13
A totalidade concreta: uma categoria para análise em história social Mathias Inacio Scherer 1 (PPG História - UFRGS) [email protected] Resumo: Palavras chaves: teoria da história; história social; categoria da totalidade concreta; materialismo histórico dialético. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto é, a unidade do diverso. (MARX, 2011, p. 54) Introdução: A proposta do artigo é abordar o desenvolvimento da História Social inserida em uma perspectiva de ciência social, baseada na concepção moderna de ciência. A História Social, enquanto perspectiva de análise histórica, é uma importante ferramenta para a produção do conhecimento histórico. O objetivo do trabalho é, ao abordar o desenvolvimento da História Social dentro desta perspectiva científica, dar ênfase a análise e destacar a importância da categoria de totalidade para a investigação histórica, categoria fundamental à História Social, não esquecendo que ela ainda é fundamental para as concepções teórico-metodológicas do materialismo histórico dialético, importante teoria para o desenvolvimento do conhecimento histórico. “Talvez seja esse o momento de comentar a influência marxista sobre alguns autores do grupo dos Annales. Embora Bloch e Febvre não tivessem grande interesse pelas ideias de Marx e que, mesmo em Braudel, as alegadas influências marxistas apontadas em suas obras sejam mais aparentes que reais, não se pode negar a ênfase nas estruturas, na longa duração e a preocupação com a totalidade significara, uma certa aproximação às ideias de Marx.” (PETERSEN e LOVATO, 2013, p.117) A totalidade é uma das categorias centrais dentro da teoria geral desenvolvida por Karl Marx. Ele não entende a totalidade como um todo composto por diversas partes que se encaixam e dão forma e serventia ao todo. Esta totalidade, “é uma 1 Licenciado em história e mestrando pelo PPG História UFRGS

A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

  • Upload
    phamque

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

A totalidade concreta: uma categoria para análise em história social

Mathias Inacio Scherer1

(PPG História - UFRGS)

[email protected]

Resumo:

Palavras chaves: teoria da história; história social; categoria da totalidade concreta;

materialismo histórico dialético.

“O concreto é concreto porque é a síntese de

múltiplas determinações, isto é, a unidade do diverso.” (MARX, 2011, p. 54)

Introdução:

A proposta do artigo é abordar o desenvolvimento da História Social inserida em

uma perspectiva de ciência social, baseada na concepção moderna de ciência. A História

Social, enquanto perspectiva de análise histórica, é uma importante ferramenta para a

produção do conhecimento histórico. O objetivo do trabalho é, ao abordar o

desenvolvimento da História Social dentro desta perspectiva científica, dar ênfase a

análise e destacar a importância da categoria de totalidade para a investigação histórica,

categoria fundamental à História Social, não esquecendo que ela ainda é fundamental

para as concepções teórico-metodológicas do materialismo histórico dialético,

importante teoria para o desenvolvimento do conhecimento histórico.

“Talvez seja esse o momento de comentar a influência marxista sobre alguns

autores do grupo dos Annales. Embora Bloch e Febvre não tivessem grande

interesse pelas ideias de Marx e que, mesmo em Braudel, as alegadas

influências marxistas apontadas em suas obras sejam mais aparentes que

reais, não se pode negar a ênfase nas estruturas, na longa duração e a

preocupação com a totalidade significara, uma certa aproximação às ideias de

Marx.” (PETERSEN e LOVATO, 2013, p.117)

A totalidade é uma das categorias centrais dentro da teoria geral desenvolvida

por Karl Marx. Ele não entende a totalidade como um todo composto por diversas

partes que se encaixam e dão forma e serventia ao todo. Esta totalidade, “é uma

1 Licenciado em história e mestrando pelo PPG História UFRGS

Page 2: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

totalidade concreta inclusiva e macroscópica, de máxima complexidade, constituída por

totalidades de menor complexidade” (NETTO, 2011, p. 56) a escola dos Annales, ao

reivindicar a totalidade, não busca fazer uma história de tudo, mas uma história de um

todo (a história de um todo integrado) que se articula em determinados períodos.

A teoria marxista muito influenciou o surgimento e desenvolvimento da história

social, já que esta possui um compromisso com a cientificidade e propõe uma

perspectiva de análise mais ampla da sociedade, buscando a totalidade. E, como é

impossível dentro da perspectiva marxista descolar a teoria da prática, visando

principalmente a transformação radical do mundo, a totalidade é fundamental, uma vez

que todos os objetos que mulheres e homens criam ou percebem são parte de um todo.

Para solucionar (transformar) os problemas que se colocam, é necessário ter uma visão

de conjunto: “é a partir da visão do conjunto que a gente pode avaliar a dimensão de

cada elemento do quadro.” (KONDER, 1981, p. 36)

História Social:

A História Social precisa ser entendida enquanto uma modalidade de análise,

uma lente que utilizamos para compreender o objeto. “En el primer caso toda historia

es historia social, una idea expresada casi siempre en términos llenos de nostalgia por

la totalidad” (CASANOVA, 1997, p. 87). Ela está colocada dentro de um campo da

historiografia que coincidiu com apogeu do estruturalismo, “assim, história social

significava pensar nas estruturas, nas grandes sínteses, na perspectiva de totalidade, no

longo prazo, nas massas e no povo.” (PETERSEN e LOVATO, 2013, p. 122). Ao ser

um campo definido, a História Social é resultado do interesse histórico em oposição à

história tradicional (história política – historicizante). A História Social precisa ser

abordada como uma perspectiva de síntese, inserida na ideia central de que em história

todas as abordagens estão colocadas no social e se relacionam. Conforme destaca Hebe

Castro: “Frente à crescente tendência à fragmentação das abordagens historiográficas,

esta acepção da expressão é mantida por muitos historiadores como horizonte da

disciplina”. (CASTRO, 1997, p. 78)

Page 3: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

A formação da ideia de História Social recebeu contribuições de duas

importantes escolas historiográficas. O primeiro impulso recebido foi na França com a

escola dos Annales (a partir da fundação da revista “Annales d´histoire économique et

sociale”), onde se buscara superar a história dos indivíduos pela história do coletivo.

Além de a história tradicional estar “mergulhada em uma erudição factual estéril ou em

interpretações sem base na investigação concreta” (PETERSEN e LOVATO, 2013, p.

107), eles buscavam a produção de uma história que possuísse um estatuto científico.

A inspiração para esta prática historiográfica, segundo Eric Hobsbawm, não vem

da história da classe dominante, mas sim do povo francês, que vai estabelecer a maioria

dos temas e métodos da história dos movimentos populares estudados por Georges

Lefebvre e Marc Bloch. O campo cientifico desenvolveu-se em outros países somente

após a Segunda Guerra Mundial e “seu avanço real apenas começou na metade dos anos

50, quando foi possível ao marxismo fazer sua contribuição plena ao mesmo”.

(HOBSBAWM, 1998, p. 218)

Outro significado importante para a História Social, que a liga diretamente aos

Annales, é a ideia de uma história total(izante), global(izante) que juntaria todas as

esferas da disciplina, a história econômica, a história cultural, a história política, que são

partes inseparáveis da sociedade, a história social deveria:

“realizar uma grande síntese da diversidade de dimensões e enfoques

pertinentes ao estudo de uma determinada comunidade ou formação social.

Portanto, estaria a cargo da História Social criar as devidas conexões entre os

campos político, econômico, mental e outros – o que implica que nesta

acepção a História Social deixa de ser uma modalidade mais específica, como

qualquer outra, para se tornar o campo histórico mais abrangente que se

abriria à possibilidade da mediação ou da síntese ... História Social como

História da Sociedade.” (BARROS, 2005, p. 15)

Lucien Febvre, um dos expoentes da escola dos Annales, apresenta uma

conferência em 1941 que depois veio a ser edita no livro Combates pela História (1942),

em que reivindica que não existe história econômica e social e sim que existe “somente

história, em sua unidade” (BRAUDEL, 1989, p. 45). Esta é uma perspectiva que vai

Page 4: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

assumir a história como total ou de uma história-síntese, característica muito bem

exprimida por Fernando Braudel,2 representante da segunda fase.

A historiografia tradicional inglesa sofria grande influência rankeana até pelo

menos a década de 1950. Os historiadores marxistas serão o outro grupo de

historiadores que irá impulsionar a história social por estarem colocados dentro do

paradigma do materialismo histórico dialético, “concepção de realidade como

totalidade, a historicidade da teoria, a precedência do acontecimento real diante do

compromisso do conhecimento histórico com a verdade, a centralidade da luta de

classes” (PETERSEN e LOVATO, 2013, p. 174). Naquele momento, fazia-se

necessário estudar aspectos econômicos e sociais da história. Eles buscavam a

renovação do materialismo dialético, inserindo o estudo do mundo da cultura como

complementar modo de produção e não um mero reflexo da infraestrutura econômica da

sociedade. O que se colocava era estudar os modos de produção, as bases econômicas e

sociais que determinam a vida em sociedade e, conectadas ao estudo das relações dos

grupos sociais em conflito na sociedade, a luta de classes. Este grupo buscava “discutir,

sobretudo, uma alternativa à visão tradicional sobre a história do capitalismo inglês.”

(PETERSEN e LOVATO, 2013, p. 174)

Porém, eles buscavam utilizar estes conceitos de forma mais flexível, evitando

os esquematismo simplórios da tentativa de apreender uma totalidade mais complexa da

vida social. Eles continuavam adeptos dos princípios marxistas para analisar a

sociedade, e de modo algum queriam negar ou reformar o marxismo, buscava recuperar

certa originalidade teórica de Marx. Ao observar a importância de desenvolverem uma

expectativa de uma “história de baixo para cima” e com o alargamento do conceito de

classe, principalmente a ênfase para a luta de classe imbricada no “desenvolvimento de

uma historiografia preocupada com a totalidade social [...] as classes populares foram

pensadas por esses historiadores não de forma isolada, mas na relação com a sociedade”

(PETERSEN e LOVATO, 2013, p. 174).

O historiador britânico E.P. Thompson fundamenta sua pesquisa histórica no

princípio da dialética marxista, onde os fenômenos sociais possuem uma historicidade e

2 Com as obras: O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II e Civilização Material,

Economia e Capitalismo.

Page 5: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

uma totalidade onde esta história é percebida como um processo da vida concreta de

homens e mulheres e entre as relações sociais que estes tecem entre si, entre si e a

natureza, mediante o trabalho. (GRIGOLI, 2013, p. 114) O inglês é categórico ao

afirmar o que ele entende como sendo o objeto de investigação colocado pelo

materialismo histórico:

“o materialismo histórico propõe-se a estudar o processo social em sua

totalidade; isto é, propõe-se a fazê-lo quando este surge não como mais uma

História ‘setorial’ (...) mas como uma história total da sociedade, na qual

todas as outras histórias setoriais estão reunidas. Propõe-se a mostrar de que

modos determinados cada atividade se relacionou com a outra, qual a lógica

desse processo e a racionalidade da causação”. (THOMPSON, 1981, p.

82)

Justamente esta citação nos ajuda a compreender uma aproximação com uma das

propostas dos Annales, que é a produzir uma história total, história esta que desse conta

das diferentes atividades humanas. Porém deve ficar que a história total reivindicada

pelos Annales era uma história que “abarcasse todos os aspectos da atividade humana,

ela acabou por confundir com a História Social, cuja a origem precedeu aos Annales”

(PETERSEN e LOVATO, 2013, p. 112).

Portanto, os marxistas britânicos, assim como a Escola dos Annales, procuram

desenvolver uma história que conseguisse explicar a totalidade das relações de uma

sociedade, a instituição de uma história total, porém com aspectos divergentes. Mesmo

que os franceses deram ênfase ao estudo das estruturas e ao conjunto da sociedade, eles

possuem uma imprecisão (falta de explicação) sobre como “se articulam as diferentes

esferas do social foi causa de inúmeras críticas aos autores dos Annales”, sem deixar

claro “se existem elementos prioritários ou alguma hierarquia neste conjunto ou de que

forma as partes se relacionam no “todo” (PETERSEN e LOVATO, 2013, p. 112). Esta

questão última sobre determinação e hierarquização das partes e o seu relacionamento

com o todo é muito cara à uma visão materialista dialética, e buscaremos explicar

melhor no próximo item.

Page 6: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

Totalidade:

Uma das principais características da produção científica moderna do

conhecimento histórico é a busca da totalidade e de uma visão de conjunto da sociedade

e dos objetos analisados. Nesta discussão sobre o conceito da categoria de totalidade,

partiremos da proposição de que existe uma totalidade, e levantaremos a questão: é

possível o historiador ou a historiadora apreender a totalidade de seu objeto de

pesquisa?

A visão de conjunto é sempre provisória, “cada totalidade é relativa e mutável,

mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se – seu caráter de totalidade

subsiste apenas no marco das circunstancias históricas determinadas e concretas”

(LUKÁCS, 2009, p. 59), ela nunca vai exaurir a realidade do objeto, pois esta é sempre

mais complexa do que podemos dela apreender. Porém, devemos sempre nos esforçar

para buscar a síntese para melhor compreender a realidade, pois será através da síntese

(visão de conjunto) que poderemos desvendar a estrutura significativa da realidade em

determinada situação. Esta estrutura significativa que é denominada totalidade.

(KONDER, 1983, p. 37-38)

Para Karl Marx existem três categorias teórico-metodológicas fundamentais para

sua produção científica. Estas três categorias encontram-se sempre articuladas, são elas

totalidade, contradição e mediação. Ao buscar compreender a sociedade, Marx utilizou

a ideia de que a sociedade burguesa é uma totalidade concreta e articulada, por ser

entendida como uma totalidade concreta e articulada, se mostra como uma totalidade dinâmica,

em constante movimentação, isto porque todas totalidades que a formam possuem um caráter

contraditório.

Sem as contradições, as totalidades seriam totalidades inertes, mortas – e o

que a análise registra é precisamente a sua contínua transformação. A

natureza dessas contradições, seus ritmos, as condições de seus limites,

controles e soluções dependem da estrutura de cada totalidade – e,

novamente, não há fórmulas/formas apriorísticas para determiná-las: também

cabe à pesquisa descobri-las. (NETTO, 2009, p. 684)

Enfim, uma questão crucial reside em descobrir as relações entre os processos ocorrentes nas

totalidades constitutivas tomadas na sua diversidade e entre elas e a totalidade inclusiva que é a

sociedade burguesa. Tais relações nunca são diretas; elas são mediadas não apenas pelos

Page 7: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade.

Sem os sistemas de mediações (internas e externas) que articulam tais totalidades, a totalidade

concreta que é a sociedade burguesa seria uma totalidade indiferenciada – e a indiferenciação

cancelaria o caráter do concreto, já determinado como “unidade do diverso”. (NETTO, 2009,

p. 685)

Ela não se caracteriza de um “todo” constituído de partes operacionalmente

unificada e sim uma totalidade estruturada e articulada (NETTO, 2011, p. 55-56). E

justamente este ponto é fundamental, encarar a totalidade como uma categoria

metodológica e não como um conceito (LOWY e NAIR, 2005).

“Há, em Marx, uma clara preocupação em apreender a sociedade enquanto

totalidade dialética, mais especificamente, em apreender a totalidade dialética

concreta que é a sociedade burguesa; no entanto o ponto de vista da

totalidade não se restringe, apenas, à apreensão da realidade objetiva (como

objeto do conhecimento), ele foca, também, o sujeito. Em outras palavras,

apreender a realidade objetual como totalidade implica, também, encarar o

sujeito como uma totalidade. Na sociedade moderna, as classes sociais são

representativas dessa totalidade subjetiva.” (HUNGARO, 2001, p.189)

Conforme destaca o filosofo Edmilson Carvalho, a categoria da totalidade é uma

das mais fundamentais no processo de produção dialético do conhecimento. A

totalidade possui um valor lógico intrínseco e “sem a qual, qualquer interpretação

teórica do mundo fica reduzida a um amontoado incoerente, amorfo e desarticulado de

fragmentos, do qual não pode resultar qualquer processo de efetiva produção do

conhecimento.” (CARVALHO, 2008, p. 51)

Conhecer uma extensão do todo não garante o conhecimento do todo, pois

conhecer as partes isoladas do conjunto não faz conhecermos nem as partes e nem o

todo. Ou seja, “numa totalidade o conhecimento das partes e do todo pressupõe uma

reciprocidade” (CARVALHO, 2008, p. 52), pois, o que atribui significado, tanto ao

todo quanto as suas partes, são determinações arranjadas em relações, que transcorrem e

completam o todo, “de modo que não pode haver conhecimento de um todo ou de partes

dele se amputada sua totalidade” (CARVALHO, 2008, p. 52).

Esta totalidade é composta de categorias e relações, dentre as quais algumas

mais determinantes que as outras, e que necessitam ser apreendidas e reveladas para se

Page 8: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

chegar ao conserto abstrato do todo. Para chegarmos ao todo é preciso estruturá-lo e

hierarquizá-lo, pois é preciso percorrer a sua estrutura e suas hierarquias durante a sua

constituição (estudo), e apreender o que ele possui de essencial (CARVALHOS, 2008,

p. 53). Assim, o conceito da categoria de totalidade está interligado ao fundamento da

ruptura com o aparente, pois do oposto, a estrutura, as hierarquias que constituem esta

totalidade, seriam meramente o apontamento da superfície do fenômeno. Ou como nos

demonstra Marx ao estudar a sociedade enquanto uma totalidade

“Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação

caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria

analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto repensado

[chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que

tivesse chegado às determinações mais simples. Dai teria de dar início à

viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas

desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica

totalidade de muitas determinações e relações.” (MARX, 2011, p. 54)

Na investigação científica, o pesquisador tem como ponto inicial de seus

trabalhos o empírico, o dado, o concreto real, é a partir disto que ele inicia a sua

construção do conhecimento. Deste momento em diante, começa a refinar sua pesquisa,

seu entendimento do objeto procurando chegar ao concreto pensado, que se caracteriza

por ser um concreto cientificamente descrito e explicado. (NUNES, s.d., p. 41) O

conhecimento científico é uma crítica à aparência e às ideias. Para chegar ao

conhecimento é necessário decompor o todo e apontar o que é especifico da coisa, é

através desta operação que se “pode reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e,

portanto compreender a coisa” (KOSIK, 2010). É através do movimento de romper com

o aparente, o conhecimento sensível ou sensorial do objeto chegado até um saber

desconhecido, que não se encontra aparentemente, que está escondido e só será

cognoscível ao ser desnudado e decomposto (NUNES, s.d., p. 41).

O todo não é imediatamente cognoscível para o homem, embora ele esteja ali

imediatamente em uma forma sensível e visível, porém este todo que é imediatamente

acessível, é um todo caótico e obscuro. Para conhecer as estruturas do todo é necessário

fazer a mediação do abstrato, assim chegando ao concreto (concreto pensado): este

Page 9: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

método de ascensão ao concreto “é o método do pensamento; em outras palavras, é um

movimento que atua nos conceitos, nos elementos da abstração” (KOSIK, 2010).

O elemento da transição do abstrato ao concreto se dá no plano do abstrato, que

promove a negação da imediaticidade da evidência, do sensível, da concreticidade

sensível. Este concreto, conforme Kosik, é um pseudoconcreto, para chegar à essência é

necessário destruir o mundo da pseudoconcreticidade, pois a ela pertencem:

"A ele [mundo da pseudoconcreticidade] pertencem: o mundo dos fenômenos

externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essências;

o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos

homens (...); o mundo das representações comuns, que são projeções dos

fenômenos externos nas consciências dos homens, produto da práxis

fetichizada, formas ideológicas de seu movimento; o mundo dos objetos

fixados, que dão a impressão de serem condições naturais e não

imediatamente reconhecíveis como resultado da atividade social dos

homens." (KOSIK, 2010, p.11).

Sobre a essência, cabe pontuar que ela “não se apresenta imediatamente, ela é

mediata ao fenômeno, o qual ao mesmo tempo a revela e a esconde” (RICHTER, 2012,

p. 287), pois o concreto é a junção entre a aparência e a essência do fenômeno.

O filósofo tcheco coloca que, ao examinar a totalidade, é importante garantir o

caráter dialético da análise do todo e das partes, “assumindo a unidade das contradições

e a dialética de fenômeno e da essência, da lei e da casualidade, do todo e da parte, da

essência e dos aspectos fenomênicos” (RICHTER, 2012, p. 289). Aqui entendemos o

sentido da totalidade não como todos os fatos da realidade do objeto, mas sim enquanto

a “realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fator poder a

vir a ser racionalmente compreendido” (KOSIK, 2010, p.44). Este é o procedimento

essencial quando pretendemos proceder à destruição da pseudoconcreticidade.

O concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é,

unidade do diverso, por isso o concreto aparece na abstração como processo de síntese,

as determinações resultantes do pensamento conduzem a representação por meio da

abstração e estas são encaradas como resultado e não como premissas, dispositivos de

arranque.

Page 10: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

“As determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do

pensamento. [...] A totalidade concreta, como totalidade de pensamento,

como uma concreção do pensamento, é, na realidade, um produto do pensar,

do conceber; não é de nenhum modo o produto do conceito que se engendra a

si mesmo e que concebe separadamente e acima da intuição e da

representação, mas é a elaboração da intuição e da representação em

conceitos.” (MARX, 2009, p. 259)

Considerações finais

Portanto, conforme destacado, a utilização da totalidade como expectativa para a

pesquisa cientifica é fundamental, pois ao conecta-la em análises de História Social

(amparada pela perspectiva moderna de ciência), obteremos resultados finais de

investigação do objeto mais profícuos.

Em seu texto seminal sobre “o método da economia politica”, presente no livro

Contribuição à crítica da economia politica (1859), Karl Marx deixa claro a

importância da totalidade para os estudos científicos, pois através dela conseguimos

transpor a “elaboração de uma representação caótica do todo” (MARX, 2009, p. 258)

para apreendermos “uma rica totalidade de determinações e relações diversas” (MARX,

2009, p. 258) do objeto em análise.

A História Social, apesar de desenvolver análises micro (que já demonstrou todo

o êxito e efetividade), não deve deixar escapar de seu horizonte a concepção de

totalidade, uma visão de conjunto para a compreensão dos objetos históricos, pois,

quanto mais se cercar de elementos e da análise dos diferentes aspectos sejam políticos,

culturais, econômicos entre outros, mais complexa e refinada ficará a sua compreensão

do objeto. Eric Hobsbawm faz importante alerta sobre a história total dos Annales: que

“não há história total, mas é importante para o historiador ver a história de uma era em

todos os seus aspectos e entender suas interconexões” (HOBSBAWM, 1997, p.75).

Por fim, pontuo uma advertência feita pelo filosofo Leandro Konder sobre a

necessidade de se trabalhar dialeticamente com a categoria de totalidade:

“é muito importante sabermos qual é o nível de totalização exigido pelo

conjunto de problemas com que estamos nos defrontando; e é muito

Page 11: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

importante, também, nunca esquecermos que a totalidade é apenas um

momento de um processo de totalização (que, conforme já advertimos, nunca

alcança uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialética - maneira de

pensar elaborada em função da necessidade de reconhecermos a constante

emergência do novo na realidade humana - negar-se ia a si mesma, caso

cristalizasse ou coagulasse suas sínteses, recusando-se a revê-las, mesmo em

face de situações modificadas.” (KONDER, 1983, p. 39)

Portanto, a defesa da possibilidade da apreensão da totalidade da realidade social

é garantir que compreendamos que é possível transformar radicalmente a realidade

como um todo (possibilidade de uma política emancipatória), pois a totalidade,

enquanto categoria marxista, é oposta àquela percepção da totalidade metafisica e

formalista que a percebe em sentido abstrato e intemporal, ou seja, impossível de ser

modificada, “o conceito dialético de totalidade é dinâmico, refletindo as mediações e

transformações abrangentes, mas historicamente mutáveis” (BOTTMORE, 1997, p.

381) da realidade concreta.

As críticas contra as análises de totalidade estão embasadas em uma crítica a

modernidade em geral, pois muitos intelectuais julgam que a realidade é em sua

essência fragmentada e fragmentária, logo não é possível nem a sua compreensão e

muito menos a sua transformação. (WOOD, 1999, 7-22)

Page 12: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

Bibliografia

BARROS, J. História Social: seus significados e seus caminhos. LPH – Revista de

História da UFOP. Mariana-MG, nº 15, p. 01-23, 2005.

BOTTOMORE Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro, Zahar,

1988.

BRAUSTEIN, Nestor. Como se constitui uma ciência? IN: BRAUSTEIN, Nestor e

outros. Psicologia: ideologia o ciência? México, Siglo XXI, 1979, p.7-20.

CARVALHO, Edmilson. A totalidade. In. A produção dialético do conhecimento. São

Paulo: Xamã, 2008.

CASANOVA, Julien. La história social y los historiadores. Barcelona, Crítica, 1997.

CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo

(orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro:

Elsevier, 1997.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 3.ª edição, Lisboa: Editorial Presença,

1989.

GRIGOLI, Juliana de Jesus. Política, Cultura e História Social: contribuições

epistemológicas de E. P. Thompson para a pesquisa sociológica. Em Debate (UFSC.

Online) , v. 9, p. 112-122, 2013.

HOBSBAWM, Eric. Comentários de Eric Hobsbawm. História Social: Revista da

Pós-Graduação em História. IFCH/Unicamp. v.4/5, 1997.

HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima. In.: Sobre História. São Paulo:

Cia das Letras, 1998.

HUNGARO, Edson Marcelo. Modernidade e Totalidade - em defesa de uma

categoria ontológica. Dissertação de mestrado. São Paulo: PPG em Serviço

Social/PUCSP, 2001. p.189.

KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Trad. NEVES, Célia; TORÍBIO, Alderico. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

LÖWY, Michael e NAÏR, Sami. Lucien Goldmann, ou a dialética da totalidade. São

Paulo: Boitempo, 2005.

LUKACS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, 2009.

Page 13: A totalidade concreta: uma categoria para análise em ... · historiografia que coincidiu ... “Frente à crescente tendência à fragmentação das ... conhecimento histórico é

MARX, Karl. Contribuição à Critica da Economia Política. Expressão Popular, São

Paulo, 2009.

NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão

Popular, 2011.

NETTO, José Paulo. Introdução ao Método da Teoria Social. Serviço Social: Direitos

Sociais e Competências Profissionais. UNB: Editora: CFESS e ABEPSS, 2009. P. 667-

700.

NUNES, A. Sedas. Sobre o problema do conhecimento nas ciências sociais. Lisboa:

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, s.d., p. 37-56.

PETERSEN, Silvia e LOVATO, Bárbara. Introdução ao estudo da História: temas e

textos. Porto Alegre: Edição das autoras/Gráfica das UFRGS, 2013.

RICHTER, L. M. Dialética do Concreto. Revista Educação e Política em Debate, v.

v.1, p. 01, 2012.

THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio: Zahar, 1981

WOOD, Ellen. O que é a agenda “pós-moderna”? IN: WOOD, Ellen e FOSTER,

John. Em defesa da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 7-22.