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1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO A TORTURA E SUAS CONSEQUÊNCIAS , NA PRÁTICA DO CRIME NO DIREITO PENAL BRASILEIRO. ACADEMICO : DANIEL RAMOS DE ALMIRON Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Professor Eduardo Erivélton Campos ITAJAÍ, SC. Novembro 2009.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS

CURSO DE DIREITO

A TORTURA E SUAS CONSEQUÊNCIAS , NA PRÁTICA DO CRIME NO DIREITO PENAL BRASILEIRO.

ACADEMICO : DANIEL RAMOS DE ALMIRON

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel

em Direito.

Orientador: Professor Eduardo Erivélton Campos

ITAJAÍ, SC. Novembro 2009.

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AGRADECIMENTO

A DEUS : “ Bem- aventurados os que têm fome de

justiça, porque eles serão fartos”.( Mateus 5:6)

Agradeço a Deus pela conquista e realização;

por me dar força e coragem para enfrentar cada

dificuldade que encontrei durante estes anos que

durou o curso. Obrigado Deus pela conquista e

realização.

Ao companheiro de jornada o Professor

Eduardo Erivélton de Campos pela reflexão

conjunta, sugestões e revisão crítica, com imensa

gratidão pela orientação precisa e confiante, e pela

atenção ao trabalho e profundo respeito.

AOS AMIGOS E COMPANHEIROS DE TURMA:

Compartilhamos momentos fáceis, alegres,

tristes e difíceis, mas enfim chegamos ao final deste

caminho.

Sempre tenham em mente que os campos, as

vilas, as cidades; o chão onde pisamos está cheio

de trilhos, de ruas, de avenidas: caminhões que vão

e vem, levam e trazem nossos passos, mas nós

fazemos à direção e inventamos o destino; se

encontrarem obstáculos por esse caminho longo,

pedregoso, com ramos de espinhos a sua beira, não

desanimem e sigam em frente. Espero que vocês

não tenham medo do caminho só porque não sabem

onde vai chegar, pois a resposta vem a cada passo.

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DEDICATÓRIA

A FAMILIA: As grandes vitórias são a soma das pequenas

vitórias do dia-a-dia.

Um obrigado especial os meus pais, João e Alda (in

memoriam), e minha família que sempre me

acompanharam nesta jornada, aconselhando-me a nunca

desanimar, confiar em Deus, buscar sempre o meu ideal,

ter garra, respeito e compreensão, não se dar por

vencido, lutar com humildade; e através da luta e da

humildade ultrapassar qualquer barreira e vencer a todos

os obstáculos que porventura eu encontrar.

A minha esposa Ana Paula, que sempre esteve

junto nos momentos mais difíceis e financeiros aonde

cheguei a fraquejar pensando em abandonar a faculdade,

mas veio com seu ombro amigo e companheiro dando

forças para continuar a luta que estou agora vencendo.

Para minhas filhas; Julia e Laura, que foi o principal

motivo da minha batalha e pensando em dar o melhor pra

vocês minhas filhas que as amo, toda vez que pensei em

desanimar, busquei em meus pensamentos aquele

verdadeiro afeto, para continuar essa árdua e prazerosa

luta diária que estou agora concluindo.

E aos meus colegas de trabalho, obrigado por terem

acreditado em mim, também me apoiaram, incentivando o

tempo todo, tirando serviço, e compartilhando com as

alegrias e dificuldades que eu encontrei, e assim o meu

sonho, esta se realizando, graças à força conjunta de

vocês, meus queridos amigos.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de

toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

ITAJAÍ, SC, NOVEMBRO DE 2009.

DANIEL RAMOS DE ALMIRON Graduando

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do

Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando, Daniel Ramos de Almiron, sob o título

“A Tortura e suas conseqüências, e a tipificação do crime no Direito Penal ”, foi

submetida em 2009 à banca examinadora composta pelos seguintes professores:

Eduardo Erivélton de Campos, Professor orientador e Presidente da banca,

Professor, Mestre: Emerson de Morais Granado, Examinador, e aprovada com a

nota [ ]

([ ]).

ITAJAI, 2009.

[Professor Eduardo Erivélton de Campos] Orientador e Presidente da Banca

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SUMÁRIO

SUMÁRIO ...........................................................................................7 RESUMO.............................................................................................8 INTRODUÇÃO ..................................................................................10 CAPITULO 1 .....................................................................................17 ASPECTOS HISTÓRICOS DA LEI DE TORTURA...........................17 1.1 FONTES HISTÓRICAS ...............................................................17 1.2 FONTES HISTÓRICAS NO BRASIL...........................................26 1.3 HISTÓRICO DA LEI Nº 9.455/1997 ............................................26 CAPITULO 2 .....................................................................................28 O DELITO DE TORTURA NO DIREITO BRASILEIRO.....................28 2. 1 CONSIDERAÇÕES GERAIS .....................................................28 2.2 BEM JURÍDICO PROTEGIDO E SUJEITOS DO DELITO ..........33 2.3 A TORTURA E A LEI 9.455/97 ...................................................34 2.4 MÉTODOS DE TORTURAS E SUAS CONSEQÜÊNCIAS .........38 2.4.1 PAU DE ARARA........................................................................42 2.4.2 O CHOQUE ELÉTRICO ...........................................................40 2.4.3 O BANHO CHINÊS OU AFOGAMENTO .................................41 2.4.4 O TELEFONE...........................................................................41 2.4.5 GELADEIRA ............................................................................41 2.4.6 PROCESSO CORCOVADO.....................................................44 2.4.7 SABÃO EM PÓ ........................................................................44 2.4.8 CHURRASQUINHO .................................................................42 2.4.9 ALGEMAS................................................................................44 2.4.10 GINÁSTICA............................................................................44 2.4.11 TENAZES E OUTROS INSTRUMENTOS CORTANTES .......45 2.4.12 INSETOS E ANIMAIS ............................................................45 2.4.13 PRODUTOS QUÍMICOS ........................................................45 2.4.14 LESÕES FÍSICAS..................................................................45 2.4.15 A CADEIRA DO DRAGÃO.....................................................46 2.4.16 PSICOLÓGICA ......................................................................46 2.4.17 SACO PRETO...........................................................................47

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CAPITULO 3 .....................................................................................44 TIPIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TORTURA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS................................................................44 3.1 TORTURA PARA OBTER INFORMAÇÃO OU CONFISSÃO....49 3.2 TORTURA PARA A PRÁTICA CRIMINOSA .............................49 3.3 TORTURA EM RAZÃO DE PRECONCEITO RACIAL OU RELIGIOSO .........................................................................47 3.4 TORTURA PRATICADA PELO GARANTE ...............................48 3.5 SUBMISSÃO DE PESSOA PRESA OU SUJEITA A MEDIDA DE SEGURANÇA A SOFRIMENTO ILEGAL ...........................49 3.6 OMISSÃO CRIMINOSA .............................................................51 3.7 CRIMES COM RESULTADO LESÃO CORPORAL GRAVE, GRAVÍSSIMA OU MORTE .........................................52 3.8 CAUSAS DE AUMENTO DE PENA...........................................55 3.9 EFEITOS DA CONDENAÇÃO ..................................................56 3.10 VEDAÇÃO DOS BENEFÍCIOS LEGAIS ...................................57 3.11 REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA..................................59 3.12 O PRINCÍPIO DA EXTRATERRITORIALIDADE.......................60 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................61

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RESUMO

O propósito deste estudo foi analisar a tortura e sua evolução histórica, num

contexto voltado para os direitos humanos e a sociedade e a relevância do assunto

no contexto nacional e internacional. O objetivo foi o de contribuir para a reflexão do

tema, a partir de uma nova visão e atitudes pautadas no respeito e na promoção dos

direitos humanos. Traçando um paralelo entre a tortura desde o passado até o

presente e que ocorre ferindo os direitos e garantias dos povos estabelecidos em

acordos internacionais. Para garantir a prevalência da vontade do Estado em

preservar o interesse comum e todas as diferenças existentes em sociedade, busca-

se a cidadania e respeito à dignidade da pessoa humana, pelos direitos humanos

fundamentais e de ordem pública, manifestada no escopo da lei maior; Conseguir

mudanças de mentalidade, de modo que o cidadão se sinta protegido, tenha os seus

direitos garantidos e seja tratado com a dignidade que merece pela sociedade,

norteado pelo ordenamento jurídico brasileiro. O estudo realizado veio a confirmar as

hipóteses sendo que, a tortura, mesmo contra a lei, ainda é usada como meio de

obter informações e confissões, por isso necessita-se de processo de mudança e

revisões políticas, conceituais e de atitudes, para que possa acompanhar a evolução

da sociedade; Por fim buscou-se trazer a tona, a doutrina e a Lei, para fazer um

paradoxo histórico, visando sempre à obtenção de conhecimento, o que foi de

grande valia. É respeitando os tratados internacionais e as garantias constitucionais,

que se pode chegar a tão sonhada paz social, aliada ao convívio pacífico entre

todos.

Palavras-chave: tortura; direitos; consequências .

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INTRODUÇÃO

Esta Monografia tem como escopo principal, estudar a prática da Tortura, o

seu surgimento, as formas mais comuns empregadas no inquérito policial, às s

modalidades e o seu objeto na atualidade, verificando a eficácia de aplicação da Lei

de Tortura e os Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

Os objetivos estão em elaborar um traçado minucioso do tema, por intermédio

da análise doutrinária, dos precedentes históricos, dos instrumentos de tortura em si,

do bem jurídico protegido, a dignidade da pessoa humana sob a ótica dos Direitos

Humanos fundamentais. Apesar de estar em evidência, o assunto é preocupação

reinante em todos os grupamentos sociais, desde o mais simples até os mais

complexos, estando em pauta à contenção do poderio estatal; e assim, contribuir

para a reflexão sobre o tema, a tortura e suas conseqüências, procurando buscar

uma nova visão. Identificar os direitos humanos fundamentais previstos na legislação

maior do país e que também são previstos na Declaração Universal dos Direitos

Humanos e os conhecimentos científicos e padrões éticos fundamentais, inerentes

aos Direitos Humanos.

Para tanto, principia-se no capitulo 1 com os aspectos históricos da lei e da

tortura, onde a tortura era vista como meio meramente processual, de “buscar a

verdade”, a qualquer custo. A história da civilização demonstra que, para concretizar

a tentativa da humanidade coexistir em sociedade, estabeleceram-se leis e regras

de conduta para serem seguidas por todos os seres humanos, as quais possuíam

destinatários certos e generalizados: as camadas mais baixas e desprovidas de

poder social; tais leis, na realidade, se revelam como instrumento para que as

classes dominantes atingissem seus objetivos.

De tal modo, observa-se que desde o Código de Hamurabi, passando pela

Carta de João Sem Terra, em 1215, as Revoluções Americana e Francesa, até a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia da

Organização das Nações Unidas, em 1948, um longo trecho foi percorrido, com o

objetivo de dar ao ser humano, amplas condições de viver, garantindo e respeitando

direitos e, principalmente, visando a sua dignidade de pessoa humana. Assim, neste

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estudo será abordado o aspecto histórico, vindo desde a Antigüidade até os nossos

dias, traçando um panorama geral dos direitos humanos, mostrando que o assunto

não é tão atual como pensam algumas pessoas.

No capitulo 2 abordou-se o delito de tortura no direito brasileiro onde através

da aplicação da tortura, o indivíduo é ultrajado na sua condição humana, tendo que

passar pelos mais diversos tormentos, atentando contra sua sanidade física e

mental, subjugando assim a sua condição de pessoa humana de direito; abordando

os métodos de tortura e suas conseqüências.

O Estado brasileiro reconheceu as dificuldades na erradicação da prática da

tortura no Brasil, em face da corrupção policial e o abuso de autoridade, que

gravitam nos organismos policiais, os quais aplicam a mesma prática em relação às

pessoas que se encontram nos ambientes penitenciários, como forma de castigo

como medida disciplinar.

O capitulo 3 apresenta a tipificação dos crimes de tortura para obter

informação ou confissão; para a prática criminosa; a tortura em razão de preconceito

racial ou religioso; a tortura praticada pelo garante; a submissão de pessoa presa ou

sujeita a medida de segurança a sofrimento ilegal; a omissão criminosa; os crimes

com resultado de lesão corporal grave, gravíssima ou morte; as causas de aumento

de pena; os efeitos da condenação; a vedação dos benefícios legais; o regime de

cumprimento da pena; o principio da extraterritorialidade e as conseqüências de

cada tipificação perante a lei.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações Finais,

nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da

estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a prática da

Tortura e os Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes hipóteses:

1. Verificar a possibilidade de traçar um paralelo entre a

tortura desde os tempos da antiguidade até os tempos atuais,

abordando os Paradigmas, que ocorrem na polícia e

sociedade, analisando a aplicabilidade dos Direitos nas

instituições policiais e sociedade civil.

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2. Observar se os direitos e garantias de dignidade da

pessoa humana, como direito fundamental comum a todos os

povos, que são objeto de texto constitucional, da maioria das

constituições dos países que ratificaram o texto de coibição à

prática de tortura são observados também no Brasil;

3. Preservar o interesse comum, as diferenças sociais,

religiosas, culturais, e raciais, manifestada no escopo da lei

maior, com dignidade da pessoa humana e os direitos

humanos fundamentais de ordem pública buscando a

tipificação dos crimes de tortura e as conseqüências para o ser

humano.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação1

foi utilizado o Método Indutivo2, na Fase de Tratamento de Dados o Método

Cartesiano3, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia é

composto na base lógica Indutiva.

O estudo procurará situar-se no aspecto conceitual, a classificação, a

natureza e eficácia, a relatividade e as características da tortura e dos direitos

humanos, como forma de sintetizar e tornar o entendimento simples de uma matéria

complexa, o que se pode observar é uma visão estereotipada do assunto.

Uma sociedade que tem a necessidade de mudanças, para acompanhamento

da evolução contemporânea, transpor a barreira dos antigos paradigmas é de suma

importância. Portanto, um tema de grande significado onde será situada a

problemática dos paradigmas, sua influência nas organizações, como quebrá-los e

caminhar a passo firme em direção ao crescimento.

1 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente

estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.

2 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104.

3 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26.

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O presente estudo justifica-se pelo reconhecimento e o respeito à dignidade

inerente a todo ser humano e aos seus direitos iguais e inalienáveis que constitui o

fundamento da liberdade, da justiça e da paz em todo mundo.

O desconhecimento e o desrespeito a tais direitos conduziram a atos

bárbaros que revoltaram a consciência da humanidade e provocaram o advento de

novas leis, com o objetivo de garantir a todos os homens, a liberdade de expressão,

de manifestação, de crença, de locomoção e, principalmente, com a miséria, com a

tirania e com os extermínios individuais ou em massa.

Com esta nova visão, os brasileiros tiveram elencados, em várias legislações,

os seus direitos e garantias individuais e coletivas, buscando criar condições que

permitissem a cada um gozar a plenitude de seus direitos econômicos, políticos,

sociais e culturais.

Não obstante as conseqüências do fortalecimento democrático e dos ideais

explicitados na Carta Magna, o crescimento da criminalidade mundial, a necessidade

do reconhecimento do Brasil como país protetor dos interesses sociais de seu povo

e a pressão dos organismos internacionais que tratam de questões humanitárias,

também levaram e forçaram o país a adotar uma política de proteção dos direitos e

da dignidade da pessoa humana, e, neste contexto, faz-se necessário reforçar e

difundir a todos as noções básicas e elementares de proteção e respeito aos seres

humanos.

A metodologia será conduzida através de pesquisa bibliográfica, tendo por

objetivo conhecer as diferentes contribuições científicas disponíveis sobre

determinado tema.

Buscou-se mediante pesquisa qualitativa, bibliográfica junto com Triviños17

(1995, p. 129) idéia de que:

A pesquisa qualitativa parte também da descrição que intenta captar, não só a aparência do fenômeno, como também sua essência. Busca, porém, as causas da existência dele, procurando explicar sua origem, suas relações, suas mudanças e se esforça por instruir as conseqüências que terão para a vida humana.

Por ser de natureza teórica, a pesquisa bibliográfica é parte obrigatória de

outros tipos de pesquisa e é por meio dela que se toma conhecimento de produção

existente e a atualização do pesquisador é constante. O domínio dos autores pode

ajudar na sua criatividade, porque, por meio deles, chega-se, a saber, o que se

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produziu de importante sobre o objeto de estudo e os avanços realizados a respeito

dele. É importante saber que a pesquisa bibliográfica abrange toda a bibliografia já

tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, jornais,

revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, entre outros.

O suporte à pesquisa bibliográfica está em Gil (1994, p.48), como instrumento

cientifico para a prática desenvolvida. Segundo o autor, “a pesquisa bibliográfica é

desenvolvida a partir do material já elaborado, constituindo-se principalmente por

livros e artigos científicos”.

Portanto, ela dá suporte a todas as fases de qualquer tipo de pesquisa, uma

vez que auxilia na definição do problema, na determinação dos objetivos, na

construção de hipóteses, na fundamentação da justificativa da escolha do tema e na

elaboração do relatório final.

A pesquisa bibliográfica aplica-se a uma busca de novos conhecimentos e de

algum conhecimento pré-existente. Sendo um dos instrumentos para levantamento

de dados que permite um diagnóstico com maior precisão, realizado através de

consulta a todo tipo de material escrito. É basicamente um processo de

aprendizagem tanto do indivíduo que a realiza quanto da sociedade na qual esta se

desenvolve, onde será mostrado como é a situação da aplicação dos Direitos.

A rapidez no trabalho, necessidade de aprimoramento, valoração dos direitos

humanos dentro do âmbito social, entre outras exigências desta sociedade pós-

industrial e tecnológica, gerou um novo código de valores que permeou e permeia o

comportamento social.

O estudo em pauta foi desenvolvido seguindo as seguintes etapas: 1ª

definição da temática e a busca de materiais científicos que dessem o aporte

necessário ao estudo, e o tipo de pesquisa a ser feita. 2ª etapa foi à escolha dos

autores que seriam a base do trabalho, e mediante a visão destes, elaborar a

embasamento teórico. 3ª etapa fazer as conclusões do trabalho, após o estudo

realizado através dos autores.

Portanto, fará um paralelo entre a tortura e suas conseqüências.

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CAPITULO 1

ASPECTOS HISTÓRICOS DA LEI DE TORTURA

1.1 FONTES HISTÓRICAS

Neste caminhar da humanidade, as fontes bibliográficas servem para

possibilitar a compreensão dos motivos pelos quais determinadas práticas que em

determinado momento eram lícitas, institucionalizadas, com a evolução das

sociedades passaram a ser ilícitas e criminalizadas como a tortura.

“A tortura, forma de violência, parece ter se entranhado no homem ao

primeiro sinal de inteligência deste. Só o ser humano é capaz de prolongar o

sofrimento de animal da mesma espécie. Os serem Inferiores ferem ou matam a

caça.”4

A tortura acompanha o homem desde os seus primórdios, e não o abandonou

em momento algum durante sua evolução histórica, poderá perceber que até os dias

atuais se tem notícia da prática da tortura, quer seja no âmbito do interrogatório no

interior de nossas delegacias, quer no âmbito do Poder Paralelo criado pelo

narcotráfico, onde o chefe do bando criminoso instituiu a pratica da tortura tanto

como forma de punição quanto de coerção para bandos rivais.

“Assim, longe de ser uma conduta ignóbil de nossos antepassados, a tortura

continua viva no relacionamento poder político-cidadão, merecendo postura enérgica

das instituições estatais, no sentido de ao menos atenuá-la, já que o desejo do

homem de oprimir seu semelhante é um mal que sempre acompanhará a raça

humana.”5

4 FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aspectos jurídicos-penais da tortura/Paulo Sérgio Leite Fernandes, Ana Maria Bebette Bajer Fernandes. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições Ltda., 1996. 5 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura. São Paulo, RT, 2002. p. 9.

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A tortura, ainda quando não aparente, é sempre uma violência; como os

tratamentos psiquiátricos, o silêncio, e a tortura não estão presentes só na violência

física, mas também na violência psíquica, que é a coação.

“Agregue-se, contudo, que a tortura, por representar um gravíssimo atentado

à dignidade humana, passou a ter uma dimensão internacional, de forma que o

interesse na sua repressão atingiu um interesse supranacional, [...]”.6

A tortura é um ato repugnante que atenta a dignidade humana que não é

mais aceito na sociedade e tão pouco por defensores dos direitos fundamentais e

humanos

“Soljenitsin observa que, de todas as formas de opressão, a prática da tortura

é a que mais fundo procura a desintegração da liberdade, marco fundamental do ser

humano” 7. O assalto à intimidade do indivíduo, desnudando-o até a degradação, ao

lado dos inventos que acabam por lograr o domínio absoluto sobre a vida.

Como querem uma confissão, os torturadores tentam evitar a morte da vítima, mas trabalham nos limites. Enquanto houver um sopro de vida no corpo do torturado, o pau canta. Descuidos, como o de Fortaleza, são tidos como acidentes de trabalho. Um caso horroroso, mas exemplar sobre os limites, ocorreu há dois anos com a dona de um salão de beleza do Distrito Federal, a cabeleireira Ildecy Pereira dos Santos, de 37 anos. Foi o pior dia de sua vida. A tortura a que foi submetida fez com que perdesse a vesícula, ainda tem marcas das auto-unhadas que deu no corpo, provocadas pelas descargas elétricas, e só dorme à base de Lexotan. Acusada de pertencer a uma quadrilha de ladrões de carros, Ildecy foi levada para a 13ª delegacia da cidade, onde foi torturada por quatro homens. O primeiro soco levou no nariz, depois de negar que integrasse qualquer quadrilha. “Confessa logo, sua vagabunda!”, ameaçou outro agente da lei, em tom mais ameaçador que o primeiro. Depois de uma pancadaria intensa, Ildecy desmaiou pela primeira vez. Voltou a si com um balde de água que lhe atiraram sobre o corpo. Obrigada a tirar os sapatos a ficar sobre uma poça de água, foi submetida a uma sessão de choques que provocou seguidos desmaios. A cada descarga, uma pergunta. O sangue, que jorrava até então pelo nariz, passou a escorrer também pelo ouvido. A última descarga foi tão forte que seu corpo deixou o chão. Quando caiu, vomitava. Ao ser acordada novamente com água, um dos torturadores retirou cinco das seis balas de um revólver, encostou o cano em sua cabeça e acionou o gatilho pela primeira vez. “E aí, vai falar ou prefere morrer?” Ildecy já não falava direito, apenas balbuciava. O policial disparou um segunda vez. Como ela nada dizia, levou chute nas costas e desmaiou de novo.

6 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 9. 7 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análose da Lei nº 9.455/97. Campinas: Romana, 2004. p. 19.

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Ao acordar,. Foi colocada no pau-de-arara e lá ficou levando chutes e pancadas nas costas, até desmaiar mais uma vez. No final da tarde, quando acordou pela última vez, estava com a camisa e a calça totalmente ensangüentadas, sentia dores horríveis no corpo e tremia de febre. Sentiu que algo fora enfiado e retirado de seu ânus, que sangrava. Tentou levantar-se, mas não conseguiu. A sala cheirava a urina, pois os choques e a dor provocaram a incontinência. Numa última tentativa de faze-la falar, os agentes ameaçaram pegar seus três filhos, todos menores. “Vamos transformar as meninas em prostitutas e o garoto em v...” Ildecy deu-se por vencida. “Faço o que quiserem.” Os policiais apresentaram um depoimento por escrito e ela assinou. Trabalho encerrado. Deram-lhe um copo d´água, uma Novalgina para a febre e foram embora. Um dos algozes entrou na sala e comentou: “É hora de tomar banho, sua imunda!”8

É uma crueldade consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a

tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a

confissão do crime, quer para esclarecer as condições em que ocorreram os fatos,

quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, mas dos

quais poderia ser culpado, quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam

que a tortura purgasse a infâmia.

A tortura com maior freqüência, está ligada a detenção e processos criminais,

o que estabelece um elo entre a condenação da tortura, a defesa das liberdades

individuais e o direito a um julgamento justo. Portanto essa barbárie, própria dos

inquéritos medievais, de submeter o suposto autor de um fato delituoso ao suplício,

para confessar o crime, ou como forma de expiação, ainda é comum no cotidiano

policial.

”Desde a pré-história da humanidade, o homem passou a viver em grupos

e, em decorrência da sua própria evolução natural, regras de condutas foram

surgindo e sendo impostas por estas sociedades primitivas, visando à própria

sobrevivência da espécie.” 9

Relatam as Escrituras Sagradas (Gen, 2,15-17) que Deus, ao criar o homem,

o colocou no Éden para vigiá-lo e guardá-lo, dando-lhe este preceito: “Podes comer

do fruto de todas as árvores do jardim, mas não comas do fruto da árvore da ciência

do bem e do mal, porque no dia em que comeres, morrerás indubitavelmente” 10.

8 Revista Veja. V. 28, nº 44, p. 28-35, 1º nov, 1995. 9 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 13. 10 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura: Comentários a Lei 9455/97. Brasília Jurídica, 1997,

p. 15.

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17

Surge daí, sob a visão histórica religiosa, o primeiro preceito a ser observado e a

primeira sanção cominada: a pena de morte.

O Jurista Mauro Faria Lima, em sua obra Tratamento do Injusto Penal da

Tortura, traz que os relatos antropológicos revelam que o homem primitivo vivia em

pequenos grupos, com laços muito fortes entre os seus componentes, já que era

impossível a vida fora dele, em face dos perigos reais e imaginários. De entes

sobrenaturais, que não apenas protegia, como igualmente castigavam o grupo,

dependendo do comportamento dos seus membros.11

Nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico (vedas) e

religioso, a peste, a seca e todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como

resultantes de forças divinas (totem) encolerizadas pela prática de fatos que exigiam

reparação. “Para aplacar a ira dos deuses, criaram-se proibições (religiosas, sociais

e políticas) conhecidas como “tabu”, que não obedecidas acarretavam castigo”.12

“Assim, pode-se afirmar que as primeiras proibições e castigos advieram das

relações totêmicas”.13

As ofensas ao totem ou as condutas que se consubstanciavam em

desobediência ao tabu eram severamente punidas, geralmente com a morte, cujos

castigos eram determinados pelo chefe do grupo, que, também era o chefe religioso.

“A execução da reprimenda em alguns povos era, de regra, coletiva, sendo que a

lapidação [...]”14 foi uma das mais antigas formas de execução coletiva.

Por volta do ano 2.000 a.C. surge a primeira fórmula de justiça penal, a Lei de

Talião, que penetrou todas as leis antigas, com reflexões até nas leis penais

contemporâneas. Assim sua fórmula é encontrada no Código de Hamurabi (séc. XVII

a.C.), no livro do êxodo, Levítico e até no Código Espanhol de 1870.

Apesar da severidade das reprimendas o Talião de inicio representou grande

avanço: limitava a reação do ofendido: “alma por alma, olho por olho, dente por

dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, chaga por chaga,

equimose por equimose”, criando o critério da proporcionalidade. “Mesmo sendo um 11 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 13. 12 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura: Comentários a Lei 9455/97. Brasília Jurídica, 1997,

p. 15 13 PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na Atualidade. São Paulo: RT, 1993, p. 118. 14 A lapidação consistia na execução do condenado, através de pedradas desferidas pelos integrantes da comunidade atingida pela conduta ofensiva. Ensina, aliás, Hans Von Henting que a pedra foi a primeira arma do homem (La pena, p.390)

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avanço, ainda que uma barbárie, uma vingança, sendo que esta idéia de vindita

perdurou durante toda a Antiguidade, Idade Média e Moderna”.15

Na antiguidade, além do Código de Hamurabi, rei da Babilônia e das Leis

Mosaicas dos Hebreus, evoluindo-se com o Talmud, que substitui a pena de Talião

pela multa, prisão e imposição de gravames físicos; merecem atenção especial as

legislações penais, Grega e Romana.

Apesar das revelações e estudos dos antropológicos sobre o antigo Egito

revelar o encontro de pinturas denotando recebedores de impostos agredindo

camponeses, com golpes desferidos nas plantas dos pés, com o propósito de que

lhes revelassem onde ocultaram os seus armazéns de grãos, ensina-se que o povo

grego foi o primeiro a utilizar a tortura sistematicamente na instrução criminal, como

meio de prova, e se destinava como regra, aos escravos, em face da concepção de

que a dor por eles sentida substituía o juramento que os seus senhores prestavam

de dizer a verdade. “Os homens livres não eram submetidos à tortura, salvo se

fossem estrangeiros ou metecos”.16

No que tange à tortura perpetrada em relação aos escravos, é de se admirar

que um povo, onde se sedimentou o berço da filosofia, tratasse o testemunho

desses com extrema irracionalidade, negando-lhes a fé judicial, salvo se fossem

submetidos a tormentos. “Afirma Demóstenes que o testemunho do escravo, obtido

em tal condição, se revestia de maior credibilidade do que aquele prestado pelo

homem livre, sem nenhuma coação”.17

No Direito Grego, Platão proclamava para não castigar porque alguém tenha

delinqüido, senão para que ninguém delinqüa. As penas visavam a intimidação,

retribuição e expiação. Hisias exortava os juizes a castigar severamente os

infratores. Demóstenes e Licurgo propunham o castigo a delinqüentes como forma

de educação da juventude.

Em Roma nos primeiros tempos, o povo romano também era influenciado por

dogmas religiosos, portanto quaisquer condutas que atentassem contra os ditames

religiosos, constituíam num atentado contra os deuses.

15 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 16. 16 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 18. 17 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 19.

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Com o advento da República em 509 a.C., houve grandes evoluções das

fases de vingança, por meio de Talião e da composição, bem como da vingança

divina na época da realeza, direito e religião separaram-se. O direito privado atingiu

as culminâncias, sendo base do Direito Moderno, contribuindo para a evolução do

Direito Penal com a criação de princípios penais sobre o erro, culpa, dolo,

imputabilidade, coação irresistível, agravantes e atenuantes, legitima defesa.

A sociedade romana era dividida em classes sociais: plebeus, clientes e

patrícios, e tinham as sanções penais aplicadas de acordo com a classe social do

agente. Os plebeus recebiam os castigos mais atrozes. Na lex Duodecim Tabularum,

punia-se a prática de feitiçaria com a morte, a pilhagem das plantações com o

enforcamento se o autor fosse púbere e flagelo se fosse impúbere, o incêndio era

punido com a morte, após o autor ser amarrado e açoitado. No furtum manifestum, o

ladrão podia ser diretamente punido pela vítima, sendo inclusive morto sem qualquer

formalidade, e quem prestasse juramento falso era precipitado na rocha Torpéia. “A

penalidade aplicada ao homicídio era rigorosa, sendo o autor morto com varas

(cogliolo)”.18

No século II a.C., Roma se dividiu em dois grupos: democratas e aristocratas.

Foi o início do que, posteriormente, se denominaria Democracia e Ditadura, sendo,

na última, desenvolvida a tortura política.

Em um processo lento e gradual, a Igreja tornou-se um poder Incontrastável

durante a alta Idade Média – séculos X, XI e XII – passando o Direito Canônico a

reger todas as relações jurídicas então existentes.

A tortura foi amplamente utilizada da Idade das Trevas (1200 a 1800 d.C., aproximadamente), nos chamados Tribunais Eclesiásticos da Inquisição, para Obtenção da confissão de um herege. Nessa época, a confissão do réu era considerada como a rainha das provas, a probatio probatissima, e, para alcançar essa prova, recorria-se à tortura. Destarte, o réu era transformado em juiz da própria causa, resistindo aos tormentos para salvar-se ou a eles cedendo, para perder-se.19

18 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 37. 19 SILVA, José Geraldo, Genofre Fabiano, e Lavorenti Wilson da. Leis penais especiais anotadas/. Campinas: Millenium, 2002.

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Ressalte-se que a tortura naquela época era utilizada somente como meio

processual e não como aplicação da pena, sendo a tortura um mero paliativo

quando da ausência de provas.

Ainda no direito canônico, registre-se que a palavra Inquisição era

denominativa de inquérito judiciário, sendo sua destinação a apuração com rigor dos

fatos tidos como criminosos. No entanto esta denominação foi perdendo força ao

seu enfoque originário, tendo como finalidade de definir o Tribunal do Santo Oficio,

não só porque este auto proclamava-se como Inquisição, mas também pelo fato da

conotação dada pelos seus opositores, passando a palavra Inquisição a ser

denotada como: abuso, tirania e investigação arbitrária.

O processo inquisitivo, de maneira geral, adotava o seguinte procedimento: inicialmente, o juiz determinava ao seu escrivão que se instaurasse o feito, por inquisição, com o propósito de esclarecer a prática delitiva de que se tinha conhecimento. A seguir, passava-se à fase de informação sumária, onde o juiz procedia às primeiras diligências e, caso tal investigação chegasse a algum suspeito, e, via de regra, havia, sempre, um acusado, sobre quem recaía a imputação, determinava o seu encarceramento e, com freqüência, tornava indisponíveis seus bens, sendo oportuno ressaltar-se que, até a presente fase, o procedimento se perfazia de maneira secreta, de modo que não de dava ciência ao acusado do motivo que ensejou a sua prisão cautelar. Suplantada tal fase, o juiz inquisidor continuava com a persecução penal, buscando, agora, provas para a incriminação do réu, através da prova oral e da própria confissão do acusado, recebendo os nomes das testemunhas, para que, eventualmente, pudesse refuta-las. Na fase final, dava-se publicidade do depoimento e das demais provas, quando então, se procedia tanto à acusação formal, que, geralmente, era feita pelo Promotor fiscal, quanto à defesa elaborada pelo advogado do réu. Por último, caso fosse necessário, prolatava-se a sentença de inflição de tormento, com o intuito de se alcançar a confissão do acusado, ou se pronunciava a sentença definitiva, quase sempre condenatória20.

Na região da Valáquia, Sul da Romênia, nos idos do século XV, Vlad Tepes,

consagrado como Drácula, pelo cinema e literatura de ficção, era,

reconhecidamente, tido como símbolo das forças do mal e da tortura. Tinha como

método de aplicação o empalamento, que consistia em introduzir um ferro no ânus

ou no umbigo, até que saísse pela boca da vítima.

A tortura como meio meramente processual, de “buscar a verdade”, a

qualquer custo, mesmo que essa verdade fosse meramente um meio de se achar

um culpado para determinado delito, com a transição histórica da Idade Média para

a Idade Moderna, nos governos absolutistas, onde a finalidade dos tormentos

20 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 66.

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passou a ser uma forma de garantia da segurança ao Estado, diminuindo ainda mais

as garantias ofertadas ao cidadão.

Desta forma, os atos processuais no processo inquisitivo, eram todos

realizados de forma secreta, sem que o acusado tomasse conhecimento da

acusação que lhe era imposta, também não era concedido ao acusado um

Advogado, para tomar conhecimento da acusação, nem para elaborar sua defesa.

Aos cidadãos da época, não era assegurado qualquer Princípio Geral de

Direito, como, por exemplo, o Direito a Vida, ficando a livre vontade do judiciário a

aplicação da pena de morte, bem como a aquisição das provas no decorrer do

processo. “Este direito penal, pródigo na cominação da pena de morte, executada

pelas formas mais cruéis (fogueira, afogamento, soterramento, enforcamento, etc)

visava especificamente a intimidação. O arbítrio judiciário, todavia, cria em torno da

justiça penal uma Atmosfera de incerteza, insegurança e verdadeiro terror”21

“Essa busca da verdade, que consistia, na prática, em obter-se a confissão do

acusado, desenvolvia-se num cenário propício a inflição dos tormentos, posto que,

sob o corpo do supliciado, plasmava o cerimonial judiciário, que tinha, por escopo,

“trazer à luz a verdade do crime”22.

Por essa razão, ensina-se que, para a Justiça Criminal da época, a culpa não

começava uma vez que reunidas todas as provas; peça por peça, ela era constituída

por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado. Assim, uma

meia prova não deixaria inocente o suspeito, enquanto não fosse completada; fazia

dele um meio culpado.

Sendo assim, essa insegurança vivida pelos cidadãos da época era reflexo,

da imperfeição do procedimento criminal, destinado a apuração dos fatos

relacionados à prática delituosa, vez que a culpa era incidida sobre um acusado,

mesmo que não se tivessem todas as provas, mas um pequeno indicio de prova já

era suficiente para manchar uma pessoa com a atribuição de meio culpado.

Jurista e Filósofo, Cesare Beccaria escreveu a obra “dei delitti e delle pene”

(Dos delitos e das penas), publicada em 1764, com nítida influência dos iluministas

franceses Voltaire, Rosseau e Montesquieu. Sua obra assenta-se principalmente do

21 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. p. 39. 22 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 75.

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“Contrato Social” de Rosseau e de início chama a atenção para que as vantagens

sociais devam ser igualmente distribuídas, ao contrário do que sucedia.

Em sua obra, Beccaria dedica um capítulo à tortura (Capítulo XV) que é um

libelo contra as atrocidades da época:

É uma barbárie consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a confissão do crime, quer para esclarecer as contradições em que caiu, quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, mas dos quais poderia ser culpado, que enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia.23

Continua Beccaria: “A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o

inocente fraco e de absolver o celerado robusto. De dois homens, igualmente

inocentes ou igualmente culpados, aquele que for mais corajoso será absolvido”24

“As idéias de Beccaria deram início ao Direito Penal moderno com as

concepções penais que seriam as pilastras da chamada Escola Clássica”25.

A tortura foi oficialmente abolida na Europa entre 1750 e 1830, assim como a

escravidão, sob a influência humanista e racionalista do iluminismo.

“Formalmente extinta, a tortura entra no século XX em sua terceira fase, do

apogeu extra-oficial ou clandestino. A partir da Primeira Guerra Mundial, as

atrocidades contra prisioneiros políticos assumem proporções epidêmicas,

eclipsando os maus-tratos rotineiramente dispensados aos presos “comuns”26.

Não se pode deixar de ressaltar que a tortura foi largamente aplicada, apesar

de forma semiclandestina, pelos nazistas na Alemanha e pelos Stanilistas na antiga

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), como instrumento repressivo

do Estado contra os “inimigos do povo”, ou seja, os opositores do regime por motivos

políticos, étnicos ou religiosos. Utilizada em massa para obter confissões ou

denúncias de terceiros, a tortura também se tornou um instrumento de intimidação e

neutralização dos opositores.

Das páginas da história, podem-se extrair, ainda, como momentos em que a

prática da tortura era sistemática, os episódios da independência dos Estados

23 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Paulo M. Oliveira. Biblioteca Clássica. Volume XXII. 6ª Ed. Atena. São Paulo. 24 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 25 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 20. 26 MATTOSO, Glauco. O que é tortura. São Paulo: Nova Cultura: Brasiliense, 1986. p. 50.

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Unidos, quando foram redigidas as Declarações do Homem e da Independência

(1776), por Thomas Jefferson. Vale destacar, também, a queda da Bastilha, na

Revolução Francesa (1789), símbolo do autoritarismo do governo e, ainda na

Europa, as revoluções de 1830 e 1848 (contrapondo-se nacionalismo, liberalismo e

socialismo). Já nos Estados Unidos, podemos apontar a Guerra de Sucessão (1861

– 1865); no extremo oriente, os conflitos sino-japoneses e, finalmente, na América

Latina, os processos de suas independências.

O exame da história nos leva a duas conclusões elementares: uma a de que ninguém, ou nenhum regime político pode se arrogar a pretensão de ter abolido a tortura, mesmo a “oficial” quanto mais a clandestina. A outra conclusão é a de que ninguém, ou nenhum país pode se gabar a invenção de qualquer método que já não tenha sido experimentado ou aperfeiçoado ontem, por outrem, alhures27.

Ressalte-se ainda, que a abolição da tortura e dos suplícios inerentes às

penas atrozes até então existentes, não foi em decorrência de uma filosofia

meramente humanitária, mas também de uma nova estratégia para o poder de punir,

passando assim, a não punir menos, mas punir melhor, atenuando talvez a forma de

punição, para punir com maior universalidade.

1.2 FONTES HISTÓRICAS NO BRASIL

Em seu Relatório ao Comitê Contra a Tortura CAT28, o Brasil aponta o fato de

o processo civilizatório ter se originado a partir da colonização portuguesa como

sendo a raiz da prática de tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, e também

da prática da tortura. Lembra que as Ordenações do Reino, que tiveram força

normativa no Brasil Colônia, tinham nas penas corporais seu principal instrumento

de punição dos mais diversos tipos de delito.

Certamente isto foi de enorme importância. Mas é preciso acrescentar o

próprio componente da estrutura econômica, de formação do Estado brasileiro.

Para se compreender o uso atual da tortura, como forma de aplicação de

castigo, ou para obter confissões de práticas de delitos muitas vezes de pouco 27 MATTOSO, Glauco. O que é tortura, p. 52. 28 Primeiro Relatório ao Comitê Contra a Tortura CAT. Ministério da Justiça, 2000.

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potencial ofensivo, e no mais das vezes delitos contra o patrimônio, é importante

realçar a origem patrimonialista do processo de colonização, quando a Coroa

Portuguesa confiou a empreendedores privados a exploração de capitanias

hereditárias, em que os donatários também tinham "direito à designação de capitães

e governadores".

Ainda, o rei, no domínio da administração da justiça, isentou "as instituições

brasileiras de correição e alçada, conferiu ao capitão-governador competência para

nomear o ouvidor, o meirinho, os escrivães e os tabeliães, bem assim como a

faculdade de vetar os juízes ordinários eleitos pelos homens bons". Também fora

delegado aos capitães-governadores "toda jurisdição cível e crime, incluindo a alta

justiça (pena de morte e talhamento de membro), relacionada com os peões, índios

e escravos".29

As empresas econômicas, de brancos portugueses, tinham poder de vida e

de morte sobre os africanos - considerados mercadorias - e os índios - considerados

selvagens, muitas vezes equiparados às feras, animais sem alma.

Lembra o Relatório, que a estrutura econômica da colônia foi fundada na

mão-de-obra escrava, indígena, e principalmente africana. "Os negros foram trazidos

da África do século XVI ao XIX. A condição de escravos na qual viriam significava

uma constante possibilidade de um tratamento violento da parte do senhor.”30

À penúria das condições de vida e trabalho a que eram submetidos juntava-se

a possibilidade de o senhor, ao seu arbítrio, impor os castigos que quisesse ao

escravo. “Privações, açoites, mutilações, palmatoadas, humilhações diversas foram

práticas comuns nas casas e fazendas dos senhores donos de escravos durante

toda a vida da colônia”. 31

Extraordinário estudo do historiador Luiz Felipe de Alencastro descreve o

fenômeno de desenraizamento dos negros africanos, provocando sua

dessocialização - quando capturados eram apartados de suas comunidades nativas

-, e despersonalização - quando foram convertidos em mercadoria. E narra como se

dava a nova 'socialização': "desembarcado nos postos da América portuguesa, mais

uma vez submetido à venda, o africano costumava ser surrado ao chegar à fazenda.

29 COUTO, Jorge [1998]: A Construção do Brasil. Lisboa: Edição Cosmos. Pág. 223. 30 Primeiro Relatório ao Comitê Contra a Tortura CAT. Ministério da Justiça, 2000, p. 13/14. 31 Primeiro Relatório ao Comitê Contra a Tortura CAT, p. 13/14.

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"A primeira hospedagem que [os senhores] lhes fazem [aos escravos], logo que

comprados aparecem na sua presença, é mandá-los açoitar rigorosamente, sem

mais causa que a vontade própria de o fazer assim, e disso mesmo se jactam [...]

como inculcando-lhes, que só eles [os senhores] nasceram para competentemente

dominar escravos, e serem eles temidos e respeitados". Tal é o testemunho do

padre e jurista Ribeiro Rocha, morador da Bahia, no seu tratado sobre a escravatura

no Brasil, publicado em meados do século XVIII. Cem anos mais tarde, o viajante

francês Adolphe d'Assier confirmava a prática de espancar os escravos logo de

entrada, para ressocializá-los no contexto da opressão nas fazendas e engenhos do

Império.

Acrescente-se que, mesmo no Brasil Império, com a elaboração da Constituição Política do Império, de 1824, onde se aboliram “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis” (art. 179, XIX), se continuou a supliciar os escravos. Assim, o código Criminal do Império de 1830, esculpido sob o espírito liberal, dispunha, no seu artigo 60, que, quando se tratasse de acusado escravo e que incorresse em pena que não fosse a de morte ou galés, deveria receber a reprimenda de açoites e, após entregue ao seu proprietário, para que este inserisse um ferro em seu pescoço pelo tempo que o juiz determinasse.32

Método de terror luso-brasílico, e mais tarde autenticamente nacional,

brasileiro, o choque do bárbaro arbítrio do senhor - visando demonstrar ao recém-

chegado seu novo estatuto subumano - voltou a ser praticado durante a ditadura de

1964-1985. Instruídos pela longa experiência escravocrata, os torturadores do DOI-

CODI e da Operação Bandeirantes também faziam uso repentino da surra, à entrada

das delegacias e das casernas, para desumanizar e aterrorizar os suspeitos de

'subversão'. 33

O dado histórico, portanto, é que os detentores do poder econômico, e

também os detentores do poder político, utilizavam-se da violência contra os

despossuídos: índios, negros, pobres em geral, como modo de garantir controle

social, como intimidação, castigo, ou mero capricho.

“[...] com o advento do Estado Novo, o denominado período Getuliano,

iniciado em 1937, o Brasil vivenciou um ditadura que espargiu o terror e edificou a

barbárie em todo o seu território, suprimindo todas as garantias individuais, fechando

32 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 151/152. 33 Alencastro, Luiz Felipe de: O Trato dos Viventes. São Paulo: Cia. Das Letras. 2000. pág. 148.

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o parlamento federal, estadual e municipal. [...]”34 Estabelecendo ainda, acentuada

censura contra os órgãos de imprensa, fortalecendo acentuadamente os órgãos de

polícias, destinados a repressão política e social.

O Brasil vivenciou de Março de 1964 a Março de 1985 o regime militar,

grande parte do qual caracterizado por ser um "regime de exceção". Instalado pela

força das armas, o regime militar derrubou um presidente civil e interveio na

sociedade civil. Usou de instrumentos jurídicos intitulados "atos institucionais",

através dos quais procurou-se legalizar e legitimar o novo regime.

A sombra mais negra veio com a prática disseminada da tortura, utilizada

como instrumento político para arrancar informações e confissões de estudantes,

jornalistas, políticos, advogados, cidadãos, enfim, todos que ousavam discordar do

regime de força então vigente.

A praga a ser vencida, na ótica dos militares, era o comunismo, e subversivos

seriam todos os que ousassem discordar. Foi mais intensamente aplicada de 1968 a

1973 sem, contudo, deixar de estar presente em outros momentos.

A ditadura não inventou a tortura, mas exacerbou-a. E adotou essa prática de

modo intenso, "aprimorando" os mecanismos já utilizados nos períodos anteriores à

sua instalação.

Com a redemocratização, consagrada na Constituição de 1988, como seu

documento político, o povo brasileiro cuidou de explicitar como desejaria se ver

organizado em um Estado Democrático de Direito. Por isso se tem uma Constituição

onde os direitos e garantias fundamentais principiam o texto constitucional, e são

detalhados e extensos: para serem conhecidos; para serem garantidos; para serem

respeitados.

1.3 HISTÓRICO DA LEI Nº 9.455/1997

O elo que faltava para punição doméstica da tortura completou-se quando,

finalmente o Congresso Nacional votou projeto de lei, criminalizando a tortura. O

projeto foi sancionado pelo Presidente da República, e converteu-se na lei 9.455, de

7 de Abril de 1997.

34 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 155.

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Como uma resposta específica ao regime militar instituído a partir de 1964 até

1985, a Constituição de 1988 é a que reintroduz a proibição expressa à tortura,

fazendo-o nos seguintes termos:

Artigo 5o - III "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano

ou degradante".

Na mesma ótica, a Constituição Federal no seu artigo 5º, XLIII, previu como:

“[...] inafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia a prática de tortura, o tráfico

ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes

hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo

evitá-los, se omitirem.” 35

[...] A tortura, assim, como os demais crimes especificamente mencionados, não são considerados hediondos pelo legislador constitucional, mas apenas ilícitos a eles equiparados, quando mais certo teria andando o legislador constituinte se denominasse a tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e o terrorismo como crimes hediondos, deixando ao legislador ordinário a criação de outras modalidades de crimes a serem também considerados hediondos. Essa falha não passou despercebida a Júlio Fabrini Mirabete.36

“Além do mais, prevista na Constituição ao lado dos crimes hediondos, a

tortura não era crime previsto na nossa legislação com esse nomen júris. Nem em

seguida, se sucedeu qualquer lei ordinária criando o tipo penal. [...]” 37 Sendo que a

Lei nº 8.072/90 define os crimes hediondos, aplicando por equiparação a estes o

crime de tortura.

[...] Além disso, a Mensagem nº 783, de 19/07/1995, encaminhou ao Congresso Projeto de Lei pretendendo introduzir alterações no Código Penal e disciplinar os “crimes de especial gravidade”, entre eles incluindo a tortura (art. 33, § 5º, f). A pretexto de revogar a Lei dos Crimes Hediondos, esse projeto seguiu a mesma linha da Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), sob a inspiração do chamado Movimento da lei e da Ordem. Mas o crime de tortura continuava padecendo da falta de tipificação.38 Por força de pressões oriundas dos acontecimentos policiais ocorridos em Diadema, na Grande São Paulo, em que, policiais militares agrediram e cometeram arbitrariedades contra civis, causando grande comoção na coletividade, principalmente porque os fatos foram filmados e transmitidos

35 Constituição da República Federativa de 1998. 36 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 169. 37 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 171. 38 BORGES, José Ribeiro, Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 170.

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em profusão pelos meios de comunicação, notadamente pela televisão, o crime de tortura se viu finalmente e com celeridade tipificado pela Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997.39

Antes da Lei 9.455/97, a tortura era crime apenas quando praticada contra

crianças e adolescentes, em razão de lei especial disciplinando a matéria. O

Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 233 tipificava como crime "submeter

criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância, a tortura". Mas não

definia o que vinha a ser tortura.

Assim a Lei 9.455/97 foi instituída, para prevenir e punir a tortura, quer no

âmbito dos distritos policiais, quer no presidiário, não deixando impunes aqueles que

mesmo despidos do poder institucional, praticam a tortura.

CAPITULO 2

O DELITO DE TORTURA NO DIREITO BRASILEIRO

2. 1 CONSIDERAÇÕES GERAIS

A Carta Magna de 1988 elevou a dignidade da pessoa humana como um dos

princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, “o que vale dizer que

qualquer ser nascido de mulher é digno, não podendo o Estado negar-lhe esta

condição: de ser humano.”40

O sistema de culpabilidade baseada na exigibilidade de conduta diversa,

daquela assegurada na lei, nega a condição humana ao acusado, transformando-o

em um objeto do processo, em um ser ético e moral, “sendo que a moral e a ética

39 BORGES, José Ribeiro, Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97. p. 170. 40SERRANO, Sergio Abingem. O ministério público: ônus da prova e a dignidade humana . Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5189. Acesso em 28/09/2004.

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são incompatíveis com o Direito em um Estado Democrático, que não nega a

existência de valores conflitivos na sociedade.”41

A prática da tortura tem sido denunciada por organizações nacionais de

direitos humanos, governamentais e não governamentais, e também por entidades

internacionais de direitos humanos, as quais têm realizado acompanhamento da

situação de respeito ou violação aos direitos fundamentais no Brasil.

A tortura praticada principalmente pelas instituições encarregadas da

repressão penal constitui-se em algo “absolutamente inadmissível num Estado

Democrático de Direito, além de configurar uma verdadeira contradição interna do

sistema, pois os órgãos encarregados do cumprimento das leis agiriam de forma

ilícita.”42

Suplantada a fase do governo militar e transição para o poder civil, o Parlamento brasileiro, em 1987, constituiu a Assembléia Nacional Constituinte, que brindou a Nação, em 05.10.1988, com a denominada Constituição Cidadã, merecendo destaque, para o presente trabalho, o art. 1º, inciso III, que estabelece, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa Humana; o art. 4º que estabelece a prevalência dos direitos humanos, como um dos princípios nas relações internacionais estabelecidas pelo Brasil; o art. 5º, inciso III, que dispõe, textualmente, que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; o inciso XLIII do mesmo artigo, que estabelece que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”; e o § 2º do mencionado artigo, cuja norma dispõe que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.43

Em 1989, o Estado brasileiro ratificou tanto a convenção contra a tortura e

outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes de 1984 como a

convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura de 1985.

41SERRANO, Sergio Abingem. O ministério público: ônus da prova e a dignidade humana. Acesso em 28/09/2004. 42 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97. Campinas: Romana, 2004. p. 245. 43 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 158.

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Tais aparatos jurídicos e a ascensão ao poder de um governo democrático, apesar de terem contribuído para a não utilização da tortura nos delitos de opinião, não evitaram que ela continuasse a ser utilizada quase que impunemente, quer nos distritos policiais, quer nos estabelecimentos penitenciários, em relação aos criminosos comuns ou até mesmo em relação aos suspeitos da prática de tais delitos.44

O próprio Estado brasileiro, em relatório encaminhado ao Comitê Contra a

Tortura da ONU, reconheceu as dificuldades na erradicação da prática da tortura no

Brasil, em face da corrupção policial e o abuso de autoridade, que gravitam nos

organismos policiais.

Essa técnica, preferencial de investigação empregada pela polícia brasileira: a

tortura. “Usada em delegacias de norte a sul, a tortura é hoje o método número 1 da

polícia para esclarecer crimes. Em vez de investigar – seguir pistas, raciocinar,

campanar, deduzir, interrogar, reunir provas -, opta-se pelo caminho fácil, rápido,

injusto, ineficiente e burro [...]45

Pode ser acrescida ao diagnóstico elaborado pelo Governo Federal a total falta de preparo técnico da polícia judiciária brasileira, que dispõe de uma estrutura mínima para o desencadeamento da persecução penal, sendo que a contribuição da política científica, para o deslinde da materialidade e autoria delitiva, é ínfima, encontrando-se sedimentada, na maioria das vezes, mais no heroísmo e dedicação de médicos legistas e peritos criminais do que em aparatos tecnológicos, já que poucos são os investimentos estatais em tal área.46

As técnicas de investigação para a elucidação de crimes, encontram-se

obsoletas, segundo Mario Coimbra, isso se dá “porque a polícia não dispõe de

recursos para o seu aperfeiçoamento, até porque lhe faltam, muitas vezes,

equipamentos básicos para o trabalho, como combustível para as viaturas.”47

Assim a herança do autoritarismo fortemente impregnada na polícia, a cobrança social, em relação ao acentuado índice de criminalidade, fomentada, diuturnamente, pela imprensa, aliada à inércia governamental, quanto `a necessidade de se realizar uma reestruturação acentuada na polícia, com destaque para a polícia judiciária, inclusive com investimentos na aquisição de aparatos modernos para a investigação policial, faz com que a tortura continue a ser aplicada impunemente nas unidades policiais.

44 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 159. 45 Revista Veja. V. 28, nº 44, p. 28-35, 1º nov, 1995. 46 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 159. 47 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 160.

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Também as raras punições penais aplicadas aos torturadores constituem fortíssimo estímulo, para a perpetração de tão nefando instrumento, que, indubitavelmente, atinge somente a camada pobre da população brasileira.48

Nota-se que muitas vezes nós mesmos somos fator considerável para a

disseminação da tortura, cobrando de forma acentuada e desproporcional muitas

vezes, ações enérgicas por parte da polícia para resolver e punir aqueles “culpados”

de terem praticados determinados delitos, o sensacionalismo por parte da imprensa,

que transforma a opinião pública, tudo isso aliada à falta de preparo por parte da

polícia, e a impunidade gerada pela não punição dos torturadores, fazem com que o

delito de tortura no direito brasileiro leve tão poucos acusados ao banco dos Réus.

Tem-se também a caótica situação em relação às pessoas que se encontram

nos ambientes penitenciários, que não raras vezes sofreram com os tormentos da

tortura na fase da persecução penal; sofrem novos tormentos na fase da execução

penal, como forma de castigo como medida de disciplina.

O relato, a seguir registrado, elaborado por um interno da ala Céu Azul da penitenciária masculina de Manaus, constitui um exemplo típico de tortura perpetrada nos presídios brasileiros: “No dia 24 de dezembro de 1997....nós fomos levados todos para o campo de futebol aqui do presídio e obrigados a ficar nus.Depois fomos obrigados a nos arrastar por uma lama de esgoto sanitário. Neste período de rastejo nós éramos espancados com cacetadas e chutes nas costelas e no final obrigados a beber tal lama. Logo depois fomos obrigados a andar de joelhos desde o final do campo até o ‘Céu Azul’, e neste período nós não podíamos para pois quem parasse era brutalmente espancado. Quando finalmente nós chegamos no Céu Azul, os nossos joelhos já estavam em carne viva, Nós fomos jogados nas celas quase que desmaiados. Nós já estamos aqui há mais de 3 meses e durante vários dias o diretor nos deixou sem comer. Por quase um mês e meio nós fomos torturados pela equipe de choque da polícia que vinha um”. dia”. sim , um dia não. Eles nos tiravam nus das celas e nos colocavam de joelhos no lado de fora do Céu e nos obrigava a nos espancar um ao outro e depois enfiar o dedo um no ânus do outro. Teve uma certa vez que nossa família mandou comida pra nós, a choque nos tirou pra espancarmos. Quando nós voltamos para as celas nossas comidas estavam todas misturadas com fezes. (Anistia Internacional. Brasil: aqui ninguém dorme sossegado – Violações dos direitos humanos contra detentos, p. 19)49

No relatório ao Comitê Contra a Tortura da ONU, o Estado brasileiro registra

que são freqüentes as práticas de espancamentos contra presos, nas tentativas de

48 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 160/161. 49 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura p. 161/162.

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fuga ou rebeliões, não sendo incomum, a prática de tortura contra os presos

investidos de rebeldia.50

Diante de tão notória violação da dignidade da pessoa humana, o Legislador

Pátrio limitou-se a tão somente inserir na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do

Adolescente) o tipo penal da tortura no artigo 233, porém deixa de definir o

comportamento delituoso, gerando inclusive uma aguerrida discussão entre os

Ministros do Supremo Tribunal Federal, culminando a nossa Corte Suprema em

declarar a constitucionalidade do referido artigo, por maioria de votos. “Tal discussão

perdeu sua importância doutrinária, porque a norma em exame foi revogada pela Lei

9.455/97.”51

Notoriamente, o Parlamento brasileiro somente despertou para a análise da

questão da tortura, devido aos acontecimentos na Favela Naval na cidade de

Diadema, Estado de São Paulo, em março de 1997. Devido a grande projeção

nacional dos acontecimentos, o Senado Federal aprovou, abruptamente, o projeto

de lei, disciplinando o crime de tortura. Em sua obra Tratamento do Injusto Penal da

Tortura, o Jurista Mario Coimbra, citando o também Jurista e renomado João José

Leal em seu artigo à Revista Jurídica, nº 265, p. 41-42, tendo como nome Tortura

como crime hediondo especial, ensina que “a respeito do aludido projeto de lei, não

se pode deixar de assinalar que tais infrações e as medidas de maior rigor têm sido

promulgadas através de leis de ocasião, ou leis de paixão, que são discutidas e

aprovadas de afogadilho.” [...]52

“Saliente-se que apesar dos vícios que maculam a aludida lei, merece

encômio o legislador, pela adoção do art. 2º dos princípios da personalidade passiva

da universalidade, permitindo, dessa forma, melhor proteção aos bens jurídicos por

ela tutelados e pelas convenções já analisadas.”53

Com o estudo da Lei nº9.455/97, pode-se verificar, que o legislador

preocupou-se em observar os tratados internacionais ao qual o Brasil é signatário,

observando na Lei a proteção dos direitos ao homem inerentes.

50 Vide p. 40 do aludido relatório 51 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 163. 52 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 164. 53 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 164.

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2.2 PROTEGIDO E SUJEITOS DO DELITO

Além dos já mencionados instrumentos internacionais com a destinação da

reprimenda ao uso da tortura, sobrelevarem a dignidade da pessoa humana, a

Constituição da República Federativa do Brasil, além de ter elevado, como uma das

garantias fundamentais do cidadão, a não inflição da tortura, de tratamento

desumano ou degradante (artigo 5º, III), traz a dignidade da pessoa humana como

um dos fundamentos da República (artigo 1º, III).

A liberdade e a dignidade, bem jurídico protegido na situação de tortura,

pertencem à essência do ser humano, que constitui indubitavelmente a pilastra mor

na promoção dos direitos humanos, sendo que o legislador constitucional pátrio,

teve o cuidado em observar esses fundamentos no ordenamento constitucional

brasileiro.

Assim, na tortura está sedimentado um atentado à dignidade humana, à

medida que se nega ao torturado a condição de pessoa, transformando-o em mero

objeto, não possuindo qualquer personalidade, sendo despido do seu bem maior,

ainda assim, quando fraqueja diante dos tormentos, é atemorizado com insultos e

palavras que só fazem em denegrir ainda mais a imagem já maculada da vítima.

A tortura transcende as situações corriqueiras de agressões entre as

pessoas, para representar o mais completo desprezo a integridade do indivíduo, “na

culminância consciente de todo um procedimento que já o fez humilhado, vencido e

inerte, ante os que dele dispõem, na fragilidade do físico depauperado, e da mente

que já não controla mais.”54

Apesar de que na incriminação da tortura sejam tutelados outros valores como:

a integridade física e mental do indivíduo, além da sua própria vida, pode-se verificar

que esses valores já estão contidos no próprio contexto de dignidade humana.

A tortura na sua evolução histórica, como colocado anteriormente, inicialmente

era um meio pelo qual o estado aplicava os tormentos como forma de punição, mais

adiante na história, usada como meio inquisitivo, e nos momentos atuais a tortura é

vista como crime que causa repudia na sociedade, portanto sendo amplamente

aplicada de forma escondida, sendo sujeitos dessa relação, primeiramente como

54 DOURADO, Denisart. Tortura, p. 179 .

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sujeito ativo, o Estado, através de seus governantes (ou governadores), dos juízes

que tinham seus poderes não suscetíveis de qualquer controle, atualmente com o

advento da Lei 9.455/97, o sujeito ativo é todo aquele que investido de poder,

autoridade, guarda, etc, pratica atos enquadrados no art. 1º da Lei nº 9.455/97.

Quanto ao sujeito ativo, impõe-se a observação de que a tortura sempre se constituiu num aparato utilizado pelo poder estatal, para obter confissão ou informação relevante de algum indivíduo suspeito da prática de algum delito ou que se supunha que saiba quem foi o autor do crime investigado. A única diferença é que, outrora, tal instrumento era utilizado pelo próprio Estado-juiz, enquanto, atualmente, embora usado na ilegalidade, conta como beneplácito de autoridades estatais, podendo ser denominada, portanto de oficiosa.55

Não se pode deixar de colocar que, a tortura sempre expressou atos

denotativos de abuso de poder, que seja por abuso de autoridade, quer seja por

agentes públicos.

O crime de tortura é crime próprio, exigindo que o sujeito ativo seja revestido

de uma qualidade ou condição em relação à vitima de subordinação ou

dependência, porém não há necessidade de ser o sujeito ativo funcionário público.

2.3 A TORTURA E A LEI 9.455/97

De início tem-se, como leciona Alberto Silva Franco (1997), que admitida a

tortura agora como crime comum, tanto nesta modalidade de submissão (submeter),

como na de constrangimento (constranger do inciso I), para sua compreensão típica

integral, depende-se de uma valoração judicial de amplo espectro, pois o diploma

legal omitiu uma definição indispensável, qual seja, “os limites conceituais do

‘sofrimento físico’ ou do ‘sofrimento mental’ provocados, um ou outro, pela conduta

de constrangimento ou submissão. Ainda que se admita, para argumentar, que é

possível, através de perícia médico-legal, detectar o sofrimento físico de alguém,

não se pode ignorar que vários sofrimentos físicos podem ser infligidos sem que

deles decorram vestígios. 55 COIMBRA, Mario. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 167.

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Por outro lado, o ‘sofrimento mental’ de uma pessoa constitui um conceito

extremamente poroso, que por isso, flutua no ar, sem nenhum ponto de engate da

realidade. O sofrimento mental, dimensionado em termos não concretos, mostra-se

de extrema variabilidade, podendo ser diverso conforme a maior ou menor

sensibilidade ou capacidade reativa de qualquer pessoa. “Uma ação criminosa é, no

entanto, um acontecimento empírico que deve ser taxativamente descrito e não um

acontecimento cujo preenchimento decorra de uma avaliação pessoal do juiz.”56

E prossegue o grande mestre hodierno: “A locução ‘sofrimento mental’

constitui, portanto, uma cláusula típica de caráter tão genérico que põe em risco o

princípio da legalidade”. Nessa linha de consideração, Schecaira (op. Cit., p. 2)

chama a atenção para o caráter indeterminado do tipo de tortura “que pode conduzir

a uma negação do próprio princípio da legalidade, pelo emprego de elementos do

tipo sem precisão semântica.”

E arremata: “O que se dizer então, quando se exige qye esse ‘sofrimento

mental’ seja intenso (§ 1º, do art. 1º da Lei 9.455/97)? (sic)”.57

A crítica é acompanhada por Luiz Flávio Gomes58, que afirma depender o

“sofrimento físico” de cada vítima, de cada caso concreto, asseverando em nota de

rodapé, para tanto; “O legislador, ao utilizar a expressão ‘intenso sofrimento’,

colocou na lei um conceito poroso (Hassemer), de difícil compreensão. É um tipo

aberto, que exige complemento valorativo do juiz.” 59

“[...] Sofrimento físico importa a contração muscular decorrente do uso de

meios físicos, mecânicos, elétricos etc., provocando sensações desconfortáveis

como a de mal-estar e de dor, alterando muitas vezes o funcionamento regular do

organismo e mesmo do psiquismo; [...]” 60

Para determinarmos o que é “intenso” e, então, resultar não mais na

tipificação de maus tratos, mas de tortura, tenho ser necessário analisar,

primeiramente, alguns outros aspectos do referido texto legal (inciso II).

56 FRANCO, Alberto Silva, Breves Anotações sobre a Lei nº 9.455/97. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 19, São Paulo. RT, 1997, p. 62. 57 FRANCO, Alberto Silva, Breves Anotações sobre a Lei nº 9.455/97, p. 62. 58 FRANCO, Alberto Silva, Breves Anotações sobre a Lei nº 9.455/97, p. 62. 59 GOMES, Luiz Flávio. Tortura (Lei 9.455/97). Estudos de Direito Penal e Processo Penal. São Paulo: RT, 1999, p. 123, nota 17. 60 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 171.

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Assim como no inciso I (do art. 1º da Lei 9.455/97), a conduta tipificada no

inciso II divide-se em dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento

objetivo consiste em “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com

emprego de violência ou grave ameaça a intenso sofrimento físico ou mental”. Nele

observa-se o dolo genérico do agente de violentar ou ameaçar a vítima, que deve

encontra-se em seu poder, ou que esteja sob sua guarda ou autoridade.

O elemento subjetivo se faz presente na finalidade do agente, ou seu dolo

específico, de infligir tal intenso sofrimento físico ou mental como forma de aplicar

castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Dessa forma, é necessário que o sofrimento físico ou mental, de acordo com

cada vítima, decorrente da violência ou grave ameaça seja praticado com vistas à

punição ou prevenção de uma ação da vítima, como é o caso de pai que bate no

filho para castigá-lo por uma má ação, ou até mesmo do carcereiro que priva o

detento sob sua guarda da refeição para manter a disciplina.

A partir desta análise, podemos entender o “intenso sofrimento”, como aquele

sofrimento excessivo, extremamente rude e que excede os limites do suportável

tendo em vista o fim perseguido pelo agente e as condições pessoais de cada

vítima.

Não há dúvida que o adjetivo “intenso” é vago e impreciso, incidindo na crítica

de ser tipo aberto e dependente do subjetivo de cada aplicador, com o que deixou

ao intérprete a tarefa de considerar a ação do agente como típica, ou não, em

relação à Lei de Tortura, resultando em caso negativo, que pode se tratar do crime

de maus tratos antes analisado.

Da mesma forma, se não estiver presente o elemento subjetivo, no caso em

tela o fim correcional ou disciplinar, a conduta do agente poderá ser atípica, como no

inciso anterior.

A propósito da vítima da “submissão” (e não podemos esquecer que nosso

objeto são crianças e adolescentes), o texto simplesmente a relaciona como

“alguém”, pretendendo abranger qualquer pessoa, independentemente de idade,

sexo, ou condição social, bastando que esteja naquelas condições de subordinação

descritas, vale dizer, além da criança e do adolescente.

Quanto à guarda, poder ou autoridade são aquelas relações analisadas

quando o crime de maus tratos.

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Trata-se ainda, de crime próprio, exigindo que o sujeito ativo se revista de uma qualidade ou condição pessoal, estabelecendo-se entre autor e vítima uma relação de subordinação ou de dependência, mas não, necessariamente, a qualidade de funcionário público do agente. Ou seja, revestido ou não do exercício de uma função pública, se o agente tem relação à vítima a guarda, o poder ou autoridade, é o quantum satis, poderá ser responsabilizado pela conduta aqui incriminada.61

“Autoridade significa a ascendência que tem o agente para com a vítima,

alcançando-se aqui as relações de natureza privada, como as ocorrentes na tutela,

na curatela, na hierarquia religiosa, etc.” 62

A violência exigida do texto legal, assim como no inciso I, e sem perder de

vista que o objetivo foi tratar da violência doméstica, diz respeito a ‘vis corporalis’, ou

seja à violência física sobre o indivíduo, que pode se consumar por meio de

agressões ou abusos praticados sobre o corpo da vítima, como tapas, chutes,

batidas, posições forçadas, mordaças, capuzes, torniquetes, enfim, toda e qualquer

forma ou instrumento que produza alteração da anatomia do ofendido é considerada

violência física.

Para tal violência física, há duas espécies: a imediata e a mediata, com a

primeira sendo aquela aplicada diretamente sobre o corpo da vítima, podendo

caracterizar-se por golpes, choques, mordaças, amarras e todas as ações que se

abatam sobre o ofendido, enquanto que a outra, configura-se naquela exercida

sobre terceira pessoa ou coisa, mas que, indiretamente, gera os efeitos pretendidos

no indivíduo, exemplificadas nas sevícias a pessoa querida ou da família ou na

destruição de bens pessoais ou objetos de valor sentimental. Exemplo, obrigar o

marido a assistir o estupro da esposa ou da filha.

Tanto faz que se trate de violência direta ou indireta, qual seja a exercida diretamente contra a vítima ou empregada contra terceiro, assim como compreende não só a violência propriamente dita como também a violência imprópria, entendida esta como o emprego de qualquer outro meio suscetível de suprimir ou reduzir a resistência da vítima (emprego de narcótico, sugestão hipnótica etc.).63

61 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 178. 62 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 179. 63 BORGES, José Ribeiro, Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97,p. 171.

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O texto legal, ainda faz menção à “grave ameaça” como forma de produzir o

intenso sofrimento físico ou mental. Tal modalidade configura-se na violência moral

(vis compulsiva), exercida sobre o individuo através de promessas de mal futuro,

sério e crível, comportamento também os tipos imediato e mediato, ou seja, ameaça

ao indivíduo ou a pessoa da família, amigo ou bens. Vale salientar que, para que

esteja caracterizada a grave ameaça, basta que a vítima sinta-se intimidada com a

mesma, a ponto de consentir com o torturador (no caso a pessoa a quem está

subordinada), fazendo ou deixando de fazer o que impõe ou exige, mediante intenso

sofrimento.

Pode-se concluir, portanto, que o crime de tortura tendo como vítima criança

ou adolescente (aliás, qualquer pessoa) restará consumado se, da violência ou

grave ameaça, aplicadas como forma de castigo pessoal ou medida de caráter

preventivo, causar intenso sofrimento físico ou mental.

Não se deve esquecer, igualmente, que o sofrimento físico está intimamente

ligado ao conceito de dor, tormento, ao passo que o sofrimento mental relaciona-se

com a angústia, o temor, a violação moral ou psicológica; se não estiverem

presentes quaisquer destes elementos a conduta será atípica pelo menos em

relação à Lei 9.455/97.

O delito de tortura, pelo princípio da especialidade, afasta o reconhecimento

dos crimes de maus tratos (CP, art. 136), constrangimento ilegal (CP, art. 146),

ameaça (CP, art. 147) e abuso de autoridade (CP, arts. 322 e 350, e Lei nº

4.898/65), absorvendo, igualmente, o de lesões corporais de natureza leve (CP, art.

129, caput).

2.4 MÉTODOS DE TORTURAS E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

A viagem da tortura e da violência através dos séculos se confunde com a

história do próprio homem. Tentar segui-la sistematicamente constituiria tarefa

árdua, exigindo retorno, passo a passo à aurora da humanidade. É preciso então

escolher quase que arbitrariamente um momento primeiro, trazendo da lá pra cá as

várias graduações que marcaram a inflição do sofrimento no homem.

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Um dos mais trágicos relatos da horrível justiça que se praticava no século

XVIII, na França, vem transcrito em Michel Foucalt 64 descrevendo a execução de

um condenado de nome Roberto Francisco Damiens, condenado em 1757, por

haver atentado em Versalhes contra a vida do Rei Luiz XV. Eis o relato:

Ascende-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas e da mão mal-e-mal sofreu. Depois um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna, depois a coxa, daí passando aos braços e em seguida os mamilos. Este executor ainda que forte e robusto, teve dificuldades em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois desses suplícios, Damiens que gritava muito, sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão uma droga fervente e derramou-a sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as coradas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo da coxas, das pernas e dos braços. O Senhor Lê Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que gritava, com cada tortura, de forma como costumamos ver representados os condenados: ‘Perdão meu Deus! Perdão, Senhor; Apesar de todos esses sofrimentos acima, ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis e repetindo sempre ‘Perdão Senhor’. Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Depois de duas ou três tentativas, os carrascos tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos colocando toda a força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto; em seguida fizeram o mesmo com os braços. Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar, mas o carrasco informou-lhe que estava morto, embora, na verdade verificasse que o homem se agitava mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou a dizer, pouco depois que o lançaram na fogueira, que ele ainda estava vivo. E em cumprimento a sentença tudo foi reduzido a cinzas.65

Casos como este, descritos por Foucault, não eram raros, sempre praticados

oficialmente pelas autoridades e aos olhos de que suportasse assistir a tal barbárie.

O progresso humano é gradual e lento, porém no século XX a prática da

tortura passou para a clandestinidade, tendo em vista o repúdio a este tipo de

violência, não mais tolerado pela sociedade como um todo, No Brasil, apesar da

participação na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, que

64 FOUCALT, Miguel. Vigiar e Punir. Tradução Ligia M. Ponde. Petrópolis: Ed. Vozes, 1997. p.11-2. 65 FOUCALT, Miguel. Vigiar e Punir. Tradução Ligia M. Ponde, p.11-2.

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promulgou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de

1948, dispondo em seu artigo 5º que: “Ninguém será submetido a tortura, nem a

tratamento e castigo cruel, desumano ou degradante”, a tortura virou praxe nos

plantões policiais, sendo costume sabido e tolerado, principalmente nos anos do

Regime Militar.

A tortura pública sancionadora muda-se para os lugares ermos e passa a ter a finalidade de extrair, o mais rápido possível, informações necessárias a repressão. Por isso, a tortura, como não mais existe para a lei, não mais existe para o mundo. Não existe mais a tortura pública, feita as claras, hoje ela é secreta, oculta, instrumento escondido do Estado, de pressão contra as camadas marginais. Todas as forças repressivas em regra a usam, mas só ganha publicidade quando ocorre um erro técnico, um acidente de percurso, com a morte do torturado ou, pelo menos, o vazamento para a imprensa da notícia da tortura. A vítima do suplício, quando vem a morrer, é apresentada, na versão oficial, como um suicida.66

Os principais métodos e instrumentos de tortura adotados no Brasil, além do

espancamento indiscriminado e primário, são os seguintes:

2.4.1 O “pau de arara”

Consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados

e a dobra do joelho, sendo o “conjunto” colocado entre duas mesas, ficando o corpo

do torturado pendurado a cerca de 20 ou 30 cm do solo. Este método quase nunca é

utilizado isoladamente, seus “complementos” normais são eletrochoques, a

palmatória e o afogamento. Nesta prática, o torturado fica exposto a todo tipo de

barbárie, socos, chutes, choques, atentado sexual, que é o mais comum nesta

prática. Este método que na França chamava-se passer à la broche. Uma hora

nesta posição é suficiente para provocar dores intensas no corpo, enjôos, diarréias,

e dificuldade para respirar, o castigo é freqüentemente interrompido e reiniciado para

que a vítima não morra.

2.4.2 O choque elétrico

O eletrochoque é dado geralmente com fios de luz, cujas pontas são

desencapadas e ligadas ao corpo, normalmente nas partes sexuais, além dos 66 BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97,p. 106.

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ouvidos, dentes, língua e dedos. Os fios são conectados a tomadas elétricas ou

baterias de carro e tocadas no corpo da vítima, provocando tremores, crises de

choro e incontinência urinária. Para intensificar o efeito, costuma-se jogar água

sobre o corpo do torturado, devido à alta condutividade que o meio líquido provoca.

2.4.3 O banho Chinês ou afogamento

Onde a cabeça da vítima é enfiada em um balde de água suja ou em um tonel

de óleo, no início a cabeça fica submersa por alguns segundos, o tempo vai

aumentando até quase o limite do afogamento onde a vítima começa a fraquejar,

geralmente seguido de espancamento e choque elétrico. O gesto é repetido várias

vezes, a náusea provoca crises de vômito e desmaios.

2.4.4 O telefone

Consiste em aplicar um golpe sobre os ouvidos da vítima com ambas as

mãos em posição côncava. Por este processo o torturado geralmente tinha os

tímpanos rompidos, devido ao deslocamento de ar provocado na cavidade auricular.

2.4.5 Geladeira

Tortura que consistia em colocar a vítima, vestida apenas de roupas intimas,

dentro de uma câmara frigorífica, onde a temperatura girava em torno de 30 graus

abaixo de zero, conservando-a trancada por um período de dois ou três minutos,

repetindo-se o ato até o momento da confissão do torturado.

2.4.6 Processo Corcovado

Tomou este nome porque praticado pela polícia carioca no alto do corcovado.

Consiste em colocar o prisioneiro no topo de um muro alto, de costas para o abismo

e de frente para revólveres ou metralhadoras durante horas a fio.

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2.4.7 Sabão em pó

Jogado sabão em pó, nos olhos da vítima e seguido da projeção de um feixe

de luz no rosto desta.

2.4.8 Churrasquinho

É uma variante do pau de arara. Consiste em acender um pouco de álcool por

baixo do torturado ou em inserir-lhe no ânus um papel retorcido, que depois é aceso.

2.4.9 Algemas

Consiste em algemar o torturado preso a uma mesa, por muitas horas e as vezes por

dias até.

2.4.10 Ginástica

Consiste em obrigar o prisioneiro a fazer repetidas flexões de pernas

enquanto sustenta, nas mãos estendidas, dois catálogos de telefones. Quando para

com a ginástica o prisioneiro apanha.

2.4.11 Tenazes e outros instrumentos cortantes

Não foi um método muito difundido, pois o arrancamento das unhas ou de

esmigalhamento de partes do corpo deixam marcas duradouras, o que não era

conveniente para torturadores semiclandestinos.67

67 ALVES, Márcio Moura. Torturas e Torturadores. RJ: Empresa Jornalística, 1967. p. 29.

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2.4.12 Insetos e animais

Em relatos de torturadores, constam o uso de animais como cães e cobras

nas sessões de torturas, bem como insetos como baratas colocadas sobre o corpo

do preso, e sendo inclusive introduzidas no ânus.

2.4.13 Produtos químicos

Usado pelos torturadores, como o soro de pentotal, substância que faz a

pessoa falar, em estado de sonolência; ácido sobre o corpo que faz o preso arder e

inchar; injeções de éter, inclusive com borrifo nos olhos.

2.4.14 Lesões Físicas

Comumente aplicada aos presos, como a introdução de garrafas e cassetetes

no ânus; forquilhas amarradas aos testículos, para que depois seja arrastado pela

sala; jejum por vários dias consecutivos, recebendo somente sal nos olhos, boca e

em todo corpo para aumentar a condutividade do corpo; o uso de palmatória de

alumínio para deixar o corpo em carne viva; chá de manta, que consiste em colocar

sobre o torturado um cobertor quando este estiver deitado ou dormindo, e com

sabonetes dentro de toalhas aplicam-se vários golpes sobre o corpo da vítima.

2.4.15 A cadeira do Dragão

Cadeira extremamente pesada, cujo assento é de zinco, e que na parte

posterior tem uma proeminência para ser introduzido um dos terminais da máquina

de choque chamada magneto; e além disso, a cadeira apresentava uma travessa de

madeira que empurrava as pernas para trás, de modo que a cada espasmo as

pernas do torturado batessem na travessa citada, provocando ferimentos profundos.

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2.4.16 Psicológica

É usada como reforço. Enquanto a vítima é submetida a uma sessão de

tortura, os torturadores costumam deixa-la nua, quando aproveitam para ridicularizar

algumas características ou defeitos físicos. Quando a vítima chora, defeca ou urina,

reações freqüentes diante de tamanha violência, os torturadores fazem piadas. É

uma forma de tornar a vítima mais vulnerável. Também costuma-se atemorizar a

vitima dizendo que os próximos a apanhar serão seus familiares.

2.4.17 Saco Preto

Método usado por todas as policias brasileiras, e só veio a publico no filme

Tropa de Elite, Gravado no estado do Rio de Janeiro, é usado para obter

informações e confissões de pessoas suspeitas o até mesmo de presos, onde e

vestido um saco de lixo preto na cabeça e trancado com isso, a pessoa com o

passar do tempo fica sem respirar é feito durante varias vezes até que obter o

resultado desejado é o preferido dos policiais, pois não deixa marcas e nem lesões.

CAPITULO 3

TIPIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TORTURA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

Segue-se à análise do texto legal, para o aprofundamento, tanto quanto

possível, ao exame da lei.

3.1 TORTURA PARA OBTER INFORMAÇÃO OU CONFISSÃO

A primeira conduta descrita na Lei 9.455/97 é:

“Art. 1º - Constitui crime de tortura:

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I – constranger alguém com emprego de violência ou grave

ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da

vítima ou de terceira pessoa;”.

“Classificação: Trata-se de crime material e comum.”68

Tipo penal: aberto, por tratar de norma que não expressa completamente a

norma que o agente transgride com o seu comportamento, não há uma descrição

completa do comportamento delituoso, que depende sempre de transgressão de

normas especiais, como ocorre com os crimes culposos e comissivos por omissão.

“A primeira figura exige um elemento subjetivo explicitado no fim de obter

informações ou confissão da vítima ou de terceira pessoa.” 69

Temos então a figura típica, descrita pela Lei nº 9.455/97, em uma redação

direta, que é: constitui crime de tortura constranger alguém com emprego de

violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de

obter informação, declaração, ou confissão da vítima ou de terceira pessoa.

A finalidade do agente é a obtenção de informações que levem ao autor ou aos autores de um fato determinado, do local onde podem ser encontrados, ou qualquer outro informe concernente à descoberta desse fato, ou à confissão da vítima, qual seja a admissão da prática dos atos supostamente criminosos que se suspeita tenha ela empregada contra a vítima para que terceiro que ela presencie venha a prestar as informações desejadas ou mesmo a admitir ser ele, terceiro, o autor da infração.70

“O sujeito ativo é qualquer pessoa e o sujeito passivo, que sofre o

constrangimento, é a vítima e terceira pessoa. Não se exige qualquer qualidade

especial do sujeito passivo, sendo este qualquer pessoa.”71

Consumação: por se tratar de crime material, só é admitida a consumação

através de atos comissivos, não sendo admitida a omissão, exemplo (expor a vítima

aos procedimentos do capítulo anterior, pau de arara, choque elétrico, etc.).

68 SILVA, José Geraldo da. Leis penais especiais anotadas/José Geraldo da Silva, Fabiano Genofre e Wilson Lavorenti, p. 148. 69 BORGES, José Ribeiro. BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 175. 70 BORGES, José Ribeiro. BORGES, José Ribeiro. Tortura: Aspectos Históricos e Jurídicos; O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 175. 71 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 30.

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“Tentativa: perfeitamente admissível, uma vez que se trata de crime

plurissubsistente, que é aquele que se realiza em vários atos, admitindo

fracionamento.”72

O dispositivo legal em comento, dentre os meios empregados para constranger, não fez constar “qualquer outro meio”, como v.g. no crime de constrangimento ilegal – art. 146 do Código Penal. Cabem nesta expressão, como nos adverte E. Magalhães Noronha (Direito Penal, vol. 2, pág. 151, Saraiva, 1987), os meios de natureza físico-moral, que produzem um estado fisiopisíquico, o qual tolhe a defesa do sujeito passivo, como a ação dos narcóticos, anestésicos, álcool e até mesmo a hipnose.73

O uso desses meios, não parece acertado enquadrar como emprego de

violência ou grave ameaça, a não ser nos casos em que essas substâncias sejam

empregadas para obrigar a vítima a confessar, causando-lhe sofrimento físico ou

psíquico.

Muitas outras hipóteses podem ser aventadas. Então não nos parece que a omissão da lei seja plausível. Por tratar-se de norma penal incriminadora, com elementos especificados (violência ou grave ameaça) e sem uma cláusula genérica (quaisquer outros meios), está vedada a possibilidade de analogia, interpretação extensiva ou análoga para incluir dentre os meios empregados o uso de substância entorpecente, álcool, anestésicos, hipnose e outros.74

3.2 TORTURA PARA A PRÁTICA CRIMINOSA

A segunda conduta criminosa no descrita no art. 1º da Lei nº 9.455/97 é:

“Art. 1º - Constitui crime de tortura:

I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave

ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) [...]

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;”

“Aqui o constrangimento, nas condições especificas da lei, objetiva provocar

ação de natureza criminosa ou omissão de natureza criminosa.”75

72 SILVA, José Geraldo da. Leis penais especiais anotadas/José Geraldo da Silva, Fabiano Genofre e Wilson Lavorenti, p. 148. 73 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 31. 74 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 32. 75 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura, p. 33.

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Sendo que ação e conduta positiva, que depende da conduta de agir, fazer,

atuar pelo agente, enquanto que a omissão é a abstenção, a ausência de

movimento, é não fazer, não praticar determinada conduta exigida pela lei.

Neste caso, a conduta do agente em constranger a vítima com o emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe dor ou sofrimento físico ou psíquico, tende a provocar uma ação ou omissão de natureza criminosa, como no caso de impedir que a vítima preste socorro a alguém, o que constitui omissão de socorro, ou que realize uma conduta positiva, como no caso de seqüestro. A vítima, nestes exemplos, estará acobertada por uma causa excludente da culpabilidade – coação moral irresistível -, nos termos do art. 22, 1ª parte, Código Penal, l respondendo o agente coator pelo crime de tortura em concurso material com o crime cometido pela vítima.76

3.3 TORTURA EM RAZÃO DE PRECONCEITO RACIAL OU RELIGIOSO

O terceiro tipo penal descrito na Lei nº 9.455/97, vem assim redigido.

“Art. 1º - Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave

ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) [...]

b) [...]

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;”

A terceira figura prevê a conduta praticada em razão de discriminação racial ou religiosa, concluindo-se que nesse passo a redação afigura-se imprecisa, pois a expressão constranger, núcleo do tipo significa coagir ou obrigar a determinada ação ou omissão. Da análise do texto, extrai-se um constrangimento vago, sem qualquer conduta imposta à vitima. Nesse caso, para melhor tipificação, seria mais apropriado um dispositivo à parte, já que para a consumação do crime bastaria o sofrimento físico ou mental provocado na vítima mediante violência ou grave ameaça, em razão de discriminação racial ou religiosa.77

“O Brasil é um país formado pelo caldeamento de várias raças, cujo povo

professa vários credos. A despeito disso, existe preconceito de raça contra negros, 76 SILVA, José Geraldo, Genofre Fabiano e Lavorenti Wilson Lavorenti, Leis penais especiais anotadas. P.148.

77 BORGES, José Ribeiro. O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 176

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índios, orientais e outros. [...]”78 Além disso, o preconceito atinge também a esfera

religiosa, sendo ela praticada contra seguidores e membros de seitas de origem

africana, religiões cristãs, espíritas, e também contra os evangélicos.

Com a promulgação da Lei nº 9.455, de 13 de maio de 1997, que alterou dispositivos da Lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, incluiu-se, na proteção legal, a etnia e a religião ou procedência nacional, corroborando os direitos e garantias fundamentais do cidadão, expressas na Constituição Federal/88, art. 5º, incisos VI, XLI e XLII.

3.4 TORTURA PRATICADA PELO GARANTE

O quarto crime tipificado na Lei nº 9.455/97, vem assim descrito:

“Art. 1º - Constitui crime de tortura:

I – [...]

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade,

com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso

sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo ou

medida de caráter preventivo.”

Trata-se de crime próprio, uma vez que exige condição especial do sujeito ativo, ou seja, é um crime que pode ser praticado por pessoa que tenha a vítima sob sua guarda, poder ou autoridade, como é o caso do pai, professor, tutor, curador, enfermeiro, médico, policial, etc.79

Segundo Mauro Faria Lima, de inicio fala a Lei em submeter, sob sua guarda,

poder ou autoridade. Submeter significa: sujeitar, subordinar, outrem. Guarda

significa cuidado, proteção, amparo, pressupõe vigilância, zelo. Autoridade é poder,

dar ordens, tomar decisões, agir.80

Essa espécie de tortura, quando configurada, afastará a incidência do crime

de maus tratos, decorrente de abusos de meios de correção e disciplina, cuja

78 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas, p. 34. 79 SILVA, José Geraldo, Genofre Fabiano e Lavorenti Wilson. Leis penais especiais anotadas/, p. 149. 80 LIMA, Mauro Faria de. Crimes de Tortura.

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consumação ocorre com a mera exposição a perigo (art. 136 do CP), pelo principio

da especialidade. Na tortura, o agente tem a intenção de submeter a vítima a tais

sofrimentos, no caso de maus tratos, não.

A tortura descrita nesse dispositivo afastará ainda o crime de abuso de autoridade, previsto no art. 3º, letra i, da Lei nº 4.898, de 1965, quando comprovada a intensidade do sofrimento físico ou mental causado pelo sujeito ativo. Mais uma vez, tem incidência, face ao conflito aparente de normas, o principio da especialidade.81

Assim o delito de tortura, como já especificado no capitulo anterior, pelo

principio da especialidade, afasta o reconhecimento dos crimes de maus tratos (CP,

art. 136), constrangimento ilegal (CP, art. 146), ameaça (CP, art. 147) abuso de

autoridade (CP, arts. 322 e 350, e Lei nº 4.898/65), absorvendo igualmente, o de

lesões corporais de natureza leve (CP, art. 128, caput).

Para todos os crimes tipificados no caput e incisos I e II do art. 1º da Lei nº

9.455/97, até aqui comentados, a pena é de reclusão de 02 (dois) a 08 (oito) anos.

3.5 SUBMISSÃO DE PESSOA PRESA OU SUJEITA A MEDIDA DE SEGURANÇA A SOFRIMENTO ILEGAL

A quinta figura criminosa tipificada na Lei nº 9.455/97, vem assim descrita:

“Art. 1º - Constitui crime de tortura:

[...]

Pena – reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou

sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental,

por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não

resultante de medida legal”.

81 BORGES, José Ribeiro. O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 177.

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O dispositivo legal incriminador em comento exige uma situação especial do sujeito passivo: estar preso ou submetido à medida de segurança. Pessoa presa é pessoa encarcerada, detida, reclusa. É a pessoa que perdeu sua liberdade de ir e vir. [...]82

“Trata-se de crime próprio, uma vez que somente pode ser praticado por

algumas pessoas em razão de suas funções, como é o caso do carcereiro, do

delegado de polícia, do diretor do presídio, do agente penitenciário, [...]”83 Também

pode ser enquadrado como sujeito ativo neste delito, o médico e o enfermeiro do

nosocômio, onde a vítima estiver internada.

“Ato previsto em lei e ato resultante de medida legal são a mesma coisa: ato

legal. Não pode haver crime se o ato é legal. Assim, se na prisão em flagrante delito,

o policial tem que empregar força necessária para dominar, [...]”84, portanto, aquele

ato praticado por autoridade policial, para algemar, deter, conduzir pessoa presa em

flagrante delito, não configura ato criminoso, apesar de muitas vezes causar

sofrimento físico e mental ao imputado.

Ao contrário então, podemos dizer, que ato não resultante de medida legal,

que causa sofrimento, é ato ilegal. Causar sofrimento físico ou mental em pessoa

presa ou sob medida legal, através de ato ilegal, é crime.

Desta feita é crime: obrigar o autor de crime de homicídio a abraçar e beijar o cadáver de sua vítima; obrigar o preso a ficar na porta da cadeia, de frente para a via pública exibindo a res furtiva aos transeuntes; amarrar pessoas detidas umas às outras e tange-las pelas vias públicas à vista de populares; obrigar o preso a beber o próprio sangue com água e sal após espancamento, etc.85

A consumação se dá através do sofrimento físico ou mental da vítima, após

ato ilegal.

A rigor a figura da forma à garantia constitucional que assegura aos presos “o respeito à integridade física e moral” (CF, art. 5º, inciso XLIX), igualmente consubstanciada no Código Penal quando estabelece que o preso “conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integralidade física e

82 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas p. 42. 83 SILVA, José Geraldo, Genofre Fabiano e Lavoreni Wilson da. Leis penais especiais anotadas/,p. 150. 84 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e tortura,p. 44. 85 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas p. 46.

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mental (art. 38)”. Acrescendo dizer que as limitações aos direitos do preso são igualmente impostas na Lei de Execução Penal.86

3.6 OMISSÃO CRIMINOSA

O sexto tipo penal, na verdade, trata de duas condutas criminosas, consoante

expresso no parágrafo 2º do artigo 1º da Lei nº 9.455/97:

“Art. 1º - [...]

§ 1º - [...]

§ 2º - Aquele que se omite em face dessas condutas, quando

tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de

detenção de um a quatro anos.”

Classificação: trata-se de crime omissivo e próprio, uma vez que somente poderá ser cometido por uma determinada categoria de pessoas, as quais possuam relação hierárquica com o subordinado transgressor, e tenha o dever de fiscalização em relação a ele.87

O primeiro crime tipificado, trata de crime praticado pelo garante ou

garantidor, conforme o que preceitua o § 2º do art. 13 do Código Penal Brasileiro,

qual seja, por quem tinha por lei, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, assim

o sujeito ativo dessa modalidade criminosa, pai, tutor, curador, professor, médico,

enfermeiro, guia de alpinismo, policial, carcereiro, guarda de presídio, funcionários

de internatos de menores, etc, e o sujeito passivo, qualquer pessoa que se enquadre

na qualidade de ofendido por qualquer uma das condutas criminosas tipificadas na

Lei nº 9.455/97.

O elemento objetivo é a omissão que denota a inação de superior diante de

ato praticado pelo subordinado, já o elemento subjetivo, condiciona que a omissão

deve ser dolosa, quando o agente deixou de agir de livre vontade, consciente e

dirigida.

86 BORGES, José Ribeiro. O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 180. 87 SILVA, José Geraldo, Genofre Fabiano e Lavoreni Wilson da. Leis penais especiais anotadas/,p. 150.

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“O segundo crime tipificado diz respeito àquele que se omite em face dessas

condutas, quando tinha o dever de apurá-las.”88

Aqui o sujeito ativo não é mais o garante, mas sim aquele que tem por dever

se ofício a obrigação de apurar a ocorrência de quaisquer das infrações penais

descritas pela Lei nº 9.455/97.

È uma infração penal que ocorre com muita freqüência. Vigora nas polícias civil e militar um corporativismo nefasto e pernicioso que faz com que os superiores hierárquicos nunca apurem os crimes praticados por subordinados seus. Isto mais na polícia civil que na militar. O resultado é a permanência de verdadeiros bandidos impunes no seio das organizações policiais. Vem em boa hora a incriminação dessa conduta. Doravante o secretário de segurança pública, o chefe da polícia civil, o comandante geral da polícia militar, o delegado de polícia, o comandante da unidade militar, ou quem tiver por determinação legal ou regulamentar a obrigação de apurar as infrações penais tipificadas na Lei nº 9.455/97, sendo omissos, incidirão nas sanções de dispositivo em comento. São pois o sujeito ativo desse crime.89

3.7 CRIMES COM RESULTADO LESÃO CORPORAL GRAVE, GRAVÍSSIMA OU MORTE

O parágrafo 3º da Lei nº 9.455/97, vem assim redigido:

“§ 3º - Se resulta lesão corporal de natureza grave ou

gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se

resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.”

Quando o agente, ao praticar o delito de tortura, ocasionar à vítima lesão corporal de natureza leve, subsiste tão-somente o primeiro, em face do princípio da consunção. Caso a lesão seja de natureza grave, o delito de tortura torna-se qualificado, conforme se verifica no art. 1º, § 3º, da lei em epígrafe.90

88 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas,p. 48. 89 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas. 90 COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 202.

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Este objeto de estudo é uma circunstância qualificadora do delito, uma vez

que com o resultado o agente atinge não só os efeitos da tortura, mas causa outros

resultados, exemplo da morte da vítima, que o agente quis o minus e alcançou o

majus.

Pelo prisma subjetivo, deve o agente agir com dolo direto ou eventual, em relação à violência ou grave ameaça, ou ainda através da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal, eficiente para causar sofrimento físico ou mental na vítima, que resulte em lesão corporal grave ou gravíssima, e com culpa em relação ao resultado morte. Neste último caso, houve dolo na conduta antecedente da tortura, e culpa no resultado conseqüente, morte.91

Na eventualidade de se ter dolo no antecedente, qualquer um dos crimes

tipificados na Lei nº 9.455/97, com exceção da última figura do § 2º, e dolo no

conseqüente, quanto à lesão corporal grave ou gravíssima e a morte, e concurso de

crimes (formal ou material, dependendo do caso concreto). No caso do parágrafo 3º

da Lei nº 9.455/97, tem-se o concurso de crimes, de Tortura e de Lesão Corporal

grave (art. 129, § 1º, do Código Penal) e lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º do

Código Penal), ou crime de Homicídio (art. 121 do Código Penal). A aplicabilidade

das circunstâncias qualificadoras é aplicável a todas as figuras de tortura, exceto no

caso de omissão.

Diferença entre tortura (art. 1º, II, Lei nº 9.455/97) e os maus tratos (art. 136, Código Penal): A objetividade jurídica de ambos é a mesma: vida e saúde. Trata-se de crimes próprios. A diferença reside no elemento subjetivo do tipo, que, no art. 136, Código Penal, é o dolo de perigo, e no art. 1º, II, Lei nº 9.455/97, é o dolo de dano. No crime de maus-tratos, o agente abusa da correção para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. No crime de tortura, pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.92

O delito de tortura, na hipótese aqui enfocada, absorve o crime de maus

tratos, em face da aplicação do princípio da subsidiariedade, de forma que quando o

ato não se revestir de intenso sofrimento físico ou mental, poderá amoldar-se ao tipo

definido no art. 136 do Código Penal.

91 SILVA, José Geraldo , Genofre Fabiano e Lavoreni Wilson da. Leis penais especiais anotadas, p.152. 92 SILVA, José Geraldo , Genofre Fabiano e Lavoreni Wilson da. Leis penais especiais anotadas /, p.153.

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3.8 CAUSAS DE AUMENTO DE PENA.

Estabelece o § 4º do artigo 1º da Lei nº 9.455/97 que:

“§ 4º - Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I – se o crime é cometido por agente público;”

“O dispositivo em análise revela que o legislador pretendeu classificar o delito

de tortura como crime comum, impondo-se, por conseguinte, o comentário crítico já

descrito no início do presente capítulo.”93

Entende-se por funcionário público toda pessoa que exerce uma função ou

está encarregada de uma delegação pública. Adotou-se o conceito mais amplo

possível de funcionário público, conforme preceituado no art. 327 do Código Penal,

in verbis:

“Art. 327 – Considera-se funcionário público, para efeitos

penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração,

exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário quem exerce cargo, emprego

ou função em entidade paraestatal.”

Dentro desse conceito amplo, como nos ensina Júlio Fabbrini Mirabete,

embasado em julgados que nomina, para efeitos penais, são funcionários públicos o

Presidente da República, o Prefeito Municipal, os membros das casas legislativas,

inclusive o vereador, o militar, o serventuário de justiça (oficial, escrivão, escrevente)

de cartório não oficializado, o perito judicial, o advogado encarregado da cobrança

da dívida ativa municipal, o contador da Prefeitura Municipal, o guarda municipal, o

inspetor do quarteirão, o guarda noturno no exercício de função de policiamento, o

estudante de Direito atuando como estagiário junto à Defensoria Pública, e agentes

policiais, (delegados de polícia, escrivães, carcereiros, inspetores) e outros.

Justifica-se o aumento de pena, no caso, face ao potencial lesivo maior que o

sujeito ativo tem, praticando crimes, muitas vezes se prevalecendo das condições e

facilidades atinentes ao exercício da função.

93 COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 194.

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“Para ocorrer o aumento de pena é necessário que o agente público atue

nessa qualidade ou, a pretexto de sê-lo, atue em razão dela.”94

A segunda hipótese de aumento da pena, contemplada pela Lei nº 9.455/97,

diz respeito ao sujeito passivo do fato criminoso e está assim redigida:

“§ 4º - Aumenta-se a pena de um sexto a um terço:

I – [...]

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente

e adolescente;”

Não subsiste dúvida de que o crime de tortura perpetrado contra as pessoas

aqui enfocadas demonstra uma maior magnitude do injusto penal, a justificar a

incidência de majorante.

A tortura perpetrada contra a gestante merece maior reprimenda já que não

se pode desconsiderar o fato de que a mulher, na evolução da gravidez, passa por

diversos fenômenos físicos e psíquicos, que afetam a sua normalidade, de modo

que se mostra merecedora de uma explicita tutela penal, havendo necessidade, no

entanto, de que o agente tenha ciência do referido estado de gravidez.

Quanto à pessoa do deficiente, é inegável tratar-se de indivíduo também

portador de diminuta capacidade de defesa, a merecer maior atenção dos agentes

públicos. Se estes, ao contrário, abusam de tal condição, para infligir-lhe tortura,

impõe-se a aplicação da majorante, pela maior gravidade do injusto.

A terceira causa de aumento de pena, ocorre quando o crime é praticado mediante

seqüestro, disciplinado pelo § 4º, inciso III, que diz:

“§ 4º - Aumenta-se a pena de um sexto a um terço:

I – [..]

II – [...]

III – se o crime é cometido mediante seqüestro.”

Seqüestro é a privação da liberdade de locomoção de alguém.

É inegável, que, no seqüestro, a vítima, além de se encontrar privada da sua liberdade, se encontra, também, totalmente subjugada, não oferecendo nenhuma defesa à prática da tortura, o que justifica, com clarividência, a

94 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas, p.54.

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aplicação da referida majorante, pela notória magnitude do injusto. Saliente-se, contudo, que o seqüestro deve ser o meio utilizado para a prática da tortura, já que, ultimada esta, se a vítima permanece, ainda, privada da sua liberdade, haverá concurso material de infrações entre os delitos de tortura e seqüestro.95

“Justifica-se a causa de aumento da pena em razão do maior padecimento da

vítima e pela maior ousadia do sujeito ativo. O seqüestro de pessoas é um dos

males que nos afligem nos dias de hoje. É um flagelo moderno.”96

3.9 EFEITOS DA CONDENAÇÃO

Segundo o Jurista Mauro Faria Lima, “condenação é o ato próprio do órgão

judiciário que impõe uma sanção penal ao autor de um fato delituoso”.97 Essa

condenação importa em efeitos principais como a aplicação da pena (reclusão,

detenção, prisão simples) ou medidas de segurança e em efeitos secundários de

natureza penal e extrapenal.

A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a

interdição para o exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada (art. 1º, § 5º), Não

se trata de pena acessória que existia no Código Penal originário, o de 1940, mas de

efeito da condenação, como no previsto no art. 92, I, da reforma penal de 1984 (Lei

nº 7.209 de 11 de julho de 1984).

“Então temos como efeito administrativo da condenação nos crimes tipificados

na Lei antitortura, a perda obrigatória do cargo, função ou emprego público.” 98

Cargo público é definido doutrinariamente como o “lugar instituído na

organização do serviço público, com denominação própria, atribuições específicas e

estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma

estabelecida em lei”. 99

Função pública pode ser conceituada como a atribuição ou atividade

específica ou um conjunto delas, cujo exercício o Poder Público incumbe a um

agente administrativo ou a um conjunto deles

95 COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p. 195. 96 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas, p.55. 97 LIMA, Mauro Faria. Crimes de Tortura.p.56. 98 LIMA, Mauro Faria. Crimes e torturas, p.57. 99 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 356.

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Emprego público é a relação contratual estabelecida entre o servidor e o

Estado, em regra regida pela legislação trabalhista e para a execução de trabalho

temporário.

Assim, a condenação pela prática de qualquer crime tipificado na Lei nº 9.455/97 acarretará, importará, na perda do cargo, função ou emprego público e ainda na interdição, ou seja, na proibição para o seu exercício pelo dobro do quantum da pena cominada.100

Os efeitos da condenação são automáticos. Desta feita, condenado o réu,

com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, de plano, deverá perder

o cargo, função ou emprego público. Não sendo necessário sequer que conste na

sentença, à semelhança dos efeitos secundários do art. 91 do Código Penal.

3.10 VEDAÇÃO DOS BENEFÍCIOS LEGAIS

A Lei nº 9.455/97 estabelece em seu art. 1º, § 6º:

“§ 6º - O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de

graça ou anistia.”

Considerando o teor das medidas protetivas fomentadas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, as quais se encontram consubstanciadas nos instrumentos jurídicos internacionais já analisados, e, diante, ainda, da gravidade do crime de tortura, a Constituição da República vedou a concessão de fiança, de graça ou anistia aos autores de tal crime, que passou a ser equiparado a hediondo, pelo que depreende do disposto no art. 5º, XLIII.101

Assim, pela lei e pela Constituição, ao crime de tortura estão vedados os

benefícios da fiança, da graça e da anistia.

Pode haver liberdade provisória e indulto?

A Lei nº 9.455/97 e silente. Limitou-se a repetir o disposto na Constituição Federal. Sem maiores considerações, na oportunidade, podemos dizer que a fiança é um instituto totalmente desmoralizado no direito brasileiro. Aliás, ao contrário do direito alienígena, nunca gozou de grande prestígio entre nós, reservado que foi sempre para infrações de menor gravidade, apenas com menos rigor, qual seja detenção e prisão simples (art. 322 do Código de Processo Penal),

100 LIMA, Mauro Faria. Crimes e torturas, p.58. 101 COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura p. 196.

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reclusão com pena mínima de até dois anos e contravenções penais, exceto as dos arts. 59 e 60 da LCP (art. 323, incisos I e II, do Código de Processo Penal).102

“A Lei 8.072/90, disciplinando os crimes hediondos e os a eles equiparados,

estabeleceu, no art. 2º, que a prática da tortura e doas demais delitos ali contidos é

insuscetível de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória.”103

A Lei 9.455/97, por sua vez, disciplinando, especificamente, o crime de

tortura, estabeleceu, no art. 1º, § 6º, que o crime de tortura é inafiançável, e

insuscetível de graça ou anistia.

Pode haver liberdade provisória mediante fiança?

A fiança constitui uma garantia real (caução), prestada no processo, para que

o acusado possa gozar de liberdade provisória, regulamentada nos arts. de 321 a

350 do Código de Processo Penal.

É bem verdade que a Lei nº 8.072/90 vedou, expressamente, a concessão da liberdade provisória aos autores dos crimes em análise. No entanto a Lei nº 9.455/97, ao regular, especificamente, a tortura, repetiu o texto constitucional, permitindo, por conseguinte, que o autor de crime de tortura possa receber a liberdade provisória, apesar de se tratar de delito inafiançável. A nova lei, pelo critério da especialidade, deve prevalecer, portanto, em relação aos ditames da Lei nº 8.072/90.

Desta feita, apesar do crime de tortura ser inafiançável, é perfeitamente

admissível que o acusado de tal ato, possa gozar do benefício da liberdade

provisória.

Quanto à anistia, podemos assim defini-la. “um ato do poder soberano que

cobre com o véu do olvido certas infrações criminais, e, em conseqüência, impede

ou extingue os processos respectivos e torna de nenhum efeito penal as

condenações”.104 Tal benefício somente pode ser concedido, através de lei, sendo

ato privativo do Congresso Nacional, segundo o art. 21, XVII e 48, VIII da

Constituição Federal.

102 LIMA, Mauro Faria. Crimes e torturas, p.59. 103 COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura p. 196. 104 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira, vol. I, 1954, p. 155.

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“Por se tratar de crime gravíssimo, monitorado, inclusive, por Comitês

internacionais (ONU e OEA), a vedação da anistia aflora, no caso, como exigência

de garantia absoluta à tutela da dignidade humana.” 105

A graça, assim como o indulto são atos privativos do Presidente da República,

conforme se verifica no art. 84, inciso XII, da Constituição Federal, representando,

dessa feita, como a anistia, atos de indulgência soberana.

A graça e o indulto, implicam na renúncia ao direito de punir, onde o soberano

perdoa o crime praticado, extinguindo-se assim a punibilidade. A diferença básica

entre graça e o indulto, é que aquela é de caráter individual, enquanto este coletivo.

3.11 REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA

O regime de cumprimento da pena pelo que reza o art. 1º em seu § 7º, “o

condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do art. 2º, iniciará o

cumprimento da pena em regime fechado”.

Nada mal sob o ponto de vista de defesa da sociedade e do cidadão, contra esta modalidade criminosa repugnante, considerando-se que tendo os crimes de tortura penas mínima de dois anos de reclusão nas modalidades simples (art. 1º) e quatro e oito, nos tipos preterdolosos (art. 1º, § 3º), caberia até cumprimento das penas em regime aberto e regime semi-aberto (art. 33, § 2º, letras b e c, do Código Penal. [...]106

Há que se entender que a Lei de Tortura, da mesma forma, veda a concessão

do indulto, permitindo, contudo, a progressão no cumprimento da pena, ao dispor o

art. 1º, § 7º que o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º,

iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Repetindo o que já fizera a lei

do crime organizado (Lei nº 9.034/95) previu o início do cumprimento da pena em

regime fechado, restaurando a progressividade das penas, princípio de direito penal,

violentado pelas duas leis que regulam os crimes hediondos, Lei nº 8.072/90 e Lei

nº 8.930/94 que alterou dispositivos de Lei dos Crimes Hediondos, porém manteve a

visão da não progressividade de regime de cumprimento da pena.

Assim, para o crime de tortura existe a possibilidade de progressão de

regime, visto que o texto legal indica o início do cumprimento da pena em regime

105 COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura, p 197. 106 LIMA, Mauro Faria. Crimes e torturas, p 62.

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fechado, admitindo assim a progressividade depois de cumpridos os requisitos legais

para tal concessão.

3.12 O PRINCÍPIO DA EXTRATERRITORIALIDADE

O artigo 2º da Lei nº 9.455/97, dispõe que:

“Art. 2º - O disposto nesta Lei aplica-se quando o crime não

tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima

brasileira ou encontra-se o agente em local sob jurisdição

brasileira.

Respeitando a internacionalização na punição da tortura, assim como de outros crimes contra a humanidade, a Lei nº 9.455/97 contemplou a possibilidade de punição da tortura mesmo que praticada fora do território brasileiro, dispondo no § 2º que o disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido no território nacional, sendo vítima brasileira”. O principio da justiça cosmopolita e os compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais obriga a que se puna o crime de tortura ainda que praticado fora da do território brasileiro, desde que concorra umas das seguintes condições: ser a vítima brasileira: principio real da proteção que leva a punição de atos lesivos a nacionais e encontrar-se o agente sob jurisdição brasileira, em território brasileiro, em situações de excepcionalidade como a dos crimes ocorridos a bordo de navios ou aeronaves em território estrangeiro ou águas internacionais, quando não puníveis pela legislação do pais ocorridas.107

Assim o crime de tortura segundo a legislação brasileira, será punido tanto

praticado em território nacional, quanto no estrangeiro, desde que a vitima seja

brasileira, ou sob jurisdição brasileira, ou mesmo quando embarcações ou

aeronaves particulares, mas com bandeira brasileira.

107 BORGES, José Ribeiro. O Crime da Tortura da Legislação Brasileira Análise da Lei nº 9.455/97, p. 190/191.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurar as origens da tortura na história constitui tarefa árdua, pois há

somente registros esparsos, principalmente quando ela é entendida como punição.

Desde o código de Hamurabi, o conjunto de leis adotado na Babilônia no século

XVIII antes de Cristo, passando pela Idade Média com a oficialização pela Igreja

Católica através da inquisição, e chegando aos dias atuais, onde vê-se essa

barbárie sendo divulgada aos quatro ventos pela mídia nacional e internacional,

também na rede mundial de computadores (internet), pode-se concluir de que essa

forma de punição ou acovardamento do ser humano aquele “hiposuficiente” numa

relação onde quem está revestido do poder, quer ele seja estatal, quer seja de

ordem pessoal, verifica-se que esta modalidade sempre esteve presente na

evolução do ser humano, como sociedade.

No primeiro momento, foram elucidadas as fontes históricas da lei de tortura,

mencionando as dificuldades conceituais e normativas contidas nesta Lei,

especialmente no inciso II, do art. 1º, da lei 9455/97 que têm levado os aplicadores,

diante de cada caso concreto, a continuar classificando apenas como maus tratos

(art.136, do Código Penal), condutas que encontrariam tipicidade específica.

No que tange o Direito Canônico, registra-se que visando combater as

heresias, a Igreja Católica criou os tribunais de inquisição, que posteriormente foi

instalado o Tribunal do Santo Oficio, o qual funcionava como tribunal supremo de

resoluções de todas as questões, que envolviam a fé e a moral, nesse período,

aqueles que eram considerados hereges, padecia sob o Tribunal do Santo Oficio.

O uso da tortura foi facilitado pela adoção do sistema inquisitivo, e

intensificado, pelo fato de os juízes, a exemplo da teoria canônica, passarem a

considerar a confissão do acusado como a rainha das provas. Assim, a tortura era o

instrumento mais importante do processo penal, para que de qualquer forma, dela se

extraísse a confissão do acusado.

Diversos documentos internacionais, aceitos como instrumentos legais,

proíbem a tortura e demais formas de tratamento cruel, desumano ou degradante.

Mas apesar deste arsenal de textos jurídicos internacionais, continuam indefinidos

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os meios de aplicação à realidade dos diferentes sistemas políticos, religiosos e

culturais; surgindo, pois, a necessidade de legislações específicas, em relação à

tortura, em cada país.

Independentemente do contexto sócio-econômico, cultural e racial de cada

nação, se faz necessário o respeito às garantias mínimas, que derivam do direito

internacional já vigente, tais como: proibição absoluta de prisão clandestina; o direito

para todo o prisioneiro de entrar imediatamente em contato com parentes, um

advogado e um médico; supervisão dos interrogatórios por uma autoridade

independente; proibição de ser levada a julgamento qualquer declaração prestada

sob tortura.

Outra disposição visando preservar a liberdade individual dos presos, e de

caráter internacional, é o artigo 10 do Pacto sobre direitos Civis e Políticos, segundo

o qual toda pessoa privada da própria liberdade deve ser tratada com humanidade e

ter respeitada sua dignidade como pessoa humana.

À aplicação da tortura a um acusado enquanto se faz o processo é uma

crueldade consagrada, para arrancar dele a confissão do crime, ou para esclarecer

as contradições em que caiu, ou para descobrir cúmplices ou outros crimes de que

não é acusado, mas dos quais poderia ser culpado, quer enfim, por razões sofistas

incompreensíveis da maioria dos governos.

O interrogatório do réu é feito para conhecer a verdade, mas se esta verdade

dificilmente se revela pela atitude, pelo gesto, pela fisionomia de um homem

tranqüilo, muito menos apareceria no homem, no qual, as convulsões da dor alteram

todos os sinais, através dos quais, a maioria dos homens deixa, algumas vezes,

contra a vontade, transparecer a verdade. Toda ação violenta confunde e suprime as

mínimas diferenças dos objetos, por meio dos quais se distingue o verdadeiro do

falso.

É dever de todos buscar a fraternidade, esquecida no mundo de hoje; pela

solidariedade entre os povos, para que não haja tortura e violência; pela tolerância

entre as pessoas, pelo desarmamento das mentes e dos corações; pela aceitação

do outro, diferente mas igual, sempre nosso irmão. Não importa que essas belas

idéias sejam um trabalho, em longo prazo. Sem utopias, a vida não vale a pena.

Para a efetivação desta Monografia, partiu-se de uma idéia, que aos poucos

foi se transformando em palavras, muitas vezes doloridas e indignadas, cada vez

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que se lia algo a respeito da tortura, principalmente os relatos das torturas praticadas

por policiais.

Buscou-se trazer a tona a doutrina e a Lei, para fazer um paradoxo, visando

sempre à obtenção de conhecimento, o que foi de grande valia.

Ao final, vê-se que há um longo caminho pela frente! Caminho esse, que é o

de incutir ou lobotomizar a mente daqueles que foram treinados para arrancar

informações a qualquer preço, pois é respeitando os tratados internacionais e as

garantias constitucionais, que se pode chegar a tão sonhada paz social.

De posse dos dados pesquisados através de pesquisa bibliográfica, após

criteriosa análise, algumas considerações relevantes surgiram. A primeira delas é o

fato de que segurança pública e direitos humanos podem conviver dentro de um

Estado democrático de direito. Não há o que contestar aquilo que está no escopo da

lei; basta tão e quão somente respeitar os seus preceitos e os direitos humanos já

estarão sendo promovidos.

Na elaboração de uma política de direitos humanos exeqüível para a

sociedade, há que ser considerado que não é possível resolver imediatamente

problemas que foram gerados ao longo de décadas, em que diversos organismos

policiais violaram princípios fundamentais e elementares dos seres humanos.

Porém as violações de direitos humanos têm muitas causas, de ordem

política, econômica, social, cultural e psicológica.

Na primeira hipótese estudada, verificou-se que as fusões, incorporações,

novos conhecimentos, a violência do dia-a-dia, conciliação entre trabalho e família,

sinais de stress, impactos tecnológicos, onde todos são elementos de uma nova

realidade. Todos os documentos abordados tiveram por fim a garantia dos direitos

fundamentais, a dignidade humana e a limitação ao poder estatal, através da

liberdade religiosa, a inviolabilidade de domicílio, o devido processo legal, a ampla

defesa o tribunal do júri, o princípio da legalidade entre outros.

A viagem da tortura e da violência através dos séculos se confunde com a

história do próprio homem. A tortura na sua evolução histórica, inicialmente era um

meio pelo qual o estado aplicava os tormentos como forma de punição, mais adiante

na história, usada como meio inquisitivo, e nos momentos atuais a tortura é vista

como crime que causa repudia na sociedade.

Na segunda hipótese observou-se que no Brasil a prática de tortura é coibida

através de texto constitucional, pois o progresso humano é gradual e lento. Porém

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no século XX a prática da tortura não é mais tolerada pela sociedade como um todo.

Tendo em vista o repúdio a este tipo de violência, o Brasil, participou da Assembléia

Geral da Organização das Nações Unidas, que promulgou a Declaração Universal

dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de 1948, dispondo em seu artigo 5º

que: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento e castigo cruel,

desumano ou degradante”; o Brasil também ratificou o mesmo texto da Declaração

Universal dos Direitos do Homem de coibição à prática da tortura, quarenta anos

depois, através do artigo 5º-III, da Constituição Federal.

Na terceira hipótese buscou-se a tipificação dos crimes de tortura e as

conseqüências para o ser humano, pois “O Brasil é um país formado pelo

caldeamento de várias raças, cujo povo professa vários credos. A despeito disso,

existe preconceito de raça contra negros, índios, orientais e outros. [...]”108 Além

disso, o preconceito atinge também a esfera religiosa, sendo ela praticada contra

seguidores e membros de seitas de origem africana, religiões cristãs, espíritas, e

também contra os evangélicos.

Tipificaram-se os crimes de tortura, que devem ser coibidos, e assim

preservando o interesse comum aliado ao convívio pacífico entre todos, elevando a

condição humana, alcançando o desiderato de por fim as diferenças sociais,

religiosas, culturais, e raciais. A liberdade e a dignidade, bem jurídico protegido na

situação de tortura, pertencem à essência do ser humano.

Há várias consequências que podem ser físicas ou mentais para a prática da

tortura qualificadora do delito, uma vez que com o resultado o agente atinge não só

os efeitos da tortura, mas causa outros resultados, exemplo da morte da vítima. O

delito de tortura, na hipótese aqui enfocada, absorve o crime de maus tratos, em

face da aplicação do princípio da subsidiariedade, de forma que quando o ato não se

revestir de intenso sofrimento físico ou mental, poderá amoldar-se ao tipo definido no

art. 136 do Código Penal.

O próprio Estado brasileiro, em relatório encaminhado ao Comitê Contra a

Tortura da ONU, reconheceu as dificuldades na erradicação da prática da tortura no

Brasil, em face da corrupção policial e o abuso de autoridade, que gravitam nos

organismos policiais, portanto este tema deve ser objeto de outras investigações e

108 LIMA, Mauro Faria de. Crimes e torturas, p. 34.

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estudos para que um dia possa realmente se coibir a completamente a tortura no

Brasil.

Existem graves desigualdades sociais, injusta distribuição de renda,

problemas estruturais do desemprego, do acesso a terra, da educação, da saúde e

do meio ambiente. Como já afirmado, esta pesquisa não esgota o assunto, apenas

reuniu alguns conhecimentos fundamentais de direitos humanos, buscando

contribuir para que haja condições, centrados na legislação vigente de dignidade de

pessoa humana.

O desconhecimento e o desrespeito aos direitos conduziram a atos bárbaros

que revoltaram a consciência da humanidade e provocaram o advento de novas leis,

com o objetivo de garantir a todos os homens, a liberdade de expressão, de

manifestação, de crença, de locomoção e, principalmente, com a miséria, com a

tirania e com os extermínios individuais ou em massa.

Dentro da política, a que o estudo se propôs, como forma de embasamento,

alguns temas de relevância tiveram o seu lugar de destaque, assim como amplas

mudanças de mentalidade, de modo que o cidadão se sinta protegido, tenha os seus

direitos garantidos e seja tratado com a dignidade que merece, quebrando

paradigmas.

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