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A TERCEIRIZAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO A ATUAÇÃO DO JUIZ NA GARANTIA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS DE PODER. UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA DO PL N. 4.330/2004

A terceiricazao e a precarizacao - ltr.com.br · A luta contra a precarização das condições de trabalho na terceirização é, sem desassombro, uma luta entre o Direito e o Poder,

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A TerceirizAção e A PrecArizAção nAs relAções de TrAbAlho

A AtuAção do juiz nA gArAntiA dA efetivAção dos direitos fundAmentAis nAs

relAções AssimétricAs de poder. umA interpretAção críticA do

pl n. 4.330/2004

Laercio Lopes da siLva

Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Barueri/SP. Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Pós-graduado em Direitos Fundamentais pelo IBCCRIM em parceria com o Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra – Portugal. Professor de Direito Constitucional da Faculdade Zumbi dos Palmares (afastado). Doutoran-do pela Fadisp/SP.

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A TerceirizAção e A PrecArizAção nAs relAções de TrAbAlho

A AtuAção do juiz nA gArAntiA dA efetivAção dos direitos fundAmentAis nAs

relAções AssimétricAs de poder. umA interpretAção críticA do

pl n. 4.330/2004

lAercio lopes dA silvA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:1. Brasil : Terceirização : Direito do trabalho 34:331.6(81)

Silva, Laercio Lopes daA terceirização e a precarização nas relações de trabalho : a atuação do juiz

na garantia da efetivação dos direitos fundamentais nas relações assimétricas de poder : uma interpretação crítica ao PL n. 4.330/2004 / Laercio Lopes da Silva. -- São Paulo : LTr, 2015.

Bibliografia.

1. Direito do trabalho - Brasil 2. Direitos fundamentais 3. Relações de traba-lho 4. Terceirização I. Título.

15-07198 CDD-34:331.6(81)

EDITORA LTDA.© Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-001São Paulo, SP – BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.brSetembro, 2015

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: LinotecProjeto de Capa: Fabio GiglioImpressão: Pimenta

Versão impressa: LTr 5343.5 — ISBN: 978-85-361-8601-6

Versão digital: LTr 8812.1 — ISBN: 978-85-361-8615-3

agradecimentos

Ao Magistrado e Prof. Dr. Mauro Schiavi por ter me incentivado a escrever esta obra, e o apoio na publicação. À Dra. Daniela

Beteto, insígne e jovem advogada pelo apoio na pesquisa sobre a precarização moral e atividade-meio e fim na terceirização.

dedicatória

A meus pais: José Lopes da Silva (in memoriam)

Orlinda Pereira da Silva (in memoriam)

Sumário

ApreSentAção .................................................................................................................... 13

introdução

1. Generalidades e limitação do tema ....................................................................... 15

2. Apontamentos sobre a evolução das condições de trabalho........................ 19

CApítulo i – A influênCiA dAS CondiçõeS de trAbAlho e do ContrAto nA formAção de identidAde e perSonAlidAde dAS peSSoAS

1. A relação entre as partes no contrato de trabalho ........................................... 25

2. Validade da lei, segurança jurídica e luta por reconhecimento nas rela-ções assimétricas de poder...................................................................................... 28

3. A tutela do direito de personalidade nas relações de emprego ................... 29

4. A influência do contrato de trabalho na formação de identidade da pessoa.. 30

5. As condições de trabalho como paradigma do conceito de direito nas relações assimétricas de poder. Emenda 9ª da Constituição americana ... 31

CApítulo ii – elementoS dA ConStituCionAlizAção do direito do trAbAlho

1. Aspectos essenciais da eficácia horizontal dos direitos fundamentais ...... 44

2. A teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais na es-fera privada ................................................................................................................... 45

3. Teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais ................. 47

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CApítulo iii – ApontAmentoS Sobre A reSponSAbilidAde do tomAdor nA terCeiri-zAção. o prinCípio dA SolidAriedAde e A nAturezA do ContrAto nA terCeirizAção, nA ConCepção dA função SoCiAl do ContrAto

1. O princípio da solidariedade e a natureza do contrato na terceirização, na concepção da função social do contrato ....................................................... 51

2. A competência em razão do lugar como norma favorável e a aparente contradição entre a cabeça do art. 651 da CLT e o seu § 3º .......................... 61

3. O empregado é obrigado a fazer prova de que prestou serviços para a tomadora? ..................................................................................................................... 64

CApítulo iV – A terCeirizAção doS SerViçoS de CAll Center pelAS empreSAS de teleComuniCAçõeS. CrítiCA Ao projeto de lei n. 4.330/2004

1. Crítica do entendimento do STF sobre a terceirização dos serviços de call center pelas empresas de telecomunicações ............................................. 67

2. A tutela dos direitos fundamentais nas relações assimétricas de poder ... 73

3. As inconstitucionalidades e as ilegalidades do PL n. 4.330 ........................... 78

CApítulo V – reSponSAbilidAde. SegurAnçA jurídiCA e liberdAde ConStituCionAl pArA ContrAtAr no pl n. 4.330/2004

1. A insuficiência da dogmática jurídica na interpretação do Direito do Tra-balho ............................................................................................................................... 83

2. A questão da redução da prescrição do FGTS de 30 anos para 5 anos. Críti-ca. A insuficiência da dogmática na interpretação do Direito do Trabalho ...... 83

CApítulo Vi – AS normAS trAbAlhiStAS Como direitoS fundAmentAiS; o entren--Chment (entrinCheirAmento) e o deVido proCeSSo legAl nA proteção dA exeCu-ção trAbAlhiStA

1. Apontamentos sobre o devido processo legal nas dimensões processual e substancial no Direito do Trabalho ..................................................................... 90

CApítulo Vii – ConCeito de terCeirizAção nA doutrinA – AtiVidAde-fim; AtiVidA-de-meio e eSSenCiAl; liCitude VerSuS iliCitude regrAndo A reSponSAbilidAde e Su-bordinAção eStruturAl. umA ViSão ContemporâneA de SubordinAção diAnte doS ConCeitoS de AtiVidAde-fim e AtiVidAde-meio

1. Uma visão contemporânea de subordinação diante dos conceitos de atividade-fim e atividade-meio .............................................................................. 97

CApítulo Viii – ASpeCtoS dA deCiSão do Stf nA deCiSão de ConStituCionAlidAde dA SúmulA n. 331 em Confronto Com o Art. 71, dA lei n. 8.666/1993. A reSpon-SAbilidAde do ente públiCo nA terCeirizAção

1. A responsabilidade do ente público na terceirização e a inconstituciona-lidade que o STF não viu .......................................................................................... 105

A terceirizAção e A precArizAção nAs relAções de trAbAlho 11

CApítulo ix – A preCArizAção nAS relAçõeS de trAbAlho AdVindAS dA terCeirizA-ção. A preCArizAção morAl ViolAndo o direito de perSonAlidAde do trAbAlhAdor

1. A precarização moral violando o direito de personalidade do trabalha-dor ................................................................................................................................... 111

2. A aplicação dos direitos da categoria da tomadora aos trabalhadores terceirizados. Precedente n. 39 do TRT da 2ª Região ...................................... 119

3. A equiparação salarial entre os empregados da prestadora e os da to-madora. Inteligência do princípio constitucional da isonomia ...................... 123

CApítulo x – A AtuAção do mAgiStrAdo e A tutelA doS direitoS fundAmentAiS doS trAbAlhAdoreS

1. A atuação ponderada do magistrado a partir do seu livre convencimen-to fundamentado ........................................................................................................ 125

2. O magistrado e a atuação no processo cooperativo ....................................... 126

3. O magistrado e a experiência no Direito Comparado...................................... 127

4. O Direito regulando a vida em sociedade ........................................................... 128

5. Divisão das funções estatais .................................................................................... 132

6. Validade da lei em tema de direitos fundamentais e o juiz Hércules na visão de Ronald Dworkin .......................................................................................... 136

6.1. A tensão entre facticidade e validade e o “método do Hércules” . 140

6.2. A limitação material do legislador numa contribuição de Axel Honneth ........................................................................................................... 141

7. Racionalidade versus subjetividade e discricionariedade do juiz na pro-lação da sentença ....................................................................................................... 142

8. Elementos da aplicação dos princípios material e formal na relação de emprego e as decisões contramajoritárias dos juízes do trabalho .............. 154

8.1. Conceito de princípios e elementos da ponderação .......................... 154

8.2. As decisões contramajoritárias dos juízes do trabalho ..................... 155

ConCluSão ...................................................................................................................................... 159

referênCiAS bibliográfiCAS ....................................................................................................... 165

ApreSentAção

A presente obra tem como base monografia laureada em 1º lugar no pri-meiro concurso de monografias realizado pela Amatra-2, no ano de 2014, bem como nossa experiência como Juiz do Trabalho há quase 22 anos, na Bahia e em São Paulo.

Enfrentamos a problemática da terceirização por um viés humanista, com a atenção sempre voltada para aquilo que dizia Radbruch de que de um dos lados do contrato de trabalho há sempre um ser humano. É por isso que o tema gera tantas paixões, porquanto está a se falar do ambiente do trabalho onde o empregado passa boa parte de sua vida, sem opção, pois depende do trabalho para sua subsistência; portanto, as condições de trabalho acabam, de certa for-ma, a figurar como um dos elementos que conceituam a própria ontologia do ser social, condicionando a sua visão de mundo, implicando em o que Lukács chama de reificação, que não está condicionada à violação de princípios morais.

Procuramos identificar o direito a partir de uma única função: a eman-cipação do ser humano, portanto, o direito, na concepção dos Critical Legal Studies, seria grupamento de regras sociais. O devido processo legal nas suas duas dimensões teve especial relevo, posto que está em jogo a liberdade dos trabalhadores em uma relação assimétrica de poder.

As condições de trabalho são tratadas como paradigma que sustentam a concepção de que pode haver uma efetiva relação jurídica entre diferentes formas de poder, posto que se puseram como garante de um equilíbrio mínimo nessa assimétrica relação – um contraparadigma do paradigma dos direitos pa-trimoniais – gravadas pela cláusula de impossibilidade de retrocesso.

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As profundas transformações trazida pela CF/88, sobretudo no direito do trabalho, que é afetado sobremaneira por conta da força normativa da Consti-tuição e da aplicação dos direitos fundamentais, inclusive nas relações privadas, revelam que os institutos do direito perseguem uma outra forma de abordagem e interpretação para se afastar de vez a neutralidade do intérprete, de matriz kelseniana, e buscar fundamentos na tábua axiológica trazida pela Constituição que, na feliz expressão de Pietro Perlingieri, traduz-se não somente em um de-ver ser, mas, sobretudo, em um dever fazer.

Por isso, um estudo mais aprofundado da precarização pode levar à con-clusão de que ela ocorre mais por conta de um entendimento equivocado e deslocado dos preceitos constitucionais e dos institutos informadores do con-trato sobre a responsabilidade daquele que tem maior poder nas relações assi-métricas de poder.

introdução

1. GENERALIDADES E LIMITAÇÃO DO TEMA

A luta contra a precarização das condições de trabalho na terceirização é, sem desassombro, uma luta entre o Direito e o Poder, para ser mais exato, contra a exacerbação do poder potestativo do empregador, que se encontra mitigado por conta da função social do contrato; da proteção aos direitos de personalidade do empregado; do dever de proteção do Estado na implemen-tação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas; do princípio da impossibilidade de retrocesso social ou não retorno; e da dimensão comunitária da dignidade da pessoa humana. Este último – o Poder – decorre e se corpori-fica em um plano do capitalismo para fragilizar as condições de prestação de serviço para a consolidação da exploração, unindo tecnologia e desregulamen-tação normativa como instrumentos de eficiência para garantia da produtivida-de e otimização do lucro, dissolvendo a mais valia, confundindo-a com a parte remunerada da produção. O primeiro, o Direito, atua como um freio à ganância capitalista com a finalidade de humanização das relações de trabalho com a atenção sempre presente em que de um lado da relação está um ser humano, como já dizia Radbruch, no início do século passado, a quem a lei deve reservar especial proteção. Essa especial proteção decorre do fato de que a dignidade humana não pode ser, em nenhuma hipótese, relativizada para otimizar o lucro capitalista. Ao lado da precarização do trabalho, atuaria já o fato de que no sis-tema capitalista a lógica do lucro, para além da mais valia que se mostra visível

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aos olhos do comum do povo, revela que o empregador sempre paga ao empre-gado o mínimo possível, daí a justificativa de imposição de um salário mínimo pelo Poder Público. Contudo, quando o fato do pagamento do salário mínimo ou não condizente com o descrito na CF/88 for utilizado pelo magistrado para afastar, v. g., o poder do empregador na resolução do contrato de trabalho na dispensa por justa causa, com suporte na exteriorização dos efeitos do contrato de trabalho na ordem pública ou ordem pública constitucional, com violação ao disposto no art. 7º, IV, da CF/88, não se revela em um fato do príncipe, mesmo porque não há uma imposição do Estado para o pagamento de um salário que viole a disposição citada, por isso o cumprimento da norma fica ao alvedrio do empregador, sem qualquer imposição do Estado. Isso porque as verbas traba-lhistas com sua natureza de direitos fundamentais já reconhecida pela doutrina desde 1934, impõe os seus efeitos para fora do contrato com maior intensidade do que os demais contratos firmados entre particulares, face a limitação da renúncia e impossibilidade de derrogação de direitos fundamentais. O exemplo do salário mínimo procura apenas ilustrar que para cada nuance do poder po-testativo do empregador há que se ter uma resposta para equilibrar o espaço do contrato do trabalho, para que a relação mantenha uma igualdade que pos-sibilite ser chamada de relação jurídica.

Com muita propriedade assim se pronuncia Sérgio Lessa, in verbis:

A complexidade da sociedade contemporânea tem permitido uma série de desvios que confundem as categorias em questão. Por um lado, toma-se a essencialidade do trabalho como o núcleo dos direitos fundamentais, sem perceber-se que em uma sociedade capitalista a viabilidade da concreti-zação do trabalho está dimensionada pela propriedade – ser proprietário do capital ou ser proprietário somente da força de trabalho que realiza a mais-valia pela venda. Nesta medida, garantir um direito ao trabalho é viabilizar por meio de políticas públicas a oferta de empregos e os direi-tos dele decorrentes. Por outro lado, não se pode reduzir o trabalho ao trabalho abstrato, imaginando que tendo incorporado o trabalhador nas condições de possibilidade do capitalismo exauriu-se o espaço da efetivi-dade do Direito do Trabalho. O trabalho é salário, mas salário não é tudo; trabalho sempre será um processo de identificação dos momentos da re-produção social, reinventada a cada momento e a conquista de condições dignas de vida expressas em direitos(1).

Ao contrário do que têm mostrado os estudos sobre desigualdades no mun-do contemporâneo, o salário mínimo é um fator de melhoria do nível de emprego,

(1) coutinho, Aldacy Rachid. A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. In Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Coordenador Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 161.

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por isso, a terceirização viria na contramão, posto que, para além da precarização da relação de trabalho como um todo, traz uma indisfarçável intenção de reduzir custos diferenciando salários dos empregados da prestadora dos salários dos empregados da tomadora, reduzindo, da mesma forma, o nível de emprego, ao contrário do que apregoam os entusiastas da terceirização.

Como acentua Thomas Piketty(2), aumento do salário mínimo aumenta o nível de emprego, in verbis:

Utilizando o fato de o salário mínimo oficial ter aumentado em diferentes datas, montantes e estados americanos durante os anos 1980 e 1990, esses estudos mostraram de maneira convincente que o efeito de um aumento do salário mínimo sobre o nível de emprego havia sido em geral positivo e, não obstante, bem fraco. Assinalemos em especial um estudo célebre sobre as lanchonetes de fast-food de Nova Jersey, nas quais o emprego total cresceu após o aumento do salário mínimo nesse esta-do em 1992... essas análises exerceram inegável influência na decisão do então presidente de aumentar em 1996 o salário mínimo federal de 4,15 dólares por hora para 5,20 dólares a hora, ou seja, um aumento superior a 20%, medida que vinha na esteira de um período no qual o poder de compra do salário mínimo federal caíra em mais de 25% entre 1980 e o início dos anos 1990.

Desse modo, a terceirização, como explicaremos, com mais detalhes, abai-xo, cria um caos na possibilidade de o empregado se integrar verdadeiramente na estrutura da empresa, pois contratado por uma empresa para trabalhar em outra, não pode se integrar à estrutura da tomadora e fica marginalizado em relação ao processo de ascensão na prestadora, resultando no que disse, como muita propriedade, a Dra. Patrícia Ramos de Almeida, presidente da Amatra/SP, na Folha de São Paulo, de que a terceirização cria carcaças de empresas; e diríamos, cria também espantalhos de trabalhadores utilizados tão somente como meio de aumento do lucro das empresas sem qualquer ganho concreto para eles próprios ou para a sociedade. Em verdade, as desigualdades salariais que são explicadas, em termos, pela teoria do capital humano, não encontra esta possibilidade na terceirização que do capital humano se utiliza sem qual-quer valorização dessa ferramenta, pois a única ideia é a valorização do capital financeiro – o lucro. A terceirização impossibilita a análise das características individuais que afetam ou possibilitam a integração ao processo de produção de bens e serviços desumanizando essa relação, vulnerando disposto no inciso IV do art. 1º da CF/88.

(2) piketty, Thomas. A economia da desigualdade. Tradução de André Telles. Intrinseca. 2015. p. 106 e 107.

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Neste sentido assevera Thomas Piketti(3), indagando sobre o alcance expli-cativo da teoria do capital humano:

Sob sua forma mais rudimentar, isto é, omitindo a questão das origens dessa desigualdade, a teoria do capital humano afirma apenas que o tra-balho não é uma entidade homogênea e que diferentes indivíduos, pelas mais variadas razões, são caracterizados por diferentes níveis de capital humano, ou seja, por diferentes capacidades de contribuir para a pro-dução dos bens e serviços demandados pelos consumidores. Dada essa repartição da população em diferentes níveis de capital humano (a oferta de trabalho) e essa demanda por diferentes tipos de bens e serviços que permitem produzi-los (a demanda de trabalho), o sistema da oferta e da demanda determina os salários associados aos diferentes níveis de capi-tal humano e, assim, a desigualdade dos salários. Logo, a noção de capital humano é bastante genérica, pois inclui as qualificações propriamente ditas (diplomas etc.), a experiência e, de maneira mais ampla, todas as características individuais que afetam a capacidade de se integrar ao pro-cesso de produção de bens e serviços demandados. Essa teoria permite explicar a desigualdade das rendas do trabalho efetivamente pagas pelas empresas?

A metodologia adotada nesta monografia tenta demonstrar que a pre-carização nas relações de trabalho se dá menos por conta de o trabalho ser prestado para um terceiro que não contratara o empregado do que por conta da nossa incapacidade de decifrar a natureza jurídica dessa terceirização que, a nosso juízo, tem na natureza da responsabilidade da tomadora o ponto chave da precarização da relação de trabalho, e nem tanto em questões como licitude da terceirização ou mesmo a questão de tipo de subordinação a que está afeito o empregado, posto que todas essas questões devem ser analisadas a partir da conclusão do tipo de responsabilidade do tomador de serviços.

Ao longo deste trabalho tentaremos demonstrar – e esse é um dos mais importantes focos da monografia, ao lado da sua metodologia – que não existe justificativa em direito para que a responsabilidade do tomador seja subsidiária, sendo, pois, sempre solidária, na esteira do que dispõe o Precedente Normativo n. 38, do TRT2, não obstante a clareza do verbete da Súmula n. 331, do C. TST. Na linha do Precedente Normativo n. 39 do mesmo tribunal, demonstraremos que viola o princípio constitucional da isonomia não gozarem os trabalhadores da prestadora de serviços dos mesmos benefícios auferidos pelos da tomadora, inclusive a possibilidade de equiparação salarial nos moldes do disposto no art. 461 da CLT.

(3) Idem. p. 78.

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2. APONTAMENTOS SOBRE A EVOLUÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO

As condições de trabalho foram sendo entrincheiradas ao longo da his-tória, sobretudo após a industrialização que trouxe para o âmbito da fábrica não somente os riscos de infortúnios laborais, mas também novas formas de exploração aliadas aos novos métodos de produção. Esse entrincheiramento, para além de proteger o trabalhador de questões adversas imediatas teve como pano de fundo consolidar situações que se incrustariam ao patrimônio dos tra-balhadores e ficariam protegidas pelo princípio da proibição do retrocesso so-cial. Nesse sentido, essas situações consolidadas criariam as condições para que a pessoa humana do trabalhador fosse conceituada a partir de novos parâme-tros, como já pretendia Radbruch, adotando-se uma explicação que diferencia-va a exploração do homem como meio, quando então se reificava tornando-se objeto da exploração aceita à época e necessária à sobrevivência e convivência humanas, passando a ser conceituada na sua unicidade como ser que não pode ser dividido simplesmente para ser explorado e que sua condição humana na prestação de serviços seja observada em absoluta unidade entre o ser que pres-ta os serviços e o portador de direitos fundamentais.

Gustavo Tepedino, de forma pormenorizada, assim se refere sobre a questão:

Neste renovado Direito Civil interpretado à luz da Constituição, abandona--se a noção da pessoa humana como sujeito de direitos abstrato, anônimo, e cuja importância se associava exclusivamente à capacidade patrimonial. Atenta-se, isso sim, para a sua qualificação na relação jurídica concreta em que se insere, levando-se em consideração o valor social da sua atividade. A pessoa humana, portanto, qualificada de acordo com a sua realidade específica, e protegida pelo ordenamento segundo seu grau de vulnera-bilidade em concreto, torna-se a categoria central do direito privado con-temporâneo... Positivou o Código Civil, na conhecida dicção de seu art. 421, o princípio da função social do contrato, ao estabelecer que “a liber-dade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Tal preceito, a despeito das diversas correntes doutrinárias que surgiram acerca de seu conteúdo, deve ser entendido como princípio que, in-formado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e do valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV) – fundamentos da República –, bem como da igualdade substancial (art. 3º, III) e da solidarie-dade social (art. 3º, I) – objetivos da República –, impõe às partes o dever de perseguir, ao lado de seus interesses individuais, interesses extracontra-tuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos.(4)

(4) tepedino, Gustavo. O princípio da função social no Direito Civil contemporâneo, in: Direito & Justiça social, coordenador Thiago Ferreira Cardoso Neves. São Paulo: Atlas, 2013. p. 258/259.

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Ronald Dworkin, citado por Ingo W. Sarlet, ao tratar do conteúdo da digni-dade humana, acaba reportando-se direta e expressamente à doutrina de Kant, ao relembrar que o ser humano não poderá jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento para a realização dos fins alheios, destacando, toda-via, que tal postulado não exige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim, que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância. Nesta mesma linha, segue dizendo Ingo W. Sarlet que mesmo Kant nunca afirmou que o homem, num certo sentido, não possa ser “instrumentalizado” de tal sorte que venha a servir, espontaneamente e sem que com isto venha a ser degradado na sua condição humana, à realização de fins de terceiros, como ocorre, de certo modo, com todo aquele que presta serviço a outro. Com efeito, Kant refere expressa-mente que o homem constitui um fim em si mesmo e não pode ser utilizado “simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”.(5)

As questões pertinentes às relações de trabalho requerem sempre uma aferição por meio de princípios que protejam a integridade física e moral do trabalhador, para além, por óbvio, da busca do direito específico em cada caso. Tratando-se, pois, de relação entre desiguais, haja vista a grande disparidade de poder entre o empregador e o empregado hipossuficiente, há de haver me-canismos que possibilitem que as condições de trabalho respeitem sempre a condição humana do trabalhador.

A dignidade humana do trabalhador também é uma preocupação no direi-to comparado, como relata Peter Häberle:

A jurisprudência federal trabalhista prevalentemente trata de modo mais específico a irradiação do art. 1º da Lei Fundamental sobre as relações de emprego. Na verdade, trata-se aqui da proteção da esfera íntima e privada no sentido do direito geral de personalidade, embora fique, apesar disso, em primeiro plano uma configuração humanamente digna da relação de empre-go, na qual também o empregador encontra-se obrigado por um dever de cuidado e assistência (Fursorgepflicht). Trata-se como que de um direito da personalidade específico na esfera trabalhista. A configuração dessa relação de emprego, bem como o direito coletivo de trabalho, encontra limites no art. 1º da Lei Fundamental; ainda na negação de uma violação da dignidade humana à luz da vinculação comunitária do cidadão repousa também uma determinação de conteúdo específica do Direito do Trabalho.(6)

Da mesma forma, como postulado na jurisprudência do direito alemão, no Brasil deve se ter em primeiro plano uma configuração digna da relação de

(5) Sarlet, Ingo Wolfgang. In: Dimensões da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 36.

(6) häberle, Peter. In: Dimensões da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 67 e 68.

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emprego, e, no mesmo plano, a proteção do direito de personalidade decorren-te do dever de cuidado e assistência do empregador para com o trabalhador. Esse dever se justifica visto que o empregado coloca sua integridade física e moral a serviço do empregador para o fim da obtenção de lucro deste, portan-to a este cabe a proteção e assistência que não são compensadas com o mero pagamento dos salários contratados e demais direitos trabalhistas.

Na lição de Maria Celina Bodin de Moraes(7), do substrato material da dig-nidade humana decorrem quatro princípios jurídicos fundamentais, nomeada-mente os da igualdade (que, em suma, veda toda e qualquer discriminação arbitrária e fundada nas qualidades da pessoa), da liberdade (que assegura a autonomia ética e, portanto, a capacidade para a liberdade pessoal), da integri-dade física e moral (que inclui a garantia de um conjunto de prestações mate-riais que asseguram uma vida com dignidade) e da solidariedade (que diz com a garantia e promoção da coexistência humana, em suas diversas manifestações).

Todos os quatro princípios acima nomeados podem ser, de uma forma ou de outra, aqui lançados como uma contribuição significativa com o que estamos a perseguir. O da (i) igualdade nos leva a uma reflexão sobre as condições em que se dá a relação de emprego com vantagem excepcional por parte do empregador em detrimento do empregado e a impossibilidade de o empregado opinar sobre as suas condições de trabalho; o da (ii) liberdade alberga a hipótese da liberdade de contratar e nos conduz a uma reflexão sobre a participação do empregado no contrato entre a prestadora e a tomadora; o da (iii) integridade física e mo-ral, como já ilustramos acima com jurisprudência alemã, decorre da proteção ao direito de personalidade do empregado, e o da (iv) solidariedade implicaria em que aqueles que contrataram um terceiro hipossuficiente, sem que este pudesse opinar sobre as condições do contrato, e que da exploração do seu trabalho ob-terão lucro, devem responder com responsabilidade solidária.

Esse entendimento sobre a responsabilidade do empregador pode ser ilus-trado com jurisprudência do direito português quando trata da responsabilida-de objetiva por acidente do trabalho.

(...) Parte-se do princípio de que o operário, em virtude de sua familiari-dade com os perigos que o seu trabalho importa, tende a cometer des-cuidos que ocasionam acidentes, sendo justo que o patrão suporte os consequentes prejuízos, tal como recolhe os benefícios da actividade do operário. De acordo com isto se diz que a responsabilidade por acidentes do trabalho se funda no risco profissional (g. n.)(8)

(7) morAes, Maria Célina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: I. W. Sarlet (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 116 e ss.

(8) . AndrAde, Manuel A. Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 6/7.

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A contratação de um empregado com a cessão imediata para um empre-gador, tomador de serviços, sem a sua anuência, importaria em um jus variandi, violando o disposto no art. 468, da CLT. Por outro lado, a violação não desa-parece quando o empregado é cientificado com antecedência, visto que não tinha meios de influenciar na modificação do contrato de trabalho. É por isso que a pseudoconcordância do hipossuficiente nesses tipos de contrato não tem importância para o direito. Por óbvio que não se pode impor à parte que não podia atuar com isonomia no contrato qualquer tipo de ônus.

Contudo, a dinâmica das relações no mundo globalizado e capitalista e a concorrência mundial que prima pela chamada eficiência, impõem aos países periféricos modos diferenciados de alcançar a eficiência, o que daria um maior suporte ao aumento da produtividade. No entanto, essa combinação de fatores também pode ser utilizada para maximizar a concorrência desleal em países onde não há regulação nas relações de trabalho, como, v. g., na China. Essa constatação de um novo modelo de relações do trabalho no mundo globali-zado trouxe como imperativo que algum tipo de terceirização fosse admitida. Quando se fala em se admitir algum tipo de terceirização está-se a falar de uma verdadeira terceirização e não fraudes que comumente vemos no Brasil, onde a prestadora atua como mera empresa de interposição de mão de obra, visto que contrata um empregado e o repassa imediatamente a uma tomadora. Em uma verdadeira terceirização a prestadora de serviços repassa pessoal especializado, de forma temporária, porém a especialização deve ser a atividade principal da prestadora, e não o que temos visto, ou seja, a atividade da prestadora é o mero repasse de empregados. A especialização fica restrita ao nome da empresa.

Assentada a necessidade de algum tipo de terceirização, faz-se necessá-rio que haja uma rigorosa legislação para que esse benefício ao capital seja compensado com a não desregulamentação da legislação protetora e a criação de regras para que ao final, ao empregado se deem as mesmas garantias que deveria ter se prestasse serviços ao tomador, contratado por este, além do que deveria se lhe garantir todos os direitos, se mais benéficos, dos empregados que junto com ele trabalhavam na tomadora, para que se assegure o princípio da isonomia, insculpido na cabeça do art. 5º da Constituição Federal de 1988 e no Precedente Normativo n. 39 do E.TRT2, que assegura os mesmos direitos dos empregados da tomadora aos empregados da prestadora. Pontue-se que não se pode admitir terceirização na atividade-fim da tomadora.

Quando se fala em terceirização está-se a falar em modificação das con-dições de trabalho para o fim de se otimizar o lucro do empregador. Diante dessa conclusão, um outro viés do princípio da solidariedade, incrustado nas Constituições democráticas a partir do segundo pós-guerra, por conta da re-construção dos direitos humanos no mundo, não admite que isso seja feito minimamente em detrimento das condições de trabalho dos trabalhadores, ao revés, o princípio implicaria em que deveria haver benefícios compensatórios

A terceirizAção e A precArizAção nAs relAções de trAbAlho 23

aos empregados. Nesse sentido, jurisprudência como o Precedente Normativo n. 39 do TRT2, que postula pela aplicação das normas coletivas dos tomadores aos empregados terceirizados, surgiria como uma espécie de compensação, contudo não passa da afirmação de uma exigência legal de aplicação das nor-mas coletivas ao real empregador, não afastando o caráter solidário e inovador do referido precedente.

Ainda em sede de introdução, fazemos uma autocrítica de que talvez es-tejamos impregnados pelo pensamento científico kelseniano que propugnava pela neutralidade axiológica, o que nos conduzia a um caminho na tentativa de buscar em nossas interpretações assento para a justificativa de que a ciência do Direito é uma verdadeira ciência, visto que não se perderia em valores vãos insuscetíveis de positivação a merecer de Max Weber a desconfiança da confir-mação de que a ciência do Direito, ciência não é, diante da não possibilidade de se estabelecer standards de valores. Nesse quadro, a declaração de Boaventura de Sousa Santos, de que a afirmação discursiva dos valores é tanto mais neces-sária quanto mais as práticas sociais dominantes tornam impossível a realização desses valores é um discurso da pós-modernidade.

De fato, se concluirmos já na introdução desta monografia de que, em ver-dade, a precarização das relações de trabalho na terceirização decorre muito mais da precarização da interpretação do direito aplicado à espécie, forçoso seria concluir que vivemos numa sociedade dominada por aquilo que Tomás de Aquino designa de habitus principiorum, vale dizer, o hábito de proclamar princípios para não ter de viver segundo eles.

Essa nossa dificuldade em chegar a uma interpretação que melhor atenda às necessidades do Direito do Trabalho e alguns de seus institutos, decorre do fato de que o direito sempre tem à sua volta duas tendências antagônicas – a sistematização e a casuística –, como aponta Simone Goyarb-Fabre. O jurista trabalha com a sistemática e o juiz com ambas, no entanto na casuística pro-cura encontrar a melhor forma de aplicar a lei, não desprezando a sistemática na busca da Justiça, que é, senão, o equilíbrio por se ter em conta evidentes diferenças de poderio entre as partes litigantes que a abstração da lei não pôde captar, posto que são concebidas para fattispecie abstratas, porém determina-das. Assim, quando digo que alguns direitos foram titularizados e não podem mais ser retirados, isso se deu em função de uma interpretação axiológica e sistemática, bem como porque inseridos na consciência jurídica.

A questão a que estamos a enfrentar talvez nos remeta a um postulado da Constituição que é o dever-fazer, como bem acentua Pietro Perlingieri:

O caráter fundamental se identifica por meio da constitucionalidade: os princípios constitucionais, explicitamente expressos ou declarados me-diante referências explícitas, são os fundamentos de um sistema concebi-do hierarquicamente. De forma que, se caráter axiológico e racionalidade

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constituem as características comuns da Constituição e do ordenamento jurídico, é importante destacar somente que na Constituição prevalece a componente axiológica, e no ordenamento jurídico a componente racio-nal-normativa. A unidade do ordenamento não permite a sua separação da Constituição, nem mesmo a sua implícita submissão à normatividade. A interpretação lógica, axiológica e sistemática é um dado que diz respeito a todo o ordenamento. A normatividade constitui caráter fundamental da juridicidade e não somente o dever-ser, mas também o dever-fazer está presente na Constituição, como em todas as outras regras que compõem o ordenamento.(9)

A questão aqui em comento, por trazer à discussão a aplicação de direitos fundamentais, envolve um juízo de ponderação entre o direito em jogo e a auto-nomia privada particular. Contudo, nos parece que a questão de fundo envolve, isso sim, questão meramente de relação contratual e da necessidade de se es-tabelecer critérios de interpretação na relação de emprego, com as diferenças entre o poderio do empregador e a hipossuficiência do trabalhador.

Em verdade, a conclusão a que chegaremos é a de que, por conta de uma interpretação deficiente da relação contratual que se estabelece na terceiriza-ção, veremos que o imperativo de tutela denunciará que a dimensão pertinente ao princípio da proporcionalidade, qual seja, a proibição de insuficiência, não está sendo homenageada, porquanto os empregados na terceirização não re-cebem a proteção suficiente, mesmo tendo uma infinidade de direitos já por eles titularizados.

(9) perlingieri, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008. p. 205/206.

CAPÍTULO I

A influênCiA dAS CondiçõeS de trAbAlho e do ContrAto nA formAção de identidAde e

perSonAlidAde dAS peSSoAS

1. A RELAÇÃO ENTRE AS PARTES NO CONTRATO DE TRABALHO

A questão aqui por nós comentada não pode ser verificada sem uma apre-ciação da chamada relação jurídica que moldou o direito privado clássico, como assevera Manoel Antônio Domingues de Andrade:

A relação da vida social disciplinada pelo direito subjetivo e a correspon-dente a outra imposição a outra pessoa de um dever ou de uma sujeição.(1)

Contudo, esse dever de sujeição não pode extrapolar os limites da pró-pria necessidade de se cumprir o contrato nos limites em que fora firmado, limitando-se ao campo do razoável, não podendo levar uma das partes a uma inaceitável sujeição; a referida sujeição, meramente contratual, não pode resva-lar para uma sujeição que invada direitos fundamentais daquele que se sujeita, retrocedendo para aqueles tempos em que a pessoa humana podia ser dividida e explorada, sem as garantias de preservação de seus direitos fundamentais.

Na questão ora examinada, a sujeição do trabalhador à tomadora, se deu não por meio de uma relação jurídica firmada entre ambos, mas sim por meio de uma relação firmada entre duas empresas, prestadora e tomadora,

(1) Teoria geral da relação jurídica, vol. 1. Coimbra: Almedina, 1974. p. 2.

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portanto a relação de sujeição não pode ser a mesma quando a relação se dá entre as partes que firmaram originalmente o contrato de trabalho. E é exa-tamente por esse motivo que estamos batendo na tecla, insistentemente, que na terceirização já há de plano uma precarização da relação de trabalho, pelo modo de contratação e definição da responsabilidade da tomadora dos servi-ços. Na verdade, o que se estabelece não é a responsabilidade subsidiária da tomadora, mas sim uma dificuldade para o empregado em executar a toma-dora antes de exauridos os bens da prestadora. Vale dizer, como o fazemos ao longo desta monografia, ao empregado é imposto um ônus mesmo não tendo participado da relação jurídica que se estabeleceu com a tomadora dos servi-ços, em flagrante violação ao devido processo legal, com exporemos à frente. Ora, se esta liberdade das empresas em contratar mesmo sem a anuência do empregado é necessária para a viabilização da terceirização, impende que essa violação da liberdade do empregado seja compensada com a responsa-bilidade solidária daqueles que contrataram com violação consentida de um dos princípios gerais do contrato.

Assinale-se, por oportuno, que no Direito do Trabalho, essa sujeição na relação deve ser analisada à luz das peculiaridades que devem reger as rela-ções trabalhistas, tomando-se em consideração o fato da grande disparidade de poderio entre os empregadores e os trabalhadores. Foi com o reconhecimento dessa grande disparidade de poderio entre as partes que regras foram sendo estabelecidas para que esta não tivesse nenhuma influência no resultado final na busca do direito, ou tivesse a mínima influência possível.

É sabido que o pagamento das verbas trabalhistas, ao final do contrato de trabalho, decorre de um imperativo moral, haja vista que nunca se concebeu que fosse legítimo alguém prestar serviços para um outro por determinado período de tempo e sair sem receber qualquer tipo de compensação. Dessa maneira, não poderia, em princípio, se impor qualquer sacrifício ao empregado no momento de recebimento de seus consectários legais, lançando-se a totali-dade da responsabilidade a seus empregadores que exploraram a sua força de trabalho. Disso se extrai que a responsabilidade dos empregadores não pode trazer qualquer tipo de restrição ao pagamento das verbas trabalhistas do em-pregado, nem mesmo temporal, sob pena de se repassar a este parte do risco do empreendimento e da responsabilidade que dele se extrai. Conclui-se daí que o benefício de ordem, admitido inclusive pela Súmula n. 331 do TST, está em dissonância com os princípios gerais que informam o Direito do Trabalho, sobretudo quando se toma em consideração a relação assimétrica de poder em que está inserido o contrato de trabalho. Admitir, então, além do benefício de ordem que, uma vez constatado o inadimplemento por parte da prestadora que se tenha que desconsiderar a personalidade jurídica da prestadora para invadir os bens de seus sócios, como têm admitido alguns tribunais, é navegar em uma perplexidade jurídica. Como exporemos abaixo, o benefício de ordem é um benefício ao credor, portanto não pode ser transportado para a Justiça do

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Trabalho como benefício aos devedores como analogia in malam parte, inibindo a aplicação do princípio da norma mais favorável.

Contudo, para se impor um certa igualdade nos contratos onde há diferen-ças de poderio entre as partes, impõe-se um atitude comissiva do Estado. Nesse sentido pontua José Antônio Gedel(2),

O dirigismo e a Justiça contratual, o princípio da boa-fé, a observância aos bons costumes e a intervenção judicial no conteúdo dos contratos, para adequá-los a circunstâncias econômicas e impedir a sujeição do contratan-te economicamente mais fraco, se instauram como ideais e práticas na juris-prudência civilista desde o final do século XIX e recebem aprimoramento teórico ainda na primeira metade do século XX, dando sentido à noção de autonomia privada, restringindo a liberdade contratual, funcionalizando o contrato, aproximando a igualdade formal da igualdade material.

Para abrilhantar suas lições o mesmo autor traz à colação as lições de Francisco Amaral, in verbis:

“Reconhecida constitucionalmente a liberdade de iniciativa econômica, in-diretamente se garante a autonomia privada, em face da íntima relação de instrumentalidade existente entre ambas. Conceitos conexos, mas não coin-cidentes, a autonomia privada tem caráter instrumental em face da liberdade de iniciativa econômica, pelo que as limitações que a esta se impõem também atuam quanto àquela. E esses limites são a ordem pública, na sua espécie de ordem pública e social de direção, sob a forma de intervencionismo neolibe-ral ou de dirigismo econômico, e os bons costumes, as regras morais, sendo que o intervencionismo neoliberal não se opõe à liberdade contratual à livre concorrência, apenas visa evitar a que for desleal, e a proteger o consumidor, enquanto que o dirigismo, opondo-se à liberdade contratual, submete-se às exigências de planificação econômica, imperativa ou indicativa... O exercício da liberdade contratual, por exemplo, pode levar os segmentos sociais mais carentes de recursos e, por isso mesmo, desprovidos de poder de confronto ou de negociação, a acentuados desníveis econômicos, do que é exemplo a miséria das classes menos favorecidas, o que leva o Estado a intervir para equilibrar o poder das partes contratantes, estabelecendo normas imperati-vas em matéria de ordem pública ou de bons costumes. O legislador limita, assim, a autonomia privada, para o fim de proteger os polos mais fracos da relação patrimonial, principalmente em matéria de contratos (locação, em-préstimos, seguros, operações financeiras típicas, etc.).

(2) gediel, José Antônio Peres. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. In: Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Coordenador Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 151.

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2. VALIDADE DA LEI, SEGURANÇA JURÍDICA E LUTA POR RECONHECIMENTO NAS RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS DE PODER

Acompanhando os debates acerca do PL n. 4.330/2004 somos tomado por perplexidades, sendo uma delas decorrente do fato de que não se vê falar sobre a validade da lei que passará a reger os contratos terceirizados, como se a vali-dade se mostrasse suficiente diante do que pregava Kelsen, bastante, para tan-to, a sua aprovação por um órgão competente (o Parlamento). Disso decorreria, necessariamente, que a interpretação da lei seguiria os cânones da dogmática jurídica,(3) tão ao gosto da nossa Suprema Corte, inclusive em matéria trabalhista, com vemos no julgamento que reduziu a prescrição do FGTS para cinco anos. Contudo, quando se trata de legislação para reger uma relação assimétrica de poder – como a relação de emprego –, o legislador não pode simplesmente, na feitura da lei, se esquecer de que as conquistas legislativas dos trabalhadores que possibilitaram a mitigação da diferença entre as partes contratuais se incrustaram no seu patrimônio com impossibilidade de retrocesso, visto que um retrocesso nos levaria a um questionamento de se os direitos fundamentais contemplam ou não as diferenças, nos parecendo que a ultima ratio dos direitos fundamentais é justamente a de salvaguardar que as diferenças não sejam decisivas no desate das demandas. Quando o PL ataca as condições de trabalho tentar destruir um paradigma que se consubstanciou nas condições mínimas de trabalho suficien-tes para amenizar os efeitos da mais-valia e para contemplar um asseguramento dos direitos de personalidade do empregado no ambiente de trabalho. Segundo Boaventura de Souza Santos, os paradigmas não morrem, são substituídos. Por isso, quando o PL tenta matar um paradigma, retorna ao período pré-oitocentista do individualismo, quando não havia a proteção do Estado, por meio de uma in-tervenção estatal. Com a morte do paradigma, retornamos a uma fase em que os trabalhadores, para além da busca pela reconquista de seus direitos teriam que retroagir a uma fase de luta por reconhecimento, para que fossem reconhecidos como pessoa unitária onde seus direitos fundamentais não podiam ser separa-dos para uma exploração como meio, sem uma finalidade justificada no Direito. O modo como os direitos estão sendo retirados no PL se consubstanciam numa

(3) kAufmAnn, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 79. Kaufmann refere que “os Critical Legal Studies fez frente à Economic Analysis of Law e com isso ao positivismo jurídico empírico. Por outro lado rejeita a pretensão da dogmática jurídica de ser um método autónomo de determinação do direito e entende este como um conglomerado de regras sociais. De momento, porém, só dificilmente se podem fazer generalizações. Robert Unger, um dos principais representantes dos Critical Legal Studies, procura sobretudo a fundamentação duma teoria de emancipação do Homem. Para isso, exerce uma crítica radical do tipo de pensamento jurídico tradicional, que, na sua opinião, se expressa especialmente no formalismo e objectivismo. Também disso se trata na controvérsia entre a hermenêutica jurídica e a teoria da argumentação jurídica sobre as quais já antes se disse algo. O movimento dos Critical Legal Studies ainda está pouco desenvolvido; é todavia possível antever que os seus próximos desenvolvimentos irão merecer cuidadosa atenção.

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reificação institucionalizada. Dissemos reificação institucionalizada, visto que esta decorreria da visão de mundo da maioria do Congresso Nacional. Axel Honneth(4) fiando-se nas licções de Lukács assim classifica a reificação, in verbis:

For Lukács doesn’t regard reification as a violation of moral principles, but as a deviation from a kind of human praxis or wordview essentially characte-ristic of the rationality of our form life. The arguments he directs at the capi-talist reification of social life possess only an indirectly normative character, in that they result from the descripite elements of social ontology or anth-ropology that endeavors to comprehend the foundations of our existence.

Os termos em que o PL foi colocado nos remete a uma discussão sobre a racionalidade do capitalismo, portanto se a racionalidade da lei implica, a priori, num afastamento da racionalidade do capitalismo. Para Horkheimer e Adorno, a racionalidade como um todo reduz-se a uma função de adaptação à realidade, à produção do conformismo diante da dominação vigente. Essa sujeição ao mun-do tal qual aparece não é mais, portanto, uma ilusão real que pode ser superada pelo comportamento crítico e pela ação transformadora: é uma sujeição sem alternativa, porque a racionaldade própria da Teoria Crítica não encontra mais ancoramento concreto na realidade social do capitalismo administrado, porque não são mais dicerníveis as tendências reais da emancipação(5).

Podemos então afirmar que com a constitucionalização do Direito do Tra-balho, as condições de trabalho tornaram-se um paradigma na relação de em-prego, um freio constitucional às diferenças de poderio entre as partes e uma espécie de contraparadigma do “paradigma dos direitos patrimoniais”.

Da mesma forma, temos acompanhado a discussão na mídia sobre o pro-jeto de lei ora em comento, quando então especialistas em direito dizem que os empregadores terão mais segurança para investir diante de regras mais claras trazidas pela legislação. Por certo, quando estão assim dizendo não estão se refe-rindo à segurança jurídica que se estabelece na relação contratual, visto que esta retira a sua conceituação do disposto no art. 3º, inciso IV e na cabeça do art. 170, da CF/88 que requerem sempre a promoção da valorização do trabalho humano.

3. A TUTELA DO DIREITO DE PERSONALIDADE NAS RELAÇÕES DE EMPREGO

Como já tivemos ocasião de observar acima, os deveres de cuidado e as-sistência que o empregador tem que ter para com o empregado se configuram

(4) honneth, Axel. Reification. A neww look at an old idea. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 21.

(5) Apud honneth, Axel. Luta por reconhecimento. São Paulo: Ed. 34. Tradução de Luiz Repa. 2003. p. 11/12.