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A Sombra da Verdade

A Sombra da Verdade · fachada da Catedral. De seguida, fez o sinal da cruz. A sua mão, com uma pele muito clara, sobressaía por entre as largas mangas, assim como um crucifixo

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A Sombra da Verdade

L u í s F e r r e i r a

ASombra daVerdade

thriller

Ficha Técnica:

Título – A Sombra da VerdadeAutor – Luís FerreiraComposição gráfica – EGOImagens da Capa e Contracapa – depositphotos© e Leon F. Cabeiro©Mapa de Santiago e planta da Catedral – Wagner & Debes, Leipzig, Alemanha, 1929Fotografia do autor – Jorge Manuel©Revisão de Texto – EGOPaginação – EGOEdição – EGO1ª Edição – Abril 2018, LisboaISBN – 978-1987750928

Impressão e Acabamento – Tipografia Lousanense

©2018, Luís Ferreira e EGO Editora

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Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida,

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sem prévia autorização por escrito da Ego Editora.

Para a minha mulher, Leonore para a minha filha, Marisa

“Não há factos eternos, como não há verdades absolutas.” Friedrich Nietzsche

“Por esse tempo, o rei Herodes maltratou alguns membros da Igreja.

Mandou matar à espada Tiago, irmão de João”

Atos 12:1-2

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I

A Praça do Obradoiro encontrava-se deserta. Há muito que se esvanecera a sua agitação diária. Uma figura com uma veste castanha saía da Rua do Franco percorrendo acelera-

damente a praça. As suas sandálias mal tocavam as lajes com anos de história que tinham apadrinhado tantos momentos da chegada dos peregrinos a Compostela. A noite estava escura e sufocante, o mês de junho chegava ao fim, e nenhum som se ouvia na quietude do local.

Aqui e ali, a figura parava, abruptamente, olhando para trás, ofe-gante, com o capuz a cobrir-lhe o rosto e a esconder-lhe todas as emoções, parecendo, contudo, temer estar a ser perseguido. Seguia apressado, em silêncio, procurando a penumbra e sucumbido aos re-ceios de quem, com a lucidez, desperta os sentidos e se perde em estranhos labirintos do medo.

Como um autêntico espectro, deslizava sobre as pedras, por for-ma a chegar o mais rápido possível ao Palácio de Raxoi e, assim, continuar o seu percurso, protegido pelo corpo interior das arcadas do edifício.

O céu vestia-se de um manto de pontos luminosos e a Via Láctea corria como um rio de prata, tal como referia a lenda, em que o ere-mita Pelágio fora conduzido desde o bosque de Libredão ao encontro

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de um sepulcro de pedra naquele local, onde repousavam os restos mortais do Apóstolo.

“Não há coincidências”, pensou, enquanto procurava camuflar-se, o mais silenciosamente que conseguia, por entre as sombras de um corredor repleto de enormes janelas com grades e revestido de arcos de volta perfeita.

A lua preparava-se para ser nova, o local permanecia hibernado, apenas tingido nas pedras pela luz amarelada oriunda dos edifícios históricos, formando um belo quadro que tinha levado muitos a acre-ditar que Obradoiro significava “Obra de Ouro”.

O Palácio de Raxoi situado paralelamente em frente à Catedral, com um plano retangular de cerca de noventa metros de comprimen-to, mais as suas colunas, permitir-lhe-ia uma boa cobertura, evitando assim ter que ficar sob uma longa e perigosa exposição numa praça vazia.

Parou abruptamente, por alguns segundos, para examinar a segu-rança do local. No interior das arcadas, um odor mais fresco saudou--o. Sem se deter por muito tempo, galgou velozmente alguns metros pelo corpo interior, por entre as diversas colunas térreas do edifício de estilo neoclássico. A meio do comprimento das arcadas, deteve--se, rodou, deu uns passos em frente, saiu das sombras e voltou a emergir na praça, de frente para a porta da Catedral, para estabelecer um último e necessário contacto, parecendo mesmo esquecer, por breves instantes, a sua segurança.

Olhou para o vazio do local desnudado e deu mais uns passos. A sua cabeça, escondida pelo capuz, rodou para a direita, depois no sentido oposto e, por fim, em frente, para contemplar a imponente fachada da Catedral. De seguida, fez o sinal da cruz. A sua mão, com uma pele muito clara, sobressaía por entre as largas mangas, assim como um crucifixo em madeira e prata, que se estendia ao longo do peito, cintilando com a luz melancólica. Por fim, com uma voz quase sumida pelo cansaço, suplicou:

– Parce mihi Dominus*.Dito isto em latim, respirou fundo, olhou para o céu tingido

de estrelas, recuou e voltou a desaparecer, como se não passasse de uma mancha escura por entre o olhar confidente da estátua de Santiago Matamouros, que do alto do palácio, testemunhava toda a situação.

A sua postura mostrava determinação. Sabia porque estava ali, ti-nha refletido muito sobre o assunto e agora não podia recuar. Envol-vido em pensamentos, colocou a mão numa bolsa que trazia presa à cintura para se certificar de que a preciosa mercadoria se encontrava protegida e, com um movimento rápido e fluído, voltou a ser engoli-do pelas sombras do interior das arcadas do palácio.

O ar estava denso, tudo permanecia imóvel e silencioso. A praça dormia o sono dos justos, dos injustos, das pessoas de bem, dos peca-dores e dos santos. A hora assim o determinava, e apenas o som dos seus passos apressados entre as pedras gastas e o batimento acelerado do seu coração, rasgavam a melancolia do momento. Aquele mesmo local, feito de contrastes, onde durante o dia transpirava vida, jazia agora adormecido, vulnerável e exposto.

A figura atravessou fluidamente todo a área encoberta, sem que nada a detivesse. Era uma por entre as muitas sombras que vestiam a noite. Uns metros mais à frente, junto ao Hostal dos Reis Católicos, voltou a sair do negrume e arriscou um olhar para todo o perímetro, que se mantinha deserto. O seu coração batia descompassadamen-te, freneticamente até. Depois, caminhou uns metros, agora mais devagar, com precaução, tentando avaliar a situação em que se en-contrava. Passo a passo, avançou paralelamente a um pequeno muro, olhou para os lados, para ter a certeza que o seu percurso estava desimpedido e, por fim, virou para a esquerda. Desceu a rua, exis-tente do outro lado do muro, não sem antes ter erguido o olhar para a fachada do imponente Parador, edifício cheio de simbologia cristã e pagã. E, como por uma completa alquimia, voltou a fundir-se com

* Perdoa-me, meu Deus.

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as sombras. Os seus passos tornaram-se mais ténues, até se deixarem de ouvir junto à Igreja de São Frutuoso.

Do lado oposto, junto ao Colégio de São Jerónimo, um outro vul-to exalou profundamente, ao sair da proteção do manto negro, pro-jetado por este edifício do século XVII, que lhe dera guarita durante uns largos minutos. Também ele, em silêncio, fixou os seus olhos, saboreou aquele encontro e esboçou um sorriso frio, contrastando com a temperatura da noite.

Estivera atentamente a observar, agora, só tinha que aguardar pela ordem.

Lentamente, a cidade acordou e os primeiros raios de sol gladia-ram-se para passar através dos extraordinários edifícios, expoentes supremos da história milenar da cidade. Santiago de Compostela começava a ganhar vida com os inúmeros turistas e peregrinos, que ainda muito antes do sol nascer, já se prostravam diante da Catedral. De mochilas às costas, chegavam dos mais diversos caminhos, como se fossem provenientes de diversos rios que convergiam para um mar maior, situado no centro da Praça do Obradoiro.

O som de uma gaita de foles ecoou repentinamente na atmosfera, explodindo uma música que ligava as tradições mais populares, a his-tória e o culto, e criando um ambiente místico, onde fervilham todas as emoções. Faltava pouco mais de um mês para a grande celebração do Apóstolo, a festa oficial da Galiza e já eram visíveis algumas pre-parações para as festividades.

Em frente da Catedral, no meio da praça, uma modesta placa granítica, considerada para muitos como o ponto de chegada de to-dos os caminhos que conduzem ao Apóstolo, tornava-se o centro de um mundo. Para muitos, a meta, para outros, o renascer, um mo-mento verdadeiramente especial, onde a fé ganhava dimensão entre lágrimas e sorrisos, abraços, encontros e despedidas. Tantos eram os sentimentos, como as emoções, que transbordavam das almas dos que ali desaguavam.

Num dos cantos da praça, junto ao Hostal dos Reis Católicos, uma

figura permanecia imóvel entre uma vasta multidão que escutava atentamente um guia, que fornecia explicações em diversos idiomas. Observava tudo o que se passava, fingindo apreciar a arquitetura. Agora, à luz do sol, não se parecia com o espectro da véspera, mas o seu rosto apresentava-se fechado, refletindo preocupação. Um hábi-to castanho cobria-lhe o corpo e, com o capuz caído para trás, podia ver-se o cabelo branco com alguns centímetros de comprimento, li-geiramente ondulado, que parecia ser neve à luz do dia. De repente, agarrou o crucifixo de madeira e prata que trazia suspenso ao pesco-ço, olhou para o céu azul, cerrou as pálpebras, escondeu os seus olhos negros e, com um suspiro, sussurrou:

– É tempo de unir o corpo! Que Deus tenha misericórdia de todos nós por termos escondido a verdade.