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Ágora (Rio de Janeiro) v. XX n. 1 jan/abr 2017 207-222 Anna Thereza Carneiro Pinto Abdala Caio César Souza Camargo Próchno Luiz Carlos Avelino da Silva Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Psicologia, Uberlândia/MG, Brasi A TRANSMISSÃO PSÍQUICA DO FANTASMA PATOLÓGICO ENQUANTO OBJETO TRANSGERACIONAL: UMA ANÁLISE DO FILME “VOLVER” Anna Thereza Carneiro Pinto Abdala, Caio César Souza Camargo Próchno e Luiz Carlos Avelino da Silva RESUMO: Os processos de transmissão psíquica, de modo incons- ciente, permeiam os vínculos entre os sujeitos de um mesmo grupo ou família. Diante disso, este artigo teve como objetivo explanar sobre a constituição do fantasma patológico enquanto objeto trans- geracional em casos de incesto. Este objeto é transmitido pelos pro- cessos de transmissão psíquica de geração a geração, constituindo a herança. A investigação deste estudo ocorreu a partir da análise dos eventos e traumas dos sujeitos que compunham a família da trama do filme Volver. Palavras-chave: transmissão psíquica; transgeracionalidade; objeto fantasma; violência sexual incestuosa. ABSTRACT: Psychic transmission of the pathological phantom as a transgerational object: an analysis of the movie “Volver”. The many processes of psychic transmission are inside the bonds among the subjects of the same group or family in an unconscious way. Con- sidering that, this article, which originated from a master’s degree thesis, implies to talk about the constitution of the pathological phantom as a transgerational object in cases of incest. This object is transmitted through the processes of psychic transmission from generation to generation, which consists on the heritage. The in- vestigation of this study came from the analysis of the events and traumas of the subjects that compound the family in the movie “Volver”. Keywords: psychic transmission; transgerationality; phantom ob- ject; incestuous sexual violence. DOI - http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982017001011

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Anna Thereza Carneiro Pinto Abdala

Caio César Souza Camargo Próchno

Luiz Carlos Avelino da Silva

Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Psicologia, Uberlândia/MG, Brasi

A trAnsmissão psíquicA do fAntAsmA pAtológico enquAnto objeto trAnsgerAcionAl: umA Análise do filme “VolVer”

Anna Thereza Carneiro Pinto Abdala, Caio César Souza Camargo Próchno

e Luiz Carlos Avelino da Silva

resumo: Os processos de transmissão psíquica, de modo incons-ciente, permeiam os vínculos entre os sujeitos de um mesmo grupo ou família. Diante disso, este artigo teve como objetivo explanar sobre a constituição do fantasma patológico enquanto objeto trans-geracional em casos de incesto. Este objeto é transmitido pelos pro-cessos de transmissão psíquica de geração a geração, constituindo a herança. A investigação deste estudo ocorreu a partir da análise dos eventos e traumas dos sujeitos que compunham a família da trama do filme Volver.palavras-chave: transmissão psíquica; transgeracionalidade; objeto fantasma; violência sexual incestuosa.

AbstrAct: Psychic transmission of the pathological phantom as a transgerational object: an analysis of the movie “Volver”. The many processes of psychic transmission are inside the bonds among the subjects of the same group or family in an unconscious way. Con-sidering that, this article, which originated from a master’s degree thesis, implies to talk about the constitution of the pathological phantom as a transgerational object in cases of incest. This object is transmitted through the processes of psychic transmission from generation to generation, which consists on the heritage. The in-vestigation of this study came from the analysis of the events and traumas of the subjects that compound the family in the movie “Volver”.Keywords: psychic transmission; transgerationality; phantom ob-ject; incestuous sexual violence.

DOI - http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982017001011

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neste artigo, discute-se a influência dos processos de transmissão psíquica na repetição da violência sexual incestuosa entre as gerações a partir do

filme Volver (2006) do diretor espanhol Pedro Almodóvar. O interesse em estudar este tema surgiu a partir das experiências em estágio, no qual havia casos com três gerações de uma mesma família envolvidas em cenas de violência sexual, podendo ser incestuosas ou não, o que despertou indagações.

Quais fatores propiciariam essa repetição de vivência de violência sexual por entre essas gerações? Seriam elementos psíquicos presentes na dinâmica de tais famílias que as diferenciavam das outras? Mas, quais elementos? Surgiu então a ideia de investigar os processos de transmissão psíquica, considerando que o inconsciente e as relações são permeados pela herança psíquica resultante destes processos, fazendo-se importantes para compreender o sofrimento dos sujeitos.

A cultura, a linguagem e as leis constituintes da civilização exemplificam os conteúdos intergeracionais da herança psíquica enquanto os elementos não--ditos, experiências não-elaboradas, aspectos sem representação, fazem parte do grupo dos conteúdos transgeracionais. Surgia a indagação relativa à influência dos conteúdos transgeracionais da herança psíquica na repetição de experiências.

A obra Volver foi escolhida para análise porque um filme permite ter um olhar sobre as diversas relações das personagens-sujeitos de uma mesma família, além de criar uma possibilidade de caminhar entre passado e presente na história das gerações, observando o movimento da herança psíquica.

Dessa forma, o presente artigo, por ser um recorte, objetiva explanar sobre a constituição do fantasma patológico enquanto objeto transgeracional em casos de incesto. Este objeto é transmitido pelos processos de transmissão psíquica através das gerações, constituindo parte da herança psíquica. A investigação proposta ocorreu a partir dos eventos e traumas dos sujeitos da família, na qual se desenrola toda a trama de Volver.

os processos de trAnsmissão psíquicA

Os processos de transmissão psíquica estão presentes nos espaços intersubjetivos, permeando as relações entre, pelo menos, dois sujeitos. Estes nascem inseridos em um espaço e tempo de determinada geração, onde há uma pré-história daquela família (KAËS, 1998; EIGUER, 1998) que sustenta e mantém a rede de inves-timentos e cuidados para com o sujeito. É neste meio, no qual as transmissões psíquicas são possíveis entre as gerações, que os sujeitos constituem o psiquismo.

Aquilo que se transmite ao outro, a partir do mecanismo de identificação, são “configurações de objetos psíquicos” (KAËS, 1998, p. 9) de diferentes origens, as quais definem como o objeto será transmitido. Muitos dos objetos são marcados pelo negativo e, dessa forma,

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o que se transmite, seria então, preferencialmente, aquilo que não contém, aquilo

que não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a doença, a vergonha, o

recalcamento, os objetos perdidos e ainda enlutados. Tais são as configurações de

objeto e de seus vínculos intersubjetivos transportados, projetados, depositados,

difratados nos outros, em mais de um outro: eles formam a matéria e o processo

da transmissão (KAËS, 1998, p. 9).

Então, a transmissão psíquica não é composta apenas de conteúdos nega-tivos, mas também dos conteúdos que sustentam as continuidades narcísicas, os vínculos intersubjetivos e a permanência da complexidade e da vida. Em se tratando de inconsciente, é interessante ressaltar que os conteúdos positivos estão interligados com os negativos, sendo herdados de forma simultânea.

Embora estejam conectadas entre si, há dois tipos de transmissão psíquica: intersubjetiva, a qual se relaciona com os conteúdos positivos; e a transpsíquica, a qual faz menção àquilo que é de caráter negativo (KAËS, 1998). A primeira se dá entre os sujeitos que compõem a família, diferenciando-se uns dos outros em uma relação de complementaridade. Assim, há possibilidade de transformações daquilo que é transmitido, enquanto na outra, não. Além disso, na transmissão transpsíquica não há limites que estabelecem os espaços subjetivos, dificultando a separação eu-outro. Ela acontece através dos sujeitos, depositando algo não elaborado de um no interior do outro.

Tais conteúdos constituem o objeto a ser transmitido psiquicamente entre as gerações (EIGUER, 1998). Este é um elemento de investimento originado no psiquismo do sujeito que o transmitirá, sendo anterior àqueles investimentos libidinais essenciais para a constituição da vida psíquica que a mãe dirige ao bebê. Se algo ocasionar um desinvestimento libidinal, pode-se construir um vazio irrepresentável no psiquismo desta criança.

Há dois tipos de conteúdos, também entrelaçados, a serem recebidos pelos sujeitos: intergeracionais e transgeracionais, ambos relativos à herança psíquica. Esta, além de ser um fator enriquecedor para investigar as facetas do sofrimento psíquico, é compreendida como o resultado dos processos de transmissão psíquica (SILVA, 2003), podendo ser apreendida tanto na clínica psicanalítica quanto na análise de obras cinematográficas e literárias.

Devido às transmissões psíquicas, os sujeitos podem apropriar-se da cultura, da linguagem, dos símbolos e das leis constituintes da civilização — elementos dos grupos nos quais estão inseridos. Também podem receber em seu psiquismo aspectos originados de sentimentos de culpa, fantasias, desejos, recalcamentos, lutos não-elaborados e condições narcísicas, os quais podem ser estranhos e desconhecidos, tornando-se irrepresentáveis, mas permeando as relações (KAËS,

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1998; SILVA, 2003). Por que alguns elementos se fazem apropriáveis enquanto outros permanecem alienados no psiquismo?

A trAnsmissão psíquicA trAnsgerAcionAl

Nos grupos, estão presentes as duas modalidades de transmissão psíquica entre-laçadas entre si. As transmissões intergeracionais são estruturantes e constituintes de ligações e transformações, pois há espaço para metabolização do material psíquico a ser transmitido para a próxima geração (CORREA, 2000). Dessa forma, a transmissão psíquica intergeracional trabalha a favor dos vínculos; ainda que os acontecimentos possam ter sido traumáticos, foram elaborados e simbolizados, constituindo representações psíquicas (TRACHTENBERG, 2005). Este tipo de transmissão permite que os sujeitos descendentes constituam a própria subjetividade, modifiquem a história e apropriem-se de sua herança, diferenciando-se dos ancestrais.

Por outro lado, as transmissões transgeracionais são compreendidas como alienantes, já que impossibilitam de se subjetivar os sujeitos que herdam os con-teúdos (CORREA, 2000). Não há benefícios em relação ao que se herda, já que o material psíquico está suspenso, mantendo-se em estado bruto no psiquismo dos descendentes. Estes, por sua vez, terão seus conteúdos psíquicos marcados pelo funcionamento da vida psíquica dos antepassados, pois inconscientemente há registros de traumas. Dessa forma, o psiquismo do descendente não é autô-nomo, já que sofreu influências de outros psiquismos que também não foram singulares em suas constituições (CORREA, 2000). O trauma pode cessar a transmissão intergeracional.

Portanto, passa a existir outra, dessa vez defeituosa, transgeracional, que ocorre

através dos sujeitos, atravessando o psiquismo, invadindo-o violentamente, numa

passagem direta de formações psíquicas de um sujeito a outro, de uma geração a

outra, sem preservação dos espaços subjetivos ou intersubjetivos. (TRACHTENBERG,

2005, p. 123)

A transmissão psíquica transgeracional contém os aspectos traumáticos, patológicos e sintomáticos que não são passíveis de modificações porque não há espaço de transcrição transformadora (KAËS, 2001). Aquilo que se transmite é relativo a eventos traumáticos passados que não tiveram representação, não puderam ser pensados devido ao horror, à vergonha e demais sentimentos des-pertados por tais experiências.

Estes conteúdos que atravessam o psiquismo do outro podem ser transmiti-dos através de várias gerações, já que a transmissão transgeracional busca uma

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repetição das histórias colapsadas e coladas dos membros da família, fundando a cadeia traumática transgeracional (TRACHTENBERG, 2005). Os materiais psíquicos inconscientes a serem transmitidos através de várias gerações são os conteúdos transgeracionais que podem manifestar-se, por exemplo, através de sintomas dos sujeitos da família (SILVA, 2003).

Tais conteúdos promovem “lacunas e vazios na transmissão, impedindo uma integração psíquica. Portanto, uma herança transgeracional é constituída de ele-mentos brutos, transmitidos tal qual, marcados por vivências traumáticas, não--ditos, lutos não-elaborados” (SILVA, 2003, p. 30), segredos, histórias de violência, vazios, silêncios, negativo e falhas na simbolização (TRACHTENBERG, 2005).

A seguir, tem-se uma vinheta de Volver para reflexão do contexto em que estes conteúdos transgeracionais podem vir a surgir. Vale lembrar que, neste momento do filme, cada personagem já sustentava os próprios segredos.

Raimunda conversa com Paula, sua filha, dizendo que Soledad, sua irmã, está es-

tranha e que se perguntarem de Paco, marido de Raimunda, era para Paula dizer

que não sabia de nada, “o que é verdade. Quanto menos souber, melhor” — fala

de Raimunda. Mãe e filha vão até o apartamento de Soledad, Raimunda diz que

vai utilizar o banheiro e sua irmã age de forma estranha. Enquanto isso, Soledad

observa a sobrinha e pergunta o que está acontecendo. Ela afirma “estou em uma

idade muito ruim”. (ALMÓDOVAR, 2006)

Estes estranhamentos de uma personagem em relação à outra, somados às respostas evasivas, denotam a existência de segredos como foi comentado pelas próprias personagens em cenas seguintes. Tais segredos, que envolviam assassinato bem como violência sexual, foram mantidos diante de um misto de sentimentos, como vergonha, culpa, ódio, participando da composição dos materiais psíquicos transgeracionais.

Estes constituem o objeto transgeracional, compreendido como aquele que se coloca como objeto de outro ancestral direto ou colateral de gerações anteriores, que provoca fantasias, identificações, interferindo na constituição das instâncias psíquicas dos membros da família (SILVA, 2003). O objeto da transmissão trans-geracional manifesta-se como permanentemente intrusivo, o que impossibilita representar, elaborar, permanecendo alienado no que diz respeito àquilo que seu psiquismo herdou, onde a vivência traumática encripta-se.

Há três tipos de objeto transgeracional: indulgentes, idealizados e fantasmas (EIGUER, 1991), sendo este terceiro o objeto transgeracional ao qual este estudo se refere. Os objetos fantasmas referem-se aos vazios irrepresentáveis presentes no psiquismo dos descendentes, envolvendo algo cometido pelos ancestrais que se tornara um segredo. Esta categoria de objeto permanece como um corpo estranho

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no psiquismo do outro. O sujeito que sofre a intrusão e a violência deste tipo de transmissão será nomeado, representado e situado em um lugar de acordo com o desejo dos porta-vozes do legado transgeracional daquele grupo (KAËS, 1998).

Compreendendo os tipos de transmissão psíquica e os conteúdos a serem herdados, questiona-se: por que um segredo é mantido durante gerações, pro-vocando repetição de um evento traumático? O que faz com que os membros da família integrem-se a esta dinâmica ainda que não haja benefícios trazidos pela herança transgeracional?

Sabe-se que há alianças inconscientes nos vínculos intersubjetivos da família. Nestes vínculos, o inconsciente “inscreve-se e se manifesta, muitas vezes, em múltiplos registros, e em várias línguas, de cada indivíduo e do próprio víncu-lo” (KAËS, 1998, p. 13). Portanto, o aparelho psíquico de cada sujeito, a partir das identificações, adquire aspectos de caráter positivo e negativo transmitidos inconscientemente de uns para os outros.

o trAumA e suAs interseções com o objeto fAntAsmA

e A criptA psíquicA

Freud construiu a teoria do trauma e depois fez sua reformulação frente à questão da realidade psíquica, da fantasia e da sexualidade. Ferenczi retomou a primeira teoria do trauma de Freud em Confusão de línguas entre adultos e criança, colocando que o trauma, experiências ou impressões vivenciadas na infância, também se originam diante do acontecimento de um evento real e do desmentido por parte de um adulto que é o modelo, geralmente, com o qual a criança vai se identificar (FERENCZI, 1933/2011). As situações de violência sexual, enquanto acontecimentos reais, podem ser discutidas a partir destas formulações.

Embora a sexualidade e a busca de prazer sejam inerentes ao ser humano, inclusive presentes em crianças, a linguagem pela qual a sexualidade infantil organiza-se é da ordem da ternura enquanto que o adulto organiza-se pela via da paixão (FERENCZI, 1933/2011). A criança tem um prazer em suas brincadeiras, inclusive naquelas de faz-de-conta, nas quais pode representar seus romances familiares (FREUD, 1909/1974); o adulto, por sua vez, tem sua organização libidinal constituída e formada, agindo também em busca do prazer, mas en-volvendo a genitalidade. Então, para haver uma situação de violência sexual como evento real, no qual se tem crianças e adultos envolvidos, é necessário considerar que há o violentador1 fazendo com que os desejos dele predominem

1 Este estudo não tem o propósito de argumentar questões relativas aos violentadores, sendo este um assunto complexo que necessita de estudos específicos para uma discussão aprofun-dada. É relevante considerar que, em uma situação de violência sexual incestuosa ou não, o violentador tem total responsabilidade sobre seu ato.

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sobre a criança. O que distingue uns sujeitos dos outros neste sentido são as leis internalizadas inconscientemente, relativas às interdições impostas pela cultura (FREUD, 1913/2012).

Porém, não é somente a violência em si que caracteriza o trauma como pa-togênico, mas também a presença do desmentido — situação em que a criança é desautorizada diante de um adulto para o qual fez denúncia da violência sexual, recebendo o silêncio ou a negação do fato (FERENCZI, 1933/2011). Este desmentido faz com que a criança não atribua sentido ao acontecimento violento. Precisa-se de um terceiro que acolha o sofrimento desta, auxiliando a construção de uma nomeação, pois os recursos psíquicos da criança estão em desenvolvimento.

A violência sexual real é um trauma de forte registro em que o desprazer é muito mais excessivo frente àquilo que há representação. Muitas vezes, a dor torna-se inatingível pela consciência e não pode ser recalcada ou inscrever-se no inconsciente. É um estado de quase morte originado do choque traumático (FERENCZI, 1933/2011). E, na presença do mecanismo do desmentido, as pala-vras enclausuram-se, perdem a construção de novos sentidos, podendo se tornar representações não passíveis de fantasias. Diante do trauma, também ocorre um bloqueio do trabalho introjetivo, considerado o motor da vida psíquica. A partir disto, a fantasia de incorporação passa a exercer uma função relevante e prejudicial para o psiquismo do sujeito (ABRAHAM; TOROK, 1972/1995).

Na Psicanálise, o limite do corpo é um modelo de separação entre um in-terior e um exterior. A incorporação seria este envoltório corporal enquanto a introjeção se refere ao interior do aparelho psíquico (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992). A introjeção tem relação com a expansão dos interesses autoeróticos, além de proporcionar alargamento do Eu através de eliminação dos recalques, e ainda auxilia na inclusão do objeto no Eu, transformando os investimentos da libido para os objetos.

A introjeção realiza uma função da ordem do desenvolvimento ao introduzir no Eu “a libido inconsciente, anônima ou recalcada” (TOROK, 1968/1995, p. 222) para promover um alargamento e enriquecimento do Eu. Não se introjeta o objeto; este é, ao mesmo tempo, o contexto onde há o conjunto de pulsões e seus destinos e um mediador para o inconsciente. Assim, vão se abrindo as possi-bilidades de construção de representações, ampliando a vida psíquica do sujeito.

O início da formação do mecanismo de introjeção ocorre nos primeiros momentos após o nascimento do bebê. Para manifestar alguma necessidade à figura materna, o bebê chora, grita, comunicando-se para preencher “o vazio da boca” (ABRAHAM; TOROK, 1972/1995). Posteriormente, a criança emite alguns sons até surgir a linguagem propriamente dita, mas para isto, faz-se necessária a presença de uma figura materna que possua uma linguagem que sustente o

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bebê. “O vazio da boca” precisa ser preenchido com palavras que enunciem algo ao sujeito para este ir se inserindo na linguagem. Assim, as nomeações, as significações, podem ir substituindo, gradativamente, a presença da figura materna, possibilitando o aparecimento de novas introjeções.

Quando o processo de introjeção encontra obstáculos, a fantasia de incorpo-ração faz-se presente, impedindo a elaboração de situações vividas pelo sujeito. Há impossibilidade de articular e atribuir sentidos às experiências, permitindo que fantasias sejam criadas para este algo sem nome. “O vazio da boca”, por não ser preenchido com palavras, introduz “fantasisticamente, a pessoa inteira ou parte dela, como única depositária do que não tem nome” (ABRAHAM; TOROK, 1972/1995, p. 247). Estas fantasias incorporativas tomam o lugar das palavras, remetendo-se aos traumas impassíveis de representação e nomeação, e atuam, por exemplo, na formação de sintomas, já que os não-ditos podem fazer menção a um segredo vergonhoso.

A fantasia de incorporação origina-se a partir de um luto inconfessável antecedido por um estado de Eu enclausurado devido a uma experiência ver-gonhosa. Este processo leva à construção de uma cripta psíquica definida como uma zona clivada do Eu (ABRAHAM; TOROK, 1971/1995). A cripta ocupa um lugar definido que não é o inconsciente, nem o Eu; está em um território entre estes dois como se fosse um inconsciente artificial, instalado no próprio seio do Eu. A cripta visa interceptar que os conteúdos transitem entre o inconsciente e o Eu para que não alcancem o mundo exterior, inacessibilizando o segredo.

Na cripta, há um recalcamento conservador, pois o desejo já foi realizado e não houve desvios. Ele “se encontra enterrado, incapaz que é de renascer, tanto quanto de se tornar pó. Nada poderia ter impedido a sua realização nem poderia fazer com que a lembrança dela se apague” (ABRAHAM; TOROK, 1971/1995, p. 240). O passado permanece preso no presente do sujeito como um corpo estranho no psiquismo que não morre e nem vem à tona para que houvesse ressignificações.

Este conteúdo encriptado não pode se manifestar em forma de palavras, como se estas estivessem enterradas vivas na cripta. No sujeito criptóforo, a ausência das palavras indica que o desejo foi realizado antes do enterro, não tendo cedi-do ao interdito. A cripta permite que o sujeito guarde o segredo, encobrindo e anulando o efeito da vergonha, e assumindo a significação própria das palavras relativas ao desejo realizado que precisou ser escondido.

Há um mecanismo específico denominado identificação endocríptica “que consiste em trocar sua própria identidade por uma identificação fantasística com a ‘vida’ de além-túmulo do objeto perdido por efeito de um traumatis-mo metapsicológico” (ABRAHAM; TOROK, 1975/1995, p. 280). Mantém-se a mesma função conservadora da fantasia de incorporação, fazendo com que o

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correspondente do objeto perdido permaneça encriptado, reconstruído diante das lembranças de palavras, imagens e afetos.

Criou-se, assim, todo um mundo fantasístico inconsciente que leva uma vida sepa-

rada e oculta. Acontece, entretanto, que, por ocasião das realizações libidinais, “à

meia-noite”, o fantasma da cripta vem assombrar o guardião do cemitério, fazendo-

lhe sinais estranhos e incompreensíveis, obrigando-o a realizar atos insólitos,

infligindo-lhe sensações inesperadas. (ABRAHAM; TOROK, 1972/1995, p. 249)

A partir desta citação, pode-se afirmar que o objeto fantasma da cripta tem sua ação realizada sobre o outro enquanto a identificação endocríptica é relativa ao próprio sujeito. Se este outro é quem vai tentar, se possível, elaborar este fantasma patológico, pode-se fazer uma associação com a transmissão psíquica transgeracional, na qual um descendente carrega um objeto estranho no psi-quismo depositado por um ancestral.

Há dois tipos de objeto fantasma: o estruturante e o patológico. A consti-tuição de ambos está intrinsecamente ligada à relação do bebê com as figuras parentais e seus desejos (ABRAHAM, 1974/1995). Para que o bebê desenvolva--se psiquicamente, é necessário que haja investimentos libidinais das figuras parentais em relação aos filhos que serão introjetados pelo recém-nascido. Se a criança consegue se apropriar do inconsciente parental e a constituição de seu psiquismo continuar a progredir com representações e elaborações, houve uma introjeção do fantasma estruturante.

Entretanto, se este desejo das figuras parentais é rompido por alguma omissão no dizer, o mecanismo de introjeção sofre alterações, pois existe um segredo, algo atormentador, em torno do qual este desejo foi organizado. A criança passa a lidar com este obstáculo que dificulta a constituição do seu lugar na família, facilitando o aparecimento de condutas dela estranhas a ela mesma, sofrendo influências do fantasma patológico.

O fantasma é inconsciente e resulta da passagem do inconsciente de uma das figuras parentais ao do filho. “Seu retorno periódico, compulsivo e que escapa até à formação dos sintomas (no sentido do ‘retorno do recalcado’) funciona como um ventríloquo, como um estranho com relação à tópica própria do su-jeito” (ABRAHAM, 1975/1995, p. 394). O fantasma faz oposição à introjeção, havendo uma lacuna no dizível. Ele se origina em um momento no qual a lacuna irrompe o caminho da introjeção, impossibilitando a significação das palavras.

O trabalho do fantasma serve ao instinto de morte (FREUD, 1920/2010). Ele não tem energia própria, além de continuar sua obra de desligamento em silêncio. Sustenta-se pela omissão de palavras que causam irrupções na coerência dos encadeamentos. Ainda, o fantasma patológico “é fonte de repetições indefi-

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nidas, não dando, na maioria das vezes, nem mesmo ocasião à racionalização” (ABRAHAM, 1975/1995, p. 395). Devido à não-integração das palavras ocultas do fantasma no aparelho psíquico, possivelmente ele vai gerando as repetições encontradas nos mais diferentes quadros ou acontecimentos.

Neste momento, é possível pensar que o objeto fantasma é transmitido pela via transgeracional. O fantasma patológico refere-se a um ancestral que cometeu um ato recriminado por todos ou silenciado como segredo (EIGUER, 1991). O investimento libidinal deste antepassado absorve o funcionamento do aparelho psíquico do sujeito, impossibilitando-o de pensar. Não há espaço para refletir sobre os segredos, então, estes podem retornar como sintomas ou eventos. Sabendo que em toda família ocorrem processos inconscientes de transmissão psíquica, e considerando que não houve irrupção da transmissão dos objetos fantasmas transgeracionais através da simbolização e elaboração destes, é possível pensar que os segredos encriptados de sujeitos que sofreram lutos inconfessáveis constituem diversos sintomas e acontecimentos, representantes do retorno do objeto fantasma nas próximas gerações?

método

Este estudo fundamenta-se no método de investigação psicanalítico, o qual utiliza, como ferramenta, a interpretação psicanalítica. Ao analisar um sujeito, pode-se atribuir sentidos diferentes às experiências vividas por este, pois a interpretação está intrinsecamente relacionada à simbolização; sendo assim, não há uma única verdade. Esta não é adotada como coerência ou algo correspondente a provas ou evidências, mas, sim, como alétheia — palavra atribuída à verdade em grego, traduzida por desvelamento ou não esquecimento (REZENDE, 1993).

A escolha da junção entre Psicanálise e Cinema se deu por este último ser um meio de comunicação que possui linguagem mais próxima das representações de imagens da vida psíquica (ZUSMAN, 1994). A imagem torna-se objetiva, ad-quirindo tons de realidade ainda que as obras possam ser fictícias. É interessante ressaltar que o cinema pode alcançar a transmissão de aspectos cotidianos, já que, muitas vezes, os filmes retratam diversos temas, possibilitando que sujeitos singulares pertencentes a diferentes realidades entrem em contato com outras culturas.

Neste estudo foi realizada a análise do filme Volver (2006), dirigido por Pedro Almodóvar, pois desta obra cinematográfica foi possível captar movimentos da dinâmica familiar das personagens. O cinema leva a uma ampliação do olhar de quem está pesquisando quando mostra diversas faces de uma história e o contexto em que os sujeitos-personagens estão inseridos, possibilitando a investigação dos processos de transmissão psíquica.

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discussão

Volver significa voltar a um lugar. Este filme é repleto de retrocessos ao passado das mulheres de três gerações, personagens de um enredo em que os segredos familiares reincidem-se ao longo da trama. Este estudo demonstrou interesse em analisar a questão transgeracional apresentada no filme junto aos conteúdos de violência.

Volver se passa no interior da Espanha, na região de La Mancha. Neste local, uma mulher e o marido tiveram duas filhas, Raimunda e Soledad, com caracte-rísticas bem opostas. Enquanto a primeira tinha como atributos sua vivacidade, sensualidade, persistência, coragem e capacidade para tentar vencer os desafios; a outra demonstrava ser o oposto, acomodada às situações, tendo apresentado um pouco de vivacidade apenas após o retorno da mãe.

A seguir, apresentamos um trecho de uma das cenas finais de Volver, no qual são revelados os segredos e o movimento da dinâmica desta família.

Mãe: “Sonhei tantas vezes com isso”.

Raimunda: “Eu também”.

M: “Não sei por onde começar”.

R: “Não é um fantasma, não é? Não está morta?”.

M: “Não, minha filha, não. Mas se tivesse morrido, teria voltado para lhe pedir

perdão por não ter me dado conta do que aconteceu. Estava cega. Enterrei-me no

mesmo dia do incêndio”.

R: “É verdade que havia deixado o pai?”.

M: “Sim, não podia encarar os chifres. Na tarde do incêndio, você falou com sua

tia. Como sempre, não quis perguntar por mim, eu me aborreci e disse à tia que

era uma ingrata. E como continuava excomungando-lhe, a tia saiu em sua defesa

e me contou tudo: que seu pai havia abusado de você e que ficou grávida e que

Paula era sua filha e sua irmã. Eu não podia acreditar. Como pode acontecer tal

monstruosidade diante de meus olhos sem que eu percebesse? Então, entendi tudo.

Entendi seu silêncio e o seu distanciamento. Entendi porque seu pai foi para a Ven-

ezuela trabalhar. Foi incapaz de assumir a vergonha do que havia feito. Entendi que

depois que casou com Paco, viria para Madrid e que não queria saber nada de nós”.

R: “Eu a odiava por não ter percebido nada, mãe”.

M: “E tinha toda a razão, minha filha. Quando me inteirei, não sabe como fiquei.

Fui à casinha disposta a arrancar-lhe os olhos e encontrei-o dormindo com a mãe

da Augustina, bem juntos. Eles não me viram. Ateei fogo à casinha. Era um dia

de vento e, em pouco tempo, as chamas devoraram tudo. Nem deu tempo de eles

acordarem”.

R: “As cinzas que estão enterradas no seu lugar são da mãe da Augustina?”.

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M: “Sim. E depois andei perdida pelos campos por vários dias, escondida como um

animal. Pensava em me entregar, mas antes passei por onde morava a Paula, para

vê-la. Encontrei-a muito mal. Ela, quando me viu, não estranhou nem um pouco.

Eu vinha do passado, de onde ela morava e me recebeu como se acabasse de sair

pela porta. A tragédia a fez perder a pouca razão que tinha. Não poderia deixá-la

sozinha. Então, fiquei cuidando dela até morrer”.

R: “Mãe, na vila acreditam que você é um fantasma”.

M: “Isso é o bom dessa vila tão supersticiosa. Para mim, foi mais fácil seguir a cor-

rente que se criou que dizer a verdade. Pensei que me levariam presa. Não deixava

de pensar que alguém me investigaria ou me castigaria. Durante todo este tempo,

juro que vivi um verdadeiro purgatório”.

Mãe e filha se abraçaram fortemente.

R: “Nunca melhor dito”.

(...)

Na rua, o vento empurra os carrinhos de lixo que estão sendo levados para longe.

A mãe ainda não nomeada é quem observa este movimento acontecer. Na cena

seguinte a esta, ela é chamada pelo nome: Irene. (ALMODÓVAR, 2006)

Somente neste momento é que veio à tona a violência sexual sofrida por Raimunda, cometida pelo próprio pai, também pai de Paula. A tia de Raimunda, de mesmo nome da filha, foi uma figura de apoio e acolhimento para a moça. Quando Paula era ainda um bebê, a mãe casou-se com Paco, que assumiu a garota como filha. Aos 14 anos, Paula também foi violentada sexualmente por Paco, assassinando o padrasto diante da situação em que se encontrava.

Irene, nomeada apenas no final da trama, não havia percebido o que aconteceu com sua filha. É possível que o desmentido materno (FERENCZI, 1933/2011) neste caso de violência sexual tenha se estabelecido na relação de Irene e Raimunda. Quais seriam os aspectos inconscientes que permeavam a relação de ambas antes do ocorrido que poderiam ter influenciado no desmentido? É plausível que a mãe invejasse a filha pela sensualidade desta que se destaca. Como era esse triangulo edípico (FREUD, 1923/2011; 1924/2011) entre Irene, o marido e Raimunda?

Raimunda contou sobre a violência sexual para tia Paula quando foi morar com ela. É possível afirmar que houve escuta da tia para com a sobrinha, mas também é preciso considerar que tia Paula pode ter recusado, inconscientemente, o nascimento da filha de Raimunda por não ter suportado entrar em contato com uma criança fruto de um incesto. Durante um tempo, tia Paula foi a única pessoa que teve conhecimento da situação vivenciada pela sobrinha. A senhora, além de perder a visão, perguntou à Raimunda se ela havia tido o bebê quando Paula já estava com 14 anos. Tais recusas, bem como os aspectos sem represen-

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tação, são elementos que contribuem para a formação da face negativa do pacto denegativo (KAËS, 2005).

Raimunda pareceu não ter tido condições de elaborar as situações traumáticas vivenciadas. Casou-se com Paco, mudou-se de cidade e afastou-se da família, tentando romper os vínculos para apagar as feridas do passado, silenciando-se (CORREA, 2003) com os segredos. O trauma bloqueia a introjeção. O Eu fica preso à perda não elaborada que se tornou inconfessável e este processo pode levar à constituição da cripta psíquica (ABRAHAM; TOROK, 1972/1995) que enterra o segredo. Este permanece encoberto criando obstáculos para nomeações, signi-ficações e elaborações. Pode-se, então, estabelecer a hipótese de que Raimunda constituiu uma cripta psíquica para encobrir o trauma da violência sexual.

O segredo enterrado na cripta participa da constituição de um objeto trans-geracional do tipo fantasma patológico (EIGUER, 1991; ABRAHAM; TOROK, 1974/1995), que surge quando a lacuna transmitida no próprio sujeito irrompe o caminho da introjeção. Este fantasma trabalha para o instinto de morte (FREUD, 1920/2010), sendo fonte de repetição de diversos eventos.

Diante disso, acredita-se que Paula, que desconhecia aspectos de sua própria história, pode ter sido a depositária deste objeto transgeracional fantasma cons-tituído a partir dos segredos encerrados na cripta psíquica da mãe Raimunda. O fantasma patológico atuante pode ter influenciado tanto em relação à garota também sofrer violência sexual incestuosa, assim como havia ocorrido com a mãe, quanto em cometer um assassinato, como a avó.

Porém, para que a violência sexual incestuosa possa acontecer, é necessária a presença de um violentador, que tem responsabilidade sobre o ato que comete. Assim, não são somente os vínculos intersubjetivos e os processos de transmissão psíquica que vão determinar que a violência sexual incestuosa aconteça.

É relevante ressaltar que as duas leis fundamentais para a manutenção da civilização — não cometer assassinato e incesto (FREUD, 1913/2012) — foram transgredidas mais de uma vez pelas gerações desta família. Tais leis são também conteúdos que compõem a transmissão psíquica intergeracional, que pode ser cessada por traumas (TRACHTENBERG, 2005) como aqueles vivenciados pela família de Raimunda. Então, diante do trauma, a transmissão que opera predo-minantemente é transgeracional, não preservando os espaços intersubjetivos. Quais os impactos que as leis constituintes da civilização infringidas por estes sujeitos poderiam ocasionar nas próximas gerações?

Outro aspecto a ser considerado é que, diante da situação traumática do incesto não elaborada por Raimunda, esta teria desejado, inconscientemente, matar o pai que a violentou? Diante deste possível desejo de Raimunda e do fato de Irene ter assassinado o pai-avô de Paula, ambos tidos como segredos silenciados, o objeto transgeracional do tipo fantasma patológico herdado pela

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moça também pode ter tido em sua constituição os aspectos sem representação que remetem a tal assassinato.

Mais um aspecto interessante é que a música Volver, interpretada pela perso-nagem Raimunda, parece retratar o papel da herança psíquica transgeracional sobre o psiquismo de um sujeito, como se passado e presente se misturassem, impedindo a evolução do tempo cronológico e psíquico diante deste corpo estra-nho sem nome que atua na vida psíquica, por vezes repetindo-se, possivelmente procurando por uma elaboração.

“(...) Sentir... que é um sopro a vida, que vinte anos são nada, que febril a olhada

errante nas sombras te procura e te nomeia. Viver... com a alma aferrada a uma

doce lembrança que choro outra vez”. (ALMODÓVAR, 2006)

Raimunda cantou emocionada como fazia quando criança enquanto a mãe escondida no carro de Soledad também chorava. Passado e presente mesclavam--se? Um processo de elaboração pode ter-se iniciado naquele momento? Seria esta a música que a mãe ensinou à filha para cantar no show de talentos, já representando um legado de uma família que escondia tantos segredos que possivelmente foram transmitidos transgeracionalmente, de forma parcial, como herança psíquica?

Parece que foi necessário o retorno de Irene como um fantasma não nomeado que sai do túmulo — e, posteriormente, a quebra do silêncio da amiga da família — para que os segredos começassem a ser ditos, nomeados, caminhando para uma possível elaboração. Retomando a cena que o vento empurra o lixo, pode-se pensar este como representante das histórias não ditas e não elaboradas desta família. Assim como o lixo está sendo levado, os segredos foram desaparecendo diante da possibilidade de nomeações e esclarecimentos dos fatos vivenciados. É como se as tantas lacunas indizíveis permitissem ser preenchidas por palavras, possibilitando transformações nas relações desta família bem como ressignifi-cações dos eventos traumáticos anteriormente experienciados, rompendo com a cadeia traumática transgeracional.

considerAções finAis

Este artigo teve como objetivo explanar sobre a constituição do fantasma pato-lógico enquanto objeto transgeracional em casos de violência sexual incestuosa. Tentou-se compreender as possíveis significações atribuídas aos desdobramentos dos eventos traumáticos vivenciados pela família de Volver e o impacto desta herança psíquica nos descendentes.

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É possível afirmar certa relação entre a violência sexual incestuosa e a herança psíquica. Não é um fator determinante para que a violência ocorra, mas exerce influência como em outras ocasiões. Nas situações de incesto, o trauma pode se instalar, por exemplo, diante de um desmentido pelo qual se desautoriza o sofrimento do sujeito violentado. Na análise realizada, as experiências traumá-ticas irromperam aspectos nos psiquismos dos sujeitos, impedindo elaborações e significações.

Este foi um olhar construído dentre inúmeros que poderiam ser estruturados. Além disso, não há como abarcar todos os aspectos apresentados. Por isso, foi escolhido o foco da violência sexual incestuosa e alguns aspectos dos assassinatos, pois há relação entre estes atos por serem transgressões das leis fundamentais da civilização, conteúdos também transmitidos intergeracionalmente.

Por fim, a herança psíquica é um fator relevante a ser considerado diante das experiências pelas quais os sujeitos passam, pois, somando também a esta ótica, o olhar dos profissionais torna-se ampliado, buscando pensar além do sujeito que apresenta algo que pode não ser suficiente para a compreensão de angústias. Considerando estes aspectos, pode-se abrir possibilidades de espaço para nomeações e transformações, como ocorre em Volver, também durante o processo de análise.

Recebido: 17 de abril de 2014. Aprovado: 23 de setembro de 2014.

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Anna Thereza Carneiro Pinto [email protected]

Caio César Souza Camargo Pró[email protected]

Luiz Carlos Avelino da [email protected]