedral, y al levantar mis ojos hacia ella encontré al fin el cumplimiento de lo que deseaba.

Una fuerza más grande que la que el vino y la música habían puesto en mí me vino al mirar el gran corro de sombras de piedra fervorosa. La Catedral se levantaba en una armonía severa, estilizada en formas casi vegetales, hasta la altura del limpio cielo mediterráneo. Una paz, una imponente claridad, se derramaba de la arquitectura maravillosa. En derredor de sus trazos oscuros resaltaba la noche brillante, rodando lentamente al compás de las horas. Dejé que aquel profundo hechizo de las formas me penetrara durante unos minutos. Luego di la vuelta para marcharme. (p. 109-10)

Diante da imagem da Catedral, Andrea é invadida por uma experiência

estética superior àquela sentida no sarau na casa de Ena. A perfeição arquitetônica

impõe ao ambiente tranqüilidade e lucidez, como se a igreja ressaltasse a

luminosidade da noite. Este instante de contemplação é atemporal, o relógio corre

lentamente devido ao estado paralisante de fascínio, de autonomia e de controle de

seu tempo. Nessa cena, que confere à Catedral gótica status de um espetáculo

estático, é interessante observar a importância que a arte representa para a

protagonista e para toda a narrativa.

Neste percurso narrativo, fatos evidenciam apreciação artística: Andrea passa

a valorizar a beleza e a feminilidade felina de Gloria quando esta posa como modelo

para os quadros de Juan; ela é tomada pelo prazer estético ao vislumbrar a igreja no

meio da noite e é tocada pela música da casa de Ena que a deixa em êxtase.

Margareth Santos explica:

O que leva Andrea a buscar na Igreja o contato com uma beleza estética que a acalme não é um sentimento religioso, mas sim esta sede pela arte que o romance alimenta e da qual a narradora extrai elementos fundamentais para sua elaboração. (...) pois em Nada as artes são o instrumento encontrado por Andrea para apurar sua sensibilidade e, a partir disso, entender seu entorno. (Santos, 2005, p. 48-9)

Numa entrega simbólica à Barcelona, a autora isola completamente a

personagem do ambiente torpe e vil da casa da Rua Aribau. Nesse momento,

Andrea representa o coletivo de uma juventude que numa atitude de escapismo,

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prefere ignorar a violência e a opressão de um difícil pós-guerra. Esse fenômeno se

dá involuntariamente, como uma necessidade própria do ser humano em se

preservar do sofrimento pela via do esquecimento e, no caso da narradora de Nada,

essa saída se encontra no prazer do gozo estético.

Após o final do inverno e com a chegada da primavera, começa uma etapa na

vida de Andrea na qual sua relação de prazer e de deslumbramento com a cidade

alcança os mais altos graus de fruição. Para confirmar essa transição temporal entre

as estações, observamos que o espaço cumpre um importante papel na composição

narrativa, isto é, a cronologia romanesca se vale de descrições de ambiente para

marcar a passagem do tempo.

Segundo Bachelard (2005, p. 28-9), “o calendário de nossa vida só pode ser

estabelecido em um processo produtor de imagens”. Para o filósofo: “Mais urgente

que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização

nos espaços da nossa intimidade.” (Bachelard, 2005, p. 29)

Sendo assim, na narrativa laforetiana, tal como na chegada do outono e do

inverno, a abertura da primavera surge materializada nas modificações provocadas

na caracterização espacial:

La temprana primavera mediterránea comenzó a enviar sus ráfagas entre las ramas aún heladas de los árboles. Había una alegría deshilvanada en el aire, casi tan visible como esas nubes transparentes que a veces se enganchan en el cielo. (p. 127)

A sinédoque primavera mediteránea acompanhada do adjetivo temprana

indica que a estação chega antes nas regiões que beiram o mar Mediterrâneo, como

Barcelona. O sentido tátil do calor aquece as folhas ainda resfriadas pelo recém

terminado inverno. As personificações da felicidade sentida no ar, das nuvens que

começam a mover-se para limpar o céu reafirmam o fato de que o período poderá

ser de gratas experiências para a protagonista que, na companhia da amiga Ena,

conhece outros ambientes em torno de Barcelona:

La ciudad se quedaba atrás y cruzábamos sus arrabales tristes, con la sombría potencia de las fábricas a las que se arrimaban altas casas de pisos, ennegrecidas por el humo. Bajo el primer sol los cristales de estas casas negruzcas despedían destellos diamantinos. De los alambres de telégrafos salían chillando bandadas de pájaros espantados por la bocina insistente y enroquecida …

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Ena iba al lado de Jaime. Yo, detrás, me ponía de rodillas, vuelta de espaldas en el asiento, para ver la masa informe y portentosa que era Barcelona y que se levantaba y esparcía al alejarnos, como un rebaño de monstruos. (p. 130)

Numa figura personificada, Barcelona se afasta e se apequena ante os olhos

de Andrea que, por meio do vidro traseiro do carro, vislumbra o crescimento da

cidade materializado nas periferias infelizes (arrabales tristes) e nas chaminés das

fábricas que produzem uma figura cromática escura, ao desprender a fumaça da

arrancada econômica do país durante o imediato pós-guerra. Essas imagens

negativas associadas às expressões depreciativas masa portentosa e rebaño de

monstruos, que se referem respectivamente à grandiosidade e à miséria antiestética

da cidade, são signos que nos fazem antever o crescimento desordenado de

Barcelona. À medida que aumenta sua capacidade industrial, a metrópole produz

cada vez mais exclusão, ao permitir que a pobreza prolifere e se amontoe nos

arredores urbanos.

Embora o país tentasse sustentar o falso discurso de recuperação econômica,

essa restauração acontecia de forma lenta e era incapaz de superar os problemas

adquiridos durante a Guerra Civil; conseqüentemente, as soluções encontradas pelo

regime para reconstruir a nação, acabavam por gerar mais adversidades.

Andrea, absorta no interior da cidade e envolvida em seus problemas e em

suas descobertas, ignora essa realidade precária que só consegue perceber

afastando-se da cidade e enxergando-a do exterior para o interior. O olhar da

protagonista sobre o subúrbio barcelonês, embora seja melancólico, não reflete uma

consciência crítica formada a respeito daquilo que de fato acontece nos arredores da

cidade. Sob o efeito alienante próprio de sua geração, a personagem constata o

desequilíbrio estético entre os bairros periféricos e a riqueza arquitetônica do centro

da cidade. Essa falta de perspectiva de análise da realidade social impede que ela

se contagie da negatividade exposta pela imagem da Barcelona, vista de fora, e lhe

permite relatar os momentos seguintes, a partir de uma conotação positiva que é a

tônica que marca as descrições dos muitos passeios que ela realiza em companhia

de sua amiga Ena:

Salimos los cuatro domingos de marzo y alguno más de abril. Íbamos a la playa más que a la montaña. Me acuerdo de que la arena estaba sucia de algas de los temporales de invierno. Ena y yo

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corríamos delcalzas por la orilla del agua, que estaba helada, y gritábamos al sentirla rozarnos. El último día hacía ya casi calor y nos bañamos en el mar. (p. 129)

A narradora relata seus passeios realizados entre o período de março a abril

de 1940, ano posterior à sua chegada à cidade. A cena é extremamente visual e

tátil, ao descrever o colorido esverdeado da praia e ao demonstrar a sensação do

toque suave da areia e da água sob a pele. Nesse trecho, Andrea se reencontra com

o mar, imagem que com toda a amplitude horizontal representa a esperança de uma

vida mais próspera, afastada da verticalidade fechada e aviltante da casa da Rua

Aribau. A personagem Ena está intimamente relacionada às novas descobertas de

Andrea sobre o espaço litorâneo que cerca Barcelona. É como se a amiga fosse a

chave, seu passaporte para novos ambientes:

A mí – que venía del campo – me hizo ella ver un nuevo sentido de la Naturaleza en el que ni siquiera había pensado. Me hizo conocer el latido del barro húmedo cargado de jugos vitales, la misteriosa emoción de los brotes aún cerrados, el encanto melancólico de las algas desmadejadas en la arena, la potencia, el ardor, el encanto esplendoroso del mar. (p. 131)

Nascida e criada no campo, a protagonista tem uma concepção de natureza

(destacada pela escrita iniciada com a letra maiúscula Naturaleza), que se amplia,

ao lado de Ena. Novamente, a atenção da narradora se volta para o imperioso mar,

descrito com a força dos substantivos, potencia, ardor e encanto, além do adjetivo

esplendoroso.

Na parte da narrativa, na qual Andrea se liberta da opressão imposta pela tia

e estreita o laço de amizade com Ena, as descrições da cidade de Barcelona

adquirem uma conotação completamente oposta às primeiras descrições.

Da mesma maneira como lemos a imagem negativa da casa da Rua Aribau,

por meio da metáfora do mundo demoníaco elaborada por Frye, pensamos que,

podemos aplicar a positividade à categoria de imagens apocalípticas – um

determinado grupo de imagens poéticas compostas a partir de elementos positivos –

de acordo com o crítico e sua teoria do significado arquetípico:

El mundo apocalíptico, el cielo de la religión, presenta, en primer lugar, las categorías de la realidad según las formas del deseo

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humano, tal como están indicadas por las formas que asumen bajo la acción de la civilización humana. (Frye, 1991, p. 187)

Segundo o autor, as imagens categorizadas como pertencentes ao mundo

apocalíptico são aquelas que podem se associar à positividade metaforizada no

ideal de divindade representado pela figura do céu, instituído pela mitologia bíblico-

cristã como lugar de aconchego, prazer e serenidade, a verdadeira recompensa

para aqueles que enfrentaram de forma digna os infortúnios da vida terrena. Para

Frye, o paraíso das imagens poéticas pode ser aquele idealizado e moldado pelas

mãos humanas, a partir de seus desejos, como é o caso da transformação

paisagística que o homem executa ao urbanizar os ambientes naturais:

La forma humana del mundo mineral, la forma en que el trabajo humano transforma la piedra, es la ciudad. La ciudad, el jardín y el redil son las metáforas organizadoras de la Biblia y de la mayor parte del simbolismo cristiano, y son llevadas a su completa identificación metafórica en el libro explícitamente llamado Apocalipsis o Revelación, que ha sido cuidadosamente diseñado para dar forma a la conclusión mítica no desplazada de la Biblia como un todo. Desde nuestro punto de vista, esto significa que el apocalípsis bíblico es nuestra gramática de imágenes apocalípticas. (Frye, 1991, p. 188)

Em Nada, após a partida da personagem Angustias e na companhia de Ena,

Barcelona como elemento inserido no mundo mineral, de acordo com a terminologia

de Frye, carrega em si a metáfora positiva do ser de Andrea que se abre para uma

nova existência.

Para Frye, a cidade representa uma imagem metafórica do Mundo

apocalíptico. Ela é o símbolo da vontade humana, resultado de seu desejo que

altera a paisagem natural.

A Catedral gótica da Sagrada Família em Barcelona é um exemplar incrível

da capacidade artística do homem na mudança do meio ambiente. Ao sentir o

desejo de contemplar a arte, é para a Igreja que Andrea se dirige, descrevendo

detalhadamente o percurso que realiza como quem localiza o leitor na realidade da

cidade. Nas passagens em que a narradora descreve seu deslumbramento ante a

beleza arquitetônica de Barcelona, a linguagem está repleta de figuras poéticas

como a personificação que concebe vida própria aos lugares. Abundam imagens

sonoras e táteis que impregnam o texto de sensações experimentadas e

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transmitidas. As metáforas ajudam a compor os belos retratos da cidade e seus

arredores.

Outro aspecto importante, nas incursões que Andrea realiza na companhia de

Ena, é a presença constante do mar, como ícone horizontal que sugere amplitude,

abertura e liberdade. Ao lado da amiga, nesses ambientes, a protagonista se sente

outra pessoa, completamente diferente do ser opaco e nulo que habita o interior da

casa da Rua Aribau. A personagem experimenta a liberdade, por meio do valioso

direito de percorrer seus próprios caminhos de forma plena e íntegra, abrindo-se

para captar o novo e o belo que a cidade lhe oferece, tanto nas bucólicas

contemplações de seus jardins e praias, como na admiração de suas obras

arquitetônicas.

Nesse contexto da narrativa, Barcelona é o mundo divino que atua como uma

extensão do ser interior de Andrea que, em contrapartida, resume, em suas

sensações mais íntimas, todo o positivo que a cidade lhe concede.

3.2) Barcelona em companhias masculinas: as decepções e o poder

curativo da cidade

Com o passar do tempo, Andrea deixa o estado alienante em relação à

realidade histórica que a circunda e passa a se sentir inferiorizada em relação à

beleza, à desenvoltura e à posição social de Ena. O relacionamento entre as amigas

torna-se mais conturbado à medida que a protagonista percebe que é para Ena,

apenas um recurso estratégico para chegar até Román, de quem a jovem pretende

se aproximar para vingar o mal que o músico fez à sua mãe no passado. Aborrecida

com a situação, Andrea rompe o laço de amizade com Ena. Nesse momento, há no

romance uma abertura para que a protagonista permita que personagens

masculinos adentrem seu círculo de relações. Entretanto, essa incursão pelo

universo oposto não é tão prazerosa quanto a amizade de Ena. Essa mudança se

refletirá nas relações afetivas da protagonista e como conseqüência na sua forma de

ver o espaço da cidade de Barcelona.

O primeiro personagem com quem Andrea admite certa proximidade é

Gerardo, que habita as redondezas e que nutre por ela um sentimento de

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admiração. A protagonista, que não tem mais a interessante companhia da amiga

para seus passeios pela cidade, aceita o convite de Gerardo:

Me preguntó que si prefería ir al Puerto o al Parque de Montjuich. A mí me daba igual un sitio que otro. Iba callada a su lado. Cuando cruzábamos las calles él me cogía del brazo. Caminamos por la calle de Cortes hasta los jardines de la Exposición. Una vez allí me empecé a distraer porque la tarde estaba azul y resplandecía en las cúpulas del palacio y en las blancas cascadas de las fuentes. Multitud de flores primaverales cabeceaban al viento, lo invadían todo con su llama de colores. Nos perdimos por los senderos del parque inmenso. En una plazoleta – verde oscura por los recortados cipreses – vimos la estatua blanca de Venus reflejándose en el agua. Alguien la había pintado los labios de rojo groseramente. Gerardo y yo nos miramos, indignados, y en aquel momento me fue simpático. Mojó su pañuelo y con un impulso de su fuerte cuerpo subió a la estatua y estuvo frotando los labios de mármol hasta que quedaran limpios. (p. 134)

Na Espanha, sob a ditadura repressora que controlava atos e mentes, era

moralmente condenável que uma jovem saísse em companhia de um rapaz, sem

que alguém da família consentisse ou vigiasse. Fazendo uso de sua liberdade de

menina órfã e desassistida pela família, Andrea se permite dar o passeio só, na

companhia de um desconhecido. Entretanto, a ansiedade e a expectativa que

deveriam tomar conta da adolescente, durante seu primeiro passeio ao lado de um

homem, são anuladas. Andrea não se sente atraída por Gerardo, por isso não opina

sobre qual lugar devem visitar,ela caminha ao lado dele silenciosa, como quem

cumpre uma enfadonha obrigação. Ao chegar ao parque, a presença de Gerardo é

insignificante para a protagonista e esta dedica toda a sua atenção à contemplação

do jardim na bela tarde de primavera. Em uma praça, funestamente escurecida pela

sombra de árvores que tipicamente são plantadas em cemitérios, Andrea e Gerardo

avistam a imagem da deusa Vênus refletida na água, símbolo do amor e da

feminilidade, sugerindo o envolvimento afetivo entre os dois. No entanto, a estátua

da deusa aparece depreciada, o que confere um tom de vulgaridade à cena. A

atitude de Gerardo ao limpar a mácula deixada pelos vândalos urbanos parece fazer

com que Andrea, por alguns instantes, seja mais receptiva para com o rapaz. Não

obstante, ao longo do passeio, a protagonista volta a demonstrar para com Gerardo

a costumeira frivolidade:

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Fuimos hacia Miramar y nos acodamos en la terraza del Restaurante para ver el Mediterráneo, que en el crepúsculo tenía reflejos de color de vino. El gran puerto parecía pequeño bajo nuestras miradas, que lo abarcaban a vista de pájaro. En las dársenas salían a la superficie los esqueletos oxidados de los buques hundidos en la guerra. A nuestra derecha yo adivinaba los cipreses del Cementerio del Sudoeste y casi el olor de melancolía frente al horizonte abierto del mar. (p. 135)

No segundo ambiente do passeio de Andrea e Gerardo, surge novamente a

imagem do mar que traz um significado carregado de positividade. A altura do

mirante proporciona ao casal uma vista aérea do porto, uma visão que a narradora

expressa como vista de pájaro. Imediatamente, a cena começa a tomar contornos

negativos para Andrea que emprega, metaforicamente, o substantivo esqueletos

para referir-se às carcaças dos navios afundados durante a guerra. O caráter

funesto da imagem se completa com as árvores de um cemitério avistadas ao longe,

o que confere à figura uma conotação de morbidez. Logo, os sentidos da narradora

apreendem um sinestésico olor a melancolia, como um presságio do mau momento

que se seguiria, o beijo roubado e indesejado de Gerardo: “Gerardo súbitamente me

atrajo hacia él y me subió una oleada de asco por la saliva y el calor de sus labios

gordos. Le empujé con todas mis fuerzas y eché a correr.”(p. 136)

A negatividade com que a passagem do mirante sobre o porto e o mar é

finalizada parece antecipar a desagradável experiência, pela qual a protagonista

passaria logo a seguir. O primeiro beijo não é como Andrea esperava que fosse:

“Nunca me había besado un hombre y tenía la seguridad de que el primero que lo

hiciera sería escogido por mi entre todos.” (p. 136)

O primeiro homem a beijá-la é alguém por quem Andrea não alimenta

qualquer sentimento de paixão, carinho ou admiração. A situação é inesperada e

agressiva para a protagonista, que reage com repulsa e indignação.

Nesse momento, a cidade de Barcelona se torna cúmplice de Andrea. Apenas

aquele espaço presenciara a cena que para ela é vergonhosa. A mudança no estado

de espírito da personagem se reflete na descrição do ambiente que a circunda,

como uma extensão de sua decepção.

Depois dessa tarde infeliz, Andrea nunca mais veria Gerardo, no entanto ela

segue sua incursão pelo universo masculino ao estreitar laços de amizade com o

pueril Pons, colega de faculdade. Na companhia do novo amigo, a protagonista

conhece novos ambientes da cidade:

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Fuimos andando, dando un largo paseo, por las calles antiguas. (...)

___ Vamos a entrar un momento si quieres. La ponen como ejemplo del puro gótico catalán. A mí me parece una maravilla. Cuando la guerra quemaron…

Santa María del Mar apareció a mis ojos adornada de un singular encanto, amazacotada de casa viejas enfrente. (…) Luego entramos. La nave resultaba grande y fresca y rezaban en ella unas cuantas beatas. Levanté los ojos y vi los vitrales rotos de las ventanas, entre las piedras que habían ennegrecido las llamas. Esta desolación colmaba de poesía y espiritualizaba aún más el recinto. Estuvimos allí un rato y luego salimos por una puerta lateral junto a la que había vendedoras de claveles y de retama. Pons compró para mí pequeños manojos de claveles bien cargados de alegría. Luego me guió hasta la calle de Montcada, donde tenía su estudio Guíxols. (p. 143-4)

Para atrair a atenção de Andrea, Pons se vale exatamente dos dois

elementos que mais a encantam, os passeios furtivos pela cidade e a contemplação

artística. Observamos, nesse trecho, a evidente diferença entre o olhar simplista de

Pons, que define a imagem da igreja empregando o substantivo maravilla, em

contraponto absoluto com o olhar poético da narradora. Para esta os lugares

adquirem sempre formas e atitudes humanas, como na personificação da Igreja de

Santa María del Mar, que surge ante os seus olhos enfeitada de uma beleza

especial. Apesar da sensação positiva que a riqueza arquitetônica da igreja antiga

provoca em Andrea, ela observa, na construção, signos negativos como os ricos

vitrais quebrados e as paredes escurecidas pela fumaça do incêndio que o lugar

sofrera, durante a guerra, quando militantes radicais dos partidos comunista e

anarquista procuraram aniquilar os símbolos do catolicismo espanhol.

A imagem da igreja simboliza o apreço da cultura espanhola pelo cristianismo,

representado na suntuosidade dos templos antigos. Entretanto, as marcas de

deterioração da igreja, não apenas denunciam as destruições sofridas como também

atribuem uma visão negativa sobre a própria instituição religiosa, imbuída de um

poder opressor ao se relacionar diretamente com o regime franquista, atuando como

um de seus principais sustentáculos ideológicos. Esse aspecto arruinado do

ambiente não abala as sensações positivas de Andrea sobre a igreja. Pelo contrário,

para a protagonista aquelas características conferem poeticidade e espiritualidade

ao ambiente. Observamos uma contradição entre a destruição material do templo e

a leitura insuspeita que a narradora faz dessa destruição. Essa oposição está

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textualmente marcada na aparência externa da igreja que não condiz com sua

imagem interna. Podemos fazer deste dado uma crítica à instituição religiosa que,

por trás de uma aparência de respeito às normas cristãs de conduta, apóia, por meio

de alguns segmentos de sua organização interna, a violência e as injustiças de um

governo autoritário.

Andrea e Pons seguem seu passeio, pois o jovem prometera levá-la para

conhecer um secreto estúdio de artes plásticas onde ele e outros se reuniam para

pintar e discutir arte. Empolgada com a oportunidade de adentrar em um círculo de

artistas, a protagonista narra detalhadamente o novo espaço ao qual é apresentada:

Entramos por un portalón ancho donde campesinaba un escudo de piedra. En el patio, un caballo comía tranquilamente, uncido a un carro, y picoteaban gallinas produciendo una impresión de paz. De allí partía la señorial y ruinosa escalera de piedra, que subimos. En el último piso, Pons llamó tirando de una cuerdecita que colgaba en la puerta. Se oyó una campanilla muy lejos. Nos abrió un muchacho a quien Pons llegaba más abajo del hombro. Creí que sería Guíxols. (p. 144)

O largo portal de entrada, o personificado escudo familiar e a escada

adjetivada como señorial e ruidosa referem-se à imagem dos antigos casarões das

tradicionais e abastadas famílias barcelonesas, que deixaram as residências

deterioradas para habitar espaços mais retirados e amenos. A presença de alguns

animais dá ao lugar um ar bucólico que devolve à narradora a sensação de

tranqüilidade que o campo evoca. A casa tem um aspecto de abandono, pois não

há inquilinos e o espaço se presta apenas ao exercício artístico dos jovens amigos:

Le seguimos, atravesando un largo dédalo de habitaciones destartaladas y completamente vacías hasta el cuarto donde Guíxols tenía su estudio. Un cuarto grande, lleno de luz, con varios muebles enfundados – sillas y sillones - , un gran canapé y una mesita donde, en un vaso – como un ramo de flores -, habían colocado un manojo de pinceles.

Por todos los lados se veían las obras de Guíxols: en los caballetes, en la pared, arrimadas a los muebles o en el suelo… (p. 144-5)

O interior do casarão, com largos corredores, enormes quartos e salas que se

encontram vazios, sujos e descuidados, reflete exatamente as impressões de

abandono e do soberbo passado que a imagem do exterior sugere. O espaço

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determinado para a atividade artística, entretanto, é amplo e fartamente iluminado,

abundância que se estende no exagero de desnecessários móveis amontoados e de

quadros espalhados por todos os lados. Os pincéis, instrumentos da arte de Guíxols,

são logo comparados, pela imaginação poética da narradora, a um metafórico vaso

repleto de coloridas flores. Andrea se sente impressionantemente bem naquele

ambiente impregnado, por todos os recantos, de arte e de liberdade: as duas coisas

que ela mais preza em sua vida. No entanto, a contraposição do aspecto

envelhecido e estragado do velho casarão, em relação ao sentimento positivo da

protagonista ao adentrar um espaço de predomínio da arte, faz-nos pensar na

expectativa agradável que ela nutre em relação a essas novas possibilidades de

amizade com aqueles moços que, na verdade, têm uma ascendência muito distinta

de sua origem. Trata-se de filhos de famílias abastadas, jovens alienados

politicamente, tomados por um vazio existencial próprio da juventude de pós-guerra,

que nem sequer conseguem compreender. Para afastar o ressentimento pela nação

devastada e pela repressão instaurada, produzem uma arte medíocre. Ao contrário

do que imagina, nesse mundo de jovens que preferem esquecer o trauma a

vivenciá-lo criticamente, Andrea não encontrará verdadeiras amizades. Conseguirá

apenas superficiais envolvimentos, como era a tônica comum das relações

construídas em meio à escassez de alimento e de afeto do pós-guerra civil.

A decepção de Andrea com as novas amizades, em especial com a de Pons,

configura-se a partir da negatividade das descrições espaciais que seguem. Da

janela do estúdio dos amigos, ela observa a chegada do verão e seus maléficos

efeitos sobre Barcelona, como um anúncio de que, com a estação, chega uma difícil

etapa na vida da personagem:

La ciudad, cuando empieza a envolverse en el calor del verano, tiene una belleza sofocante, un poco triste. A mí me parecía triste Barcelona, mirándola desde la ventana del estudio de mis amigos, en el atardecer. Desde allí un panorama de azoteas y tejados se veía envuelto en vapores rojizos y las torres de las iglesias antiguas parecían navegar entre olas. Por encima, el cielo sin nubes cambiaba sus colores lisos. De un polvoriento azul pasaba a rojo sangre, oro, amatista. Luego llegó la noche. (p. 186)

A cidade personificada acolhe o verão deixando-se tomar pela sensação

térmica do calor. A antítese sinestésica belleza sofocante e o adjetivo triste são

signos indicativos de que a estação pode inaugurar uma etapa amarga da estada da

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protagonista naquela cidade. A cena vista da sacada da casa exprime, por meio da

figura vapores rojizos, o sufocante calor seco de Barcelona que cobre os telhados

das casas de uma espessa camada de ar, comparado pela protagonista a um mar.

O cromatismo com o qual a narradora descreve o pôr-do-sol recria gradativamente o

passar do tempo entre o final da tarde e o início da noite (polvoriento azul, rojo

sangre, oro, amatista).

Em toda a narrativa, é com o amigo Pons que Andrea chega o mais próximo

possível do que poderia ser um relacionamento amoroso. O jovem se mostra cada

vez mais apaixonado pela protagonista que, embora não corresponda aos seus

devotados sentimentos, trata-o com desvelo e carinho. Afinal, Pons é o único

homem que parece demonstrar verdadeiro interesse por Andrea, apesar de não

representar o ideal de beleza e virtude de um tradicional herói romanesco.

Um dos dias mais felizes de toda a estada da protagonista em Barcelona é o

dia da Fiesta de San Juan, celebrada em pleno verão na casa de Pons, por ocasião

de seu aniversário. Convidada, Andrea descreve o percurso de ida para a casa do

amigo, para aquele que seria seu primeiro baile e seu primeiro encontro romântico:

Me tapé los oídos, allí en la calle, camino de la casa de Pons, y levanté los ojos hacia las copas de los árboles. Las hojas tenían ya la consistencia de un verde durísimo. El cielo inflamado se estrellaba contra ellas.

Otra vez en el esplendor de la calle, volví a ser una muchacha de dieciocho años que va a bailar con su primer pretendiente. Una agradable y ligera expectación logró apagar completamente aquellos ecos de los otros.

Pons vivía en una casa espléndida al final de la calle Muntaner. Delante de la verja del jardín – tan ciudadano que las flores olían a cera y a cemento – vi una larga hilera de coches. (p. 201-2)

A narradora se priva da sensação auditiva porque esse sentido está

intimamente relacionado às infelizes recordações dos moradores da casa da Rua

Aribau, resgatados na sinestesia ecos de los otros. Distanciada daquele mundo à

parte, impedindo-o de contaminar sua alegria, Andrea contempla a rua da casa de

Pons, apenas sob o aspecto visual das árvores que trazem a coloração de um verde

durísimo e de um céu inflamado. Essa austeridade seca do verão barcelonês não

intimida a jovem que, ansiosa, cria, em seu imaginário, positivas esperanças que lhe

permitem esquecer, por alguns instantes, a mediocridade de seus parentes e de sua

casa. O endereço de Pons e a ostentação de sua residência indicam que Andrea

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está prestes a adentrar num mundo de riqueza e de conforto que contrasta

duramente com sua condição social e sua vida, resumida aos escombros da Rua

Aribau. A sagacidade da narradora observa a falta de vitalidade do jardim da

mansão, que simboliza a escassez de afetividade e a superficialidade das relações

entre as classes mais abastadas. Ao adentrar a casa do amigo é que a jovem tem a

exata noção da distância social que os separa:

Me acuerdo del portal de mármol y de su grata frescura. De mi confusión ante el criado de la puerta, de la penumbra del recibidor adornado con plantas y con jarrones. Del olor a señora con demasiadas joyas que vino al estrechar la mano de la madre de Pons y de la mirada suya, indefinible, dirigida a mis viejos zapatos, cruzándose con otra anhelante de Pons, que la observaba. (p. 202)

O acesso ao interior da residência segue os mesmos padrões de requinte e

beleza do exterior, em claro contraponto à insegurança de Andrea que não sabe

como agir ao ser recebida pela mãe de Pons e seu olor a señora con demasiadas

joyas, figura sinestésica que representa toda a riqueza da família em paradoxo com

a imagem dos viejos zapatos de Andrea, que marca a fronteira econômica que a

afasta do amigo. Pons, tão inseguro quanto Andrea, constata no olhar da mãe a

reprovação de sua escolha. A partir de então, o jovem ignora a presença de Andrea

que, frustrada, volta de seu “primer baile en el que no había bailado” (p. 209):

El aire de fuera resultaba ardoroso. Me quedé sin saber qué hacer con la larga calle Muntaner bajando en declive delante de mí. Arriba, el cielo, casi negro de azul, se estaba volviendo pesado, amenazador aun, sin una nube. Había algo aterrador en la magnificencia clásica de aquel cielo aplastado sobre la calle silenciosa. Algo que me hacía sentirme pequeña y apretada entre fuerzas cósmicas como el héroe de una tragedia griega.

Parecía ahogarme tanta luz, tanta sed abrasadora de asfalto y piedras. Estaba caminando como si recorriera el propio camino de mi vida, desierto. Mirando las sombras de las gentes que a mi lado se escapaban sin poder asirlas. Abocando en cada instante, irremediablemente, en la soledad.

Empezaron a pasar autos. Subió un tranvía atestado de gente. La gran Vía Diagonal cruzaba delante de mis ojos con sus paseos, sus palmeras, sus bancos. En uno de estos bancos me encontré sentada, al cabo, en una actitud estúpida. Rendida y dolorida como si hubiera hecho un gran esfuerzo. (p. 208-9)

Ao sair da casa de Pons, Andrea se sente reprimida pela sensação térmica do

calor que a sufoca, do mesmo modo como ela se sentira há pouco, na festa de Pons

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ante aqueles seres que realçavam sua inferioridade. A protagonista conhece bem

esse sentimento de diminuição, pois ele é o mesmo que a asfixia na mesquinhez da

casa da Rua Aribau. Nesse momento, as imagens da casa e da cidade são

equivalentes, pois expressam a mesma capacidade de opressão. A Rua Muntander

é personificada pela narradora que, de tão desolada pela recente rejeição, não sabe

que caminho tomar, ainda que pareça haver um único e decadente trajeto a seguir.

A imagem do céu escuro, sem nuvens, caracterizado pelos adjetivos pesado,

amenazador, aterrador e aplastado parece cumprir o mesmo papel tirano que o ar

abafado do verão cumprira. A rua, em silêncio, parece velar e respeitar a dor de

Andrea. Todo aquele ambiente reforça a amargura que dominara a protagonista

desde o momento em que ela deixara a casa do ex-amigo Pons, observado no

emprego dos adjetivos pequeña e apretada. O excesso de luz no céu sem nuvens

tortura a jovem que deseja aliviar nas ruas de Barcelona, todo o seu ressentimento,

sensação representada por meio da metáfora sed de asfalto y piedras. O trajeto de

retorno à casa é descrito pela narradora como uma simbologia para a sua própria

vida, vazia de sentido e de pessoas com quem efetivamente se relacionara, para

além da superficialidade das conveniências sociais. Os carros, o bonde lotado, a

Via Diagonal, as palmeiras e os bancos parecem assistir ao desfile da infelicidade de

Andrea que, ao se sentar, sucumbe a uma dor que ela tenta inutilmente suportar. Ao

se dirigir à Rua Aribau, prolonga-se sua tristeza:

Mil olores, tristezas, historias subían desde el empedrado, se asomaban a los balcones o a los portales de la calle de Aribau. Un animado oleaje de gente se encontraba bajando desde la solidez elegante de la Diagonal contra el que subía del movido mundo de la Plaza de la Universidad. Mezcla de vidas, de calidades, de gustos, eso era la calle de Aribau. Yo misma: un elemento más, pequeño y perdido en ella. (p. 209)

Nesse trecho, olores, tristezas e historias são substantivos que metaforizam a

coletividade de uma multidão de diferentes pessoas que surge pela avenida, nas

portas e nas janelas da Rua Aribau, naquele festivo Día de San Juan. Por meio da

metáfora un animado oleaje de gente, a alegria das pessoas que sobem a rua

contrasta com a infelicidade interior de Andrea. O substantivo solidez acompanhado

do adjetivo elegante personificam a charmosa altivez da Via Diagonal ao ser

invadida pela multidão que sobe do metafórico movido mundo de la Plaza de la

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Universidad. Novamente, substantivos são empregados para metaforizar a

diversidade de pessoas que circulam pela rua: vidas, calidades e gustos. Em meio

àquela gente, Andrea se sente anônima e insignificante: un elemento más, pequeño

y perdido en ella.

Assim como na passagem do frustrante primeiro e asqueroso beijo roubado

por Gerardo, assim também é a cidade de Barcelona que assiste, como cúmplice, a

melancolia de Andrea ao ser rejeitada em seu primeiro baile, vítima de sua condição

social desprestigiada. Barcelona é, na verdade, mais que cúmplice: é testemunha

das desventuras, é confidente das amarguras e é o refúgio onde Andrea busca o

bálsamo para a sua dor de adolescente incompleta e impotente diante da banalidade

de sua própria vida.

3.3) El Barrio Chino: um mundo demoníaco dentro de Barcelona

Na análise simbólica do espaço da cidade de Barcelona, reconstituído

ficcionalmente pela narradora no romance Nada, observamos que a visão da

protagonista sobre o ambiente urbano se altera à medida que sua relação com este

lugar se intensifica.

Durante os primeiros momentos da estada de Andrea na cidade, a

representação sígnica é positiva, pois se opõe ao ambiente interior da casa da Rua

Aribau, lugar no qual a personagem se subjuga a um mundo de relações

deturpadas, ante as quais é totalmente impotente. Nesse período, o espaço da

cidade atua como lugar de escapismo, como forma de negação dos problemas

vividos num contexto doméstico de violência e de repressão. É nos diversos

ambientes da capital catalã que Andrea se transforma em um ser humano em busca

da plenitude.

Entretanto, ao estreitar laços com seres que compõem esse espaço urbano, a

protagonista se decepciona com a frivolidade e a eventualidade das relações entre

pessoas que, educadas para a contenção dos excessos sentimentais, se privam da

intensidade natural da afetividade humana. Ao se desapontar com os amigos e, de

um modo especial, com o universo masculino, até então desconhecido, a

protagonista apresenta, por meio da melancolia das relações estabelecidas em sua

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micro-esfera ficcional, uma visão negativa sobre a sociedade espanhola da época,

afetada em seu convívio cotidiano de sentimentos degenerados.

Na instância narrativa, é a partir de descrições sombrias do ambiente urbano

que se plasma a infelicidade de uma personagem que parece encontrar na cidade, a

reciprocidade para uma impotência e uma incompletude que são características não

apenas de sua existência ficcional, como também do contexto social que a envolve.

Contudo, a cidade de Barcelona não alcança nas descrições, até este

momento analisadas, a completa degradação de sua imagem ante os olhos da

narradora. O espaço urbano da capital catalã guarda mazelas que a protagonista

revela ao leitor quando, ao lado do tio Juan, empreende uma desagradável incursão

pelo decadente Barrio Chino, um recanto onde a cidade esconde sua miséria mais

aviltante, um espaço excludente que revela a prostituição, a criminalidade, a

subversão e a depreciação.

Para analisar essas novas figuras que se apresentam, retomamos o conceito

de imagens demoníacas, criado por Frye e empregado no capítulo anterior nas

analogias encontradas para a simbologia da ambiência da casa da Rua Aribau.

Neste momento, verificamos como a imagem da cidade se aproxima do

inferno alegórico sugerido pela residência da família de Andrea, ao apresentar todo

um conjunto de elementos indesejáveis, um mundo onde a culpa encontra as mais

sádicas formas de expiação, um universo de aprisionamento, de sofrimento e de

confusão mental. Uma atmosfera na qual o trabalho, ao invés de ser instrumento da

construção da dignidade do homem, transforma-se em veículo de humilhação. A

partir das imagens do Barrio Chino de Barcelona, vemos como os conflitos internos

da alma humana, provocados por uma sociedade em desequilíbrio, materializam-se

na configuração de um ambiente ficcional. Os personagens de Andrea e Juan são

levados a essa outra face da cidade por Gloria que sai em direção à casa de sua

irmã na periferia de Barcelona para, em um jogo de cartas, tentar conseguir o

dinheiro para comprar os remédios de que necessita o filho doente. Juan,

inconformado com a própria impotência de chefe de família fracassado que sequer

consegue arcar com as despesas da enfermidade do filho, num arroubo de ódio,

parte para o Barrio Chino à procura da esposa. Temendo as possíveis reações

violentas do filho, a avó de Andrea ordena-lhe que siga o tio e o impeça de cometer

qualquer absurdo: “Corrí en su persecución como si en ello me fuera la vida.

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Asustada. Viendo acercarse los faroles y las gentes a mis ojos como estampas

confusas.” (p. 161)

Por meio da metáfora comparativa como si en ello me fuera la vida, Andrea

narra o esforço físico e emocional que emprega para seguir o tio pelas ruas da

cidade. Atemorizada pelo que provavelmente veria naquela perseguição infeliz, ela

se desespera com o tumulto visual das luzes dos faróis iluminando as pessoas que

encontra pelo caminho, uma transtornada imagem metaforizada na expressão

estampas confusas, a confusão mental que menciona Frye ao descrever as

representações próprias das imagens demoníacas. Ao deixar a Rua Aribau, Andrea

mal pode imaginar o que a espera nos instantes narrados a seguir:

Le vi dar unos pasos hacia la Ronda de San Antonio y le seguí. De pronto dio la vuelta tan de prisa que nos quedamos frente a frente. Sin embargo, él pareció no darse cuenta, sino que pasó a mi lado en dirección contraria a la que antes había llevado, sin verme. Otra vez llegó a la Plaza de la Universidad y ahora se metió por la calle de Tallers. Por allí no encontrábamos a nadie. Los faroles parecían más mortecinos y el pavimiento era malo. Juan se volvió a detener en la bifurcación de la calle. Recuerdo que había una fuente pública allí, con el grifo mal cerrado y que en el empedrado se formaban charcos. Juan miró un momento hacia el ruido del cuadro de luz que enmarcaba la desembocadura de la calle de las Ramblas. Luego volvió la espalda y torció por la calle de Ramalleras, igualmente estrecha y tortuosa. Yo corría para seguirle. De un almacén cerrado vino olor a paja y a fruta. (p. 161-2)

Toda a parte que narra a incursão de Andrea e Juan pelo Barrio Chino pode

ser entendida como a metáfora de um inferno. O desespero do tio cego de temor

pela saúde do filho e de ódio pela esposa, o deixa perdido, angustiado e sem

direção. Os indícios de que os personagens adentram uma área desprestigiada da

cidade estão expressos na descrição que relata a má iluminação, a má conservação

dos bens públicos, a sujeira e o mau cheiro. A riqueza arquitetônica de algumas

partes do centro de Barcelona não existe naquele lugar periférico onde as ruas são

mal projetadas, surgidas aleatoriamente como fruto do crescimento desordenado e

da ocupação ilegal dessas zonas.

O trajeto de Andrea e Juan se torna cada vez mais grotesco:

Cruzamos, atravesándolo en parte, el mercado de San José. Allí nuestros pasos resonaban bajo el alto techo. En el recinto enorme, multitud de puestos cerrados ofrecían un aspecto muerto y había una

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gran tristeza en las débiles luces amarillentas diseminadas de cuando en cuando. Ratas grandes, con los ojos brillantes como gatos, huían ruidosamente a nuestros pasos. Algunas se detenían en su camino, gordísimas, pensando tal vez hacernos cara. Olía indefiniblemente a fruta podrida, a restos de carne y pescado… Un vigilante nos miró pasar con aire de sospecha al salir nosotros a las callejuelas de detrás, corriendo como íbamos uno detrás del otro. (p. 162)

Na amplitude do grande edifício vazio, a imagem sonora dos passos dos

personagens produz um efeito auditivo sombrio. Metaforicamente, os

estabelecimentos comerciais do mercado fechados devido ao horário, sugerem um

ar de morbidez acentuado pela figura visual melancólica de uma luz opaca.

Contribuem com a descrição repugnante daquele ambiente a presença das grandes

ratazanas, execrados animais que povoam um lugar que desprende odores de

alimentos em decomposição. Essa falta de higiene e cuidado simboliza a própria

degradação do ambiente e das pessoas que o habitam em seu cotidiano.

Al llegar a la calle del Hospital, Juan se lanzó a las luces de las Ramblas, de las que hasta entonces parecía haber huido. Nos encontrábamos en la Rambla del Centro. (…) Juan entró por la calle del Conde del Asalto, hormigueante de gente y de luz a aquella hora. Me di cuenta de que esto era el principio del barrio chino. “El brillo del diablo”, de que me había hablado Angustias, aparecía empobrecido y chillón, en una gran abundancia de carteles con retratos de bailarinas y bailadores. Parecían las puertas de los cabarets con atracciones, barracas de feria. La música aturdía en las oleadas agrias, saliendo de todas partes, mezclándose y desarmonizando. Pasando de prisa porque me impedía ver a Juan, me llegó el recuerdo vivísimo de un carnaval que había visto cuando pequeña. La gente, en verdad, era grotesca: un hombre pasó a mi lado con los ojos cargados de rímel bajo un sombrero ancho. Sus mejillas estaban sonrosadas. Todo el mundo me parecía disfrazado con mal gusto y me rozaba el ruido y el olor a vino. Ni siquiera estaba asustada, como aquel día en que, encogida junto a la falda de mi madre, escuché las carcajadas y las ridículas contorsiones de las máscaras. Todo aquello no era más que un marco de pesadilla, irreal como todo lo externo a mi persecución. (p. 162-3)

A perseguição de Andrea a Juan continua. Este enfrenta a iluminada e

agitada Rua de Las Ramblas, modo como são chamadas as ruas dominadas pela

prostituição e pela subversão. Começa ali o Barrio Chino, espaço de Barcelona no

qual, à época, reuniam-se prostitutas, homossexuais travestidos, artistas de baixa

estirpe e diversos estabelecimentos de diversão barata: prostíbulos, casas de jogos

e cabarés. O inferno irresistível descrito por Angustias, aos olhos da narradora,

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parece miserável e feio, características determinadas pelo uso dos adjetivos

empobrecido e chillón. As diferentes e estridentes músicas que emanam das casas

noturnas, a iluminação às vezes turva e às vezes exagerada e a vulgaridade das

pessoas que freqüentam o lugar sugerem uma imagem confusa.

O Barrio Chino é uma prova de que, por trás da falsa imagem que a

propaganda oficial espanhola tentava difundir de que as grandes cidades

prosperavam, recuperando-se da crise e se reconstruindo, as periferias escondiam

graves mazelas. Numa velocidade mais intensa que a da reconstrução das zonas

centrais, cresciam as zonas suburbanas, conferindo às cidades um aspecto cada

vez mais miserável, sustentado pela perversão, pelo vício e pelos negócios

indevidos. Essa incursão de Andrea pelo Barrio Chino, revela-nos uma face obscura

da realidade social de Barcelona durante os anos do imediato pós-guerra.

A perseguição de Andrea e Juan é longa e o ponto culminante do desespero

da narradora se dá no momento em que ela presencia uma briga entre o tio e um

homem bêbado com quem Juan havia se chocado:

Luego me encontré sorprendida por la animación que súbitamente llenó la calle. Dos o tres hombres y algunos chiquillos, que parecían brotados de la tierra, rodearon a los que luchaban. Una puerta entreabierta lanzaba a la calle un chorro de luz que me cegaba. (…) encima de aquel infierno – como si sobre el cielo de la calle cabalgaban brujas – oíamos voces ásperas, como desgarradas. Voces de mujeres animando a los luchadores con sus pullas y sus risas. Alucinada, me pareció que caras gordas flotaban en el aire, como los globos que a veces dejan escapar los niños.

Oí un rugido y vi que Juan y su enemigo habían caído revolcándose sobre el barro de la calle. (p. 165)

As pessoas que surgem naquele momento para assistir a briga entre Juan e o

homem bêbado formam uma moldura de terror para a cena que aterroriza a

protagonista. Aqueles seres assumem ante os olhos de Andrea aspectos

sobrenaturais: ora são como entidades inumanas advindas do subterrâneo, ora do

imaginário infernal da narradora. A figura sonora de emissão de vozes de almas que

parecem estar fora de seus corpos são, na verdade, as vozes das pessoas que

aparecem atraídas pela violência gratuita da passagem. O personagem Juan que já

havia sido apresentado como um homem completamente degradado pelo fracasso

em todos os segmentos de sua vida, encontra nesse trecho a sua total derrocada ao

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sucumbir à imundície do Barrio Chino, colocando-se no mais baixo nível humano, o

limite do chão.

Nesse ponto da narrativa no qual as descrições do Barrio Chino demonstram

um lugar onde impera a sujeira, o ar fétido, a confusão de uma iluminação

freneticamente alternada com a escuridão e a alternância entre a multidão e a

solidão de pessoas vulgares, apresentam um lado de Barcelona que se equipara ao

inferno alegórico da casa da Rua Aribau, conforme explica Santos:

Ali, Andrea descobre que o demoníaco não estava apenas no espaço doméstico, mas também no espaço público, em todas as partes, como se o pós-guerra em si se configurasse como um mundo demoníaco. (2005, p.94).

3.4) O adeus a Barcelona

O ambiente interno e deteriorado da casa da rua Aribau é símbolo de todo o

negativo da estada de Andrea na cidade de Barcelona. Sua frustração, ante os

parentes perturbados mentalmente pela violência da guerra e pela recessão do

imediato pós-guerra, é constatação latente entre as paredes do edifício arruinado.

Entretanto, esse não é o único espaço a servir de cenário para as frustrações de

Andrea. A cidade de Barcelona assiste às suas tentativas mal sucedidas de

relacionamento com o sexo oposto: o asqueroso beijo roubado por Gerardo e a dura

rejeição de Pons, impotente diante do preconceito de sua família, ante sua amiga

pertencente a uma classe social inferior.

Andrea, em seus longos e prazerosos passeios pela cidade, conhece o

melhor de Barcelona, mas também o seu pior, como na noite em que avidamente

persegue seu tio Juan pelo decadente Barrio Chino. Aos poucos, ela perde as

esperanças positivas que tinha ao desembarcar na estação ferroviária, no outono de

1939, e começa a perceber que, para seguir vivendo, precisa deixar a cidade que

aprendera a amar e onde descobrira belezas infinitas:

Estaba en el puerto. El mar encajonado presentaba sus manchas de brillante aceite a mis ojos; el olor a brea, a cuerdas, penetraba hondamente en mí. Los buques resultaban enormes con sus altísimos costados. A veces, el agua parecía estremecida como por el coletazo de un pez, una barquichuela, un golpe de remo. Yo estaba allí aquel mediodía de verano. Desde alguna cubierta de

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barco, tal vez, unos nórdicos ojos azules me verían como minúscula pincelada de una estampa extranjera… Yo, una muchacha española, de cabellos oscuros, parada un momento en un muelle del puerto de Barcelona. Dentro de unos instantes la vida seguiría y me haría desplazar hasta algún otro punto. Me encontraba con el cuerpo enmarcado en otra decoración … (p. 236)

Do porto, Andrea contempla o mar. Não o mar alto e aberto que toca o

horizonte, mas sim um personificado mar encajonado, fechado, cercado pelos limites

de um porto que atribui às águas um brilho artificial. Sinestesicamente, a narradora

se sente inundada pelos odores típicos do porto: o alcatrão das madeiras úmidas

dos barcos e das cordas. Os também personificados navios parecem enormes, ante

seus olhos, e podem ser lidos, assim como todo o porto, como signos que

simbolizam a partida. A inércia da cena estende-se à estagnação da água do mar

movida apenas pela passagem de pequenas embarcações. Na letargia daquele

instante contemplativo, Andrea imagina a si mesma como uma personagem de um

retrato, de uma pintura na qual ela aparece reduzida pela distância, emoldurada pelo

cais do porto, ante os olhos de um fictício marinheiro que a fitaria ao longe. A

necessidade de mudança de cenário para o seu corpo como personagem do quadro

é o indício de que Barcelona não serve mais como pano de fundo para sua vida, que

deve partir em busca de novos espaços. Andrea continua seu passeio como quem

se despede do lugar querido:

El bar donde me sentaba era una casa de dos pisos, teñida de añil, adornada con utensilios náuticos. Yo me coloqué en una de las mesitas de la calle y casi me parecía que el suelo, bajo mí, iba a empezar a trepidar impulsado por algún oculto motor y a llevarme lejos…, a abrirme nuevamente los horizontes. Este anhelo repetido siempre en mi vida que, con cualquier motivo, sentía brotar. (p. 236-7)

Podemos ler a tempestade mencionada no trecho como símbolo das

alterações que Andrea pressente para a própria vida, embora ainda não consiga

defini-las. Sua intuição de mudança é tão forte que ela sente que a qualquer

momento pode ser retirada do lugar onde se encontra, exatamente como está,

sentada na mesa de um bar, para ser dali levada. A protagonista entende finalmente

que não há mais oportunidade de cumprir suas expectativas na cidade de Barcelona

que, como um ser eternamente em busca de novas experiências, precisa partir a

procura de um novo lugar: afinal essa parece ser a dialética de sua existência.

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Desde o momento em que entende essa necessidade visceral de partir,

Andrea passa a negar os belos trajetos da cidade para circular pelas regiões que a

convencem da obrigação de deixar a capital catalã:

Para ahuyentar a los fantasmas, salía mucho a la calle. Corría por la ciudad debilitándome inútilmente. Iba vestida con mi traje negro encogido por el tinte y que cada vez me quedaba más ancho. Corría instintivamente, con el pudor de mi atavío demasiado miserable, huyendo de los barrios lujosos y bien tenidos de la ciudad. Conocí los suburbios con su tristeza de cosa mal acabada y polvorienta. Me atraían más las calles viejas. (p. 268)

Por sua tristeza interior e por seu aspecto de miséria exterior, a protagonista

evita os passeios pelos lugares belos e prósperos da cidade, buscando estar em

ambientes que se harmonizam com seu estado de espírito: a empobrecida e

envelhecida periferia de Barcelona, lugar onde sua melancolia e sua má

apresentação exterior permanecem anônimas. Nessa passagem, a descrição da

cidade aproxima-se da ambiência do interior da casa da Rua Aribau, o que para

Andrea culmina no desejo de deixar de viver:

Un atardecer oí en los alrededores de la Catedral el lento caer de unas campanadas que hacían la ciudad más antigua. Levanté los ojos al cielo, que se ponían de un color más suave y más azul con las primeras estrellas y me vino una impresión de belleza casi mística. Como un deseo de morirme allí, a un lado, mirando hacia arriba, debajo de la gran dulzura de la noche que empezaba a llegar. Y me dolió el pecho como si estuviese oliendo un aroma de muerte y me pareciera bueno por primera vez, después de haberme causado terror… Cuando se levantó una fuerte ráfaga de brisa, yo estaba aún allí, apoyada contra una pared, entontecida y medio estática. Del viejo balcón de una casa ruinosa salió una sábana tendida, que al agitarse me sacó de mi marasmo. Yo no tenía la cabeza buena aquel día. La tela blanca me pareció un gran sudario y eché a correr… Llegué a la casa de la calle de Aribau medio loca. (p. 268)

A imagem sonora evocada pelas igrejas antigas do centro de Barcelona atrai

Andrea para a Catedral, marco espacial de sua auto-liberação para a

experimentação urbana. Ao aproximar-se da Igreja e ao voltar os olhos para o céu,

que exibe uma figura cromática de intensificação do azul, com o realce das primeiras

estrelas do início da noite, a personagem entra em um estado de êxtase,

metaforizado na impresión de belleza casi mística, como se ela se entregasse a um

processo de transição sobrenatural. Pela primeira vez, Andrea revela um forte

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desejo de abandonar sua existência e essa ânsia vem imediatamente acompanhada

de um sentido de tranquilidade, expresso na sinestesia dulzura de la noche. Ao

inspirar o sinestésico aroma de muerte, a jovem sente uma dor a pressionar-lhe o

peito, à qual ela não oferece resistência e se entrega sem receio.

Depois de ultrapassar a fronteira da morte metafórica, na qual Andrea deixa

de existir para Barcelona e a cidade também parece deixar de existir para ela, a

personagem passa por uma espécie de ressurreição, ao ser tocada por uma forte

brisa e ao ser despertada pelo tremular de um branco lençol, comparado ao sudário,

que a alerta e a retira do estado de semi-inconsciência.

A morte e a ressurreição simbólicas são marcos de mudanças na vida de

Andrea. Impossibilitada de encontrar a plenitude existencial na cidade de Barcelona,

onde a infinita beleza de suas paisagens é incapaz de se sobrepor ao deteriorado

mundo da casa da rua Aribau e às frustrações vividas pela jovem naquela dura

transição entre a adolescência e a vida adulta, a protagonista é salva pela única

pessoa que representa em sua vida o pólo de positividade. Ena e sua família se

mudariam no fim do verão para Madrid, onde o pai da jovem se ocuparia dos

negócios do sogro. A amiga propõe a Andrea que se mude com sua família, que se

transfira para uma universidade madrilenha e que trabalhe com seu pai. Esta é a

possibilidade de redenção que Andrea encontra depois de um ano de decepções e

de sofrimentos.

Ao se despedir da casa e da cidade, a narradora não recria as mesmas

ingênuas expectativas que alimentara quando da sua vinda do interior para

Barcelona:

Estaba ya vestida cuando el chófer llamó discretamente a la puerta. La casa entera parecía silenciosa y dormida bajo la luz grisácea que entraba por los balcones. No quería despertarla.

Bajé las escaleras, despacio. Sentía una viva emoción. Recordaba la terrible esperanza, el anhelo de vida con que las había subido por primera vez. Me marchaba ahora sin haber conocido nada de lo que confusamente esperaba: la vida en su plenitud, la alegría, el interés profundo, el amor. De la casa de la calle de Aribau no me llevaba nada. Al menos, así creía yo entonces. (p. 275)

O apelo sonoro do motorista de Ena desperta Andrea do pesadelo que até

então significara, para ela, a estada na casa da Rua Aribau. A residência, como na

maioria das descrições narrativas, aparece personificada nessa cena de despedida,

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silenciosa e adormecida, ofuscada por uma figura cromática cinza, que a deixa

desprovida da vibração da cor e da vida. Ao optar por partir sem acordar a casa,

Andrea deixa clara sua vontade de sair sem ser notada por qualquer um daqueles

seres irrelevantes e infelizes de sua família, que, afinal, ignoraram sua presença ao

longo de todo aquele ano. Na verticalidade ascendente dos degraus da escada no

dia da chegada de Andrea, estavam representados os sonhos e os planos

idealizados para a sua estada em Barcelona. Entretanto, ao descer a mesma

escada, a jovem carrega uma outra bagagem, agora mais pesada, pois acumula

uma série de frustrações e desilusões. Ao deixar a casa da Rua Aribau, Andrea leva

uma herança indesejável: a descoberta de que a vida, na maioria das vezes, é

construída de profundos e dolorosos fracassos e frustrações, muito mais que de

alegrias efêmeras.

Numa narrativa na qual a caracterização espacial é privilegiada, é no

ambiente que se representa a ação de despedida. O acalentador frescor matinal,

que conserva a umidade da noite no chão e nas plantas, sugere um tímido

reconforto a Andrea que vislumbra, a partir dali, a possibilidade de um recomeço. No

ato de partida, a protagonista volta um último olhar em direção à casa e à cidade

que guardam secretamente suas decepções mais íntimas:

El aire de la mañana estimulaba. El suelo aparecía mojado con el rocío de la noche. Antes de entrar en el auto alcé los ojos hacia la casa donde había vivido un año. Los primeros rayos del sol chocaban contra sus ventanas. Unos momentos después, la calle de Aribau y Barcelona entera quedaban detrás de mí. (p. 276)

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Considerações Finais

Conforme a revisão crítica realizada, no primeiro capítulo deste estudo, sobre

a obra Nada da escritora Carmen Laforet, reafirmamos importância para o panorama

da narrativa espanhola produzida nos primeiros anos da década de 1940,

imediatamente após o desfecho do violento conflito civil que devastou o país.

Embora desprovido de qualquer comprometimento político e de críticas

pungentes em relação ao regime instaurado com a vitória nacionalista, o romance

possui um manifesto caráter denunciativo que se materializa nas características de

sua estrutura narrativa, como por exemplo, no tom testemunhal atribuído à

narradora, que se abstém de seu protagonismo em favor de evidenciar a violência

constatada no seu entorno sócio-histórico. Ao fazer isso, Andrea revela, de maneira

sutil, os fatos da guerra e do pós-guerra na perspectiva de quem sofria suas

conseqüências na vivência cotidiana.

A paulatina exposição a essa agressividade silenciosa e consentida, redunda

em outro aspecto da composição romanesca: a configuração dos personagens que,

em Nada, são seres psicologicamente instáveis, infelizes vítimas de um sistema

castrador que os encaminha a um sentimento de culpabilidade e responsabilidade

pelas próprias frustrações e falta de perspectivas.

O discurso narrativo, por vezes demasiado obscuro, abafado e escasso de

diálogos, é mais um elemento constitutivo que reflete a estagnação da sociedade.

O enredo fragmentado e organizado por meio de relatos de ações

corriqueiras, vulgares e irrelevantes, tem sua monotonia interrompida apenas pelas

violentas e injustificáveis desavenças domésticas ocorridas entre os familiares de

Andrea.

Os motivos para esses desentendimentos acontecem pelas mais diversas

razões: quer seja pela repressão de Juan ao falso moralismo da irmã Angustias que

se coloca, por sua vez, em posição de superioridade em relação aos demais

familiares; quer seja pelos ressentimentos mal resolvidos, no passado, entre os

irmãos que se acumulam e transbordam em intensas discussões; quer seja ainda

pela frustração de Juan como chefe de família desempregado e humilhado, que

descarrega seu amargor numa violenta relação conjugal com Gloria.

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O tempo do romance é um elemento estrutural de difícil delimitação, devido à

insuficiência de referências e marcos temporais, o que indica certa relação com o

tempo histórico que o contextualiza, pois transcorre numa lentidão constante e

alienante, própria da sociedade espanhola da época.

Entre os diversos elementos da ficção como o foco narrativo, as personagens,

o discurso e o tempo, foi ao espaço que dedicamos uma análise mais detalhada e

aprofundada, buscando verificar em que medida a autora o escreveu dando conta de

exprimir as tensões de uma sociedade em conflito.

Dois ambientes se tornaram, na perspectiva da nossa análise, símbolos

alegóricos recorrentes: a casa da Rua Aribau e a cidade de Barcelona, subdividida

em relatos dos seus mais diversos lugares.

Por meio do olhar perspicaz e detalhista da narradora, que construía

autênticas imagens expressionistas e impressionistas para as descrições dos

ambientes por meio de personificações, metáforas e sinestesias sonoras, táteis,

visuais, olfativas e até mesmo gustativas, esses espaços foram se configurando e

revelando sua funcionalidade interpretativa no corpo do texto literário.

O primeiro dos ambientes oferecidos pela descrição da narradora não era um

espaço real; era um lugar imaginado, era a idealização positiva que a protagonista

alimentava em sua memória infantil do que seria morar na cidade de Barcelona, e o

que isso significaria para ela: uma promessa de prosperidade. Entretanto, a

positividade acalentada na instância onírica começou a se desfazer no momento em

que Andrea reviu a casa da família. Os escombros mostravam as marcas deixadas

com o passar do tempo, o empobrecimento da família e a completa desgraça vivida

durante e após a guerra civil. A residência, no marco do presente narrativo, é

exatamente oposta à imagem que a protagonista preservara em suas recordações

infantis. O crescimento da cidade de Barcelona, o transcurso do tempo, a morte do

patriarca e o conseqüente empobrecimento da família provocado pela guerra,

transformaram um espaço outrora aprazível e aconchegante, num ambiente em

ruína no qual predominavam a escuridão, a sujeira, a desordem, o desconforto e um

ar fétido e sufocante.

Esses elementos materiais da composição do espaço narrativo do interior da

casa da Rua Aribau, permitem-nos estabelecer relações com o comportamento

desequilibrado dos seres que habitam a residência, entre os quais impera a

escassez de afeto e compreensão e abundam o egoísmo, a indiferença, a

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humilhação e o preconceito. Essa infelicidade coletiva que, se traduz nos absurdos

desentendimentos entre os familiares de Andrea, na perspectiva das micro-relações

humanas, encontra no interior da residência um espaço específico: o ambiente da

sala de jantar, lugar no qual a falta do alimento culmina na falta de respeito à

dignidade humana.

O desequilíbrio de cada personagem, suas culpas, frustrações e dores estão

representados em cada ambiente que corresponde à sua individualidade, como se o

espaço exterior fosse um retrato fiel ao interior de cada alma humana subjugada ao

purgatório que a residência representa. Embora não possamos afirmar que o

ambiente é quem determina as atitudes dos seres ficcionais, consideramos que sua

organização descritiva é consoante ao perfil, ao comportamento e ao destino de

cada personagem. Andrea, por exemplo, é fadada à indiferença, por isso é excluída

daquele mundo ao não ter o direito de possuir, no interior da residência, um lugar

especificamente seu. Nessa narrativa, na qual a configuração do espaço é tão

relevante, compreendemos melhor os personagens pela análise descritiva dos

espaços que ocupam do que pela própria definição individual de cada um. A

ausência de um personagem, como a de Angustias e de Román é constatada nas

modificações de seus espaços individuais.

Desse modo, percebemos que, na materialidade descritiva do espaço interior

da residência da grotesca família de Andrea, está recriada, por meio de um processo

metonímico, a própria sociedade espanhola de pós-guerra, refletindo naquele

microcosmo doméstico a pobreza, a repressão das liberdades, o cerceamento

político e a miséria espiritual de pessoas criadas para a economia da energia vital e

afetiva. O peso negativo da imagem da casa permite-nos aproximá-la do conceito de

Mundo demoníaco de Frye.

Quanto à terceira parte de nossa análise, na qual estudamos as descrições

dos ambientes externos que compõem o espaço urbano de Barcelona, constatamos

que a oposição entre os pólos negativo e positivo sugerida, à princípio, pela alegoria

dos símbolos da casa e da cidade, é um eixo contrastável que não se sustenta ao

longo de toda a estrutura narrativa.

Andrea depositara esperanças de uma vida mais intensa e significativa na

cidade que lhe é apresentada, primeiramente, por meio do olhar limitador de

Angustias. Esta é quem restringe o direito da sobrinha de experimentar a cidade da

forma livre, como ela planejara. Esse aprisionamento imposto pela tia simboliza a

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repressão sofrida por uma população dominada por um discurso de subserviência e

de condenação ao desperdício, tanto financeiro como emotivo. Somente quando

Angustias teve sua credibilidade moral afetada pela descoberta do seu adultério, foi

que Andrea se fez verdadeiramente livre para conhecer e viver Barcelona na

amplitude daquilo que tinha para oferecer.

Por meio dos trajetos executados e descritos pela narradora, o leitor de Nada

é apresentado a uma cartografia da cidade, delineada por tons positivos advindos da

contemplação das paisagens naturais e arquitetônicas. Se, no ambiente interior da

casa da Rua Aribau, a caracterização dos personagens é apreendida a partir da

análise dos espaços que os mesmos ocupam, na exterioridade da cidade, o tempo,

outro elemento da estrutura do romance, tem suas transições marcadas nas

modificações observadas na ambiência. Justamente com a transição temporal entre

a primavera e o verão, transformaram-se as significações positivas que o espaço

urbano de Barcelona oferecia à protagonista que, a partir de então, é submetida a

uma série de frustrações.

A mágoa, para com a amiga Ena e para com o universo masculino,

representados por meio dos personagens Gerardo e Pons, tem como cúmplice a

cidade, único espaço a testemunhar as decepções da narradora que reflete em suas

descrições, a negatividade de suas desilusões íntimas. Gradativamente, o olhar

ingênuo de Andrea sobre a cidade, da qual via apenas beleza e lirismo, começava a

ganhar perspicácia para enxergar também as mazelas de uma grande metrópole

que, como poucas outras, sentia o desgaste da destruição e da dificuldade da

reconstrução. A decepção da protagonista com o espaço urbano da cidade se

completa na noite em que ela conhece de fato a parte que concentra o que havia de

pior na capital catalã: o Barrio Chino.

Ignorada, incompreendida e subestimada pela mediocridade dos parentes,

humilhada e diminuída pelas superficiais amizades de condição social superior,

Andrea se absteve de viver o belo que a cidade lhe oferecera inicialmente.

Restringiu-se a percorrer as degradadas periferias barcelonesas, como se aquele

entorno fosse o único lugar capaz de materializar sua infelicidade, até o momento

em que ela descobre que, para se dar o direito de viver uma existência minimamente

digna, tem que deixar o lugar que outrora fora a idealização perfeita do seu futuro.

Mais do que símbolos metonímicos do sofrimento cotidiano da sociedade

espanhola de pós-guerra, os ambientes ficcionais do romance Nada pontuam, por

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meio da trajetória individual de Andrea, uma adolescente que atravessa o doloroso

processo de transição para a vida adulta, a decepção coletiva de um povo que, com

o fracasso de suas ideologias políticas, transformara o país num labirinto de onde

não era possível descortinar nenhuma saída.

O espaço familiar decadente mostra o ambiente asfixiante de uma nação

destruída em sua essência humana. A necessidade em relatar aquilo que parecia

não encontrar na linguagem uma forma expressiva, a autora executa um exercício

de resistência, conforme afirma Alfredo Bosi:

…A escrita de resistência, a narrativa atravessada pela tensão crítica, mostra sem retórica nem alarde ideológico, que essa “vida como ela é” é, quase sempre, o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida. (...)

A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextrincável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico. Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à teia das intuições. (...) (Bosi, 2002, p. 34, 35)

Quando exercida dentro de um panorama de violenta repressão, a resistência

torna-se um ato de coragem, o que nos ajuda a determinar o valor dessa obra. Um

romance que ultrapassa o estritamente literário para se constituir um acontecimento

social, se pensarmos que, até o final da guerra civil, poucas escritoras espanholas

ocupavam posição de destaque no campo das letras no país: um espaço de domínio

estritamente masculino. Com Nada e Laforet, surge e ganha corpo a consciência

social e política de todo um universo literário feminino, capaz de testemunhar a

existência traumática do pós-guerra. Ao apresentar em sua narrativa uma heroína

anti-convencional contrário a um dominante perfil feminino submisso, Laforet mostra

a percepção da mulher até então marginalizada por uma cultura predominantemente

machista. Desse modo, a autora reivindica e conquista a inclusão feminina num

cenário cultural no qual imperavam a censura, a religiosidade extremada e uma

ideologia política moralista, tradicionalista e conservadora.

Nada, em fim, é uma referencia figurada a uma parte da história da

sociedade, da política e das relações humanas de um estado, no qual, a opressão

era o elemento motriz de sua manutenção.

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Nessa narrativa, o espaço é eleito como objeto significativo para representar o

que o discurso oficial propagava, reforçando a crise da legitimação do indivíduo e a

desarticulação de valores de um país. Dessa maneira, a autora consegue instituir

um vínculo entre texto literário e contexto social, evidenciado por meio do estudo de

um dos elementos estilísticos internos à composição romanesca – o espaço, que em

sua composição traduz a conjuntura histórica que o envolve, exemplificando o que

explica Antonio Candido:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (Candido, 2004, p. 4)

A memória coletiva representada numa linguagem metafórica e metonímica

coloca em evidência uma realidade simbólica que é própria da literatura.

A partir da análise de Nada, entendemos a Espanha de pós-guerra e

constatamos que esse processo nos é possível, não apenas por intermédio da

história, como também por meio da literatura.

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