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A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E O DIREITO TRIBUTÁRIO Diogo Ferraz Lemos Tavares Rio de Janeiro 2008 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE DIREITO

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A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E O DIREITO TRIBUTÁRIO

Diogo Ferraz Lemos Tavares

Rio de Janeiro 2008

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE DIREITO

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UERJ

2008

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Diogo Ferraz Lemos Tavares

A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E O DIREITO TRIBUTÁRIO Orientador: Prof. Ricardo Lobo Torres

Rio de Janeiro 2008

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito Público.

Diogo Ferraz Lemos Tavares

A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E O DIREITO TRIBUTÁRIO Orientador: Prof. Ricardo Lobo Torres Aprovado em: Banca Examinadora:

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito Público.

Ricardo Lobo Torres

Doutor e Livre-Docente - UERJ

Luís César Souza de Queiroz

Doutor e Mestre - UERJ

Alberto Nogueira

Doutor e Mestre - UGF

A todos aqueles que, pelo simples fato de participarem da minha vida, contribuíram, cada qual da sua maneira, para a conclusão desta jornada.

AGRADECIMENTOS Certamente, para que fosse possível um agradecimento justo a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a elaboração deste trabalho, seria preciso mais páginas do que as que foram gastas com o próprio desenvolvimento do estudo. De qualquer forma, correndo o risco de cometer injustiças, notadamente pela dificuldade em expressar de maneira completa as emoções por meio das palavras, ficam aqui alguns agradecimentos. Para minha mãe e minha avó Dora (in memoriam), pelo exemplo de vida e pela estrutura que sempre proporcionaram durante toda a minha existência, sem a qual não seria possível sequer o início desta empreitada. Para meu Pai, por ter retornado à minha vida e para que não nos distanciemos novamente. Para Sabrina, minha fonte de inspiração durante o tempo de elaboração deste estudo, pela paciência e compreensão em virtude da grande privação que o Mestrado trouxe ao nosso convívio. Aos meus colegas de escritório, do presente e do passado, especialmente aos meus mais do que colegas, amigos, Fábio Fraga, Louise Marchiori, Luciano Filippo, Fernando Osorio, Pedro Avvad e Ricardo Fernandes, pelos debates, conversas, sugestões, críticas, conselhos, trocas de idéias e experiências e, sobretudo, por terem sempre ficado à disposição para compreender e suprir as minhas ausências em decorrência de aulas, pesquisas etc. A Deus.

RESUMO TAVARES, Diogo Ferraz Lemos. A Supremacia do Interesse Público e o Direito Tributário. 2008. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. A presente dissertação tem por objetivo a análise jurídica do chamado “princípio” da supremacia do interesse público, o qual indica uma prevalência do interesse público sobre o interesse particular em caso de colisão. O primeiro objetivo do trabalho é um verdadeiro mergulho nos meandros do mencionado “princípio”, quando serão estudados os seus fundamentos e a sua aplicação, tanto teóricos quanto práticos, buscando identificar a sua racionalidade, a sua carga axiológica e a existência de reais fins que tal “princípio” procuraria alcançar. O segundo objetivo é o de analisar o “princípio” em tela à luz do ordenamento constitucional brasileiro, com a finalidade de investigar se tal norma é de alguma forma respaldada pelo ambiente jurídico nacional. O terceiro objetivo do trabalho será o exame das implicações do sobredito “princípio” e da sua releitura em uma área do Direito que, seguramente, é uma das quais a “supremacia do interesse público” encontra terreno mais fértil para invocação e aplicação: o Direito Tributário. Chegar-se-á, assim, a uma conclusão sobre a existência ou não da norma de supremacia em tela e à identificação do verdadeiro interesse público merecedor de proteção suprema no ordenamento jurídico-tributário brasileiro. Palavras-chave: Princípio; Supremacia do Interesse Público; Direito Tributário

ABSTRACT / RESUMÉE / RESUMÉN TAVARES, Diogo Ferraz Lemos. A Supremacia do Interesse Público e o Direito Tributário. 2008. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. This dissertation aims to present the juridical analysis of the public interest supremacy “principle”, which indicates a prevalence of the public interest over the private interest in the case of a collision. The first objective of this work is to dive in this “principle”, studying its foundations and applications, both theoretical and practical, identifying its rationale, its axiological contends and the existence of real goals that this “principle” aims to reach. The second objective is the analysis of this “principle” under the lens of the Brazilian Constitution in order to investigate if this norm is supported by the national juridical ambient. The third objective of this work is to exam the implication of this “principle” on the law area that constitute one of the most fertile field to the invocation of the public interest supremacy: taxation law. Therefore, the work reaches a conclusion concerning the existence or not of the mentioned “principle” and the identification of the true public interest that deserve a supreme protection on the Brazilian tax law order. Key-words: Principle; Public Interest Supremacy; Taxation Law

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 2. O “PRINCÍPIO” DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO 2.1. A Doutrina 2.2. Análise Crítica: um verdadeiro princípio? 3. INTERESSE PÚBLICO NO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL

BRASILEIRO 3.1 Interesse Público na Constituição de 1988 3.2 O Princípio da Subsidiariedade: um auxiliar 3.3 A Jurisprudência Constitucional 3.4 Uma Construção para o Interesse Público na Constituição de 1988 4. INTERESSE PÚBLICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO 4.1 A Essência Constitucional Tributária Brasileira 4.2. A Moderna Fundamentação do Direito Tributário 4.2.1. A Justiça no Direito Tributário 4.2.2 A Segurança no Direito Tributário 4.2.3 A Igualdade no Direito Tributário 4.2.4 A Solidariedade no Direito Tributário 4.2.5 A Liberdade no Direito Tributário 4.3 Um exemplo da nova acomodação dos valores no Direito Tributário: o Princípio

da Capacidade Contributiva 4.3.1 Evolução da Fundamentação do Princípio da Capacidade Contributiva 4.3.2 A Estrutura Aplicativa do Princípio da Capacidade Contributiva 4.4 Uma Construção para o Interesse Público no Direito Tributário 4.5 O Moderno Processo Administrativo Fiscal: exemplo prático da aplicação da

nova concepção do Interesse Público no Direito Tributário 5. MANIFESTAÇÕES SILENCIOSAS DO PRIVILÉGIO AO INTERESSE

PÚBLICO (DO ESTADO) APLICÁVEIS AO DIREITO TRIBUTÁRIO 5.1 O Prazo Dilatado da Fazenda Pública 5.2 A Necessidade de Intimação Pessoal do Representante do Estado 5.3 A Presunção de Liquidez e Certeza da Certidão de Dívida Ativa 5.4 A Presunção de Fraude 5.5 A Declaração de Inconstitucionalidade ex nunc no Direito Tributário 5.5.1 Em Defesa do Erário 5.5.2 A Favor do Contribuinte 6. CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

1. INTRODUÇÃO

Em um País como o Brasil, ainda em busca da afirmação dos seus valores1 e do alcance

dos “objetivos fundamentais”2 da nação, é marcante a presença do Estado nas diversas esferas

da sociedade, desempenhando, no mais das vezes, a figura de principal instrumento

fomentador e propulsor de atividades que visem àquelas finalidades.

Essa ostensiva atuação estatal necessita, por óbvio, ser custeada por aqueles que, em tese,

são por ela beneficiados: os cidadãos, na mais ampla acepção que a esta expressão possa ser

atribuída. E esta captação de recursos, em linhas gerais, é o objeto do Direito Tributário.

Surgem, assim, pelo menos dois momentos de interferência do Estado na sociedade: um

em que o Estado age sobre a sociedade, promovendo ou fomentando a promoção dos

objetivos sociais; outro em que o Estado extrai da sociedade os recursos necessários ao

custeio daquela atuação.

Ambos os momentos geram inúmeras e cotidianas situações de tensão entre o interesse do

Estado (ora a atuação direta, ora a extração de recursos da sociedade) e os interesses

particulares (a livre iniciativa, o direito de propriedade etc.), as quais devem ser solucionadas

de forma a se manter a coerência do sistema jurídico.

Um dos instrumentos jurídicos aplicados a tais situações é o denominado Princípio da

Supremacia do Interesse Público, o qual, grosso modo, indica uma prevalência do interesse

público sobre o interesse particular em caso de colisão.

Oriundo do Direito Administrativo, tal “princípio” sempre deu margem a vertentes

interpretativas, doutrinárias e jurisprudenciais, discrepantes: ora era entendido que havia uma

supremacia absoluta; ora era entendido que havia uma supremacia prima facie, passível de ser

elidida pelas características do caso concreto.

No entanto, já há algum tempo, o “princípio” em questão vem sofrendo forte revisão no

Direito Comparado, fato que não demorou a ser notado pela doutrina nacional, que passou a

produzir, recentemente, algumas obras relevantes sobre o tema3.

1 Expostos no art. 1º da Constituição Federal de 1988: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, trabalho, livre iniciativa e pluralismo político. 2 Explicitados no art. 3º da Constituição Federal de 1988: sociedade livre, justa e solidária; desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalidade; redução das desigualdades regionais; bem comum. 3 Como um dos exemplos mais recentes, cite-se a obra organizada por SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

Embora venham surgindo novos trabalhos e autores consagrados tenham voltado sua

atenção à questão, toda a discussão parece ser ainda muito embrionária, carente da formação

de uma maior massa crítica que solidifique o debate e forneça um arcabouço teórico firme

para que as novas tendências sejam aplicadas na prática.

A reduzida exploração do tema é comumente referida pelos próprios doutrinadores que se

arvoram em explorá-lo ou a instigar o seu estudo4, revelando que a sua pertinência é mais do

que reconhecida.

Um exemplo desses territórios inexplorados é o Direito Tributário, aonde ainda se faz

marcante a invocação da Supremacia do Interesse Público pelos Fiscos dos diversos entes

federativos, no momento em que se trava uma disputa com contribuintes que objetivam, por

exemplo, afastar uma incidência tributária ilegítima ou repetir um tributo indevidamente

recolhido.

Não obstante, especificamente nessa área jurídica, são escassas as manifestações

doutrinárias que abordem a revisão que a Supremacia do Interesse Público vem sofrendo em

todo o Globo, razão pela qual se torna relevante um trabalho monográfico nesse sentido.

Felizmente, o tema em questão foi capaz de chamar a atenção do professor Ricardo Lobo

Torres, que honrou o autor do presente trabalho com a aceitação da árdua tarefa de orientá-lo

nesta empreitada.

O primeiro objetivo do trabalho que se inicia é um verdadeiro mergulho nos meandros do

“Princípio” da Supremacia do Interesse Público.

Serão estudados e analisados os seus fundamentos e a sua aplicação, tanto teóricos quanto

práticos, buscando identificar a sua racionalidade, a sua carga axiológica e a existência de

reais fins que tal “princípio” procuraria alcançar.

O intuito desta empreitada é, portanto, em um primeiro momento, a realização de uma

abordagem descritiva do que seria a supremacia do interesse público, traçando a sua linha

evolutiva e identificando as suas aplicações históricas, a fim de permitir visualizar, por

inteiro, a funcionalidade do “princípio”. Com isso, será possível, à luz da Teoria Geral do

Direito, estabelecer a verdadeira natureza normativa da supremacia do interesse público.

Um segundo objetivo é o de abordar e analisar o “princípio” em tela à luz do

ordenamento constitucional brasileiro, com a finalidade de investigar se tal norma é de

alguma forma respaldada pelo ambiente jurídico nacional.

4 Conforme se verifica no prefácio de lavra do Prof. LUÍS ROBERTO BARROSO à obra de SARMENTO. Op. cit., nota 3.

Neste ponto, o trabalho deixará de ser meramente descritivo e passará a tentar contribuir

com o próprio objeto de estudo, por meio da interpretação sistemática das previsões

constitucionais que influenciam a questão e da análise tão profunda quanto possível da

jurisprudência constitucional brasileira acerca da supremacia do interesse público.

O terceiro objetivo do trabalho, talvez o principal, será o exame das implicações do

sobredito “princípio” e da sua releitura em uma área do Direito que, seguramente, é uma das

quais a supremacia do interesse público encontra terreno mais fértil para invocação e

aplicação: o Direito Tributário. Chegar-se-á, assim, a uma conclusão sobre a existência ou não

da norma de supremacia em tela e à identificação do verdadeiro interesse público merecedor

de proteção suprema no ordenamento jurídico-tributário brasileiro.

Por tratar, justamente, de situações em que sempre está presente a tensão entre o interesse

público e o interesse particular, o Direito Tributário possui incontáveis normas que podem ser

identificadas ora como garantidoras da supremacia do interesse público, ora como protetoras

do interesse particular.

Estudar-se-á, então, o papel do Direito Tributário, indicando-se as principais normas,

especialmente princípios que orientam o funcionamento deste ramo jurídico, com vistas a

identificar, ainda que de maneira generalista, os seus fundamentos e as suas formas de

atuação.

Posteriormente, buscar-se-á rastrear algumas normas tributárias que, em tese, podem ser

encaradas como materializações da supremacia do interesse público. E, neste ponto, será

examinado se, de fato, tais normas - ou a interpretação que lhes é conferida - protegem um

interesse público que mereça supremacia frente aos interesses particulares.

Esta parte do trabalho abandona, em grande medida, a descrição do que já existe, embora

se valha, evidentemente, do maior número possível de construções doutrinárias já existentes.

Ela corresponde à parcela mais criativa da dissertação, adotando uma abordagem crítica que

buscará desfazer mitos atrelados a normas que, a pretexto de garantir a supremacia de um

suposto interesse público, deixam à revelia os reais interesses da sociedade e, em certos casos,

a própria coerência do sistema jurídico.

2. O “PRINCÍPIO” DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

O presente estudo sobre o chamado “princípio” da supremacia do interesse público sobre

o particular é iniciado a partir de uma breve análise descritiva dos fundamentos e do conteúdo

deste “princípio”.

Examinaremos, para isto, a doutrina que se formou ao longo de décadas e que deu suporte

à idéia de que existiria um “princípio” a impor a prevalência do interesse público sobre o

interesse particular. A doutrina estudada será especialmente - mas não exclusivamente - a que

foi produzida no Brasil, em virtude de o presente trabalho se debruçar sobre o ordenamento

jurídico nacional.

Isto será importante para identificarmos pontualmente as características deste “princípio”

e para a fase imediatamente seguinte do estudo, aonde investigaremos se a referida norma de

supremacia efetivamente corresponde a uma norma-princípio.

Esta, em suma, é a primeira aproximação do objeto do nosso estudo: a pontuação dos

elementos do princípio da supremacia do interesse público e a elucidação de se ele realmente

pode ser considerado uma norma-princípio, à luz dos contornos atribuídos a esta espécie

normativa pela Teoria Geral do Direito.

2.1. A DOUTRINA

Praticamente todos os trabalhos, seja de pesquisa, seja de construção, que abordam a

supremacia do interesse público sobre o interesse privado no Direito Brasileiro adotam como

referência a doutrina de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO5 sobre o tema.

A posição do mestre administrativista acerca da existência da supremacia do interesse

público sobre o privado fica clara já no primeiro parágrafo da parte da sua obra que aborda

essa suposta supremacia:

Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno direito público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.6

5 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1996. 6 Ibid., p. 27.

Como se vê, a doutrina clássica, exemplificada pelo autor acima, sempre entendeu natural

a prevalência do interesse público, naquela obra identificado com o interesse da coletividade

sobre o interesse privado, não só como uma prerrogativa detida por esse interesse público,

mas também como uma garantia de proteção do interesse privado, na medida em que a

supremacia daquele geraria a segurança necessária ao desenvolvimento deste.

Essa posição de supremacia também sempre foi expressada pela noção de que a relação

entre Administração e Administrados seria vertical, enquanto a relação entre estes últimos

seria horizontal. O público e o privado não estariam em pé-de-igualdade, pois o primeiro

gozaria de posição privilegiada no sistema, para que pudesse ser o instrumento de garantia da

ordem legal e da legitimidade das relações horizontais dos particulares, nesta sim presente a

igualdade de posições.

Esta primeira aproximação da supremacia do interesse público sobre o privado já revela

uma primeira incompatibilidade entre esse “axioma” e a moderna dogmática jurídica.

Atualmente, não existe mais dúvida de que os Direitos Fundamentais, notadamente

aqueles consagrados na Constituição, possuem eficácia não apenas vertical (nas relações

Estado-Cidadão), mas também horizontal (nas relações Cidadão-Cidadão).

Essa assertiva é conseqüência da chamada “constitucionalização do direito”, em que a

Constituição passa a ser não só a norma dotada de hierarquia superior, mas também a norma

fundamental que confere unidade ao ordenamento jurídico, pois os diversos ramos do Direito

(Civil, Tributário, Comercial etc.) passam a ser permeados pelas normas constitucionais.

Nesse sentido, conforme ensina LUÍS ROBERTO BARROSO7, a Constituição

transforma-se no “modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito”, no que se

convencionou chamar de “filtragem constitucional”, uma vez que “toda a ordem jurídica deve

ser lida e apreendida sob a lente da constituição”, de forma que a observância dos Direitos

Fundamentais nela consagrados torna-se obrigatória a todas as áreas jurídicas.

Se os Direitos Fundamentais condicionam e modulam a atuação dos particulares em

relações entre eles próprios, onde, a princípio, prevaleceria a autonomia da vontade, com

muito mais força devem condicionar a validade da atuação do Estado em relação aos

indivíduos, como instrumento de defesa dos interesses particulares frente ao arbítrio estatal.

Portanto, o fato de se tratar, por hipótese, de uma relação vertical não leva à conclusão de

que a Administração estaria em posição superior e esse fato, por si só, seria suficiente para

7 BARROSO, Luís Roberto. “Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito”. In: Revista de Direito Administrativo 240:1-42, abr./jun. 2005.

legitimar qualquer atuação desta, pois que o desempenho da sua atividade está estritamente

limitado pelos Direitos Fundamentais dos administrados.

Embora todos os exemplos utilizados por BANDEIRA DE MELLO transpareçam que

essa supremacia poderia conduzir ao arbítrio, especialmente quando o autor afirma que ela

conferiria à Administração o poder de “constituir os privados em obrigações por meio de ato

unilateral” e de “modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas”, essas

afirmações devem ser analisadas com base no que aquele autor entende como sendo o único

interesse verdadeiramente público, em nome do qual a Administração poderia assim proceder.

Na verdade, BANDEIRA DE MELLO filia-se à doutrina italiana capitaneada por

RENATO ALESSI8, que divide o interesse público em primário (“os interesses da

coletividade como um todo”) e secundário (aquele que “o Estado poderia ter como qualquer

outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de

terceiros: os da coletividade”).

Esta especificação é preciosa, pois faz com que a hipotética supremacia do interesse

público sobre o privado não se torne um cheque em branco à Administração, a partir do

momento que não identifica o interesse público com o mero interesse estatal. Em tese, aquela

supremacia somente ocorrerá quando o ato da Administração se adequar ao interesse da

coletividade, que não se confunde com o interesse do órgão administrativo que está

praticando o ato.

Vale pontuar que, ainda que se entenda dessa maneira, há que se perquirir se realmente é

o caso de se falar em supremacia ou prevalência.

Não obstante, conforme registrado por alguns autores, esta distinção não encontrou muito

eco na doutrina e na jurisprudência brasileiras9, que, ao longo do tempo, não se cansaram de

validar atos da Administração Pública com base simplesmente nessa supremacia, sem

qualquer justificação dos motivos pelos quais aqueles atos corresponderiam ao “interesse da

coletividade”, o que acaba, na prática, identificando o interesse público com o interesse estatal

casuístico.

HELY LOPES MEIRELLES, por exemplo, não faz essa diferenciação quando assevera

que “o princípio do interesse público está intimamente ligado ao da finalidade. A primazia do

interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a

8 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale Del diritto amministrativo italiano. Milão: Giuffré Editore, 1960, p.197. 9 BARROSO. Op. cit., nota 4.

existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral”10, justificando os “inúmeros

privilégios e prerrogativas” reconhecidos ao Poder Público.

A obra de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO é outro exemplo da doutrina

clássica do Direito Público que não se preocupa em fazer essa distinção ao sustentar:

(...) as normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando, depois de superados o primado do Direito Civil (que durou muitos séculos) e o individualismo que tomou conta dos vários setores da ciência, inclusive a do Direito, substituiu-se a idéia do homem como fim único do direito (próprio do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais.11

A autora deixa ainda mais clara a sua posição no sentido da existência de uma supremacia

do interesse público sobre o particular ao fundamentar as normas que conferem “à

Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir” na

necessidade de se atender ao “interesse geral, que não pode ceder diante do interesse

individual”12.

Embora sem fazer a distinção entre interesse público primário e secundário, JOSÉ DOS

SANTOS CARVALHO FILHO também identifica o interesse público digno de supremacia

com o interesse da coletividade, ao afirmar que “não é o indivíduo em si o destinatário da

atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo”. Isto o leva a defender a teoria de

que havendo “um conflito entre o interesse público e o interesse privado (...), há de prevalecer

o interesse público”, pois “o indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, não

podendo os seus direitos, em regra, ser equiparados aos direitos sociais”13.

Com o passar dos anos, novos notáveis administrativistas fizeram diversificadas leituras

da supremacia do interesse público sobre o privado.

ALICE GONZALEZ BORGES, seguindo a linha da divisão entre um interesse público

dotado de supremacia e outros interesses, que a princípio poderiam ser entendidos como

públicos, porém são desprovidos dessa supremacia, assevera que o verdadeiro interesse

público seria:

10 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 101. 11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2001, p. 69. 12 Ibid., p. 70. 13 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 18-19.

um somatório de interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de ordem moral ou material, que cada pessoa deseja adquirir, conservar ou manter em sua própria esfera de valores. Esse interesse passa a ser público, quando dele participam e compartilham um tal número de pessoas, componentes de uma comunidade determinada, que o mesmo passa a ser também identificado como interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um querer valorativo predominante da comunidade.14

A autora, ao defender a tese de que “o interesse público e o interesse individual colidente

ou não coincidente são qualitativamente iguais; somente se distinguem quantitativamente”,

claramente adere ao entendimento de HECTOR JORGE ESCOLA15. Este autor afirma que

um interesse passa a ser público:

cuando no es exclusivo o propio de una o pocas personas, sino cuando participan o coinciden en el mismo un número tal de personas, componentes de una comunidad determinada, que puede llegar a identificárselo como de todo el grupo, inclusive respecto de aquellos que, individualmente, puedan o no compartirlo.16

Continua o autor argentino:

Es la presencia de esos intereses individuales coincidentes y compartidos por un grupo cuantitativamente preponderante de individuos, lo que da lugar, de ese modo, a un interés público, que surge con un interés de toda la comunidad (…). (…) la conciencia social se forma, en realidad, con la existencia de quereres individuales coincidentes ostensiblemente mayoritarios, no sólo porque de otro modo dejaría de ser social, público, sino porque tal condición justifica y hace aceptable la imposición de ese querer valorativo a quienes, en forma individual, no participan de él. (...) Los individuos que no reconocen en un interés público su propio interés individual, quedan constreñidos, sin embargo, a aceptarlo y a contribuir incluso a su obtención (...).17

A despeito da respeitabilidade dessa opinião, a identificação do interesse público com o

somatório dos interesses individuais da maioria conduz a situações ilegítimas, como a

14 BORGES, Alice Gonzalez. “Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução”. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: v. 15, 2007. 15 ESCOLA, Hector Jorge. El interés público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Desalma, 1989. 16 Ibid., p. 238. 17 Ibid., p. 238-239.

possibilidade da opressão de parcelas minoritárias da sociedade pela maioria eventual com

suporte em um suposto interesse público.

No Direito Comparado, LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES eleva a “prossecução do

interesse público” ao status de “razão de ser da Administração pública e da sua organização”,

com a ressalva crítica de que “não raras vezes, em nome do interesse público, os entes

públicos procuram justificar acções e actuações (de parte) nem sempre lícitas ou legítimas”18.

O autor português, fortemente crítico às mudanças que a modernidade trouxe para a

Administração Pública e para o Direito Administrativo, que causou, em suas palavras, a

anorexia do interesse público, argumenta que “o que se verifica no actual Estado mínimo

regulador é, precisamente, o próprio ‘achamento’ do interesse público essencial19 através da

ponderação procedimental”, o que, a seu ver, “só vem a enfraquecer e inquinar o conteúdo

essencial do interesse público”.

Após ensaiar os contornos do que, para ele, seria o interesse público essencial ou

primário (“a natureza jurídica do interesse público está umbilicalmente ligada ao poder-dever-

direito fundamental da Administração prosseguir a realização de interesses vitais à

comunidade”), ANTUNES adota uma postura que prestigia o princípio da legalidade e afirma:

A Administração Pública é, assim, o instrumento utilizado pela ordem jurídica para a satisfação de tais interesses. (...) Se, portanto, a Administração encontra, na realização dos interesses públicos, o escopo da actividade administrativa (GIANNINI), parece difícil considerar que seja função da Administração proceder à qualificação do interesse público (primário). (...) Se à Administração compete a prossecução do interesse público normativamente predeterminado, não resta outra possibilidade que não seja a de reconhecer que compete ao legislador e, portanto, à lei, à luz de critérios constitucionais, avaliar e qualificar, em primeira mão, a relevância de uma necessidade colectiva intensa como susceptível de integrar a noção jurídica de interesse público. (...) Em resumo, o que parece caracterizar o fenômeno que estamos a analisar é que a qualificação de um interesse como público é o resultado de uma operação normativa.20

Dessa forma, não haveria confronto entre o interesse da Administração e o interesse do

particular, mas entre o interesse individual e o interesse público normativamente definido.

18 ANTUNES, Luís Filipe Colaço. O direito administrativo e a sua justiça no início do século XXI. Coimbra: Almedina, 2001, p. 15-16. 19 O autor adota a segregação de ALESSI e BANDEIRA DE MELLO entre interesse primário e secundário, por vezes denominando o primeiro de interesse público essencial.

Essa definição prévia, segundo o autor, é imprescindível para que, diante de cada caso, se

possa definir o interesse público concreto, resultado da “ponderação dos interesses públicos

secundários e dos interesses juridicamente protegidos com o interesse público primário

previamente definido”21.

Por ser dotado dessa definição prévia estipulada pelo ordenamento jurídico, mais

especificamente pela Lei, ainda segundo o autor, o interesse público “prevalece sobre o

privado”, pois que “é precisamente o reconhecimento da primariedade da Administração, na

prossecução do interesse público essencial, que abre as portas à configuração do direito

(subjectivo) do particular ao correcto exercício do poder e até à respectiva tutela

ressarcitória”22.

Vê-se, portanto, que todos os doutrinadores até aqui estudados defendem, ainda que de

maneiras diversas, a existência de uma supremacia do interesse público sobre o interesse

privado e fazem uma revisão, quando muito, do conteúdo moderno da expressão “interesse

público” para justificarem essa supremacia.

Em uma visão a nosso ver mais evoluída, em que pese ser cronologicamente anterior a

alguns trabalhos citados acima, MARÇAL JUSTEN FILHO desenvolve uma releitura do

conceito de interesse público e da supremacia que a ele seria inerente23.

Ao delimitar o conteúdo do interesse público, o autor, contrariando a tradição jurídica que

“costuma identificar interesse público e interesse do Estado”, analisa a evolução histórica do

próprio Estado para concluir que:

O conceito de interesse público não se constrói a partir da identidade do seu titular (...). Logo, o interesse é público não porque atribuído ao Estado, mas é atribuído ao Estado por ser público. (...) Em síntese, a titularidade pelo Estado representa, quando muito, um indício de ser público o interesse, mas esse indício conduz, como não poderia deixar de ser, a uma presunção relativa.24

Depois, adotando a já mencionada separação entre interesse público primário e

secundário, o autor sustenta que “o interesse público não consiste no interesse do aparato

20 ANTUNES. Op. Cit., nota 18, p. 42-44. 21 Ibid., p. 44. 22 Ibid., p. 46. 23 FILHO, Marçal Justen. “Conceito de interesse público e a ‘personalização’ do direito administrativo”. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1999, v. 26, p. 115-136. 24 Ibid., p. 117-118.

estatal”, uma vez que “nenhum interesse público se configura como conveniência egoística da

Administração Pública”, sustentando inclusive que “o chamado interesse secundário (Alessi)

ou interesse da Administração Pública não é publico”25. Nesse sentido, entende o autor que o

Estado não atua qualitativamente de forma similar aos particulares, de modo que apenas nas

atuações em que houver essa diferença qualitativa poderá residir o interesse público.

Após essa série de desqualificações do que seria interesse público, MARÇAL JUSTEN

FILHO tenta estabelecer, afirmativamente, o conceito de interesse público por ele imaginado,

passando, novamente, a, primeiro, desconstruir certas teorias já existentes, como a que

entende o interesse público como somatório dos interesses privados26, como o somatório de

determinados interesses privados27 e como interesse da sociedade28.

O autor, então, chega à conclusão de que o interesse público residiria nas demandas

“diretamente relacionadas à realização de princípios e valores fundamentais, especialmente a

dignidade da pessoa humana”. Assim, o interesse público ganharia uma conotação ética e

valorativa e corresponderia àqueles interesses em que houvesse a “impossibilidade ética de

deixar de atendê-los”. Em resumo:

[O interesse público] não é apenas um interesse social, mas necessariamente também um interesse individual concretamente compartilhado por segmentos significativos da sociedade. Somente se evidencia um interesse público quando há compatibilidade entre o interesse social e o interesse titularizado por uma pluralidade de sujeitos integrantes da comunidade, em um dado momento. Não é necessário, por isso, que o interesse público seja o interesse da maioria eventual, em certa situação. O que se exige é a compatibilidade entre o interesse grupal e o interesse de uma parcela da população. Sob esse ângulo, poderia utilizar-se a expressão interesse coletivo.29

Por essa leitura, identifica-se que o interesse público submete-se aos valores mais caros à

sociedade, aos princípios constitucionalmente prestigiados e aos direitos fundamentais e

25 Ibid., p. 118. 26 Ibid., p. 119: “Segundo essa abordagem, não há diferença qualitativa entre interesse privado e público. A diferença é de natureza quantitativa. Afinal, todo e qualquer interesse privado poderá configurar-se como público desde que configurada uniformidade dos interesses da maioria”. Essa abordagem é realmente deficiente, pois não impõe limites materiais ao interesse público, que poderia, por exemplo, ir de encontro a direitos fundamentais da minoria. 27 Ibid., p. 120: “... haveria interesses privados transcendentes à individualidade e que poderiam dar origem a um interesse público, na medida em que ocorresse homogeneidade coletiva”, teoria que encontra a mesma deficiência da referida na nota acima, pois condiciona o caráter público do interesse à condição de ser ele detido pela maioria. 28 Ibid., p. 122: “Essa construção produz duas dificuldades fundamentais. A primeira reside no risco de surgir um interesse social desvinculado de qualquer interesse individual concreto. (...) A desvinculação entre a dimensão individual e o interesse público contém o germe do autoritarismo. (...) A segunda refere-se à identificação do conteúdo do interesse. (...) Seria necessário atribuir a algum sujeito o poder de diagnosticar a existência e determinar o conteúdo do interesse público.”

somente será passível de delimitação concreta após a ponderação desses fatores, sempre

diante do caso concreto.

2.2. ANÁLISE CRÍTICA: UM VERDADEIRO PRINCÍPIO?

O estudo doutrinário realizado acima revela que mesmo entre aqueles que advogam a

existência de um “princípio” da supremacia do interesse público o conteúdo de tal norma não

é uníssono, ao contrário, possui variados matizes, os quais, por vezes, são até antagônicos.

Não obstante, de todos os significados atribuídos a este “princípio”, pode-se extrair uma

idéia básica de que, em havendo conflito entre o interesse público e o interesse particular, o

primeiro deve sempre prevalecer.

A partir desta ilação, surge uma indagação: uma norma que estabelece a primazia

apriorística de um interesse juridicamente protegido sobre outro interesse também

juridicamente protegido pode ser considerada uma norma-princípio?

Iniciaremos a resposta a esta pergunta com a compilação dos significados atribuídos pela

doutrina aos princípios realizada por RICARDO LOBO TORRES:

Tirante uma ou outra posição positivista, predomina a idéia de que os princípios, que informam a criação, a interpretação, a integração e a correção do direito, se situam na região intermediária entre os valores jurídicos abstratos e as normas do ordenamento jurídico. Caracteriza-os a generalidade. (...) Larenz, rejeitando a dicotomia estabelecida por Stammler entre idéia e conceito de direito, adota posição hegeliana e faz derivar da ‘idéia de direito’ os princípios e as normas, deixando claro que os princípios podem até ser apreendidos através das normas e da argumentação razoável, mas não constituem generalização de normas nem são ‘nenhuma regra suscetível de aplicação’. Nos Estados Unidos, ao lado de inúmeros juristas de escol, avulta a obra de Ronald Dworkin, que, após distinguir entre princípio e policy, estabelece as diferenças entre princípios (legal principles) e regras (legal rules), que se cifram nos seguintes aspectos: 1° - as regras são aplicadas segundo o critério do tudo-ou-nada (all-or-nothing), ou seja, tanto que válidas atingem o fato nelas previsto, comportando apenas as exceções nelas próprias listadas; já os princípios são enunciados genéricos, em que inexiste enumeração de exceções, de modo que se abrem a incontáveis casos imaginários; 2° - enquanto os princípios têm diferentes pesos e podem ser escolhidos em razão de sua importância maior ou menor, as regras não têm tal dimensão, pois a diferente importância que possuam não conduz a que o conflito entre elas se resolva pelo peso relativo de cada qual. Ponto de vista algo tanto próximo é o de Alexy, que, subordinando embora a regra (Regel) e o princípio

29 Ibid., p. 124.

(Prinzip) à norma (Norm), conclui que: ‘as regras são normas que, pelo preenchimento de determinados pressupostos, ordenam, proíbem ou autorizam definitivamente alguma coisa”; ou, dito simplesmente, são ‘comandos definitivos’ (definitive Gebote), que têm como característica a sua aplicação mediante subsunção; os princípios são ‘comandos de otimização’ (Optimierungsgebote), isto é, normas que determinam que algo seja realizado de modo relativo quanto às possibilidades fáticas e jurídicas.30

A concepção de RONALD DWORKIN sobre a diferença entre princípios e regras,

resumidamente citada na transcrição acima, é melhor explicada pelo trecho abaixo:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (...) Mas não é assim que funcionam os princípios apresentados como exemplos nas citações. Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas. (...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou da importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntas que peso ele tem ou quão importante ele é. 31

Já a visão de ALEXY, que, segundo TORRES, possui traços em comum com a

concepção de DWORKIN, é bem descrita por WILSON STEINMETZ32:

Para Robert Alexy, entre normas-regras e normas-princípios, para além de uma diferença gradual – abstração e generalidade -, há também, e sobretudo, uma diferença qualitativa, que consiste nisto: ‘O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são mandamentos de otimização enquanto as

30 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 113-114. 31 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martin Fontes, 2002, pp. 39-43. 32 STEINMETZ, Wilson. “Princípio da proporcionalidade e atos de autonomia privada”, in SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 31-33.

regras têm o caráter de mandamentos definitivos. Como mandamentos de otimização, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas. Isso significa que podem ser satisfeitos em graus diferentes e que a medida ordenada de sua satisfação depende não só das possibilidades fáticas senão jurídicas, que estão determinadas não só por regras senão também, essencialmente, pelos princípios opostos. Isso implica que os princípios são suscetíveis de ponderação e, ademais, dela necessitam. A ponderação é a forma de aplicação do direito que caracteriza os princípios. Em contrapartida, as regras são normas que sempre ou bem são satisfeitas ou não o são. Se uma regra é válida e é aplicável, então, está ordenado a fazer exatamente o que ela exige; nada mais e nada menos. Nesse sentido, as regras contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Sua aplicação é uma questão de tudo-ou-nada. Não são suscetíveis de ponderação e tampouco dela necessitam. A subsunção é para elas a forma característica de aplicação do direito.’

Os estudos sobre os conceitos de regra e de princípio foram aprofundados e, por vezes,

complementados, notadamente pela nova geração de juristas brasileiros que foi influenciada

pelos doutrinadores acima referidos.

Nesse sentido, é oportuna a utilização dos ensinamentos de HUMBERTO BERGMANN

ÁVILA:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.”33

Abrimos um parêntese para ressaltar a figura do postulado trazida pelo citado autor ao

Direito Brasileiro, assim resumida:

Diversamente, os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos.34

33 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 70. 34 ÁVILA. Op. Cit., nota 33, p. 89.

Para se ter uma noção mais concreta do conteúdo dos postulados, importante trazer à

colação, ainda que muito sinteticamente, as idéias do autor sobre dois dos seus principais

expoentes: a proporcionalidade e a razoabilidade, que serão utilizados em diversos

momentos deste trabalho:

O exame de proporcionalidade aplica-se sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame de adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame de necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito).35 A razoabilidade possui várias funções: como equidade, atua como instrumento para determinar que as circunstâncias de fato devem ser consideradas com a presunção de estarem dentro da normalidade ou para expressar que a aplicabilidade da regra geral depende do enquadramento do caso concreto; como congruência, exige a relação das normas com as suas condições externas de aplicação, quer demandando um suporte empírico existente para a adoção de uma medida, quer exigindo uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada; como equivalência, impõe uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona; como coerência, proíbe a edição de uma norma contraditória em si mesma, ou inapta originalmente para ser aplicada.36

Vê-se, assim, que os postulados preocupam-se não com a finalidade a ser buscada, como

os princípios, mas sim com a forma pela qual esta finalidade será atingida e os princípios

serão aplicados. Tratam-se de metanormas que “estabelecem a estrutura de aplicação de

outras normas, princípios e regras” e que “permitem verificar os casos em que há violação às

normas cuja aplicação estruturam”37. A rigor, os postulados não prescrevem objetivos ou

condutas; eles estabelecem os mecanismos pelos quais se pode analisar se as normas que

fazem tal prescrição estão ou não sendo observadas, como uma moldura de quesitos que tem

de ser preenchida diante do caso concreto.

Fechado o parêntese e voltando à questão que nos ocupa, chama a atenção, para a

finalidade de responder à pergunta aqui posta, a seguinte afirmação de ÁVILA:

(...) os princípios não determinam diretamente (por isso prima-facie) a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização

35 ÁVILA. Op. Cit., nota 33, p. 113-114. 36 ÁVILA, Humberto. “Razoabilidade: definição e aplicação”, in OSÓRIO, Fabio Medina e SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo –Estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 437. 37 ÁVILA. Op. cit, nota 33, p. 88.

depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim (...).38

Como uma norma que determina diretamente a prevalência apriorística de uma solução

sobre outra, sem perquirir se a solução prestigiada promoverá em melhor medida o fim visado

pelos princípios subjacentes aos interesses em jogo, pode ser considerada um princípio?

Este é exatamente o caso do chamado “princípio” da supremacia do interesse público,

pois o seu comando normativo é no sentido de uma primazia prévia do interesse que for

identificado como público sobre aquele que for caracterizado como particular.

A aplicação desse “princípio” faz vistas grossas às peculiaridades do caso concreto,

ignora o fato de que o interesse particular pode ser fundamentado por normas jurídicas válidas

e se recusa a analisar se, na situação em discussão, as normas que sustentam o interesse

particular possuem ou não um maior peso relativo, à luz dos valores e princípios (verdadeiros)

consagrados no ordenamento jurídico, especialmente na Constituição.

Em resumo, o “princípio” da supremacia do interesse público contraria a própria noção

conceitual de princípio e, portanto, encerra uma contradição em termos.

Por outro lado, o “princípio” da supremacia do interesse público não se amolda ao

conceito de postulado, porquanto não fornece instrumentos para a aplicação de normas que

indiretamente prescrevem comportamentos, mas sim determina previamente a prevalência de

um determinado interesse (ou comportamento), no caso de colisão com outros, prescindindo

de qualquer raciocínio ou argumentação inerente aos postulados.

A rigor, o “princípio” da supremacia do interesse público consubstancia verdadeira regra

que impõe previamente ao aplicador do direito a escolha de um interesse determinado.

Utilizando a idéia de HUMBERTO ÁVILA acerca desta espécie normativa, o “princípio” da

supremacia do interesse público é norma “descritiva” e “com pretensão de decidibilidade e

abrangência”, porque sua aplicação decide todo e qualquer conflito entre interesse público e

interesse privado sempre da mesma forma, diga-se, em favor do primeiro, sem admitir ou

instrumentalizar qualquer tipo de ponderação.

Esta caracterização normativa da supremacia do interesse público é, para nós, bem

identificada por HUMBERTO ÁVILA:

Do modo como a teoria geral do Direito modernamente analisa os princípios prima facie, cujo significado resulta de uma recíproca implicação entre os princípios, não há dúvida de que ele não é uma norma-princípio: sua descrição abstrata não permite

38 Ibid, p. 55.

uma concretização em princípio gradual, pois a prevalência é a única possibilidade (ou grau) normal da sua aplicação, e todas as outras possibilidades de concretização somente consistiriam em exceções e, não, graus; sua descrição abstrata permite apenas uma medida de concretização, a referida ‘prevalência’, em princípio independentemente das possibilidades fáticas e normativas; sua abstrata explicação exclui, em princípio, a sua aptidão e necessidade de ponderação, pois o interesse público deve ter maior peso relativamente ao interesse particular, sem que diferentes opções de solução e uma máxima realização das normas em conflito (e dos interesses que elas resguardam) sejam ponderadas; uma tensão entre os princípios não se apresenta de modo principial, pois a solução de qualquer colisão se dá mediante regras de prevalência estabelecidas a priori e não ex post, em favor do interesse público, que possui abstrata prioridade e é principialmente independente dos interesses privados correlacionados (p. ex. liberdade, propriedade). O referido ‘princípio’ é – tal como seria definido pela teoria geral do Direito – uma ‘regra de preferência no caso de colisão’ (‘Kollisionspräferenzregel’) em favor do interesse público, nunca, porém, uma norma-princípio prima facie. 39

Afastada a conceituação de princípio atribuída à supremacia do interesse público, resta

analisar se a verdadeira regra nela consubstanciada encontra fundamento de validade no

ordenamento jurídico brasileiro.

39 ÁVILA, Humberto. “Repensando o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o particular’”, in SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 184-186.

3. INTERESSE PÚBLICO NO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL

BRASILEIRO

Após fixarmos o nosso entendimento acerca da qualidade normativa da supremacia do

interesse público sobre o particular e termos constatado que não é possível atribuir-lhe o

caráter de princípio, é necessário investigar se o ordenamento constitucional brasileiro

agasalha esta verdadeira “regra de supremacia”, ou, nos dizeres de HUMBERTO ÁVILA,

esta “regra de preferência no caso de colisão”.

Para tanto, estudaremos as previsões constitucionais que versam sobre o interesse

público, com o intuito de concluirmos se a norma fundamental do ordenamento jurídico

brasileiro identifica de modo uniforme um interesse público merecedor de especial proteção.

Em seguida, faremos uma breve abordagem de uma norma-princípio que, a nosso ver, é

capaz de iluminar o estudo em tela e confirmar ou infirmar a conclusão a qual se chega por

meio do supracitado estudo da Constituição Federal: o princípio da subsidiariedade.

Feito isto, examinaremos a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal

(STF), que, como intérprete máximo da Constituição Federal, inúmeras vezes teve a

oportunidade de analisar a existência da norma de supremacia do interesse público sobre o

particular e, se fosse o caso, aplicá-la à questão concreta posta à sua frente.

Sabemos que não se pode extrair a existência ou não de uma norma abstrata da

apreciação concreta realizada pela jurisprudência acerca de casos específicos. No entanto,

entendemos útil esta análise, pois muitos julgamentos partem de premissas fulcradas na

interpretação dada pela Corte Constitucional à norma fundamental, ou seja, exatamente o que

o presente estudo pretende fazer. A diferença é que àquela Corte foi atribuída competência

constitucional para tal interpretação, com força vinculante, enquanto este trabalho utiliza-se

de licença acadêmica para realizar a mesma interpretação.

Finalmente, com base no que foi fixado nos 3 (três) sub-capítulos anteriores, proporemos

uma construção para o interesse público cujo atendimento deve ser sempre privilegiado e

buscado, em substituição à idéia que atualmente existe acerca do “princípio” da supremacia

do interesse público.

Resumidamente, esta será a segunda aproximação deste trabalho: por meio da análise do

ordenamento constitucional, de uma das normas que podem auxiliar esta análise (princípio da

subsidiariedade) e da jurisprudência constitucional, procuraremos construir um significado

para interesse público que realmente seja extraível do ordenamento jurídico brasileiro.

3.1. INTERESSE PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O vocábulo interesse é encontrado em inúmeras previsões constitucionais e sempre vem

acompanhado de também incontáveis adjetivos, o que torna difícil a visualização de um

significado unívoco para tais expressões.

A despeito dessa dificuldade, façamos um exame analítico e tão sucinto quanto possível

dessas previsões constitucionais.

A expressão interesse público é encontrada nos seguintes dispositivos constitucionais:

(a) art. 19, I, que veda aos entes federativos “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”; (b) art. 37, IX, que prevê a possibilidade de a lei estabelecer os casos em que a Administração Pública poderá efetuar “contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”; (c) art. 57, §6°, II, que prevê a possibilidade de convocação extraordinária do Congresso Nacional “em caso de urgência ou interesse público relevante”; (d) art. 66, §1°, que disciplina a possibilidade de o Presidente da República vetar projeto de lei se considerá-lo, “no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público”; (e) art. 93, VIII, que prevê a possibilidade de “remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público”, e IX, que dispõe sobre o sigilo processual “em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”; (f) art. 95, II, que institui exceção à garantia de inamovibilidade dos juízes “por motivo de interesse público”; (g) art. 114, §3°, que estabelece a competência do Ministério Público do Trabalho para ajuizar dissídio coletivo, no “caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público”; (h) art. 128, I, “b”, que garante aos membros do MP a inamovibilidade, “salvo por motivo de interesse público”; (i) art. 231, §6°, que declara “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” de terras indígenas”, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União”; e

(j) art. 51, §§2° e 3°, do ADCT, que, respectivamente, estabelece que a revisão de concessões e doações de terras públicas com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 01.01.1962 a 31.12.1987, “obedecerá aos critérios de legalidade e de conveniência do interesse público”, e prevê a possibilidade de, “havendo interesse público”, tais terras serem revertidas ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.

A nosso ver, a análise de todas as previsões acima leva a um terreno vazio, pois não

revela, minimamente, o conteúdo do interesse público a que elas fazem referência: ora

inexiste informação sobre esse conteúdo (letras a, b, f, h); ora o interesse público é dissociado

de outras situações, tais como urgência (letra c) e contrariedade à constituição (letra d); ora é

revelada uma parcela do interesse público, como o direito à informação (letra e); ora é

equiparado a interesse da população, pois é esta quem sofre com a greve em atividade

essencial (letra g); ora é sinalizada a existência de interesse público de um ente federativo

específico (letra i); e ora é assinalado que o interesse público passa por um juízo de

conveniência (letra j).

Em suma, apenas pelo ordenamento positivo constitucional, interesse público possui

tantos significados desconexos entre si que acaba não conseguindo significar nada, em

princípio, o que denota que o seu conteúdo deverá ser construído de outras maneiras.

Para auxiliar essa construção, é importante observar os outros “interesses” albergados

pela Constituição.

A expressão interesse social é objeto de dispositivos constitucionais que versam sobre a

desapropriação, que pode se dar por esse interesse (art. 5°, XXIV40); sobre a proteção de

criações, que é feita tendo em vista esse interesse (art. 5°, XXIX41); sobre a restrição de

publicidade dos atos processuais por exigência do tal interesse social (art. 5°, LX42); e sobre a

declaração de imóvel de interesse social para fins de reforma agrária, autorizando a União a

propor a competente ação de desapropriação. Assim, há momentos em que o interesse social

valida a intervenção estatal e há situações em que o ele dá ensejo à proteção do indivíduo, não

se podendo extrair, também neste caso, um conteúdo pré-determinado.

40 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.” 41 “XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.” 42 “LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.”

Já a expressão interesse pessoal ou particular é encontrada nos dispositivos que abordam

a gratuidade na obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e

esclarecimentos sobre situações de interesse pessoal (art. 5°, XXXIV, b43); sobre legitimidade

de organização sindical, de interesse de classe ou de associação impetrar mandado de

segurança coletivo em defesa do interesse particular dos seus membros e associados; e a

respeito da impossibilidade de o Deputado ou Senador que se licenciar “para tratar, sem

remuneração, de interesse particular” perder o mandato.

Há, também, a expressão interesse coletivo, utilizada pela CF/88 quando trata da

possibilidade de o Estado explorar diretamente atividade econômica, o que só é permitido

“quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”

(art. 173), e da função do sistema financeiro nacional de “promover o desenvolvimento

equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”.

A Constituição faz menção a interesse local ou dos Municípios, ao disciplinar a

possibilidade de iniciativa popular originar projeto de lei “de interesse específico do

Município, da cidade ou de bairros”, bem como outorgar aos Municípios competência para

“legislar sobre assuntos de interesse local” e “organizar e prestar, diretamente ou sob regime

de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”.

Há, ainda, a expressão interesse da União, constada em artigos que prevêem a

competência dos Juízes Federais para julgarem “os crimes políticos e as infrações penais

praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades

autárquicas ou empresas públicas” (art. 109, IV) e a competência da Polícia Federal para

“apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e

interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas”.

Verifica-se, outrossim, o interesse nacional, constante de dispositivos que regulam a

perda da nacionalidade do brasileiro que tiver cancelada a sua naturalização, em virtude de

atividade nociva àquele interesse (art. 12, §4°, I); a possibilidade de a União instituir

Empréstimo Compulsório “no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante

interesse nacional” (art. 148, II); a disciplina a ser dada ao capital estrangeiro, que deverá ter

“base no interesse nacional”; e a possibilidade de a União delegar a terceiros, “no interesse

nacional”, mediante autorização ou concessão, a pesquisa e a lavra de recursos minerais (art.

176, §1°).

43 “XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: (...) b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.”

A par destas, há diversas outras expressões formadas com o vocábulo interesse e que

denotam tantos significados quantos são os dispositivos constitucionais em que empregadas,

como interesse comum (art. 25, §3°), interesses profissionais ou previdenciários (art. 10), dos

índios (art. 232, por exemplo), do Governo Brasileiro (art. 52, § único), da soberania do País

(art. 231, §5°), de Categorias Profissionais e Econômicas (art. 149), de Estados (art. 155, §2°,

V, b), interesses fazendários nacionais (art. 237) e até de entidades fechadas de previdência

privada (art. 202, §6°).

Chama a atenção, ainda, o número de previsões que abarcam mais de um interesse, como

o direito de o cidadão receber de órgãos públicos informações “de seu interesse particular, ou

de interesse coletivo ou geral” (art. 5°, XXXIII); a competência dos sindicatos para a defesa

dos “direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria” (art. 8°, III); e a função do MP

de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e

social, do meio ambiente e de outros interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127).

A inexistência de coerência e univocidade entre os diversos interesses contidos na CF/88

não deve levar à conclusão de que não existe um interesse ou uma finalidade fundamental no

ordenamento jurídico.

Na verdade, tal constatação apenas revela que esse interesse, se existir, não pode ser

extraído de interpretações estanques do ordenamento constitucional positivo, mas sim obtido

por meio da análise conjunta de todo o sistema jurídico, de toda a estrutura jurídica

consagrada na Constituição Federal.

Por essa razão, a análise do ordenamento constitucional revela que é incabível identificar

integralmente tal interesse com um daqueles positivamente previstos na CF/88, pois esta

contém inúmeros outros muitas vezes antagônicos entre si.

Fazer tal identificação seria restringir aquele interesse a apenas uma de suas facetas, ou

apenas um dos seus instrumentos, o que feriria de morte a coerência do sistema como um

todo.

3.2. O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE: UM AUXILIAR

Em Estados que, como o brasileiro, adotam o Federalismo como forma de estruturação

das diversas esferas de poder, existe uma pulverização ou capilarização da distribuição desse

poder, que não é centralizado, mas sim exercido por diversos entes, estatais ou não.

O estabelecimento de um sistema federativo através da adoção de uma Constituição e a

criação de órgãos federativos constitucionais configuram atos fundamentais para a criação de

um Estado que permite o controle do processo político, estimulando a permanência, a

integração e a sucessão das gerações, bem como consolida e fomenta a manutenção das

garantias constitucionais e dos princípios federativos do processo político de governo44.

Vinculado a essa idéia de Federalismo, exsurge o Princípio da Subsidiariedade, o qual

propugna que:

As sociedades são subsidiárias em relação à pessoa, ao passo que a esfera pública é subsidiária em relação à esfera privada. Como corolário, não se deve transferir a uma sociedade maior aquilo que pode ser realizado por uma sociedade menor. Tratando-se de coletividade intermediária, torna-se mais adequado determinar a natureza da autonomia, que deve ser consentida.45

Em outras palavras, deve ser preservada a competência das unidades de poder menores,

sendo que as maiores somente devem atuar nas tarefas em que aquelas primeiras sejam

impotentes ou ineficientes, denotando o caráter supletivo destas últimas. Neste diapasão, “o

Estado não deve assumir por si as atividades que a iniciativa privada e grupos podem

desenvolver por eles próprios, devendo o Estado auxiliá-los, estimulá-los e promovê-los”46.

Por esse princípio, garante-se certo nível de autonomia a todos os agentes sociais, sejam

estatais ou não, os quais exercem funções reconhecidamente importantes para a consecução

dos objetivos constitucionalmente consagrados e “preconiza-se a distribuição de competências

entre o Estado e a Sociedade Civil, entre o Público e o Privado”47.

Essa autonomia é limitada pelo campo de atuação dos outros agentes e não existe quando

o agente não tenha capacidade de atuar eficientemente para o atingimento dos referidos

objetivos. Por exemplo, se o agente social A tem competência e consegue desempenhar de

maneira eficaz as funções A’ e A’’, mas realiza de maneira ineficiente a função B’, ele

somente terá autonomia para exercer as duas primeiras, ficando a última para o agente que

tenha competência para tanto (no caso, o agente B).

44 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade – conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 44. 45 RIALS, Stéphane apud CHAVES, Jorge Fulgêncio Silva. O Princípio da Subsidiariedade - Como princípio jurídico de fomento à integração harmônica de Estados em Desenvolvimento. Disponível em <http://www.iptan.edu.br/revista/artigos/texto4.pdf>, 26 fev 2008. 46 BIDART CAMPOS, German J. apud GONÇALVES, Vania Mara Nascimento. Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 106. 47 GONÇALVES. Op. cit., nota 46, p. 131.

Nesse sentido, são “delegadas” funções a diversos agentes ramificados: por um lado,

reconhece-se a maior potencialidade de os entes governamentais mais próximos da população

atenderem de maneira mais eficaz os anseios desta última; por outro lado, ganham relevância

não só os órgãos integrantes da Administração Pública direta e indireta, mas também os da

sociedade civil e até mesmo os cidadãos individualmente considerados, eis que a conduta de

todos e de cada um desempenha um papel importante no jogo social.

Em suma, verifica-se que o Estado não é o único ator na concretização do interesse geral,

mas que há uma participação da sociedade como um todo e, por isso, todos os seus

componentes detêm certa dose de competência e devem se comportar adequadamente a essa

competência para contribuir à pacificação social48.

Neste cenário, a idéia de subsidiariedade tem dois principais alcances: a uma, constitui

um limite à intervenção do Estado, a qual somente será legítima se ocorrer para suprir a

ineficiência de um agente social ou para desempenhar uma função que, se desempenhada por

outro ente, não seria realizada de maneira eficaz; a duas, consubstancia a justificação da

intervenção do Estado, pois sempre que um ente for ineficiente, haverá margem para a

atuação do Poder Público.

A Autoridade Pública, assim, exerce duas funções, segundo a subsidiariedade:

(a) preservar a possibilidade de os atores sociais conduzirem suas próprias ações, agindo de acordo e ao encontro dos objetivos constitucionais; e (b) “incitar, sustentar e finalmente suprir, quando necessário, os atores insuficientes”49.

Dessa forma, o Estado intervém para garantir a liberdade de ação dos particulares e toma

a incapacidade destes como limite dessa liberdade e como autorização para aquela

intervenção.

A inserção dessa noção advinda do Princípio da Subsidiariedade no ordenamento jurídico

brasileiro pode ser extraída de diversas previsões constitucionais que positivaram o estímulo

ao desempenho, por atores sociais descentralizados, de atividades que propiciem ou

contribuam para o cumprimento dos objetivos sociais constitucionalmente reconhecidos.

Talvez a primeira previsão nesse sentido, na Constituição Federal de 1988, encontre-se

no seu art. 1°, II, que eleva a fundamento da República a cidadania, ou seja, a necessidade de

os cidadãos poderem se valer de direitos que lhes permitam atuar dignamente no jogo social,

48 A noção de pacificação social será mais profundamente desenvolvida adiante. 49 BARACHO. Op. cit., nota 44.

seja politicamente, economicamente ou de outros modos legítimos. A importância dada à

cidadania pela CF/88, que a fez ser apelidada pelo então Deputado Federal Ulisses Guimarães

de “a constituição cidadã”, bem demonstra a importância do cidadão, do administrado, da

pessoa humana (art. 1°, III, da CF/88) para a consecução dos objetivos da sociedade

brasileira.

Após esta primeira indicação da direção sinalizada pela nossa Constituição, são inúmeros

os dispositivos que apontam para o mesmo sentido.

O art. 5°, XVII e XVIII, ao reconhecer o direito de livre associação e condicioná-lo a

“fins lícitos”, bem como ao privilegiar a formação de cooperativas, estimula a que os cidadãos

se unam para garantir o pleno desempenho daquela cidadania e cooperem para que alcancem

objetivos comuns.

Esse estímulo é ainda reforçado pelo inciso XXI do mesmo artigo, que confere

legitimidade às entidades associativas para representar seus filiados judicial ou

extrajudicialmente, tornando-as meios eficazes para a defesa de direitos constitucionalmente

protegidos, reforço este corroborado pelo inciso LXX que atribui aos partidos políticos com

representação no Congresso Nacional, às organizações sindicais, entidades de classe ou

associações a competência para impetrar mandado de segurança coletivo.

O poder que se buscou conferir a todos os cidadãos é também exemplificado pelo inciso

LXXIII do art. 5°, que atribui a qualquer cidadão a legitimidade para propor ação popular,

independentemente do pagamento de custas judiciais ou honorários sucumbenciais.

Existem inúmeros outros exemplos de como a Constituição delegou diversas funções que,

em tese, seriam de interesse geral, para atores desvinculados do Estado ou a este ligados

apenas indiretamente. A disciplina das associações profissionais ou sindicais (art. 8°) e dos

partidos políticos (art. 17), a possibilidade de a União permitir a exploração indireta dos

serviços de telecomunicações (art. 21, XI), de radiodifusão sonora de sons e imagens (art. 21,

XII, a), de energia elétrica (art. 21, XII, b), de navegação aérea, aeroespacial e a infra-

estrutura aeroportuária (art. 21, XII, c), de transporte ferroviário e aquaviário entre portos

brasileiros (art. 21, XII, d), de transporte rodoviário interestadual e internacional de

passageiros (art. 21, XII, e) e os portos marítimos, fluviais ou lacustres (art. 21, XII, f), são

outros casos típicos de descentralização, para ficarmos apenas no âmbito da União Federal.

Outro exemplo típico dessa descentralização é extraído da previsão de competência

comum da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23) de exercerem

funções primordiais para o alcance dos objetivos constitucionais, como em relação à saúde e

assistência pública (inciso II), ao meio ambiente (inciso VI e VII), à habitação (inciso IX), à

pobreza e à marginalização (inciso X) etc., repartindo a responsabilidade pela execução de

funções de presumível relevância para a sociedade.

O reconhecimento da importância daqueles entes mais próximos da população é

verificado no art. 30, que estabelece competir aos Municípios, dentre outros, a organização e

prestação de serviços públicos de interesse local (inciso V) e a promoção do adequado

ordenamento territorial (inciso VIII).

E a Constituição também possui disciplina específica para proteger a autonomia descrita

acima, ao prever taxativamente as hipóteses em que será possível a intervenção da União nos

Estados e no Distrito Federal (art. 34) e do Estado em seus Municípios (art. 35).

Diversas outras manifestações do princípio da subsidiariedade na Constituição Federal de

1988, em especial a busca por “uma relação mais harmônica entre os setores público e

privado”50, são descritas por SILVIA FABER TORRES, como nas áreas de saúde (art. 197 e

198, III), da assistência social (art. 204, I), da educação (arts. 205 e 206, IV), da cultura (art.

216, §1º), do meio ambiente (art. 225), da criança e do adolescente (art. 227, §1º), dentre

outros51.

A descentralização do poder é constatada, ainda, naquela seara que notoriamente é a mais

sensível para os governantes: os cofres públicos.

Nesse sentido, são sintomáticas as previsões contidas no Título da Constituição dedicado

à Tributação e ao Orçamento, a começar pela atribuição de competência tributária não só à

União, mas também aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (art. 145), que tornam

ainda mais cristalino o animus de pulverizar ou ramificar as competências estatatais.

Na verdade, o estudo do Sistema Constitucional Tributário revela que não só a

descentralização da Administração Pública exerce forte influência, mas também que a

tributação é utilizada como meio de fomentar nos agentes sociais privados o desempenho das

funções cidadãs, ou seja, aquelas voltadas à maximização das potencialidades dos indivíduos

e do direcionamento dessas potencialidades à consecução dos objetivos constitucionais.

Exemplo claro é a exigência contida no art. 146, III, “c” e “d”, a CF/88, que atribui à Lei

Complementar, respectivamente, a competência para estabelecer normas gerais tributárias

sobre o “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades

cooperativas” e sobre a “definição de tratamento diferenciado e favorecido para as

microempresas e para as empresas de pequeno porte”.

50 TORRES, Silvia Faber. O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 148. 51 Ibid., p. 148-149;157-159;163.

Não é por mero capricho que as cooperativas e as microempresas merecem um

tratamento tributário diferenciado. O pano de fundo dessa previsão constitucional é muito

mais complexo, mas pode ser satisfatoriamente justificado pelo Princípio da Subsidiariedade,

na medida em que essa tributação diferente tem o escopo extrafiscal de facilitar a atuação

dessas entidades, notadamente porque elas são detentoras de maior capacidade de promover o

atendimento de objetivos constitucionais que não mais têm de ser fomentados apenas ou

principalmente pela Administração Pública, como a promoção do pleno emprego.

A inserção do Princípio da Subsidiariedade no ordenamento constitucional brasileiro é

resumida a por SILVIA FABER TORRES:

A Constituição de 1988 é um marco importante para o processo de reestruturação do Estado e, embora comprometida com grupos os mais diversos, o que põe sob a suspeita de ilegitimidade vários dos seus dispositivos, é certo que ela deixou-se inspirar pelos postulados do princípio da subsidiariedade, logrando avançar, ainda que timidamente, em direção de um Estado menos centralizador e mais coordenado com a sociedade.52

E, após análise de diversos dispositivos constitucionais que revelam a manifestação da

subsidiariedade nos mais diversos campos (social, econômico etc.), a autora arremata em

relação à ordem econômica, citando SERGIO D’ANDRÉIA FERREIRA 53:

Não parece caber dúvida, portanto, que o Brasil cedeu à inevitável transformação do paradigma estatal, adotando um modelo de Estado subsidiário com ingressar, ‘em termos mais incisivos, no real regime da economia de mercado, tendo, conforme gizado, a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, e como princípios desta a propriedade privada e a livre concorrência, consagrando a legitimidade do poder econômico não abusivo e do lucro não arbitrariamente aumentado’.54

Fica evidente, assim, a progressiva ingerência do Princípio da Subsidiariedade na

Constituição de 1988, o que revela a sua relevância e o papel significativo que ele pode

desempenhar na interpretação do ordenamento jurídico brasileiro e na solução a ser dada aos

diversos casos concretos que se ponham no caminho de qualquer aplicador do Direito.

Esta premissa será fundamental para a construção que será proposta em relação ao

verdadeiro interesse público do ordenamento constitucional brasileiro no sub-capítulo 3.4.

52 TORRES. Op. cit., nota 50, p. 150. 53 FERREIRA, Sergio D’Andréia. O Incentivo Fiscal como Instrumento de Direito Econômico. Revista de Direito Administrativo 211:31-46, 1998. 54 TORRES. Op. cit., nota 50, p. 159.

3.3. A JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL

Embora, como anteriormente dito, não se possa extrair da solução dada a um determinado

caso concreto a existência de uma norma jurídica abstrata, é importante a análise da

jurisprudência do STF acerca da existência, ou não, no ordenamento jurídico brasileiro, de

uma supremacia do interesse público determinada pela Constituição Federal.

É certo que existem precedentes da Suprema Corte que apontam no sentido da existência

a priori dessa supremacia, como ocorreu no julgamento da ADI-MC n° 1.00355, em que o

STF foi expresso ao afirmar:

A Constituição da República, ao fixar as diretrizes que regem a atividade econômica e que tutelam o direito de propriedade, proclama, como valores fundamentais a serem respeitados, a supremacia do interesse público, os ditames da justiça social, a redução das desigualdades sociais, dando especial ênfase, dentro dessa perspectiva, ao princípio da solidariedade, cuja realização parece haver sido implementada pelo Congresso Nacional ao editar o art. 1° da Lei n° 8.441/92.

Estava em discussão a constitucionalidade de dispositivo que ampliava as hipóteses de

responsabilidade civil das entidades seguradoras no tocante a acidentes de trânsito,

contemplando novas situações nas quais os prejuízos dos cidadãos seriam ressarcidos pelo

consórcio da qual participam, obrigatoriamente, aquelas entidades que operam o “Seguro

obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores em Vias Terrestres” –

DPVAT.

A Suprema Corte rechaçou os argumentos de restrição à livre atividade das seguradoras e

de confisco, especialmente o primeiro, sob o fundamento de que “é competência da União

Federal legislar sobre seguros (art. 22, VII, da Constituição), podendo a Administração

Pública, ao fazê-lo, condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos

individuais, em benefício da coletividade” (grifou-se).

Vê-se, assim, que ao menos nesse julgamento o Tribunal identificou um benefício da

coletividade que prevaleceria sobre o interesse individual das seguradoras e, portanto,

mereceria prestígio, conferindo legitimidade à norma legal que limitava esse último interesse.

Reconheceu-se, dessa maneira, que o interesse da coletividade, identificado pelo legislador,

seria dotado de supremacia em relação ao interesse do particular.

A idéia de que certos interesses da Fazenda Pública corresponderiam a um interesse

público digno de prevalência sobre o interesse particular foi reafirmada no julgamento do RE-

QO n° 413.47856, em que se discutia a possibilidade de suspensão dos prazos processuais que

correm contra a Fazenda Pública, no caso de greve dos servidores responsáveis pela

representação desta perante o Poder Judiciário.

Na solução do problema, a relatora, Min. Ellen Gracie, foi enfática ao afirmar:

Tal paralisação coloca em risco a defesa da União e de suas autarquias e fundações perante o Supremo Tribunal Federal, na medida em que os prazos processuais deixarão de ser observados. Esta circunstância poderá acarretar prejuízos irreparáveis ao erário e, principalmente, ao interesse público.

Bem lançadas foram as considerações feitas pelo Min. Marco Aurélio, que ficou vencido

ao final do julgamento:

Surge a problemática da suspensão dos processos, do afastamento da jurisdição, considerados os cidadãos em geral que, de alguma forma, tenham processo em curso contra o Estado, a União, as autarquias e as fundações públicas. Encontramos base para simplesmente suspender esses processos? Poderemos adotar a mesma prática, em se tratando de greve no setor privado, quando haja paralisação, por exemplo, de uma grande empresa, tendo em conta a greve? A resposta, para mim, é negativa. Não consigo ver motivo de força maior, nem justa causa, para se chegar a essa medida extrema: afastamento da jurisdição com suspensão dos processos.

O Min. Marco Aurélio vai adiante e, seguindo a doutrina de CELSO ANTONIO

BANDEIRA DE MELLO, utiliza a distinção entre interesse público primário e secundário,

para justificar sua posição:

Distingo, Senhor Presidente, o interesse público primário, que se irradia a ponto de se colocar no patrimônio dos cidadãos em geral, do interesse público secundário. A espécie, a meu ver, revela o interesse público secundário. E quando comparece em juízo, quando é parte numa relação processual, o Estado, evidentemente, não goza de soberania e se igualiza, portanto, às pessoas naturais e jurídicas em geral.

Independentemente dessas decisões isoladas e em que pese utilizar nominalmente o

“princípio da supremacia do interesse público” em diversas outras ocasiões, o STF realiza

verdadeira ponderação entre os interesses postos em causa, no intuito de descobrir qual deles

corresponde ao que chama de interesse público, o qual, no final das contas, é identificado

naquele que melhor cumpre os desígnios constitucionais.

55 Pleno, rel. Min. Celso de Mello, unânime, j. em 01.08.1994, DJ de 10.09.1999. 56 Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, maioria, DJ de 04.06.2004.

Tanto é assim que, em outras oportunidades, ao contrário do acórdão acima, o Tribunal

refutou tentativas de se conferir novos privilégios processuais ao Estado, fundamentadas na

prevalência do interesse público, como ocorreu no julgamento da Medida Cautelar requerida

na ADI n° 1.75357, ajuizada contra a MP n° 1.577-6/97, que aumentava de 2 (dois) para 5

(cinco) anos o prazo decadencial da ação rescisória e criava uma nova hipótese de cabimento

desta ação, em ambos os casos apenas quando a parte autora fosse a Fazenda Pública.

Vale trazer à colação o seguinte trecho do voto do Min. Sepúlveda Pertence, relator do

processo:

Sob o prisma substancial, de sua vez, igualmente não se pode negar plausibilidade à argüição de afronta por ambas as normas impugnadas dos princípios constitucionais da isonomia e do devido processo legal, que, no ponto, se confundem. (...) Certo, quanto uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais da tradição do nosso processo civil: assim, o reexame necessário da sentença contrária e a dilatação de prazos para a resposta e os recursos. São discriminações, contudo, que (...) se tem reputado constitucionais porque não arbitrárias, na medida em que visem a compensar deficiências da defesa em juízo das entidades estatais. (...) Se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais. (...) De qualquer sorte, o que importa se possa pôr em dúvida não é a razoabilidade em si de uma ou de outra das regras editadas, mas sim a de sua unilateralidade, a favorecer unicamente o Poder Público.

Como se vê, na seara processual, embora o STF identifique o interesse da Fazenda

Pública como um interesse público que merece prevalência sobre o particular, esta primazia é

temperada pela isonomia inerente e necessária à relação processual e à razoabilidade do

privilégio concedido à Administração Pública, sempre à luz dos ditames constitucionais.

Em outros julgamentos, por sua vez, o STF estabeleceu a prevalência do interesse

público quando em risco a continuidade das atividades estatais.

Nesse sentido foi o julgamento proferido na AC-MC n° 1.27158, no qual se pôs em debate

a possibilidade de inscrição dos Estados-membros no SIAFI, em razão de inadimplência na

prestação de contas quanto às obrigações decorrentes de determinado convênio celebrado com

a União Federal.

57 Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ de 12.02.1998. 58 Pleno, rel. Min. Eros Grau, unânime, DJ de 13.04.2007.

No seu voto, o relator, Min. Eros Grau, entendeu pela existência de plausibilidade nos

argumentos apresentados pelo Estado, eis que:

(...) a permanência do Estado do Amapá no registro de inadimplência do SIAFI implica o imediato bloqueio das transferências de recursos federais em detrimento do interesse público, dando origem a prejuízos irreparáveis para o todo social. A adoção de medidas coercitivas para impelir a Administração ao cumprimento de seus deveres não pode inviabilizar a prestação, pelo Estado-membro, de serviços públicos essenciais, máxime quando o ente federativo é dependente dos recursos da União.

Deste posicionamento extrai-se a conclusão de que, para o STF, aquele caso concreto de

colisão entre o princípio da moralidade (transparência pela prestação de contas) e o princípio

da continuidade do serviço público (interesse público na manutenção dos serviços estatais) é

solucionado pelo prestígio pontual ao segundo, que supostamente seria afetado de maneira

fatal, caso o Estado sofresse a punição aplicável à conduta por ele efetivamente perpetrada.

Desta assertiva surge a seguinte pergunta: a inscrição no SERASA da dívida efetivamente

existente de uma pessoa jurídica com outra pessoa jurídica, ou seja, a inscrição regular

naquele cadastro, poderia ser contestada com o argumento de que as atividades da pessoa

jurídica devedora dependem da obtenção de crédito no mercado, a qual é inviabilizada por

aquela inscrição? A resposta afirmativa corresponde à inocuidade de qualquer cadastro desse

tipo.

Acontece que, a nosso ver, não é possível se sustentar que houve ou não a prevalência a

priori do interesse público. Afinal, o acórdão, bem ou mal, realizou a ponderação dos

interesses que estavam contrapostos, sem conferir a nenhum deles uma primazia prévia. Ao

contrário, a prevalência de um dos interesses não foi anterior a essa ponderação, mas decorreu

dela, razão pela qual o que se pode criticar não é a adoção da supremacia do interesse público,

mas, sim, a identificação do interesse que mereceria ser protegido.

Outro caso em que o STF prestigiou o interesse público correspondente à continuidade

dos serviços estatais é o da ADI n° 3.06859, na qual se debateu a possibilidade de contratação

de servidores públicos sem a realização de concurso público.

Neste caso, por apertada maioria de 6 (seis) votos a 5 (cinco), o Tribunal revelou o

entendimento de que a exigência do concurso público para o ingresso na carreira pública não

pode ser elevada a um status absoluto, em detrimento do funcionamento da atividade estatal

59 Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, maioria, DJ de 23.09.2005.

realizada pelo órgão no qual serão lotados os funcionários contratados sem concurso. Confira-

se o trecho do voto do Min. Eros Grau, que capitaneou a dissidência favorável à contratação:

A alegada inércia da Administração não pode ser punida em detrimento do interesse público, que ocorre quando colocado em risco o princípio da continuidade da atividade estatal. Este Tribunal não é instância de penalização da inércia da Administração. Deve considerar, fundamentalmente, o que está escrito na Constituição do Brasil.

No caso, o embate se colocou entre a regra que prevê o ingresso no serviço público por

meio de concurso, fundada nos princípios da transparência, impessoalidade, moralidade,

eficiência e publicidade, e o princípio da continuidade do serviço público.

O Tribunal, assim, realizou uma clara ponderação entre os interesses em jogo e, diante da

possibilidade (que entendeu concreta) de a prevalência da regra do concurso inviabilizar a

atividade estatal, adotou a solução que prestigia esta última, em prol “da própria sociedade e

da economia nacional”. Mais uma vez não houve a prevalência de um interesse público

previamente determinado, mas sim a identificação de qual interesse atenderia em maior

medida os ditames constitucionais.

Há que se notar que, como todo organismo composto por seres-humanos, o STF está

sujeito a rompantes e, no julgamento do ROMS n° 22.66560, conferiu ares de prevalência

absoluta à supremacia do interesse público sobre o particular, mas deixou em aberto como se

identificaria esse interesse supremo.

Nesse processo, uma empresa de telecomunicações pretendia ver garantido o seu direito

de obter autorização administrativa para “operar distribuição de sinais de televisão a cabo”,

uma vez que teria preenchido todos os requisitos estipulados na norma regulamentar que regia

a concessão desse tipo de autorização.

Impugnava o Ato da Administração Pública que, unilateralmente, sem motivação e a

despeito do cumprimento das condições estabelecidas por ela própria, negou a autorização

pretendida pelo particular, limitando claramente, assim, a atividade econômica desde.

Em seu voto, o Min. Marco Aurélio, relator do recurso, ressaltou que, embora a

autorização esteja compreendida “no âmbito dos atos discricionários, despontando o interesse

público”, no caso dos autos, “a administração, mediante a citada Portaria, foi adiante,

comprometendo-se a formalizar a autorização uma vez atendidos os requisitos previamente

lançados”.

Essas condições, segundo o Ministro, teriam sido o resultado da definição, pela própria

Administração Pública, do conteúdo do interesse público que se queria resguardar naquele

caso concreto. Ou seja, o interesse público que deveria ser protegido nas autorizações para a

distribuição de sinais de televisão a cabo seria alcançado pelo preenchimento dos requisitos

estabelecidos na norma regulamentar.

Por essa razão, o Relator proferiu voto favorável à empresa, valendo destacar passagem

referente ao dever de lealdade da Administração Pública para com os administrados, que pode

ser extraído do princípio da moralidade (art. 37 da CF/88):

Por isso, o indeferimento, após a Recorrente lograr êxito em mandado de segurança, visando à análise do pleito, resultou na colocação, em plano secundário, do que disposto anteriormente, valendo notar que se aguarda do poder público postura exemplar, não lhe sendo dado adotar posições ambíguas e que, alfim, apenas geram insegurança. Na hipótese dos autos, o administrador se autolimitou na liberdade de deliberar a respeito, vinculando-se aos parâmetros por si editados. Portanto, não tenho a Portaria como a encerrar uma simples faculdade, passível de ser implementada ao sabor dos critérios alusivos à conveniência e à oportunidade. Daí o ato indeferitório ter implicado, em última análise, não a observância de discricionariedade, mas arbitrariedade, no que discrepante do que estabelecido. A entender-se de forma diversa caminhar-se-á para o campo da liberdade total do administrador, podendo, em que pese haver se comprometido a deferir as solicitações, uma vez preenchidos os requisitos que fixara, vir a negá-las sob o manto protetor de estar no âmbito da prática de ato discricionário.

Verifica-se, nessa posição, a assunção de que o interesse público identificado por atos do

Estado (no caso, os parâmetros estabelecidos para que a empresa pudesse obter a autorização

pretendida) é dotado de tal supremacia que não apenas prevalece em relação aos interesses

particulares, como também vincula a Administração Pública, inclusive em benefício dos

particulares. O problema é que a definição de interesse público fica em aberto e, com isso, ao

arbítrio da própria Administração, o que joga por terra aquela vinculação.

No entanto, a dissidência capitaneada pelo Ministro Nelson Jobim foi vencedora nesse

julgamento.

Segundo o entendimento dessa maioria:

Prevalece no caso concreto a regra axiomática da supremacia do interesse público sobre o privado. Diferente do que afirmou o relator, não se trata de conceder liberdade total ao administrador.

60 2ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, rel. para acórdão Min. Nelson Jobim, maioria, j. em 14.03.2006, DJ de 04.08.2006.

É que o agente público, ou no caso dos autos o agente político (Ministro de Estado), no exercício de suas atribuições e a bem do interesse público pode, desde que expostos os motivos, deixar de executar ato de natureza precária, como é o caso da autorização. (...) Além disso, o administrado (CABOTEC) não pode obrigar a Administração (MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES) a conceder-lhe direito que tem como pressuposto de validade o preenchimento de requisitos objetivos (capacidade técnica), como também requisitos subjetivos (conveniência e oportunidade). Nesse sentido foi o parecer do PGR.

Portanto, a configuração do interesse público não dependeria apenas das características

objetivas do caso concreto, que já haviam sido abordadas na norma regulamentar, mas

passaria por um juízo subjetivo da Administração Pública, que, por conveniência ou

oportunidade, poderia desconsiderar o cumprimento do interesse público objetivamente

delineado e, assim, restringir os direitos do administrado.

A nosso ver, maior liberdade para o arbítrio não há, pois se atribui à Administração o

poder de definir, sem limite sequer no que anteriormente estabelecido por ela mesma, qual a

solução que atende ao interesse público e, assim, merece prevalência.

Já na análise do MS n° 25.18161, a Corte Suprema, mais uma vez pelo voto do Ministro

Marco Aurélio, abordou a supremacia do interesse público sobre o particular.

Estava em discussão a submissão dos atos dos dirigentes de sociedades de economia

mista, empresas e funções públicas ao crivo do Tribunal de Contas, analisando-se a natureza

desse tipo de entidade e se elas estão ou não sujeitas ao controle e fiscalização daquele órgão,

tipicamente atuante quando envolvida a Administração Pública direta e indireta.

Ao proferir seu voto, o Min. Marco Aurélio construiu entendimento de que as sociedades

de economia mista, a par de constituírem pessoa jurídica de direito privado, sujeitam-se aos

ditames do interesse público, veja-se:

O fetichismo em relação à personalidade de direito privado das sociedades de economia mista não pode subverter os valores em questão. Como ressaltado por Celso Antônio Bandeira de Mello, a relativa flexibilidade que lhes foi garantida serviu para que pudessem desempenhar com um pouco mais de liberdade os misteres para os quais foram criadas, mas jamais para que atuassem segundo parâmetros exclusivamente privados. Tal personalidade não pode ser usada como escudo protetor inviolável para que se conduzam apenas de acordo com as próprias metas. Há limites a serem observados, porquanto está em jogo a gestão de recursos também públicos. O traço nuclear das sociedades de economia mista, que as distingue de

61 Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, unânime, j. em 10.11.2005, DJ de 16.06.2006.

sociedades empresárias comuns, é o fato de operarem como coadjuvantes das diretrizes estatais e, desse modo, submeterem-se aos princípios inerentes à administração da coisa pública – a supremacia do interesse coletivo sobre o individual.

Em sendo as sociedades de economia mista instrumentos de consecução das diretrizes

estatais, “tudo recomenda que se dê a maior eficácia possível, considerados atos de

administrador que, em última análise, é escolhido pelo Poder Público, aos textos reveladores

da preservação da coisa pública”, especialmente porque os eventuais “desvios de conduta (...)

podem ser altamente prejudiciais ao erário”.

Impossível não notar, nesse caso, a margem para a equiparação do interesse público ao

interesse do erário. Se razões há para que os atos dos dirigentes das sociedades de economia

mista e outras entidades sujeitem-se ao controle do Tribunal de Contas, é certo que são elas de

maior relevância do que a simples proteção do erário, como a observância do princípio da

eficiência, da moralidade dentre outros.

Não se sustenta, aqui, a insignificância dos riscos para o erário; o que não se admite é que

esse risco seja elevado a tal grau que possa, em outros casos, gerar a supressão de direitos

fundamentais, o desatendimento de princípios constitucionais e a legitimação de atos da

Administração contrários à ordem jurídica.

De qualquer forma, isto parece ter sido bem observado pelo STF no julgamento da ADI

n° 3.07062. Estava em jogo um dispositivo da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte

que determinava que, na análise de licitações, os valores relativos aos impostos pagos àquele

Estado por cada concorrente fossem considerados para averiguação da proposta mais

vantajosa.

O Min. Eros Grau, relator da ação, afastou a alegação de que o interesse público que

deveria prevalecer seria a manutenção da legislação, pois proporcionaria a obtenção da

melhor proposta, em decorrência do privilégio ao concorrente que mais contribuir aos cofres

públicos. Fundamentou a sua posição na necessária observância do princípio da isonomia, de

modo que não poderia se estabelecer tratamento diferenciado entre os licitantes, com base em

um critério de discrímen que não guarda relação de congruência com o fim visado pela

licitação. Em suas palavras:

A licitação – tenho-o reiteradamente afirmado – é um procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Está voltada

62 Pleno, rel. Min. Eros Grau, unânime, DJ de 19.12.2007.

a um duplo objetivo: o de proporcionar à Administração a possibilidade de realizar o negócio mais vantajoso – o melhor negócio – e o de assegurar aos administrados a oportunidade de concorrerem, em igualdade de condições, à contratação pretendida pela Administração. A licitação, assim, há de ser concebida como uma imposição do interesse público, sendo seu pressuposto a competição. (...) Enquanto pressuposto da licitação, competição é possibilidade de acesso de todos e quaisquer agentes econômicos capacitados à licitação; ela, aqui, é concreção da garantia de igualdade (isonomia). (...) A lei – como qualquer outro texto normativo – pode sim, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio. (...) A ponderação ou consideração dos valores relativos aos impostos pagos à Fazenda Pública do Estado do Rio Grande do Norte pelo licitante não surge da natureza das coisas, nem é, de forma alguma, concretamente compreensível. Coloca o licitante em posição privilegiada, assegurando-lhe, desde o início do certame, injustificada vantagem sobre os demais que não sejam contribuintes no Estado ou, sendo-o, recolham ao Estado menos impostos do que o licitante que pague mais.

Desse modo, dois pontos ficam claros: primeiro, que o interesse público não pode ser

equiparado ao interesse do erário sempre que este último estiver em jogo; segundo, que o

interesse público pode variar de acordo com os interesses e princípios que estejam em disputa

em cada caso concreto, o que será melhor abordado na continuidade deste trabalho.

A licitação, aliás, parece ser um terreno fértil para a exploração da supremacia do

interesse público e da própria identificação deste.

Veja-se outro exemplo, no caso do RE n° 264.62163, quando se impugnou ato da

Administração que afastou a necessidade de procedimento licitatório, validado por decisão

judicial pautada em conceito genérico de interesse público e fez louvável menção, ainda que

implícita, à necessidade de competição para se escolher aquele que vai prestar o serviço

público, em suas palavras:

A sentença e o acórdão recorrido, ao assegurar o direito da recorrida de explorar linha interestadual não licitada, fundamentaram-se no interesse público. No entanto, além da duvidosa validade dessa substituição jurisdicional ao juízo administrativo, é necessário ponderar que não existem interesses públicos ‘fracionados’. Explico. O TRF da 5ª Região pretendeu atender ao interesse de potenciais usuários do serviço de transporte, caracterizando-o como interesse público, e o fez sem nenhuma referência a dados ou circunstâncias concretas. Ao assim proceder, desprestigiou aspectos fundamentais da própria noção de serviço público, a qual traz como

63 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, unânime, DJ de 08.04.2005.

implicações necessárias a obrigação de continuidade e o poder de fiscalização da autoridade pública, entre outras características. (...) A taxatividade das disposições constitucionais aplicáveis a casos como o presente impõe, sem maiores dúvidas, a observância do procedimento licitatório, como único adequado para garantir a efetiva proteção do interesse público, salvo situações excepcionais previstas na legislação. No caso, a omissão administrativa poderia, quando muito, resultar em responsabilização na esfera administrativa ou determinação judicial para a realização de certame, mas nunca justificaria a legitimação de uma única empresa, em detrimento de outras eventualmente interessadas, para a exploração direta do serviço.

Vale ressaltar que também a Min. Ellen Gracie, ao proferir voto-vista, salientou a

necessidade de competição para que a Administração possa escolher a proposta mais

vantajosa, “sem com isso descuidar dos princípios basilares da isonomia e da moralidade

administrativa”.

Ou seja, no conflito entre o interesse público dos passageiros na continuidade do serviço

público (princípio da continuidade do serviço público) e o interesse público consubstanciado

na necessidade de competição para se definir o particular que poderá prestar esse serviço

público (princípios da transparência, impessoalidade, da eficiência, da moralidade), o STF,

após ponderar dados do caso concreto, concluiu que a solução deveria ser favorável ao

segundo. Em outras palavras, diante das circunstâncias fáticas, a Suprema Corte decidiu a

ponderação de maneira oposta à resolução tomada na AC-MC n° 1.271, antes analisado.

No RMS n° 24.18864, o STF debateu se o cancelamento de procedimento licitatório por

motivo de “interesse público declarado e reconhecido” ofenderia o direito dos licitantes

habilitados.

O Min. Cezar Peluso, relator, abordou as peculiaridades do caso, que levaram à validação

da revogação do certame sem a oportunidade de manifestação (contraditório e ampla defesa)

das concorrentes já habilitadas:

Neste caso, sobreveio ponderável fator de inconveniência para o prosseguimento do certame, antes da abertura das propostas, e que foi a verificação, pelo Ministério das Comunicações - órgão licitante -, de que era indispensável aprimorar aspectos técnicos e econômicos do projeto em andamento, para ajustá-lo às diretrizes do plano plurianual 2000/2003. Nisso, julgou necessário resguardar o interesse público, garantindo desenvolvimento sustentável, competitivo e consistente ao setor de radiodifusão, na região de Araçatuba/SP, com inclusão de novos canais, além dos dois atualmente previstos. (...)

64 2ª Turma, rel. Min. Cezar Peluso, unânime, DJ de 14.09.2007.

Nessas circunstâncias, em que com a revogação nada sofreram os direitos e interesses privados, não havia lugar para exigência de observância de contraditório e ampla defesa, inerentes à cláusula constitucional do justo processo legal (due process of law), cujo alcance está em impedir ação arbitrária e lesiva do Estado. Aqui, nenhuma lesão é excogitável, nem, pois, alguma ofensa aos cânones invocados. Antes, si vera sint exposita, a revogação preservou interesse público contrário a uma licitação ainda por ser aperfeiçoada tecnicamente.

Fica assente, nesta medida, a existência de algumas condições para que a Administração,

discricionariamente, fundada em alegação de interesse público, possa revogar os seus atos,

sem a necessidade de observância de um procedimento administrativo aberto ao contraditório

e à ampla defesa:

(a) o interesse público que a revogação pretende atender deve ser exposto e motivado; (b) o ato revogado não pode ter o condão de gerar direitos subjetivos aos particulares; (c) a revogação não pode afrontar outros direitos subjetivos dos particulares interessados no ato revogado.

Novamente, verifica-se uma certa consolidação na posição do STF favorável à

consideração de todos os elementos fáticos e à ponderação dos diversos interesses jurídicos

envolvidos no caso que estiver sob análise, para se perquirir qual interesse pode ser

considerado público e, assim, merecer prevalência naquela situação.

Por outro lado, em julgamento emblemático no qual se colocou em pauta os limites de

atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito65, o STF chegou a uma posição que foi

diversas outras vezes utilizada quando esteve em jogo a supremacia do interesse público.

Um exemplo da utilização daquele precedente é o AgRg no RE n° 455.28366, no qual o

Estado de Roraima e uma servidora duelavam para saber se o fato de esta cursar o ensino

superior na Capital impedia que o ente federativo a lotasse no interior do Estado, conforme

disposto em Lei Complementar estadual.

O Estado postulava o direito de discricionariedade na lotação com base na supremacia do

interesse público e a servidora argumentava no sentido de que essa prática era vedada por lei.

Ao apreciar esse ponto específico e refutar as alegações do Estado, o Tribunal repetiu as

conclusões daquele precedente e asseverou:

65 Pleno, MS n° 23.452, rel. Min. Celso de Mello, unânime, j. em 16.09.1999, DJ de 12.05.2000. 66 2ª Turma, rel. Min. Eros Grau, unânime, j. em 28.03.2006, DJ de 05.05.2006.

não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

Desse trecho, extrai-se ser possível a restrição de “prerrogativas individuais ou coletivas,

desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição”. A razão de

relevante interesse público que pode, em tese, legitimar essa restrição é aquela tendente a “de

um lado, proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência

harmoniosa das liberdades”, sempre em observância à ordem jurídica e aos direitos e

garantias de terceiros.

Exsurge de novo, portanto, a noção de que o interesse público deve levar em conta os

caracteres do caso concreto, as normas constitucionais aplicáveis na situação de fato,

especialmente os princípios e direitos fundamentais, pois somente mediante o cotejo de todos

esses aspectos será possível definir se é ou não legítima a restrição de um interesse particular

em homenagem ao interesse público.

Nessa esteira, ao apreciar o AgRg no RE nº 243.59267, a Suprema Corte posicionou-se

contrariamente ao Estado no caso de demissão de um servidor público não estável “por

conveniência administrativa e interesse público”, em que não lhe foi facultado o direito à

defesa. O Min. Cezar Peluso, relator, seguiu a jurisprudência da Corte e asseverou que o

interesse público na demissão do servidor não estável não tem a força de restringir o direito

fundamental ao contraditório e à ampla defesa.

Há outros casos, também, em que o interesse público invocado pela Administração,

fundado em determinado princípio constitucional, entrou em conflito com interesses privados

também lastreados em princípios constitucionais.

67 1ª Turma, rel. Min. Cezar Peluso, unânime, j. em 07.10.2003, DJ de 05.03.2004.

Na ADI n° 1.95068, discutia-se a validade de lei do Estado de São Paulo que assegurava a

entrada de estudantes em casas de diversão, esporte, cultura e lazer mediante o pagamento de

“meia entrada”.

Neste caso, o STF identificou a tensão entre o princípio da livre iniciativa, que vedaria a

intromissão do Estado no preço cobrado de cada usuário, e o direito à educação, cultura e

desporto, que privilegiaria a “meia entrada”.

Em tal julgamento, o Tribunal entendeu válida a legislação Estadual, com base no voto

do relator, Min. Eros Grau, que assim colocou o seu pensamento:

É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema, o sistema capitalista, no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. (...) No caso, se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3°, da Constituição). Ora, na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. A superação da oposição entre os desígnios de lucro e de acumulação de riqueza da empresa e o direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, como meio de complementar a formação dos estudantes, não apresenta maiores dificuldades.

Note-se que houve divergência, uma vez que o Min. Marco Aurélio entendeu que,

embora o Estado possuísse uma liberdade relativa para intervir no campo econômico, a

medida contestada feriria a isonomia, pois a “meia entrada” não observaria a condição

financeira dos estudantes, com o que os desiguais (estudantes abastados e não abastados)

seriam tratados de maneira igual. Uma vez mais, a crítica que se pode fazer não é à adoção da

supremacia do interesse público, mas sim à solução dada pelo Tribunal no tocante a qual

interesse atenderia em melhor medida a Constituição Federal.

O mesmo tema da “meia entrada” foi debatido na ADI n° 3.51269, ajuizada em face de

uma lei do estado do Espírito Santo, que garantia meia entrada aos doadores regulares de

sangue nos eventos culturais, esportivos e de lazer. A solução dada ao caso foi a mesma,

apenas divergindo quanto ao quê fundamentava os interesses em jogo, pois, favoravelmente à

“meia entrada”, constava o direito à vida, promovido pelo estímulo à doação de sangue; e

contrariamente, novamente a livre iniciativa.

Formalmente, ou melhor, textualmente, permanece o entendimento da existência de um

“princípio” de supremacia do interesse público. Não obstante, o que é latente na visão do

68 Pleno, rel. Min. Eros Grau, maioria, DJ de 02.06.2006. 69 Pleno, rel. Min. Eros Grau, maioria, DJ de 23.06.2006.

tribunal é que este interesse a merecer privilégio pode não corresponder ao interesse do

Estado (embora, em regra, este seja o interesse privilegiado), mas, antes, deverá ser verificado

mediante o cotejo das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso. Ganha corpo, como se vê, a

prática da ponderação pela Suprema Corte, a fim de se identificar o interesse que deverá ser

privilegiado na solução a ser dada a determinado caso concreto, sem a utilização de uma regra

prévia que direcione a resolução em favor deste ou daquele interesse.

Seguindo esse raciocínio, o STF já julgou diversos pedidos de intervenção federal em

casos de não pagamento contumaz pelos Estados de precatórios alimentícios.

Um dos exemplos desses julgamentos é a Intervenção Federal n° 13970, aonde o Tribunal

constatou a necessidade de se ponderar os diversos interesses em colisão, para chegar à

conclusão que melhor atenderia ao interesse público.

Nesse caso concreto, o STF reconheceu que a inadimplência de precatórios alimentícios

fere uma expressa disposição constitucional (art. 78 do ADCT) e infringe os direitos

fundamentais do credor, especialmente diante da natureza dos créditos que não estavam sendo

pagos.

Por outro lado, sustentou-se que essa inadimplência não seria dolosa, mas decorrente da

precariedade das finanças públicas, as quais não têm apenas de suportar os pagamentos de

precatórios alimentícios, mas também lastrear toda a multiplicidade de funções estatais de

interesse da sociedade.

Por fim, pela análise de informações prestadas pela Administração Pública, constatou-se

que o pagamento de todos os precatórios alimentícios acarretaria a impossibilidade financeira

de o Estado prover a população de serviços públicos essenciais71, tais como saúde, educação,

saneamento etc., pois não sobrariam recursos para a realização dessas atividades.

Após ponderar esses fatores, o STF decidiu que não seria o caso da intervenção, pois a

inadimplência, a rigor, garantiria o cumprimento de outras obrigações estatais que, ao que

parece, foram alçadas a um status superior àquela existente perante o credor do precatório

alimentício.

Antes de se encerrar o presente estudo sobre a jurisprudência da Corte Constitucional

brasileira, há que se mencionar um julgado histórico em que o Tribunal demonstrou, com

independência em pleno regime de exceção, a necessidade de se conciliar o interesse público

com o interesse privado, sem permitir uma solução que previamente prestigiasse aquele.

70 Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, rel. para acorado Min. Filmar Mendes, maioria, j. em 19.03.2003, DJ de 23.05.2003. 71 Aqui entendido no significado mais amplo possível.

Trata-se do RMS n° 13.14072, no qual foi colocada sob o crivo do Judiciário a

possibilidade de a Administração suspender determinada obra irregular por ato próprio, sem

se valer da via processual adequada prevista no Código de Processo Civil então vigente (ação

cominatória). O acórdão é pioneiro, especialmente ao nele se verificar o gérmen do postulado

da proporcionalidade73 e do princípio da proteção da confiança legítima74, tão em voga nos

dias de hoje, e que são exatamente aplicáveis em situações de conflito entre o interesse do

Estado e o interesse do particular.

Vale a transcrição de trechos do voto do relator, Min. Luiz Gallotti:

Vê-se que, para a suspensão ou demolição da obra que contraria a lei, regulamento ou postura, o Código de Processo Civil concede ao Estado Remédio específico: a ação cominatória. E, prevendo os casos de urgência, permite seja esta alegada pelo Estado, hipótese em que o Juiz fará executar incontinenti a providência. (...) Ora, concedendo a lei à autoridade remédio específico e inclusive prevendo o seu uso com caráter de urgência mediante providência judicial incontinenti, será lícito admitir possa esta ser substituída por ato exclusivo da autoridade, a ser cumprido com o emprego da Força Pública? Entendo, data venia, que não, mormente tendo-se em conta que a construção fora licenciada pela autoridade competente, estava em fase adiantada (tivera início onze meses antes) e que, com base e confiança na licença da autoridade, haviam surgido interesses de terceiros de boa fé (muitos dos adquirentes de unidades no edifício). (...)

72 Pleno, rel. Min. Luiz Gallotti, unânime, DJ de 16.12.1964. 73 Vide item 2.2 e, por todos, ÁVILA. Op. cit., nota 33, p. 112-128. 74 O Princípio da Proteção da Confiança Legítima estabelece “o dever de buscar um ideal de estabilidade, confiabilidade, previsibilidade e mensurabilidade na atuação do Poder Público” (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 319) e, assim, resguarda os atos dos administrados pautados na legítima expectativa gerada por atos da Administração Pública. De acordo com GONÇALVES, Fábio Fraga. Princípio da Proteção da Confiança – análise à luz dos postulados da moralidade e da eficiência. In Revista Internacional de Direito Tributário, vol. 3. Belo Horizonte: Del Rey, jan/jun 2005, este princípio pode ser extraído do art. 5º, § 2º, da CF/88 como um princípio constitucional implícito, eis que ele decorre da racionalidade do Estado Democrático de Direito, pautado firmemente na confiança mútua, na estabilidade das instituições e na segurança das relações entre todos os integrantes da sociedade, sejam eles públicos ou privadas. Pode também ser deduzido da conjugação do Princípio da Segurança Jurídica com um sub-princípio do Princípio da Moralidade (art. 37 da CF/88), qual seja, o da Lealdade, “naquele sentido de que a administração pública tem que corresponder às expectativas por ela mesma geradas nos administrados” (trecho do voto do Min. Carlos Ayres Britto no RE nº 434.708, rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ de 09.09.2005, grifou-se). Ainda segundo este autor, para que o Princípio da Proteção da Confiança Legítima seja aplicável a um determinado caso, é necessário que: (a) o ato da Administração Pública seja apto a suscitar expectativas em um cidadão comum, ou seja, apto a gerar confiança em uma determinada conduta; (b) o administrado esteja de boa-fé e pratique os seus atos em decorrência da confiança na conduta anteriormente assumida e prometida pela Administração; e (c) não se verifique a existência de outro princípio ou interesse em jogo que, naquela situação, mereça maior peso e torne necessário o afastamento da proteção da confiança, com a alteração da situação jurídica na qual se confiou.

Observo ainda que os parágrafos do citado art. 305, embora referentes à hipótese de demolição, claramente traduzem o espírito da lei, no sentido de conciliar o interesse público com os demais interesses em causa, ordenando que a construção não seja demolida, mesmo quando contrária às condições legais, se por outro meio se puder evitar o dano ao bem comum.

É digno de reconhecimento este julgamento, que, há 44 (quarenta e quatro) anos, utilizou

argumentos jurídicos só recentemente construídos de maneira mais minuciosa, com a

preocupação de não atribuir a nenhum interesse uma primazia absoluta sobre os demais.

Diante do estudo acima, a análise da jurisprudência do STF revela que o entendimento do

Tribunal acerca da supremacia do interesse público tem oscilado ao longo do tempo.

Há casos em que o Tribunal utiliza, realmente, essa supremacia como causa de decidir.

Há outros em que o próprio entendimento acerca do que seria o interesse público dotado de

supremacia passou por noções diretas e específicas, mas indeterminadas (interesse da

coletividade) e pela tentação de equiparar o interesse público ao interesse do erário.

Todavia, na maioria dos casos, embora se valha nominalmente desse “princípio”, o que o

STF faz é analisar os dados fáticos e jurídicos de cada caso e, mediante ponderação entre os

interesses ali conflitantes, optar pela solução que prestigia aquele que melhor atende os

princípios constitucionais e os direitos fundamentais envolvidos no caso concreto.

Não obstante, essa ponderação deve ser feita à luz dos valores e princípios mais caros ao

ordenamento jurídico, sob pena de o discurso ponderativo legitimar soluções que, a nosso ver,

vão de encontro à opção que melhor prestigiaria o mesmo ordenamento.

3.4. UMA CONSTRUÇÃO PARA O INTERESSE PÚBLICO NA

CONSTITUIÇÃO DE 1988

Para se tentar identificar o significado do tão propalado interesse público ou dessa

finalidade fundamental do Direito, há que se responder a algumas indagações: para que serve

o Direito? Para regular condutas humanas? E para que há que se regular as condutas

humanas? Para que organizar as normas jurídicas em sistemas unos e coerentes?

O Direito serve, muito sinteticamente, para regular, em amplo sentido, as condutas

humanas. Essas condutas têm de ser disciplinadas, a fim de que todos os indivíduos possam

exercer na melhor medida possível os direitos que lhe são inerentes75. E essa regulação é feita

75 Nomeadamente os Direitos Fundamentais voltados à proteção da Dignidade da Pessoa Humana.

através de um sistema coerente de normas, para que a esfera de direitos de cada indivíduo não

se sobreponha, arbitrariamente, às esferas de direitos dos demais76.

O sistema jurídico age, assim, como o delimitador da abrangência do patrimônio jurídico

de cada sujeito de direito. Ele atua, especialmente, nos pontos de interseção entre duas ou

mais esferas de direitos, regulando até onde vai cada uma delas, em quais aspectos umas

devem ceder vez às outras diante das características específicas dos casos concretos. RAWLS

assevera que:

Assim, os planos dos indivíduos precisam se encaixar uns nos outros para que as várias atividades sejam compatíveis entre si e possam ser todas executadas sem que as expectativas legítimas de cada um sofram frustrações graves. Mais ainda, a execução desses planos deveria levar à consecução de fins sociais de formas eficientes e coerentes com a justiça. Por fim, o esquema de cooperação social deve ser estável: deve ser observado de modo mais ou menos regular e suas regras básicas devem espontaneamente nortear as ações; e quando ocorrem infrações, devem existir forças estabilizadoras que impeçam maiores violações e que tendam a restaurar a organização social.77

As normas jurídicas devem possuir uma organização sistematicamente coerente

justamente para que essa imbricação de esferas de direitos seja harmonizada, evitando

contradições que levariam a conflitos insolúveis dentro do ordenamento jurídico e forçariam o

aplicador do Direito a buscar respostas fora do sistema, desde argumentos puramente

metafísicos até o mais convincente deles: a força.

No nosso entendimento, a anunciada finalidade fundamental do Direito é a pacificação

social, assim entendida como um estado ideal de funcionamento da sociedade, em que todos

os indivíduos possuam (e tenham capacidade de exercer) um rol de direitos que garanta a sua

dignidade, o seu desenvolvimento pessoal, o alcance da felicidade máxima possível dentro

dos planos que ele traçar (e tenha capacidade de traçar) para si próprio.

Isso, a nosso ver, é o que se extrai do art. 1º da CF/88, ao elevar a fundamento da

República Federativa do Brasil a cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa humana (inciso

III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). E do art. 3º da CF/88, que

estabelece como objetivos fundamentais a constituição de uma sociedade livre, justa e

solidária (inciso I), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das

76 MELLO, Celso de Albuquerque e TORRES, Ricardo Lobo. Arquivos de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 57: “... sustenta-se como princípio da ordem legal à estruturação do Estado Democrático de Direito o reconhecimento do maior grau de liberdades subjetivas aos cidadãos, desde que este seja compatível com a fruição deste mesmo grau possível de igual liberdade individual dos outros concidadãos”. 77 RAWLS, Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 6-7.

desigualdades sociais e regionais (inciso III) e a promoção do bem de todos, sem quaisquer

distinções (inciso IV).

Acrescenta-se, a corroborar o entendimento acima no âmbito constitucional, as previsões

do art. 4º da CF/88, notadamente a de que a prevalência dos direitos humanos (inciso II), a

defesa da paz (inciso VI), o repúdio ao racismo (inciso VIII) e a cooperação entre os povos

(inciso IX) constituem diretrizes a serem seguidas pelo Brasil nas suas relações internacionais.

Na verdade, o texto constitucional caracteriza-se por ser um terreno fértil à assertiva

acima quanto à definição da pacificação social, como são exemplos o extenso rol de direitos

individuais previstos no art. 5º, de direitos sociais do art. 6º, de direitos dos trabalhadores do

art. 7º e tantas outras normas consagradoras da idéia de que o objetivo máximo a ser

perseguido - e que, portanto, deve guiar toda e qualquer aplicação do Direito - é o supracitado

estado ideal de funcionamento da sociedade.

Nesse cenário, a pacificação social é garantida na medida em que o Direito consiga servir

de instrumento não apenas para regular de maneira estática as condutas humanas, mas

também para moldá-las de forma dinâmica, prospectiva, de modo a equilibrar o jogo da vida

entre os diversos atores sociais.

Com o vocábulo estática queremos nos referir à atuação mais clássica do Direito, qual

seja, aquela que veicula normas impositivas de conduta, que são coativamente aplicadas aos

indivíduos e cuja desobediência gera uma penalidade a estes, no sentido mais amplo que este

termo possa possuir. Referimo-nos especificamente às regras, determinações pré-moldadas

aptas a atenderem um sem número de situações padrão.

Já os vocábulos dinâmica e prospectiva significam, nas nossas palavras, a atuação do

Direito voltada ao estímulo de condutas não sob uma ótica meramente coativa ou penal,

retrospectiva, mas também a partir de iniciativas que fomentem, positivamente, o

comportamento dos cidadãos diante da realidade. Neste ponto, ganham relevância os

princípios, que, em curtíssima síntese, tendem a orientar a conduta humana de acordo com os

valores presentes na sociedade e no seu ordenamento jurídico.

Com efeito, cada ramo do Direito preocupa-se em promover a paz em distintas esferas e

relações presentes na sociedade, através de princípios gerais aplicáveis a todos esses

diferentes tipos de relações e de princípios específicos a cada âmbito de atuação. Daí se extrai

a necessidade de que haja uma coordenação entre esses ramos jurídicos, pois o desequilíbrio

em um deles certamente levará ao desequilíbrio do sistema como um todo, visto que as

diversas espécies de relações sociais estão inexoravelmente interligadas78.

Com efeito, em um ambiente no qual os valores mais caros à humanidade (justiça,

segurança, liberdade, igualdade e solidariedade) servem de orientação para as normas

jurídicas e, conseqüentemente, têm influência na regulação de toda e qualquer conduta

humana, ter-se-ia paz, pois que estariam protegidos, na melhor medida possível, os direitos do

homem, a dignidade da pessoa humana79. E, ainda que possivelmente utópico, este é um ideal

que tem de ser incessantemente perseguido pela humanidade.

Essa idéia do que seria o interesse público no Direito vai ao encontro, precisamente, de

um dos alicerces do Princípio da Subsidiariedade, qual seja, o “bem comum”, o qual é

conceituado pela doutrina especializada acerca do referido princípio da seguinte maneira:

Não se trata de uma agregação de bens individuais, mas de um bem público, que consiste na reunião de condições exteriores necessárias a que os indivíduos desenvolvam suas qualidades, ofícios e deveres.80

Neste ponto, é oportuna a lição do prof. HUMBERTO BERGMANN ÁVILA, que, ao

tratar da relação entre interesse público e interesse privado e analisar a suposta prevalência do

primeiro sobre o segundo, assevera:

O interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado. (...) Em vez de uma relação de contradição entre os interesses privado e público há, em verdade, uma ‘conexão estrutural’. (...) A única idéia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre Estado e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principial ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais. (...) O que deve ficar claro, porém, é que, mesmo nos casos em que ele [interesse público] legitima uma atuação estatal restritiva específica, deve haver uma ponderação relativamente aos interesses privados e à medida da sua restrição.81

78 Sobre a idéia da inexistência de elemento fundamental, bastante por si só, voltando-se à análise da interação entre todos os elementos e ao entendimento de que todos seriam interdependentes, vide CAPRA, Fritjof. Sabedoria incomum. 10ª ed. São Paulo: Ed. Cultrix, 2005. 79 ALEXY, Robert. “Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático”. Revista de Direito Administrativo, 217:55-66, p. 55: “os direitos do homem são um ideal universal”. 80 TORRES. Op. cit., nota 50, p. 75. 81 ÁVILA. Op. cit., nota 39, p. 190-191, 214-215.

Tendo essas premissas em mente, especialmente no sentido de que não há, a priori, um

interesse específico que deva merecer prevalência, chega-se à conclusão de que, na resolução

de todos os casos concretos, o aplicador do Direito deverá buscar a solução que, na melhor

medida possível, contribua para aquela pacificação social.

É com base nesse objetivo que o aplicador deverá ponderar os diversos interesses

eventualmente antagônicos e, orientado pelos valores acima elencados e pelos princípios e

Direitos Fundamentais deles decorrentes82, exercerá o juízo pelo qual optará pelo interesse

que, naquele caso concreto, deverá prevalecer.

Como se vê, o único interesse fundamental (e, pode-se dizer, supremo) no Direito é o da

pacificação social; todos os demais interesses, públicos ou privados, são meros caminhos para

o alcance daquele. Resta ao aplicador, diante das particularidades de cada situação analisada,

eleger o caminho que melhor atinja aquele objetivo por meio da ponderação, a qual também

vem sendo largamente estudada na doutrina e, por não constituir o escopo desse trabalho, não

precisará aqui ser abordada profundamente83.

O Princípio da Subsidiariedade, a nosso ver, vem corroborar o que foi dito acima, pois

que, se é verificado no ordenamento constitucional que há todo um arcabouço no sentido da

descentralização do poder, da ramificação ou pulverização das atividades tendentes à

consecução dos objetivos constitucionais, ainda que não totalmente concretizado, é

inconcebível cogitar um interesse público concreto prima facie, merecedor de uma

prevalência apriorística e indistinta sobre qualquer outro interesse em jogo.

A vinculação da noção de interesse público ou de bem comum exposta acima com o

Princípio da Subsdiariedade, concernente à descentralização das atribuições tendentes à

obtenção da mencionada “pacificação social”, é descrita pela Prof. SILVIA FABER

TORRES:

82 SANTIAGO NINO, Carlos. La Constitución de la Democracia Deliberativa. Barcelona: Gedisa Editorial, 1997, p. 70: “Este teorema sostiene que las acciones y decisiones, como aquellas que se toman respecto de problemas constitucionales, no pueden ser justificadas sobre la base de normas positivas, tales como la constitución histórica, sino solo sobre la base de razones autónomas, que son, al fin de cuentas, principios morales. Presumiblemente, aquellos principios morales establecen un grupo de derechos fundamentales.” 83 Neste momento, basta, a título exemplificativo, nos valermos da lição de BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 91-92: “A proposta concebe a aplicação da ponderação como um processo composto de três etapas sucessivas, que podem ser identificadas, muito resumidamente, nos seguintes termos. Na primeira delas, caberá ao intérprete identificar todos os enunciados normativos que aparentemente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em função da solução normativa que sugerem para o caso concreto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de fato relevantes e sua repercussão sobre as diferentes soluções indicadas pelos grupos formados na etapa anterior. A terceira fase é o momento de decisão: qual das soluções deverá prevalecer? E por quê? Qual a intensidade da

O bem comum, em virtude de sua própria natureza, é um auxílio ou ajuda para que os homens realizem, com responsabilidade própria, suas finalidades vitais. Esse auxílio, que nasce da cooperação de todos, é, como ensina Messner, a ‘finalidade da sociedade’, porquanto é nesta que se coordenam as forças dos indivíduos, de modo a chegar-se a uma ação comum mais intensa no interesse de todos. Portanto, relevante ressaltar, de início, que a despeito de o bem comum ser a razão da existência do Estado, a sua realização não é obra exclusiva do poder público, devendo, antes, ser compartilhada com a iniciativa particular.84

Admitir uma presunção de prevalência de qualquer interesse seria o mesmo que atribuir

ao detentor daquele interesse uma importância maior no jogo social, político, econômico,

enfim, de poder, do que a detida pelos outros atores sociais, o que contraria a idéia básica da

subsidiariedade.

Ora, se todos os agentes são dotados de autonomia e aqueles superiores somente

intervêm quando os inferiores são impotentes ou ineficientes para a consecução de certo

objetivo, é um contra-senso atribuir a qualquer um deles importância presumidamente

preponderante. A divisão de tarefas não é hierárquica, mas sim material, referindo-se à

capacidade ou incapacidade de atuação de cada um desses agentes.

Estas idéias não têm o condão de ignorar ou menosprezar o papel desempenhado pelo

Estado, que, no caso brasileiro, permanece tendo uma atuação significativa. Como observa

SILVIA FABER TORRES, citando JOHANNES MESSNER85 e JOSÉ ROBERTO

DROMI86:

Com efeito, a subsidiariedade ‘não significa nunca um Estado fraco que enfrenta sem autoridade uma sociedade pluralista’ [MESSNER]. Ao revés, a autonomia da sociedade, organizada em grupos que cuidam livremente de interesses variados, demanda um Estado com autoridade necessária à manutenção do interesse geral” (...) De feito, o princípio da subsidiariedade, como um princípio conformador dos papéis do Estado e da sociedade prevalecente no atual momento histórico, se projeta empiricamente em modelos e formas jurídicas diversas, que, como bem lembra Dromi, ‘o Direito Administrativo tem o dever de considerar e estudar, porquanto compõem, precisamente, a harmônica relação entre ‘indivíduo e sociedade’, ‘liberdade e autoridade’, ‘prerrogativa e garantia’, em suma, o equilíbrio pendular entre ‘autoridade e obediência’’.

restrição a ser imposta às soluções preteridas, tendo em conta, tanto quanto possível, a produção da concordância prática de todos os elementos normativos em jogo?” 84 TORRES. Op. cit, nota 50, p. 76. 85 MESSNER, Johannes. La Cuestion Social. Madrid: Rialp, 1960. 86 DROMI, José Roberto. “Autoridade e Liberdade no Direito Administrativo”. Revista de Direito Público 59/60:171-177, 1981.

Tais modelos e formas jurídicas configuram uma nova forma de gestão da demanda social que avulta assim sob a premissa de que o Estado não é o único ator na solução dos problemas públicos, como em razão da escassez de seus recursos.87

Portanto, se os mais diversos interesses são igualmente albergados pela Constituição

Federal e se não é lícito que nenhum ator social, estatal ou privado, seja merecedor de

supremacia frente aos demais, o adequado é que no exame do caso concreto seja verificado

qual interesse, ou ainda, qual solução tem maior capacidade de manter inabaláveis os

princípios fundamentais do ordenamento, os valores constitucionalmente consagrados e os

direitos fundamentais a que se visa proteger. A pacificação social não é alcançada

abstratamente, mas sim no dia-a-dia, na prática, a partir de cada conduta de cada agente

social, à luz dos ditames constitucionais.

Esta constatação traz a conclusão de que, em ordenamentos jurídicos como o brasileiro,

nos quais os valores e princípios mais caros à sociedade são consagrados implícita ou

explicitamente na Constituição, há um interesse maior na proteção desses valores e princípios,

na concretização dos objetivos constitucionais, que não pode ceder previamente a nenhum

outro interesse, seja ele do Estado ou do Cidadão.

Frise-se que o STF já se posicionou nesse sentido, no julgamento da ADI-MC n° 892, de

cujo acórdão se extrai a seguinte ilustrativa passagem:

O relevo jurídico, político, social ou administrativo do tema submetido ao poder de controle in abstracto do Supremo Tribunal Federal justifica, por si só, a impossibilidade processual de admitir-se a validade da desistência da ação direta. O exercício da jurisdição constitucional concentrada desta Suprema Corte, por isso mesmo, não pode ficar condicionado – e muito menos ser frustrado – por razões que, invocadas pelo Autor, nem sempre se identificam com a necessidade, imposta pelo interesse público, de ver excluídas do ordenamento jurídico as normas eivadas de inconstitucionalidade. (...) Ensejar ao Autor a possibilidade de desistir da providência cautelar por ele inicialmente requerida implicaria comprometer o exercício, por este Supremo Tribunal Federal, do seu dever-poder de sustar, em caráter liminar, quando formalmente provocado, a eficácia e a aplicabilidade de normas reputadas ofensivas à integridade jurídica do próprio ordenamento constitucional.

Há que se ressaltar que as idéias aqui colocadas podem parecer liberais, mas não o são

totalmente, pois que, embora acreditemos na importância da liberdade e da auto-

87 TORRES. Op. cit., nota 50, p. 150-151.

determinação, não outorgamos a estas um caráter absoluto de prevalência sobre os interesses

da sociedade.

Contrariamente, podem soar comunitaristas, pois elegem uma espécie de bem comum que

deve ser perseguido. Porém, essa persecução não se dá às custas ou em detrimento dos

direitos individuais, ao contrário, se faz pelo caminho que melhor os prestigie, pois a garantia

daqueles direitos é obrigatória para a consecução da tal pacificação social.

Podem, ainda, ter ares utilitaristas, uma vez que privilegiam o meio mais útil ao

cumprimento do interesse maior do Direito. Por outro lado, não têm essa característica, ao

menos na acepção mais radical dessa corrente, pois inserem a escolha do meio mais útil no

ambiente dos Direitos Fundamentais, submetendo-a a estes.

Na realidade, trata-se de abordagem eclética, holística, que pretende humildemente se

valer de pontos diferentes iluminados por cada corrente de pensamento, coordenando-os e

unindo-os para responder às indagações acima elencadas de modo satisfatório.

Com este tipo de aproximação, acreditamos conseguir identificar com segurança que não

há nenhum interesse ao qual se possa previamente atribuir supremacia; a prevalência será

sempre a posteriori e recairá sobre a solução que em face das características do caso concreto

configure a melhor conformação dos interesses constitucionalmente contemplados, à luz das

normas fundamentais do ordenamento jurídico.

4. INTERESSE PÚBLICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

Depois de analisarmos a supremacia do interesse público de modo geral, é chegado o

momento de estudá-la especificamente na área do Direito que constitui o principal objeto do

presente trabalho: o Direito Tributário.

Assim, trataremos de analisar o sistema constitucional tributário brasileiro, com o

objetivo de identificar a sua funcionalidade, a sua essência, o seu escopo, em suma, qual a

racionalidade sistêmica das normas constitucionais voltadas ao Direito Tributário.

Em seqüência, discorreremos sobre a moderna fundamentação do Direito Tributário, a

qual justifica e complementa as características do sistema tributário consagrado na

Constituição Federal de 1988. Neste ponto, a par de uma abordagem geral sobre esta

fundamentação, estudaremos um exemplo concreto das conseqüências trazidas pela nova

acomodação dos valores, materializado no princípio da capacidade contributiva.

A partir das premissas construídas nestes dois primeiros sub-capítulos e em cotejo com o

estudo geral realizado acerca do Ordenamento Constitucional Brasileiro (Capítulo 3),

exporemos a nossa visão sobre qual seria o interesse a ser perseguido na aplicação do Direito

Tributário.

E, para finalizar, implementaremos uma demonstração concreta da diferença entre os

efeitos decorrentes da opção pelo raciocínio atualmente em voga acerca da supremacia do

interesse público no Direito Tributário e aqueles nascidos pela adoção das idéias que aqui são

propostas.

4.1. A ESSÊNCIA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIA BRASILEIRA

Com certa segurança e de forma bastante sucinta, o Direito pode ser definido como o

“sistema o conjunto de normas reguladoras de algunos comportamientos humanos en una

determinada sociedad”, melhor detalhando, “una suma de esquemas de conducta que

imponem un determinado comportamiento en determinados supuestos de hecho”88.

O Direito, em síntese, se presta a regular as condutas e as relações humanas,

prescrevendo, proibindo ou autorizando ações, em razão da ocorrência ou não de fatos

determinados, com o objetivo de possibilitar o necessário convívio em sociedade.

88 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Debate, 1991, p. 21-22.

Com o intuito de desempenhar o seu papel e regular condutas, o Direito, em regra,

através de seus diversos ramos, tende a dispor sobre obrigações de fazer ou não fazer.

Nesse sentido, por exemplo, no Direito Civil, grande parte das disposições se referem a

esses dois tipos de obrigações, como a obrigação de não causar dano a outrem, a obrigação de

adimplir os contratos, a obrigação de fazer um testamento sob certa forma, as obrigações de

fazer referentes à propriedade (utilizá-la de acordo com a sua função social, não prejudicar a

propriedade alheia) etc.

Também no Direito Penal as disposições se referem, basicamente, a obrigações de fazer

ou não fazer, como as de não matar, não roubar, não furtar, prestar socorro, não fraudar etc.

Outro exemplo é dado pelo Direito Comercial, que prescreve uma série de obrigações de

fazer e não fazer, formais ou materiais, referentes ao desempenho da atividade empresarial,

por pessoas físicas ou jurídicas.

Nessas situações, verificáveis não somente nos ramos acima indicados, mas em vários

outros, inclusive em desdobramentos daqueles (Direito Ambiental, Direito Societário etc.), há

uma facilidade considerável para adequar aquelas condutas às noções de Justiça.

Isso porque a Justiça, por ser vinculada muito mais aos meios do que aos fins, é

identificável com maior facilidade no que o homem faz ou deixa de fazer, pois é essa conduta

que, pautada na idéias de virtude89 e de boa-vontade90, revelar-se-á justa ou não.

89 ARISTÓTELES traça uma estreita relação entre a justiça e o exercício da virtude. Para ele, a virtude também estaria relacionada com os meios, ou seja, com as condutas individuais de cada pessoa, e não com os fins por elas visados. O desempenho da conduta de acordo com a virtude está ao alcance dos homens. É, portanto, objeto da vontade, da escolha e da deliberação. O homem tem condições de agir conforme a virtude, mas tem liberdade para atuar de outra maneira. Ele deve deliberar sobre o que é bom ou mau e escolher, conscientemente, qual caminho deseja tomar. Assim com as virtudes, os vícios são voluntários - para serem praticados dependem apenas da vontade consciente da pessoa - e, por isso, também podem ser escolhidos ou não. Ao analisar as diversas manifestações da virtude, ARISTÓTELES aborda a coragem, esclarecendo que “o homem que enfrenta e que teme as coisas que deve e pelo motivo certo, da maneira e na ocasião devidas, e que é confiante nas condições devidas, é verdadeiramente corajoso, pois o homem corajoso sente e age conforme os méritos das circunstâncias e do modo que a regra prescreve”. Aduz que ela não se confunde com a paixão, pois uma atitude corajosa é impulsionada pela honra e realizada com prudência, enquanto a paixão faz com que a pessoa não calcule os riscos, atirando-se aos perigos imprudentemente. O filósofo analisa a temperança, que corresponde à moderação em relação aos prazeres, ao não excesso. O homem justo evidentemente é seduzido pelos prazeres, porém não se entrega a eles exageradamente, acima dos seus recursos ou de maneira contrária ao que é nobre, mas apenas na medida necessária para a obtenção de um determinado fim. Já a liberalidade seria o meio-termo em relação à riqueza, “pois o homem liberal é louvado não pelos seus feitos militares, nem pelas coisas que se costuma louvar no homem temperante, nem por decidir com justiça em um tribunal, mas em relação a dar e obter riquezas – sobretudo a dá-las”. Para ARISTÓTELES, os atos de dar e gastar estariam mais relacionados com a riqueza do que os de obter e guardar, vinculados à posse. Por isso, o homem liberal teria como característica maior dar parte de sua riqueza às pessoas certas e pelos motivos certos. E ele age assim por prazer e sem sofrimento, pois é mais próprio da virtude fazer o bem do que recebê-lo. A liberalidade não é medida pela quantidade a ser dada. Ao contrário, a parcela cedida deve ser proporcional à riqueza possuída, pois o exagero conduz ao vício da prodigalidade. Portanto, uma pessoa pode ser liberal mesmo dando muito pouco, se as suas posses também são diminutas. O importante, no caso, é que a pessoa doe de acordo com as suas possibilidades, se é que elas existem. A liberalidade, assim, é a medida exata entre a prodigalidade (deficiência no obter e exagero no dar) e a avareza (deficiência no dar e exagero no obter). A magnificência, por sua vez, pode ser

Já no que toca o Direito Tributário, pode-se dizer que ele corresponde ao sistema jurídico

que regula a arrecadação de recursos da sociedade, pelo Estado, com vistas a custear as

múltiplas facetas do funcionamento deste último. Este ramo do Direito, assim, tem como

objeto a transferência de parcela do patrimônio particular para o patrimônio público.

Em que pese regular relações humanas (entre os cidadãos e o Estado) a partir de

pressupostos de fato (a prática de determinadas condutas - obtenção de renda, comercialização

de mercadorias etc.), o Direito Tributário tem como característica marcante o fato de não se

referir precipuamente a obrigações de fazer ou não fazer. Nesse ramo do Direito, a principal

obrigação é de dar, mais precisamente de o cidadão entregar uma parte da sua riqueza ao

Estado.

considerada um desdobramento da liberalidade. Ela tem apenas a ver com gastos e, como o próprio nome indica, com gastos vultosos. Dessa forma, o homem magnificente é aquele que gasta muito pelas causas certas, ou seja, apropriadamente, de forma que aquele gasto, ainda que de montante considerável, é proporcional à sua causa ou ao seu objetivo. Essa proporcionalidade deve ser analisada não apenas em relação ao objetivo do gasto, mas também ao agente, pois um gasto enorme pode ser ínfimo se comparado ao patrimônio de quem o fez, situação que não se enquadraria na magnificência. (ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. São Paulo: Martin Claret, 2006) 90 Na obra de KANT, observam-se outros aspectos que irão informar a noção de Justiça, como a boa-vontade, entendida pelo filósofo como a única coisa passível de ser boa sem limitação. Essa afirmação decorre do fato de que virtudes consideradas prima facie boas, como a coragem valorosa, a decisão, a firmeza de propósitos, podem se tornar más e perniciosas se a vontade que deve usar desses dons não for boa. Nesse sentido, a boa-vontade não promove ou realiza nenhum fim, mas indica o querer de uma pessoa ao exercer uma determinada virtude, podendo ser considerada boa em si mesma. Portanto, as ações não devem ser analisadas apenas objetivamente, mas também devem considerar a vontade do agente para determinar se aquela conduta é boa ou má, pois isso dependerá, justamente, do querer da pessoa que a praticou. No caso da boa-vontade, esse querer tem mais relação com um sentimento de dever da pessoa em fazer o bem, pois é possível que um cidadão, ainda que a sua situação não o inclinasse a tomar nenhuma atitude específica, consiga se libertar das amarras da insensibilidade e praticar uma ação benéfica, sem nenhuma inclinação, apenas por dever, com o que tal atuação possuiria “autêntico valor moral”90. Segundo KANT, “é precisamente aí que se estriba o valor do caráter, que é moralmente, sem qualquer comparação, o mais alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever”. Esse querer, portanto, não tem vinculação com o objeto da ação, ou seja, com a finalidade prática que será com ela obtida, mas sim com um princípio interno do próprio agente, que a pratica por causa do bem querer, e não para obter algo. Conciliando esta visão com a de ARISTÓTELES, a conduta boa ou justa não é aquela escolhida para que seja encarada como adequada à virtude. É aquela que, além de adequada à virtude, é escolhida porque os princípios do agente assim determinaram, sem qualquer motivação exterior, apenas por ser considerada como dever. O dever, portanto, deve ser encarado como a causa de algo (a pessoa age assim porque é seu dever), e não como efeito (a pessoa age assim para que cumpra o seu dever). A vontade individual, assim, é subtraída de todo e qualquer estímulo ou contingência que a pudessem influenciar. E, a se fazer isso, acaba-se identificando a vontade com a vontade universal, pois não há estímulos que a antecedam, por ser ela, justamente, a fonte de todos os estímulos. Feita essa identificação, o princípio da vontade indica que o agente deve agir sempre de modo que possa querer que a sua máxima se converta em lei universal (imperativo categórico)90. Ou seja, deve se indagar se a sua vontade, em sendo adotada como lei universal, seria satisfatória para ele e para os demais agentes da sociedade. Caso a resposta a tal indagação seja negativa, aquela vontade deve ser rejeitada, perquirindo-se uma outra que, caso adotada como lei universal, satisfizesse qualquer situação, independentemente das respectivas condições particulares. Note-se que esse conceito de dever, por outro lado, não pode ser considerado como obtido através de um meio empírico. Na verdade, como dito anteriormente, esse dever é estabelecido abstraindo-se das peculiaridades do caso concreto, que poderiam influenciar o agente a tomar uma ou outra direção. Por isso, a noção de dever em tela é aplicável a todo tipo de situação, mesmo as que ainda não ocorreram ou que, em um juízo de probabilidade, dificilmente ocorrerão. (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2006)

Nesse caso, não se tem, em regra, uma regulação prospectiva, ou seja, que indique ao

cidadão como ele deve agir, o que ele deve fazer ou não fazer. Tem-se uma regulação a

posteriori, pois aponta ao cidadão o que ele deve entregar por ter feito ou deixado de fazer

algo.

Desse modo, comparado com os outros ramos do Direito, o Tributário penetra de forma

mais direta, abrupta e incisiva no âmbito jurídico do cidadão, pois não indica que ele é

obrigado a atuar de uma certa maneira (que poderá ter reflexos indiretos em seu patrimônio),

mas sim adentra diretamente no seu patrimônio, extraindo-lhe uma parcela em prol do Estado.

Diante dessa certa peculiaridade do Direito Tributário, é apropriado analisar

especificamente as suas diretrizes constitucionais, para identificar qual a mentalidade (ou

objetivo, idéia, enfim, essência) empregada pelo constituinte brasileiro neste ramo jurídico.

Não se está aqui a se pregar uma interpretação estanque das normas constitucionais

tributárias, como se estas formassem um corpo constitucional autônomo, o que feriria o

princípio da unidade da constituição91. Ao contrário, essa interpretação dar-se-á, sempre, à luz

da Constituição como um todo, evitando-se, assim, qualquer mínima contradição. Esta é a

idéia de ALIOMAR BALEEIRO, ao asseverar, por exemplo, que:

Não poderia ter efetividade, nem sobrevivência, o sistema tributário nacional instituído pela Constituição com evidentes e confessados propósitos políticos, como a implantação do regime federativo, se fosse lícito ao legislador ordinário iludi-lo, pela troca dos nomes de cada tributo para a invasão do campo tributário reservado a competência diversa.92

O Capítulo da CF/88 dedicado ao Sistema Tributário Nacional (arts. 145 a 162) começa a

revelar, logo no §1° do seu artigo inicial, a mentalidade da tributação brasileira, ao se

preocupar em prever expressamente o princípio da capacidade contributiva, nos seguintes

termos:

§1° Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar,

91 BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. “O Começo da História: a nova interpretação constitucional”. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 301-302: “Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham.” 92 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 64.

respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. (grifou-se)

Esta singela redação deixa evidente a preocupação do constituinte, por um lado, com a

efetividade do princípio da capacidade contributiva, principal catalizador e concretizador de

uma enorme gama de valores e princípios no Direito Tributário93; e, por outro lado, com a

observância aos direitos individuais e com a segurança dos contribuintes em um ramo jurídico

tão interventivo.

A seqüência da análise desse capítulo confirma essas primeiras conclusões.

O art. 146 estabelece que a Lei Complementar deverá versar sobre inúmeras matérias

relevantes, como o conflito de competência entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios (inciso I); as limitações constitucionais ao poder de tributar (inciso II); normas

gerais em matéria tributária (inciso III), especialmente sobre o adequado tratamento a ser

dado ao ato cooperativo (alínea “c”) e ao tratamento diferenciado conferido às micro e

pequenas empresas (alínea “d”), dentre outros.

Este dispositivo revela que não só foram escolhidas matérias intimamente vinculadas aos

direitos individuais do contribuinte, como também que o instrumento legal eleito para cumprir

essa tarefa foi aquele dotado de maior formalidade e, conseqüentemente, mais difícil de ser

modificado ao bel-prazer das maiorias eventuais.

Já o art. 146-A estabelece que também a Lei Complementar tem competência para

“estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da

concorrência”, concretizando, indubitavelmente, o princípio da livre concorrência insculpido

no art. 170, IV, da Carta Magna.

O art. 148, § único, diz bem o nível de lealdade que deve haver entre fisco e contribuinte,

na medida em que obriga expressamente que o produto da arrecadação dos empréstimos

compulsórios previstos em seus incisos seja destinado “à despesa que fundamentou a sua

instituição”, proibindo, assim, a tredestinação desses recursos.

Por sua vez, o art. 149 é claro ao reservar à tributação um papel importante na

conformação social, qual seja, possibilitar à União Federal a instituição de “contribuições

93 A legitimação do Princípio da Capacidade Contributiva é fundada na interseção de uma série de outros princípios, postulados e valores, como o da igualdade, da solidariedade, da proporcionalidade, a liberdade, e o seu adequado dimensionamento deverá ser precedido da devida ponderação dessas normas e dos demais interesses envolvidos no caso em análise. Na sua moderna concepção, tal princípio atua como pressuposto da tributação, que somente poderá ocorrer quando existir capacidade contributiva, ou seja, quando suplantado o mínimo existencial e enquanto não alcançado o confisco; e como parâmetro da tributação, valorizando a isonomia e impedindo discriminações e privilégios odiosos. Este princípio, por desempenhar um papel central no Direito Tributário, merecerá uma abordagem específica adiante.

sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais e

econômicas, como instrumento de sua atuação das respectivas áreas”. Porém, essa

conformação por parte do Estado não é livre de amarras, como se observa no mesmo

dispositivo legal, que impõe a observância do princípio da legalidade e das regras da

irretroatividade e da anterioridade (caput, in fine). Assim como, em seu parágrafo 2°, contém

previsão eminentemente extrafiscal, ao impedir que as contribuições sociais e de intervenção

no domínio econômico incidam sobre “as receitas decorrentes de exportação”, em uma óbvia

iniciativa de estimular o comércio exterior brasileiro, a inserção dos produtos nacionais no

mercado externo, o ingresso de divisas no País, tudo com vistas a “garantir o desenvolvimento

nacional” (art. 3°, II).

Chega-se, então, ao art. 150, que elenca um extenso rol de garantias aos contribuintes,

consubstanciadas nos princípios da legalidade tributária (inciso I - valor segurança), da

isonomia tributária (inciso II - valor igualdade), nas regras da iretroatividade e da

anterioridade (inciso III - valor segurança - princípio da não-surpresa), na vedação ao confisco

(inciso IV - liberdade - direito de propriedade - mínimo existencial), bem como na vedação ao

embaraço do tráfego de pessoas ou bens (inciso V - liberdade), nas imunidades recíproca

(inciso VI, “a” - federalismo - separação dos poderes), de templos (inciso VI, “b” - liberdade),

dos partidos políticos, entidades sindicais e instituições de ensino e assistência social (inciso

VI, “c” - liberdade - cidadania - solidariedade) e dos livros em geral (inciso VI, “d” -

educação - cidadania).

Ainda neste artigo, é sintomática a previsão do parágrafo 5°, ao estabelecer a necessidade

da adoção de medidas tendentes a esclarecer aos cidadãos consumidores a respeito dos

tributos que incidem sobre mercadorias e serviços por eles adquiridos.

Ademais, constata-se que o art. 151 vem reforçar a inserção dos valores e princípios

mencionados acima no Direito Tributário, ao instituir a vedação a que a União institua tributo

que não seja uniforme em todo o território nacional (inciso I - valor igualdade) e que cobre

tributos dos demais entes federativos ou crie isenções para tributos destes últimos (incisos II e

III - federalismo e separação dos poderes).

Há, ainda, o art. 152, que veda a todos os entes federativos a prática de tributação

discriminatória em razão da procedência ou destino de bens e serviços (igualdade -

federalismo - separação dos poderes). A esta altura, salta aos olhos a preocupação da CF/88

em banir discriminações odiosas, revelando de modo inequívoco o intuito de construir uma

tributação justa, pois, como ensina JOHN RAWLS:

(...) as instituições são justas quando não se fazem distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e deveres básicos e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes das vantagens da vida social.94

Todos estes princípios gerais do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro permeiam o

restante da sua disciplina, notadamente no tratamento específico dos tributos previstos na

Constituição.

A título ilustrativo, a proteção extrafiscal das exportações já mencionada acima é também

verificada em diversos outros dispositivos, tais como os arts. 153, §3°, III (IPI), 155, §2°, X,

“a” (ICMS), e 156, §3°, II (ISS), o que impõe a sua interpretação de maneira ampla, a fim de

que esse objetivo constitucional seja alcançado na maior medida possível.

O art. 153, §3°, I, tem nítido caráter extrafiscal ao determinar que o Imposto sobre

Produtos Industrializados (IPI) “será seletivo, em função da essencialidade do produto”,

fazendo com que os bens de primeira necessidade, conseqüentemente objeto quase que único

no consumo daqueles menos abastados, sofram uma tributação reduzida em relação aos bens

supérfluos, cujo consumo é preponderantemente exercido pelos economicamente

privilegiados95. A possibilidade de diferenciação da tributação de acordo com a essencialidade

do bem consumido também é encontrada no art. 155, §2°, III (ICMS).

Ainda no IPI, o inciso IV do referido dispositivo denota claro incentivo à modernização

da indústria nacional, ao determinar a redução do impacto do imposto sobre a aquisição de

bens de capital pelo contribuinte, ainda que relegando a concretização dessa desoneração à

legislação infraconstitucional.

Prosseguindo no art. 153, o seu §4°, I, possui a previsão de que o Imposto sobre a

Propriedade Territorial Rural (ITR) “será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a

desestimular a manutenção de propriedades improdutivas”, concretizando, no campo

tributário, a exortação contida no art. 5°, XXIII, para que a propriedade atenda a sua função

social. Previsão de igual conteúdo extrafiscal é encontrada no art. 182, §4°, II, da CF/88, neste

caso em relação ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).

94 RAWLS. Op. cit., nota 77, p. 6. 95 A questão da seletividade/essencialidade diz respeito, simultaneamente, à extrafiscalidade e à capacidade contributiva. A rigor, na seletividade há dois aspectos a serem considerados: um primeiro, em que a seletividade pode ser encarada como garantia de maior acessibilidade aos gêneros de primeira necessidade (extrafiscalidade); um segundo, em que a seletividade pode ser considerada como garantidora da observância ao princípio da capacidade contributiva, pois que os tributos que são graduados de acordo com a essencialidade, em regra, são indiretos, ou seja, suportados por quem adquire os produtos tributados. Assim, a seletividade também garante que os mais abastados, consumidores de bens supérfluos (mais onerados), sejam tributados de maneira superior em relação àqueles menos abastados, consumidores de bens essenciais (menos onerados).

O mesmo ITR também tem sua incidência afastada “sobre pequenas glebas rurais (...)

quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel”, encerrando uma proteção

extrafiscal da pequena propriedade rural, da agricultura familiar e com o objetivo paralelo de

manutenção do homem no campo.

Já nos tributos de competência dos Estados e do Distrito Federal, o art. 155, §2°, X, “d”,

prevê a não incidência do ICMS sobre as “prestações de serviço de comunicação nas

modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita”, como

forma de desobstruir o acesso à informação prestigiado pelo art. 5°, XIV, e a própria liberdade

de expressão consagrada no art. 5°, IX.

Por sua vez, o art. 155, §6°, II, ao permitir que o Imposto sobre a Propriedade de

Veículos Automotores (IPVA) tenha alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização do

veículo, revela possibilidade de esse imposto adquirir caráter extrafiscal, desde que, como já

dito acima, essa diferenciação de alíquotas vá ao encontro dos ditames constitucionais. Por

exemplo, tal diferenciação de alíquotas é possível se levar em consideração o potencial

poluente do combustível utilizado pelo veículo, em observância ao princípio constitucional de

proteção ao meio-ambiente (arts. 170, VI, e 225).

Para finalizar este rol de exemplos, verifica-se o nítido intuito extrafiscal contido no art.

195, §9°, da CF/88, que possibilita que as contribuições para a seguridade social tenham

“alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização

intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de

trabalho”, no sentido de se permitir uma tributação que leve em conta fatores estritamente

vinculados à valorização do trabalho humano (art. 170, caput)96. Este dispositivo, aliás,

exemplifica a possibilidade já aventada acima de que as contribuições parafiscais também

tenham um conteúdo extrafiscal, independentemente da aplicação do produto da sua

arrecadação.

96 Esclarecemos que esse dispositivo da CF/88 não pode ser analisado isoladamente, devendo ser levado em conta o contexto em que ele está inserido. Nesse sentido, se a finalidade é requisito essencial para a própria definição da espécie tributária contribuição (art. 149 da CF/88), acreditamos que ela deve ser levada em consideração em todos os momentos, inclusive quando da fixação da carga tributária a ser suportada por cada contribuinte. Por isso, em observância ao princípio da capacidade contributiva, da isonomia e da equidade no custeio da seguridade social, só faz sentido que a atividade econômica dê margem a uma tributação diferenciada quando, por exemplo, ela acarreta um maior ônus para a seguridade social. Este é o critério de discrímen válido no tocante às contribuições e somente com base nele poder-se-ia exigir que o contribuinte que pratica uma atividade econômica X contribua mais para o custeio da seguridade social do que aquele que pratica a atividade econômica Y. A verdadeira extrafiscalidade do dispositivo está em sua parte final, na medida em que uma tributação menos gravosa sobre empresas que utilizem intensivamente a mão-de-obra, por exemplo, estimula a contratação regular de empregados.

Não obstante a exposição acima, certo é que o Sistema Constitucional Brasileiro contém

previsões que podem parecer individualmente contrárias ao contribuinte, mas garantem os

interesses da sociedade como um todo, aí compreendidos os direito individuais não dos

contribuintes, mas sim dos cidadãos.

Nesse sentido, previsões como as dos arts. 37, XXII (integração de informações dos entes

tributantes); 149, § 3° (equiparação da pessoa natural destinatária de importações à pessoa

jurídica, para fins de contribuições sociais, interventivas ou corporativas sobre a importação);

150, §§3° e 4° (exceções às regras de anterioridade para os tributos eminentemente

regulatórios) e §7° (substituição tributária); 153, §1° (alteração de alíquotas pelo Poder

Executivo para determinados impostos federais), buscam garantir a efetividade da tributação.

Como se vê, o Sistema Constitucional Tributário comporta normas que tanto privilegiam

os direitos dos particulares individualmente considerados, como também preservam os

interesses do Estado e da sociedade como um todo, com o que incorpora notas liberais e

comunitaristas, sendo inviável qualquer tentativa de se asseverar que estes ou aqueles dão o

norte da tributação brasileira.

Na realidade, todas essas normas convergem para a busca de se garantir, no âmbito da

tributação, a maior concretização possível dos valores incorporados na CF/88, dos princípios

constitucionais e dos direitos fundamentais que permeiam o texto da Carta Magna, que ora

indicarão uma prevalência do interesse do Estado, ora apontarão no sentido da prevalência do

interesse do contribuinte, mas, sempre, significarão a supremacia daqueles valores, princípios

e direitos.

4.2. A MODERNA FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Durante o tempo em que prevaleceu o positivismo formalista97, o Direito Tributário ficou

afastado de fontes jurídicas voltadas à ética, à moral e, pode-se dizer, à humanidade. Nesse

período, as discussões e os estudos fiscais voltaram-se aos aspectos puramente mecanicistas,

97 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 2 e 8: “A jurisprudência dos conceitos do século XIX lançou as bases para a retomada do formalismo jurídico que, mais tarde, no século XX, seria desenvolvido por Hans Kelsen, em reação ao positivismo sociológico da jurisprudência dos interesses de Philipp Heck, e ao movimento para o direito livre, preconizado por Herman Kantorowicz. O que há de comum entre a jurisprudência dos conceitos do século XIX e a obra de Kelsen, no século XX, é o positivismo formalista, que se caracteriza pelo corte entre o direito e a moral, redutor da realidade jurídica à norma. Segundo Kelsen, o que não está na norma não interessa ao direito. Assim, para o jurista austríaco, a questão da justiça só interessa ao direito quando introduzida por uma norma do ordenamento jurídico”.

legalistas, ou seja, apegados muito mais à forma e ao que era positivado do que à

fundamentação do conteúdo daquela positivação. Vivia-se uma época majoritariamente de

debates áridos, que prestigiavam a análise da superfície em detrimento do estudo da base, dos

alicerces, enfim, da sustentação do que se estava a discutir.

No entanto, tal abordagem do Direito mostrou-se insuficiente, precária, pois não

conseguia cuidar satisfatoriamente da complexidade inerente às relações humanas,

extremamente agravada pelo desenvolvimento contínuo da sociedade.

Nesse sentido, revelou-se imperioso que se aumentasse o campo de visão do Direito, a

fim de que os olhos do jurista passassem a enxergar não apenas o que era iluminado pelo

estreito feixe de luz emanado do Direito Positivo, mas também a realidade, jurídica e fática,

que existia na imensa zona de penumbra restante.

Nessa reaproximação entre Direito e Moral98, ganharam relevância fontes jurídicas que

estavam esquecidas, como os valores, princípios e postulados99, que, em curtas palavras,

orientam toda a conduta humana e, portanto, também devem ser objeto do estudo jurídico,

voltado, justamente, a regular aquelas condutas.

No Direito Tributário, tornou-se necessário o estudo de como tais valores, princípios e

postulados agem sobre esse ramo jurídico, melhor explicando, quais problemas e soluções

surgem (e como eles surgem) a partir do momento em que essas três “novas” fontes passam a

iluminar o raciocínio jurídico-tributário.

Nessa nova acomodação, o valor Justiça voltou ao ponto de destaque, após tempos em

que foi absolutamente preterido em favor do valor Segurança. Se não passou a ser o principal

ou único valor no estudo do Direito Tributário, certamente se tornou de igual “hierarquia” aos

demais, devendo ser em todos os casos considerado e, em grande parte das vezes, fazendo

com que os princípios que são seus corolários sejam prestigiados e mereçam uma atribuição

de peso maior do que os que a eles se opõem no caso concreto.

Certo é, frise-se, que o valor Segurança manteve o seu elevado grau de prestígio,

necessário em um ramo do Direito absolutamente interventivo. Em razão de o Direito

Tributário ter como objeto a transferência de parcela da riqueza do particular para o

patrimônio público, torna-se imprescindível o estabelecimento de regras claras e seguras para

98 MELLO e TORRES. Op. Cit, nota 76, p. 48. Rio de Janeiro: Renovar, 2000: “Uma outra novidade desta compreensão do direito é o modo de pensar a sua relação com a moral: não mais entendidas como esferas estanques, distintas, como sustentado pelo positivismo jurídico, mas como complementares”. 99 Mais uma vez, esclarecemos que adotamos como premissa, aqui, o entendimento de ÁVILA. Op. cit., nota 33, já explicitado anteriormente.

que não haja margem para a tirania e para o arbítrio, preservando os Direitos Individuais

daqueles que são chamados a contribuir.

A retomada do valor Justiça e o seu necessário relacionamento e convívio com o valor

Segurança impôs uma releitura de outros valores consagrados na sociedade, como o da

Igualdade. Abandona-se, nesse sentido, a noção puramente formal de igualdade, passando-se

a desenvolver estudos que busquem descrever e fundamentar uma igualdade material, que

equilibre - na prática e não apenas na lei - os agentes sociais e as relações travadas entre eles.

Outro valor sobre o qual se erige o novo Direito Tributário é a Solidariedade,

caracterizada por ser uma tentativa de se reerguer um dos valores menos prestigiados, embora

sempre presente, no Estado Liberal: a fraternidade.

Por fim, não se pode esquecer de mencionar outro valor caro ao Direito como um todo e

que não passa longe do Direito Tributário, qual seja, a Liberdade.

A abordagem implementada no Direito Tributário acerca da nova concepção dos valores

acima será exposta brevemente a seguir, acompanhada do estudo da moderna fundamentação

de um Princípio que, na era negra da tributação, passou indubitavelmente a um segundo

plano, mas que participa ativamente da definição do interesse público nesse ramo jurídico: o

princípio da capacidade contributiva.

4.2.1. A JUSTIÇA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

Já foi dito que o interesse fundamental do Direito é a obtenção de pacificação social, de

modo que os diversos ramos jurídicos iluminam as diferentes interações sociais, com vistas

àquele objetivo maior.

Nesse diapasão, o Direito Tributário deve ser encarado como aquele responsável por

regular a angariação de recursos pelo Estado, da sociedade, para o custeio de atuações estatais

voltadas à mesma sociedade, também com o objetivo de proporcionar a referida pacificação

social.

No entanto, essa pacificação não é alcançada apenas pelas atuações estatais lastreadas

pela tributação. Ela também é atingida pelo próprio modo de funcionar do Direito Tributário,

mais precisamente da tributação, que pode contribuir, independentemente da arrecadação de

recursos, para a consecução daquele objetivo.

Para isso, é basilar que se tenha uma tributação justa. Mas o que é uma tributação justa?

Pode-se dizer que tributação justa é aquela que consiga, dentre outras metas:

(a) respeitar os Direitos Fundamentais, evitando incidências que comprometam o exercício de tais direitos; (b) identificar adequadamente a revelação de riqueza por parte do contribuinte, apta a autorizar a incidência tributária; (c) mensurar de forma proporcional essa revelação de riqueza, com o objetivo de que cada um recolha o tributo de acordo com a sua capacidade para contribuir; (d) ter o condão de estimular condutas dos contribuintes que vão ao encontro de finalidades constitucionalmente privilegiadas; (e) estimular a sociedade, ao menos na sua dimensão econômica, a se comportar de modo a atender os objetivos fundamentais do país.

Algo parecida é a visão de DANIEL GUTMANN sobre a justiça tributária, a seu ver

marcadamente substancial, e não unicamente formal. Todavia, o autor agrega outra meta a

essa tributação justa (a justa aplicação dos recursos arrecadados com o tributo):

Esta justiça substancial, em si mesma, é apreendida através de um duplo prisma: o dos fins (os objetivos perseguidos pela exação), o dos meios (as modalidades que definem a divisão e os lançamentos). O prisma é frágil, sem dúvida: por exemplo, o imposto limita a liberdade (é o sacrifício) para aumentar a liberdade (é uma aposta filosófica). Os meios dos impostos sustentam, portanto, uma relação complexa com seus fins. A complexidade, no entanto, não impede de distinguir. A justiça dos fins é a grande ausente da maior parte dos debates sobre o imposto. Entretanto, a justiça dos meios absolutamente não garante a justiça dos fins. Suponhamos, por exemplo, que um tributo progressivo permita tributar os altos rendimentos muito mais pesadamente que os baixos, que vejamos nisto uma forma de justiça dentro das modalidades de imposição. Concordaremos que este tributo não seria mais justo para tanto, se tivesse por finalidade financiar o terrorismo (finalidade injusta) ou as atividades de luxo (porque o tributo não seria realmente redistributivo).100

Como se vê, uma tributação formal e substancialmente justa, tanto no que toca os meios

(justiça na fixação do tributo - hipótese de incidência, fato gerador, base de cálculo, alíquota

etc.) quanto no que atinge os fins (condutas estimuladas ou desestimuladas e, para

GUTMANN, a justa aplicação do produto da sua arrecadação), transita em terrenos que,

inexoravelmente, decorrem da efetividade dos Direitos Fundamentais, seja diretamente, seja

através de princípios que dão materialidade a esses direitos, como o da capacidade

100 GUTMANN, Daniel. “Do Direito à Filosofia do Tributo”. In: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 30-31.

contributiva. Aliás, por ser talvez o melhor exemplo da nova acomodação dos valores e dos

princípios na moderna fundamentação do Direito Tributário, merecerá esse princípio um sub-

capítulo próprio mais adiante.

Em síntese, a justiça tributária não possui apenas uma faceta. Ao revés, ela é dotada de

múltiplas formas de manifestação, preocupando-se com todos os impactos, diretos ou

indiretos, que a tributação pode acarretar, sempre em observância aos Direitos Fundamentais

garantidos constitucionalmente e às finalidades constitucionais, fiscais ou extrafiscais, da

tributação.

4.2.2. A SEGURANÇA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

Durante algum tempo, a segurança foi elevada a valor máximo do Direito Tributário,

sobretudo pelas correntes dogmáticas de conteúdo formalista, que prestigiavam a forma em

detrimento do conteúdo das normas jurídicas, sob o argumento, em resumo, de que assim se

tornariam mais claras as regras do jogo, gerando maior segurança para todos os jogadores.

A segurança, destarte, quase que se confundia com a legalidade, pois que, em sua

homenagem, exigia-se que todos os contornos da tributação fossem previstos em lei em

sentido estrito, sem margem para conceitos abertos, interpretações teleológicas, extensivas, ou

analogias, seja nas regras de incidência, seja nas regras de não incidência.

Assim como todo o formalismo, essa abordagem do valor segurança mostrou-se incapaz

de responder adequadamente aos anseios da sociedade moderna.

Por essa razão, passou-se a encarar a segurança de uma maneira mais ampla, não apenas

vinculada à lei, deixando-se para traz a noção de uma segurança exclusivamente legal. A

segurança jurídica passa a ser também voltada ao prestígio dos demais valores, dos princípios

constitucionais e dos Direitos Fundamentais, cuja garantia, promoção e proteção nem sempre

serão alcançados por simples previsões legais.

A segurança, dessa forma, passa a ter um vínculo estrito com os outros valores, pois é o

prestígio destes (justiça, liberdade, igualdade) que gerará uma real segurança para a

sociedade, uma vez que é o tratamento justo e igual, que garanta a liberdade e os direitos

individuais na melhor medida possível, que fará com que os agentes sociais tenham segurança

nas suas relações.

Mais do que uma mudança conceitual, há uma mudança interpretativa, pois o valor

segurança torna-se não apenas um instrumento de garantia daqueles direitos, mas também as

normas nele lastradas (princípios ou regras) passam a ser ponderáveis, e não mais absolutas,

em relação às normas escoltadas por outros valores, de forma que o aplicador, diante do caso

concreto, escolha aquela que melhor atenda aos direitos consagrados constitucionalmente.

4.2.3. A IGUALDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO

Especialmente durante o Estado Liberal, a igualdade também foi encarada de maneira

extremamente formalista, exigindo apenas que a lei tratasse a todos igualmente, sem se

preocupar com a materialização prática dessa igualdade.

Esse cenário conduziu a situações absolutamente contrárias àquilo que se pode chamar de

igualdade, pois o tratamento legal uniforme a pessoas dotadas de características

significativamente diversas enseja, no mais das vezes, um tratamento concretamente desigual,

pois que mantém a situação de desequilíbrio existente no mundo real, não contribuindo em

nada para que surja uma igualdade minimamente efetiva.

Essa igualdade formal (perante a lei), que não deixa de existir, é superada com o advento

do Estado Social de Direito e soma-se a ela uma igualdade substancial, pautada na célebre

máxima de se tratar os sujeitos desigualmente na medida dessa desigualdade, com vistas,

justamente, a alcançar o equilíbrio necessário ao bom desenvolvimento dos diversos agentes

sociais.

Ganha força a idéia de justiça, que, amalgamada a essa nova concepção da igualdade,

exige que a igualdade não aconteça apenas perante a lei, mas sim na lei, de modo que as

vicissitudes dos cidadãos sejam utilizadas como parâmetros para tratamentos desiguais não no

sentido de discriminação, mas sim no sentido de proteção dos direitos individuais na medida

em que cada pessoa necessite dessa proteção.

Surge, então, o direito à diferença, ou seja, a necessidade de se reconhecer as distinções

para conseguir identificar e solucionar os conflitos ocorridos em uma sociedade moderna,

pluralista e desigual por natureza, como todas as sociedades humanas. As pessoas são

diferentes e não é papel do Direito tentar torná-las idênticas. A preocupação tem de ser de

tratá-las de forma digna, respeitando suas diferenças, conforme ensina CHARLES TAYLOR:

Algumas correntes da política contemporânea giram em torno da necessidade, por vezes da exigência, de reconhecimento. (...) E a exigência vem para primeiro plano, de uma série de maneiras, em favor de grupos minoritários ou “subalternos”, em algumas modalidades de feminismo e naquilo que se chama política do

multiculturalismo. (...) A tese é de que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência, freqüentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros, de modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais danos, uma real distorção, se as pessoas ou sociedades ao redor deles lhes devolverem um quadro de si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível.101

No Direito Tributário, a igualdade também passa a ter essa preocupação, não mais

aplicando a todos os contribuintes, uniformemente, um dado tratamento, mas procurando

submeter cada contribuinte, individual ou agrupadamente, a um tratamento tributário que

melhor responda às características daquele contribuinte ou grupo de contribuintes.

Banem-se os privilégios e as discriminações odiosas, muitas vezes decorrentes não de

normas específicas aplicadas a um determinado contribuinte, mas de normas gerais que, ao

incidirem uniformemente sobre uma gama de contribuintes dotados de características

absolutamente diversas, podem trazer a alguns deles uma situação desproporcional e

irrazoavelmente privilegiada ou desprivilegiada em relação aos demais.

4.2.4. A SOLIDARIEDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO

Conforme noticia o prof. RICARDO LOBO TORRES, a idéia de solidariedade é

recuperada após o abandono a que lhe renegou o liberalismo do século XIX e de boa parte do

século XX, embora ela já fosse um valor fundante do Estado de Direito desde a Revolução

Francesa, sob as vestes da fraternidade102.

Esse valor ganha especial força com a criação e assimilação do conceito de humanidade

após a II Guerra Mundial, com o que toma corpo a noção de que a comunidade precisa ser

protegida diante de maiorias ou tiranias eventuais.

Como se verá quando se tratar da liberdade, o valor fundamental deixa de ser a vontade

individual e passa a ser a pessoa humana, que deve ser protegida e ter garantido o

desenvolvimento das suas potencialidades na melhor medida possível.

Essa necessidade de proteção conduz ao reconhecimento de uma outra necessidade, a de

coexistência entre as pessoas, que se alia à já referida igualdade material ou substancial e à

101 TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 2000, p. 241. 102 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 180.

idéia de justiça distributiva para materializar o conteúdo da solidariedade, fulcrado também na

idéia de reciprocidade103.

Por essa idéia de reciprocidade no custeio da proteção da comunidade é que surge a

convicção de que todos os cidadãos devem contribuir, dentro das suas possibilidades fáticas,

ou seja, de maneira que não comprometa desproporcionalmente o exercício dos seus próprios

Direitos Fundamentais, para o sustento do Estado encarregado dessa proteção.

4.2.5. A LIBERDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO

A liberdade, sem dúvida, é um dos valores cuja concepção sofreu mais significativas

alterações ao longo dos tempos e com o passar das transformações ocorridas no Estado, desde

o Estado Liberal Clássico, em que imperava a chamada liberdade de, passando pelo Estado de

Bem-estar Social, em que reinava a liberdade para, até o Estado Democrático de Direito, em

que vige a igual liberdade104.

A Liberdade é revisitada e há uma guinada da perspectiva civilista/privada - submissão

somente à própria vontade, tendo como limite apenas a liberdade dos demais indivíduos - para

uma concepção mais moral e pautada nos Direitos Fundamentais reconhecidos à pessoa

humana, aonde o exercício da liberdade continua preservado, mas passa a sofrer limitações de

ordem constitucional, devendo estar em consonância com os objetivos, os fundamentos e os

princípios constitucionais, especialmente da proteção da pessoa humana. Nesse sentido é a

observação de RONALD DWORKIN, ao analisar a obra de STUART MILL:

Ela também cita passagens do ensaio sobre Coleridge, no qual Mill inclui, entre as funções da educação em uma sociedade boa, “desenvolver no ser humano o hábito, e portanto a capacidade, de subordinar seus impulsos e objetivos pessoais ao que for considerado como os objetivos da sociedade (...)”. Contudo, educar os homens para aceitar os objetivos da sociedade é educá-los a aceitar as restrições à licença, com vistas ao respeito pelos interesses dos outros, e não para subordinar a própria personalidade dos educandos quando esses interesses não estiverem em jogo.105

No que toca o Direito Tributário, é oportuna a introdução do Prof. RICARDO LOBO

TORRES sobre o que pode se chamar de liberdade fiscal:

103 MORAES, Maria Celina Bodin de. “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo”. In: SARLET, Ingo (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. 104 TORRES, Op. cit., nota 100, p. 59.

Liberdade e tributo, conseguintemente, caminham juntos no decurso da evolução do Estado Financeiro, pelo que se pode cogitar de uma liberdade fiscal: o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade, constitui preço da liberdade, pois é o instrumento que distancia o homem do Estado, e pode implicar na opressão da liberdade, se não o contiver a legalidade. O relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, pois vive sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo.106

Como já dito, a feição moderna do Direito Tributário aponta esse ramo do Direito como

aquele responsável pela arrecadação de recursos da sociedade para que seja possível o custeio

das atividades estatais como um todo, voltadas estas à garantia dos Direitos Fundamentais do

homem e à persecução de certas finalidades valoradas positivamente pela sociedade.

O cidadão abre mão de parte da sua liberdade (por exemplo, da liberdade de dispor

livremente do seu patrimônio), para com ela contribuir para o sustento do Estado justamente

para ter as suas demais liberdades garantidas.

Nesse sentido é que se fala em “preço da liberdade”, pois o tributo passa a ser encarado

como o montante de recurso (e de liberdade) que o cidadão tem que fornecer ao Estado (dele

abrindo mão), para que o restante da sua liberdade, na qual se compreende a liberdade para o

exercício dos direitos que lhe são inerentes, seja protegida ou garantida por este último.

O tributo é o preço para que o homem possa desenvolver suas potencialidades na esfera

de direitos que lhe é reservada pelo ordenamento jurídico, até o limite em que essa esfera

colide com a esfera de outros. Este preço, mais do que financeiro, também é mensurado como

uma espécie de liberdade, pois é fato que ao pagar o tributo o cidadão abre mão de uma

parcela da liberdade que ele teria para usufruir das suas posses.

Não obstante, esse preço não é totalmente aberto à conveniência do Estado. Ao mesmo

tempo em que visa a possibilitar a garantia das liberdades pelo Estado, a tributação não pode,

ela própria, se converter em um fator de opressão da liberdade dos contribuintes. Nesse

sentido, um tributo não pode ter contornos que façam com que o seu adimplemento gere, por

si só, um constrangimento desproporcional da liberdade do contribuinte.

Com efeito, ainda na esteira do entendimento do eminente professor da UERJ, “a

liberdade fiscal apresenta o perfil negativo, isto é, de limitação do poder de o Estado tributar

certas liberdades (...) ou de tratar desigualmente as pessoas”. E há vários meios para que essa

105 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 407. 106 TORRES. Op. cit., nota 100.

limitação seja efetivada, desde a previsão de imunidades na Constituição até a outorga de

isenções pela legislação infra-constitucional, sempre em observância aos princípios e direitos

fundamentais presentes no ordenamento constitucional, passando, obviamente, pela proibição

de privilégios e discriminações odiosos que maculariam a igualdade material entre os

contribuintes, conforme já mencionado acima.

Além disso, a atuação tributária estatal passa, obrigatoriamente, a observar não apenas as

liberdades propriamente ditas, mas também as condições para o exercício dessas liberdades,

sem as quais o indivíduo é impossibilitado, na prática, de exercê-las. Surge, então, a

necessidade de se proteger um momento anterior ao próprio exercício da liberdade, ou seja,

deve-se garantir que a tributação não impeça o cidadão de ter condições e se valer daquele

exercício.

4.3. UM EXEMPLO DA NOVA ACOMODAÇÃO DOS VALORES NO DIREITO

TRIBUTÁRIO: O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

No ambiente da moderna fundamentação do Direito Tributário, o Princípio da

Capacidade Contributiva107 aparece como um dos princípios mais caros a esse ramo jurídico,

uma vez que sintetiza uma grande gama de valores e, ao mesmo tempo, especialmente através

de sub-princípios e de princípios correlatos, operacionaliza a aplicação justa das normas

tributárias.

Diante da imensa utilidade vislumbrada pelos juristas nesse princípio, houve o que se

pode chamar de efeito pendular: quando um pêndulo é retido em uma posição, após ser solto a

sua tendência é de que se projete, com toda a força, para a posição diretamente oposta. Com o

Princípio da Capacidade Contributiva ocorreu o mesmo fenômeno: depois de um longo

período de quase completo esquecimento, o princípio foi “solto” e, assim como o pêndulo,

projetou-se, com toda a força, rumo a uma “superexposição”.

Frise-se que essa “superexposição” não acarretaria, necessariamente, problemas ao

aplicador do direito. Contudo, as dificuldades surgem quando a aplicação do princípio não

acontece de forma precisa, bem identificada e fundamentada, vulgarizando-o e concedendo

107 No direito positivo brasileiro, este princípio é expressamente previsto no art. 145, §1°, da Constituição Federal de 1988, que prevê: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” (grifou-se).

aos subsistentes defensores do formalismo argumentos para chamar este e outros princípios de

argumentos meramente retóricos, sem conteúdo, passíveis de serem utilizados para sustentar

qualquer tipo de posição, até aquelas diametralmente opostas.

4.3.1. EVOLUÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE

CONTRIBUTIVA

Conforme noticia RICARDO LOBO TORRES108, o Princípio da Capacidade

Contributiva foi pela primeira vez formulado por ADAM SMITH, que afirmou que “a

subordinação do cidadão ao Governo deve se fazer ‘na medida do possível, em proporção a

sua respectiva capacidade de pagar’”109.

Em outras palavras, a intervenção estatal sobre um determinado sujeito deve respeitar a

zona correspondente à capacidade deste suportar tal intervenção, ou seja, em curto resumo,

somente poderá ser alcançada pelo Estado a parcela do patrimônio individual que estiver

disponível110 também para o seu titular.

Na doutrina de SMITH, essa “capacidade de pagar”, por sua vez, deve ser proporcional à

riqueza que os contribuintes gozam sob a proteção do Estado, no que se convencionou chamar

de princípio ou teoria do benefício111, que propugnava que o tributo deveria ser mensurado de

acordo com o benefício proporcionado pelo Estado ao contribuinte112, vale dizer, o tributo

teria ares de contraprestação aos serviços113 prestados pelo Estado aos cidadãos.

Com o passar do tempo, outras teorias acerca do Princípio da Capacidade Contributiva

foram construídas, sempre com o objetivo de tornar o seu fundamento e o seu conteúdo mais

claros e palpáveis para o manejo jurídico.

108 TORRES, Op. cit., nota 100. 109 Não obstante, a preocupação com a justiça na tributação, especialmente com observância à capacidade de cada contribuinte suportar o tributo, remonta à Grécia e Roma antigas, bem como à Magna Charta inglesa, de 1215: “VIVEIROS DE CASTRO historia que em Atenas certa contribuição para o custeio da marinha nacional era devida por todo cidadão ‘cuja fortuna atingia a 10 talentos’ (os que possuíam menos de 10 talentos se associavam para o fornecimento de uma galera), escrevendo-se num registro a importância com que cada cidadão era obrigado a contribuir, tendo sempre em vista as faculdades de cada um. Roma estabeleceu, com Servius Tullius, originalíssima forma de capitação, depois revogada por Tarquínio, o Soberbo, a qual tomava por base a fortuna de cada contribuinte. Posteriormente, em 1215, a Magna Charta inglesa registraria no seu artigo 12 que as prestações coercitivas deveriam ser ‘moderadamente fixadas’”. (DOMINGUES, José Marcos. Capacidade contributiva – conteúdo e eficácia do princípio. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 12-22). 110 A noção de disponibilidade aqui ventilada será melhor explicitada adiante. 111 JARACH, Dino. Finanzas públicas y derecho tributario. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1996, p. 7. 112 CONTI, José Maurício. Princípios tributários da capacidade contributiva e da progressividade. São Paulo: Dialética, 1997, p. 15.

Nesse sentido, pode-se atribuir a STUART MILL114 o início da chamada “teoria do igual

sacrifício”, segundo a qual a observância à capacidade contributiva dos contribuintes é

justificada pelo fato de que os cidadãos devem se sacrificar de maneira proporcionalmente

igual para viabilizar o sustento do Estado.

Na esteira dessa teoria, ganhou força a progressividade, por ser este o critério entendido

como ideal para, fundado nas curvas de utilidade da riqueza115, garantir que os ricos paguem

mais impostos do que os pobres, uma vez que a carga tributária seria progressivamente

majorada na medida em que a riqueza tributável aumentasse e, conseqüentemente, gerasse

menos utilidade para o seu titular. Dessa forma, quanto mais riqueza um sujeito possuísse,

maior seria a carga tributária sobre ele incidente.

Ambas as teorias pautavam-se na idéia de que a capacidade contributiva seria, em última

análise, a causa do tributo, diga-se, a causa maior, jurídica e econômica, da obrigação

tributária.

Isto porque, em ambos os casos, a existência de capacidade contributiva, seja em relação

ao “benefício” auferido pelos cidadãos no que tange à atuação estatal, ainda que genérica, seja

relativa à necessidade de que todos se sacrifiquem de maneira proporcionalmente igual para

sustentar, exatamente, esta atuação estatal, é considerada a justificativa apta a permitir a

incidência tributária e a exigência, pelo Estado, de dinheiro dos cidadãos.

Esta linha de pensamento já era verificada em BENVENUTO GRIZIOTTI116, que

afirmava:

La distribución de los gastos públicos, teniendo en cuenta el principio de la capacidad contributiva, debe hacerse en relación con los beneficios generales de que gozan los contribuyentes y derivados tanto por la actuación del Estado como por la de la Sociedad y la Economía nacional que el propio Estado representa. (...) Estos beneficios deben ser como los puntos de referencia y el limite para la aplicación de los impuestos fundados sobre la capacidad contributiva de cada contribuyente. (grifou-se)

Todavia, essas teorias, que podem ser chamadas de causalistas, revelaram inúmeras

inconsistências, por exemplo:

113 A expressão “serviços”, aqui, é utilizada em um significado amplíssimo, abrangendo todas as atuações estatais em relação aos cidadãos, até mesmo, por exemplo, a garantia geral de segurança e liberdade. 114 MILL, Stuart. apud TORRES. Op. cit., nota 100. 115 JARACH. Op. cit., nota 109, p. 12. 116 GRIZIOTTI, Benvenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958, p. 143.

(a) não ofereciam respostas quando confrontadas com problemas que as contrariassem, como aquele relativo aos impostos, espécie tributária normalmente definida como desvinculada de qualquer contraprestação, insuscetível de ser correlacionada com um sacrifício dos ou um benefício aos cidadãos, ao menos nas acepções de tais palavras utilizadas nas citadas teorias; (b) ao equipararem a capacidade contributiva à causa do tributo, acabam por identificá-la, ou melhor, confundi-la, com o fato gerador, assim entendido como o fato que, uma vez observado, dá margem à incidência tributária; (c) a interpretação de que, uma vez verificada capacidade contributiva, estaria justificada toda e qualquer iniciativa do Estado tendente a cobrar qualquer tributo, faz desaparecer a distinção ética e jurídica entre tributos e extorsões arbitrárias do Poder Público.

Além disso, em ambas as teorias acima a capacidade contributiva em si não é explicada,

i. e., o modo de a identificar não é fundamentado, de forma que ela própria carece de uma

legitimação jurídica. Na verdade, a capacidade contributiva seria definida a critério do

legislador, que a identificaria por métodos científicos117, sem a consideração de aspectos

valorativos cuja relevância será demonstrada adiante.

Diante da insuficiência de tais teorias, passou-se a analisar a capacidade contributiva de

uma maneira holística, completa, buscando-se no sistema jurídico os instrumentos que traçam

os seus contornos, estabelecem os seus limites e revelam, ainda que abstratamente, o seu

conteúdo.

Assim, constatou-se que a legitimação do Princípio da Capacidade Contributiva é

fundada na interseção de uma série de outros princípios, como o da igualdade e da

solidariedade, e em valores como a liberdade. Este princípio se distancia, portanto, da idéia de

“causa do tributo”, para se aproximar da noção de um “fundamento ético da tributação”118.

A idéia de solidariedade, então, passa a ter grande importância na definição da

capacidade contributiva, significando, conforme FRANCESCO MOSCHETTI119, uma

cooperação altruísta, caracterizada pelo sacrifício de um interesse individual, pela ausência ou

irrelevância de uma contraprestação direta e pela finalidade de interesse coletivo. Estes três

elementos, por sua vez, mostram-se presentes na relação tributária, em que o indivíduo, pelo

dever de solidariedade, é levado a sacrificar uma parcela do seu patrimônio, sem

117 TORRES. Op. cit., nota 100, p. 299. 118 TORRES. Ibid, p. 300. 119 MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidad contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980, p. 117.

necessariamente obter uma contraprestação específica, com vistas ao fim de interesse coletivo

consubstanciado no custeio do Estado em cuja sociedade está ele incluído.

Nesse sentido, os tributos devem ser divididos, sim, de forma que os mais ricos paguem

mais que os mais pobres. Mas isso nada tem a ver com a questão do igual sacrifício ou da

mensuração dos respectivos benefícios, mas sim com o fato de que, tendo em vista tal dever

de solidariedade, inerente aos seres-humanos e, no caso brasileiro, elevado

constitucionalmente ao status de objetivo fundamental do Estado120, é imprescindível para a

humanidade (e não meramente para o sustento do Estado) que a repartição tributária seja feita

dessa maneira.

Outro valor que contribui à formulação do Princípio da Capacidade Contributiva é a

Liberdade, cuja concepção, como visto, sofreu significativas alterações ao longo dos tempos e

com o passar das transformações ocorridas no Estado. No Direito Tributário não foi diferente,

tendo a concepção de Liberdade passado por transformações que já foram expostas no item

4.2.5.

A capacidade contributiva pode ser extraída, ainda, do Estado de Direito121, pois, nesse

tipo de sistema jurídico, a carga tributária deve ser repartida com justiça entre os cidadãos122.

E isso decorre do fato de que, em um Estado que tenha como valor a realização da justiça em

suas diversas esferas, tal justiça, no Direito Tributário, é garantida, dentre outras formas, pela

igualdade (ou eqüidade) da repartição da carga tributária.

Note-se que o raciocínio acima não acarreta a conclusão de que o Princípio da

Capacidade Contributiva seria mero desdobramento do Princípio da Igualdade; ou que aquele

tão somente seria a materialização deste no Direito Tributário. A confusão entre os dois

princípios, ou melhor, a sua superposição, foi comum na doutrina ao longo do tempo, como se

exemplifica pelos ensinamentos de VICTOR UCKMAR123, para quem a igualdade perante os

gravames fiscais poderia ser entendida em dois sentidos:

120 Art. 3°, I, da Constituição Federal de 1988. 121 Ressalve-se que mesmo no Estado Liberal e no Estado Social, já existia a preocupação com a questão da Justiça Fiscal, como revela o fato de um dos precursores da idéia de capacidade contributiva ser ADAM SMITH, economista do Século XVII. No entanto, com o advento do Estado Democrático de Direito, a capacidade contributiva ganha uma fundamentação mais forte, na medida em que a idéia de Justiça passa a permear o próprio conceito de Estado, em vez de ser um dado satélite, que, embora objeto de preocupação, não está arraigado na concepção de Estado. 122 TIPKE, Klaus. Moral tributaria del Estado y de los Contribuyentes, Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 28. 123 UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. Tradução de Marco Aurélio Greco. São Paulo: RT, 1976, p. 54

a) em sentido jurídico, como paridade de posição, com exclusão de qualquer privilégio de classe, religião e raça, de modo que os contribuintes, que se encontrem em idênticas situações, sejam submetidos a idêntico regime fiscal; b) em sentido econômico, como dever de contribuir aos encargos públicos em igual medida, entendida em termos de sacrifício, isto é, como melhor será visto a seguir, em relação à capacidade contributiva dos indivíduos. (grifou-se)

Na verdade, o Princípio da Igualdade é um dos muitos que devem ser ponderados para se

definir a capacidade contributiva em um caso concreto. Caso esses dois princípios fossem

confundidos, de forma que o atendimento à igualdade conduzisse necessariamente à

consideração de que a capacidade contributiva teria restado observada, poder-se-ia chegar à

impensável conclusão de que uma carga tributária arbitrária, excessiva e, portanto, injusta,

mas igualmente aplicável a todo um determinado segmento de contribuintes, respeitaria o

Princípio da Capacidade Contributiva.

No entanto, somente a partir do momento em que se tem em mente que, para estudar a

capacidade contributiva, é necessária a análise do caso mediante a ponderação de diversos

princípios a par do da igualdade, se conseguirá evitar incongruências como a identificada no

parágrafo acima.

A rigor, como bem assinala FERNANDO PEREZ ROYO124, tanto se pode afirmar que a

tributação segundo a capacidade econômica é um objetivo ao qual servem de maneira

instrumental os demais princípios ou critérios de justiça do sistema tributário, quanto se pode

dizer que esses demais princípios constituem derivações do princípio fundamental da

contribuição segundo tal capacidade.

4.3.2. A ESTRUTURA APLICATIVA DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE

CONTRIBUTIVA

A evolução da fundamentação do princípio da capacidade contributiva trouxe a reboque

uma nova estrutura de aplicação dessa norma, que permite a identificação mais precisa e

concreta da sua forma de atuação.

Um dos primeiros trabalhos a tratar, no Brasil, dessa nova estrutura e a propor uma

delimitação mais acurada dos diversos aspectos do princípio em tela foi o escrito por FÁBIO

124 PEREZ ROYO, Fernando. Derecho financiero y tributario – parte general. Madrid: Civitas, 1995, p. 35.

FRAGA GONÇALVES e JANSSEN HIROSHI MURAYAMA125, no qual os autores

propõem uma reorganização da capacidade contributiva e a identificação de dois

desdobramentos: a capacidade contributiva como pressuposto da tributação126 e a capacidade

contributiva como parâmetro da tributação.

Os autores esclarecem que, como pressuposto, a capacidade contributiva significa que,

em uma abordagem objetiva, “o legislador é obrigado a adotar como hipótese de incidência

um fato com conteúdo econômico revelador de riqueza”; e que, em uma abordagem subjetiva,

“o contribuinte deve possuir meios financeiros para arcar com a tributação que lhe é imposta

sem que seja afetado o seu mínimo essencial, nem sejam confiscados os seus bens”. E

prosseguem afirmando que “a capacidade contributiva possui, neste caso, uma função

garantidora e desempenha um papel de tutela do direito de propriedade”.

Sob o enfoque acima, não basta que o legislador eleja como objeto de tributação um fato

revelador de riqueza, como já bem apontado pela doutrina nacional tradicional; é necessário

um plus, qual seja, que também o contribuinte (e não só o fato) tenha aptidão para revelar essa

riqueza, ou, em aproximação das palavras de PEDRO M. HERRERA MOLINA127, que

possua uma riqueza disponível passível de ser tributada. A ausência do pressuposto objetivo e

do pressuposto subjetivo inviabiliza a tributação.

É imprescindível, em síntese, analisar se um fato é ou não é revelador de riqueza e se uma

pessoa tem ou não tem riqueza disponível a ser tributada, ainda que ela pratique fatos que,

isoladamente, poderiam ser identificados como manifestações de riqueza.

Mas como se determinaria a disponibilidade ou indisponibilidade da riqueza do

contribuinte? A resposta a essa indagação é fornecida pela teoria dos limites verticais de

RICARDO LOBO TORRES128. Nesse sentido, o contribuinte teria riqueza disponível apenas

125 GONÇALVES, Fábio Fraga e MURAYAMA, Janssen Hiroshi. “Releitura do princípio da capacidade contributiva à luz do direito tributário ambiental”, in Direito Tributário Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 126 É bem de ver que a idéia de capacidade contributiva como pressuposto da tributação já era verificada na obra de DOMINGUES. Todavia, enquanto a idéia de pressuposto do Professor da UERJ é extraída do princípio da igualdade (“é na preservação das necessidades de subsistência e na garantia do padrão de vida que se revelará o conteúdo isonômico do princípio da capacidade contributiva”, DOMINGUES. Op. cit., nota 109, p. 57, grifou-se), no nosso entender, a atuação da capacidade contributiva como pressuposto da tributação não deflui unicamente da igualdade, mas sim da conjugação de diversos outros princípios e valores, conforme já exposto. Nos aproximamos, assim, da linha de entendimento de GONÇALVES e MURAYAMA, que evoluíram o pioneiro ensinamento de DOMINGUES, reviram a fundamentação desse pressuposto e, com base nessa revisão, reorganizaram a concepção da capacidade contributiva, dotando-a, a nosso ver, de uma efetividade ainda maior. 127 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econômica y Sistema Fiscal. Madrid: Marcial Pons, 1998. 128 TORRES. Op. cit., nota 100, p. 304. Ao analisar as normas constitucionais que devem ser observadas para se delimitar a atuação do Princípio da Capacidade Contributiva, o autor constata que ele possui duas frentes de limitação: (a) limites verticais: a capacidade contributiva tem como limite inferior o atendimento ao princípio do mínimo existencial, pois antes disso não há que se falar em aptidão para contribuir; e como limite superior a observância

quando a tributação não implicar ofensa ao seu mínimo existencial nem acarretar o confisco

do seu patrimônio.

A razão para tanto é que a riqueza só está disponível à tributação após o contribuinte

possuir recursos mínimos para subsidiar a sua sobrevivência e a dos seus dependentes e

enquanto a incidência tributária não atingir a fonte produtiva da riqueza, ou seja, não

confiscar a própria fonte dos recursos que são objeto da tributação. É neste intervalo que

reside a capacidade contributiva efetiva do particular.

A capacidade contributiva, assim, revela-se não somente o fundamento (razão de existir)

da tributação, como já havia sido indicado por DOMINGUES129, mas também como seu

pressuposto (condição para existir), pois a obrigação tributária somente poderá nascer caso

sejam preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos desse pressuposto.

Já como parâmetro, ainda nos dizeres de GONÇALVES e MURAYAMA, “a capacidade

contributiva está ligada à forma com que serão graduados os tributos”, estando “intimamente

ligada à proporcionalidade e a progressividade (...), por intermédio das quais, com base no

princípio da solidariedade e na própria capacidade contributiva, abre-se a oportunidade de a

carga tributária não ser a mesma para todos os cidadãos”.

Nesse sentido, a capacidade contributiva atua como critério de fixação da carga tributária

individual de cada cidadão, a qual variará na medida em que um ou outro contribuinte revele

maior ou menor grau de riqueza disponível130, possibilitando-se que os tributos sejam

estabelecidos de maneira diferenciada em decorrência de tal variação, sempre com vistas a

uma tributação mais justa possível, em homenagem ao Princípio da Solidariedade.

A capacidade contributiva como parâmetro tem como baliza os limites horizontais de

RICARDO LOBO TORRES131, que objetivam evitar discriminações ou privilégios odiosos

do princípio da vedação ao confisco, pois só existirá capacidade contributiva enquanto se onerar apenas a riqueza disponível ao contribuinte, sem aniquilar a sua fonte; (b) limites horizontais: baseados no princípio da igualdade (proibição de privilégios e discriminações odiosas) e nos direitos fundamentais (imunidades). 129 DOMINGUES. Op. cit., nota 107, p. 38 130 Os vocábulos disponibilidade, disponível, ou correlatos são sempre utilizados no sentido de riqueza não comprometida com os gastos abrangidos pelo Mínimo Existencial e protegida pela Vedação ao Confisco, e não como mera disponibilidade financeira. 131 TORRES. Op. cit, nota 100. Além dos limites verticais, inferior (Mínimo Existencial) e superior (Vedação ao Confisco), indicados acima, a capacidade contributiva é conformada por limites horizontais ou qualitativos, que dizem respeito à comparação entre as cargas tributárias dos contribuintes, nos quais se manifesta de maneira mais forte o Princípio da Igualdade. Nesse diapasão, os limites horizontais buscam fazer com que as capacidades contributivas dos diversos contribuintes sejam medidas por critérios uniformes, de modo a impedir que uma diferenciação de mensurações enseje uma diferenciação na tributação de contribuintes que se encontram, especificamente quanto à capacidade contributiva, em situações idênticas. Para se alcançar esse objetivo, surge o que é denominado por TORRES de “Proibições de Desigualdades”. A primeira dessas proibições é a que impede a discriminação irrazoável. Assim, se uma determinada incidência tributária desconsiderar a riqueza manifestada por um contribuinte para se valer de outros critérios a fim de estabelecer

entre contribuintes. Em síntese, a graduação da tributação deve observar, comparativamente, a

variação da capacidade contributiva de cada contribuinte, de forma a respeitá-la e a não fazer

com que contribuintes com a mesma aptidão para contribuir suportem uma pressão fiscal

diferente, ou que contribuintes com diferentes capacidades contributivas sejam onerados de

forma igual.

Ademais, assim como na capacidade contributiva como pressuposto, em seu viés

subjetivo, a capacidade contributiva como parâmetro também tem como limite a Vedação ao

Confisco. A tributação, além de dever respeito à eqüidade entre os contribuintes, possui como

limite máximo de fixação o ponto imediatamente anterior àquele em que passaria a incidir não

sobre a riqueza disponível, mas sobre a fonte produtiva de tal riqueza, confiscando o

patrimônio do contribuinte.

Nesse particular, a Vedação ao Confisco manifesta-se duplamente: na capacidade

contributiva como pressuposto, em seu âmbito subjetivo, tendo em vista que a partir do ponto

de confisco não há riqueza disponível a servir de pressuposto da tributação; e na capacidade

contributiva como parâmetro, uma vez que, obviamente, só haverá proporcionalidade entre a

tributação e a riqueza disponível enquanto esta existir e aquela não onerar a fonte da riqueza.

Note-se que, embora ambas tenham em comum a imposição da Vedação ao Confisco, a

capacidade contributiva como parâmetro não se confunde com a perspectiva subjetiva da

capacidade contributiva como pressuposto. Isto porque, enquanto parâmetro, já está superada

a questão de se definir se o contribuinte tem ou não tem riqueza (até porque, para haver

incidência tributária, esta fase já deverá ter sido ultrapassada). Nessa faceta, a capacidade

uma diferenciação, ela será ilegítima. Em suma, ainda que haja riqueza, se o tributo utilizar outros critérios de diferenciação diversos da capacidade contributiva, como o sexo, a raça, a religião, estará ele em desconformidade com esse princípio, também porque tais aspectos são incongruentes com aquilo que o Estado necessita (riqueza). Essa afirmação não afasta a possibilidade da eleição de critérios de diferenciação desvinculados da capacidade contributiva, como pode ocorrer nos tributos de cunho extrafiscal. Isto porque, neste tipo de tributo, a extrafiscalidade é revelada pela própria natureza do tributo e autoriza, em alguma medida, a inobservância da capacidade contributiva, ou melhor, de algum dos seus aspectos. Uma segunda proibição verificada como limite horizontal da capacidade contributiva é aquela atinente aos privilégios odiosos, os quais consistem, nas palavras do autor, “na permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba, com alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”. Mostra-se presente, aqui, o Princípio da Generalidade, diretamente extraído do da Igualdade, no sentido de que a tributação, a princípio, deve ser imposta a todos aqueles que se encontram em seu âmbito de incidência. Dessa maneira, a identificação da capacidade contributiva deve fazer com que todos os contribuintes que a revelem e que estejam na mesma situação fática sofram a incidência do tributo uniformemente, sem que um ou alguns sejam desonerados em detrimento dos demais, que acabarão suportando a carga tributária da qual os beneficiados foram isentados. A capacidade contributiva também é moldada, horizontalmente, pelas normas que, grosso modo, impedem a incidência de tributos, em defesa dos direitos fundamentais ou de objetivos tidos pelo constituinte como merecedores de proteção, como é o caso das imunidades. Assim, muitas situações que, na prática, podem revelar capacidade contributiva de um determinado contribuinte, são retiradas da competência tributária dos diversos entes fiscais, a fim de que aquela situação seja preservada ou estimulada.

contributiva cuida apenas da medida em que esta riqueza poderá ser onerada, mas a incidência

em si já é possível.

Como se vê, o princípio da capacidade contributiva, intensamente influenciado por

valores e por outros princípios, constitui um exemplo típico dos impactos da moderna

fundamentação do Direito Tributário sobre aspectos práticos da tributação e sobre a

interpretação que deve ser conferida às normas que regem o Sistema Tributário brasileiro.

4.4. UMA CONSTRUÇÃO PARA O INTERESSE PÚBLICO NO DIREITO

TRIBUTÁRIO

Diante do que foi acima exposto, constata-se que restou superada a visão clássica da

tributação, que a encarava exclusivamente como um ato de império do Estado, o qual se vale

da sua soberania para obrigar os cidadãos a financiarem com seus recursos o funcionamento

da máquina estatal.

Essa visão possibilitaria sustentar que o interesse público do Direito Tributário seria o de

promover a arrecadação de recursos pelo Estado na maior medida possível, pois o custeio das

suas atividades teria maior importância do que os direitos individuais dos particulares.

Nessa esteira, a interpretação da norma jurídica deveria ser voltada a proporcionar a

solução que representasse a melhor arrecadação possível, ou seja, que não privasse o Estado

dos recursos necessários para o seu sustento, pois as atividades custeadas seriam de enorme

importância para a sociedade. Em suma, o interesse da sociedade seria o de que ela se

privasse do maior número de recursos possível, em favor do Estado, porque estes recursos

voltariam ao seu benefício pela atuação estatal por eles “remunerada”.

A guinada na perspectiva de que o interesse do Estado se confunde com o interesse da

sociedade vem a reboque da nova acomodação dos valores, princípios e Direitos

Fundamentais na moderna concepção do Direito Tributário.

O aumento de força de valores como a justiça e a solidariedade e a releitura de valores

como a segurança, a igualdade e a liberdade; o reconhecimento da normatividade dos

princípios constitucionais, como indicadores vinculantes de objetivos e finalidades a serem

alcançadas pelo ordenamento jurídico; e o prestígio dos Direitos Fundamentais da pessoa

humana, elevados ao status de epicentro do sistema jurídico, irradiando-se por todo o

ordenamento e também vinculando a atuação de todos os agentes sociais, estatais e

particulares, retira o foco do Direito Tributário da arrecadação e desloca-o para a

contribuição. De um direito do Estado enquanto ser soberano, passa-se a observar um dever

do contribuinte enquanto ser solidário. Neste ponto, é oportuna a lição de LÍDIA MARIA

LOPES RODRIGUES RIBAS:

Segundo o entendimento de Casas, não há mais como aceitar a doutrina que defende a obrigação tributária constitutiva de uma relação de poder, uma vez que, no Estado social e democrático de direito, o vínculo jurídico que nasce em conseqüência do exercício da potestade tributária normativa encontra no pólo passivo da obrigação um contribuinte cidadão e não um súdito. Houve uma transformação do Estado soberano para um Estado a serviço da comunidade, em que o interesse fiscal não é mais o interesse público do Estado, mas um interesse coletivo, no qual às vezes o interesse do Estado é o do contribuinte.132

É exatamente por isso que ganha tanto relevo o Princípio da Capacidade Contributiva, já

dissecado na maior medida possível dentro do âmbito deste trabalho. A contribuição passa a

ser encarada não apenas como decorrente de uma obrigação imposta pelo Estado; antes, ela é

oriunda de uma obrigação imposta pelos valores e princípios constitucionais, notadamente o

da solidariedade, que exigem que os cidadãos contribuam dentro das suas possibilidades

fáticas, em observância aos seus Direitos Fundamentais, justamente para que, com esses

recursos, o Estado consiga garantir as condições e o próprio exercício dos direitos de todos.

Como se vê, a arrecadação não deixa de ser uma preocupação do Direito Tributário.

Contudo, ela não mais é uma preocupação absoluta, única, pois a tributação passa a não ter

apenas essa finalidade, mas a servir de instrumento para a implementação de políticas

públicas, para o direcionamento das condutas humanas e para o equilíbrio entre todos os

atores da sociedade.

Como instrumento para a implementação de políticas públicas, a tributação abandona

uma visão meramente retrospectiva, do que ocorreu, fulcrada quase exclusivamente no fato

gerador de cada obrigação tributária. O tributo passa a olhar para frente, para o impacto da

incidência (ou não incidência) tributária nas condutas dos contribuintes e para a finalidade que

será perseguida com o produto da sua arrecadação, como acontece com as contribuições

especiais, nas quais um dos elementos de validade constitucionalmente exigidos é justamente

a destinação que será dada aos recursos delas provenientes, os quais deverão ser aplicados em

atuações governamentais previamente estabelecidas na Constituição Federal133.

132 RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues. “Processo Administrativo Tributário em Perspectiva de Cidadania Democrática”, in ROCHA, Sérgio André (coord.). Processo Administrativo Tributário – Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 387. 133 DOMINGUES, José Marcos. O conteúdo da extrafiscalidade e o papel das Cides. Efeitos decorrentes da não-utilização dos recursos arrecadados ou da aplicação em finalidade diversa. RDDT 131:45.

A importância dessa mudança é percebida a partir do momento em que ela, ao fazer com

que se aumente o campo de visão do Direito Tributário, consegue alterar até mesmo uma das

maiores tradições do Direito Tributário, qual seja, a classificação das espécies tributárias, que

passa por enormes evoluções com a agregação de mais um elemento (o finalístico) a ser

considerado.

Outra característica que faz a tributação se tornar instrumento de grande relevância para a

implementação de políticas públicas é a chancela constitucional da extrafiscalidade,

expressamente albergada em diversos dispositivos constitucionais, muitos dos quais já

abordados neste trabalho.

De qualquer forma, para oferecer mais um exemplo, basta mencionar a redação

constitucional referente ao IPTU anterior à Emenda Constitucional n° 29/2000. Segundo a

jurisprudência do STF134, a única progressividade possível para aquele imposto era a tendente

a estimular o cumprimento da função social da propriedade, a teor dos arts. 156, §1°, e 182,

§§2° e 4°, da CF/88. Não se trata, portanto, de uma tributação exclusivamente fiscal, pois é

possível a eleição de fatores desvinculados do elemento econômico (base de cálculo) para se

tributar de forma mais onerosa os imóveis que não estiverem atendendo a sua função social,

nos moldes preconizados nos referidos dispositivos constitucionais.

Tudo o que se disse da tributação em relação às políticas públicas deixa claro que ela

passa a ser, também, instrumento para o direcionamento da conduta humana. Através da

extrafiscalidade, da progressividade, da seletividade, da substituição tributária, da

responsabilidade tributária e de diversos outros mecanismos, a tributação consegue de forma

efetiva e eficaz indicar aos particulares qual conduta deve ser seguida.

Os meios para a materialização do potencial direcionador de condutas da tributação

podem ser sinteticamente identificados na obra de ALIOMAR BALEEIRO, que explica:

Quanto pretende uma intervenção através de processos tributários, o Estado ora usa dos efeitos drásticos que uma imposição produz sobre os preços e o valor, conforme vimos a propósito dos fenômenos de repercussão, absorção e transformação, ora afasta esses efeitos através de imunidades e isenções, discriminando, para esse fim, as coisas, fatos ou atividades, que deseja preservar e encorajar.135

134 STF, Súmula nº 668: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional nº 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”. 135 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 177.

Evidentemente, a modulação da conduta humana através da tributação deve obediência

aos ditames dos valores e princípios constitucionais, além, é claro, dos Direitos Fundamentais.

Não é qualquer conduta humana que deve ser estimulada ou desencorajada por meio da

tributação, mas apenas aquelas que, razoável136 e proporcionalmente137, promovam o

cumprimento e a proteção daqueles valores, princípios e direitos.

Uma tributação que, a pretexto de influenciar a conduta humana, acabe violando direitos

individuais, ou que conforme o comportamento do cidadão de modo danoso aos objetivos

constitucionais, será flagrantemente ilegítima. Por exemplo, uma incidência tributária que,

sob o argumento de desestimular determinada atividade, importe em confisco do patrimônio

do contribuinte, ou uma tributação que, ao onerar excessivamente a folha de salários e a

contratação regular de empregados, estimule diretamente o subemprego, não poderão ser

consideradas válidas.

Diante dessas novas funções da tributação, amparadas pela moderna dogmática do Direito

Tributário, torna-se evidente a sua potencialidade de contribuir significativamente para o

equilíbrio da sociedade e, conseqüentemente, para aquele que, como já sustentado, é o

interesse maior do Direito: a pacificação social.

A possibilidade de, por meio da tributação, se implementarem políticas públicas legítimas

e de se direcionarem as práticas dos cidadãos no sentido que melhor atenda às finalidades

constitucionais demonstra que, se bem utilizada, a tributação pode, sim, gerar uma situação

mais justa e equânime entre todos os agentes sociais138

Isso depende, por obviedade, de a utilização que for dada à tributação, por sua vez,

atender àqueles mesmos valores e princípios e respeitar os Direitos Fundamentais dos

contribuintes, pois, antes de proteger determinada situação, qualquer instituto jurídico deve

respeitar essa mesma situação.

Por tudo o que foi dito, pode-se afirmar com certa margem de segurança que o interesse

público do Direito Tributário é o de que a tributação se dê da maneira que melhor contribua

para a pacificação social. E a melhor contribuição possível será dada por uma tributação que

não apenas arrecade os recursos necessários para que o Estado promova aquela pacificação,

mas também que seja pautada pelos valores e princípios constitucionais e pelos Direitos

136 A idéia de razoabilidade por nós utilizadas é a de ÁVILA. Op. cit., nota 36, e já foi exposta dentro dos limites deste trabalho no sub-capítulo 2.2. 137 O entendimento que seguimos acerca do postulado da proporcionalidade já foi anteriormente elucidado e corresponde às idéias de ÁVILA. Op. cit., nota 33. Além disso, os mecanismos deste postulado serão utilizados no item 4.4.1 deste estudo, o que tornará mais clara a sua aplicação prática. 138 Para uma análise histórica da utilização da “tributação como arma de reforma social”, fazemos referência a BALEEIRO. Op. cit., nota 132, p. 179-182.

Fundamentais, respeitando-os, protegendo-os e auxiliando a sua concretização no mundo dos

fatos.

Esta assertiva vem na esteira da essência identificada no Sistema Constitucional

Tributário, fortemente influenciado por aqueles valores, princípios e direitos fundamentais.

Por isso mesmo é que também as normas deste Sistema devem ser interpretadas da maneira

que, diante do caso concreto, melhor alcance aqueles objetivos.

E também vem a reboque do que já foi exposto sobre o Princípio da Subsidiariedade. Se

as atribuições concernentes à obtenção da pacificação social são distribuídas entre os

inúmeros agentes sociais; se os agentes superiores devem garantir a autonomia dos inferiores

e somente podem intervir quando os últimos se mostrarem ineficientes ou incapazes; não há

justificativa razoável para se privilegiar a extração de recursos da sociedade em prol do

Estado (arrecadação), pois isto somente seria válido se reconhecêssemos a este último uma

importância superior do que a daqueles quanto ao cumprimento dos objetivos constitucionais.

Não se renega a importância do Estado; não se rejeita a imprescindibilidade da

arrecadação de recursos da sociedade; mas também não se admite que o Estado seja de tal

forma superior que, para se conseguir aquela arrecadação, atropelem-se agentes sociais ou

interesses que, no caso concreto, tenham capacidade de em maior medida e de maneira mais

próxima contribuir para o alcance da pacificação social. Utilizando ecleticamente as palavras

de MICHAEL WALZER:

(...) the state is not in fact the only or even, for ordinary people in their every day lives, the most important social union. All sorts of other groups continue to exist and to give shape and purpose to the lives of their members, despite the triumph of individual rights, the Four Mobilities in which that triumph is manifest, and the free-riding that it makes possible. But these groups are continually at risk. And so the state, if it is to remain a liberal state, must endorse and sponsor some of them, namely, those that seem most likely to provide shapes and purposes congenial to the shared values of a liberal society.139

Todas estas considerações revelam que, especialmente no Ordenamento Jurídico

Brasileiro e especificamente no Sistema Constitucional Tributário, o interesse do Estado não

139 WALZER, Michael. Politics and Passion. New Haven: Yale University Press, 2004, p. 156-157. Em tradução livre: (...) o Estado não é de fato o único ou mesmo, para as pessoas comuns em seu dia-a-dia, o mais importante agente social. Todos os outros tipos de grupos continuam a existir e a dar forma e propósito às vidas dos seus membros, a despeito do triunfo dos direitos individuais, das Quatro Mobilidades [que caracterizam a sociedade norte-americana - mobilidade geográfica, social, marital e política] nas quais aquele triunfo se manifesta, e do livre arbítrio que os torna possíveis. Mas estes grupos estão continuamente sob risco. Então o Estado, caso permaneça um Estado Liberal, tem de reforçar e patrocinar alguns desses grupos, nomeadamente aqueles que, com maior probabilidade, assumem formas e propósitos conformes aos valores comungados pela sociedade liberal.

mereceu um tratamento privilegiado a ponto de que, no embate concreto com o interesse do

cidadão, àquele seja atribuída uma prevalência prévia e absoluta.

Na verdade, a Constituição Federal é laica até no momento de optar por qual interesse

deve merecer prevalência, pois fornece instrumentos para que todos os interesses existentes na

sociedade de algum modo sejam considerados e, em certa medida, protegidos.

Nesse sentido, em não havendo um interesse previamente dotado de supremacia, toda e

qualquer aplicação prática do Direito Tributário deve observar a finalidade deste ramo

jurídico, que, desconectada da pura e simples arrecadação, corresponde à conformação da

tributação com os princípios e valores constitucionais, confluentes na maximização do

atendimento dos Direitos Fundamentais.

Portanto, diante da existência de um ordenamento jurídico estabelecido, que retrata e

materializa os valores e ideais caros à sociedade, fica claro que o interesse público do Direito

Tributário é o de contribuir para a concretização dos objetivos constitucionais dentro da sua

área de influência. E essa contribuição somente será levada a efeito se a tributação não

privilegiar este ou aquele interesse, a arrecadação ou a inadimplência, mas sim for praticada e

aplicada, em cada caso concreto, do modo que melhor permita a acomodação dos interesses

em jogo, à luz das normas constitucionais.

4.5. O MODERNO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL: EXEMPLO

PRÁTICO DA APLICAÇÃO DA NOVA CONCEPÇÃO DO INTERESSE

PÚBLICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

As transformações descritas nos capítulos antecedentes que ocorreram no Direito

Tributário, tanto na sua fundamentação quanto na idéia acerca da sua finalidade, se

manifestam de diversas formas na prática, na vida real da Administração e do contribuinte.

Um dos campos em que essas modificações se revelam de modo mais patente é o

Processo Administrativo Fiscal, procedimento levado a cabo no interior da Administração

Pública e que tem como resultado a solução de divergência sobre uma determinada situação

do contribuinte, que pode levar à constatação ou não da existência de um crédito tributário.

Conforme noticia RICARDO LOBO TORRES140, a concepção original dos idealizadores

do Código Tributário Nacional a respeito do processo administrativo fiscal era “orgânica e

unitária”, de modo que “o processo fiscal teria início sempre por um ato do contribuinte, que

reagia à decisão autoritária do Fisco”.

Para demonstrar esta idéia inicial, TORRES se vale do magistério de RUBENS GOMES

DE SOUZA:

Chegamos assim a uma concepção orgânica e unitária do processo fiscal, que reúne em um mesmo sistema o procedimento administrativo do lançamento e o procedimento jurisdicional do contencioso. Esta conceituação se justifica pela constatação, de certo modo imediatista, de que as fases oficiosa e contenciosa do processo formativo da obrigação tributária visam ambos a uma mesma finalidade única, a saber, a constituição do crédito tributário a favor do Estado, e reciprocamente a constituição da obrigação tributária contra o contribuinte.141

Esta idéia simplista do processo administrativo fiscal é ultrapassada por todas as

modificações pelas quais passa o Direito Público ao longo do tempo e pelo surgimento do

Estado Democrático de Direito, que, nas palavras de RICARDO LOBO TORRES, “exige a

participação e o consenso”. ODETE MEDAUAR reforça este entendimento:

A afirmação da processualidade tributária como processo não se apresenta gratuita, aletatória ou desprovida de conseqüências práticas. Sendo processo, expressa, além do vínculo entre atos, vínculo jurídico entre os sujeitos, em termos de direitos e deveres. Entre outras conseqüências está o enquadramento da situação nas garantias previstas no inciso LV do art. 5° da Constituição Federal, ou seja, nas garantias do contraditório e ampla defesa, com seus desdobramentos.142

Esta idéia também é verificada nos dizeres de LÍDIA MARIA LOPES RODRIGUES

RIBAS:

O processo administrativo tributário responde a esta questão, potencializando sua atuação como ferramenta a serviço da cidadania democrática, mas que encerra temas a serem enfrentados para sua melhor efetivação. (...) Os paradigmas tradicionais devem ser superados diante das novas exigências de transformações sociais, buscando-se a concretização de justiça social, assente em

140 TORRES, Ricardo Lobo. “O Direito à Ampla Defesa e a Processualidade Tributária”. In: ROCHA, Sérgio André (coord.). Processo Administrativo Tributário – Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 557. 141 SOUZA, Rubens Gomes de. apud TORRES. Op. cit., nota 140, p. 557. 142 MEDAUAR, Odete. “Processualização e Publicidade dos Atos do Processo Administrativo Fiscal”. In: SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga (org.). Processo Administrativo Fiscal. São Paulo : Dialética, 1995, p. 122.

parâmetros constitucionais, a partir de políticas eficazes que incorporem a participação dos cidadãos nos centros de poder. (...) A administração pública democrática exige o estímulo à participação do cidadão na gestão pública, com transparência dos atos administrativos praticados, com publicidade das decisões das opções consideradas, dos efeitos previstos e das justificativas necessárias. Enquanto o contribuinte de antes mantinha para com o Estado uma situação de sujeição total, em relação ao seu poder impositivo, hoje, o Estado está a serviço da comunidade, passando-se à necessária cooperação do cidadão com a comunidade administrativa. 143

Ganha força, assim, o pensamento de que o processo administrativo fiscal, mais do que

voltado à constituição do crédito tributário (arrecadação), tem como objetivo dirimir, à luz do

ordenamento jurídico vigente e da verdade material, situações pontualmente litigiosas que

envolvam Fisco e contribuinte, notadamente divergências acerca da ocorrência de fatos

geradores, da quantificação da obrigação tributária etc.

Em outras palavras, o processo fiscal torna-se mais um instrumento voltado à

concretização de uma tributação justa, adequada aos ditames constitucionais, que auxilie

dentro do seu campo de atuação na persecução dos valores e ideais mais caros à sociedade,

como a justiça, a igualdade e a segurança.

Esta alteração conceitual é sentida em inúmeros países144 e não poderia passar

despercebida no Brasil.

Tanto é assim que a legislação básica do processo administrativo fiscal (Decreto n°

70.235, de 06.03.1972) sofreu inúmeras alterações145, assim como surgiram legislações

extravagantes146 que buscam tornar real esta maior participação e cooperação entre Fisco e

contribuinte na seara administrativa.

Um dos grandes exemplos que se têm dessa alteração é a nova leitura que o princípio da

ampla defesa recebe na esfera administrativa, que o estende com o objetivo de lhe dar uma

143 RIBAS. Op. cit., nota 132, p. 384-387. 144 TORRES. Op. cit., nota 140, traz alguns exemplos: “Alguns países publicaram os seus Estatutos do Contribuinte, como os Estados Unidos (Taxpayer Bill of Rights II, de 1996, complementado pelo Taxpeyer Bill of Rights III, de 2003), a Espanha (Ley de Derechos y Garantias de los Contribuyentes – LDGC – n° 1/1998) e a Itália (Estatuto dos Direitos do Contribuinte Italiano (EDC), de 31.07.2000), prevendo novo relacionamento entre as repartições fazendárias e os contribuintes.” 145 Cite-se, como exemplo, a alteração que a Lei n° 11.196, de 21.11.2005, realizou no art. 113 do Decreto n° 70.235/72, ao prever a súmula vinculante do Conselho de Contribuintes, a fim de conferir transparência e segurança ao contencioso administrativo. 146 Um exemplo é a previsão do art. 74 da Lei n° 9.430, de 27.12.1996, que regula um novo procedimento da compensação tributária e admite que o contribuinte maneje recurso contra a decisão administrativa que não homologue a compensação ao Conselho de Contribuintes.

maior efetividade. Alguns corolários dessa extensão são fornecidos por RICARDO LOBO

TORRES:

a) contém o direito à audiência prévia; b) caracteriza-se também como direito irrestrito de petição e recurso (art. 5°, inciso XXXIV, a, da CF); c) exige o duplo grau de jurisdição; d) baseia-se na motivação das decisões; e) implica o desfazimento dos atos complexos na mesma seqüência da sua construção; f) reaproxima a forma processual do conteúdo tributário na busca da verdade material.147

Estas modificações consubstanciam um claro passo em direção da já mencionada

participação e cooperação do contribuinte do processo administrativo fiscal, pois que lhe

facultam uma atuação ativa e determinante na investigação das questões tributárias. Nas

palavras de RICARDO LOBO TORRES:

Na democracia deliberativa e no Estado Cooperativo, a processualidade fiscal, eminentemente dialógica, baseia-se na possibilidade de audiência prévia do contribuinte. Não basta que o cidadão tenha o direito de pleitear a anulação dos atos administrativos abusivos, senão que se torna necessário que seja ouvido previamente à decisão administrativa que lhe é prejudicial. Os interesses envolvidos, a significação econômica dos investimentos e a complexidade dos laudos e das perícias técnicas, além das repercussões sobre o mercado, como acontece no caso que se examina, tudo leva à necessidade da prévia audiência do contribuinte.148

Por outro lado, a necessidade de publicidade e de transparência, como instrumentos

viabilizadores de um efetivo contraditório, também é ressaltada por ODETE MEDAUAR. A

autora discorre sobre a imposição de “informação geral” ao contribuinte sobre os fatos do

processo, da motivação das decisões administrativas, da liberdade de acesso aos documentos e

elementos do processo e da vedação do uso de elementos que não constam dos autos, para ao

final concluir:

A publicidade no âmbito do processo administrativo fiscal pode ser vista, não só como decorrência da garantia do contraditório assegurada aos contribuintes. A atuação administrativa “visível” associa-se à prática do Estado Democrático e, vista do ângulo da Administração, propicia clima de maior confiança nas atuações desta e,

147 TORRES. Op. cit., nota 140, p. 561. 148 Ibid.

por conseguinte, leva à maior facilidade na adesão às medidas que edita. Esta “credibilidade administrativa” por certo traz inúmeros benefícios à vida na coletividade, em especial nas relações Fisco-contribuinte.149

Como se vê, a nova abordagem do processo administrativo, que passa por uma

revitalização decorrente da inserção das idéias de participação e de cooperação da

Administração e dos contribuintes, é um claro exemplo das benéficas conseqüências práticas

oriundas da concepção de interesse público no Direito Tributário examinada no tópico

antecedente, não voltada à arrecadação ou à inadimplência, mas sim a uma tributação que

permita a angariação de recursos em conformidade com o ordenamento jurídico.

149 MEDAUAR. Op. cit., nota 142, p.126.

5. MANIFESTAÇÕES SILENCIOSAS DO PRIVILÉGIO AO INTERESSE

PÚBLICO (DO ESTADO) APLICÁVEIS AO DIREITO TRIBUTÁRIO

No ordenamento jurídico brasileiro, é possível a identificação de enunciados normativos

que conferem - ou possibilitam - ao Estado, à Administração Pública, uma série de

prerrogativas e privilégios.

Estes enunciados podem ser especificamente aplicáveis à seara tributária, bem como

podem ser gerais, mas também aplicáveis à relação tributária.

Após a exposição feita acima, surge a questão de saber até que ponto estas previsões e a

interpretação que a elas é dada pelos aplicadores do direito, notadamente o Poder Judiciário,

são atualmente sustentáveis perante o ordenamento constitucional brasileiro.

Utilizaremos, para os fins deste trabalho, 5 (cinco) exemplos, tão comuns quanto

significativos, que servirão para demonstrar quão incruada na mentalidade jurídica brasileira

ainda está a idéia da existência de um interesse público merecedor de prevalência apriorística

sobre os interesses dos particulares.

5.1. O PRAZO DILATADO DA FAZENDA PÚBLICA

Uma das regras básicas do Direito Processual e que afeta indistintamente todos os

processos judiciais em que se discutem questões tributárias é aquela contida no art. 188 do

CPC, que dispõe que “computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para

recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público”.

Como é por demais notório, esta previsão tem lastro na idéia de que, na sede da

representação processual, a Fazenda Pública estaria em desvantagem em relação aos

particulares, em razão do maior número de processos em que figura em um dos pólos, da

menor disponibilidade de pessoal para representá-la nesses processos, de modo que esse

privilégio processual configuraria uma proteção ao interesse público de que o Estado possa se

defender (ou acusar) satisfatoriamente.

Assim caminha a jurisprudência histórica, da qual é exemplo o RE n° 181.138150, cuja

ementa registra o seguinte:

150 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, unânime, DJ de 12.05.1995.

O benefício do prazo recursal em dobro outorgado às pessoas estatais, por traduzir prerrogativa processual ditada pela necessidade objetiva de preservar o próprio interesse público, não ofende o postulado constitucional da igualdade entre as partes.

Do voto do relator, Min. Celso de Mello, colhem-se as seguintes passagens:

O legislador ordinário, considerando a complexidade e “o vulto dos negócios do Estado” (PONTES DE MIRANDA, “Comentários ao Código de Processo Civil”, tomo III/145, 2ª ed., 1974, Forense) e tendo presentes as dificuldades de ordem material e estrutural que oneram o desempenho da atividade processual da Fazenda Pública, instituiu um mecanismo de compensação, consagrado no preceito inscrito no art. 188 do CPC, destinado a viabilizar, tanto quanto possível, no plano das relações processuais, a situação de igualdade jurídica entre a entidade de direito público e os seus contendores. (...) O benéfico legal do prazo em dobro para recorrer traduz, na excepcionalidade de que se reveste, uma prerrogativa processual ditada, racionalmente, pela necessidade objetiva de preservar o próprio interesse público. Assim tem sido reconhecido tanto pela doutrina (...) quanto pela própria jurisprudência dos Tribunais, inclusive desta Suprema Corte (...), cujos pronunciamentos sempre se orientaram no sentido da plena validade jurídico-constitucional da norma que defere à Fazenda Pública a prerrogativa da dilatação do prazo recursal.

A indagação que se impõe é a seguinte: após mais de 30 (trinta) anos de desenvolvimento

histórico, tecnológico, jurídico, constitucional e social do Brasil, ainda é possível sustentar a

existência de motivo razoável para que haja esta discriminação processual? Ainda se pode

considerar que a Fazenda Pública esteja em situação de desvantagem processual em relação

ao cidadão, a ponto de merecer prazos duas ou quatro vezes maiores para se manifestar nos

autos?

A resposta a essas perguntas deve partir de uma análise profunda não apenas dos aspectos

teóricos que envolvem a questão, mas também dos reflexos práticos verificados nos mais de

30 (trinta) anos de vigência do mencionado privilégio, e sob a luz da conscientização

constitucional acerca da imprescindibilidade da celeridade processual, consagrada no art. 5°,

LXXVIII, da CF/88151, incluído pela Emenda Constitucional n° 45/2003.

Para se fazer uma ponderação minimamente transparente, há que se identificar os direitos

e princípios que estão em jogo na fixação desse privilégio.

151 “Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

Assim, pode-se afirmar que, dentre outras, as seguintes proposições sustentam a

prerrogativa da Administração Pública:

(a) o princípio da isonomia impõe que os desiguais sejam tratados de maneira diferente, a fim de que as suas posições restem equilibradas; (b) o Estado é parte em mais processos do que, em regra, são os particulares; (c) em juízo, o Estado representa interesse público dotado de supremacia; (c) em razão de “b” e de “c”, o Estado tem mais dificuldade em se fazer representar processualmente, uma vez que o pessoal responsável por esta tarefa não é compatível com o referido maior número de processos, representação esta que deve ser protegida com vistas a se preservar aquele interesse público; (d) logo, “a” impõe que o Estado seja tratado de modo diferente.

Contra a prerrogativa, pode-se apontar os argumentos abaixo:

(a) o princípio da isonomia impõe que os desiguais sejam tratados de maneira diferente, a fim de que as suas posições restem equilibradas; (b) embora o Estado possa ter mais processos que os particulares, há muitos particulares que possuem mais processos do que algumas Fazendas Públicas e que não gozam de qualquer benefício processual; (c) a assertiva de que o Estado é processualmente o defensor de um interesse público merecedor de prevalência é insustentável, uma vez que este interesse não existe prima facie, mas apenas será identificado justamente no curso do processo; (d) em que pese “b”, o Estado tem infinitos mais recursos do que o particular para se fazer representar processualmente, já que possui todo um aparato próprio para essa atividade, tem discricionariedade e capacidade para realizar a contratação de representantes, vantagens estas incomparáveis com as possibilidades da imensa maioria dos particulares; (e) logo, diante de “c” e “d”, as situações de desvantagem estrutural do Estado são compensadas por outras situações de vantagem, o que torna inviável o tratamento diferenciado.

Diante dos contra-argumentos apresentados à prerrogativa em questão, surgem algumas

indagações: é possível se afirmar que o prazo em dobro e em quádruplo traz um benefício

(legítimo) significativo para o Estado? Há argumentos que possibilitam sustentar que graças a

este prazo dilatado o Estado consegue se defender adequadamente ou perseguir seus

interesses de maneira mais eficiente?

A experiência impõe uma resposta negativa. O resultado prático deste prazo maior é a

perpetuação do comodismo, da ineficiência, da falta de motivação para se buscar soluções

estruturais e organizacionais que, de fato, confiram maior eficácia à atividade estatal. Afinal,

de acordo com as evidências práticas, para que um servidor público irá organizar seu

gabinete, estabelecer cronogramas operacionais e metas de desempenho, se possui um prazo 4

(quatro) vezes maior do que a parte contrária e que, assim como ele, por vezes integra

centenas ou milhares de processos?

Além disso, tem se verificado que prazo em dobro ou em quádruplo não proporciona,

necessariamente, uma qualidade técnica satisfatória na representação processual da Fazenda

Pública152.

Portanto, é de se questionar se o privilégio do prazo dilatado atende ao princípio da

eficiência153 (art. 37 da CF/88), que nós preferimos analisar não como um princípio

autônomo, mas como um elemento do exame inerente ao postulado da proporcionalidade: a

adequação.

Nas palavras de HUMBERTO ÁVILA, adequação significa o seguinte:

A adequação exige uma relação empírica entre o meio e o fim: o meio deve levar à realização do fim. Isso exige que o legislador utilize um meio cuja eficácia (e não o meio, ele próprio) possa contribuir para a promoção gradual do fim. (...) A administração e o legislador têm o dever de escolher um meio que simplesmente promova o fim. (...) Nesse sentido, pode-se afirmar que nas hipóteses em que o Poder Público está atuando para uma generalidade de casos - por exemplo, quando edita atos normativos - a medida será adequada se, abstrata e geralmente, servir de instrumento para a promoção do fim.154

Tendo em mente que a desvirtuação se tornou praxe na aplicação do privilégio aqui

debatido, é impossível se dizer que a medida se mantém adequada. A rigor, tal prerrogativa

em nada contribui para o alcance do objetivo por ela visado, qual seja, uma representação

processual mais satisfatória para o Estado.

152 Isto é comprovado também pela experiência comum, quando se constata que a defesa da Fazenda, por vezes, se vale de petições padrão, em que se erra o nome da parte contrária, o número do processo, ou até o objeto da lide. Embora não jurídicos, estes fatos servem para aferir a eficiência ou adequação do sistema hoje implantado, que é o ponto que se pretende abordar 153 Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que o princípio da eficiência “impõe ao agente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis à consecução dos fins que cabem ao Estado alcançar”, o que, a nosso ver, corresponde ao conteúdo da adequação no juízo de proporcionalidade, como veremos (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 787) 154 ÁVILA. Op. cit., nota 33, p. 116-119.

Não obstante, o benefício em discussão não supera outro elemento de exame da

proporcionalidade, a necessidade, assim descrita por ÁVILA:

O exame da necessidade envolve a verificação da existência de meios que sejam alternativos àquele inicialmente escolhido pelo Poder Legislativo ou Poder Executivo, e que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados.155

Existem incontáveis outras medidas que, em substituição do prazo estendido, têm um

maior potencial probabilístico de proporcionar uma melhor representação processual do

Estado: a reorganização estrutural dos órgãos administrativos, intensivos programas de

treinamento e de capacitação para o pessoal responsável pela representação processual, enfim,

medidas que mais do que garantir uma representação eficiente, contribuiriam para mudar a

mentalidade e o funcionamento do serviço público brasileiro, em prol da população e do

próprio Estado156.

Obviamente, tratam-se de medidas que não podem ser impostas pelo Poder Judiciário,

sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. Não é a imposição judicial delas

que aqui se pretende defender. O intuito é levantar o debate, deixando claro que há

alternativas ao sistema atual. Ainda mais que, além de inadequado à sua finalidade, em vez de

garanti-la, este sistema contribui para que ela não seja alcançada, pelos motivos já expostos

acima.

Finalmente, ainda no âmbito da proporcionalidade, nos parece que o prazo dilatado não

ultrapassa o exame da proporcionalidade em sentido estrito:

155 Ibid, p. 122. 156 Tais medidas não são jurídicas, mas a situação atual impõe que elas sejam levadas em consideração no presente estudo, até porque os dados oficiais extraídos dos sites da Secretaria da Receita Federal do Brasil (www.receita.fazenda.gov.br) e da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (www.pgfn.fazenda.gov.br) revelam que os ônus a elas inerentes provavelmente seriam custeados pelos seus próprios resultados. Por exemplo, de dezembro de 1997 até outubro de 2007, os débitos inscritos em Dívida Ativa (ajuizados e não ajuizados) somavam a quantia de R$ 472.099.606.130,96. Já o total arrecadado pela PGFN em recuperação da Dívida Ativa no mesmo período foi de R$ 15.968.858.199,84. De janeiro até outubro de 2007 foram recuperados, na Dívida Ativa, R$ 2.478.200.757,35. Embora o total recuperado de 12.1997 a 10.2007 represente apenas 3,3% da dívida “estocada”, os números não são tão desanimadores e encorajam as medidas em questão. Isso porque, tendo-se em mente que, atualmente, a PGFN conta com algo entre 1.500 e 2.000 procuradores, constata-se que em 2007, de janeiro até outubro, a média de valores recuperados por procurador foi de R$ 1.239.100,38, o que supera enormemente os custos gerados por cada profissional no mesmo período. Se também considerarmos os valores recuperados na “Defesa” da Fazenda Nacional em 2007 (R$ 7.958.996.207,81), esta média salta para R$ 5.218.598,48. Por lógica, o investimento na contratação de mais procuradores e no treinamento e capacitação dos já efetivos tem o potencial de aumentar significativamente os resultados da arrecadação, o que custearia os gastos da própria contratação, além de proporcionar uma representação judicial mais eficiente e ágil da Fazenda Nacional, o que, em última medida, beneficia os próprios contribuintes, ainda que pelo aumento da celeridade processual.

O exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. A pergunta que deve ser formulada é a seguinte: O grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: As vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada?157

O descompasso entre a promoção do fim e a restrição dos direitos da outra parte é

evidente. Primeiro, o fim sequer é promovido pelo prazo dilatado garantido ao Estado.

Segundo, o particular tem seu direito a um tratamento igual violado, na medida em que não

há, na prática, uma situação de permanente e obrigatória desvantagem da Administração

Pública, que muitas vezes possui inúmeras outras vantagens estruturais em relação ao

cidadão. Terceiro, o prazo dilatado, aliado à próxima situação que será analisada, compromete

drasticamente a celeridade processual e, conseqüentemente, o direito do administrado a uma

prestação jurisdicional rápida e eficaz.

Diante de tudo o que foi colocado acima, surge um efeito cascata que não é valido

perante o ordenamento constitucional brasileiro:

(a) o prazo diferido não promove o fim, pois não proporciona, na teoria e na prática, uma maior eficiência da Administração Pública na sua representação processual; (b) o prazo diferido não promove o fim, pois não proporciona, na teoria e na prática, uma maior eficiência da Administração Pública na sua representação processual, e trata desigualmente os iguais, pois as desvantagens do Estado são compensadas por outras vantagens, o que restringe o direito do particular a um tratamento equânime; (c) o prazo diferido não promove o fim, pois não proporciona, na teoria e na prática, uma maior eficiência da Administração Pública na sua representação processual, trata desigualmente os iguais, pois as desvantagens do Estado são compensadas por outras vantagens, e provoca transtornos processuais que comprometem a celeridade e a razoável duração do processo, restringindo o direito do particular a uma solução rápida da lide.

Saliente-se, ainda, que, conforme exposto no capítulo 3.3, o STF já se posicionou

contrariamente a validade de iniciativas legislativas que confiram um tratamento diferenciado

à Fazenda Pública no tocante aos prazos processuais, utilizando razões que são similares as

aqui colocadas e, atualmente, plenamente aplicáveis à matéria discutida no presente item.

157 ÁVILA. Op. cit., nota 33, p. 124.

5.2. A NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO PESSOAL DO REPRESENTANTE DO

ESTADO

O segundo exemplo dos privilégios concedidos à Administração Pública, ainda na seara

processual, é ditado pelo art. 36 da Lei Complementar nº 73/1993, que prevê que “as

intimações e notificações são feitas nas pessoas do Advogado da União ou do Procurador da

Fazenda Nacional que oficie nos respectivos autos”.

Em síntese, enquanto as intimações e notificações dos particulares são realizadas por

meio de publicação no Diário Oficial (art. 236 do CPC), o legislador criou uma regra especial

para os representantes da União Federal, que têm a prerrogativa de serem intimados

pessoalmente, ou seja, através de mandado de intimação cumprido por oficial de justiça ou

quando decidem ir até os cartórios fazer carga dos autos.

É fácil notar que, assim como no prazo dilatado, o escopo da regra especial é o de,

mediante um tratamento diferenciado, equilibrar a relação processual entre o Estado e os

particulares, que supostamente seria desequilibrada em favor destes últimos. Tudo sob o

argumento de que a Fazenda Pública, quando em juízo, representa o interesse público e, por

isso, deve ser protegida de eventuais desvantagens.

Tomando como exemplo o STJ, a rotina burocrática para o atendimento desse preceito

normativo é a seguinte:

(a) quando há intimação pessoal, publica-se a decisão ou o acórdão, gerando um mandado que vai ser cumprido pelo oficial de justiça, na mesma data da publicação; (b) cumprido o mandado, é este arquivado na Coordenadoria, sendo certificado nos autos a intimação, contando-se, a partir da data da ciência, certificada pelo oficial, o prazo para recurso; (c) se o prazo é comum, quando há, por exemplo, provimento parcial, é ele contado da mesma forma, porque o último dia para o termo ad quem fica por conta do mandado cumprido pelo oficial de justiça.

Todos os fatos que foram colocados quando examinamos a questão do prazo em dobro

são igualmente aplicáveis à obrigação de intimação pessoal, uma vez que esta benesse

também tem o escopo de possibilitar uma representação judicial adequada para um ente

estatal (no caso, a União Federal). E todos os mesmos desvios práticos são verificados, o que

coloca em dúvida aquilo que já foi questionado no tópico anterior: a proporcionalidade do

meio de privilégio em relação à finalidade por ele visada.

Aqui, como na discussão do prazo, a prerrogativa conferida à Administração em nada

contribui para uma melhor representação processual desta, mostrando-se absolutamente

inadequada do ponto de vista da proporcionalidade. Ao contrário, leva ao mesmo comodismo

já verificado e acaba por desestimular iniciativas que realmente contribuiriam para o

aperfeiçoamento da atividade estatal.

Ademais, é desnecessária, porque existem inúmeras medidas (repita-se, a reorganização

estrutural dos órgãos administrativos, intensivos programas de treinamento e de capacitação

para o pessoal responsável pela representação processual) que promoveriam o fim pretendido

de maneira muito mais eficiente do que o faz o privilégio.

Para encerrar o exame da proporcionalidade da medida, a necessidade de intimação

pessoal do representante fazendário, além de não garantir uma melhor representação judicial

do Estado, atrasa gravemente o curso do processo, especialmente nos casos em que se aguarda

o ato voluntário do representante estatal de ir ao Poder Judiciário retirar os autos nos quais

deve se manifestar. Isto, por óbvio, compromete o gozo do direito que o particular tem à

celeridade processual e o próprio princípio da isonomia, que em tese o privilégio tenderia a

proteger.

Com relação à questão da isonomia, chama a atenção o posicionamento histórico do STF

na análise do argumento de que, em Juízo, o representante da Fazenda Pública estaria

representando um interesse público digno de proteção suprema.

Anteriormente à estruturação da Advocacia Geral da União e da Procuradoria da Fazenda

Nacional, a representação judicial da União Federal era realizada pelo Ministério Público

(MP), nos termos da Lei nº 1.341, de 30.01.1951.

Com o advento do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869, de 11.01.1973), os integrantes

do Ministério Público passaram a gozar da prerrogativa de serem intimados pessoalmente nos

casos em que atuavam:

Art. 236. No Distrito Federal e nas Capitais dos Estados e dos Territórios, consideram-se feitas as intimações pela só publicação dos atos no órgão oficial. (...) §2º A intimação do Ministério público, em qualquer caso, será feita pessoalmente.

Com base nesse dispositivo, o Ministério Público entendia, à época, que deveria ser

intimado pessoalmente em todas as causas, seja naquelas em que atua como custos legis e

defende o interesse geral da sociedade158, seja naquelas nas quais atuava como representante

legal da parte União Federal.

Ao analisar o tema, o STF fez uma clara diferenciação entre a atuação do MP enquanto

defensor dos interesses da sociedade e enquanto defensor dos interesses de uma pessoa de

direito público, reservando a prerrogativa apenas e tão somente à primeira situação:

A regra do citado parágrafo assegura a intimação pessoal única e exclusivamente ao representante do Ministério Público, que atua apenas como Ministério Público, em nome de um interesse geral, e não quando defende a Fazenda Pública, situando-se como procurador judicial de uma entidade de direito público. No caso, o Procurador da República atuou em defesa dos interesses da União, que é parte, representando-a como advogado. Desse modo, a sua intimação não se faz pessoalmente, e sim mediante publicação no órgão oficial. A interpretação teleológica há de se sobrepor à meramente literal.159

A partir do momento em que se tem em mente que o representante judicial que defende

processualmente os interesses da União não resguarda o interesse público efetivamente

consagrado em grau superior no ordenamento constitucional brasileiro160, é inválido

conceder-lhe um privilégio processual que, além de colocá-lo em situação de verdadeira

vantagem perante o particular, restringe fortemente direitos individuais, ainda mais

considerando que tal prerrogativa em nada contribui para uma representação mais eficiente.

Não bastasse a determinação de intimação pessoal, a Procuradoria da Fazenda Nacional,

especificamente, recebeu mais um benefício do legislador por meio da Lei nº 11.033/04, que,

entre previsões concernentes à tributação do mercado financeiro e de capitais, possui o

seguinte dispositivo:

Art. 20. As intimações e notificações de que tratam os arts. 36 a 38 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, inclusive aquelas pertinentes a processos administrativos, quando dirigidas a Procuradores da Fazenda Nacional, dar-se-ão pessoalmente mediante a entrega dos autos com vista.

158 Este “interesse geral da sociedade” pelo qual deve zelar o Ministério Público, expressão vaga e imprecisa, é materializado no art. 1º da Lei nº 1.341/51 (Lei Orgânica do MP Federal): “Art. 1º. O Ministério Público da União tem por função zelar pela observância da Constituição Federal, das leis e atos emanados dos poderes públicos”. Esta definição do interesse público que merece ser permanentemente buscado vai ao encontro do que aqui defendemos, de que a solução que deve ser prestigiada não é aquela que atenda a um determinado interesse previamente dotado de supremacia, mas sim a que corresponda à melhor “observância da Constituição Federal”. 159 STF, 2ª Turma, RE nº 93.268, rel. Min. Djaci Falcão, unânime, DJ de 06.03.1981, grifou-se) 160 Como já exaustivamente visto e defendido, se há um interesse público digno de supremacia ele corresponde à necessidade de a solução de cada caso cumprir na melhor medida possível os anseios constitucionais, não se confundido previamente com nenhum dos interesses que pontualmente estejam em colisão.

Interessante notar que a validade constitucional deste dispositivo está em discussão na

Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pelos seguintes motivos, colhidos do

voto em que a Min. Eliana Calmon suscitou o incidente de inconstitucionalidade:

Após disciplinar a matéria anunciada no preâmbulo, introduziu o legislador, em prática conhecida como ‘cavalo de Tróia’, artigo de natureza eminentemente processual e que altera por completo o disposto no art. 40, § 2º, do CPC, o qual tem a redação seguinte: ‘Sendo comum às partes o prazo, só em conjunto ou mediante prévio ajuste por petição nos autos poderão os seus procuradores retirar os autos.’ Observa-se que o dispositivo legal agride o princípio da igualdade das partes, mesmo se consideradas aquelas que, por lei, são tidas como especiais, tais como Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia-Geral da União, ou no geral, a representação das Fazendas Públicas, incluídas na expressão as autarquias e as fundações públicas, federal, estadual e municipal. A quebra da identidade e da igualdade, em privilégio para a FAZENDA NACIONAL, apenas, agride a Carta Maior na medida em que só se torna possível a obediência ao devido processo legal quando se observa o princípio da igualdade das partes. E a igualdade, que se constitui como princípio do processo, não vai ao ponto de exigir igualdade formal, e sim, substancial. Daí o reconhecimento quanto a diferenças de certas e determinadas partes, como sói e acontecer com a Fazenda Pública. Entretanto, o que não pode ser admitido é haver diferença entre as Fazendas, em privilégio exclusivo para a FAZENDA NACIONAL, sem que esteja explicitada na Constituição a natureza de tal privilégio. A par da absurda e odiosa norma, sorrateiramente inserida em lei emprenhada com o dispositivo inteiramente estranho à sua finalidade, não se pode deixar de consignar que a observância da mesma, na prática, leva à esdrúxula situação de não ser possível à Justiça certificar nos autos o prazo, o qual fica inteiramente à vontade dos Procuradores da Fazenda, além de tumultuar inteiramente a rotina dos cartórios judiciais, no momento em que clama a sociedade brasileira por celeridade na tramitação dos processos.161

Como se vê, o principal indício de inconstitucionalidade verificado pela Min. Eliana

Calmon diz respeito a desigualdade gerada entre as próprias Fazendas Públicas, na medida em

que a Fazenda Nacional seria privilegiada com a intimação pessoal com vista dos autos,

enquanto o mesmo não aconteceria com as Fazendas Estaduais e Municipais.

Embora este raciocínio, a nosso ver, esteja incompleto, eis que, como já afirmado, a

ofensa ao princípio da isonomia ocorre mesmo na relação entre a Fazenda-parte e o particular-

parte, ele é aplicável também à questão da intimação pessoal, que só beneficia a Advocacia

Geral da União e a Procuradoria da Fazenda Nacional, nos termos do art. 36 da Lei

Complementar nº 73/93.

Dessa maneira, também não é sustentável a validade constitucional da necessidade de

intimação pessoal da Fazenda Pública e, mais ainda, da necessidade dessa intimação ocorrer

com vista dos autos, pois:

(a) o privilégio é inadequado à consecução da finalidade por ele visada – a intimação pessoal e/ou com vista dos autos não garante nem torna provável uma representação processual mais eficiente, ao contrário, contribui para a acomodação dos representantes que praticamente podem escolher o momento de ser cientificado de qualquer provimento judicial; (b) o privilégio é desnecessário – há meios que efetivamente podem levar ao atingimento do fim que ele busca, sem a restrição de direitos individuais dos particulares, como medidas internas e administrativas da própria Fazenda, as quais, ao final, acabam sendo desestimulada pelo comodismo de se ter uma situação privilegiada; (c) o privilégio é desproporcional em sentido estrito – não contribui para o cumprimento da sua finalidade e restringe desmedidamente os direitos individuais da parte contrária; (d) a Fazenda Pública, quando em juízo, não representa nenhum interesse que, previamente, mereça supremacia sobre os demais envolvidos, de modo que não há razão para o tratamento diferenciado, eis que substancialmente o Estado e o contribuinte, judicialmente, encontram-se em pé de igualdade (ofensa ao princípio da isonomia na relação Estado-parte e particular-parte); (e) o privilégio concedido especificamente à União Federal a coloca em posição injustificadamente vantajosa em relação às outras Fazendas Públicas (Estaduais e Municipais), com o que o princípio da isonomia resta afrontado também na relação entre os entes estatais.

5.3 A PRESUNÇÃO DE LIQUIDEZ E CERTEZA DA CERTIDÃO DE DÍVIDA

ATIVA

Outra questão que deve ser avaliada é a regra de que a Certidão de Dívida Ativa (CDA)

goza de presunção de liquidez e certeza. Tal presunção é a materialização, no Direito

Tributário, de uma outra, a de veracidade do ato administrativo162, decorrente do

161 STJ, 2ª Turma, EDcl no REsp nº 531.308, rel. Min. Eliana Calmon, unânime, DJ de 04.04.2005, grifou-se. 162 “Esse princípio, que alguns chamam de princípio da presunção de legalidade, abrange dois aspectos: de um lado, a presunção de verdade, que diz respeito à certeza dos fatos; de outro lado, a presunção da legalidade, pois, se a Administração Pública se submete à lei, presume-se, até prova em contrário, que todos os seus atos sejam verdadeiros e praticados com observância das normas legais pertinentes. Trata-se de presunção relativa (juris tantum) que, como tal, admite prova em contrário. O efeito de tal presunção é o de inverter o ônus da prova.

entendimento de que, por ser vinculada ao princípio da legalidade, os atos da Administração

Pública devem ser presumidos legais. Eis os dispositivos legais que a prevêem:

Lei n 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais) Art. 2º. Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. (...) § 3º - A inscrição, que se constitui no ato de controle administrativo da legalidade, será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito e suspenderá a prescrição, para todos os efeitos de direito, por 180 dias, ou até a distribuição da execução fiscal, se esta ocorrer antes de findo aquele prazo. (...) § 6º - A Certidão de Dívida Ativa conterá os mesmos elementos do Termo de Inscrição e será autenticada pela autoridade competente. (...) Art. 3º. A Dívida Ativa regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez Parágrafo Único - A presunção a que se refere este artigo é relativa e pode ser ilidida por prova inequívoca, a cargo do executado ou de terceiro, a quem aproveite. Lei nº 5.172/65 (Código Tributário Nacional - CTN) Art. 204. A dívida regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez e tem o efeito de prova pré-constituída. Parágrafo único. A presunção a que se refere este artigo é relativa e pode ser ilidida por prova inequívoca, a cargo do sujeito passivo ou do terceiro a que aproveite.

O fato de CDA, necessariamente decorrente de procedimento administrativo prévio em

que, teoricamente, são garantidos os direitos do contraditório e da ampla defesa ao

contribuinte, constituir um título executivo dotado de presunção relativa de liquidez e certeza

não é situação impensável. Até porque os títulos executivos comuns nas relações privadas

também possuem esta característica, eis que cabe ao executado demonstrar que o título não

possui um dos requisitos do art. 586 do CPC, a fim de argüir a sua nulidade (art. 618 do

CPC).

A questão começa a ficar mais complicada a partir do momento em que a Fazenda

Pública, notoriamente, busca levar esta presunção às últimas conseqüências, como se

Como conseqüência dessa presunção, as decisões administrativas são de execução imediata e têm a possibilidade de criar obrigações para o particular, independentemente de sua concordância e, em determinadas hipóteses, podem ser executadas pela própria Administração, mediante meios diretos ou indiretos de coação.” (DI PIETRO. Op. cit., nota 11, p. 72)

estivéssemos diante de uma presunção absoluta, e não de uma presunção relativa evidenciada

pelos parágrafos únicos dos art. 6º da Lei nº 6.830/80 e 204 do CTN.

O problema, aqui, é de aplicação e é agravado pelo fato de o Poder Judiciário, não raro,

dar guarida a essa pretensão Fazendária, lastreado na malsinada supremacia ora estudada.

Esta ou qualquer presunção pode receber uma interpretação forte ou fraca.

Pela interpretação fraca, a presunção não retira do Fisco a necessidade de demonstrar os

fundamentos que o levaram a constituir o crédito tributário. Apenas impõe ao contribuinte o

ônus de demonstrar que os fundamentos expostos pelo Fisco são ilegítimos. Na interpretação

forte, a presunção faz com que o simples documento “Certidão de Dívida Ativa” transfira para

o contribuinte todo o ônus probatório, escusando o Estado até mesmo de demonstrar os

fundamentos que ensejaram a inscrição em Dívida Ativa.

Esta interpretação forte é utilizada pelo STJ, por exemplo, ao analisar a responsabilidade

dos sócios e dirigentes pelos débitos tributários das pessoas jurídicas da qual participam ou

administram, respectivamente.

O CTN, em seu art. 134, VII, afirma expressamente que os sócios são responsáveis pelo

cumprimento da obrigação tributária da sociedade no caso de liquidação desta última. A

jurisprudência brasileira é unânime em interpretar esse dispositivo no sentido de que os sócios

são responsáveis tributários pelos débitos não adimplidos pela sociedade, apenas quando esta

tiver sido irregularmente dissolvida.

Ademais, o CTN também é expresso ao prever que “os diretores, gerentes ou

representantes de pessoas jurídicas de direito privado” (art. 135, III) e os sócios (art. 135, I c/c

134, VII) são “pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações

tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato

social ou estatuto” (grifou-se).

Como se vê, o CTN apenas admite a responsabilização dos sócios ou dirigentes pelos

créditos tributários decorrentes de atos ilícitos por eles praticados. Sem a ocorrência dessa

condição, ou seja, se o crédito tributário não foi originado por atos ilícitos praticados pelos

sócios ou dirigentes, é inviável a responsabilização destes.

Essa sistemática é justificada pelo fato de que o sujeito passivo original da relação

tributária, diga-se, o contribuinte, é a pessoa jurídica de direito privado, cuja personalidade

não se confunde com a dos seus sócios nem com a dos seus dirigentes. Nesse sentido, apenas

situações fáticas excepcionais são capazes de alterar a composição da relação obrigacional

tributária, de forma que, além do contribuinte, o seu sócio ou dirigente seja também

responsável pelo crédito tributário devido pela pessoa jurídica.

Acontece que a jurisprudência praticamente tornou desnecessário que o Estado comprove

a ocorrência da condição que leva à responsabilização dos sócios e diretores. A seguinte

ementa bem resume a posição do STJ:

TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ART. 135 DO CTN. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO-GERENTE. EXECUÇÃO FUNDADA EM CDA QUE INDICA O NOME DO SÓCIO. REDIRECIONAMENTO. DISTINÇÃO. 1. Iniciada a execução contra a pessoa jurídica e, posteriormente, redirecionada contra o sócio-gerente, que não constava da CDA, cabe ao Fisco demonstrar a presença de um dos requisitos do art. 135 do CTN. Se a Fazenda Pública, ao propor a ação, não visualizava qualquer fato capaz de estender a responsabilidade ao sócio-gerente e, posteriormente, pretende voltar-se também contra o seu patrimônio, deverá demonstrar infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos ou, ainda, dissolução irregular da sociedade. 2. Se a execução foi proposta contra a pessoa jurídica e contra o sócio-gerente, a este compete o ônus da prova, já que a CDA goza de presunção relativa de liquidez e certeza, nos termos do art. 204 do CTN c/c o art. 3º da Lei n.º 6.830/80. 3. Caso a execução tenha sido proposta somente contra a pessoa jurídica e havendo indicação do nome do sócio-gerente na CDA como co-responsável tributário, não se trata de típico redirecionamento. Neste caso, o ônus da prova compete igualmente ao sócio, tendo em vista a presunção relativa de liquidez e certeza que milita em favor da Certidão de Dívida Ativa. 4. Na hipótese, a execução foi proposta com base em CDA da qual constava o nome do sócio-gerente como co-responsável tributário, do que se conclui caber a ele o ônus de provar a ausência dos requisitos do art. 135 do CTN. 5. Embargos de divergência providos. (STJ, 1ª Seção, EREsp nº 702.232, rel. Min. Castro Meira, unânime, DJ de 26.09.2005, grifou-se)

Para sustentar esta posição, o relator utilizou os seguintes argumentos, repetidamente

veiculados nos acórdãos do tribunal sobre o tema163:

Iniciada a execução contra a pessoa jurídica e, posteriormente, redirecionada contra o sócio-gerente, que não constava da CDA, cabe ao Fisco demonstrar a presença de um dos requisitos do art. 135 do CTN. Se da CDA consta apenas a pessoa jurídica como responsável tributária, decorre que a Fazenda Pública, ao propor a ação, não visualizava qualquer fato capaz de estender a responsabilidade também ao sócio-gerente. Se, posteriormente, pretende voltar-se também contra o patrimônio do sócio, deverá demonstrar a infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos ou, ainda, dissolução irregular da sociedade. (...) Se a execução foi proposta contra a pessoa jurídica e contra o sócio-gerente, a questão resolve-se com a inteligência do art. 204 do CTN c/c o art. 3º da Lei n.º

163 A título exemplificativo e para ficarmos somente nos mais recentes, confiram-se os acórdãos proferidos no REsp nº 977.238,, 1ª Turma, rel. Min. José Delgado, DJ de 29.11.2007; REsp nº 948.129, 2ª Turma, rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 23.11.2007; REsp nº 973.900, 2ª Turma, rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 30.10.2007; REsp nº 947.063, 2ª Turma, rel. Min. Castro Meira, DJ de 25.09.2007.

6.830/80, segundo os quais a Certidão de Dívida Ativa goza de presunção relativa de liquidez e certeza (admite prova em contrário, a cargo do responsável), tendo o efeito de prova pré-constituída. Proposta a execução, simultaneamente, contra a pessoa jurídica e o sócio-gerente, haverá inversão do ônus da prova, cabendo a este último demonstrar que não se faz presente qualquer das hipóteses autorizativas do art. 135 do CTN. (...) Se da CDA consta o nome do sócio-gerente, mas a execução é proposta somente contra a pessoa jurídica, é de se reconhecer que o ônus da prova compete igualmente ao sócio, tendo em vista a presunção relativa de liquidez e certeza que milita em favor da Certidão de Dívida Ativa. Em conclusão: no caso em que a CDA já indica a figura do sócio-gerente como co-responsável tributário, tendo sido a ação proposta somente contra a pessoa jurídica ou também contra o sócio, há presunção relativa de liquidez e certeza do título que embasa a execução, cabendo o ônus da prova ao sócio. Na hipótese típica de redirecionamento, há presunção também relativa de que não estavam presentes, na propositura da ação, os requisitos necessários à constrição patrimonial do sócio. Nessa circunstância, inverte-se o ônus da prova, que passará à Fazenda Pública exeqüente. (grifou-se)

Em suma, a presunção de liquidez e certeza da CDA é elevada a tal patamar que este

documento meramente formal passa a ter o condão de constituir a responsabilidade tributária

de uma pessoa, independentemente de, verdadeiramente, o Fisco ter ou não apurado a

existência dos pressupostos fáticos para a configuração dessa responsabilidade.

Basta que, no momento da inscrição, o Procurador responsável pela inscrição em Dívida

Ativa inclua o nome dos sócios ou dirigentes. Pelo entendimento jurisprudencial obtido pela

Fazenda, não é sequer necessário que o Processo Administrativo Fiscal que eventualmente

tenha precedido a inscrição em Dívida Ativa apure efetivamente a ocorrência das hipóteses de

responsabilização previstas nos arts. 134, VII, e 135 do CTN.

Este simples ato da Procuradoria obriga o sócio ou dirigente responsabilizado a conseguir

realizar uma impensável prova negativa: demonstrar que não agiu com excesso de poderes,

infração à lei ou ao estatuto social. Pergunta-se: como alguém prova que não praticou um ato

ilícito? Esta prova, no Direito Tributário, é possível?

Veja-se: uma coisa é uma pessoa ser acusada de homicídio ocorrido no dia X na Cidade

Y e conseguir provar que nesse dia ela estava na Cidade Z. A prova, aqui, continua sendo

positiva: demonstra que o acusado estava em um determinado lugar, e não que ele não

praticou o crime. Esta segunda parte é uma dedução lógica da regra física de que uma pessoa

não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Outra coisa bem diferente é um dirigente ter de produzir uma prova colossal para

demonstrar que, em todos os seus atos como sócio ou gerente, não praticou nenhuma conduta

ilícita. É o absurdo instituído como norma do Direito.

O art. 37 da CF/88 dispõe, exemplificativamente, sobre os princípios que devem reger

todo e qualquer ato da Administração Pública, dentre os quais se inclui o Princípio da

Legalidade e, consequentemente, todos os seus sub-princípios. Esses sub-princípios

compreendem aqueles que contribuem, cada qual com seus próprios mecanismos, para a

consecução do princípio da legalidade.

Um desses sub-princípios é o princípio da verdade material164, que estabelece como fim a

ser buscado pela Administração Pública não a verdade aparente ou a verdade processual, mas

sim a verdade objetiva, a realidade dos fatos, pois somente a situação materialmente

verdadeira pode determinar como a Administração deverá agir, grosso modo, quais normas

legais irão incidir sobre aquela situação realmente verificada.

Partindo da premissa de que o princípio da legalidade estabelecido pelo art. 37 da CF/88

pressupõe o atendimento da verdade material, conclui-se que a Administração, no

desempenho das suas funções, deve perquirir exaustivamente o que de fato ocorreu, no caso,

deve investigar objetivamente se o sócio ou dirigente incorreu em alguma prática que permita

a sua responsabilização pelo crédito tributário.

Caso contrário, estar-se-á permitindo que o Estado presuma o ilícito e aplique as

conseqüências deste àqueles que, suposta e presumidamente, o praticaram.

No entanto, pelo entendimento defendido pela Fazenda e abraçado pela jurisprudência,

lastreado na premissa de que o Fisco necessariamente defende um interesse público dotado de

supremacia, a busca pela verdade material torna-se totalmente desnecessária. A rigor, esta

posição faz com que a Administração não tenha que investigar essa verdade, cuja revelação é

imposta ao sócio ou dirigente que já sofreu a responsabilização pela não demonstrada

ocorrência de uma das hipóteses previstas na legislação.

Note-se que, segundo a interpretação forte aqui abordada, ainda que o Fisco não tenha

realizado um mínimo de esforço para procurar saber o que realmente aconteceu - por

exemplo, reunindo provas no processo administrativo -, não basta que o sócio ou dirigente

comprove que o Estado não apurou a prática dos atos previstos nos arts. 134 e 135 do CTN.

164 Por todos, vide MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 663. Na jurisprudência, vide STJ, 1ª Turma, REsp nº 835.845, rel. Min. José Delgado, DJ de 16.10.2006; STJ, 5ª Turma, ROMS nº 17.732, rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 01.08.2005, todos pela obrigatoriedade de a Administração buscar a verdade material nos processos administrativos.

Isto torna evidente a deturpação da presunção de liquidez e certeza da CDA, pois ainda

que o particular prove que o Fisco não tomou nenhuma providência tendente a apurar o

implemento de uma das condições da responsabilização, será ele obrigado a provar que

nenhuma delas existiu.

O Estado Democrático de Direito é construído, dentre outras, sobre a premissa da

presunção da boa-fé, da inocência, da autenticidade (art. 5º, LVII, da CF/88), e não sobre a

presunção da má-fé, da culpa ou da falsidade. O que esta supervalorização da presunção de

liquidez e certeza da CDA faz é exatamente privilegiar a presunção de que o particular agiu

em desconformidade com a lei, seja no caso ora pontualmente examinado (responsabilidade

tributária de sócios e diretores), seja em outros casos, como na ocorrência de fatos

geradores165 166 etc.

Como já dito, a presunção de liquidez e certeza da CDA tem amparo no princípio da

legalidade, pois os atos da Administração, por estarem vinculados à lei, deveriam ser

presumidos legais. Desse modo, na opção pela interpretação forte ou pela fraca, estará em

discussão qual delas em melhor medida atende àquele princípio.

Destarte, o embate basicamente se dará entre a idéia de supremacia do interesse público -

os atos da administração pública devem ser presumidos legais porque ela necessariamente

165 Em mais um exemplo, trazemos um caso vivenciado recentemente em nossa vida profissional. Estava em discussão a existência ou não de vínculo empregatício entre autônomos e uma determinada empresa, para fins de apuração da contribuição previdenciária devida. No curso do processo de Embargos à Execução Fiscal, a empresa não possuía prova documental maciça, eis que decorridos quase 10 (dez) anos da extinção da relação com os autônomos. Por outro lado, produziu prova testemunhal, por meio de um dos então contratados, que deixou evidente a inexistência de subordinação, habitualidade e exclusividade, o que afastava a alegação fiscal de vínculo empregatício. O Fisco, por sua vez, não produziu prova alguma, limitando-se a se valer da NFLD em que apurara os pagamentos (jamais desmentidos) realizados aos autônomos durante algum tempo. Curioso notar que o próprio Fisco argumentou que caberia à empresa, até por prova testemunhal, demonstrar a inexistência do vínculo. Na sentença, o juiz admitiu que a única prova produzida nos autos apontava no sentido da inocorrência do fato gerador, mas esta prova não seria suficiente para afastar a (super) presunção de liquidez e certeza da CDA. O processo, de nº 2004.51.04.000323-4, encontra-se atualmente em trâmite no Tribunal Regional Federal da 2ª Região. 166 Temos que fazer a ressalva, aqui, quanto à questão da substituição tributária “para frente”, em que se presume a ocorrência dos fatos geradores supervenientes na cadeia produtiva, cuja validade já for reconhecida pelo STF (Plenário, ADI nº 1.851, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 22.11.2002). No entanto, esta presunção tem alicerce completamente diferente daqueles que sustentam a presunção de liquidez e certeza da CDA. Primeiro, porque é amparada por expressa regra constitucional (art. 150, §7º, da CF/88), conforme ensina ÁVILA, Humberto. Imposto sobre a Circulação de Mercadorias – ICMS. Sibstituição tributária. Base de cálculo. Diferença constante entre o preço constante da pauta ou o preço máximo ao consumidor sugerido pelo fabricante. Examente de Constitucionalidade, in RDDT:123:123-134. Segundo, porque esta regra, a nosso ver, é fundada no princípio da praticidade, o qual, na seara tributária, autoriza os entes públicos a estabelecerem sistemas de tributação que, sem se prender aos mecanismos legais superados pela complexidade, atendam satisfatoriamente a finalidade destes. No caso da substituição tributária “para frente”, este princípio visa a tornar a arrecadação tributária exeqüível. Tal princípio serve ao da igualdade (arts. 5º e 150, II, da CF/88), pois leis que são praticamente inexeqüíveis não podem ser aplicadas igualmente a todos. E, para tornar a norma exeqüível, cômoda e viável, a serviço da praticidade, a lei ou o regulamento pode se valer de presunções, desde que estas não ultrapassem os limites das leis que se busca aplicar.

representa o interesse público - e a necessidade de observância do sub-princípio da verdade

material167 - a legalidade, antes de gerar um direito de presunção em favor da administração,

acarreta o dever desta de perquirir a real situação fática existente, a fim de identificar qual a

norma legal a ser aplicada.

Em juízo de ponderação, a Constituição Federal de 1988 apenas permite a interpretação

fraca.

Primeiro, porque já estabelecido que não existe interesse, seja público ou privado, do

fisco ou do contribuinte, ao qual tenha sido atribuído um traço de supremacia pela

Constituição Federal. Os fundamentos de todos os interesses em jogo devem ser sopesados,

sem privilégio de nenhum, a fim de se concluir qual deles proporciona o maior atendimento e

a melhor composição das normas constitucionais que porventura estejam contrapostas.

Segundo, porque esta solução não restringe integralmente a presunção de liquidez e

certeza da CDA, que continuará valendo para possibilitar a execução da Dívida Ativa e

obrigará o contribuinte a demonstrar, por meio de sólida argumentação jurídica ou fática, a

ilegitimidade do crédito tributário constituído. Por esta presunção, exige-se que a defesa do

contribuinte tenha corpo, tenha força para desconstituir o título executivo e demonstre um

vício na sua constituição, nas suas premissas etc.

Terceiro, porque esta solução obriga o Estado a agir lealmente, a perquirir profundamente

a existência ou não dos pressupostos fáticos que levaram ao nascimento da obrigação

tributária, sem transferir para o particular uma tarefa que é sua por natureza: a constituição do

crédito tributário. Sim, porque a partir da inversão do ônus da prova descrita acima, com base

exclusivamente na presunção de liquidez e certeza da CDA, o Estado não teria sequer de

fundamentar a constituição do crédito tributário. Bastaria constituí-lo, por meio de um

documento burocrático desprovido de motivação (CDA). Este simples ato imporia ao

contribuinte não o ônus de contrapor-se justificadamente aos fundamentos utilizados pela

Administração Pública, mas sim de descobrir esses fundamentos ou fazer prova negativa e

demonstrar que esses fundamentos não existem.

Frise-se que as situações são bem diferentes: é válido que o contribuinte tenha a

necessidade de mostrar que os fundamentos utilizados pelo Fisco para a constituição do

crédito tributário são ilegítimos do ponto de vista jurídico; mas é inválido estender a

167 No debate acerca da responsabilidade tributária em análise, o sub-princípio da verdade material é ainda escoltado pela presunção de inocência decorrente do próprio Estado Democrático de Direito e analogicamente aplicável ao caso.

presunção de liquidez e certeza a ponto de exigir que o contribuinte descubra e demonstre que

os fundamentos utilizados pelo Fisco são inexistentes.

5.4. A PRESUNÇÃO DE FRAUDE

Outro exemplo refere-se a mais uma presunção que milita a favor da Fazenda Pública,

consubstanciada no art. 185 do CTN, na redação anterior à Lei Complementar nº 118/05:

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa, em fase de execução. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.

Esta redação original teve sua interpretação alterada ao longo do tempo.

Inicialmente, os tribunais interpretaram de maneira literal o enunciado normativo,

atribuindo um caráter absoluto à presunção e exigindo apenas a propositura da execução

fiscal, sem prova de que o devedor tinha conhecimento do débito, para declarar configurada a

fraude. A única possibilidade de a presunção ser ilidida correspondia à demonstração de não

insolvência do devedor:

PROCESSUAL CIVIL. FRAUDE À EXECUÇÃO. INEXISTÊNCIA DA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR. PRESSUPOSTOS NÃO CONFIGURADOS. 1. Em relação à execução fiscal, a situação fraudulenta, capaz de acarretar a ineficácia da alienação em relação ao crédito exeqüendo, é aquela descrita no art. 185 do CTN. Assim, para que o ato de alienação ou oneração venha a ser considerado fraudulento, faz-se necessária a configuração da litispendência, mediante o simples ajuizamento da ação executiva fiscal, e a possibilidade da demanda resultar em insolvência do devedor. 2. Na hipótese em tela, comprovou-se que o devedor é proprietário de imóvel avaliado em valor muito superior ao débito tributário, o que afasta a alegação do seu estado de insolvência. 3. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ, 1ª Turma, REsp nº 464.335, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 16.11.2004)

Eis a fundamentação do voto-condutor:

Assim, para que o ato de alienação ou oneração venha a ser considerado fraudulento, faz-se necessária a configuração da litispendência, mediante o simples ajuizamento da ação executiva fiscal. Impõe-se também que o ato de alienação ou oneração conduza o agente fraudulento ao estado de insolvência, isto é, que não possua outros bens suficientes para pagamento da dívida executada. Caso contrário, não restará configurada fraude à execução, mas sim fraude contra credores. Conforme registramos em sede doutrinária (Processo de Execução – Parte Geral, 3ª ed. RT, 2004, p.225/8), não se pode confundir a fraude à execução, prevista no art. 593, II do CPC, com a fraude consistente na alienação de bem penhorado: ‘Presentes os requisitos objetivos da litispendência e da insolvência, a alienação ou oneração de bens penhoráveis é ineficaz perante a execução, nos termos do inciso II do art. 593, sendo despiciendo qualquer exame sobre as condições subjetivas de culpa ou má-fé. Não se exige, tampouco, prévia constrição judicial do bem por penhora, arresto, seqüestro ou qualquer medida semelhante, e nem, portanto, qualquer registro. Convém evitar a confusão – freqüente na doutrina e na jurisprudência – entre (a) a fraude à execução prevista no inciso II do art. 593, cuja configuração supõe litispendência e insolvência, e (b) a alienação de bem penhorado (ou arrestado, ou seqüestrado), que é ineficaz perante a execução independentemente de ser o devedor insolvente ou não. Da distinção entre as duas resultam importantes conseqüências: se o devedor for solvente, a alienação de seus bens é válida e eficaz a não ser que (a) se trate de bem já penhorado ou, por qualquer outra forma, submetido a constrição judicial, e (b) que o terceiro adquirente tenha ciência – pelo registro ou por outro meio – da existência daquela constrição; mas, se o devedor for insolvente , a alienação será ineficaz em face da execução, independentemente de constrição judicial do bem ou da cientificação formal da litispendência e da insolvência ao terceiro adquirente. Emerge daí a providência elementar e indispensável, quando da celebração de negócios com bens de maior valor, de atender ao “dever social (...) de se verificar a situação patrimonial daquele que irá transferir ou gravar um bem, examinando, se for o caso de bem imóvel, o seu histórico cartorário, procedendo, mais ainda, em relação ao atual e anteriores proprietários, a um crivo generalizado junto ao foro cível, através da coleta de negativas forenses”. (...) Se o devedor for solvente , isto é, se, apesar da alienação ou oneração de bens, mantiver força patrimonial para suportar a dívida executada, fraude à execução não houve no negócio. Todavia, conforme acima dito, se o bem onerado ou alienado tiver sido objeto de anterior constrição judicial, a ineficácia perante a execução se configurará, não propriamente por ser fraude à execução (CPC, art. 593, II), mas por representar atentado à função jurisdicional.’ (grifou-se)

No entanto, a jurisprudência evoluiu e tratou de dar contornos mais rígidos às condições

para que esta presunção ficasse caracterizada, como exemplifica uma das mais recentes

decisões sobre o tema:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. FRAUDE. PRIMITIVA REDAÇÃO DO ARTIGO 185 DO CTN. PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS. OCORRÊNCIA. 1. Para a ocorrência da presunção de fraude à execução do art. 185 do CTN, na redação anterior à conferida pela LC 118/2005, exigia-se o preenchimento dos seguintes pressupostos: (a) a existência de um crédito fiscal devidamente inscrito em

dívida ativa e em fase de execução e b) a insolvência do devedor, consistente na falta de outros bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida. 2. A evolução jurisprudencial no STJ levou a Corte a firmar posicionamento no sentido de que, além da propositura da ação, era necessária a ocorrência de citação para caracterização da fraude. 3. No caso dos autos, a devedora principal, então proprietária do imóvel penhorado, foi citada no executivo fiscal e, posteriormente, procedeu à alienação do imóvel, sem reservar patrimônio suficiente para quitação da dívida. Restam presentes, portanto, os pressupostos supramencionados para a caracterização da fraude à execução fiscal, de acordo com o art. 185 do CTN, na sua primitiva redação. 4. Recurso especial a que se dá provimento. (STJ, 1ª Turma, REsp nº 706.137, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 16.10.2007, grifou-se)

A necessidade da citação do contribuinte, com fulcro no entendimento de que somente

então ele teria, seguramente, conhecimento o débito em execução, foi sufragada por inúmeros

outros acórdãos do STJ: 1ª Turma, AgRg no Resp nº 924.327, rel. Min. José Delgado, DJ

26.06.2007; 1ª Turma, REsp nº 388.121, rel. Min. Luiz Fux, DJ de 07.10.2002, dentre outros.

Além disso, os Tribunais vêm relativizando cada vez mais a presunção em questão:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL. CITAÇÃO. ALIENAÇÃO DO BEM. AUSÊNCIA DE REGISTRO DO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. 1. Para que reste configurada a fraude à execução é necessário que a ação já tenha sido aforada e haja citação válida; que o adquirente saiba da existência da ação – ou por já constar no cartório imobiliário algum registro (presunção juris et de jure contra o adquirente) ou porque o exeqüente, por outros meios, provou que dela o adquirente já tinha ciência; e que a alienação ou a oneração dos bens seja capaz de reduzir o devedor à insolvência. A presunção que milita em favor do exeqüente é juris tantum, podendo ser afastada por prova em sentido contrário. 2. Não basta a citação válida do devedor para se caracterizar a fraude à execução. 3. Recurso especial provido. (STJ, 2ª Turma, REsp nº 963.445, rel. Min. Castro Meira, DJ de 01.10.2007)

Para elucidar os fundamentos desta posição jurisprudencial, mister se faz a transcrição de

trechos do voto-condutor do acórdão:

Dessa forma, para se caracterizar a fraude à execução, é insuficiente a citação válida do devedor, sendo necessário o registro do gravame no Cartório de Registro de Imóveis-CRI ou no Departamento de Trânsito-Detran, dependendo do caso. Assim, seria necessário que o Fisco provasse que o adquirente tinha ciência da execução fiscal contra o alienante para que se configurasse a fraude. Como se constata do voto condutor transcrito, o Tribunal a quo concluiu ter havido indícios da prática da fraude exclusivamente em decorrência ter ocorrido a compra e venda após a citação do devedor na execução. Assim,

mostra-se evidenciada a ausência das circunstâncias caracterizadoras da fraude à execução. Confira-se o seguinte excerto do voto para confrontá-la com a orientação jurisprudencial: ‘A análise dos autos revela que há fortes indícios de que tenha havido fraude à execução. Com efeito, quando houve a alienação do bem, em 01/12/2000, o devedor já havia sido citado no processo executivo (18/05/1999)’ – fl. 295. Em sentido contrário, são precedentes desta Corte: (...) ‘4. Doutrina e jurisprudência têm exigido, nos casos em que inexistente o registro da citação, ou da penhora, que ao credor cabe o ônus de provar que o terceiro tinha ciência da demanda em curso ou da constrição. Em sede doutrinária, a propósito, tive oportunidade de afirmar: ‘Inexistindo registro da citação (hipóteses dos incs. I e II do art. 593, CPC) ou do gravame judicial, ao credor cabe o ônus de provar a ciência, pelo terceiro, adquirente ou beneficiário, da existência da demanda ou do gravame’ (Código de Processo Civil Anotado, Saraiva, 7ª ed., art. 593, pág. 459). Na mesma direção, trecho de estudo que dei à publicação(RT 609/7, RF 293/3), verbis: ‘O exame da matéria, no entanto, não deve ser focalizado sob a ótica da necessidade ou não do registro, mas sim do ônus da prova. (...) Colocada tal premissa, chega-se à conclusão de que a matéria deve ser apreciada sob o ângulo do ônus da prova. Assim, se o credor não promove o registro da citação, a fraude de execução somente estará caracterizada se ele, credor, vier a demonstrar a ciência, pelo terceiro, adquirente, ou beneficiário da oneração, da existência da demanda em curso. De igual forma, a ineficácia da alienação ou oneração somente será reconhecida se o credor demonstrar que o terceiro tinha ciência da existência dos atos constritivos da penhora, do arresto ou do seqüestro.’ Dessa forma, a citação do alienante é insuficiente para ficar caracterizada a fraude à execução fiscal, sendo necessária a anotação no Cartório de Imóveis do ajuizamento da ação ou a demonstração de conluio no ato alienatório.

Não obstante, a Lei Complementar nº 118/05 deu nova redação ao art. 185 do CTN e

excluiu a expressão “em fase de execução” da parte final do caput.

Pela nova previsão, não há necessidade sequer de a Execução Fiscal ser ajuizada para que

se instaure a presunção de fraude. Basta a simples inscrição de um débito em Dívida Ativa,

para que o contribuinte, ainda que desconheça essa dívida, fique impedido de alienar ou

onerar seu patrimônio, sob pena de caracterizar fraude, com a ressalva contida no parágrafo

único do dispositivo, que foi mantido.

Aqui, a relativização da presunção de fraude implementada pela jurisprudência nos

parece adequada e merece ser prestigiada mesmo na nova redação do texto legal, pois que,

assim como sustentamos no estudo da presunção de liquidez e certeza da CDA, o Estado

Democrático de Direito pressupõe a presunção de boa-fé, de inocência, e não a presunção de

que o sujeito agiu com propósitos escusos.

Por isso, há que se ter no mínimo certeza de que o devedor tinha conhecimento da

existência da dívida. Somente assim é possível começar a discutir se é válida ou não uma

presunção de que, tendo este conhecimento, a alienação dos seus bens pretendeu evitar o

cumprimento da sua obrigação para com o Fisco.

Ademais, a relativização permite a solução de situações não incomuns, que, se não

contempladas, gerariam situações de absoluta injustiça.

Use-se o exemplo de uma pessoa que tem como bem próprio apenas um automóvel e,

atravessando imensas dificuldades financeiras, deixa de recolher o IPVA. Ato contínuo, após

anos de inadimplência, o Estado inscreve o débito em dívida ativa, ou ajuíza a competente

Execução Fiscal. Neste mesmo momento, o devedor passa por alguma situação particular

plausível de penúria (desemprego, doença etc.) e se vê obrigado a alienar aquele veículo para

garantir a subsistência de si próprio e da sua família. Neste caso, é possível se levar a ferro e

fogo a presunção de fraude? É possível se dizer que o devedor teve o intuito de fugir das suas

obrigações por meio de fraude?

Para nós, a observância do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana168 impõe

respostas negativas às duas perguntas acima, pois que, mais uma vez partindo da premissa de

que não há um interesse público merecedor de supremacia a ser protegido pela presunção de

fraude, esta não pode receber prevalência quando em colisão com o direito à vida.

168 “O essencial é que a dignidade humana, apesar de não possuir eficácia direta sobre a matéria tributária, tem uma eficácia indireta sobre as relações obrigacionais tributárias: como as relações obrigacionais tributárias possuem efeitos patrimoniais decorrentes da apropriação de meios de pagamento e efeitos comportamentais juntos ou separados dos encargos tributários, elas atingem a esfera privada e mantêm relação necessária com a liberdade e a propriedade, cuja disponibilidade é afetada. O direito à vida não é violado pelas leis tributárias, desde que se mantenha disponível um mínimo em liberdade e em propriedade. (...) Na perspectiva da espécie normativa que a exterioriza, a dignidade humana possui dimensão normativa preponderante ou sentido normativo direto de sobreprincípio, na medida em que estabelece o dever de buscar um ideal de importância e de valoração para o homem cidadão em qualquer forma de atuação do Poder Público. (...) Na perspectiva da sua dimensão enquanto limitação ao poder de tributar, a dignidade humana qualifica-se preponderantemente do seguinte modo: quanto ao nível em que se situa, na sua dimensão de princípio, caracteriza-se como uma limitação de primeiro grau, porquanto se encontra no âmbito das normas que serão objeto de aplicação, devendo enfatizar-se, porém, que ela atua sobre outras normas, podendo ser qualificada como sobreprincípio; quanto ao objeto, qualifica-se, na sua dimensão de princípio, como uma limitação positiva, porquanto impõe a adoção, pelo Poder Público, das condutas necessárias para a garantia ou manutenção dos ideais de dignidade do ser humano enquanto valor e não como objeto; quanto à forma, revela-se como uma limitação expressa e material, na medida em que, sobre ser previsto no art. 1º da Constituição Federal como princípio fundamental, impõe ao Poder Público a adoção de comportamentos necessários à preservação ou busca dos ideais de dignidade e de valorização do ser humano.” (ÁVILA. Op. cit., nota 74, p. 326-328)

Dessa maneira, em um ambiente constitucional voltado à valorização do ser-humano, à

garantia da liberdade e do desenvolvimento do cidadão, não encontra espaço qualquer tipo de

presunção absoluta que imponha ao particular a penalização por uma conduta que pode ter

ocorrido por inúmeros outros motivos que não aqueles que a pena visou coibir.

5.5. A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EX NUNC NO

DIREITO TRIBUTÁRIO

Como é cediço, em ordenamentos jurídicos que possuem uma Constituição que se coloca

como norma fundamental do sistema, todos os demais enunciados e atos normativos devem

conformidade àquele diploma maior, de modo a se conferir unidade e coerência ao sistema

jurídico como um todo169.

Desse dogma decorre o princípio da supremacia da constituição, que, em apertada síntese,

impõe ao aplicador a nulificação da norma jurídica contrária à Carta Magna. A norma

inconstitucional é considerada natimorta, pois que desde o seu nascimento não encontra

fundamento no ordenamento constitucional vigente. Portanto, como é este ordenamento que

deve prevalecer, aquela norma é extirpada juntamente com todos os seus efeitos, sendo nula

desde a sua concepção e revelando-se incapaz de gerar qualquer resultado no mundo jurídico.

Este princípio - assim como aquele que é objeto principal deste trabalho - chegou a ser

interpretado de maneira absoluta ao longo do tempo e impôs, automaticamente, a nulidade de

toda e qualquer norma contrária à Constituição, sem qualquer exceção170.

Porém, a evolução do estudo jurídico revelou que nem sempre o ordenamento

constitucional será preservado da melhor forma pela simples nulidade da norma considerada

inconstitucional. Há casos, ainda que exceções, em que certas peculiaridades levam à

conclusão de que a nulidade, embora prestigie o princípio da supremacia da constituição,

acarreta uma restrição desproporcional de outros princípios constitucionais que porventura

estejam em jogo.

Surge a idéia, então, de que o princípio da supremacia da constituição, enquanto norma-

princípio171, é passível de ser ponderado com outros valores socialmente relevantes e

princípios constitucionalmente consagrados, sob um exame de proporcionalidade. Afinal, se é

169 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 215-232. 170 CANOTILHO, José Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2004. 171 Cujo conteúdo já foi detalhado na medida do possível dentro deste trabalho (sub-capítulo 2.2).

certo que a produção de efeitos de uma norma inconstitucional é gravosa ao ordenamento

constitucional, também é certo que a restrição exagerada de qualquer princípio constitucional

em homenagem a um outro é prejudicial ao mesmo ordenamento. Neste caso, há que se

perquirir, utilizando-se por exemplo os instrumentos fornecidos pelos postulados da

razoabilidade e da proporcionalidade, qual solução representará o maior prestígio da

Constituição Federal, ou, para falar de outro modo, o seu menor comprometimento.

Quando, após a devida ponderação, se optar pela não nulificação da norma tida por

inconstitucional, esta solução é operacionalizada, por exemplo, pela modulação dos efeitos da

declaração de inconstitucionalidade, cuja possibilidade, no Brasil, foi positivada pelo art. 27

da Lei n° 9.868/99172, que assim prescreve:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Este novo cenário jurídico acarreta uma série de questões, a saber: a modulação de

efeitos é aplicável apenas às declarações de inconstitucionalidade? Ou pode ser aplicada,

também, a decisões que, ao final, considerem constitucional uma determinada situação? Deve

abranger apenas as decisões que se refiram a leis e atos normativos, ou pode alcançar

interpretações e suas respectivas práticas?

Não nos cabe, no âmbito deste trabalho, analisar minuciosamente o instituto da

modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade. O

que implementaremos é uma breve análise dos impactos que esta modulação pode ter nas

questões que envolvem o Direito Tributário, seja a favor do fisco, seja em favor do

contribuinte.

172 Entendemos, com efeito, que esta positivação é prescindível, pois a possibilidade de modulação já é extraível da própria Constituição Federal, na medida em que fundada nos princípios constitucionais que se contraponham, pontualmente, à nulidade retroativa da norma inconstitucional. Na verdade, é de se indagar acerca da constitucionalidade da exigência de quorum qualificado para aplicação da modulação, eis que, neste raciocínio, exige-se maioria de 2/3 (dois terços) para se aplicar a própria Constituição. Não obstante esta crítica acadêmica, entendemos ser prudente, no Brasil, a fixação do referido quorum, sobretudo em razão da novidade que essa modulação representa no ordenamento nacional e com o objetivo de coibir os excessos aplicativos inerentes às novidades.

5.5.1 EM DEFESA DO ERÁRIO

Não obstante toda a demonstração levada a cabo neste trabalho, ainda há quem insista em

defender a tese de que o interesse soberano no Direito Tributário, o interesse público desse

ramo do Direito dotado de supremacia frente aos demais interesses menores, seria o da

arrecadação, o que pode ser exemplificado pela seguinte passagem, colhida da manifestação

de uma Autoridade Administrativa em processo judicial:

ao interesse privado do contribuinte de fazer valer sua pretensão de compensar supostos créditos, opõe-se o interesse público, de toda a coletividade, interesse que o Fisco deve resguardar no sentido de não ver recursos públicos apropriados indevidamente pela voracidade anti-social de contribuintes maliciosos (manifestação do Ilmo. Delegado da Receita Federal em São Paulo, no MS nº 2007.61.00.007017-4, grifou-se)

Com base neste argumento, os Fiscos de todos os entes estatais passaram a defender

ferrenhamente que a eventual declaração de ilegitimidade de uma exação tributária não pode

levar, automaticamente, à imposição de que os valores recolhidos a esse título sejam

devolvidos aos particulares.

Assim, as Administrações Públicas argumentam que a devolução das quantias

arrecadadas imporia-lhes um custo excessivo, não previsto em orçamento, e colocaria em

risco a prestação dos serviços públicos e das atividades voltadas a toda a sociedade, com o

que ficaria caracterizada a existência de “razões de excepcional interesse social” que

validariam a não repetição do indébito.

O argumento, a princípio, pode seduzir. Em um país como o Brasil, ainda carente de um

desenvolvimento econômico satisfatório e aonde a maioria da população necessita da

assistência do Estado, de alguma maneira, para ver garantidos os seus direitos mais básicos, é

de considerável peso a importância da atuação estatal.

Essa constatação fática poderia levar à conclusão de que, em primeiro lugar, deve-se

garantir que o Estado tenha ao seu dispor os recursos necessários para consecução das suas

atividades.

Dessa forma, tornar-se-ia desaconselhável que recursos arrecadados e já empregados em

atividades nobres, como o saneamento básico, a educação ou a saúde, fossem devolvidos aos

particulares que proveram o Estado com essas quantias, em razão da ilegitimidade das

exações que geraram essa arrecadação. Isso faria sentido porque mais importante do que o

direito de propriedade do particular, obviamente desrespeitado por uma contribuição

compulsória ilegítima e, por isso, arbitrária e contrária ao Estado Democrático de Direito,

seria a garantia de que o Estado funcionasse, em prol de toda a coletividade.

Todavia, a questão não gira em torno simplesmente do direito de propriedade específico

do contribuinte que recolheu um tributo indevido. Ela é muito mais profunda e atinge os

alicerces da sociedade.

Em verdade, ao dizer que não se irá devolver uma exação ilegítima, a mensagem

transmitida a todos os indivíduos é a de que o Estado não possui limites, nem mesmo

constitucionais, para impor aos cidadãos a sua vontade, pois pode até mesmo exigir que eles

contribuam independentemente de qualquer amarra. O Estado estaria completamente livre

para obrigar os seus cidadãos a pagar tributos arbitrariamente, sem o necessário amparo nas

normas constitucionais e legais vigentes e sem a observância dos valores e princípios

constitucionais e dos Direitos Fundamentais.

Em síntese, a ponderação que deve ser feita nesse caso é a seguinte: o que em melhor

medida contribui para a pacificação social, para o convívio harmônico entre as pessoas

(públicas ou privadas), para o equilíbrio dos agentes sociais (públicos ou privados), em suma,

o que atende da melhor maneira os anseios constitucionais?

(a) permitir que o Estado exija tributos repulsivos ao ordenamento jurídico, mas cujos recursos seriam empregados em ações estatais nobres; ou (b) obrigar o Estado a devolver os recursos indevidamente arrecadados, demonstrando que ele é o maior preocupado em respeitar as normas constitucionais, dentre elas os Direitos Fundamentais dos cidadãos.

Uma resposta que aponte para a opção (a) é autofágica. É questão de tempo o total

desmantelamento de um Estado que, sob o palio de custear atividades que beneficiarão a

sociedade e promoverão o atendimento dos Direitos Fundamentais, exerça práticas que, por si

só, desrespeitem aqueles mesmos direitos que deverão ser posterior e supostamente

garantidos. Os fins não justificam os meios e isto é um fato da vida.

A rigor, a opção (b) atinge diretamente o objetivo maior do Direito como um todo, pois

que a submissão do Estado às normas impostas aos seus próprios cidadãos garante a

pacificação social de maneira incisiva: caso ele não se submeta às normas impostas aos

indivíduos, a revolta se mostra provável, pois a história humana demonstra que a sociedade

tolera por pouco tempo a discriminação de regulação entre as condutas dos governados e as

dos Estados-Governantes ou daqueles que detém momentaneamente o poder, sobretudo

quando em jogo a questão tributária173.

Ademais, a opção (b) gera em toda a sociedade e até mesmo alhures uma sensação de

confiança, fazendo com que os indivíduos não se submetam às normas jurídicas apenas

porque a isto são obrigados, mas porque a isto se sentem obrigados, uma vez que o próprio

Estado soberano também a elas se submete.

Possibilitar que o Estado desrespeite os seus próprios fundamentos compromete a sua

base, que é a vontade coletiva, consciente ou inconsciente, de os cidadãos permanecerem

organizados sob o império daquele Estado e de acordo com aquelas normas.

É de se ressaltar que a conclusão a que se chegou na Intervenção Federal n° 139,

estudada anteriormente174, não pode ser universalizada. Ou seja, os fundamentos que levaram

o Tribunal a indeferir o pedido de intervenção no caso de inadimplência dos precatórios

alimentícios não podem ser transplantados para outras situações e, assim, validar outras

inadimplências estatais.

Esta impossibilidade de equiparação decorre das características inerentes a cada

discussão: na Intervenção Federal, o seu próprio objeto “representa excepcional e temporária

relativização do princípio básico da autonomia dos Estados”175. Em outras palavras, a própria

intervenção perseguida não é a regra e deve ser aplicada apenas em situações peculiares que

excepcionalmente revelem a sua necessidade. A intervenção, assim, é medida extrema cuja

173 Exemplos históricos desta afirmação são trazidos por MARTINS, Ives Gandra da Silva. Uma Teoria do Tributo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 248-251: “É evidente que a revolução dos barões contra João Sem Terra por excesso de tributação, em 1214, que deu origem à Magna Carta Baronorum (1215) e definiu o princípio da anualidade - permitindo ao pagador de tributos saber, com base no ‘orçamento oficial’ do ano anterior, o que seria necessário para a coroa e o que ficaria com o povo no ano seguinte - não pode ser desconhecida, até porque dá origem à Constituição inglesa, completada pelo ‘Bill of Rights’ de 1688, quando a monarquia parlamentar se instala, no governo de Guilherme de Orange. Nem poderiam desconhecer a origem da revolução americana, que resultou na independência do país, em 1776, à luz do aumento tributário provocado pelas Leis Towsend ou, ainda, a origem da Revolução Francesa, movimento que teve por estopim o excesso de tributos e os desperdícios de Luís XVI. Embora a Bastilha (onde se encontravam apenas 7 prisioneiros) tenha se tornado o símbolo da luta contra o arbítrio, de rigor, a revolução encontra sua origem na reação popular, insuflada pelos iluministas e deflagrada por líderes políticos, que terminaram sendo suas vítimas. A própria Inconfidência Mineira, entre nós, tem origem tributária (a derrama). (...) E é interessante que, de forma dramática, mas também pouco estudada, o excesso de tributação - sempre acompanhado pela corrupção - teve papel relevante e pouco destacado pelos produtores de reflexão histórica na república romana, na queda do império romano do Ocidente, e na mudança da XVIII para XIX dinastia egípcia. A maior parte dos historiadores atribui estes momentos de crise e de alterações sensíveis da história, ao crescimento da corrupção e à opressão do povo, sem perceber que tais fatores quase sempre estão vinculados ao excesso de carga tributária.” 174 Ver item 3.3. 175 Trecho do voto do Min. Gilmar Mendes, redator para o acórdão.

aplicação exige a ponderação entre uma série de normas constitucionais, como elucidado pelo

Min. Gilmar Mendes em seu voto:

A regra, entre nós, é a não-intervenção, tal como se extrai com facilidade do disposto no caput do art. 34 da Constituição, quando diz que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (...)”. Com maior rigor, pode-se afirmar que o princípio da não-intervenção representa sub-princípio concretizador do princípio da autonomia, e este, por sua vez, constitui sub-princípio concretizador do princípio federativo. O princípio federativo, cabe lembrar, constitui não apenas princípio estruturante da organização política e territorial do Estado brasileiro, mas também cláusula pétrea da Carta de 1988.

Este caráter excepcional, aliado a outras considerações sobre o caso concreto debatido

naquele processo, especialmente a boa-fé e empenho do Estado em quitar os precatórios

alimentícios cujo inadimplemento acarretaria a intervenção, foi a razão fundamental para que,

no juízo de proporcionalidade que se seguiu, o STF considerasse a medida interventiva

desproporcional, até mesmo no exame de adequação. Em suma, entendeu a Corte Suprema

que a intervenção sequer seria adequada para garantir o pagamento dos precatórios.

Situação completamente diversa ocorre com a recusa à repetição do indébito tributário,

porque, aqui, esta repetição é a regra, não a exceção. Por isso que, ainda que se intente

submeter a questão a um juízo de proporcionalidade, este exame deverá ser muito mais rígido

do que aquele realizado na mencionada Intervenção Federal, nascida da excepcionalidade.

Com efeito, a repetição do indébito é o meio adequado - na verdade o único - à reparação

patrimonial do contribuinte em decorrência da exação ilegítima; é necessária, pois não existe

outra forma menos onerosa de o Estado devolver o que indevidamente recebeu; e é

proporcional em sentido estrito, já que garante com total intensidade o direito de propriedade

ilegitimamente desrespeitado, a necessidade de lealdade e de submissão do Estado ao

ordenamento jurídico, ambas em homenagem ao valor segurança, sem com isso restringir os

direitos fundamentais de outrem.

Este último, na realidade, é o único exame de proporcionalidade que, em tese, poderia dar

margem ao afastamento da repetição. No entanto, há que se demonstrar fortemente que a

restrição aos direitos de terceiros efetivamente existe e, mais do que isso, supera o benefício

ao direito do contribuinte que foi lesado pela cobrança tributária sem fundamentação jurídica.

Há que se ressaltar a posição assumida pelo STF até o presente momento, na qual o

Tribunal revela estar adequadamente atento à diferença entre as duas questões.

Esta intenção fiscal de ver a declaração de inconstitucionalidade de um tributo ter eficácia

apenas ex nunc é mesmo anterior à Lei nº 9.868/99 e, desde sempre, vem sendo refutada pelo

STF, como ocorreu na ADI nº 513176, na qual foi rejeitada a “alegação de só poder ter efeitos

ex nunc a decisão que nulifica lei que instituiu ou aumentou tributo auferido pelo Tesouro e já

aplicado em serviços e obras públicas”177. Mais recentemente, este entendimento foi

corroborado por inúmeros outros julgados, tais quais: RE-AgR nº 392.139178, AI-AgR nº

457.722179, AI-AgR nº 533.800180, RE-AgR-ED nº 362.570181, e AI-AgR nº 588.513182.

Com relação ao último precedente mencionado acima, chamam a atenção os seguintes

trechos do voto do Min. Joaquim Barbosa, relator do recurso:

Pondero que, em matéria tributária, a aplicação de efeitos prospectivos à declaração incidental de inconstitucionalidade demanda um grau ainda mais elevado de parcimônia, porquanto é um truísmo afirmar que os valores arrecadados com a tributação se destinam ao emprego em finalidades públicas. Portanto, não basta ao sujeito ativo apontar a destinação de índole pública do produto arrecadado para justificar a modulação temporal dos efetios de declaração de inconstitucionalidade, sob o risco de se inviabilizar qualquer pretensão de restituição de indébito tributário, em evidente prejuízo da guarda da constitucionalidade e da legalidade das normas que instituem as exações. Evidentemente, a possibilidade que o sistema jurídico confere ao Supremo Tribunal Federal para modular no tempo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade e a destinação do produto da arrecadação ao exercício de atividades estatais não podem redundar na imunização do Estado ao dever de zelar pela validade das normas jurídicas que cria, favorecendo assim a especulação legal.

E nem se está conjeturando sobre situações subjetivas que podem surgir caso haja a

aceitação do argumento fiscal de não repetição do indébito tributário. Este é o caso, por

exemplo, da possibilidade da chamada inconstitucionalidade útil, correspondente à conduta

do Estado de instituir ou majorar inconstitucionalmente um tributo, protelar ao máximo a

discussão judicial com os contribuintes, para, ao final, alegar que não tem condições de

devolver todo o montante arrecadado durante os anos de chicanas processuais183.

176 Pleno, rel. Min. Célio Borja, unânime, DJ de 30.10.1992. 177 Registre-se que o principal argumento utilizado neste julgamento foi o de que não haveria espaço, no ordenamento jurídico brasileiro, para a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Embora esta razão tenha sido superada pela evolução da doutrina e pelo advento da Lei nº 9.868/99, bem demonstra a absoluta excepcionalidade da aplicação de efeitos ex nunc à declaração de inconstitucionalidade. 178 1ª Turma, rel. Min. Eros Grau, unânime, DJ de 13.05.2005. 179 1ª Turma, rel. Min. Eros Grau, unânime, DJ de 05.08.2005. 180 1ª Turma, rel. Min. Eros Grau, unânime, DJ de 09.09.2005. 181 1ª Turma, rel. Min. Eros Grau, unânime, DJ de 15.12.2006. 182 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, unânime, DJ de 16.02.2007. 183 Um precioso testemunho desse fenômeno é fornecido pelo ex-Consultor Geral da República, ex-Ministro da Justiça, advogado e jurista SAULO RAMOS: “Durante a discussão dos Planos Cruzados, ouvi algo espantoso dos funcionários do Ministério da Fazenda, a turma da casa, que estava lá há séculos. Quando nós, os juristas,

A despeito de todas as razões jurídicas expostas acima, a simples abertura de espaço para

o surgimento de uma situação como esta, a nosso ver, é suficiente para revelar a invalidade de

qualquer tentativa de se evitar a repetição do indébito tributário com base em aplicações

prospectivas da declaração de inconstitucionalidade.

A análise desta questão mostra quão perigosa é a opção pela eleição concreta de um

interesse público no Direito Tributário (a arrecadação), revelando a existência de um interesse

bem mais abstrato (a tributação de acordo com os valores e princípios constitucionais e com

os Direitos Fundamentais), que somente ganhará concretude na solução dos casos reais.

5.5.2. EM DEFESA DO CONTRIBUINTE

É verdade que a modulação de efeitos pode eventualmente ser invocada pelos

contribuintes, não apenas pelo Estado. Não obstante, mesmo nestas situações, mantemos a

coerência com o que foi dito acima e acreditamos que esta modulação somente será possível

em situações de absoluta excepcionalidade.

Talvez o exemplo mais pungente e recente da iniciativa dos contribuintes de que uma

decisão que lhes foi contrária em discussão tributária tivesse efeitos ex nunc tenha ocorrido no

julgamento acerca do direito de utilização de créditos de IPI decorrentes da aquisição de

insumos isentos, não tributados, ou sujeitos à alíquota zero.

Estavam em julgamento dois Recursos Extraordinários interpostos pela Fazenda Nacional

contra acórdãos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que haviam reconhecido o direito

de creditamento dos contribuintes, com base em precedentes do Plenário do STF.

No RE nº 353.657, a situação processual era a seguinte, nas palavras do Min. Marco

Aurélio:

advertíamosque determinada medida era inconstitucional ou ilegal, eles respondiam com a demonstração de uma estatística fantástica: - Contra atos da Fazenda Nacional, apenas ingressam em juízo cerca de 30% dos prejudicados. A maioria, portanto, não reclama. Pode haver alteração para mais ou para menos, dependendo de dois fatores principais: 1) se a imprensa der destaque à ilegalidade, o que não acontece sempre, porque os jornalistas, em determinadas questões, passam batido; 2) se as quantias envolvidas não forem individualmente expressivas. E os que entram com ações contra a União levam cerca de dez anos para receber, o que adia o problema para os governos posteriores. Meninos, eu vi. E várias vezes. Não é preciso registrar que, em muitas ocasiões, houve quebra-paus fortes. Algumas vezes, consegui demovê-los; em outras, fiquei vencido, porque existe no governo, em todos os governos, a mentalidade de que a ilegalidade em favor do Tesouro Nacional é eticamente legítima.” (RAMOS, Saulo. Código da Vida. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p. 297).

(...) mandado de segurança impetrado contra ato do delegado da Receita Federal em Ponta Grossa, objetivando o reconhecimento do direito a créditos de Imposto sobre Produtos Industrializados devidamente atualizados pela Selic, advindos da aquisição de matéria-prima, produtos intermediários e material de consumo cuja entrada é isenta, não tributada ou sujeita à alíquota zero, usados no processo de industrialização, calculados com base na mesma alíquota da saída dos produtos, considerado o período de janeiro de 1996 a agosto de 1998. O Juízo acolheu o pedido de liminar viabilizando a utilização dos créditos. O julgamento definitivo implicou o indeferimento da segurança. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao prover parcialmente a apelação, concedeu a ordem, excluindo apenas a incidência de correção monetária sobre os créditos escriturais. No extraordinário, a União pleiteia a reforma do acórdão para declarar ser inviável o reconhecimento de créditos na aquisição de insumos não tributados ou sujeitos à alíquota zero.

Já no RE nº 370.682, o processo teve o seguinte desenvolvimento, também nas palavras

do Min. Marco Aurélio:

(...) ação declaratória para reconhecimento de crédito, versa idêntico tema, sem delimitação temporária. A União, ao contestar o pedido argüiu a ilegitimidade ativa. A autora não teria comprovado haver suportado o encargo. No mérito, aduziu a impossibilidade de concessão de crédito quando inexistente cobrança, mencionando o princípio da não-cumulatividade e a ausência de lei o prevendo. O Juízo julgou improcedente o pleito. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região proveu a apelação. A Fazenda interpôs o extraordinário buscando a reforma do acórdão para que se proclame a inviabilidade do reconhecimento de créditos na aquisição de insumos não tributados ou sujeitos à alíquota zero.

Em votação apertada, por maioria mínima184, foram providos os recursos da Fazenda

Nacional, com o que, na prática, foram julgados improcedentes os pedidos iniciais dos

contribuintes.

Após a finalização da votação quanto ao mérito dos recursos, o Min. Ricardo

Lewandowscki suscitou Questão de Ordem, para que a Suprema Corte analisasse a “eventual

concessão de efeitos prospectivos a essa decisão”, especialmente “tendo em conta a alteração

da jurisprudência até agora assentada por esta Corte”.

Após intensos debates, o Tribunal decidiu, por extensa maioria (10 votos contra 1), pela

não atribuição de efeitos ex nunc à decisão proferida naqueles Recursos Extraordinários. Em

resumo, os fundamentos abordados por cada uma das correntes foram os seguintes:

184 Pelo provimento do recurso fazendário, votaram os Min. Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Eros Grau e Gilmar Mendes. Contra, votaram os Min. Cezar Peluso, Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Ricardo Lewandowscki e Celso de Mello.

(a) a favor da aplicação de efeitos ex nunc - Min. Ricardo Lewandowscki - o efeito prospectivo “encontra fundamento no princípio da razoabilidade, porquanto objetiva não apenas minimizar o impacto das decisões do Supremo sobre relações jurídicas já consolidadas, como também evitar a ocorrência de um vácuo legislativo, em tese mais gravoso para o ordenamento legal do que a subsistência temporária da norma declarada inconstitucional”; - “em duas decisões anteriores, a última de 18.12.2002, o Plenário desta Suprema Corte manifestou-se favoravelmente, por ampla maioria, ao creditamento do IPI nas operações de que tratam os recursos sob exame” (RE nº 212.484 e RE nº 350.446); - “praticamente todos os Tribunais Regionais Federais e mesmo os magistrados de primeira instância da justiça Federal continuaram a prestigiar a jurisprudência predominante na Corte”; - os precedentes pretorianos são dotados de grande importância, pois “existe uma grande possibilidade no plano dos factos de que os tribunais inferiores sigam os precedentes dos tribunais superiores e eles geralmente se atenham à sua jurisprudência, os consultores jurídicos das partes litigantes, das firmas e das associações contam com isto e nisto confiam” (Larenz); - “a ausência de trânsito em julgado deveu-se apenas à interposição de agravos regimentais e embargos de declaração”; - no caso, “considerando que não houve modificação no contexto fático e nem mudança legislativa, mas sobreveio uma alteração substancial no entendimento do STF sobre a matéria”, seria conveniente “evitar que um câmbio abrupto de rumos acarrete prejuízos aos jurisdicionados que pautaram suas ações pelo entendimento pretoriano até agora dominante”, notadamente “em homenagem não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também aos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assenta o próprio Estado Democrático de Direito”; - não se pretende a cristalização da jurisprudência, mas apenas que se confira segurança ao processo de transformação. (b) contra a aplicação de efeitos ex nunc: - com relação ao RE nº 353.657, como ele possui uma delimitação temporal (janeiro de 1996 a agosto de 1998), a atribuição de efeitos prospectivos equivaleria a negar provimento ao recurso da Fazenda (Min. Marco Aurélio); - a atribuição de efeitos prospectivos prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/98 pressupõe a existência de uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o que não ocorreu na espécie, uma vez que se declarou a constitucionalidade do entendimento da Receita Federal quanto à vedação do crédito (Min. Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Sepúlveda Pertence);

- as declarações de constitucionalidade, ao contrário da de inconstitucionalidade, não têm o condão de gerar “efeitos perniciosos ao operarem retroativamente” (Min. Eros Grau); - no caso dos autos, o STF agiria como legislador positivo, na medida em que não existia lei autorizando o creditamento e a atribuição de efeitos prospectivos faria com que a decisão da Corte constituísse o direito ao crédito, sem previsão legal (Min. Marco Aurélio); - a aplicação de efeitos ex nunc geraria uma situação de injustiça com os contribuintes que não se valeram do judiciário e/ou não utilizaram os créditos, quebrando a igualdade entre os particulares, de modo que essa aplicação também feriria a Constituição Federal (Min. Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence); - não existia uma situação consolidada de segurança jurídica, porque nenhum dos precedentes favoráveis ao creditamento, especialmente no que se refere aos insumos sujeitos à alíquota zero e não tributados, havia transitado em julgado (Min. Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Gilmar Mendes e Sepúlveda Pertence); - como não houve o trânsito em julgado de nenhum precedente favorável ao contribuinte, o eventual creditamento com base em tais julgamentos era de risco do particular, não sendo possível “atribuirmos ao Estado [rectius, à sociedade] essa responsabilidade”; do contrário, instituir-se-ia um “capitalismo sem as incertezas inerentes às decisões de produção e de investimento, o capitalismo sem riscos, sem o salto no escuro” (Min. Eros Grau); - e declaração de efeitos prospectivos esvaziaria o recolhimento do tributo e geraria um passivo gigantesco, o qual seria suportado em última medida pela sociedade (Min. Marco Aurélio); - não se confundem texto e norma; norma é o texto interpretado, ou seja, é o sentido que o intérprete extrai do texto à luz do caso concreto; somente a lei admite exceções à retroatividade (prejuízo ao direito adquirido, a ato jurídico perfeito ou a coisa julgada), mas a “irretroatividade da norma consubstancia autêntico non sense”; - a simples existência de um posicionamento jurisprudencial não é capaz de gerar um sentimento de confiança ou de segurança, pois os Tribunais podem evoluir em seus entendimentos e rever essa jurisprudência (Min. Cezar Peluso); - a legislação então existente vedava o aproveitamento dos créditos e somente poderia ser afastada por decisão judicial que beneficiasse especificamente o contribuinte ou que tivesse eficácia erga omnes, o que não ocorreu no caso (Min. Cezar Peluso); - não existiria colisão de valores, “porque os atos praticados (apropriação, transferência, ou utilização dos créditos relativos a aquisições sujeitas à alíquota zero) o foram em desconformidade com a norma tida por inconstitucional, sem apoio em decisão judicial definitiva” (Min. Cezar Peluso).

A extensão e a complexidade dos argumentos de ambas as correntes bem revela o rigor

especial que deve revestir a modulação de efeitos de decisões judiciais na seara tributária,

tanto a favor do fisco quanto em prol do contribuinte.

Permitimo-nos discordar abstratamente de diversos argumentos acima resumidos.

Não nos alinhamos com o entendimento segundo o qual a atribuição de efeitos

prospectivos depende de uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,

conforme previsto no art. 27 da Lei nº 9.868/98. Para nós, são questionáveis as restrições e

limites impostos por este dispositivo legal, uma vez que a atribuição ou não daqueles efeitos

decorre de uma interpretação da própria Constituição Federal, prescindindo de autorização

legislativa específica. O STF já possui, constitucionalmente, a competência para zelar pela

Carta Maior. E esse zelo também é implementado mediante a aplicação dos efeitos que

melhor concretizem a norma constitucional, de acordo com o caso concreto.

Como bem salientado pelos Min. Ricardo Lewandowscki, Eros Grau e Gilmar Mendes,

há que notar a distinção entre o texto/enunciado normativo e a norma jurídica dele emanada

mediante o cotejo daquela previsão legal com o fato concreto. Essa distinção decorre da

constatação de que a linguagem por si só comporta múltiplos significados, não havendo como

se extrair um sentido unívoco pela interpretação fria das palavras contidas na lei. Nesse exato

sentido leciona HUMBERTO ÁVILA:

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. (...) Em outras hipóteses, há apenas um dispositivo, a partir do qual se constrói mais de uma norma. (...) Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal.185

Diante disso, surgem situações em que, embora o texto legal esteja em conformidade com

os ditames constitucionais, a aplicação dele extraída para um caso concreto (por via da

interpretação) pode afrontar a Carta Magna e, nesse caso, deve ser repelida pelo Poder

Judiciário.

185 ÁVILA. Op. cit., nota 33, p. 30.

Tratam-se de hipóteses em que a aplicação do enunciado normativo frente a uma

determinada situação concreta é inconstitucional e, assim, é afastada mediante declaração

parcial de inconstitucionalidade sem redução do texto, consagrada no art. 28, § único, da Lei

nº 9.868/99.

Em suma, não somente leis e atos normativos podem ser declarados inconstitucionais,

mas também práticas implementadas pelo Estado, como interpretações e entendimentos que

geram conseqüências concretas para o administrado. Se a norma que o Estado (ou o

contribuinte) julga ser extraível do sistema é considerada inconstitucional pelo STF, não

vemos razão para que, presentes outras premissas - notadamente uma situação realmente

consolidada que gerasse uma legítima expectativa para a parte -, fossem atribuídos efeitos

prospectivos a essa decisão. Com razão, a nosso ver, o Min. Gilmar Mendes, que assim

colocou seu voto:

Entendo, portanto, legítimas as premissas teóricas suscitadas no voto do eminente Ministro Ricardo Lewandowscki, que, como já se demonstrou, não cuidou de aplicar o art. 27, mas de aplicar, entendendo ele que existia, sim, uma mudança de entendimento, a prospectividade em nome da segurança jurídica. (...) Tivéssemos nós uma situação consolidada, ainda que de mera interpretação constitucional se cuidasse, eu não teria nenhuma dúvida de subscrever integralmente os fundamentos aqui estendidos por Sua Excelência.

A existência ou não de uma efetiva mudança radical na jurisprudência é de ser verificada

casuisticamente. Porém, em havendo, também não temos dúvidas de que poderia ser aplicada

a prospectividade, desde que esta aplicação atendesse em melhor medida os princípios

constitucionais em jogo.

Por outro lado, não concordamos com o argumento de que a aplicação de efeitos

prospectivos geraria uma situação de injustiça entre os que utilizaram ou não o entendimento

então modificado, quebrando a igualdade entre os administrados caso aquela aplicação fosse

levada a efeito.

Na verdade, entendemos que esta quebra da igualdade acontecerá em todo e qualquer

processo judicial, pois os contribuintes que se insurgirem contra determinada exação e

lograrem êxito passarão a se encontrar em uma situação diferente daqueles que não efetuaram

o questionamento.

Rejeitar a prestação jurisdicional àqueles que se socorreram do Poder Judiciário, em

razão da existência de outros que não fizeram valer o direito constitucionalmente garantido de

acesso à tutela jurisdicional, corresponde a negar essa tutela por conta da inércia de terceiros.

Isto sim é um non sense, para usar as palavras do Min. Eros Grau.

Enfim, a atribuição de efeitos atípicos a decisões judiciais na matéria tributária - seja na

inconstitucionalidade de lei, de ato normativo ou de interpretação, esta última para nós

também possível, ou na guinada de posicionamentos judiciais que envolvam estas questões -

deve ser vista com reservas e com rigor, conforme já procuramos expor no tópico anterior. E

estas reservas e este rigor se aplicam tanto nos casos que beneficiem o contribuinte quanto

naqueles que beneficiem a Fazenda.

Se, em favor da Fazenda, um rigoroso exame de proporcionalidade auxilia a solução do

caso, em favor do contribuinte o mesmo acontece: é imperioso que estejam presentes

premissas que indiquem que os efeitos prospectivos são adequados ao prestígio de normas

constitucionais que estejam em jogo; são necessários para que tais normas sejam aplicadas na

melhor medida possível; e não restrinjam desproporcionalmente as normas que se colocam no

sentido da aplicação de efeitos ex tunc.

6. CONCLUSÃO

Com alicerce no que se expôs acima, chega-se a algumas conclusões:

(1) a doutrina da supremacia do interesse público sempre foi hesitante em estabelecer o conteúdo do interesse público que mereceria prevalência sobre o particular, o que deu margem à identificação desse interesse com interesses estatais, fazendo surgir amplo campo de atuação para o arbítrio; (2) no entanto, é certo haver construções doutrinárias que se esforçaram em delimitar o que seria o interesse público propriamente dito, primário ou essencial, ora fazendo-o coincidir com o interesse da coletividade, ora com a soma dos interesses da maioria dos integrantes da comunidade etc.; (3) acontece que essas identificações também não são satisfatórias, na medida em que, se não permitem o arbítrio estatal, dão ensejo ao arbítrio da maioria, que não teria maiores amarras para suprimir os direitos de minorias, por exemplo, desde que a vontade de supressão fosse comungada pelo maior número de integrantes da sociedade; (4) apesar dessas diversas vertentes, é possível se extrair da doutrina um conceito nuclear do “princípio” da supremacia do interesse público, que corresponderia à proposição de que, em havendo conflito entre o interesse público e o interesse particular, o primeiro deve sempre prevalecer, o que invariavelmente serviu de fundamento para toda e qualquer pretensão do Estado frente ao indivíduo; (5) a Teoria Geral do Direito, notadamente a linha doutrinária aqui adotada, conceitua os princípios como as normas que “não determinam diretamente (por isso prima-facie) a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim”186; (6) assim, em uma primeira aproximação, conclui-se que o “princípio” da supremacia do interesse público não constitui, verdadeiramente, uma norma-princípio, na medida em que não prescreve fins a serem alcançados mediante comportamentos encontrados pelo aplicador do Direito, mas sim determina uma conduta a ser seguida pelo intérprete, estabelecendo verdadeira regra de prevalência apriorística em caso de colisão entre o interesse público e o interesse particular; (7) diante dessa constatação, tal regra de prevalência somente será válida se encontrar amparo no ordenamento jurídico, mormente no ambiente constitucional que o sustenta; (8) a Constituição Federal de 1988, pluralista por natureza, albergou inúmeros interesses, públicos e privados, conferindo-lhes proteção e importância equivalente, sem atribuir a nenhum o marco da supremacia;

186 ÁVILA. Op. cit., nota 33.

(9) estes inúmeros interesses constitucionalmente garantidos possuem múltiplos significados e conteúdos, sendo muitas vezes antagônicos ou passíveis de contraposição, o que corrobora a assertiva de que a Constituição Federal não se preocupou em atribuir um peso supremo a nenhum deles; (10) além disso, a Constituição Federal de 1988 é fortemente marcada pelo princípio da subsidiariedade, que estabelece, como finalidade a ser buscada pelo aplicador, que a esfera de atuação da sociedade menor deve ser preservada frente a sociedade maior, de modo que esta somente atue quando aquela for insuficiente ou ineficiente, o que solidifica a idéia de pulverização do poder, da multiplicação dos sujeitos ativos no jogo social e, consequentemente, da necessidade de que os interesses desses diversos sujeitos sejam igualmente protegidos; (11) no campo jurisprudencial, o STF sempre se posicionou formalmente pela existência de uma supremacia do interesse público sobre o particular; (12) todavia, materialmente, a Suprema Corte adota uma noção procedimental, de modo que o interesse público merecedor de prevalência no caso concreto é obtido por meio da ponderação dos diversos interesses envolvidos, à luz da Constituição Federal; (13) fixado este cenário constitucional, evidencia-se que o interesse maior - ou público - do Direito é a pacificação social e é visando a esse objetivo que existe um sistema uno e coerente de normas tendentes a regular a conduta humana, tanto de maneira estática como de maneira dinâmica; (14) em ordenamentos jurídicos como o brasileiro, que possuem uma norma fundamental, esta pacificação é alcançada pelo melhor atendimento possível da Constituição Federal, por ser este o instrumento jurídico que compila os valores mais caros à sociedade e sobre os quais ela pretendeu se erigir; (15) assim, é necessária uma conceituação ética do interesse público, que, na verdade, será obtido apenas diante o caso concreto e corresponderá à solução que melhor atenda aos valores e princípios constitucionais e aos direitos fundamentais garantidos a todos os cidadãos, obrigando o intérprete a um esforço argumentativo que lastreie a escolha de determinada solução em detrimento de outras; (16) por sua vez, o Sistema Constitucional Tributário do Brasil comporta normas que tanto privilegiam os direitos dos particulares, como também preservam os interesses do Estado e da sociedade como um todo, sendo inviável qualquer tentativa de asseverar que estes ou aqueles dão o norte da tributação brasileira; (17) todas essas normas convergem no sentido de que o que se busca é garantir, no âmbito da tributação, a maior concretização possível dos valores incorporados na Carta Magna, dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais que permeiam o seu texto, os quais ora indicarão uma prevalência do interesse do Estado, ora apontarão no sentido da prevalência do interesse do contribuinte, tudo a depender dos caracteres do caso concreto;

(18) na moderna fundamentação do Direito Tributário, ganham relevância os valores (justiça, segurança, igualdade, solidariedade e liberdade), os princípios deles corolários e os Direitos Fundamentais, cuja interação passa a ditar os rumos da tributação; (19) um exemplo prático da influência dos valores, princípios e direitos fundamentais é a nova concepção do princípio da capacidade contributiva, que se vale da interseção daqueles para identificar, com a maior precisão possível, a parcela do patrimônio do cidadão que está disponível para a tributação; (20) por essas razões, o interesse público no Direito Tributário não é arrecadatório, pois não se confunde com o interesse do Estado, visão ultrapassada pela nova conformação do sistema jurídico baseado nos valores, princípios e Direitos Fundamentais; (21) o interesse público no Direito Tributário, à luz da sua moderna fundamentação e da noção que se tem do interesse maior do Direito, é o de que a tributação se dê de uma forma que observe as normas constitucionais, respeitando-as e promovendo o seu respeito por toda a sociedade; (22) esta concepção deve nortear toda e qualquer aplicação que se dê ao Direito Tributário, a fim de que a tributação alcance a sua real finalidade, que é a de contribuir à mencionada pacificação social por meio da imposição de exações que sejam justas, respeitem os direitos individuais do contribuinte e propiciem o custeio e a mantença das atividades estatais necessárias ao desenvolvimento da coletividade; (23) esta idéia fundamenta a alteração de diversos institutos tributários, como o processo administrativo fiscal, que passa a sofrer uma maior influência pelos direitos e garantias constitucionais, com a finalidade de promover uma maior participação e cooperação entre Administração e particular na investigação da existência do crédito tributário; (24) tal entendimento também torna possível iluminar de uma maneira diferente inúmeros embates entre Fisco e contribuintes, aos quais se agregam novas fundamentações e novas abordagens; (25) esta nova luz faz com que seja necessária a revisão de certas interpretações atribuídas a enunciados legais materializadores de privilégios para a Fazenda Pública, bem como previne o aplicador acerca de iniciativas que tentem, de algum modo, restaurar a idéia de que o interesse fundamental do Direito Tributário é a arrecadação, em detrimento dos direitos e garantias constitucionalmente consagrados.

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