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1 Antonio Carlos Frizzo A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná TESE DE DOUTORADO DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de pós-graduação em Teologia Rio de Janeiro Agosto de 2009

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Antonio Carlos Frizzo

A Trilogia Social: estrangeiro,

órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná

TESE DE DOUTORADO

DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de pós-graduação em Teologia

Rio de Janeiro Agosto de 2009

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Antonio Carlos Frizzo

A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua

recepção na Mishná

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima

Rio de Janeiro, agosto de 2009

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Antonio Carlos Frizzo

A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa Maria de Lourdes Corrêa Lima Orientadora

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Isidoro Mazzarolo Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Ludovico Garmus Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Vicente Artuso PUC-PR

Prof. Paulo Severino da Silva Filho

Seminário Teológico Presbiteriano Simonton

Prof. Paulo Fernando Carneiro da Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro

de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 9 de agosto de 2009

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora.

Antonio Carlos Frizzo

Graduou-se em Teologia na Faculdade Nossa Senhora da Assunção de São Paulo em 1984. Defendeu a tese de mestrado em 1999, pelo Instituto Católico de Paris, resultado dos estudos sobre a relação entre judaísmo e cristianismo, no Instituto Pontifício Ratisbonne de Jerusalém. Leciona teologia bíblica (Antigo e Novo Testamento), é responsável pelo curso de línguas bíblicas (hebraico e grego) na Faculdade Dehoniana, Taubaté e no ITEFIST (Instituto de Teologia e Filosofia Santa Terezinha), São José dos Campos, São Paulo. É padre na diocese de Guarulhos, São Paulo.

Ficha Catalográfica

CDD: 200

Frizzo, Antonio Carlos A trilogia social : estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná / Antonio Carlos Frizzo; orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima. – 2009. 235 f.; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Trilogia social. 3. Estrangeiro. 4. Órfão. 5. Viúva. 6. Mishná. 7. Deuteronômio. 8. Defesa da vida. I. Lima, Maria de Lourdes Corrêa. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

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Ao meu pai, Antonio Frizzo (in memoriam), com quem aprendi a sonhar e trabalhar por um mundo justo e solidário.

À professora Ana Flora Anderson, mestra nos primeiros passos no estudo das Escrituras;

Ao professor e amigo, Dr. Pe. Emanuel Bouzon (in memoriam), pela confiança e por ter acenado os primeiros passos desse trabalho.

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Agradecimentos

Ao Deus Um, pela saúde e por tantas bênçãos recebidas no dia-a-dia.

À minha mãe Isabel dos Santos Frizzo que, no silêncio e na atitude de atenta

observadora, colaborou, em muito, na elaboração deste trabalho.

À Maria de Lourdes Corrêa Lima, minha orientadora, conhecedora, como poucos,

da ciência bíblica, exigente e transbordante de simplicidade e amizade.

À Igreja Particular de Guarulhos, na pessoa do nosso Bispo Luiz Gonzaga

Bergonzini, onde por mais de trinta anos vivo e celebro o dinamismo da fé e

missão, por ter-me possibilitado tempo e apoio integral no desenvolvimento da

pesquisa.

Ao meu pároco, Savério Lípori e agentes de pastoral da Igreja Santa Cruz, Jd.

Presidente Dutra, pelas inúmeras vezes em que assumiram minhas tarefas

cotidianas, possibilitando-me mais tempo para as pesquisas.

Ao Centro Bíblico Verbo, onde pensamos as Escrituras na vida de nossa gente.

Lembro a amiga Cecília Toseli, os professores Ademar Kaefer, Shigeyuki

Nakanoso, às professoras Maristela Tezza e Maria Antônia Marques. Essa última

foi uma constante assessora.

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À Faculdade Dehoniana, em Taubaté e ao ITEFIST de São José dos Campos,

espaços de amizade, reflexão e debate em torno das Escrituras.

À professora Deucélia Adegas Pêra, quanto tenho a agradecer! Ela, embora

travando uma luta contra um câncer, sempre suplantou as dores ou desânimo e fez

uma revisão impecável deste trabalho.

Ao aluno Messias Rochinski pela ajuda no acerto do software.

Ao professor Élio Passeto, do Centro de Estudos Judaico-Cristão Ratisbonne, em

Jerusalém, pelos conselhos, leitura e revisão dos capítulos envolvendo a tradição

judaica.

À Irmã Maria do Rosário, bibliotecária da École Biblique de Jerusalém, pelas

constantes dicas bibliográficas.

Ao Prof. Ludovico Garmus, funcionárias e funcionários da Biblioteca do Instituto

Teológico Franciscano, Petrópolis, RJ, pela amizade solidificada ao longo do

trabalho.

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Resumo

Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa. A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A presente tese aborda uma reflexão bíblico-teológica sobre a trilogia

social – גר “estrangeiro”, םיתו “órfão” e אלמנה “viúva” no Dt e sua recepção da

Mishná. No livro encontramos seis explícitas referências à trilogia: 10,12-22;

14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. A presença dessas categorias

acena para um significativo conjunto de normas jurídicas no Antigo Israel. As leis

foram praticadas para defender os direitos de grupos socialmente vulneráveis,

diante de um determinado contexto político e social, como é possível verificar no

embate com o projeto beligerante do império assírio (722 a.C.) e, mais tarde, com

a experiência da comunidade religiosa pós-exílica (537 a.C.), após confrontos

com as tropas babilônicas. As narrativas, além desse aspecto, revelam o nível de

intimidade envolvendo YHWH e a comunidade religiosa, que deve engajar-se

para fazer prevalecer a prática do direito e da justiça aos grupos socialmente

desfavorecidos, como prova de sua interação com YHWH. Num contexto social

completamente adverso às comunidades judaítas, nos dois primeiros séculos da

nossa era, a Mishná baliza os esforços dos sábios fariseus ao colocarem em prática

os preceitos, sempre atuais, da Torá. Ler os dois universos literários – Dt e

Mishná - a partir da ótica dos grupos socialmente frágeis, é um desafio para se

compreender o valor significativo que teve a tradição judaica na compreensão do

conceito “Palavra de YHWH”.

Palavras-chave

Trilogia social, estrangeiro, órfão, viúva, Mishná, Deuteronômio, defesa da

vida.

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Resumen

Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Orientadora). Social Trilogia: El extranjero, el huérfano y la viuda en el Deuteronomio y su recepción en la Mishna. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Tesis Doctoral – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

El objetivo es abordar una reflexión bíblico-teológica sobre la trilogía

social: גר“extranjero”, יתום “huérfano” y אלמנה “viuda” en el Dt. En tal libro

encontramos seis referencias explícitas a esta trilogía: 10,12-22; 14,28-29; 16,9-

12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. La presencia de estas categorías nos remite para

un conjunto significativo de normas jurídicas en la antigua Israel. Las leyes se

hicieron para la defensa de los derechos de los grupos socialmente vulnerables,

dado a un determinado contexto sociopolítico, como se puede ver en el

enfrentamiento con el proyecto beligerante del imperio Asirio (722 a.C.) y

posteriormente con la experiencia de las comunidades religiosas del pos exilio

(537 a.C.), y tras los enfrentamientos con las tropas Babilónicas. Tales

descripciones; y más allá de estos puntos; indican el nivel de intimidad que

envuelve a YHWH y a las comunidades religiosas, las cuales deben dedicarse

para hacer prevalecer la práctica de la ley y la justicia en los grupos socialmente

desfavorecidos, como prueba de su intimidad con YHWH. En un contexto social

totalmente adverso para las comunidades judaicas en los primeros siglos de

nuestra era, la Mishna es señal de los esfuerzos por parte de los sabios fariseos

para poner en práctica los preceptos, siempre vigente del Torá. Leer los dos

mundos literarios – del Mishna y el Dt – desde la perspectiva de los grupos

socialmente vulnerables, es un reto importante para comprender el valor que tenía

la tradición judaica en la comprensión del concepto de “la palabra de YHWH”.

Palabras claves Trilogía social, extranjero, huérfano, viuda, Mishna, Deuteronomio,

defensa de la vida.

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Résumé

Frizzo,Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Orientatrice). La trilogie sociale dans livre de Deutéronome: exotique, orphelin et veuve et sa réception dans le Mishna. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Thèse de Doctorat - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

La thèse traite d’une réflexion biblico-théologique sur la trilogie sociale:

veuve” en Deutéronome. Plus“ אלמנה orphelin’’ et“ יתום ,’’étranger“ גר

précisement dans ses chapitres 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21;26,12-15;

27,11-26. La présence de ces catégories fait appel à une importante série de

règles de droits dans l’ancien Israel. Ces lois sont faites pour défendre les droits

des groupes socialement vulnérables, compte tenu d’un certain contexte politique

et social, comme vous pouvez le voir dans l’affrontement avec la conception des

bélligerents de l’empire de syrie (722 Après Jésus Christ) et plus tard, avec

l’expérience de la communauté religieuse post-Exil (537Avant Jésus Christ),

après des affrontements avec les troupes Babyloniennes. Les récits, au-delà de ce

point, l’intimité de Yahvé et la communauté religieuse qui doit s’enganger à la

pratique du droit et de justice en faveur des groupes socialement défavorisés,

comme preuve de interaction avec Yahvé. Dans un contexte social totalment

néfaste pour les communautés Juives dans les deux premiers siècles de notre ère,

la Mishna, phare de sages pharisiens, les efforts visant à mettre en pratique les

préceptes, le cas échéant de la Torah. Lire les deux mondes littéraires - Mishna e

Dt - du point de vue des groupes socialement vulnérables est um défi de

comprendre la valeur qui a la tradition juive dans la compréhension de la notion

du mot “Yahvé’’.

Mots-clés

Trilogie social, étranger, orphelin, veuve, Mishna, Deutéronome, défense

de la vie.

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Abstract

Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Advisor). Social Trilogy: foreign, orphan and widow in Deuteronomy and its reception in Mishná. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Doctoral Thesis– Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The aim is to discuss the biblical-theological reflection on the social

trilogy - גר “foreign, יתום “orphan” and אלמנה “widow” in Dt. In this biblical

book are six explicit references to this trilogy: 10, 12-22, 14, 28-29, 16, 9-12, 24,

17-21, 26, 12-15, 27, 11-26. The presence of these categories points out the

significant set of legal rules in Ancient Israel. The laws were made in order to

defend the rights of socially vulnerable groups, in a certain political and social

context, as you can find out from the clash with the design of the belligerent

Assyrian Empire (722 BC) and later, with the experience of religious post-exile

community (537 BC), after clashes with the troops of Babylon. The narratives,

beyond this point, show the level of intimacy involving YHWH. In a social

context, completely adverse to the Jewish communities in the first two centuries

of our area, the Mishná points out the wise Pharisees efforts to put into practice

the precepts always present of the Torah. To read the two literary worlds – Dt and

Mishná – from the perspective of socially vulnerable groups, is a challenge to

understand the significant value that the Jewish tradition has had about the

understanding of the concept “Word of YHWH”.

Keywords

Social Trilogy, Foreign, Orphan, Widow, Deuteronomy, Defense of Life

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Sumário

1. Introdução geral 18

2. Sinalizando os rumos da pesquisa 30

2.1. O estrangeiro, o órfão e a viúva na categoria dos pobres 34

2.1.1. O רג “estrangeiro” 35

2.1.2. A pessoa do םתוי "órfão”. 39

2.1.3. A pessoa da הנ מ ל א “viúva” 42

2.2. Conclusão 49

PARTE I: COMENTÁRIO DOS TEXTOS ONDE É CITADA A TRILOGIA

SOCIAL – “ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA” NO DEUTERONÔMIO 51

3. Apresentação do conjunto das perícopes do Dt relacionadas com a

trilogia social 52

3.1. A historicidade divina reside na realização da justiça: Dt 10,12-22 52

3.1.1. Dt 10,12-22: tradução e aspectos filológicos 53

3.1.2. Delimitação do texto, composição e estrutura 56

3.1.3. Comentário e análise semântica 62

3.2. Há um tempo determinado para a justiça: Dt 14,28-29 74

3.2.1. Dt 14,28-29: tradução, aspectos filológicos e variantes 76

3.2.2. Delimitação do texto, composição e estrutura 77

3.2.3. Comentário e análise semântica 79

3.3. Os produtos da terra utilizados na equidade social: Dt 16,9-12 87

3.3.1. Dt 16,9-12: tradução, aspectos filológicos e variantes 87

3.3.2. Delimitação, composição e estrutura 89

3.3.3. Comentário e análise semântica 92

3.4. Os pobres são lembrados durante a colheita: Dt 24,17-22 96

3.4.1. Dt 24,17-22: tradução, aspectos filológicos e variantes 97

3.4.2. Delimitação, composição e estrutura 101

3.4.3. Comentário e análise semântica 102

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3.5. A não transgressão é o meio para um mundo estável: Dt 26,12-15 107

3.5.1. Dt 26,12-15: tradução, aspectos filológicos e variantes 108

3.5.2. Delimitação, composição e estrutura 111

3.5.3. Comentário e análise semântica 114

3.6. O senso cúltico contra atos que impossibilitam a realização do projeto

da bênção: Dt 27,11-26 122

3.6.1. Dt 27,11-26: tradução, aspectos filológicos e variantes 122

3.6.2. Delimitação, composição e estrutura 127

3.6.3. Comentário e análise semântica 130

3.7. Conclusão: uma prática jurídica que agrada a Deus 136

PARTE II: COMENTÁRIO DOS TEXTOS DA MISHNÁ E SUA

INTERPRETAÇÃO DO DT 139

4. Trilogia social nos textos da Mishná 140

4.1. A importância da Mishná na formação do judaísmo 140

4.1.1. A tradição judaica em meio à experiência da הל גו , "desterro" 140

4.1.2. A autoridade hermenêutica de Hillel 144

4.2. זרעים סדר "Seder Zeraim 149

4.2.1. הפא “Pe’ah” (córner, limite, divisa) 4,3 149

4.2.2. הפא “Pe’ah” 6,4 152

4.2.3. פאה “Pe’ah” 7,7 154

4.2.4. דמאי “Demay” 1,2 156

4.2.5. שביעית “Shebiit” 7,1 159

4.2.6. שני מעשר “Maaser Shení” 5,10 162

4.3. מועד סדר “Seder Mo´ed” 164

4.4. מגילה “Megillah” 2,5 164

4.5. נשים סדר “Seder Nashim” 166

4.5.1. נדרים “Nedarim” 11,3 166

4.5.2. יטיןג “Gittin” 5,8 168

4.5.3. סוטה Sotah 9,10 171

4.6. נזיקין סדר “Seder Neziqin” 173

4.6.1. מציעה בבא “Bava Metzia” 9,13 173

4.6.2. אבות “Avot”, 5,9 177

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4.7. Conclusão 180

5. A trilogia social nos textos deuteronômicos e mishnáicos 183

5.1. O dever de disponibilizar os dízimos 183

5.1.1. Produtos disponibilizados no sétimo ano. 186

5.1.2. O dízimo dos pobres e a declaração no dia festivo, por excelência 189

5.1.3. O dízimo lembrado nas ocasiões festivas 191

5.1.4. A confissão do dízimo abolida pelo Sumo Sacerdote 193

5.2. O dever de garantir aos pobres o direito da respiga 197

5.2.1. O recolhimento do Pea não é ocasião de roubar o proprietário 197

5.2.2. A radicalidade da lei do “não voltar atrás” 199

5.2.3. Em qualquer situação os pobres serão lembrados 200

5.2.4. Não há meios de revogar o direito da Torá 201

5.2.5. Esforços voltados para a manutenção da paz 202

5.2.6. Relações comerciais sem usuras 204

5.3. A violação do direito dos pobres 206

5.4. Conclusão 207

6. Conclusão final 208

7. Referências bibliográficas 218

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Abreviaturas e siglas

Ab Abot

AtTeo Atualidade Teológica

BA Bible Atlas

BAC Biblioteca de Autores Cristianos

BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia

Bi Biblica

BJ Bíblia de Jerusalém

BM Babá mĕṣi´á

CA Código da Aliança

Cadmo Revista do Instituto Oriental de Universidade de Lisboa

CBSJ Comentario Biblico San Jeronimo

CD Código Deuteronômico

CBQ Catholic Biblical Quarterly

CS Código de Santidade

CSac Código Sacerdotal

DBHP Dicionário Bíblico Hebraico-Português

DBSup Dictionnaire de la Bible, Suplément

DDD Dictionary of Deities and Demons in the Bible

Dt Dictionary of the Talmud

DEdJ Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme

Dem Dĕmay

DITAT Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento

Dt Deuteronômio

EB Estudios Bíblicos

EsBi Estudos Bíblicos

Git Gittín

JBL Journal of Biblical Literature

JBT Journal of Bible and Theology

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JNES Journal of Near Eastern Studies

JSOT Journal for the Study of the Old Testament

LD Lectio Divina

LMB Le Monde de la Bible

M Mishná

Meg Mĕgil.lá

MSh Ma´ăśer šení

NCBSJ Novo Comentário Bíblico São Jerônimo

Ned Nĕdarim

NRT Nouvelle Revue Théologique

PT Perspectiva Teológica

OBO Orbis Biblicus et Orientalis

Pea Pe’á

RAAO Revue d`Assyriologie et d`Archéologie Orientale

RB Revue Biblique

RdCT Revista de Cultura Teológica

ReBi Recherches Bibliques

REJ Revue des Études Juives

RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana

Shebi Šĕbi´it

Sot Sotá

TBT The Bible Today

TDOT Theological Dictionary of the Old Testament

TM Texto Massorético

WBC Word Biblical Commentary

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,דבר אחד יי אלהינו עלינו יי אחד על כל באי העולם בעולם הזה יי אחד לעולם הבאיי אלהינו

וכן הוא אומר והיה למלך על כל הארץ ביום .ההוא יהיה יי אחד ושמו אחד

נד``ע, פיסקא לא, ספרי דברים

Outra interpretação de Yhwh nosso Deus: sobre nós. Yhwh é um: sobre todos os que veem ao mundo. Yhwh nosso Deus: neste mundo. Yhwh é um: para o mundo futuro. E assim se diz: “Yhwh se converterá em rei sobre toda a terra; e naquele dia, Yhwh será um e seu nome um”. Sifre Dt 31, 44.

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1 Introdução geral

Em meados de 2005, durante a etapa de cumprimento dos créditos na pós-

graduação, junto ao Departamento de Teologia, PUC-Rio, li uma breve resenha

sobre o Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, elaborada

pelo professor Emanuel Bouzon1. A narrativa de Bouzon versa sobre o encontro

da “Society of Biblical Literatur”, ocorrido na cidade de Münster, entre os dias 28

e 27 de julho de 1993. “A leitura deste volume trará, certamente, novos impulsos

e novos pontos de discussão para todo aquele que se propuser a estudar Dt 12-26”,

era a frase final da resenha. Confesso que fiquei inquieto diante dos possíveis

“novos impulsos”, como afirmava o eminente historiador, ao concluir o artigo. A

partir desse momento, comecei a aproximar-me, de modo mais crítico, dessa obra

que é um divisor de águas no conjunto do Antigo Testamento. Mas como dar

sequência às borbulhantes idéias?

Em nova conversa com o professor Emanuel Bouzon, com o objetivo de

colher as primeiras propostas de tema para um trabalho de doutoramento, tive

conhecimento da obra A Torá: Teologia e História Social da lei do Antigo

Testamento, do exegeta alemão Frank Crüsemann. Como sempre, muito fiel à sua

área de pesquisa, de exegeta e historiador do Antigo Oriente, Bouzon acenou para

a possibilidade de pesquisar um determinado conjunto de leis no Antigo

Testamento, sem deixar de lado seus aspectos históricos, sociais e teológicos.

Abracei a proposta. Terminada a leitura da obra de Crüsemann, surgiram os

primeiros rabiscos sobre a possibilidade de concentrar esforços em torno do livro

do Deuteronômio. Mas como subtrair um determinado tema num dos livros

bíblicos mais estudados nas ultimas décadas, por diferentes abordagens e escolas

exegéticas? Sobravam questões, diante da urgência de escolher um viés de análise.

1 BOUZON, M., Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, In: AtTeo, 3, 1998, pp. 99-103.

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No início de 2006, é publicado o livro de Pedro Kramer, Origem e

Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e

excluídos. O texto é uma síntese de sua tese doutoral, elaborada a partir dos

escritos de dois dos mais relevantes estudiosos do Deuteronômio: N. Lohfink e G.

Braulik. Ao debruçar-me sobre essas páginas, descobri a existência de um grupo

social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva, citada não mais do que seis vezes

ao longo do livro do Deuteronômio. Pronto! Acabava de encontrar parte do sujeito

da tese, num conjunto de leis bem especificadas no corpo jurídico do Antigo

Testamento: a defesa de grupos violados em seus direitos e justiça. A parte

complementar do tema busquei na tradição judaica. Não queria negligenciar anos

de estudos vividos em Israel. Desejava, caso fosse possível, conciliar, os textos

deuteronômicos com algum período relevante do judaísmo.

Numa nova rodada de conversas, veio a idéia de relacionar o conjunto de

leis em defesa do estrangeiro, órfão e viúva com a época dos Tanaítas. Na

oportunidade, indagávamos, entre outras coisas: as reflexões presentes na obra

deuteronômica foram consideradas pelas comunidades israelitas? Os sábios

judaicos debruçaram-se sobre tais normas? As leis em defesa dos pobres foram

observadas na prática do dia-a-dia das comunidades do II século, após a guerra de

135 d.C.? Tais questões deveriam acenar para uma determinada época.

Escolhemos os anos vividos por dois brilhantes sábios e fundadores de duas

distintas escolas rabínicas. Shamai e Hilel representam as duas tendências do

movimento farisaico do I século, época do movimento literário erigido em torno

do centro cultural de Yabneh, quando as controvérsias legais começaram a

adquirir um conjunto redacional e, considerando as vicissitudes históricas, estava

em formatação a Mishná .

Da Bíblia não foi difícil selecionar o material. Bastou uma apurada leitura,

com o apoio da concordância de Lisowsky, para selecioná-lo os textos desejados.

Encontrei seis grupos de textos: 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15;

27,11-26. A pesquisa tem como eixo as análises das perícopes voltadas para a

defesa do direito dos grupos desfavorecidos, personificados no que é chamado

Trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva.

Separadas as perícopes bíblicas, surgiu uma dificuldade maior: quais os

textos a serem priorizados, provenientes da tradição judaica, e qual o critério para

selecioná-los. De posse da concordância הכתובה והמסורה: תורה , “Tora: Haketuvah

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Vehamasorah”, do professor Aharon Hymin, o critério foi destacar todos os textos

da época dos Tanaítas, que fazem referências à trilogia social apresentada pelo

Deuteronômio. Chegamos à soma de setenta textos provenientes da Mishná, dos

Midrashin e dos respectivos Talmudes: Jerusalém e Babel.

A conclusão não poderia ser outra. Diante de um cenário literário

gigantesco, é salutar, não somente diminuir a área da pesquisa, mas, também,

redefinir o número de textos. Alia-se a esta dificuldade, meu caráter de neófito –

no senso comum da palavra – diante do vasto e qualificado universo literário de

tradição judaica. Diante dos textos judaicos, optamos por realçar os textos da

Mishná, tendo como período histórico a época dos Tanaítas, estabelecida

cronologicamente entre dois períodos pré-tanaítico – conhecido como período dos

zugot “pares” – 200 a.C a 20 d.C., e a época tanaítica, somando as seis gerações,

20 d.C a 200 a.C. São analisados os respectivos tratados em seus versículos: 1)

Seder Zeraim: Pe`ah 4,3; 6,4; 7,7; Demay 1,2; Shebiit 7,1; MSh 5,10. 2) Seder

Mo`ed: Meg 2,5. 3) Seder Nashim: Ned 11,3; Git, 5,8; Sot 9,10. 4) Seder Neziqin:

BM 9,13 e Ab 5,9.

Mas por que estes e não outros versículos? A escolha recai sobre este

conjunto de versículos exatamente por que eles justificam a aplicação de uma

הכ ל ה “halachá” – norma de conduta, regra de como agir – nos textos do Dt, onde

é citada a trilogia social. Assim, buscamos comprovar se a defesa incondicional

do estrangeiro, órfão e viúva, em realce no conjunto da obra, foi ou não

evidenciada, posta em prática pelas comunidades judaicas em meados dos anos

em que é composta a Mishná.

Sinalizando os caminhos percorridos

Ao tratar do tema Trilogia Social – estrangeiro, órfão e viúva, grafado no

Deuteronômio, a pesquisa volta-se, no primeiro momento, para uma análise

literária em torno dos textos selecionados, com a finalidade de compreender o

contexto redacional em que a Trilogia se insere. Pensa-se que, por meio deste

termo técnico - Trilogia Social – seja possível compreender, não apenas o

contexto literário das perícopes, mas também, o seu sentido originário e os

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motivos de incluí-la em diferentes narrativas, partindo sempre do contexto

literário, onde encontramos as referidas citações.

Foi com espírito de busca e entendimento que nos propusemos a realizar

este trabalho, considerando a especificidade de um determinado grupo de textos

jurídicos, realçando normas legais em defesa de uma categoria social e sua

recepção nos textos da Mishná.

Diante dos novos conceitos impostos ao grupo dos livros que compõem o

Pentateuco2, o livro do Deuteronômio não poderia, em hipótese alguma, passar

incólume nas recentes pesquisas exegéticas e descobertas arqueológicas. No

universo da ciência bíblica, são inúmeras as pesquisas e resultados apresentando

verdadeiras avalanches de variedades e resultados3. O Dt é uma obra literária de

inúmeras facetas. Um livro que, uma vez visto a partir de sua redação final, está

repleto de inúmeras outras redações e fases literárias. Não há possibilidade de se

imaginar que o texto encontrado e utilizado por Josias, em sua reforma religiosa e

política, é o mesmo Dt manuseado em nossos dias4. As opiniões sobre a formação

do Dt se dividem em diferentes escolas, quando o esforço é dirigido à

compreensão das diversas fases redacionais5.

Primeiramente, como já era possível imaginar, com base na fala de

Moisés, inserida no conjunto do livro do Dt, uma leitura mais minuciosa se depara

com uma variedade de teorias e escolas que, nas últimas décadas, revolucionaram

2 Sobre os acalorados debates em torno das origens e composição do Pentateuco conferir algumas introduções aos cinco primeiros livros. NARDONI, E., Normas de justicia en las leyes de la alianza. In: Revista Bíblica, 58, pp. 81-118; DE PURY, A., O Pentateuco em Questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, Petrópolis, Vozes, 2002; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999; SKA, J. L., Introdução à Leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia, São Paulo, Loyola, 2003. 3 KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 11: ˝A pesquisa atual sobre o Deuteronômio revela que não há consenso, entre os seus peritos, sequer quanto aos pontos básicos, como sua origem, formação e composição˝. 4 Cf. McConville, J. G., Singular Address in the Deuteronomio Law and the Politics of Legal Administration. In: JSOT 97, 2002, 19-36. A simples alternância entre a primeira pessoa do singular e a segunda do plural, legitima as inúmeras redações e camadas literárias presentes ao longo do livro (Dt 6,1-2; 4, 1; 5,1; 6.3, 4; 9,1; 10.12; 27.9). 5 Entre os autores há relativo equilíbrio na percepção estrutural do livro, um eixo central no formato de uma estrutura concêntrica, originária dos capítulos 12-26. Cf. SCHMIDT, W. H., Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994, p. 120; BLENKINSOPP, J., Deuteronomio. In: BROWN, R. E., FITZMYER, J. A., MURPHY, R. E. (Eds.), NCBSJ, São Paulo, Academia Cristã/Paulus, 2007, pp. 225-226; BRAULIK, G., Deuteronomium II, 16,18-34,12, Echter Verlag, 1980, p. 98; SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 45-46; NAKANOSE, S., Para entender o livro do Deuteronômio. Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, pp. 186-187.

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o estudo do Pentateuco e, consequentemente do livro do Dt. No capítulo II, sobre

o Status Quaestionis, apresento, de modo sintético, os caminhos pelos que seguem

as recentes pesquisas no Dt, tendo como eixo a trilogia social. Preferimos dividir

esse parágrafo em temas que julgamos ser relevantes na compreensão do livro,

descobertos durante o estudo da bibliografia e que, sem dúvida alguma, utilizamos

como princípios norteadores ao longo de todo trabalho. Com base em diferentes

escolas de exegese e teologia bíblica, chegamos a um consenso de que os grupos

sociais desfavorecidos jamais foram, em momento algum da história de Israel,

negligenciados. Pelo contrário, encontra-se em qualquer período da existência de

Israel uma clarividente defesa dos pobres em diferentes conjuntos jurídicos. A

proteção, por parte da administração da justiça, implica em que a comunidade

religiosa de Israel defenda e garanta a prática dos direitos desses grupos.

A defesa desses grupos é apresentada, numa espécie de redoma jurídica,

capaz de garantir o sucesso ou o infortúnio ao conjunto da sociedade que está por

detrás da elaboração do texto. Em outras palavras, é dada tanta ênfase a este grupo

que o leitor há de se perguntar: a sociedade, ou grupo social que produziu tal

conjunto de normas chegou, de fato, à vivência plena, radiante do javismo

defendido nas páginas do Dt? Os grupos em relevo, historicamente, viram seus

direitos defendidos, ou o que temos, como redação final, não passa de um forte

ensinamento ideológico forjado por um grupo de sacerdotes ou escribas, na

Jerusalém dos séculos VI e V a.C.?

No capitulo III, segue a análise exegética das seis perícopes. Buscamos

compreender o Gênero Literário (Forma e Estrutura), antes de tudo, percebendo os

recursos retóricos, os estilos utilizados pelo escritor bíblico, e só depois

debruçamo-nos na Análise Semântica. O conjunto de textos ai selecionados é

compreendido considerando o que inúmeros estudiosos intitulam uma releitura

teológica e histórica do Israel conhecido até então, por parte dos sacerdotes e

sábios instalados em Jerusalém, provavelmente, no período pós-exílico, isto é,

uma espécie de aprimoramento de antigas leis, em vigor em Israel, então, melhor

compreendidas ou completadas nas palavras que falou Moisés (cf. Dt. 1,1), num

contexto de uma literatura não acabada, mas pedagógica. Em todo o conjunto do

livro, o primado é dado a Moisés. O narrador prioriza a pessoa do profeta,

tomando o lugar de YHWH, como bem apresenta o Código da Aliança: E disse

YHWH a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel (cf. Ex 20, 22). Na pessoa de

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Moisés, a lei se torna mais atual. Os discursos são para o presente, nunca

reminiscência de um passado, onde Deus, um dia, dirigiu sua fala à nação

escolhida.

Visto sob a ótica da religião de Israel, o cumprimento do suporte legal

adquire o desejo de garantir o projeto do Criador. Os suportes legais recebem uma

nova compreensão, quando vistos na hermenêutica religiosa do Antigo Israel. A

prática do Direito e da justiça, após longo processo no interior da sociedade, é

compreendida como um forte apelo ideológico, quando considerada como desejo

d`Aquele que nos libertou da terra da escravidão. Tornaram-se leis sagradas que,

uma vez observadas, aproximam a sociedade dos ideais divinos. Os textos

bíblicos exaltam a divindade de um javismo, cuja personificação não está na

pessoa do rei, mas este se vê implicado no cumprimento da vontade do Criador6.

Há possibilidade de levantar os seguintes princípios na pesquisa:

• Perceber a natureza e contexto histórico da lei: Sabemos, e

são facilmente comprovados a influência e o intercâmbio

cultural entre Israel e os povos vizinhos, sobretudo a

Babilônia e o Egito. Diante de tal consideração, julgamos

ser útil realçar, ainda que de modo tangencial, a ressonância

de certos textos jurídicos presentes nas narrativas bíblicas.

Quais seriam as semelhanças entre as leis contidas no Dt

quando comparadas com textos legais provenientes do

Antigo Oriente? Considerando-se a praticidade da lei, os

conceitos utilizados são idênticos nos dois universos

literários? O que se pode notar, logo num primeiro

momento, é que no Dt a pessoa, o grupo familiar está

sempre em evidência. A defesa incondicional da pessoa

está sobre os valores materiais. Seria esta uma novidade

introduzida no livro pelos sábios judeus ao apresentarem a

fala de Deus intermediada por seu representante Moisés?,

6 GONÇALVES, F. J., A Bíblia na História do Povo de Deus, Bíblica (série científica), 13, 2004, pp. 34-35: ˝Nesta concepção de realeza, o rei invocava a autoridade de um deus criador. A título de seu representante, o rei recebia desse deus a missão de manter a ordem do mundo por ele instaurada com a sua vitória contra o Caos. O rei exercia essa missão assegurando o culto do seu deus e fazendo reinar a justiça entre os seus súditos˝.

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• O século VIII é tido como um período áureo para a política

expansionista do rei assírio Teglat-Falasar III (745-

727a.C.): a dominação imposta aos países vizinhos não

tardou a atingir as fronteiras de Israel. É imposto o regime

político de vassalagem aos reinos conquistados. Como

compreender neste contexto, as estratégias e resultados da

reforma promovida no reinado de Ezequias ao opor-se

contra os assírios? Não estaria neste período a perda do

direito da posse da terra e, consequentemente, no

agravamento da crise que se abateu sobre os pobres. Em

outras palavras, os que antes possuíam a terra, agora tem,

como garantia de sobrevivência, parte do dízimo, das festas

e das colheitas. Diante de tais considerações, as leis

expressas no Deuteronômio foram elaboradas com

finalidade de equacionar o fosso social criado no interior da

sociedade israelita, mas não de devolver a terra aos seus

antigos e legítimos proprietários.

• Para alguns exegetas, o conjunto dos textos selecionados,

no livro do Dt, são de um período recente. Os destaques

dados aos estrangeiros, órfãos e viúvas datam do período

exílico, momento em que a comunidade religiosa busca

entender as vicissitudes históricas, sobretudo a destruição

física do Templo, somada à destruição das tradições

religiosas, projetando-se no passado. Como transmitir a

história às futuras gerações? Com entender a relação Deus e

Comunidade a partir da calamidade exílica? Neste ambiente

de releituras, o Dt é uma ocasião de procurar relativa

compreensão da estrutura literária no conjunto geral do pós-

exílio.

• Por qual motivo não encontramos o termo ינ ע ((pobre) ou

נ ע םיי (pobres) tão freqüentes no livro do Deuteronômio (Dt

15,11; 24,12.14.15; 16,3), e de suma importância na

pregação profética (Am 2,7; 8,4; Is 32,7; 49,13; 58,7; Ez

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18,12; 22,19), junto à trilogia estrangeiro, órfão e viúva, no

conjunto dos textos escolhidos? Seria a categoria ינ ע

diferente do termo םתוי na época da redação do texto?

Pensamos que o Dt, por constituir-se num livro de

princípios legais, volta a essas categorias os olhares

divinos. Possibilitar segurança, justiça e acesso ao direito é

sinônimo de agradar a YHWH.

A autoridade máxima é a ר ות ההו ת י “Lei de YHWH”. A ela estão

submetidas todas as autoridades e instituições. Tem-se a impressão de que coube

ao redator final da obra, no período pós-exílico, enaltecer a Lei, como elemento

catalisador da comunidade religiosa. Não é em vão que o livro retoma a proposta

da felicidade ou da desgraça completa, compreendida no modo como a

comunidade religiosa cumpre ou não os preceitos nela estampados (cf. Dt 6,25).

O Deuteronômio é o livro escrito essencialmente para ensinar crianças e

jovens, reis e servos (Dt 4,9-10; 6,7, 20-25; 11, 19; 31,13). Sua teologia tem como

idéia central a fidelidade absoluta a YHWH e a prática da justiça e do direito7. Tal

fidelidade teve seu pleno significado na experiência do êxodo e da aliança.

Seguindo o projeto de um deus oposto às demais divindades, Israel descobre, na

história, o conceito de um deus incapaz de compactuar com a vontade humana. A

comunidade se depara com uma divindade que existe por si mesmo, sem nenhum

mérito humano (cf. Ex 3,7), e a bondade deste Deus é pensada a partir da

experiência do êxodo, onde viram a ação preferencial por Israel. A idéia da

aliança8 surge e é transmitida às futuras gerações como força divina capaz de

garantir a coesão e identidade da comunidade religiosa ao longo de sua história.

No capítulo IV são apresentados doze textos da Mishná. As leis

consideram as diferentes realidades, nas quais se inseriam as comunidades. Todas

7 Cf. SÁNCHEZ. E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 35. 8 RENDTORFF, R., A fórmula da aliança, São Paulo, Loyola, 2004, p. 75: ˝As grandes primeiras seções da história de Israel residem no passado: a geração dos pais, a quem foi prometida a terra, lembrada pelas primeiras frases da fala de Moisés no Deuteronômio (1,8); a saída do Egito, que tem, em vários aspectos, uma função constitutiva para a situação atual e auto-imagem de Israel (4,20; 7,8)...o caminho através do deserto, a tentativa frustrada de conquistar a terra a partir do Qadesh, a perambulação por quarenta anos no deserto, o triunfo sobre os reis do Jordão Oriental e a tomada de sua terra (1,19-3,17) até o ponto além do Jordão, na terra de Moab˝ (1,5), onde Moisés começa a expor a Lei. Tudo o que é anterior a esse período é objeto de reflexão retrospectiva˝.

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as normas são fundamentadas nos princípios provenientes da Torá. Isso revela o

desejo que os sábios fariseus tinham em levar uma vida social em conformidade

com as tradições transmitidas pelas Escrituras. Afinal, o Senhor não doou a Israel

normas temporais, passageiras a serem praticadas por uma determinada realeza.

São palavras eternas.

Uma leitura da Mishná revela o grau de sensibilidade social. Os pobres,

nas comunidades judaítas, nos primeiros séculos d. C., não assistem, de modo

passivo, a negligência de seus direitos. Ocorrida a violação do Direito, a

convivência social fica ameaçada. Há riscos de desintegração e desequilíbrio da

“harmonia” social. As normas jurídicas buscam meios para superar os conflitos.

Há uma urgência em recorrer ao suporte da jurisprudência, no desejo de equalizar

e projetar relativa sensação de harmonia entre interesses antagônicos.

Os sábios tanaítas não leram de modo aleatório as Escrituras. As normas,

no estudo da Torá, foram forjadas pelos tanaítas. Hilel é citado no desejo de

verificar o grau de comprometimento e seriedade diante das tradições orais e

escritas. As regras citadas comprovam tal seriedade. As regras exegéticas não se

furtam em comprovar o nível do amor a Deus que envolve todo o coração. A

Escritura, a Lei, não é entendida de modo individualista, repleta de conceitos

genéricos, sem destinatários. A disponibilidade na realização do projeto divino

está no ensinamento e transmissão da Torá, fazendo com que, de geração em

geração, seja conhecido o nome do Senhor.

No capítulo V, ocorre a interação entre os textos do Dt e a Mishná.

Procuramos compreender o grau dessa interação. A comparação expõe três

práticas muito comuns nos anos que se seguiram após a destruição do segundo

Templo. São elas: 1) O dever de disponibilizar os dízimos; 2) O direito dos pobres

pela respiga; 3) A violação do direito dos pobres. Não oferecer comodidade frente

às normas provenientes da Torá pode ser uma justa equação levada adiante pela

tradição judaica na época Tanaítica. A ortopraxis é justificada pelos textos

bíblicos. Neste sentido, cabe, no desenvolvimento da pesquisa, identificar quais

realidades sociais, os diferentes casos, que são normatizados na Mishná

considerando sempre as perícopes em que ocorre nítida referência à trilogia social:

estrangeiro, órfão e viúva.

A análise está centrada em 12 diferentes capítulos da Mishná. Vale realçar

que a sequência à trilogia social ( ר ג , ם תוי e הנ מ ל א ) comum no livro do Dt (10,18-

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19; 14,29; 16,11; 24,17.19.20.21; 26,12.13; 27,19) não é encontrada nas páginas

da Mishná. Na pesquisa, o critério de escolha dos textos considerou,

especificamente, textos do Deuteronômio que oferecem suporte a uma

determinada halakhah. Por esse critério, são relacionados as seguintes perícopes:

14,28-29; 16,9-12; 24,17.18.19.21; 26,13-15 que fundamentam, diante de uma

determinada realidade social os desafiu imposto à comunidade, a preocupação

com o direito social de grupos desfavorecidos ou que estão disputando a defesa de

seus direitos expressos na Torá. Foram selecionados apenas os textos em que,

explicitamente, é citada a trilogia social, como critério argumentativo na

justificação de uma determinada pratica adotada pela comunidade9.

Relevância do tema e contribuição à ciência bíblica

O método histórico-crítico, levado adiante nos últimos dois séculos, por

diferentes escolas exegéticas, tem possibilitado um conhecimento, cada vez mais

real, da gênese de um determinado texto, bem como o seu processo redacional

quando somado aos demais livros que compõem a Bíblia. O uso do nome Bíblia

faz jus a esta série de leituras e releituras. O avanço da ciência bíblica, somado às

áreas da teologia, parece ter recuperado o pleno sentido santo da Escritura e das

demais esferas da ciência teológica10.

Existe um considerável número de trabalhos no mundo da exegese

moderna que acena, cada vez mais, para um constante diálogo com narrativas

históricas ou jurídicas provenientes do universo mesopotâmico e egípcio. A

comunidade religiosa israelita foi de, um modo direto, influenciada por

pensadores, culturas e regimes que a circundavam. Tal influência foi determinante

na redação dos textos bíblicos. O que pretendemos verificar é que, a partir de

9 “A Mishná cita, relativamente, poucos versículos bíblicos, e estes em partes foram acrescentados posteriormente. Inclusive uma prova do tipo bíblico (“como está escrito”) é rara. Em geral, a Mishná dá a impressão de um cuidado consciente em manter-se independente da Bíblia. Porém uma consideração mais atenta de alguns tratados deixa ver uma distinta relação com a Bíblia”. STRACK, H. L., e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica,Valencia, Instituición S. Jerónimo para la Investigación Bíbica, 1998, p. 192. 10 O que outrora causou estranheza e mal-estar no seio da Igreja Católica é, hoje, visto com bons olhos. Recupera-se o sentido original do sensus bíblico no interior da comunidade de fé. Não é em vão que o Concílio Vaticano II foi, não um ponto de chegada, mas uma legítima base de lançamento para a ciência bíblica. Presenciamos nos últimos anos não uma revolução, mas uma volta às origens no estudo das Sagradas Escrituras. Cf. DV. n. 6.8.

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normas jurídicas de relatos históricos e de convivência social, há séculos em voga

no Oriente antigo, e expostas entre grandes impérios e inúmeras culturas que se

sobrepuseram a Israel, é inconcebível não perceber a herança herdada destas

experiências, mesmo aquelas de aparência contraditória como o imposto exílio

babilônico, nos relatos bíblicos. De posse de um conjunto de textos considerados

como ˝vontade divina, palavra inspirada pelo Criador˝, buscamos, na fase

conclusiva, perceber como os sábios judeus, do final do primeiro século, leram

tais normas jurídicas em defesa dos pobres.

As leis em defesa dos fracos, dos menos favorecidos, das vítimas do

processo escravagista foram colocadas em prática ou foram manuseadas como

mero discurso ideológico? As escolhas feitas pelas escolas de Hillel e Shammai

são exemplares para compreender o grau da interpretação e praticidade dada à

Escritura. Julgamos tal período essencial para compreender, não somente o

judaísmo na época tanaítica, como também o cristianismo do primeiro século.

Ciente do risco de ampliar demasiadamente o campo de pesquisa, não me

debruçarei sobre o cristianismo do século I e II, porém, delinear o movimento dos

sábios judeus deste período será uma relevante ajuda à ciência teológica,

sobretudo, considerando que este é um dos temas inquietantes e desafiadores na

exegese bíblica contemporânea. Afinal, a comunidade judaico-cristã, ao redor da

pessoa de Jesus Cristo e a sua primeira geração de discípulos, inquieta, interessa e

incomoda gerações de pesquisadores, que demonstram como a literatura bíblica

foi construída paulatinamente ao longo de sua história.

Para os leitores creio necessária e inovadora abordagem inter-cultural e, ao

mesmo tempo histórica, a fim de ajudá-los na compreensão, quer da história da

comunidade, quer na formação do que hoje chamamos tranquilamente de Cânon.

Coube a uma determinada comunidade religiosa encontrar soluções frente às

vicissitudes históricas, nas quais o caminhar, nas ordens do Criador, foi sempre

uma máxima, garantindo coesão e identidade à comunidade religiosa de Israel.

Consideram-se, de modo fundamental, os inúmeros esforços realizados, desde a

publicação do documento Nostra Aetate11, no diálogo entre a teologia e exegese

cristã e a tradição judaica.

11 Após 40 anos da declaração Nostra Aetate há muito que se fazer para que desejos, muitos deles, suspirados nos bastidores ou penumbras da sociedade, nãos destruam o caminho percorrido.

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A tese se desenvolve segundo a seguinte estrutura, exposta em duas partes,

que se desdobram em mais subdivisões:

Introdução

1- O estado atual da pesquisa, considerando a trilogia social

2- Apresentação da perícopes do Dt relacionadas com a trilogia

3- Percepção da trilogia nos textos da Mishná

4- Relação entre os textos do Dt e sua ressonância na Mishná

5- Conclusão

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2 Sinalizando os rumos da pesquisa

A análise da “Sozialtrias” – tríade social1

1 – formada pelo רג “estrangeiro”, םתוי “órfão” e הנ מ ל א ”viúva”, procura realçar,

de sobremaneira, os aspectos econômico-sociais, evidenciando o grau de

importância exercido por esses grupos humanos, profundamente atrelados ao

modo de produção agro-pastoril, predominante nas sociedades antigas. Considera-

se grupos de ים ט פ ש מ “leis” ou “normas” bíblicas2 como sendo parte de um

arcabouço jurídico que procura soluções e garantias aos grupos sociais em

processo de pauperismo ou morte iminente.

As pesquisas inserem essa tríade num contexto eminentemente social3.

Grupos sociais desempenhando, se não um papel relevante na esfera do controle

ou determinações do poder, uma reivindicação de seus direitos essenciais, como

trabalho, alimentação, justiça, terra e liberdade. São compreendidos como um

grupo sociológico com papéis bem definidos nas diferentes épocas e sociedades

bíblicas. No desejo de compreender as abordagens de nossos autores, num

primeiro momento, evidenciamos a importância dos grupos sociais para, em

seguida, identificar tais grupos e suas características.

Em meio ao “redemoinho da derrocada social”4, responsável pelas

contradições sociais existentes em Israel e ecoando em Judá, presencia-se a

1 O termo é cunhado por Braulik em seu comentário ao livro do Deuteronômio. Cf. BRAULIK, G., Deuteronomium II, 16,18-34,12, Echter, Verlag, 1980, p. 184. 2 Cf. Dt 16,19; Ex 23,6.9. 3 Nossos autores abordam tal tríade num conjunto de outras preocupações com o andamento da sociedade ou grupo social. LEVINSON, B. M., The Reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the Deuteronomistic History’s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, p. 515. GLASS, Z. G., Land, Slave Labor and Law: Engaging Ancient Israel’s economy. In: JSOT, 91, 2000, p. 27-39. CARRIÈRE, J. M., Le cadre ou se forme la décision politique. Lecture de Deutéronome 16,18-18,22. In: NRT, n. 121, 1999, p. 529-542. 4 Um dos termos utilizados por Crüsemann na descrição do processo de pauperização iniciado o ano 722, e que se agrava no decorrer dos dois séculos seguintes. Cf. CRÜSEMANN. F., A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 323.

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atuação de tais grupos ou categorias sociais agindo numa objetividade voltada para

a superação da violação da הק ד צ "justiça". Uma análise de certas normas jurídicas

é capaz de perceber e expôr o alto grau de violência ou violação dos direitos

impostos por grupos ligados ao controle político-econômico da sociedade, contra

setores reconhecidos em nossa pesquisa como marginalizados, como demonstra

Jean-Marie Carrière5.

As leis acenam para a superação da violência. O “igualitarismo” jamais

deixou de ser almejado, quando consideramos as leis em defesa dos

marginalizados no conjunto do livro do Deuteronômio. Pelo contrário, deixam

transparecer o forte sistema de violência praticado contra esses setores sociais

ligados ao trabalho manual, seja esse na cidade ou no campo, dando a entender

que os interesses ideológicos, grafados em Leis, caminham na direção da

suplantação do regime da violência.

, רג הנ מ ל א, םתוי “estrangeiro, órfão e viúva” são compreendidos como um

grupo merecedor das atenções nos afazeres da realeza6. É função do rei governar

tendo como princípio norteador a prática da justiça a esses grupos, bem como

facilitar e dar relativa garantia de que seus direitos serão praticados.

Com base na ideologia deuteronomista, Levinson acena sete diferentes

aspectos na função do rei em gerenciar a justiça. 1) No mundo antigo, a figura do

rei é compreendida como o filho adotivo, por meio do qual se realiza a

perpetuação de uma nova geração. Davi, visto como הונ ת ר א כוב (meu

primogênito), nos Salmos da Realeza (Sl 89,28; 2,7), é conclamado a administrar

a prática da justiça. 2) O estreitamento entre a divindade e a realeza era comum no

Antigo Oriente. No Código de Hammurabi, o rei apresentado possui uma filiação

divina. É seu supremo herdeiro. “Eu sou Hammurabi, o rei da justiça, a quem

Šamaš deu a verdade” (XLVII, 90). Sob o título de herdeiro divino os reis de

Israel também compartilharão desta nobre missão de administrar a justiça e o

direito (Sl 72, 2). Deus promete dar a Salomão o que procura, no desejo de que

este faça reluzir a prática da justiça e direito ao longo de seus dias (1Rs 3,11-13.

5 Estamos diante de tratados extremamente políticos. Tais leis acenando, ora para a defesa do pobre, órfão e viúva, ora denunciando algum grau de violação dos direitos. Pode-se perceber que algo maior está em jogo. Alguém teme ou não quer perder privilégios. Tais leis, quando praticadas, podem redefinir os rumos da sociedade. Se não fosse assim, tais apelos – gritos – poderiam, muito bem, se perder ou ser totalmente ignorados ou jamais registrados nos textos da Escritura. Cf. CARRIÈRE, J. M., Le cadre où se forme la décision politique, op. cit., pp. 529-542. 6 BRAULIK, G. Deuteronomium II, 16,18 – 34,12, 1980, p. 184.

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28). 3) A positiva obrigação de garantir aos marginalizados o direito e a justiça.

Assegurar aos pobres a proteção necessária. 4) A remissão das dívidas foi usada

como meio de reconhecer ou não a sabedoria divina presente nos atos do monarca.

O binômio ו מל ע כ ה ל ק ד צ ט ופ ש מ “direito e justiça a todo o seu povo” (2Sm 8,15; Jr

22,3) reproduz um termo técnico utilizado na qualificação de um rei. 5) Instância

responsável por fazer “dilatar em todo o reino o direito”. 6) A relação entre rei e

templo ecoa nos mais diferentes reinados. Construir um templo, com a finalidade

de abrigar as leis divinas, será uma das medidas do recém empossado rei Davi

(2Sm 7). Seja em Israel, ou em Judá, rei e templo se identificam (2Rs 18, 1-8; 2Rs

22-23). 7) O rei está diretamente implicado com seu poderio militar, a exemplo do

sucedido ao rei Hammurabi. (II, 32-36). A tarefa de passar em revista e animar

seu exército para o combate, foi um dos atributos da realeza (1Sm 10,27; 2Sm 11,

1-2)7.

No livro do Deuteronômio, os textos onde encontramos uma referência

explícita ao conjunto social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva (10,12-22;

14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26) enaltecem, de modo

incondicional, a pessoa, conforme G. Braulik descreve em seu comentário ao

Deuteronômio8. A primazia da pessoa sobre qualquer tipo de bem material visa

impedir certo processo de exclusão de modo mais abrupto. Em outras palavras, o

não pagamento de um empréstimo não pode ser ocasião de violação à casa ou ao

patrimônio do devedor (Dt 24,10). O salário do pobre trabalhador não pode ser

retido (Dt 24, 14). Fica intransferível a dívida dos pais para os filhos (Dt 24,16).

Estamos diante de um claro exemplo e funcionalidade do termo técnico הק ד צ ,

“justiça”9.

Estes grupos são apresentados nos textos do Deuteronômio de modo bem

definido. Aparecem sempre ligados ou relacionados às suas realidades materiais.

Surgem como aqueles que não tem, ou se viram diante da experiência da

7 Cf. LEVINSON, B. M., The reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the Duteronomistic History`s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, 2001, pp. 511-534. 8 Cf. BRAULIK, G. Deuteronomium II, 16,18-34,12, 1980, p. 184. 9 A tradução empreendida ao termo הק ד צ , “justiça, retidão, andar retamente” considera as definições oferecidas por alguns estudiosos. “A profecia na época babilônica, frente ao desaparecimento da הק ד צ em Israel, no horizonte histórico resulta num pecado maior do que os praticados anteriormente no reino do norte de Israel”. Cf. KOCH, K., ה ק ד צ . In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.) Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, v. II, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1985, p. 667; ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, São Paulo, Paulus, 1997, p. 556; BROWN, F., Hebrew and English Lexicon, Massachusetts, USA, 1996, p. 842.

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expropriação, como resultado de relações injustas, impostas por um regime de

violação de direitos. A pobreza ou a condição de pobre não é algo natural, mas

entendida como resultado da situação de violência e da injustiça10.

O grupo dos יםנ יוב א , “pobres”11 é encontrado em oposição aos grupos

formados por pessoas ricas, perversas ou opressoras. Trata-se de um termo

utilizado com a finalidade de evidenciar a prática de uma injustiça, de um delito,

cometido por outros setores ou grupos da sociedade que gozam de um relativo

prestígio ou almejam uma ascensão ou manutenção de um privilégio social12.

Uma segunda característica exercida pelo grupo dos pobres refere-se ao

dinamismo atuante no interior da história. Este aspecto foi bem elucidado por

Jean-Marie Carrière ao comentar as leis expressas no livro do Deuteronômio. Para

ele, o poder está em jogo nas entremeadas leis expostas no livro. Estamos diante

de tratados, de temas essencialmente políticos. O poder é o tema central e crucial

posto à prova:

“Deuteronômio 12-26 é um código de leis onde o estatuto é geralmente reconhecido como sendo aquele de uma constituição política no senso moderno do termo. Sua característica específica provém sobretudo da parte central do código, que trata das instituições. O código se abre sobre uma lei dita de centralização, oferecendo movimento à sua primeira parte e termina por um encontro aparentemente discordante das leis que encobrem as principais prescrições do código da Aliança segundo um princípio antropológico e político”13.

A esfera primordial da inserção dos pobres na história pode ser encontrada

na experiência do Êxodo. A teologia do Antigo Testamento está firmada nesta

10 O projeto de que não deve haver pobres em Israel é estampado logo nos primeiros capítulos do livro do Deuteronômio. Iahweh entrega a Israel uma “terra boa” (Dt 8,7) e dotada de inúmeros recursos (Dt 8, 7-10), para que não venham a existir pobres no meio de Israel. 1ה ב י ה א י י לס כ פ א

ץר אה ב הו י 1כ ר ב י 2ר י ב ן כ יוב א " Eis que não haverá pobre em teu meio, pois YHWH te abençoará na terra” (Dt 15, 4). 11 Conforme tradução oferecida por Schökel, usaremos a terminologia pobre como tradução do termo hebraico אביון “pobre” entre tantos outros termos sugeridos. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 23. Vale ressaltar que sobre esse verbete אביון ocorre inúmeras impresições. Sobre isso oportunas as observações elencadas por Botterweck. O grupos dos יםנ יוב א surgem em paralelo ao grupo formado pela trilogia formada por םתוי , הנ מ ל א, רג sobretudo, junto à literatura sapiencial. Cf. Botterweck. In: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Orgs.) Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, V. I, Madrid, Cristiandad, 1978, p. 43. 12 Uma das premissas elencadas por Glass é a de que parte do livro do Dt “teria emergido no norte de Israel durante o oitavo século a.C., onde os privilégios econômicos serviram como pano de fundo para o desenvolvimento de parte do livro”. Estamos diante de uma agressiva transformação das relações de trabalhos no campo, responsável pelo aumento da riqueza nas mãos de pequenos grupos familiares, em detrimento da pauperização e desagregação familiar. Cf. GLASS, Z. G., Land, Slave Labor and Law: Engaging Ancient Israel’s Economy. In: JSOT, n. 91, 2000, p. 27-39. Argumento defendido por outros inúmeros estudiosos, conforme nota 17. 13 Cf. CARRIÈRE, J. M., Le Cadre ou se Forme la Décision Politique, op. cit., p. 532.

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experiência, independente de qual seja a corrente ou hermenêutica exegética que a

analise14.

2.1. O estrangeiro, o órfão e a viúva na categoria dos pobres

Nas análises das “leis”, são inevitáveis certas comparações. Por exemplo:

uma vez que os pobres estão sempre em oposição aos grupos ligados aos

proprietários de terras e de pastagens ou a aristocracia ligada aos templos

religiosos, pode-se levantar a questão procurando responder quais são as

características relevantes desses grupos sociais merecedores de certa

jurisprudência constituídos pelo רג “estrangeiro”, םתוי “orfão” e הנ מ ל א “viúva”.

Fala-se desses grupos sociais num sentido sempre restrito, definido e

inserido numa determinada situação de demanda, de pessoas que se vêem

envolvidas numa esfera de violação de seus direitos e, ao mesmo tempo, têm

consciência de que, sem a proteção legal, se encontram à mercê da própria sorte,

isto é, correm o risco de morte. Ao referir-se aos grupos socialmente

empobrecidos - constituídos por camponeses, trabalhadores em obras públicas e

famílias de estrangeiros - nota-se que tais grupos experimentam um rápido

processo de empobrecimento15.

Em outras palavras, vê-se sempre determinados grupos de homens e

mulheres que recorrem à prática da justiça na שער, “porta”, como único recurso

para garantir sua subsistência ou seus direitos. Somente as pessoas livres tinham o

direito e garantia à jurisprudência na שער “porta”. A ênfase dada ao termo ‘à

14 Ex 6, 6-7. Esta experiência é posteriormente referendada no livro do Dt como um verdadeiro paradigma histórico e teológico, soando como uma espécie de refrão no texto (15,15; 16,12; 24,18.22). 15 São vários os sinônimos utilizados na tradução do termo técnico ןיו ב א “pobre”. Por detrás da palavra ינ ע comumente empregada para definir uma pessoa portadora de deficiência física ou algum tipo de distúrbio psíquico (Dt 15,11; 24,12; 24,15), identificamos uma pessoa despossuída de qualquer tipo de bem material e, por isso, se vê obrigada a trabalhar para os outros. O ינ ע vive do seu dia após dia, e que socialmente é indefeso e sujeito à opressão. Está, na maioria das vezes, em sintonia com o conceito de ןיו ב א . Não é por menos que a expressão ןיו ב א י ו נ ע surge por 15 vezes no AT. Cf. Martin-Achard, R. In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico manual del Antigo Testamento, V. II, p. 439. Um outro termo, comumente usado para definir algum tipo de pessoa em desvantagem social é o לד “dal”. Trata-se de alguém que passa por necessidade material ou carente de um certo poder social (Pr 10,15. 21,13. 22,9; Am 2,7; Zc 3,12), em contraste com o rico, o grande, o opressor. Na categoria social dos יםנ יוב א , “pobres”, consideram-se outros grupos sociais. “Ao dar primazia ao termo ן יו ב א “pobre”, o próprio visionário opta pelo conceito que também abarca os demais: ‘fracos/magros’, ‘oprimidos’, ‘justos’, ‘escravos’, ‘lavradores’”. Cf. SCHWANTES, M., A Terra não pode Suportar suas Palavras, São Paulo, Paulinas, 2004, p. 89-95.

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Porta’ destaca a importância do lugar nas transações econômicas, nas publicações

dos oráculos proféticos e nas deliberações das sentenças sociais, definidas pelos

anciãos da cidade. Caberá ao rei administrar com proeza a justiça (1Sm 8,5; 2Sm

8,15; 2Sm 15,1-6). Os pobres, não raramente, buscam a proteção e suporte legal

de suas reivindicações recorrendo ao monarca16. Os grupos menos favorecidos

não tinham nenhuma restrição em apelar ao monarca para ver garantidos seus

direitos e assim meios básicos para sua existência.

2.1.1. O רג “estrangeiro”

A defesa do estrangeiro deve ter sua origem no país do Norte. O século

VIII pode servir de fonte para o fornecimento de inúmeros elementos históricos na

compreensão do surgimento dos grupos sociais desfavorecidos e, mais tarde,

merecedores da atenção das normas humanitárias17. Leis expressas no CA, em

defesa do רג , “estrangeiro”18, são retomadas pelos escribas do Deuteronômio,

16 Cf. LEVINSON, B. M. The Reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the Deuteronomistic History`s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, p. 519. 17 Após a queda do Reino do Norte houve um autêntico processo de migração rumo às cidades do sul, sobretudo à capital Jerusalém, após a queda ocorrida em 722. Este inchaço urbano, resultado das políticas econômicas e sociais no século VIII, iniciadas no governo de Jeroboão II (787-746) e, posteriormente, implementadas por seus filhos, encontra pleno consenso entre inúmeras análises. CRÜSEMANN, F., A Tora. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 360: “A política assíria deve ter contribuído para a dissolução das formas e dos costumes sociais tradicionais. O que contribuiu mais, talvez, tenham sido as multidões de refugiados, depois da queda do Reino do Norte”; NAKANOSE, S., Para entender o livro do Deuteronômio. Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, p. 180: “Cresce a classe urbana e rica às custas do empobrecimento de grande parte da população, sobretudo a do campo, maior vítima da injustiça e exploração”; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, p. 279: “Sabemos que a pregação de Miquéias teve um efeito direto nas reformas de Ezequias (Jr 26,16-19) e há muitos pontos de contatos entre as denúncias e o programa social do livro da lei”; KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 80: “Uma primeira tentativa de centralizar o culto na capital é atestada no tempo do rei Ezequias (725-696 a.C.). A política desse rei visava proteger e defender a população rural diante de uma esperada guerra do rei assírio Senaquerib (704-681 a.C.). O rei Ezequias forçou a população a um grande êxodo para cidades fortificadas por muro”. Sabe-se que após a queda da Samaria os limites da cidade de Jerusalém cresceram de modo desproporcional. A era de isolamento acabou. A cidade cresceu de 5 para 60 hectares. De uma população de 1000 para 15 mil habitantes. Os dados são resultados da resenha da obra de FINKELSTEIN, I. e SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed: Arqueology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York, The Free Press, 2001, disponíveis em <http://www.airtonjo.com/resenhas5a.htm>. Acesso em 10 de jun. 2009. 18 Não são poucas as grafias atribuídas à condição de estrangeiro: יםר גומ , תרוג , רג . O termo recebe várias interpretações nas diferentes culturas. Por meio da raízes grm e klbm são encontrados conceitos idênticos que acentuam a condição de um homem ou mulher que vive tendo amparo, ajuda daquele que lhe dá estadia, guarita, segurança. No mundo fenício trata-se de alguém que se encontra na condição de refugiado, hóspede de uma divindade. O termo é bem documentado em aramaico, identificado na raiz gwr sinalizando o conceito angustiado, temente. No AT,

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onde encontra uma forte argumentação nas tentativas de justificar o trato social

oferecido a esse grupo social. No código os cuidados são justificados pela mesma

condição em que passou Israel em terras egípcias: ~yIr"c.mi #r<a,B. ~t,yyIh/ ~yrIgE-yKi(

WNc,x'l.ti al{w> hn<At-al{ rgEw> “Não afligiras o estrangeiro nem o oprimirás, pois vós

mesmo fostes estrangeiros no país do Egito” (Ex 22,20). Tal adendo não é visto

como a única motivação para justificar tais cuidados no CD, onde encontram-se

diferentes matizes.

Não se trata apenas de amparar o estrangeiro somente por ter vivenciado a

mesma condição de estrangeiro no Egito, mas outras diferentes realidades são

apresentadas na defesa do estrangeiro próprias do livro Deuteronômio. Este grupo

social, embora reconhecido como sendo parte dos grupos desfavorecidos, vivendo

no interior da comunidade israelita e merecedor de algum tipo de proteção, sofria

um processo de opressão, tirania ou marginalização, segundo acusam as leis

deuteronômicas.

O estrangeiro faz parte dos grupos socialmente fracos e tradicionalmente

sem bens – terra, animais, herança – e, embora sendo homem livre, está à mercê

da colaboração da comunidade de Israel19. Trata-se de alguém desprovido de

qualquer sistema jurídico que possa defendê-lo, facilitando, assim, a exploração

de seu trabalho e contribuindo para uma situação de extrema pobreza.

Para de Vaux, formavam o grupo dos יםר ג “estrangeiros”, pessoas oriundas

de outras comunidades ou países e que, após um certo período de tempo,

passaram a viver e a desfrutar da proteção a eles oferecida20. De Vaux insiste no

ponto de partida está em perceber a fase nômade, isto é, o período de רג

vivenciado pelo patriarca Abraão em Hebron: ~k,_M'[i ykinOa' bv'Atw>-rGE “estrangeiro e

residente no meio de vós, eu sou” (Gn 23,4). Moisés, nos dias vividos em Madiã:

ר ג מוש ת ־א א ר ק י ן ו ד ב ל ת ו ר כ ץ נ ר א י ב ית י ר ה ר ג מ י אם כ ש הי , “Ela deu à luz um filho, ele enfatizando o conceito corrente no Dt, como alguém sem pátria, não pertencente à comunidade. Fala-se que na época da reforma empreendida por Josias (622 a.C) foi um grupo social que recebeu destaque nas normas sociais. Um grupo que está em contrastes com aqueles que possuem direitos adquiridos. Cf. Kellerman, D., In: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento,V. I., pp. 1000-1012. Muitas vezes é visto como alguém ou grupo social sem patria e em circunstância social que põem em risco sua integridade física. Cf. Martin-Achard, R., in: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, V. I, p. 585. 19 O termo gēr refere-se ao estrangeiro, que entre as tribos árabes buscava refúgio e proteção em uma tribo distinta da sua. O estrangeiro instalado em Israel goza de razoável estabilidade, embora sem direitos garantidos. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 117. 20 Cf. Ibidem, pp. 117-119.

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chamou de Gersam, pois disse: `Sou um imigrante em terra estrangeira`” (Ex

2,22). Os israelitas viveram longos anos no país do Egito como יםר ג

“estrangeiros” (Ex 22,20; 23,9; Deuteronômio 10,19; 23,8). Após a posse das

terras de Canaã, os antigos habitantes passaram a ser vistos como estrangeiros (Jz

19,16). Por vezes, o termo רג equivale ao בש ות , “hóspede”, conforme a junção

encontrada em Lv 25,23: “A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me

pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes”.

Na interpretação de Bennett, o conceito de estrangeiro, em parte,

sintoniza-se com a argumentação apresentada por de Vaux. Porém, a base para a

compreensão não pode apenas considerar o fenômeno migratório ocorrido no

interior de uma sociedade para outra. Nem somente há de se procurar uma

definição do termo com base no grau de parentesco ou algum resquício de

consanguinidade.

A consanguinidade e o local de nascimento podem ser duas outras

características indicadas para definir o רג “estrangeiro”, no CD, segundo

argumenta Bennett. Embora não seja fácil encontrar uma única marca capaz de

definir o perfil do estrangeiro nas leis, Bennett sublinha outras experiências

vivenciadas por homens ou mulheres que passam a residir no interior das

comunidades israelitas. Somado à experiência da imigração, como destaca de

Vaux, está a ausência por completo de qualquer laço de parentesco ou vínculo

familiar, imposta ao recém-chegado em Israel. Ele não possui bens capazes que

lhe garantam a sua própria subsistência. Um outro fator tão importante como o de

laços de parentescos, é a diferença cultural-religiosa sentida pelo homem ou

mulher que venha residir nos fronteiras de Israel. Queira ou não, o homem ou

mulher que viesse a residir no interior das comunidades de Israel, se deparou com

práticas culturais e religiosas completamente diversas das vivenciadas em seu

país de origem. Defender a idéia de que o termo estrangeiro utilizado no livro do

Deuteronômio refere-se a um sujeito, seja ele homem ou mulher, que tenha saído

do meio de uma determinada sociedade para se estabelecer em terra de Israel,

pode, sim, ajudar em partes na compreensão do estrangeiro no CD21.

É possível compreender o estrangeiro como alguém que migrou de um

território para alguma área israelita, mas que levou consigo hábitos culturais e

21 Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 45.

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práticas religiosas que o distinguem quando em contato com grupos atrelados à

tradição judaica.

Bennett recorre a dois textos do Deuteronômio. O primeiro afirma22:

“Não podereis comer de nenhum animal que tenha morrido por si. Tu o darás ao forasteiro que vive em tua cidade para que ele o coma, ou vendê-lo-ás a um estrangeiro. Porque tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus. Não cozerás um cabrito no leite de sua mãe” (Dt 14,21).

Nesta citação realça-se a presença de três significativos termos: רג

“estrangeiro”, רנכ , “forasteiro”,23 e o conceito diferenciador ^yh,l{a/ hw"hyl; hT'a;

vAdq' ~[; yKi “Porque tu és um povo consagrado para Iahweh teu Deus”. Nota-se

que, com base na égide de ser um “povo consagrado”, um “povo santo”, os

israelitas encontram uma justificativa diante de um gesto de comer carne de

animais mortos, prática usual levada adiante pelos estrangeiros e forasteiros. O

texto é elucidativo, justamente por facilitar e, até certo ponto realçar a idéia de que

o etnocentrismo é um fenômeno diferenciador entre os subgrupos sociais no CD, e

pode ser utilizado na definição de quem é estrangeiro, seja no interior do território

israelita ou fora dele.

Um segundo texto realça, não somente o aspecto étnico, bem como um

relativo grau de conivência dos “estrangeiros” na vida religiosa israelita: “Não

abomines o edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio, porque foste

um estrangeiro em sua terra” (Dt 23,8).

O versículo contrapõe duas realidades distintas vivenciadas pela

comunidade israelita: sua condição de estrangeiro no Egito e o tratamento

dispensado ao estrangeiro, quando de posse da terra. Na primeira ressalva,

notamos que, durante os anos vividos na qualidade de רג “estrangeiro”, Israel

preservou sua identidade em terras egípcias, não sendo obrigado a submeter-se ao

processo de assimilação, isto é, à perda de sua identidade. O mesmo tratamento,

agora, é dispensado ao רג , “estrangeiro” que passa a viver nos limites da

comunidade israelita.

Com base nestes dois textos, pode-se evidenciar que a diferença étnica foi

também um aspecto preponderante na definição, não somente dos conceito de ר ג ,

“estrangeiro”, como na aplicação das normas legais existentes nos textos do CD.

22 Cf. Ibidem, p.38-48. 23 As palavras referentes ao estrangeiro, em muitos dicionários, são apresentadas como sinônimos. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 436.

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O processo de assimilação ou não foi preponderante na migração ocorrida nas

sociedades do Antigo Oriente24. As diferenças culturais e religiosas somaram-se

ao fator da imigração, na definição do estrangeiro, nas comunidades bíblicas, quer

antes do final da monarquia - antes do exílio de 587 - e, de modo mais plausível,

na época pós-exílica, como testemunham as narrações proféticas e históricas. Há

de se destacar as reformas religiosas empreendidas por Esdras e Neemias que não

só redesenharam novos paradigmas sociais como estabeleceram o critério literário

da genealogia na tentativa de justificar, a quém de direito, sua pertença à

comunidade de Israel.

2.1.2. A pessoa do םתוי "órfão”.

O termo םתוי “órfãoʼʼ,ocorre 41 vezes no AT. Segundo Bennett, ele está

diluído, ao longo da BHS, e não facilita uma exata compreensão e definição do

conceito de orfandade, no interior das comunidades israelitas. Tem-se a impressão

de que o termo foi incluído no rol dos נ ע יםי “pobres”, no processo de elaboração

da literatura deuteronomista25.

No livro do Deuteronômio, o termo é apresentado 12 vezes, como sendo

um subgrupo social a quem se deve amparar; um grupo, entre tantos outros, a

quem se deve fazer vigorar seus direitos essenciais: ~Aty" jP;v.mi hf,[o “faz direito ao

órfão” (10,18; 24,17; 27,19). É citado como um grupo merecedor da partilha do

dizimo trienal: rf;[.m;-lK'-ta, ayciAT ~ynIv' vl{v' hceq.mi “Cada três anos separarás a

décima parte da colheita” (14,28; 26,12.13). Gozar da convivência social, nos

momentos das grandes festas, era um direito garantido aos órfãos: ^yh,l{a/ hw"hy>

ynEp.li T'x.m;f'w> “e te alegrarás diante do YHWH teu Deus” (16,11.14)26. Citado entre

os demais subgrupos, a quem é garantido o direito de respigar os frutos – trigo,

uva, azeitona – durante a ocasião das colheitas: ^d<f'b. ^r>yciq. rcoq.ti yKi “Quando

24 Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 48. 25 Cf. Ibidem, p. 53. 26 Sobre a transliteração do nome divino, expresso no uso do tetragrama, evitar-se-a sua pronunciação. O tetragrama será mantido somente quando se trata de uma citação presente na própria escritura. Opta-se pelos termos: Senhor, Adonai, Ele, o Todo Poderoso, Deus. Essa sensibilidade se faz necessária diante das conclusões do Sínodo sobre a Palavra. Conforme publicação da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. “Para não dizer “Yavhe” : o sínodo adota esta disposição. Cf. <http://www.zenit.org/article-19440?l>. Acesso em 21 de fev. de 2009.

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estiveres fazendo a colheita no teu campo” (24,19.20.21). Nota-se a preocupação

humanitária com esses grupos sociais, mas, com base nos textos do livro do

Deuteronômio, não encontramos elementos capazes de estabelecer um perfil de

quem seria, de fato, considerado órfão. O grupo social órfão é sempre citado como

alguém merecedor de atenção e que não deve ver seu direito violado, mas não se

vê nenhuma característica capaz de desenhar situações do que venha ser um órfão.

Por outro lado, os textos sapienciais oferecem esses elementos, possibilitando

uma definição, compreensão e manuseio do termo.

Em Lm 5,3 lemos: “Somos órfãos ) )יםמ תוי , já não temos pai ) בא( ; nossos

mães א ( ) תינומ são como viúva ) תנומ ל אכ ( ”.

O termo יםמ תוי “órfãos”, surge bem definido no texto. São apresentados

como aqueles – homens ou mulheres – que não têm mais a proteção ou segurança

do בא , “pai”, em paralelo com a condição de תנומ ל א “viúvas”. O uso da partícula

comparativa כ “como, semelhante”, nos dá uma clara definição do termo. O órfão

é visto como um jovem que não conta mais com a presença e proteção paterna.

“Pelo estudo da palavra yatom como aparece em quarenta e dois textos do Antigo Testamento, como por exemplo em: Ex 22,21; Dt 24, 19; Is 10,2; Jr 5,28; Zc 7,10; Lm 5,3; Jó 24,2.3; 29,12; Sl, 82,3, pode-se deduzir que órfão/órfã era uma pessoa solitária, sem pai ou mãe, portanto, sem protetor, desamparado, sem segurança. O yatom, bem como a viúva, é o lado frágil e vulnerável da sociedade”27.

Um segundo texto da literatura sapiencial, ao realçar a pessoa do órfão,

pode ser encontrado em Jó 24,928. Nele encontramos a seguinte definição: “ O

órfão, “ םתוי ” é arrancado do seio materno e a criança pobre, “ ינ ע ”, é penhorada”.

Na opinião de Grenzer e Ternay, o texto realça o grau máximo de violência

imposta aos grupos mais fracos no interior da sociedade israelita29. Trata-se de

uma condição social insuportável empreendida por grupos dominantes contra o

órfão, isto é, quanto à criança separada, à força, de sua mãe, roubada para servir

de escrava ou para ser vendida a terceiros.

A mesma definição é compreendida por Ternay que, ao comentar Jó 24,9,

realça a “dura condição da classe dos pobres”. Neste capítulo, vemos um

27 Cf. SBRANA, L. Y., “Ensaio sobre a palavra “Órfão”. In: RdCT, 22, Jan/Mar, 1998, pp.77-92. 28 Significativa a tradução e comentário ao versículo feita por Grenzer: “Roubam, do peito materno, o órfão, e penhoram a criancinha do oprimido”. “Deve-se notar que os dois delitos mencionados no v. 9 levam ao auge da descrição da violência. Trata-se, agora, do roubo e da penhora de seres humanos. Nos dois casos, o objetivo é, fundamentalmente, a exploração da força do trabalho e de pessoas dependentes”. Cf. GRENZER, M., Análise Poética da sociedade. Um estudo de Jó 24, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 34-48. 29 Cf. Ibidem, p. 47.

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verdadeiro “catálogo de violência” imposto aos grupos menos favorecidos. Uma

clara violação aos códigos legais de Israel30. Podemos considerar o órfão como

aquele sobre o qual pesa uma espécie de roteiro, um sistema de violência

arbitrária31. A perspectiva da vigência de um sistema opressor pode ser

comprovada em outra passagem de Jó: 29,12: “Porque eu livrava o pobre, “ ינ ע ”,

que pedia socorro, E o órfão, “ םתוי ”, que não tinha auxílio”.

Uma vez associado às demais pessoas protegidas pela jurisprudência,

como o estrangeiro, o levita e a viúva, o órfão é apresentado envolto numa

realidade de total abandono: 9ו זר לוא ע , “e não o socorre”. A força poética

imposta na narrativa realça o aparato da violência. Não são em vão os inúmeros

apelos encontrados na “Tora do Deuteronômio”32, em favor desses grupos. Em

outras palavras, as descrições da violação contra o órfão, bem feitas nos textos

sapienciais, recebem total destaque nas leis deuteronômicas, onde ocorre um

constante apelo em favor do gerenciamento da justiça, aos grupos socialmente

necessitados.

Duas outras distintas situações são encontradas no livro dos Salmos. O Sl

68,5 realça a falta da presença paterna na compreensão na definição de orfandade:

“Pai dos órfãos ) )יםמ תוי e justiceiro das viúvas )תנומ ל א( . Assim é Deus em sua

morada santa”. O texto mostra uma disponibilidade em cuidar das pessoas

desvalidas e revela dois aspectos para qualificar o grau de orfandade. Num

primeiro plano, é notória a ausência paterna, o que evidencia a orfandade. Mas,

podemos supor, também, a incapacidade de dar segurança às crianças. Nota-se um

total silêncio em torno da figura materna.

O Sl 109,8-9 ecoa contra o caluniador. Um, entre tantos outros

infortúnios, que pesam sobre ele é a possibilidade da orfandade:

“Que seus dias fiquem reduzidos e outro tome o seu encargo. Que seus filhos fiquem órfãos ) )יםמ תוי e sua mulher se torne viúva )הנ מ ל א(

30 TERNAY, de H., O livro de Jó. Da Provação à Conversão, um longo Processo. Rio de Janeiro, Vozes, 2001. pp. 164-165. 31 Cf. GRENZER, M., Análise Poética da sociedade: um estudo de Jó 24, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 73. 32 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá: Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 352.

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Verifica-se, mais uma vez, que a realidade utilizada para definir se alguém

é ou não órfão é a ausência paterna, sem nenhuma referência à presença ou

ausência materna, mostrando, deste modo, que nos textos da BHS a orfandade é

definida pela ausência da proteção e segurança paternas.

2.1.3. A pessoa da הנ מ ל א “viúva”

São semelhantes as definições do termo הנ מ ל א “viúva”33 oferecidas por de

Vaux, Leon Epstein, Pedro Kramer, Paula S. Hiebert e Hennie J. Marsman. Para

esse grupo de estudiosos, trata-se da mulher que passou a viver sem a proteção do

marido, após a sua morte, tenha filhos ou não34, e se vê diante de um desafio de

procurar a proteção familiar sob as condições patriarcais35. A perda do marido

colocava-a numa situação de debilidade. A viuvez impunha, sobre a mulher, no

Antigo Israel, um período de falta de proteção e segurança, quer em seu aspecto

físico, quer diante da possibilidade da perda de suas posses patrimoniais.

Trata-se de um subgrupo, comum também na sociedade egípcia e

mesopotâmica36. Nesses universos, segundo Epstein, as viúvas gozavam de um

status social mais elevado, quando comparado a Israel37. A viuvez de uma israelita

33 A tradução permanece um pouco incerta embora o termo seja corrente no Oriente Antigo. Segundo Hiebert encontramos no Acádico o termo almattu, no Ugarítico lmnt, no Fenício lmt, no Aramaico armaltā e no Árabe armalat. Cf. HIEBERT, P. S. Whence Shall Help Come to me?: The Biblical Widow. In: PEGGY, L. D., (ed.), Gender and Difference in Ancient Israel, p. 127. Na definição encontrada em Hoffner o termo é demasiadamente corrente em todos os centros culturais da antiguidade. Em documentos hititas, faraônicos, mesopotâmicos e, no universo bíblico não poderia ser diferente, a pessoa ou grupo de viúvas aparece revestida de plenos direitos que lhe favorecem subsistência e garantia de vida. Cf. Hoffner, in: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 305-309. 34 2Sm 14,5-7: יםנ י ב נ ש 1ת ח פ ש ל ו. ייש ת א מ י י ו נ ה אנ מ ל ה אש א “Eu sou uma mulher viúva. Meu marido morreu. E para tua serva há dois filhos”. 35 Com base em inúmeras citações, pode-se estabelecer uma definição ao termo אלמנה “viúva”. Os autores identificam a viúva como sendo uma mulher que passou a viver sem qualquer tutela ou aparato social familiar, antes garantida em companhia do marido (Nm 30,10; Rt 1,9; Gn 38,11; 2Sm 14,2; Jd 8,4). Cf. DE VAUX, Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 75-76; EPSZTEIN, L., A justiça social no Antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, São Paulo, Paulinas, 1990, p. 137-138; MARSMAN, H. J., Women in Ugarit and Israel. Their Social and Religious Position in the Context of the Ancient near East, Boston, Brill, 2003, p. 291-320; KRAMER, P., Origem e legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos. São Paulo, Paulinas, 2006, p.174-175. 36 “Na Mesopotâmia, o status da mulher casada torna-se outro após a morte de seu marido”. EPSZTEIN, L., op.cit, p. 291. 37 “Em Babilônia, ela tinha direito a determinada parte da herança do marido. A viúva ou a mulher repudiada podia até, em certos casos, beneficiar-se com parte da herança igual à do filho e reencontrar a plena disposição de seus bens dotais”. Cf. Ibidem, p. 139. Na concepção de Bouzon, vê-se com clareza que a lei hammurábica é clara em defender o sistema de propriedade ou bens da

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não lhe assegurava quase nenhum direito. Tal contraste é proveniente da própria

situação da mulher, compreendida como uma propriedade a mais do marido em

Israel38. Ela é contada entre os pertences do marido e classificada, em meio aos

animais, escravos, arados e escravas na condição de propriedade do varão (Ex

20,17). Ao marido, cabe o direito amplo de repudiá-la. Direito, este, em hipótese

alguma facultado às mulheres (Dt 24,1). A princípio, todo e qualquer tipo de רד נ

“voto” ou הע בוש “juramento”, que venha a implicar na vida ou comportamento da

mulher Hv'yai vp,n" tNO[;l. rS"ai “compromisso que venha subjugar a pessoa da

mulher”, deverá receber aprovação ou negação da parte do marido (Nm 30,14).

Por outro lado, verifica-se em certo grupo de textos, relativo prestígio dado à

mulher quando esta exerce funções no interior da casa, no cuidado com os

animais, na educação dos filhos, na administração das coisas existentes na esfera

familiar (Dt 21, 18-21; Pr 19, 26. 31,10-31; Ecl 3,1-6)39.

Bennett analisa as características marcantes da viuvez, dividindo as

referências bíblicas em quatro conjuntos de textos40.

2.1.3.1. Textos legais

O conjunto das Normas Legais (Ex 20,22-24) realça a injustiça como uma

prática inaceitável. Por ser uma sociedade agrária em seu ambiente originário, as

leis do CA parecem querer interferir nos comportamentos sociais e,

consequentemente, econômicos no período monárquico de Israel. A viúva, uma mulher em caso de viuvez ou separação do marido. “A lei protegia a esposa, que tivesse gerado filhos no casamento, da arbitrariedade de seu marido. Se este quisesse divorciar-se dela, perdia, como determinava o § 59, o direito a todos os seus bens”. BOUZON, E., Uma coleção de direito babilônico pré-hammurabiano. Leis do reino de Ešnunna, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 45. 38 Cf. DE VAUX, Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 75. 39 Diante de um vasto arcabouço jurídico, como percebemos nos textos referentes às viúvas na BHS, corre-se um perigo: deduzir a figura da mulher como um ser inferior ao marido. Nossa referência leva em conta uma sociedade patriarcal na qual os papéis da mulher casada acontecem e estão legalmente definidos. É por demais ingênuo pensar a posição da mulher casada numa situação de vassalagem frente ao homem da casa. “As leis deuteronomistas definem o status legal de uma mulher – seus direitos sociais e posição econômica – sempre nos termos de sua relação com o homem. Queira ou não, ela está casada e nesta condição encontra ela direitos, obrigações e penas capitais”. PRESSLER, C., The View of Women found in the Deuteronomic Family Laws, New York, Walter de Gruyter, 1993, p. 82. 40Bennett divide em quatro grupos os textos da BHS, ao analisar o estado da viuvez: a) Textos legais: Ex 22,22. 22,24; Lv 22,13 e Nm 30,10; b) Textos narrativos: Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7. 20,3; Rt 2,1-23; 1Rs 7,13-14. 11,26; 17,8-16; c) Literatura profética: Jr 7,6. 22,3; Ez 22,7. 44,22; Zc 7,10; d) Literatura sapiencial e lamentações: Jó 24,21. 29,13; Sl 68,5. 78,64; 94,6. 109, 9; 146,9. Pr 15,25; Lm 5,3. Cf. BENNETT. H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, pp. 31-37.

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vez já se encontrando numa condição desfavorável, não poderia sofrer, agora,

ultraje imposto por nenhum ןדוא “senhor”41. Ela não pode sofrer nenhum tipo de

violência física ou qualquer ação na esfera do comércio que venha a prejudicá-la

na manutenção e usufruto patrimonial. Por se tratar de uma norma de santidade, a

violação da prática do direito feita contra o órfão e a viúva passa a ser punida por

vontade de Deus. Essa atitude, executada pelo ןדו א , “senhor”, deveria receber uma

sanção imposta pelos homens responsáveis em gerenciar a justiça na porta da

cidade42. O CA realça que diante do estado de viuvez deve ocorrer explícitos

gestos de solidariedade à mulher. Seus direitos naturais devem ser garantidos. São

os meios disponíveis para sua sobrevivência futura.

No Código de Santidade (CS)43 refere-se duas vezes à categoria da viúva

(Lv 21,14; 22,13), contra uma vez (Nm 30,9-10) no Código Sacerdotal (CSac).

Estudos recentes apontam ser o Código de Santidade parte integrante do

Documento Sacerdotal. É necessário fazer uma distinção: No CSac são indicados

dois tipos de homens deparando-se diante da realidade matrimonial. No tocante ao

ה לדוג הן ה כ , "sumo sacerdote", (Lv 21,10) paira o interdito, sobre qualquer

hipótese, de receber uma viúva ou prostituta como esposa: xQ"yI h'yl,Wtb.bi hV'îai aWhw>

“Ele tomará uma mulher na sua virgindade” (Lv 21,13). Não cabe ao sumo

sacerdote a união matrimonial com uma viúva ou uma mulher que tenha praticado

“infame prostituição” (Lv 21,14). Tais alertas são justificáveis no tocante à

manutenção do regime de pureza consanguínea. Com respeito à ב ןה ת כ “filha do

sacerdote”, essa poderia voltar para a casa paterna, uma vez viúva. O pai, nesse

caso, teria a obrigação de recebê-la de volta em total clima de comunhão,

cumprindo, desta maneira, um princípio social e jurídico estabelecido em Israel

(Lv 22,13). Entretanto, encontramos uma ressalva no texto ela não“ , הע אין ל ר ז ו

tem filhos”. A presença dos filhos impõe relativa preocupação econômica.

Compete à família prover alimentação e segurança. Neste caso, a mulher

pertenceria, em caráter definitivo, à família de seu marido, passando a gozar do

41 A palavra faz referência à pessoa do patriarca familiar, ao marido, ao homem casado (Gn 19, 2; Jz 19,26; Rt 2,13). 42 São os anciãos os responsáveis de julgar e estabelecer tais sanções divinas. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 273. 43 Cf. Ibidem, p. 383.

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direito imprescindível de mãe44. A mulher, cujo marido havia morrido, ao voltar

para a casa dos pais, qualifica-se na sua condição de הנ מ ל א “viúva”.

A referência ao ato de fazer um רד נ “voto”, por uma viúva, encontra total

aceitação e validade no interior da sociedade (Nm 30,10). Embora considerando-

se a submissão institucionalizada da mulher frente ao homem, o voto feito pela

mulher viúva ou repudiada é válido somente para ela. O texto pode bem

demonstrar a possibilidade de uma mulher viúva preservar seus bens, uma vez que

esta se encontre desprovida da tutela de um varão. O reconhecimento de seus

votos implica na legitimação de sua segurança. Daí, serem válidos e reconhecidos

por todos.

2.1.3.2. Textos narrativos

O conjunto formado pelos textos narrativos que mencionam a categoria da

viúva (Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7; 2Sm 20,3; Rt 2,1-23; 1Rs 7,13-14. 11,26; 17,8-

16) oferece alguns exemplos de comportamentos ou interesses do cotidiano.

Podemos notar duas maneiras de referir-se à viúva: 1) A lei do Levirato45 oferece

um suporte legal aos episódios presentes em Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7 e Rt 2,1-23.

É emblemática a saga envolvendo Tamar e seu sogro Jacó. O que numa primeira

leitura pode parecer uma condenação do ato idealizado pela jovem esposa, pode

bem ser compreendido como uma demonstração da alta aceitação, da praticidade e

da eficiência da lei na defesa dos direitos das viúvas. Sua estratégia de coabitar

com seu sogro registra um gesto feito em sua defesa e referendado legalmente no

Antigo Israel. Na narrativa, nenhuma censura lhe é imposta, pois está em jogo a

manutenção da hereditariedade de seu primeiro marido (Gn 38,7) e foi este, e não

outro, o desejo pelo qual uniu-se aos seus cunhados (Gn 38,6-9); 2) O regresso

para a casa de seu pai é um principio legal. Ninguém pode ser exposto às

situações de inseguranças. A viúva, legalmente, encontra algum tipo de proteção

ao permanecer na casa do sogro ou na casa paterna. A narrativa mostra os direitos

de Tamar que se encontra numa situação de total desamparo familiar: sem marido

e sem filhos. 44 Cf. BENNETT. H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 32. O direito de mãe é assegurado em Israel: Lv 21,4; Ex 20,12. 21,15.17. 45 Cf. Dt 25,5-10.

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Outra característica da viúva pode ser definida considerando os textos de

2Sm 14,5-7 e pelo episódio envolvendo Rute e Booz (Rt 2, G 1-3. 4). Na primeira

narrativa, a própria mulher se declara, ao rei Davi46, uma viúva: “de verdade eu

sou uma mulher viúva e meu marido morreu” (2Sm 14,5-7). Entre os dois filhos

ocorreu um fratricídio, e caso venha a perder o outro filho, agora acusado pelo

crime do irmão, a mãe passaria privações. Ela não tem marido e agora se encontra

sem nenhum sistema de segurança e bem-estar. Ao rei compete o gerenciamento

da justiça.

Uma clara compreensão dos problemas enfrentados pelas mulheres viúvas,

na sociedade israelita, é encontrada na história de Noemi e suas duas noras, Rute

e Orfa47. Os três homens, os ex-maridos, estão mortos e as três mulheres, agora

viúvas, se encontram em estado de miséria correndo o risco de morrer de fome e

sede (Rt 2,1-23). Com base na lei do Levirato48, Noemi insiste no retorno das

noras às casas de seus pais. Uma delas, após rejeitar o pedido, consente voltar à

casa de seu ancestral, mas Rute insiste em ficar. É-lhe dado o direito de respigar o

campo durante a colheita (Lv 19, 9-10; 23,22). Nas tarefas no campo, Rute

encontra Booz, parente de seu sogro, que tomando por base os costumes legais, a

toma por esposa. Após retirá-la das terras de Elimelec, Booz a recebe em sua

propriedade garantindo-lhes comida, proteção e uma descendência: “E disse Booz

aos anciãos e a todo o povo: Sois testemunhas que eu comprei tudo o que

pertencia a Elimelec, a Maalon e a Quelion das mãos de Noemi” (Rt 4,9).

De certo modo um aspecto depreciativo no uso do termo viúva pode ser

encontrado nos demais textos narrativos (2Sm 20,3; 1Rs 7,13-14; 11,26; 17, 8-

16). As concubinas de Davi passaram a viver na condição de viúvas: תוית ח נומ ל א ,

“viveram como viúvas” (2Sm 20,3), recebendo, ao longo dos anos vividos na

corte, por parte do rei, comida e segurança. Nos outros três textos do livro dos

Reis a referência ao termo הנ מ ל א “viúva” é revestida de um profundo senso de

46Ao monarca compete gerenciar a prática de todo o sistema necessário para colocar em prática suas atribuições de administrador do reinado e gerenciador da prática do direto (Dt 17,14-20; Sb 1,1; Sl 34,7.18; 35, 1-3). Ao rei era necessário um aparato burocrático que fosse capaz de proporcionar condições para administrar as inúmeras demandas (1Rs 7,7). 47 O termo técnico הנ מ ל א “viúva” não é encontrado na história de Rute. Vemos o texto da BHS apresentar um outro termo correlato: תמ ת ה ש א “mulher daquele que morreu” (Rt 4,5). 48 O nome é proveniente da palavra latina levir – do latim – cunhado. Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 174.

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negatividade49, na medida em que são desqualificados por conviverem com a

realidade da viuvez. O sustento dado ao profeta Elias provém de um gesto de uma

viúva em condições de miserabilidade (1Rs 17,12)50.

2.1.3.3. Textos proféticos

Das narrativas proféticas, percebem-se inúmeras referências ao termo

הנ מ ל א “viúva”, mas sem fornecer elementos que facilitem identificar aspectos

relevantes na condição de viuvez, conforme encontra-se nos textos históricos e

narrativos. A referência aos grupos desfavorecidos é uma constante nos relatos de

Is (1,23; 10,2; 47,8), Jr (7,6; 22,3 e 49,11), Ez (22,7; 44,22), Zc 7,10 e Ml 3,5.

Os oráculos proféticos formam um grupo de narrativas com uma marca

essencialmente reivindicatória. Com base nesse termo técnico os grupos

proféticos edificaram um verdadeiro acervo literário na defesa inconteste desse

determinado grupo social. Nota-se uma forte sensibilidade no gesto de denunciar a

falta de normas éticas, capazes de garantir a justiça e o direito a esses grupos,

tidos como sem importância em suas respectivas épocas. Os oráculos proféticos

favorecem a percepção do alto grau de opressão e flagelo imposto a esses grupos

desamparados e do dilema vivenciado pela mulher casada que venha a ser

reconhecida como uma viúva.

2.1.3.4. Textos sapienciais e poéticos

Distante do senso reivindicativo impregnado nos textos proféticos está o

conjunto formado pelas narrativas de cunho sapiencial (Jó 24,9; 29,12-13; Sl 68,6;

78,64; 94,6; 109,9; 146,9; Pr 15,25), onde predomina um discurso que realça a

preferência divina na defesa dos grupos que sofrem violência, entre os quais a

viúva: Avd>q' !A[ïm.Bi ~yhiªl{a/ tAnm'l.a; !Y:d:w> ~ymiAty> ybia] “Pai dos pobres e juiz das

49 O artesão Hiram, embora com sua habilidade na metalurgia, é reconhecido como filho de uma viúva da tribo de Neftali (1Rs 7,13). Um dos oponentes a Davi foi Jeroboão, filho de uma viúva de nome Sarva (1Rs 11,26). 50 A descrição oferecida pela narrativa é própria para ajudar a compreender os inúmeros apelos legais feitos com a finalidade de amparar este subgrupo. “As viúvas viveram sob uma especial proteção dos deuses”. MARSMAN, H. J., Women in Ugarit and Israel. Their Social and Religious Position in the Context of the Ancient near East, Boston, Brill, 2003, p. 295.

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viúvas, assim é Deus na sua santa morada” (Sl 68,6). Defendê-la, oferecer-lhe

proteção e garantir seus direitos são ações realçando a exclusividade divina.

Hiebert, seguindo o termo הנ מ ל א , indica cinco referências no livro dos

Salmos, em torno dos gêneros literários de lamentações, de hinos e de cantos de

agradecimentos provenientes do período davídico ao pós-exílio: Sl 94,4-7; 146,9;

68,6; 78,63-64 e 109,951.

A violação do direito merece realce nos Salmos 94,4-7 e 146,9, uma vez

que ambos citam a trilogia social formada pelo estrangeiro, órfão e viúva. No Sl

94,6 o realce pode ser percebido no emprego dos verbos gr;h' “matar” e xc;r'

“assassinar”. Práticas atribuídas aos ~yai(GE “soberbos” (v.2) e aos ~y[iv'r> “ímpios”

(v.3), contra os grupos merecedores dos benefícios divinos. Os gestos de

YHWH, a saber, um Deus que age com justiça, tornam-se o eixo interpretativo na

identificação do Deus de Israel, oferecendo conteúdo aos atributos divinos nos

louvores expressos no Sl 146. Nota-se a ampliação dos grupos beneficiados. A

proteção recai, agora, sob outros grupos sociais diante do perigo da dizimação.

Aos que estão oprimidos, jP'v.mi hf,[o “faz direito”; aos famintos, ~x,l, !tEnO “dá

pão”; aos prisioneiros, ryTim; “faz soltar”; os cegos, x;qEPo “abre a vista” e aos

curvados, @qEzO “endireita” (vv.7-8). O Sl 68,6, como um hino de exaltação à

vitória, destaca a providência divina nutrindo de pão a viúva e o órfão. O contrário

é verificado nas inúmeras fases históricas de Israel apresentadas numa narrativa,

por meio de uma meditação, presentes no Sl 78,64. O sofrimento atinge as viúvas

que não encontram tempo para lamentações. Já num estilo de súplica individual,

no Sl 109,9, a viúva é apresentada numa situação possível de uma mulher que

venha a perder a companhia do seu senhor, passando a receber o título de viúva.

Diferenças de estilos e conteúdos à parte, constata-se uma preocupação com esse

grupo social formado pelas viúvas.

Assim, também, Jó se refere à realidade de sofrimento envolvendo a

pessoa da mulher viúva: אה 9נ מ ל או יבט י י “e à viúva não fez o bem” (Jó 24,21). Em

outro texto, ele refere-se à viúva como um dos meios para agradar a Deus e gozar

de suas bênçãos: ןנ ר ה אנ מ ל לב או “e o coração da viúva enchia de alegria” (Jó

51 Embora não considerando o trabalho em torno da datação e classificação dos Salmos é notório o fato de recorrer ao termo הנ מ ל א . Cf. HIEBERT, P. S., Whence shall Help come to Me?: the biblical widow. In: DAY, P. L.; (Org.), Gender and Difference in Ancient Israel. Minneapolis, Augsburg Fortress, 1989, pp. 126-127.

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29,13). Essa mesma proteção realizada por Jó passa a ser efetuada pelo próprio

Deus como meio de manifestar sua presença. Vale destacar a total ausência da

figura do homem – do patriarca – em relação à mulher viúva. Na literatura

sapiencial o subgrupo da mulher viúva é apresentado como merecedor do socorro

do Senhor. A autoridade de Deus toca diretamente este grupo social,

determinando o ponto de partida para se efetuar um sistema onde triunfe a justiça.

A condição de superar a violência pela prática da justiça ao estrangeiro, órfão e

viúva soa como um princípio básico para provar a eficácia e veracidade da Lei.

2.2. Conclusão

Pelos textos selecionados concluem-se aspectos consensuais referentes aos

grupos sociais marginalizados. Tais grupos recebem uma relativa atenção, não

somente nos textos do Deuteronômio, como em todo o conjunto das Escrituras.

Não é difícil afirmar que as situações de opressão e violência estão sempre em

evidência, seja qual for a fase histórica, quando são citados nos textos bíblicos.

Percebemos um apelo permanente e renovado na defesa dos grupos sociais fracos

e indefesos. O conjunto de um forte arcabouço jurídico persistiu nas mais

diferentes épocas históricas da comunidade religiosa de Israel. Os apelos estão

presentes em todos os Códigos Legais da BH52.

Os legisladores deuteronômicos realçam uma total dependência dos grupos

desfavorecidos (15,4). As leis estão sempre alertando, em tom apodítico, a defesa

de setores pobres da comunidade israelita (15,18). As normas apelam para a

sensibilidade dos proprietários de terras em facultar-lhes o direito de respigar na

época da colheita. O direito não pode ser-lhes negado. O monarca deve considerá-

los em suas aflições, e as leis litúrgicas têm como eixo Deus, o Doador da terra

Prometida, em torno do qual forma-se todo o arcabouço jurídico (19,14)53.

Pelos textos do Deuteronômio, percebe-se a existência de um sistema

tradicional voltado para garantir os aspectos físicos e sociais do estrangeiro, órfão

52 Código da Aliança (CA), Código Deuteronômico (CD) e no Documento Sacerdotal (DSac). 53 O caráter das leis em defesa dos grupos pobres apresenta uma conotação altamente humanitária. Pode-se verificar uma perspectiva de edificar um projeto de fraternidade/irmandade visando um total equilíbrio social. Arcabouço jurídico surgido durante a experiência histórica do exílio. Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 35.

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e viúva. Essa trilogia social se vê inserida num determinado momento histórico no

qual a falta de proteção e bem-estar são essenciais na definição dos grupos.

Diante dessas considerações destaca-se: a) o רג , “estrangeiro”, ele ou ela,

seria uma pessoa que teria imigrado de um outro local e se estabelecido junto à

outra comunidade israelita. Τrata-se de uma pessoa obrigada a passar por um

processo de inculturação, no interior de um determinado grupo social, onde

passaria a fixar residência; b) o םתוי , “órfão”, no conjunto do Deuteronômio,

refere-se a uma menina ou menino, que venha a perder a proteção paterna,

passando a vivenciar um período de total incerteza; c) a הנ מ ל א , “viúva” refere-se a

uma mulher que tenha passado um período de sua vida sob a proteção de um

homem, legitimado pelo vínculo matrimonial, e que se encontra, após a morte do

homem, indefesa e sem proteção.

A falta de proteção, isto é, segurança, expunha esses grupos a uma

situação de exploração por parte de outros grupos sociais, como bem realçam

inúmeros oráculos proféticos, ainda mais no contexto de uma sociedade

agropastoril, movida por uma mão-de-obra pautada pelo sistema escravagista.

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PARTE I COMENTÁRIO DOS TEXTOS ONDE É CITADA A TRILOGIA SOCIAL – “ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA” NO DEUTERONÔMIO

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3 Apresentação do conjunto das perícopes do Dt relacionadas com a trilogia social

A trilogia social – estrangeiro, órfão e viúva – por seis vezes encontrada no

livro do Deuteronômio deixa transparecer um forte desejo de defender grupos

sociais ameaçados. Quem se debruçar sobre essas perícopes, no desejo de

conhecer a sociedade, perceberá que se trata de uma produção em etapas

históricas. Sabe-se que são normas jurídicas que surgiram num determinado

contexto social e, por este motivo, propõem a superação de uma violência ou

sonegação de direitos a esses grupos.

Neste capítulo serão analisados os respectivos textos. Nota-se um conjunto

formado por seis perícopes e serão analisadas, seguindo os respectivos processos:

1) delimitação do texto; 2) crítica textual das variantes; 3) composição e estrutura

do texto; 4) análise semântica; 5) gênero literário; 6) estudo da tradição e redação;

7) significado do texto. A ordem poderá sofrer ligeiras modificações

considerando-se o conteúdo e a estrutura de uma determinada perícope.

3.1. A historicidade divina reside na realização da justiça: Dt 10,12-22

Dt 10,12-22 não se encontra no corpus, assim conhecido, como a parte

mais antiga do Dt, formado pelos capítulos 12-261,1intitulado de Código Deuteronômico. O capítulo 10 seria um acréscimo ao livro

ocorrido ao longo dos anos que sucederam a morte do rei Josias (609 a.C). A

1 Não são poucos os estudos que apresentam as inúmeras edições empreendidas ao livro do Dt. Os estudos, realçando as introduções existentes, as inúmeras repetições, as sucessivas interrupções que chegam a mudar até mesmo os sujeitos ao longo das frases, bem como a troca de orador principal evidenciam as inúmeras etapas literárias impostas ao livro do Dt. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, Paris, Beauchesne, 1969, pp. 16-28; VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paidéia Editrice, 1979, pp. 30-39; CHOURAQUI, A., A Bíblia – Palavras (Deuteronômio, São Paulo, Imago, 1997, pp. 19-24; CRAIGIE, P. C, The Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eeardmans Publishing, 1976, pp. 30-45; CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1-11, Texas: Word Books, 1991, (WBC) pp. 12-25; BLENKINSOPP, J., Deuteronômio, In: NCBSJ, São Paulo, Editora Academia Cristã e Paulus, 2007, pp. 223-225; NELSON, R. D, Deuteronomy – A Commentary, London, Westminster John Knox, 2004, pp. 1-13. Sugestivo o título “A invenção do Deuteronômio”, dado por Carrière ao propor uma gênese e estrutura ao conjunto da obra

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reforma de cunho deuteromista, desenvolvida entre os anos 630-609, teve amplo

apoio de toda a sociedade de Judá, e demais setores que se uniram ao redor desse

evento de autêntica reorganização nacional2. Neste período, o livro teria recebido

os capítulos referentes ao Decálogo (Dt 5), e mais tarde, outros dois grupos de

textos: os relatos oriundos da chegada na terra (Dt 1-3), e as tradições vinda do

Sinai (Dt 9-10). Nesta época, o Deuteronômio, como é hoje conhecido, não

passava de um conjunto de Leis3. Buis4, baseando-se nas inúmeras fases

redacionais, verifica que em 10,12 começa uma “certa conclusão à primeira parte

do livro”, predominando estilos de exaltações plenamente independentes uma das

outras. Nos estudos de Blenkinsopp, esses acréscimos teriam ocorrido num

“período final ao reino de Judá” como resultado de mais um estágio redacional

imposto ao livro. Neste período teriam sido adicionados os capítulos “5-11 e 28

como uma estruturação para as leis”5.

3.1.1. Dt 10,12-22: tradução e aspectos filológicos

E agora Israel, o que YHWH teu Deus,

tem perguntado a ti?

12a ועתה ישראל מה יהוה א9הי1 שאל

מעמ2

Se não temer a YHWH, teu Deus 12b 1כי אם־ליראה את־יהוה א9הי

Andar em todos os seus caminhos, 12c ללכת בכל־דרכיו

e amá-lo 12d ולאהבה אתו

E servir a YHWH, teu Deus com todo o

teu coração e com toda tua alma.

12e 1ולעבד את־יהוה א9הי1 בכל־לבב

ובכל נפש1׃

Observar os mandamentos de YHWH e

os seus preceitos

13a ת־מצות יהוה ואת־חקתיולשמר א

que eu te ordeno hoje, para o teu bem. 13b 1 היום לטוב ל2׃אשר אנכי מצו

deuteronômica. Na sua opinião, que não difere de outros estudos, um processo redacional, ocorrido entre o reinado de Josias (640-609), passando pela destruição do primeiro templo e o exílio, findando no período persa (540 aC), seria o período histórico no qual teria ocorrido a redação do Dt. Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio: Escolher a vida. São Paulo, Loyola, 2005, pp. 13-34. 2 Os dados cronológicos são apresentados seguindo as informações de Lamadrid, em todo o trabalho. Cf. GONZÁLEZ LAMADRID, A., As tradições históricas de Israel: Introdução à história do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 219-225. 3 Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio-Escolher a Vida. São Paulo, Loyola, 2005, pp. 31-35. 4 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome. Paris, Beauchesne, 1969, p. 177. 5 Cf. BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, p. 224.

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Note bem, a YHWH, teu Deus

pertencem os céus e os céus dos céus, a

terra e tudo que nela existe.

14a מים מים ושמי הש הן ליהוה א9הי1 הש

הארץ וכל־אשר־בה׃

Somente por teus pais se dispôs YHWH a

amá-los.

15a רק באבתי1 חשק יהוה לאהבה אותם

Escolheu-os como descendência, depois

deles, a vós mesmos, dentre todos os

povos, como acontece neste dia de hoje.

15b ויבחר בזרעם אחריהם בכם

ום הזה׃מכל־העמים כי

Circuncideis os prepúcios dos vossos

corações,

16a ומלתם את ערלת לבבכם

e vossas nucas não endureceis mais. 16b וערפכם 9א תקשו עוד׃

Pois YHWH, vosso Deus, ele é Deus dos

deuses e Senhor dos senhores: o Deus, o

Grande, o Forte e o terrível,

17a כי יהוה א9היכם הוא א9הי הא9הים

אואדני האדנים האל הגדל הגבר והנור

que não favorece pessoas 17b א פנים אשר 9א־יש

e não aceita presente. 17c ו9א יקח שחד׃

Faz direito ao órfão e à viúva, 18a ה משפט יתום ואלמנה עש

e ama o estrangeiro 18b ואהב גר

para dar a ele pão e roupa. 18c מלה׃ לתת לו לחם וש

Vós amareis o estrangeiro, 19a ואהבתם את־הגר

porque estrangeiros fostes na terra do

Egito.

19b כי־גרים הייתם בארץ מצרים׃

A YHWH, teu Deus temerás, 20a את־יהוה א9הי1 תירא אתו

a ele servirás, 20b תעבד ובו

a ele te apegarás 20c תדבק

e em seu nome jurarás. 20d בע׃ ובשמו תש

Ele é teu louvor 21a תהלת1 הוא

e ele é o teu Deus, 21b 1והוא א9הי

que te realizou estas grandes e terríveis

coisas,

21c ה את1 את־הגד9ת אשר־עש

ואת־הנוראת האלה

que viram teus olhos. 21d אשר ראו עיני1׃

Com setenta pessoas, teus pais desceram

ao Egito

22a בשבעים נפש ירדו אבתי1 מצרימה

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e agora dispôs-te YHWH, teu Deus,

como estrelas numerosas dos céus.

22c מ1 יהוה א9הי1 ככוכבי ועתה ש

מים לרב׃ הש

- v. 12: O verbo שאל “perguntar, inquerir”, no particípio qal, é significativo ao

proporcionar coesão ao longo de toda a frase, juntamente com outros verbos, onde

estão presentes as atitudes comportamentais exclusivas de arey", “temer”, (v. 12b),

%l;h', “andar”, (v. 12c), bh;a', “amar”, (v. 12d) e db;[', “servir”, (v. 12e) seu Deus

pessoal: o Senhor. O sentido inquisitorial imposto por Deus aproxima-se a Mq

6,8, considerando atitudes semelhantes ao acolher os mandamentos e praticar a

justiça.

Constata-se uma única ligeira alteração de grafia anotada no Códice

Vaticano (minúsculos), Siríaca e na Vulgata, quando comparada ao TM no

versículo 12. Trata-se do prefixo ול “e para” antecede o verbo לכתל , “andar em”,

(v. 12c), mas que não marca qualquer alteração de sentido expresso na frase.

- v. 13:

Ocorre uma pequena diferença em alguns manuscritos no tocante à grafia

do nome divino. Os manuscritos de Qumran, Pentateuco Samaritano e LXX

grafam a fórmula 9הי1א , “teu Deus”, diferenciando do TM que opta pelo uso do

tetragrama יהוה . Adota-se a grafia presente na versão do TM.

- v. 15:

Uma ligeira mudança se verifica no texto de Qumram ao grafar על כן

“sendo assim, posto isso” e não רק “somente, só” como é encontrado no TM. Tal

exclusividade exige uma explicação. Emprega-se um advérbio, de interpretação

inalterada “somente”, aqui utilizada, com a finalidade de realçar a escolha,

preferência divina.

- v. 17:

São três as diferenças textuais encontradas no v. 17. A primeira refere-se

ao trecho do v. 17a-a encontrado nos targumim de Ônquelos e Pseudo-Jônatas. Em

substituição à expressão ~ynIdoa]h' ynEdoa]w: são grafadas as expressões wmrj mlkjn. A

segunda, faz referência ao nome atribuído a Deus. Na diferença encontrada no

Pentateuco Samaritano e na tradução Siríaca, grafa-se o sufixo ון ao termo ואדני, “e

senhor”, como apresenta a versão do TM. A terceira diferença está na forma

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adjetivada de Deus: ג ה רב , “o forte”. Nos manuscritos de Qumran, Pentateuco

Samaritano, LXX, Siríaco e Vulgata registram-se a expressão והגיבר que recebe

diferentes traduções: “e o forte Um, o poderoso Um”.

-v. 20-21

No v. 20a uma ligeira diferença surge no uso da conjunção ו “e”,

prefixando a partícula do complemento do objeto (e temê-lo). A diferença está na

versão de Qumran como no Targum Pseudo-Jônatas, conforme 6,13, utilizando

como faz o TM. Outra pequena diferença é verificada nos אתו e nãoואתו

manuscritos de Qumran nos targumim Ônquelos e Pseudo-Jônatas, onde se utiliza

a forma תקרב e não תדבק, como no TM. O pronome demonstrativo האל ה ,

“coisas” (v.21d), é omitido nos textos de Qumran e Pentateuco Samaritano. Em

resumo, notam-se pequenas diferenças de grafia, mas que não propõem nenhuma

variante aos versículos 20 e 21.

- v. 22

O termo ^yt,Þboa] “teus pais” diferencia-se nos manuscritos de Qumran e no

Pentateuco Samaritano, onde se recorre ao termo תבוא , “pais”. Somada a essa falta

do pronome possessivo da terceira pessoa, ocorrem outras breves nuâncias

relacionadas ao uso das conjunções, artigos, sufixos e partículas possessivas de

ordem gráficas. Os verbos e seus respectivos casos não sofrem qualquer alteração.

O texto TM permanece inalterado.

3.1.2. Delimitação do texto, composição e estrutura

A delimitação estrutural da perícope6, é demarcada pelo uso da partícula

adverbial temporal הת ע , “agora mesmo, no presente, agora” precedida pela

partícula conjuntiva ו “e” (v. 12). O termo hT'[;w> “e agora” é utilizado para

introduzir a frase de abertura (v. 12) contendo uma seqüência de declarações

enaltecendo a fidelidade e o amor incondicional a YHWH, buscando colocar

Israel em diálogo sobre a maneira de proceder diante de seu Deus e, ao mesmo

6 Para um estudo sobre os inúmeros métodos exegéticos, seguem-se as referidas obras: SIMIAN-YOFRE, H., Metodologia do Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2000, p. 199; GUARDINI, R. et al. Exegese Cristã Hoje. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 326; BENOIT, P., Exegese et Théologie, Paris, Cerf, 1961, p. 416.

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tempo, marca a transição de uma fase redacional (9,7-10,11), para o conjunto da

perícope (10,12-22)7.

O verso, provavelmente adicional e utilizado para concluir a narrativa, é o

v. 22, que cita dois aspectos quantitativos, no desejo de exaltar o crescimento

numérico da comunidade israelita: ^yt,boa] Wdr>y" vp,n< ~y[ib.viB. “com setenta homens

desceram vossos pais”, (v. 22a) e brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “numeroso como estrelas dos

céus” (v. 22b). Esse verso realça o aspecto quantitativo presente em Gn 46,27, Ex

1,5 e Dt 1,10 e mais adiante, citado em Dt 26,5. Trata-se de um verso adicional,

utilizado na conclusão da narrativa, diante do desafio em ocupar a terra

prometida8.

Considerando o termo י1ה 9א “teu Deus”, na segunda pessoa do singular,

pode-se afirmar que o tema da identidade divina e seu relacionamento exclusivo

com Israel é desenvolvido em três blocos que compõem essa unidade literária: vv.

12-15, 16-19, 20-22: o primeiro, apresenta uma coesão e forte unidade

verificadas ao usar, por quatro vezes, o conceito י1ה 9א “teu Deus”, (v. 12 e 14),

além do uso dos pronomes possessivos sempre na segunda pessoa do singular.

“com todo o teu coração” e “com toda a tua alma” (v. 12); “te ordeno” e “para teu

bem” (v.13); “com teus pais” (v. 15); no segundo bloco (v. 16-19), a diferença

verifica-se na mudança abrupta inserida na redação acentua-se não mais a forma

singular, mas o plural da segunda pessoa: ~k,_b.b;l ., “vossos corações”, ~k,P.r>['w> “e

vossas nucas”, (v. 16); ~k,yhel{a/ hw"hy> “YHWH vosso Deus”, (v. 17) e ~T,b.h;a]w:

“amareis”, (v. 19).

Por essas observações, percebe-se uma mudança de estilo imposto ao texto

que, depois, no terceiro bloco, retoma o uso da segunda pessoa do singular; nesse

bloco conclusivo (vv. 20-22), o estilo assemelha-se ao primeiro, não somente pela

retomada do termo י1ה 9א “teu Deus”, três vezes citado (v. 20, 21, 22) mas, no

tocante ao estilo teológico, ao conclamar Israel a cultuar a YHWH, considerando

os grandes fatos realizados em prol de Israel.

Entre os vv. 12-15, são encontradas várias menções exaltando o ser

de YHWH e favorecendo a compreensão da estrutura literária. O texto inicia-se

conclamando à observância das leis: amá-lo e observar (v.12) todos os seus

7 Cf. WEINFELD, M., Deuteronomy 1-11. In: The Anchor Bible. New York: Doubleday, vol. 5, 1991, p. 435. 8 Cf. Ibidem, p. 205.

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preceitos (v. 13), para, depois, apresentar a identificação de Deus (v. 14) e,

encerrando com o gesto singular da escolha divina por Israel (v. 15), que

confirma, assim, a primeira parte do texto (vv. 12-15).

No v. 13, nota-se a reutilização de um vocabulário correspondente ao

Shema Israel (Dt 6,4-9). Ocorre uma nítida referência na afirmação: ^b<b'l.-l[; ~AYh;

^W>c;m. ykinOa' rv,a] hL,aeh' ~yrIb'D>h; Wyh'w> “estarão estas palavras que hoje eu te ordeno

sobre o teu coração” (Dt 6,6). São utilizados dois outros elementos substituindo a

expressão “essas palavras”. O Dt 10,13 apresenta hw"hy> twOc.mii "mandamentos de

YHWH”, e wyt'Qoxu “preceitos”, com o termo hL,aeh' ~yrIb'D>h; “essas palavras”, que

não mais residem no coração, mas são, agora, compreendidas como regras doadas

por Deus para a felicidade de Israel9. Com base na observância desses dois

versículos, nota-se uma influência do conceito da unicidade do Deus de Israel,

expressa no Shema Israel e que é agora retomada, em afirmações, no corpo dos

vv. 12-13, elucidando um desenvolvimento redacional presente nos versículos

10,12-22, referentes ao ser de Deus, aos mandamentos e preceitos doados por

YHWH. O termo mandamento expressa aquilo que a comunidade israelita deve

fazer10.

O antigo vínculo usado para identificar as tribos de Israel e servir de sinal

de pertença a YHWH é, agora, retomado numa dimensão espiritual. O apelo a um

ritual religioso, como a circuncisão, abre a segunda parte da narrativa (v.16-22),

9 O conhecimento de YHWH, por parte de Israel, não se faz de modo quieto, passivo, meramente confessional. Esse conhecimento ocorre na luta idolátrica envolvendo povos cananeus e a comunidade israelita. Sabemos da existência de inúmeros santuários dedicados ao deus Baal onde esse, como é declarado YHWH (Dt 6,4; 10,14-22) era também adorado como sendo a única divindade: Baal Peor, o Baal de Hebron, Baal Berit de Siquem, o Baal da Samaria, o Baal do Carmelo. Cf. GARCIA LÓPEZ, F., Deut. VI et la Tradition-rédaction du Deutéronome. In: RB, n. 86, 1979, pp. 59-91. 10 Não somente nesta parte, mas em todo o livro (4,1; 4,45; 6,1.20; 12,1), os autores deuteronomistas cunham o binômio “as leis e os preceitos” como sendo uma marca característica do livro. “O fato de que os dois termos não estejam nunca dissociados indica que a lei deuteronômica, na época de Josias, resulta de uma fusão de dois tipos de direito: aquele mencionado por uma autoridade (o rei e os funcionários de Jerusalém, sobretudo) e aquele em curso nas cidades de Israel. O Deuteronômio opera uma síntese jurídica, de maneira nova, em relação ao Código da Aliança; a ele, pertencem à mesma categoria tanto as “leis” como os “costumes” (a jurisprudência). Um dos grandes projetos do Deuteronômio é realizar uma unificação do direito”. Cf. CARRIÈRE, J. M., O livro do Deuteronômio. Escolher a vida. São Paulo, Loyola, 2005, p. 28. Vale realçar a distinção entre preceitos/estatutos/decretos do termo mandamento. A primeira provém da raiz קק ח , compreendida pelo ato de inscrever, entalhar originando o conceito de escrever, gestos típicos do ambiente da jurisprudência ou da tradição de compilar leis, costumes ou comportamentos. Já o termo הו צ מ denota a instrução passada do mestre ao aluno (Pr 2,1; Jr 32,11), tratando-se de um termo de uso específico ao universo da Aliança firmado entre Deus e seu povo Israel (Ex 24,12; Dt 30,11).

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apelando para a prática de marcar o ערלת לבבכם “prepúcio do coração”, e evitar

qualquer tipo de dA[) Wvq.t; al { “endurecimento”, mental, para que todos se façam

responsáveis na adesão e disponibilidade aos mandamentos divinos (v. 16). O

espírito indócil deve se render diante dos planos de YHWH. Eis a tônica do apelo

à prática da circuncisão.

O v. 16 abre esta parte da perícope, conclamando à circuncisão. O v. 17

apresenta, com realce, sete atribuições do Deus de Israel (v. 17)11.

A fórmula hl'm.fiw> ~x,l, Al tt,l' rGE bheaow> hn"m'l.a;w> ~Aty" jP;v.mi hf,[o “Faz o

direito ao órfão, à viúva e que ama o estrangeiro, a quem ele dá pão e roupa”,

serve para apresentar o conteúdo, bem como as bases da ação de YHWH. Ele

ע הש , “faz” e תת ל , “dá” sustentação aos humildes (v. 18).

YHWH é descrito como um soberano juiz, ao utilizar um processo

jurídico, no desejo de compreender e oferecer um veredicto em prol dos

desvalidos12. Sua ação se compara à prática imparcial e reta de um juiz (Dt 16,19).

A frase, apresentando a Trilogia Social, realça o modo da ação divina que prefere

os grupos socialmente vulneráveis denunciando, também, a violação e a

negligência da prática do direito a eles negada ou, até mesmo, desvirtuada.

Com base no termo גר “estrangeiro”, que une os dois versos, pode-

se estruturar os versículos no seguinte esquema:

a) v. 18a: YHWH faz direito ao órfão e viúva.

b) v. 18b: [YHWH] ama o estrangeiro.

c) v. 18c: [YHWH] dá [ao estrangeiro] pão e água.

d) v. 19a: vós amareis o estrangeiro.

e) v. 19b: vós fostes estrangeiros no Egito.

Não é impossível perceber a justaposição textual entre Deus e o רג ,

“estrangeiroʼʼ. Por meio das ações direcionadas a este grupo social, ocorre uma

sucessão de gestos visando o restabelecimento da justiça, capaz de diferenciar a

divindade dos israelitas. O termo estrangeiro, além de se referir aos anos em que

Israel esteve em terras egípcias na condição de escravo, é utilizado para canalizar

uma ordem expressa de Deus: amar o estrangeiro. Vê-se um harmonioso

11 As mudanças de estilos e de formas num determinado corpo redacional colaboram na sua datação. As formulas primitivas foram redigidas no singular, ao passo que, nos textos tardios, predonimam uma redação feita no plural. Cf. GARCIA LÓPEZ, F., Analyse Littéraire de Deutéronome, V-XI. In: RB, n. 85, 1978, p. 9. 12 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco II, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1970, p. 305.

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entrelaçamento. Assim como o Senhor age para instaurar a justiça, Israel deve

imitar seu Deus no amor ao estrangeiro.

O gesto do amor divino ao estrangeiro, exemplificado na providência do

pão e das vestimentas, deve ser imitado pela comunidade religiosa, tendo por base

a recordação dos fatos grandiosos na libertação do Egito. O amor ao estrangeiro

se justifica pelos anos vividos outrora, na condição de estrangeiros, nessas terras

(v. 19).

O Deus de Israel exige uma entrega total. O convite à fidelidade continua

ao longo da primeira parte do v. 22, desta vez, apresentando duas atribuições

divinas e uma recordação dos feitos em prol de Israel. A primeira atribuição acena

para a prática cultual: o conceito de “Ele é teu louvor” (v. 21). Outra atribuição

retoma o caráter da unicidade divina, conclamando a exclusividade de YHWH:

“ele é teu Deus” (v. 21).

O versículo 22, conclusivo na perícope, pode ser dividido em duas partes.

A primeira, considera a intenção dos autores em unir a fase dos patriarcas no

Egito e uma segunda, reafirma a realização das promessas feitas a Abraão, na

primeira bênção (Gn 12,1-3).

Considerando-se as inúmeras repetições presentes no texto, o estilo

narrativo oscilando entre a segunda pessoa do singular e do plural, e o esforço em

ter YHWH como sujeito central no texto, pode-se dividir Dt10, 12-22 em três

seções, divididas entre discursos e narrativas13.

a) Pedidos feitos por YHWH a Israel: segunda pessoa singular Dt 10,12-15

a) Amar e servir ao Senhor com toda força 10,12 b) Guardar os mandamentos para o bem de Israel 10,13 c) YHWH é um deus onipresente 10,14 d) O amor exclusivo de YHWH 10,15a

b) O discurso apresenta a Aliança e atributos de YHWH: segunda pessoa do plural Dt 10,15d-19

a) Preferência entre os povos 10,15b

b) Fazer circuncisão e não endurecer a cabeça 10,16

13 Niccacci define um texto entre narrativo e discurso. Considera o uso da terceira pessoa uma característica da narrativa. O discurso utiliza, preponderantemente, a segunda pessoas, numa forma direta ao ouvinte. Cf. NICCACCI, A., Sintassi del verbo ebraico nella prosa biblica classica. Jerusalem, Franciscan Printing, 1984, p. 18.

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c) YHWH é um Deus forte 10,17 d) YHWH faz justiça aos fracos 10,18 e) Amar os estrangeiros 10,19

c) O discurso exalta o temor a YHWH: segunda pessoa do singular Dt 10,20-22

a) Caminhar com YHWH 10,20 b) Louvar a YHWH 10,21 c) Promessas realizadas 10,22

Os quatro primeiros versículos 12-15a oferecem uma clara exigência

imposta a Israel, por parte de YHWH. Verifica-se a força de uma novidade,

comparada ao primeiro mandamento e uma adesão total ao Senhor. A insistência

em colocar Israel diante de YHWH, pode ser facilmente sentida pela utilização de

inúmeros verbos, muitos deles sinônimos, relacionando Israel e a exclusividade

diante de YHWH. Constata-se essa exigência ao recorrer aos verbos “temer”,

“seguir”, “amar”, “servir” (v.12), “guardar” (v.13) todos grafados na segunda

pessoa do singular. Os vv. 14 e 15a parecem justificar a ênfase dada aos versículos

precedentes ao apresentar YHWH como Senhor absoluto nos céus e na terra, que

manifestou um amor exclusivo ao seu povo eleito: hw"hy> qv;x' ^yt,boa]B; qr: “Somente

por teus pais se dispôs YHWH” (v. 15a).

A segunda unidade é formada pelos vv. 15b-19. A separação pode ser

legitimada pela mudança gramatical, empreendida da segunda pessoa do singular

para o plural e pela ordem que impõe a prática da circuncisão14. Há uma nova

maneira de vivenciar a pertença a Deus. A utilização da metáfora ~k,b.b;l. tl;är>[ ' “Circuncideis os prepúcios dos vossos corações” (v. 16a), acena para uma entrega

interior ao projeto inaugurado e que ultrapassa os limites da primeira aliança

outrora estabelecida (Gn 17). Entre os vv. 17-19 encontra-se uma resposta ao

gesto da circuncisão do coração. Sete atributos e duas características - não faz

distinção de pessoas e não aceita presente – são destacadas na tentativa de

encontrar uma definição do ser de YHWH. Tudo procura exaltar a magnificência 14 Tillesse, considerando as diferenças redacionais no uso do Tu e do Vós, propõe repensar as camadas literárias presentes no Dt. Para ele, “certa discriminação entre o Dt primitivo (seção Tu) e o quadro redacional Dtr, que o envolve, permite datar com precisão as seções Vós e, sobretudo, de desprender o documento Dt primitivo, primeira etapa indispensável de todo estudo crítico”. Cf. TILESSE, G. M., Section “Tu”et sections “Vous”dans le Deuteronom”. In: VT, n. 12, 1962, p.33.

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de YHWH. A transcendência divina, tão elucidada no v. 17, traduz-se na vigência

da justiça aos setores sociais desfavorecidos, que se encontram num contexto

incapaz de garantir qualquer tipo de jurisprudência, que lhes dê sentido e garantia

de seus direitos. O amor de Deus ao estrangeiro (v. 18b) deve ser agora imitado

por Israel: rGEh;-ta, ~T,b.h;a]w:, “Amareis o estrangeiro”, (v. 19). O texto faz uma

nítida referência aos anos em que Israel esteve na situação de estrangeiro quando

da sua permanência em terras egípcias.

Na terceira unidade (vv. 20-22) o narrador volta a utilizar os termos na

segunda pessoa do singular. Os verbos destacam um estilo confessional, um amor

exclusivo dado a YHWH no intuito de denunciar qualquer tipo de prática de

idolatria ao elucidar que só em nome do Deus de Israel pode-se fazer um

juramento. YHWH é um Deus pessoal, íntimo da vida de seu povo, Israel. A

narrativa parece feita exclusivamente para descrever a parceria envolvendo Israel

e YHWH. Ele, YHWH, é o “Deus de Israel” (v. 20, 21). Esta exclusividade, já

apresentada na primeira estrofe (vv. 12-15) é, agora, retomada evidenciando Israel

como testemunha dos grandes feitos realizados por YHWH em prol de seu povo

eleito. Nesses atos repousa o sentido único de encontrar só em YHWH o

significado de louvá-lo. As palavras hL,aeh' taor"ANh;-ta,w> tl{doG>h;-ta, ^T.ai hf'[', “fez a

teu favor essas coisas grandes e terríveis”, (v. 21c) procuram resumir, de certa

forma, os grandes feitos não apenas no Egito, como a realização das promessas de

Israel se tornar um grande povo. O recurso de um paralelismo sinonímico,

assinalado em vp,n< ~y[ib.viB, “setentas pessoas”, e brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK “como

estrelas numerosas nos céus”, (v. 22), oferecem certeza ao ser divino, diante dos

grandes feitos realizados em favor de Israel.

3.1.3. Comentário e análise semântica

Dt 10,12-22 revela a existência de uma divindade que se relalciona com o

povo escolhido (vv. 10-15). Por meio dos atributos, pode-se compreender outras

duas unidades: vv. 16-19 e 20-22, tendo como sujeito o ser de Deus na

compreensão das unidades. Há uma conjugação de princípios, isto é, na mesma

intensidade em que se afirma a exclusividade de YHWH, ocorre o desejo de

instaurar a igualdade entre todos os membros da comunidade de Israel.

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O versículo 12 abre a perícope que apresenta, num tom questionador, o

diálogo entre Deus e seu povo, Israel. O uso da conjunção ו “e” unida à partícula

adverbial hT'[;,,,,,, “agora”, oferece um caráter de exaltação ao diálogo envolvendo

uma divindade – Deus - e seu súdito – Israel, já citada em Dt 4,1. O realce

oferecido pela expressão adverbial une-se às conseqüências da demanda imposta

pelo Senhor. Nos dois capítulos (10,12 e 4,1), Israel é exortado a obedecer os

decretos apresentados por um Deus que lhe é exclusivo e único. Trata-se de uma

fórmula genuína de estilo que não deixa de evidenciar certa solenidade, uma vez

inserida logo na abertura da narrativa. Israel é o sujeito principal com quem Deus

dialoga.

Os vv. 12-15 buscam motivações com a finalidade de inculcar a certeza da

particularidade e exclusividade de Israel diante de seu Deus. Verifica-se forte

interatividade entre Israel e YHWH, duas realidades distintas. Com base na frase

adverbial da perícope: “E agora, Israel, o que YHWH, teu Deus, tem perguntado a

ti” (v. 12), fica evidente o destaque ao conteúdo empreendido ao longo do texto.

A conjunção yKi oferece importância à prática fundamental a ser vivida por Israel.

Não é em vão que a frase impõe um certo equilíbrio e realce ao colocar, em

primeira ordem, na missão de Israel, uma atitude capaz de garantir ou não a

felicidade da comunidade religiosa. O paralelo entre Dt 10,12-15 e parte do

primeiro mandamento, expressa no Decálogo Dt 5,2-7, exaltando a exclusividade

de YHWH, justifica-se diante dos inúmeros verbos e repetições que visam

convocar Israel à frente de uma divindade que não é a única mas Um. YHWH tem

a primazia e exclusividade diante das demais divindades. Trata-se do

comportamento de ^yh,l{a/ hwhy>-ta, ha'r>yIl.-~ai יכ “exeto temer a YHWH, o teu

Deus”, (v. 12b), apresentada na forma qal do verbo arey" grafado no infinito,

destacando um comportamento essencial. A ação não se encontra numa esfera de

aspecto emocional, mas numa conduta comportamental, com a finalidade de

garantir as promessas de YHWH à comunidade de Israel e, consequentemente, a

realização das promessas firmadas. Na atitude de temer o seu Deus está ou não

garantida a segurança à comunidade religiosa.

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Na sequência do verbo “temer” unem-se outras importantes práticas já

expressas nas primeiras páginas do Dt15. O substantivo lKo, expressando

totalidade, é exageradamente utilizado na tentativa de não somente provocar uma

atitude, como evidenciar a ação de Israel diante de seu Deus. Trata-se de ações

intimamente ligadas à vida da comunidade implicada nas ordens ditas por

YHWH. Os verbos, todos, são grafados na forma infinitiva: “andar”, “amar” e

“servir” (v. 12b-e). Toda ação está direcionada a Deus. Com ele, Israel deve

relacionar-se ^b.b'l.-lk'B, “com todo o teu coração”, ^v<p.n:-lk'b.W “e com toda a tua

alma”. Busca-se evidenciar a fé em um Deus único. A atitude de temor a Deus

envolve duas dimensões humanas expressas três vezes ao longo do versículo 12:

em todo o caminhar, com todo o teu coração e com toda a tua alma. É a

insistência do amor total e sem reservas a Deus. Os dois elementos “coração” e

“alma” indicam a possibilidade de toda uma vida estar direcionada a YHWH,

Deus de Israel.

A palavra hw"c.mi “ordem, mandamento”, é compreendida de modo

inequívoco, envolvendo as realidades humana e divina. O formato apresentado em

Dt 10,13 hw"hy> twOc.mi “mandamentos de YHWH”, quando comparado a outros

termos sinônimos - rb'D', “palavra”, hr'AT “Lei”, e qxo “ordem, preceito”, - é um

tanto recente, não sendo utilizado pela literatura profética pré-exílica16. Dt

apresenta que a ordem proveniente de YHWH direcionada a Israel revela um

caráter único em comparação aos textos do Antigo Oriente. “Uma relação de

autoridade envolvendo um contexto humano e divino”17. Apenas um critério será

determinante para garantir a felicidade ou não de Israel: o seu modo de colocar em

prática todos esses preceitos.

15 Notam-se inúmeras repetições que são retomadas nas mais diferentes formas, ao longo dos diferentes temas apresentados pelo Dt. Segundo Kramer, essa retomada de temas, parecendo meras repetições aleatórias, formam, sim, o estilo narrativo de “modelo de blocos” empreendido pelos sábios na composição da obra. Esse apelo a amar o Deus ao qual pertence Israel assemelha-se às fórmulas já encontradas em Dt: 4,9-10.39-40; 6,4-9; 8,11. Cf. KRAMER, P. Origem e legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. In: AT, n. 27, 2007, pp. 428-433. 16 Cf. Cf. LEVINE, B., הו צ מ . Oráculos de Am 2,12; 6,11; 9,9; Is 5,6; 10,6 optam pelo uso do verbo

הו צ “ordenar”. In: BOTTERWECK, J. G., RINGGREN, H., FABRY, H-JOSEF. (Orgs.), Theological Dictionary of the Old Testament, v. 8, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983-1984, p. 509. 17 Cf. Ibidem, pp. 509-511.

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O convite à fidelidade se expressa, ao longo do versículo 12, no uso dos

verbos “caminhar”, “amar”, “servir”, que parecem adquirir sentido no momento

em que Israel recebe a ordem de hw"hy> twOc.mi-ta, rmov.li “guardar os mandamentos de

YHWH”, (v.13). Os mandamentos visam mediatizar a vontade divina e ser uma

constante presença, todos os dias, na vida da comunidade, isto é, proporcionar

meios para que, durante todo o dia, ocorra um encontro com Deus que está acima

de tudo e, por consequência, norteia toda a atividade da comunidade. Todos os

empenhos no cumprimento dos twOc.mi, “mandamentos”, estão na disposição da

comunidade em cumprir a vontade do Criador18.

Neste sentido, o conceito envolto no testemunho dos twOc.mi não pode, de

modo algum, ser compreendido como uma ação puramente mecanicista. Salienta-

se que, no relacionamento entre criador e criatura, corre-se o risco de haver um

comportamento de vassalagem, “senhor e servo”, sendo o ser humano visto como

um mero serviçal envolto em um processo de total alienação que nada acrescenta

ao desenvolvimento da sua personalidade. Enfim, algo totalmente contrário à

realização pessoal. Todos os empenhos no cumprimento dos mandamentos são

pensados em plena sintonia e interação com Deus. Em outras palavras, a

comunidade guarda os mandamentos, mas sem jamais se sentir esmagada,

atemorizada ou plena de pavor diante da presença divina e, sim, pelo fato de saber

que a presença divina está implicada nas ordens expressas da hw"c.mi.

Nestes versículos, se encontra uma alusão direta, embora um tanto

reduzida, às declarações contra o politeísmo presentes em Dt 6,4-9, que oferecem

conteúdo e formato à oração do מ ש אלר ע יש “Shema Israel”19, que pode ser

verificado na utilização da frase “amar e servir a YHWH, teu Deus, com todo o

teu coração e com toda tua alma” (v. 12e), além de recorrer ao sentido de

“caminhar com Ele ao longo de todos os teus caminhos” (v. 12c). O uso do

infinitivo dos verbos בה א “amar”, e דב ע “servir”, expressam um determinado

18 A narrativa hebraica utiliza o termo ההו ת י וצ ת מ ר א מש ל “Guardar os mandamentos de YHWH” (Dt 10,13). Embora não sendo encontrados os três elementos, típicos de um mandamento: o pronome pessoal “tu” mais a partícula negativa “não”, seguida do verbo no futuro, definida por Carrière, na diferenciação de mandamento e estatuto, mantém-se o conceito de mandamento. Cf. CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio. Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 92. 19 Trata-se de uma camada literária compreendida como protodeteronômica e sendo parte da mesma camada literária de Dt 6,4-9. Demonstra a preocupação contra as atitudes idolátricas empreendidas no reino do Norte e fortemente denunciadas pelas correntes proféticas de Elias, Eliseu, Amós e Oséias, que estiveram em curso entre os séculos IX – VIII. CF. GARCIA LÓPEZ, F., Deut. VI et la Tradition-rédaction du Deutéronome. In: RB, n. 86, 1979, pp. 59-91.

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comportamento por parte de Israel: exclusividade a YHWH e separação de tudo o

que implica contato com os demais deuses e divindades cananéias. As atitudes de

amar e servir envolvem duas dimensões humanas realçadas no texto: “com todo o

teu coração” e “com toda a tua alma”.

- v. 13:

Há uma relação entre מצוה, “mandamento”, e %l" bAjl, “para teu bem”. O

versículo retoma outras partes do livro ao afirmar que todos os preceitos

provenientes da parte do Deus de Israel (5,31; 6,1; 7,11) têm como finalidade a

garantia de dias felizes para Israel (5,33; 6,24; 19,13).

- v. 14:

O superlativo ~yIm"V'h; ymeäv.W ~yIm:V'h;, “os céus e os céus dos céus”,

presente em 1Rs 8,27 e no Sl 148,4 é um recurso a mais na exaltação dos

atributos de Adonai. A exaltação vem reforçada pelo uso da partícula

demonstrativa הן “preste atenção, vê bem, tem presente que”20. O texto conclama

a comunidade israelita a não titubear diante de outras divindades. Ter presente que

seu Deus, muita acima dos demais, reina de modo ilimitado. A expressão HB'-rv,a]-

lk'w> “e tudo que nela existe”, é uma diminuição das forças contrárias a Israel para

exaltar, de modo incomensurável, Adonai, um Deus tão distante e forte, que não

se nega a ter uma preferência pelos israelitas (v. 15).

O tema da crença num Deus diferente dos deuses circunvizinhos a Israel,

pode ser evidenciado no uso do superlativo ~yIm"+V'h; ymev.W ~yIm:V'h; “os céus e os céus

dos céus”, (v. 14). Verifica-se aí um elemento utilizado para realçar a fidelidade

ao Criador, uma exaltação ao ser divino que não habita numa casa construída por

mãos humanas (1Rs 8,27) por ser o Criador do universo (Sl 148,4a). Desse Deus

exaltado, acima dos demais deuses, provém um amor exclusivo a Israel: hb'h]a;l.

hw"hy> qv;x' ^yt,boa]B; qr:ó “somente com teus pais quis YHWH amar”, (v.15). O v. 15

expressa um gesto de amor firmado por iniciativa própria do Criador. Uma

escolha feita para sempre e que perpassa gerações. Uma escolha firmada,

primeiramente, com os patriarcas e que se atualiza - hZ<h; ~AYK;, “como neste dia”

(v. 15b) - de geração em geração na história da comunidade, até os nossos dias.

- v. 15:

20 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 182.

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A preferência de Deus por Israel é um ato de sua livre escolha, expresso

pelo uso da partícula restritiva e adversativa רק, “unicamente, exclusivamente,

exceto (que)”. Uma ligeira mudança se verifica no texto de Qumram ao grafar על

.somente, só” como é encontrado no TM“ רק sendo assim, posto isso” e não“ כן

Tal exclusividade exige uma explicação apresentada logo em seguida.

Num esforço de oferecer significado à história da formação de Israel, o

texto apresenta o termo 1באבתי “por teus pais” como início da eleição por Israel.

Há, de modo proposital, uma referência explicita em que Israel não passava de

uma junção de clãs. Ocorre uma retomada, ainda que de modo mais reduzido, das

explicações firmadas em Dt 7,7. Deus não escolheu um povo numeroso capaz de

atemorizar nações. A eleição acontece como um ato impar de amor por um grupo

de pessoas. O termo visa relacionar o hoje da ação divina com a geração passada.

Não se trata de uma simples citação à dimensão familiar. A afeição do Senhor por

Israel, parte de uma esfera familiar, passa pelos patriarcas, pela história dos

antepassados, e chega ao conceito do hoje de Israel, referência última no Dt. A

presença de Deus, no hoje de Israel, tem início junto ao período dos אבות “pais”,

no passado. Um entendimento histórico e não fruto do acaso. Ocorre uma nítida

intenção retrospectiva unindo o conceito de 1באבתי “por teus pais”, e ~k,B', “vós

mesmos”, apesar da mudança redacional para a segunda pessoa do plural21. A

escolha, feita no passado, a uma descendência é a mesma. Esta continuidade está

no uso da preposição que reforça o aspecto temporal ~h,yrEx]a;, “depois deles”,

unindo as duas realidades – “por teus pais” e “vós mesmos”, concluindo com a

idéia presencial da ação divina: “como acontece neste dia de hoje” (v. 15b).

No v. 16, em continuação a segunda parte do v.15b, segue com o uso da

segunda pessoa do plural ao apresentar o ritual da circuncisão. Trata-se de não

suplantar o antigo gesto ritual que marcava a união entre Deus e a descendência

de Abraão, firmada como um pacto eterno (Gn 17). A narrativa deixa de lado os

vínculos de sangue, mas reutiliza o antigo conceito da aliança de sangue -

compreendida como meio capaz de selar o relacionamento mútuo - para

demonstrar uma união que compromete Israel no cumprimento a tudo aquilo que

se escuta.

21 Cf. TILLESSE, G. M., Sections “Tu”et sections “Vous” dans le Deuteronome. In: VT, n. 12, 1962, p. 37.

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Deuteronômio oferece a nova concepção, ao realçar uma aliança espiritual

mediante uma circuncisão capaz de marcar o coração, na linha apresentada pelo

profeta Jeremias (Jr 4,4; Dt 30,6). Não se trata mais de um sinal capaz de definir

os limites familiares ou o grau de união a uma determinada genealogia, mas o

grau de escutar e a capacidade de praticar as palavras ditas por YHWH. Ao

apresentar a circuncisão do coração, o texto não deixa de apelar para a disposição

de escutar e praticar os mandamentos. Alerta para o perigo do endurecimento dos

sentidos. Há uma insistência que coloca Israel diante dos mandamentos de Deus.

É o Deus de Israel que circuncida, no desejo de que seu povo escolhido seja capaz

de agir e seja capaz de temê-lo, amá-lo e servi-lo. Israel é escolhido para

transformar e renovar a ação de YHWH no mundo. A aliança tem um valor

definitivo e permanente (Dt 30,6-7)22.

O termo jP;îv.mi, “direito”, (v.18), encontrado 422 vezes nos textos do

Antigo Testamento, recebe inúmeros significados23. No contexto de Dt 10,18-19 é

nítido que o termo jP;îv.mi é antecedido do verbo hf'[', “agir, atuar, fazer com”,

sublinhando que Deus atua, age para restabelecer a justiça, atua para estabelecer

certa equidade. Aqui se trata de um aspecto positivo de uma ação em favor da

pessoa ou grupo que se encontram envolvidos em atitudes que o levam a

negligenciar seus direitos. Não é por acaso o uso da fórmula [YHWH] rGE bheaow>

hn"m'l.a;w> ~Aty" jP;v.mi hf, [ “faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro”.

No contexto de Dt 10,18, vale elucidar que o uso do termo jP;îv.mi “direito”

está em oposição aos inúmeros delitos realizados contra àqueles que deviam ver

garantidos, no interior da sociedade, suas condições elementares de sobrevivência.

22 Carrière chama a atenção para o fato de que a aliança representa um outro viés. Aqui se trata de uma metáfora que intima Israel a buscar sempre uma renovação, como solicita o salmista (Sl 51,12). A aliança busca dar condições para que Israel tenha um promissor futuro. Tudo acontece por iniciativa de YHWH. Ele não deve ser negligenciado. Para o redator do Deuteronômio, a experiência da Aliança foi aprofundada ao longo das vicissitudes históricas de Israel. Aliança compreendida como experiência e prática de igualdade em relação a um Deus parceiro de Israel. Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio. Escolher a vida, São Paulo. Loyola, 2005, p. 115. 23 Cf. Johson realça os diferentes conceitos que o termo recebe: jurisprudência, oráculos e adivinhações, direito legal, mandamentos e hábitos. Comparando com outros textos, o aspecto do hábito pela justiça fica mais elucidativo. YHWH “ama” a justiça: Is 61,8; Sl 33,5; 99,4; a justiça pode também ser observada: Mq 3,1; Ecl 8,5; deve se ter conhecimento para exercê-la: 1Rs 3,11; é possível estabelecê-la: Am 5,15; Is 42,4. Procura-se compreender o termo justiça no contexto de Dt 10,18. Cf. JOHNSON, B., שפטמ . In: BOTTERWECK, J. G., RINGGREN, H., FABRY, H-JOSEF. (Orgs.). In: Theological Dictionary of the Old Testament, v. 9, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983, pp. 86-98.

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Recorre-se a YHWH na certeza de que ele é capaz de realizar gestos objetivando

erigir a justiça,24e por isso a referência a YHWH, responsável pela superação do

litígio.

A equação essencial é a de saber que YHWH age com justiça25. As

normas expressas no livro são preceitos que enfatizam as relações sociais de

aproximação. O próximo é seu irmão e os grupos socialmente desfavorecidos

representam simbolicamente o estado do povo quando YHWH o libertou da

situação de exploração e servidão26.

“O que funda o povo é o fato de YHWH tê-lo feito sair do Egito, tê-lo libertado da servidão na qual vivia no Egito. Se o acontecimento fundador de Israel é um ato de libertação, então a atitude fundamental que mantém a identidade e a singularidade do povo, ao longo das circunstâncias de sua história, deve ser da mesma ordem: um ato de libertação, concretamente mediatizado nas situações encontradas”27. - v. 16:

Os dois verbos - ~T,l.m;W “circuncidareis”, e Wvq.t; “endurecereis” não

deixam de exortar Israel a evitar todo e qualquer tipo de comportamento que seja

capaz de impedir a praticidade das leis ordenadas por Deus. ~k,b.b;l. tl;r>[' tae

~T,l.m;W “circuncideis os prepúcios dos vossos corações”, é uma nítida retomada da

antiga aliança selada com os patriarcas (cf. Gn 17,9-12). Agora, se trata de marcar

o coração em vez da carne. É no coração que se assenta o juízo de todas as

“atividades intelectuais e volitivas do ser humano”28. Complementando a

24 Weinfeld não apenas anota que o termo justiça aparece como um conceito inserido num contexto de justiça social, e por isso forma um binômio juntamente com o conceito הק ד צ “equidade”. Os “termos הק ד צ ט ופ ש מ foram considerados um ideal sublime, e por isso divino no salmo 33,5: Ele ama a justiça e o direito, a terra está cheia do amor de YHWH”. הק ד צ ו טפ ש מ foi amplamente utilizado na literatura do Antigo Oriente e, mais tarde, veio influenciar toda a literatura sapiencial e profética em Israel. No Código de Hammurabi encontra-se a afirmação positiva de que Shamash, ele mesmo, dá a verdade (kinātum) e kittum u mīšarum são seus presentes. Cf. WEINFELD, M., Justice and Righteousness – הק ד צ ו טפ ש מ – the Expression and its Meaning. In: JSOT.S. 137, 1992, pp. 228-246. Buis relaciona os grandes feitos narrados nas epopéias ugaríticas como uma ação imitada, agora, pela divindade absoluta israelita. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, Paris, Beauchesne, 1969, p. 180. 25 Deve-se ter alguma cautela diante das traduções encontradas em várias versões bíblicas, conforme as ressalvas feitas por Krašovec. Na BHS é ampla e variada a utilização do termo justiça ( הק ד צ ). Nosso texto realça a maneira e a vontade de YHWH no agir diante de uma real situação. Cf. KRAŠOVEC, J., La Justice (ṣdq) de Dieu dans la Bible Hébraïque et L´interprétation Juive et Chrétienne, Freiburg Schweiz, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1988, pp. 181-209. 26 Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 64. 27 Cf. Ibidem, p. 63. 28 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 40. Sobre o significado metafórico da circuncisão do coração ver também CHRISTENSEN, L. D.,

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fidelidade diante do Senhor, a narrativa retoma a formula dA[) Wvq.t; al{ ~k,P.r>['w> “e

vossas nucas não endurecereis mais”, um tema caro ao profeta Jeremias (cf. Jr

7,26; 17,23; 19,15; 32,33 e 48,39). Uma possível teimosia da parte de Israel,

diante do não cumprimento dos mandamentos, recebe, assim, essas duas

observações que recaem sobre o coração e a dura cerviz, antigas metáforas

utilizadas para demonstrar um coração fechado ao projeto de Deus.

- v. 17:

Os atributos de Deus, iniciados no versículo 14, são retomados nesta parte

do texto. Os domínios do Deus de Israel são incomensuráveis. No formato da

narrativa, pode-se destacar o grau de interação entre transcendência e imanência.

Isto é, o Deus, senhor dos céus atua também no universo humano não

diferenciando pessoas. Por meio de inúmeros atributos, percebe-se que ele é o

único Deus e os demais deuses são meros subalternos. A Ele a suprema divindade.

O Senhor está muito mais acima de qualquer outra divindade existente entre os

cananeus ou mesopotâmicos. Buscam-se gestos que enaltecem os atributos e

feições do ~k,yhel{a/, “vosso Deus”, por outro, as características não deixam de fazer

um forte apelo contra a idolatria, como bem ressaltam os atributos que lhe fazem

menção: a) ~yhil{a/h' yhel{a/ aWh “ele é o Deus dos deuses”. Considerando que os

deuses legitimavam um determinado regime político e seu poderio militar,

YHWH é apresentado estando acima de todos os deuses; b) ~ynIdoa]h' ynEdoa]w: “e o

Senhor dos Senhores”. O superlativo está na base dos atributos divinos, utilizados

como meios para exaltar a unicidade de YHWH; c) laeh' “o Deus”. O termo é

proveniente do universo ugarítico e não se trata, aqui, de um termo genérico

proferido a uma divindade qualquer, alheia às vicissitudes do povo. A recorrência

ao uso do artigo definido ה aponta para uma exaltação e identificação do ser e

entendimento de Deus; d) ldoÜG"h; “o Grande”. A presença do artigo definido

qualifica e diferencia o Deus de Israel. Oferece a YHWH grande importância,

além de acenar para a eternidade. e) rBoGIh ; “o Valente”. O epíteto descreve outro

atributo do Salvador de Israel; f) ar"ANh;w> “e o Terrível”: uma exaltação para confiar

no poderio salvífico de YHWH (Dt 7,21-22); g) ~ynIp' aF'yI-al{ “não faz

favoritismo”: indica uma explícita referência à onipresença de YHWH.

Deuteroonomy 1-11. In: WBC, p. 206; NELSON, D. R., Deuteronomy:a commentary, London, Westminster John Knox, 2004, p. 137.

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Literalmente traduzido como sendo um Deus “que não considera a face”, isto é,

não faz distinção de pessoas. O texto considera as relações humanas que sempre

se fundamentam nos interesses para sublinhar o modo de agir de YHWH; h) dx;vo)

xQ:yI al{w “e não aceita presente”: a sinceridade divina se estende compreendendo

seu modo de agir: um juízo que não se deixa corromper (Dt 16,19; 27,25). Seu

ser divino é justo em sua essência. Desta essência divina provêm a capacidade e

atributos capazes de exercer seu papel de juiz, que, em seu modo de agir, prioriza

a prática da justiça ao órfão, à viúva e ao estrangeiro (v. 18).

Não é por um acaso que se incia a frase recorrendo à partícula de cunho

explicativo yKi, “pois, porque”, ao discorrer sobre os atributos divinos29. O recurso

é utilizado para as ações divinas. Após a citação do nome de Deus, seguem sete

atribuições, considerando o uso implícito do verbo היה “ser, estar” seguido das

cinco atribuições, com seus respectivos verbos: aF'äyI-al{ “não favorece”, xQ:yI al{w>

“e não pega”, jP;v.mi hf,[ “faz justiça”, bheaow> “e ama” e tt,l', “e dá”.

- v. 18-19:

No vv. 18 e 19 ocorrem, pela primeira vez no livro, a referência à Trilogia

Social apresentada na seguinte ordem: órfão, viúva e estrangeiro. A ordem difere

das outras seis citações encontradas no livro que usam a seguinte ordem:

estrangeiro, órfão e viúva. A consequência de um Deus incapaz de aceitar

presente e, que por isso, não faz diferença de pessoas, agora, vê sua

imparcialidade e imanência em realce. Adonai atua no interior das relações sociais

e econômicas, no desejo de impedir a “vulnerabilidade humana nos negócios”30.

O status social das três categorias assemelha-se à figura de pessoas não contadas

em Israel. Atingem um determinado grau de pauperização que chega a identificar-

se com os grupos das viúvas, órfãos e estrangeiros. Encontram-se numa situação,

por demais adversa, das condições mínimas capazes de garantir sua

sobrevivência31. Nesta situação, Deus é apresentado como instaurador do direito.

29 A partícula explicativa יכ se explica em referência às sete atribuições (v. 17): 1) vosso Deus, 2) Deus dos deuses, 3) Senhor dos senhores, 4) o Deus, 5) o Grande, 6) o Forte, 7) o Terrível e não ao uso do verbo circuncideis (v. 16a), como analisa Nelson, ao comentar a narrativa. Cf. NELSON, D, R., Deuteronomy:a commentary, London, Westminster John Knox, 2004,p. 137. 30 Cf. CHRISTENSEN, L. D., Deuteronomy 1-11. In: WBC, Vol VI, Texas, Word Books, 1991, p. 207. 31 NELSON, D. R., Deuteronomy: a commentary, op. cit., p. 137. Ver as análises comparativas ao termo estrangeiro feita por Bertrand, para quem ocorre uma associação proposital, nos textos bíblicos. Das dezesseis vezes em que o termo אזרח “nativo, autóctone” é citado na BHS, quinze vezes surge associado ao termo גר “estrangeiro”. “Uma só legislação utilizada para o nativo como

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Uma divindade que produz, realiza, a exemplo do verbo ברא “criar, fazer” denota

uma ação, um gesto divino em prol dos violados em seus direitos, ou vítimas de

um processo ou acontecimento social, que os qualifica nesses grupos

desfavorecidos. Realizar o direito é prova da imanência divina.

O termo técnico jP;v.mi “direito”, é apresentado como uma ação divina em

vista do bem-estar do órfão e da viúva, gesto inserido numa realidade social,

segundo deixa transparecer a afirmação de que Deus jP;v.mi hf,[ “faz direito”, rGE

bheaow> “ama o estrangeiro” e hl'm.fiw> ~x,l, Al tt,l ' “dá para ele pão e roupa”. As

ações do Todo-Poderoso se traduzem em restabelecer o direito aos grupos

negligenciados. Um gesto feito em meio às contradições históricas. Como

outrora, na escolha de Deus por seu povo (Dt 7,8), Adonai age somente por bh;a', “amar”. No texto, o gesto de amor vem explicitado: Ele garante - !t;n" “dar” -

pão ao estrangeiro.

A referência ao Egito (v. 22) é evidenciada por meio de uma equação

expressando duas realidades quantitativas distintas. A primeira, apresenta a

unidade vp,n< ~y[ib.viB, “setenta pessoas”, citada em outros textos, com a finalidade

de realçar aspectos da origem de Israel, ligada historicamente ao Egito, espaço

reconhecido como local de servitude e exploração (Gn 46,27; Ex 1,5). As origens

de Israel entrelaçam-se com o interior deste poderosíssimo império, responsável

por séculos de dominação (Ex 6,2-9). Uma segunda realidade certifica o

cumprimento das promessas feitas por YHWH. Recorrendo também à fração

quantitativa brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “como estrelas numerosas nos céus”, o

crescimento de Israel ocorre por meio de sua união a YHWH. Israel tem a sua

frente uma nova realidade diferenciada de séculos atrás (Dt 10,10-18). Nota-se

que essas duas realidades podem, muito bem, ser relacionadas pelo uso da

partícula adverbial hT'[;w> “e agora”. O jogo de contrastes opondo “setenta

pessoas” a “estrelas numerosas nos céus” é utilizado para certificar que Israel não

para o estrangeiro”. Cf. BERTRAND, M., BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, p. 57. A imanência do Deus de Israel pode ser constatada na defesa do estrangeiro e dos grupos sociais desfavorecidos. Eis uma real e contundente maneira de apresentar as nações circunvizinhas a Israel, YHWH. Cf. BRIEND, J., Le Dieu d’Israël reconnu par des étrangers signe de l’universalisme du salut. In: BOVATI, P., MEYNET, R., (Orgs.), Ouvrir les Écritures, Paris, Cerf, 1995, pp. 65-76.

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vive por si mesmo, mas tem sua prosperidade somente na relação com seu Deus,

que perpassa toda sua história.

Embora sempre tenha havido, ao longo de toda história de Israel, uma

relação com o país vizinho, a citação ao hm'y>r"c.mi “Egito”, (v. 22) acompanha um

conceito ideológico32. Não se trata de evidenciar a segurança e refúgio encontrado

em tempos de estiagens ou guerras (Gn 12,10; 13,8; 45,6-8; 50,25). O país é

compreendido como terra da servidão, época do não ser, e, também da dominação

espiritual, quando das idolatrias vividas pela comunidade dos hebreus. Desta total

realidade do não ser, fez YHWH sair das terras da escravidão.

É neste sentido que os apelos feitos pelo narrador nos versículos 20-21

adquirem pleno entendimento. A um Deus que garante a vida deve-se temer,

servir, apegar, louvar diante das grandes obras realizadas em benefício de seu

povo. No contexto da narrativa o versículo 22 não se entende sem a constatação

da ação javista em favor de Israel: “estas grandes e terríveis coisas que viram os

teus olhos” (v.21). Israel não ama uma divindade amorfa, sem interesses por sua

vida e história. Pelo contrário, verifica-se uma intimidade, uma onipresença e uma

gratuidade envolvendo Israel e seu Deus.

A fidelidade a YHWH volta a ser conclamada, agora, de modo solene nos

vv. 20 e 21, que usam os quatro verbos: “temer”, “servir”, “apegar” e “jurar”.

Busca impedir o risco da comunidade ceder aos outros deuses, cultos e práticas de

sacrifícios, sempre condenados pelos profetas. A frase [;be(V'Ti Amv.biW dbo[]t; Ataow>

ar"yTi ^yh,l{a/ hw"hy>-ta,, “a YHWH, teu Deus, temerás e só a ele servirás, só em seu

nome jurarás”, presente em Dt 6,13 é retomada com o acréscimo de qB'd>ti AbW “a

ele te apegarás” (v. 20c).

Nos vv. 20-21, Deus volta a ocupar a centralidade na narrativa. Desta vez,

a partícula את introduz o complemento direto que é Deus merecedor do temor, do

serviço, do apego e do ato de jurar. Em outras palavras, a vida deve tê-lo como

eixo. Aqui, acontece uma repetição das ordens grafadas nos vv. 12 e 13, com o

acréscimo ao uso do verbo qb;D' “apegar”. O v. 21 parece estar respondendo os

motivos de ter Deus como senhor de tudo. A resposta implica na retomada de um

dos atributos divinos presentes no v. 17 - ar"ANh;w> “e o terrível” – juntamente com

32 O realce é estabelecido pelo uso do sufixo he-locale que ofere realce ao substantivo Egito. A tradução poderia ser: para o Egito. Cf. KELLEY, P. H., Hebraico Bíblico: uma gramática introdutória. São Leopoldo, Sinodal, 2002, pp. 179-180.

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outras duas indicações de cunho litúrgico, segundo a utilização dos substantivos:

^t.L'hit. “teu louvor”, e ^yh,l{a/ “teu Deus”. Tal apelo se justifica na fórmula hL,aeh'

taor"ANh;-ta,w> tl{doG>h;-ta, “estas grandes e terríveis coisas”, (v. 21) soam como uma

espécie de resumo do que aconteceu durante a saída da terra da escravidão,

vividos pela comunidade, na expressão conclusiva do versículo: ^yn<y[e War" rv<a],

“que viram teus olhos”, (v. 21).

- v. 22

A declaração hm'y>r"c.mi ^yt,boa] Wdr>y" vp,n< ~y[ib.viB. “com setenta pessoas teus

pais desceram ao Egito” (v. 22a), é uma retomada das promessas, feitas em torno

do pacto da aliança e presentes em outros textos (Cf. Gn 46,27; Ex 1,5; Dt 1,10).

O prometido é realizado. A promessa se realizou. Concretizou-se, segundo a frase

utilizada no fechamento da pericope: מים לרב como estrelas numerosas“ ככוכבי הש

nos céus”. O Senhor cumpriu sua promessa e, por este motivo, ocupa o centro das

atividades de Israel. Ocorre a citação de duas referências numéricas que não se

contrapõem, mas se completam, no desejo de mostrar o crescimento, diante da

cifra vp,n<ë ~y[ib.viB., “com setenta pessoas”, (v. 22a) lembra a vivência dos patriarcas

em terras do Egito, de onde os fez sair YHWH (Gn 46,27b; Ex 1,4-5).

A descendência de Abraão se une ao agora, ao presente, à atualidade da

comunidade israelita como meio de legitimação das promessas de YHWH em prol

de Israel. Uma outra verificação acontece na cifra brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “como

estrelas numerosas nos céus”. O contexto de Dt 10 prova o crescimento

incalculável da comunidade, o que não deixa de ser uma realização da promessa

divina. Há uma particularidade por parte do próprio YHWH, ao se identificar com

os patriarcas nas terras do Egito e com o presente vivenciado pela comunidade:

^yh,l{a/ hw"hy> ^m.f' hT'[;w> “e agora dispôs-te YHWH, teu Deus” (v. 22b).

3.2. Há um tempo determinado para a justiça: Dt 14,28-29

O capítulo 14 insere-se entre os capítulos 12-26, reconhecidos como a

parte primitiva do livro ou proto-deuteronômio33. Quatro grandes grupos de

33 Os comentários sobre os inúmeros círculos redacionais imposto ao livro do Dt são convergentes. Desde os estudos publicados por Martin Noth, a crítica vétero-testamentário indica um processo redacional responsável “pela construção do livro do Deuterônomio”. O livro é resultado da soma

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normas podem ser encontradas ao longo desses capítulos e divididas nos seguintes

estilos narrativos: leis sobre o culto (12,2-16,17), leis sobre o modo de vida no

interior das cidades (16,18-20; 20), leis comportamentais destinadas à vida

familiar (21,1-23) concluindo com leis de pureza social e ritual (23,2-25; 26,1-

15)34.

Entre os capítulos 14-15,23 podem-se constituir certas unidades literárias35

subdivididas em seis diferentes blocos narrativos: a) Alerta contra práticas

idolátricas (Dt 14,1-3); b) Determinação das práticas alimentares definidas como

puro e impuro (Dt, 14,4-21); c) Alerta sobre a prática do dízimo, dividida em duas

unidades: dízimo anual proveniente do resultado da colheita e entregue num

santuário determinado por vontade de YHWH (Dt 14,22-27) e dízimo trienal,

também resultado da colheita, mas entregue para o consumo do levita, estrangeiro,

órfão e viúva (Dt 14,28-29); d) Determinação do ano sabático e as obrigações

sociais a serem praticadas (Dt 15,1-11); e) Normas de comportamento entre

escravos e proprietários na chegada do ano sabático (Dt 15,12-28); f)

Obrigatoriedade na consagração dos animais primogênitos, num lugar

determinado por YHWH (Dt 15,19-23).

Tais leis, quando subdivididas, formam a estrutura, descrita a seguir, tendo

como tema central leis voltadas às necessidades dos grupos socialmente pobres:

a) Dt 14,1-3 Apelos contra a idolatria

de inúmeros círculos literários, divididos entre as épocas pré e pós-exílica, constituindo os respectivos códigos: D (Proto-Deuteronômio), “encontrado” no interior do templo, na época do rei Josias (622), tendo suas tradições oriundas do Reino do Norte; dtn (deteronômico) referindo-se à época pré-exílica que de certa forma trabalhou sobre as antigas fontes D; dtr (deuteronomista) elaboração feita no pós-exílio e DtrG (Obra histórica deuteronomista) responsável pelos livros de Js-2Rs. No trabalho da tradição deuteronomista pode-se, ainda, constatar outras três tradições: DtrH (Deuteronomista historiador), DtrP (Deuteronomista Profético) e por último a presença de uma tradição de cunho DtrN (Deuteronomista Nomista). Cf. GRADL, F.; STENDEBACH, F. J., Israel e seu deus - Guia de leitura para o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2001, pp. 48-75. Ver a síntese exposta por Carrièrre. Cf. CARRIÈRRE, J-M., O livro do Deuteronômio:Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 34. As recentes pesquisas, bem como seus resultados consensuais e divergentes, sobre a obra Deuteronomista, vêm sendo acompanhada, no Brasil, pelo professor Airton José da Silva. Em artigo publicado com base nos últimos simpósios internacionais o autor apresenta os resultados mais recentes das pesquisas que estão longe de atingir um patamar consensual. SILVA, J. A., O contexto da obra histórica deuteronomista. In: EsBi. 88, 2005, pp. 11-27. 34 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome. Paris, Beauchesne, 1969, p. 219. 35 Ao considerar a realidade agro-pastoril refletida nos princípios legais, pode-se determinar um corpo literário estabelecido nos capítulos 14,1-15,23. Tal divisão não é consensual entre nos estudos do Dt. Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio – Introducción y comentário, op. cit. p. 252; NELSON, R.D., Deuteronomy – a commentary, op. cit. p. 182; Christensen opta pela mesma divisão apresentada por Buis. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised. In: WBC, vol. 6a, Texas, Thomas Nelson, 2001, p. 295.

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b) Dt, 14,4-21 Determinação do puro e do impuro

c) Dt 14,22-27 Prática do dízimo anual entregue no santuário

d) Dt 14,28-29 Obrigatoriedade do dízimo trienal entregue aos

grupos desfavorecidos

e) Dt 15,1-11 Determinação e periodicidade do ano sabático

f) 15,12-28 Obrigatoriedades sociais no ano sabático diante do

escravo compatriota

g) Dt 15,19-23 Obrigatoriedade dos animais primogênitos

O legislador do Deuteronômio se apóia em referências temporais para

expressar o caráter humanitário das normas apresentadas. O legislador

deuteronômico não se deixa dividir entre o utópico e o universo real, após realçar

a unicidade e a relação singular entre Israel e seu Deus (14,1-21). Há um tempo

bem fixado para se cumprir a oferenda do dízimo anual e trienal, a remissão das

dívidas e a libertação dos escravos somados à lei da primogenitura (14,22-15,20).

Percebe-se a junção entre o comportamento ético e religioso.

3.2.1. Dt 14,28-29: tradução, aspectos filológicos e variantes

Ao final de três anos, tu tirarás

a décima parte de toda a tua

colheita desse ano

28a rf;[.m;-lK'-ta, ayciAT ~ynIv' vl{v' hceq.mi

awhih; hn"V'B; ^t.a'WbT.

e disponibilizarás nos teus

portões.

28b `^yr<['v.Bi T'x.N:hiw>

Virá o levita, 29a ywILeh; ab'W

Porque ele não tem parte e nem

herança contigo,

29b %M'[i hl'x]n:w> ql,xe Al-!yae yKi

o estrangeiro, o órfão e a viúva,

que vivem nas tuas vizinhanças,

comerão

e se satisfarão.

29c rv<a] hn"m'l.a;h'w> ~AtY"h;w> rGEh;w>

W[bef'w> Wlk.a'w> ^yr<['v.Bi

A fim de que, te abençoará

YHWH, teu Deus

29d ^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> ![;m;Ûl.

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em toda a obra que tua mão

fará.

29e rv<a] ^d>y" hfe[]m;-lk'B.

`hf,[]T;

Duas variantes são apresentadas no v. 28. Em 28b o verbo xwn “depositar,

colocar, descansar”, na segunda pessoa do singular, no hifʻil, descreve a simples

ação de entregar parte da colheita em um lugar determinado: T'x.N:hiw>, “e depositarás,

colocarás à disposição”. Uma alteração gráfica ocorre no Pentateuco Samaritano e

na LXX, grafada também no hifʻil com o sufixo da terceira pessoa ATx.N:hiw >, “e as

depositará”. A LXX utiliza qh,seij auvto., “deposita-la-á”, usando o pronome

pessoal acusativo neutro da terceira pessoa, seguido do verbo no futuro, como faz

o TM. Uma segunda alteração está registrada no v. 28, refere-se ao termo ^yr<['v.Bi, “nos teus portões”. Alteração encontrada na Gueniza do Cairo, grafada na forma

,בשעריכם e no Targum encontrada com o sufixo da segunda pessoa plural בשערך

podendo ser traduzida como “em vossos portões”.

No v. 29, considerando a grafia hfe[]m;-lk'B. “em todo o trabalho, tarefa”,

presente no TM, encontramos as seguintes variantes: 1) o texto grego da LXX na

edição tardia em contrastes com as revisões posteriores grafa sou evn pa/sin toi/j

e;rgoij, “em todos os seus trabalhos”, sendo equivalente à י1בכל מעש conforme

15,10. 2) Outras inúmeras variantes são encontradas nos códices dos manuscritos

hebraicos 1.9. No texto da LXX, segundo recensão de Luciano, nos minúsculos

códices ou em alguns textos da LXX, segundo Orígenes de Alexandria, verificam-

se alguns asterísticos. A versão Siríaca/Peshitta e a Vulgata utilizam a forma בכל

י1ד מעשה י , contrastando com o Targum Yerushalmi I que a utiliza בכל מעשי ידיכם,

“em todos os feitos de vossas mãos”. Outros códices cursivos (minúsculos) da

LXX omitem hf,([]T; rv<a] “que fará, que irá realizar”. Com base no uso feito por

alguns manuscritos na utilização da segunda pessoa do plural, em tradições mais

recentes, não ocorre nenhuma variante ao TM.

3.2.2. Delimitação do texto, composição e estrutura

A delimitação da perícope (Dt 14,28-29) se faz considerando a

apresentação das leis religiosas e os deveres com o pagamento dos respectivos

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dízimos. São encontradas duas leis sobre o dízimo: a primeira elucida o dízimo

anual (vv. 22-27) e a segunda, o trienal (vv. 28-29). As duas são distintas.

Guiando-se pelos textos, a evidência recai, sim, sobre a dimensão social do

dízimo, mas as narrativas são distintas. Se, na primeira – dízimo anual – prevalece

a oferta feita a YHWH, num santuário determinado (vv. 22-27), a segunda

evidencia, como principal destinatário, não mais o templo ou a manutenção dos

serviços realizados em seu interior, mas um grupo social formado por pessoas

desfavorecidas bem delineadas: o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (vv. 28-

29). A delimitação do texto ocorre ao considerar a nomeação do dízimo anual

(14,22-27), trienal (14,28-29) e pela legislação do ano sabático (15,1-11). As leis

destacam o universo cultual, disponibilizando os bens a dois destinatários:

YHWH e grupos sociais formados pelo levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva.

Uma outra observação favorável a essa divisão das narrativas em dois

blocos – a) vv. 22-27, b) vv. 28-29 – são as três referências temporais citadas em

diferentes épocas relacionando, também, diferentes dízimos: hn"v' hn"v' “a cada

ano”, (14,22), ~ynI©v' vl{åv' “a cada três anos”, (14,28), ~ynIv'-[b;v, “a cada sete anos”,

(15,1). Nota-se a insistência em precisar o tempo de pôr em prática as leis.

Embora se trate de um outro tema, a libertação dos escravos, bem como a

remissão das dívidas e a oferenda do primogênito, são, também, fixadas num

determinado tempo36.

Trata-se de uma lei apresentando um enunciado. A intenção da lei é

elucidar a importância do dízimo oferecido no seu devido tempo: a cada três anos.

A preposição מן, compreendida como “a partir de, desde, depois de”, oferece um

caráter enfático ao substantivo hc,q', “fim, extremidade”, dando à narrativa um tom

fortemente imperativo. Não se trata de qualquer época. Nada acontece à revelia ou

por vontade própria. O ciclo, a temporalidade para dispor do dízimo é bem

definida: “ao final de três anos”.

Num segundo momento é apresentado o material sobre o qual vigora a lei.

Neste caso é notório que está em questão certa quantia proveniente de parte do

resultado da colheita (v.28a). Como não poderia deixar de ser, a lei apresenta

aqueles que têm o direito ao beneficio por ela estipulado (v.29a-c). Os portões das

cidades são os lugares onde devem acontecer, como sinal de prova do

36 Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 30.

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cumprimento legal (v.28b). Há, enfim, a finalidade de praticar a lei, ou seja, aparece

um arcabouço ideológico que justifica: a prosperidade diante de YHWH (v.29d). Pode-se

realçar o seguinte delineamento à narrativa:

v. 28a periodicidade

da lei

a cada três anos

v. 28b elucidação todo o dízimo da colheita dispô-lo

nas portas das cidades

v. 29a Beneficiários levita, estrangeiro, órfão e viúva

v. 29b Motivação não tem parte na herança

v. 29c

lugar

determinado

comerão nas portas até ficarem

saciados

v. 29d conclusão benção de YHWH em todos os

trabalhos

3.2.3. Comentário e análise semântica

A origem dessa rf;[.m;, “décima parte”, a ser separada, também é

determinada no texto. Verifica-se ser a parte correspondente de toda a quantia

produzida ao longo do ano: rf;[.m;-lK'-ta,, “e toda décima parte”, do produto da

terra ou da colheita. O resultado da separação deve ser colocado à disposição dos

necessitados, segundo o sentido do verbo יצא no hif`il, junto às portas das

cidades. Trata-se de uma quantia vista como abundante, e disposta junto à porta

da cidade, produtos animais e vegetais colhidos em Israel, considerados

suficientes para suplantar os limites da pobreza37. Os beneficiados são bem

definidos no texto: o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (v. 29). O objetivo é

de receber, por parte de YHWH, a bênção em todas as ações empreendidas. Trata-

se da afirmação renovada diante de YHWH e o ofertante. Estar diante de YHWH

é renegar qualquer dependência aos deuses cananeus38.

37 Cf. SÁNCHEZ, E., SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 301. 38 Cf. ZABATIERO, J. P. T., “Em busca de uma economia solidária: Dt 14,22-15,23, resistência popular e identidade social”. In: EsBi, 84, 2004, p 14.

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Uma legislação sobre o modo de dividir o dízimo foi fundamental para

poder medir o grau de liberdade e solidariedade existentes, já, na época em que

Israel esteve sob o regime de dominação Assíria39. Não se sabe se o dízimo trienal

somava-se ou não ao dízimo anual citado nos versículos 22-2740. A décima parte

da colheita pertence às classes desfavorecidas e aqui determinadas na pessoa do

levita, do estrangeiro, do órfão e da viúva e será disponibilizada nas portas das

cidades41.

“Nenhum código anterior ao Deuteronômio regulamenta o dízimo. Sabemos de sua existência anterior em Israel e Judá através de textos como Am 4,4 e das narrativas do Gênesis e na “lei do rei” em 1Sm 8 (texto deuteronomista). É sabido também que em vários outros países do antigo Oriente o dízimo era praticado. Provavelmente, em Judá e Israel, o dízimo fosse praticado como tributo pago à casa real e não como uma oferta cúltica, uma vez que na chamada Privilegrechte Jahwes e no Código da Aliança somente se mencionam as primícias e os primogênitos”42. Fruto da convergência de inúmeras tradições literárias, o Dt não poderia

deixar de apresentar diversos enfoques. Constata-se que duas diferentes

finalidades na coleta do dízimo foram estabelecidas, recebendo um viés que as

diferenciam das práticas estabelecidas nos principais santuários dos reinos de

Israel. As leis de centralização do culto modificaram tremendamente um grande

número de costumes religiosos, em particular as ofertas dos dízimos43. O dízimo não

está centralizado num determinado santuário, mas determinado para ser

consumido nas portas das cidades, por grupos socialmente fracos, como sinal

eficaz na busca de equilíbrio social.

39 Segundo o conteúdo encontrado em Am 4,4 e sobre a importância do santuário como local de administração das finanças do reino (1Rs 12,26-28), pode-se, com grande clareza, perceber a origem e importância do sistema do dízimo na manutenção das províncias de Judá e Israel, já na época do império Assírio. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 305. 40 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco, Madrid, Cristiandad, 1970, p. 322. O mesmo pode ser notado nas considerações de Crüsemann ao procurar elucidar a importância do dízimo, já na época dos dois reinos em Israel. O dízimo tornou-se um imposto obrigatório instaurado pela própria realeza do país (1Sm 8, 15-17; Am 4,4; Gn 28,22). Cf. CRÜSEMANN, F., op. cit. pp. 304-307. 41 Nota-se certa insistência, quase uma obrigatoridedade por parte dos autores frente ao ato de disponibilizar o dízimo. Embora esquivando-se da noção de retribuição, Zabatiero afirma certa “coerção” religiosa, foi um gesto plausível de certa pecaminosidade humana percebida pelos autores do Deuterônomio. Cf. ZABATIERO, J. P. T., op. cit., p.13. 42 Ibidem, p. 185. 43 Não é sem sentido a argumentação de Abba de que os deuteromistas harmonizaram antigas tradições com as funções sacerdotais vinda da tribo de Levi e as de Arão. “Ambos, padres e levitas, recebem igual menção no Deuteronômio, cada qual mencionado quatorze vezes, e suas respectivas funções são claramente descritas”. Cf. ABBA, R., Priests and Levites in Deuteronomy. In: VT, n. 27, 1977, p. 258.

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Comparado aos demais textos do livro, onde somente são citados, na

trilogia, o estrangeiro, o órfão e a viúva, o grupo dos levitas é acrescentado como

beneficiário dos bens produzidos pela comunidade. O levita é uma figura

emblemática por estar ligada às antigas tradições sociais e redacionais vindas do

Reino do Norte44. Sua figura representa alguém merecedor de solidariedade, por

isso, a novidade do autor Deuteronomista de colocá-lo ao lado de outros grupos,

reconhecidos como pobres.

“Os levitas e os sacerdotes levitas fazem parte de Israel, sem dúvida e de modo inquestionável. Mesmo assim, eles devem ser diferenciados claramente, às vezes explicitamente, das pessoas a quem o texto se dirige. Eles não possuem terras (Dt 14,27; 18,1). O Dt não contém regras para sacerdotes”45.

Aqui, nota-se um tom elucidativo ao afirmar sua precária situação e

os motivos de ser um beneficiário: %M'[i hl'x]n:w> ql,xe Al-!yae( yKi ywILeh ; “o levita,

porque ele não tem parte da herança contigo”, (v. 29). Não é difícil provar que,

mesmo diante dos movimentos reformistas ocorridos nos reinados de Ezequias e

Josias46, essa instituição, ao lado da função da realeza e do movimento profético47,

manteve seu prestígio ao longo das diversas fases históricas de Israel48.

Para alguns autores, a citação dos levitas, como beneficiários, liga-se às

redações tardias igualando a figura do levita à do sacerdote. Não é difícil imaginar

44 O livro do Deuteronômio não deixa de ser uma etapa importante na compreensão do sacerdócio. A união entre sacerdócio e levita apresentada ao longo do Código Deuteronômico considera diferentes momentos da história social e religiosa de Israel. Sabe-se que, após a queda da Samaria, os grupos de levitas se encontram em condições de decadência social e são apresentados, juntamente com o grupo do estrangeiro, merecedores da proteção legal. Pode-se admitir a existência de dois grupos: os responsáveis diretos pelo culto e outro, como os levitas, diretamente ligados à prática do ensino. Os sacerdotes levitas e recebem como função estabelecida em lei num período recente. Cf. AUNEAU, J., Sacerdote. In: GAZELLES, H.; FEUILLET, A., (Orgs.), Dictionnaire de la Bible, supplément, vol. 10, Paris, Letouzey & Ané, pp. -1170-1254. Os sacerdotes levitas e recebem como função estabelecida em lei uma exclusividade sacerdotal 45 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 309. 46 Sobre a questão sacerdotal, no tocante à sua origem, ao grau de importância e influências sentidas diante das reformas históricas há inúmeras controvérsias. Verifica-se que a crítica literária dos textos com referência aos levitas é um tanto complexa. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, pp. 439-443; 462-478; CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, pp. 66-74; EPSZTEIN, L., A justiça social no Antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, São Paulo, Paulinas, 1990, pp. 75-76; 89-90; 143-144. Não é difícil perceber alguma consequência da reforma empreendida por Josias (621), estritamente focada na centralização do culto a YHWH, em Jerusalém, visto como o santuário único, uma vez que sua implementação impulsionou a destruição dos santuários altos e baixos (II Rs 23,5-7.15.19-20), contribuindo, de modo vertiginoso, na mudança e na distinção de funções e status entre os sacerdotes. Cf. CRÜSSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 297. Talvez o final da monarquia condicionasse a equiparação social do levita na condição idêntica a do estrangeiro. 47 Três grupos considerados como líderes do povo e da aliança. Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 294. 48 Cf. CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio, São Paulo, Loyola. 2005, p. 70.

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que as reformas de caráter centralizador causaram um grave problema às pessoas

ligadas aos santuários locais, seja sacerdote ou levita. De Vaux argumenta a

possibilidade de antigas tradições sob o controle de grupos sacerdotais ligados ao

santuário de Siquém, cujos líderes queriam transformá-lo em um “único local de

culto”, preservou antigos hábitos existentes no Reino do Norte, berço redacional

das tradições proto-deuteronômicas, entre as quais a proteção perpétua ao grupo

dos levitas. Diferenciação estabelecida por um decreto positivo da parte do

próprio Deus49.

O aspecto tardio de citar o sacerdócio levita também é reafirmado por

López, para quem os versos, muitas vezes, no livro do Deuteronȏmio se

interompem sofrendo uma espécie de junção50. Para Sánchez, a ressalva está em

perceber, ao longo das leis expostas em Dt 14,22-16,17, a afirmação da divindade

exclusiva de YHWH, expressa por meio das atividades cultuais e que se estendem

às outras esferas da vida: festas, alegrias, propriedades, bens, liberdades. São

momentos que edificam o projeto de igualdade entre todos os membros da

comunidade51.

Num outro momento, a norma legal exposta em Dt 14,29 enfatiza o grau

com que a prescrição jurídica deve acontecer. A insistência pode ser verificada no

uso dos verbos W[bef'w> Wlk.a'w>, “comerão e satisfarão”, (v. 29c). Na importância da

função verbal fica evidente que o gesto de disponibilizar 10% de todo o produto

da terra dá a certeza de aquisição de uma excelente quantidade de viveres (azeite,

carne, trigo e vinho) e do alto teor humanitário a ser vivido no interior da

comunidade. O consumo do dízimo no santuário é um aspecto do sistema de

arrecadação; outro, é a consideração com as pessoas que não eram proprietárias de

terras. Eis uma temática inovadora dos estatutos deuteronômicos.

“O que o texto reflete e legisla é um processo de empobrecimento de israelitas livres, o qual culmina em geral na servidão voluntária ou forçada das pessoas empobrecidas e/ou endividadas. Tal processo de empobrecimento, na Antiguidade, está relacionado sobretudo com a prática de fazer dívidas. Camponeses que, por motivo de força maior (seca, pragas de gafanhotos, doença, etc), não conseguem colher o suficiente em

49 Cf. DE VAUX, R., Instituciones del Antiguo Testamento, op. cit., pp. 465-476. 50 Cf. LÓPEZ, G. F., Analyse Littéraier de Deutéronome, V-XI. In: RB, 87, 1978, pp. 5-49. 51 Cf. SÁNCHEZ, E., op. cit., 2002, p. 279.

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sua roça para sobreviver durante o ano, recorrem a empréstimos junto a outros israelitas ou junto a instituições como o próprio templo”52.

As duas ações verbais no v. 28, ayciAT, “tirarás”, e T'x.N:hiw>,

“disponibilizarás”, grafados na forma hif`il, oferecem coesão e sentido na

narrativa. Trata-se de uma ação feita pelo proprietário da terra ou por ele

encomendada para cumprir a lei. A lei fixa um período determinado, bem como a

quantia a ser disponibilizada nos portões da cidade.

Nota-se, considerando alguns termos, que o universo social contemplado

pela lei do dízimo trienal é de uma realidade agro-pastoril: ~ynIv' vl{v' hceq.mi “ao

final de três anos”, (v.28a); ע מ הש “décima parte”, (v.28a); ^yr<['v.Bi, “nos teus

portões”, (v.28b) ; הלוי “o levita”, (v.29a) e ^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> “YHWH, teu Deus

te abençoará”, (v.29d). No interior dessa sociedade deve surgir um equilíbrio

social. As normas (vv.28-29) em torno do dízimo realçam o equilíbrio social, no

interior da própria cidade53.

O período determinado para efetuar o pagamento dos bens adquiridos no

ano pode servir de fio condutor na compreensão do dízimo e de sua finalidade. A

prática do dízimo recebe leis determinantes. Nada ocorre ao bel prazer do

proprietário que controla sua arrecadação.

O substantivo ה רש ע da raiz aramaica מעש , implica o conceito de grupo,

divisão, coleção, originando o entendimento de dízimo como parte de um todo54.

Trata-se de uma prática comum nas antigas civilizações do Antigo Oriente55, que

já era praticada no Antigo Israel e que, devido à sua importância, recebe, no

52 Cf. REIMER, H., Um tempo de graça para recomeçar: o ano sabático em Êxodo 21,2-11 e Deuteronômio 15,1-18, In: RIBLA, 33, 1999, p. 37. Análise consensual faz Wandermuren na abordagem sobre as exigências a serem praticadas com o advento do ano jubilar. Ocorre uma reinterpretação da antiga lei da terra, imprimindo um prisma mais social. “O ano de repouso do campo é transformado em ano de remissão das dívidas”. Cf. WANDERMUREN, M., A lei do ano sabático – para que pobres achem o que comer: um estudo sobre Êxodo 23,10-11. In: RIBLA, 33, 1999, p. 54. 53 A prática do dízimo constitui uma espécie de sacrifício entregue regularmente num único santuário. A relação santuário e dízimo é muito antiga (Gn 28,22; Lv 27,30; Am 4,4). Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paideia Editrice, 1979, p. 114. Craigie, considerando o ciclo sabático de sete anos, argumenta a possibilidade de o dízimo trienal sofrer destinos diferentes. Uma vez para o santuário, outra para os grupos socialmente necessitados. Cf. CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eeardmans, 1976, p. 234. 54 Cf. HARRIS, R. L. – GLEASON, L. A. – WALTKE, B. K., DITAT, p. 1182. BROWN, F. – DRIVER, S. – BRIGGS, C. – The Brown-Driver-Briggs. Hebrew and English Lexicon, Massachusetts, Hendrickson, 1996, pp. 798-799. Na LXX usa-se o δεκάτε, δέκατον. 55 Verifica-se que a prática do dízimo está intimamente ligada ao ato de agradar certa divindade, no Egito, já na época dos antigos faraós. Os patriarcas fazem uso de uma prática muito comum (Gn 41,34; 14,20). Cf. LESÉTRE, H., Dime. In: DBS, vol. 2, 1926, pp. 1431-1425.

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Deuteronômio, uma lei determinando quando pagar, quanto pagar, a quem pagar,

onde pagar e por quê pagar. Compreende-se que esses cinco quesitos são

respondidos, de modo evidente, nesses dois versículos:

1) ~ynI©v' vl{åv' hceq.mi, “ao final de três anos” (v. 28a), é o tempo determinado

para se efetuar o pagamento do produto a ser disponibilizado aos setores pobres

da comunidade. A referência ao termo “final de três anos” realça a diferença no

tipo de dízimo a ser oferecido. Com base nas declarações de Dt 14,22-2756, não é

difícil verificar a existência de um outro estilo de dízimo oferecido no santuário e

marcado com um ritual de peregrinação e comunhão entre os membros da família.

Trata-se de um dízimo anual, direcionado ao santuário e marcado como banquete

sagrado, do qual, nenhum dos filhos de Israel deve se furtar nem medir esforços

para oferecê-lo (14,24-25).

2) rf;[.m;, “décima parte” (v. 28a), é a quantia que foi sendo determinada

como medida nas ofertas provenientes de todos os esforços empreendidos. O

termo não é por demais fluente nos textos do AT57, mas adquire um papel

relevante na manutenção das atividades e dos grupos que circulam na esfera do

santuário (Cf. 2Cr 31,5; Am 4,4), e no entendimento do desejo de partilhar, prover

víveres aos grupos pobres da sociedade, além de ser uma obrigatoriedade pública

no gesto de exigir a divisão de riquezas acumuladas58.

3) ^yr<(['v.Bi, “nos teus portões” (v. 28b), assegura a antiga tradição de ser a

r[;v;, “porta”, o lugar escolhido por excelência para dirimir qualquer assunto

relacionado à prática da justiça (Cf. Am 5,15; Dt 5,14). No contexto social do v.

28, foi o local destinado para reunir o povo (Cf. 2Rs 7,1), com a assembléia dos

anciãos, responsável pelo sistema de jurisprudência (Cf. Dt 21,19; Am 5,10),

testemunho das vitórias no campo de batalha (Cf. Js 8,29; 2Rs 7,17), local

56 A quantidade de dízimos coletados e oferecidos, seja aos santuários ou aos grupos socialmente necessitados, não encontra consenso em grupos de autores. Defende-se a existência de dois ou três dízimos coletados ao longo de um período de um ano. Seja qual for o número de vezes em que ocorre a coleta, constata-se uma dimensão essencialmente social, voltada para o estabelecimento da justiça entre os filhos de Israel. O Código Deuteronômico evidencia dois tipos de dízimo: anual e trienal (Dt 14,22-27; 26,12-15). Outros autores defendem três tipos de dízimos comparando Lv 27 e Nm 18: dízimo dado aos levitas (Dt 14,27; Nm 18); o dízimo destinado ao santuário, celebrado como um banquete sagrado de comunhão (Dt 14,22-26); e um terceiro, disponibilizado a cada triênio aos pobres (Dt 14,28-29). Cf. HARRIS, R. L. – GLEASON, L. A. – WALTKE, B. K., DITAT, p. 1183. 57Cf.LISOWSKY, G., Konkordanz zum Hebräischen Alten Testamment, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1981, pp. 844-845. 58 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 302.

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essencial nas transações comerciais e preferido pelos profetas no anúncio de suas

mensagens (Cf. Jr 7,2; 15,7).

Interessa o local destinado para dispensar o dízimo de toda a colheita: um

lugar público59, onde serão disponibilizados os produtos para serem consumidos

por grupos de levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas - os socialmente fracos60 - e

ser, deste modo, capaz de ser comprovado e controlado, possibilitando aos grupos

socialmente fracos adquirirem uma base sólida suprindo suas necessidades

básicas.

4) ywILeh;, “o levita” (v. 29a), a esse grupo juntam-se os pobres,

destinatários exclusivos para consumir os bens disponibilizados à porta. O levita

é, aqui, apresentado juntamente com os desfavorecidos. Sua sobrevivência

depende de seus irmãos e, por estar ligado ao ato de ensinar a lei, sem a garantia

de herança e manter as atividades cultuais e religiosas na esfera dos santuários, é

merecedor de certa parcela do dízimo trienal.

5) ^yh,l{a/ hw"åhy> ^k.r<b'y> ![;m;Ûl. “deste modo, YHWH, teu Deus, te abençoará”

(v. 29d). Trata-se de uma decisão que se projeta para o futuro. Este é o motivo de

todo o conjunto de normas, provenientes da vontade de YHWH, capaz de ser

praticada por toda a comunidade de Israel. Não há como pensar uma sociedade

teocrática fora desse parâmetro. Verifica-se, por outro ângulo, o estilo por demais

utópico, de plenitude, ao deduzir a finalidade de praticar todos os mandamentos:

cumpri-los é a garantia de ser bem sucedido.

“A inclusão solidária dos fracos na riqueza da produção proporciona a bênção para o trabalho que torna isto possível. E as formulações estão relacionadas às leis sobre como isso deve acontecer. Elas mesmas são novas formulações de antigas tradições de culto, especialmente referentes aos tempos sagrados. A bênção que, provavelmente já era esperada na entrada do ritmo do tempo sagrado, no Deuteronômio, é assim relacionada com o cumprimento das leis sociais”61.

O estilo, na forma de abertura do v. 29, ab'W “virá”, especifica quatro

grupos, aos quais são destinados a décima parte de todos os produtos do campo.

Os verbos são, nesta primeira parte do versículo, usados na forma qal. Há uma

forma clara ao descrever os grupos e as ações de vir, comer e saciar.

A forma conclusiva ![;m;Ûl . “e assim, de modo que, correspondendo a”, aqui

prefixada com a preposição ל, oferece um caráter de conseqUência, diante dos 59 Cf. Ibidem, p. 303. 60 Cf. Ibidem, p. 305. 61 Cf. Ibidem, p. 316.

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preceitos divinos que Israel deve pôr em prática. O enfoque conclusivo do texto,

na forma Piʿel dada ao ר2ב , “abençoar”, evidencia a relação de Deus para com o

homem, demonstra elevado grau de favorecimento, gratuidade, acúmulo de bens

provenientes da parte divina. O uso na forma Piʿel é a mais corrente nos textos do

AT62, e compreende uma relação direta e interativa entre pessoas ou grupos

envolvidos. A equação seguinte pode sintetizar a compreensão do verbo do Pi´el:

A abençoa B com. Fórmula encontrada no versículo. No texto, YHWH cumulará

infinitamente todos os trabalhos empreendidos por Israel.

Trata-se de uma ação estendida, não somente aos bens, mas a toda forma

de empreitada levada adiante, pelas mãos de Israel. O sujeito aqui é Israel

convocado a instaurar, diante de um velho sistema de arrecadação de imposto,

aqui compreendido como dízimo, uma contribuição regular devida aos pobres.

Verifica-se uma obrigatoriedade, seja na oferenda do dízimo, seja na libertação

dos escravos. Gestos cultuais e práticas de justiças se entrelaçam. A lei do dízimo

é compreendida como uma expressão direta da teologia deuteronômica da

liberdade63.

A observação da lei e, por sua vez, seu cumprimento são capazes de

garantir a sobrevivência dos grupos socialmente desfavoráveis, gerando um

equilíbrio social e, por acréscimo, pode demonstrar o ideal de sociedade apontado

pelo próprio YHWH. A observância da lei e a garantia do direito à vida do povo é

a âncora de todo um princípio legal, podendo, desta maneira, ver, no equilíbrio

social, a demonstração real das bênçãos com generosidade doadas por YHWH.

62 Nas seis ocasiões em que a forma Piʿel é analisada por Scharbert prevalece a relação de poder. Os exemplos são inúmeros. 1) O poder do rei sobre seus súditos (2Sm 6,18;1Rs 8,14); 2) Uma pessoa em posição privilegiada se opõe em relação à outra (Js 14,13); 3) Determinada liderança carismática impõe-se diante do povo (Lv 9,23); 4) Um patriarca abençoa e, com a bênção segue certa ordem a ser cumprida (Gn 28,1-6); 5). A bênção pode trazer infortúnios, como é o caso de Balac, rei dos moabitas em ação contra o povo que saiu do Egito (Nm 22, 6). As inúmeras ocasiões em que sacerdotes, em pleno ofício abençoam (1Sm 2,20; Lv 9,22; Sl 118,26; Dt 10,8; 27). Cf. SCHARBERT, J., ברך. In: TDOT, op.cit. pp. 288-290. 63 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 310.

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3.3. Os produtos da terra utilizados na equidade social: Dt 16,9-12

Não são poucos os estudos que optam por um bloco literário entre os

capítulos 14,22-16,1764, no qual uma variedade de temas, ligados aos produtos da

agricultura, formam unidades literárias apresentando diferentes momentos da vida

humana: o preceito do pagamento do dízimo das primícias (14,22-29); a

restauração da igualdade a ser restabelecida com a chegada do ano sabático (15,1-

18) e a consagração dos animais primogênitos (15,19-23). No capítulo 16, são

apresentadas três das chamadas festas de peregrinação: a celebração da festa da

Páscoa (16,1-8), a comemoração da festa das Semanas (16,9-12), a festa das

Tendas (16,13-15), bem como um cronograma que estabelece o comparecimento

diante de YHWH (16,16-17). Esta grande unidade pode ser compreendida por

meio da expressão ^yh,l{a/ hw"hy> rx;b.yI rv<a] ~AqM'B “no lugar que escolherá YHWH,

teu Deus”, que perpassa todos os capítulos (14,22.24.25; 15,19; 16,2.6.11.15).

A vida religiosa do povo é refletida em importantes festas. No Código

Deuteronômico encontra-se uma verdadeira síntese65 reunindo inúmeras outras

tradições, tendo o templo como local por excelência de concentração e

entendimento da vida religiosa e social de Israel.

3.3.1. Dt 16,9-12: tradução, aspectos filológicos e variantes

Sete semanas tu contarás, para ti

mesmo,

9a %l"-rP's.Ti t[obuv' h['b.vi

64 Cf. BLENKINSOPP, J., Deuteronômio. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Orgs.), NCBSJ, São Paulo, Paulus e Academia Cristã, 2007, p. 238.. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio. Introdução e Comentário, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 276-279. Em outras análises prevalece a divisão considerando os diferentes temas. São elas: 14,22-29; 15,1-11; 15,12-18; 15,19-26; 16,1-8; 16,9-12; 16,13-17. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised. In: METZGER, B. M.; HUBBARD, D. A.; BARKER, G. W. (Orgs.), WBC, Texas, Nelson Reference & Electronic, 2001, p.295-352. NELSON, R. D., Deuteronomy – a commentary, London, Westminster John Knox, 2004, pp. 182-210. CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eerdmans Publishing, 1981, pp. 228-248. 65 Não é impossível, com base nas afirmações de De Vaux, perceber o grau de ressonância que o movimento de centralização em torno do santuário inaugurado no tempo de Ezequias e, mais tarde, retomado por Josias, acabou impondo-se às antigas tradições religiosas. Cf. DE VAUX, R., Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, p. 613-614. Sobre o resultado centralizador da reforma de Josias, Nakanose declara que “os reformistas josiânicos usaram de muita violência para eliminar tudo o que era contrário à centralização no Templo”. NAKANOSE, S., Uma história pra contar: a páscoa de Josias. Metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30, São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 111-114.

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desde o momento em que a foice

começar a cortar a espiga,

9b lxeT' hm'Q'B; vmer>x, lxeh'me

tu começarás a contar sete semanas. 9c `tA[buv' h['b.vi rPos.li

Tu farás a festa das Semanas para

YHWH, teu Deus.

10a ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; t'yfi['w>

Parte da oferta voluntária de tua

mão, que darás

10b !TETi rv<a] ^d>y" tb;îd>nI tS;mi

conforme te houver abençoado

YHWH, teu Deus.

10c `^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> rv<a]K;

Te alegrarás diante de YHWH, teu

Deus, tu, teu filho, tua filha, teu

escravo, tua escrava

11a ^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'x.m;f'w>

t,m'a]w: ^D>b.[;w> ^T,biW ^n>biW hT'a;

o levita que está dentro de suas

portas,

11b ^yr<['v.Bi rv<a] ywILeh;w>

e o estrangeiro, o órfão e a viúva que

habitam contigo,

11c ^B<r>qiB. rv<a] hn"m'l.a;h'w> ~AtY"h;w> rGEh;w>

no lugar que escolherá YHWH, teu

Deus

11d ^yh,l{a/ hw"hy> rx;b.yI rv<a] ~AqM'B;

para estabelecer lá seu nome. 11e `~v' Amv. !KEv;l.

Tu recordarás que escravo tu

estiveste no Egito,

12a ~yIr"+c.miB. t'yyIh' db,[,-yKi T'r>k;z"w>

observarás e executarás esses

decretos.

12b `hL,aeh' ~yQIxuh;-ta, t'yfi['w> T"r>m;v'w>

Nas variantes do aparato crítico da BHS, encontram-se matizes referentes

aos vv. 9,10,11 e 12. O v. 9 possui uma variante seguindo a tradição do texto

apresentado pela LXX, correspondente ao Siríaco e referente ao uso do verbo חלל

“começar”. Escreve-se 1חל מה “começar para ti”, juntamente com o sufixo da

segunda pessoa masculina do singular. Variante também presente na Vulgata.

Opta-se em manter o TM diante da brevíssima variação.

No v. 10 são registradas quatro matizes: a) uma mudança é proposta ao

termo תס מ , “medida/quantidade/proporção”, no estado construto, alterado para

conforme presente/doação de”, encontrado no v. 17. Registro esse“ ,כמתנת

também presente na LXX, na forma de kaqo,ti ... ivscu,e, “conforme ...é capaz”.

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A LXX, no v. 17, registra kata. du,namin, “segundo a capacidade”. Pode-se, de

alguma maneira, verificar que o TM não é seguido em algumas traduções. As

propostas, porém, acenam para diversas alterações poucos substanciais; b) uma

outra leitura surge no códice manuscrito hebraico 69, no Pentateuco Samaritano e

na versão siríaca ao termo ידיך “tuas mãos”. O termo no TM usa o singular: ידך;

c) Correspondendo ao verbo נתן, “dar”, ocorre uma retroversão, na LXX,

grafando-o no subjuntivo aoristo na 3a pessoa singular dw/| “der você”,

correspondente à grafia hebraica יתן “darás”; outros manuscritos da LXX

adicionam o pronome pessoal da 2a pessoa singular soi; d) alguns manuscritos da

LXX e da Vetus Latina grafam 1כ ר כאשר ב , “conforme tem te abençoado”, mantem

a intensividade da forma piʿel. Fato, também, verificável na versão do Códice

Vaticano, correspondendo ao texto de Dt 15,14 e 16,15: ךכ ר כאשר ב e 1ברכ כי י .

Embora ocorra essa série de matizes, elas não chegam a apresentar uma variante

sustentável a uma mudança ao TM.

No v. 11, ocorre uma diferença, embora curta, no tocante à grafia da

palavra ^D>b.[;w>, “e o teu escravo”. Nos códices cursivos da LXX e na Vulgata

encontra-se a grafia עבדך, grafada sem a conjunção. O TM parece estar mais

coeso, ao verificar a métrica delineada com o uso da conjunção ו, que une a série

de oito substantivos: אמת1ו , םיתוה ו , גרה ו , לויה ו ,מנהל האו , 1ד ב ע ו , ובת1, 1בנ ו, .

No v. 12, o TM apresenta uma variante ao omitir o substantivo בארץ “na

terra”, como é encontrado no códice manuscrito hebraico 69 e em poucos

manuscritos hebraicos medievais, ponderando as recensões da LXX anotadas por

Orígenes de Alexandria. Uma vez que está presente em Dt 5,15 a fórmula ארץ ב

יםר מצ , “na terra do Egito”, e retomada em 24,18, idêntica expressão, opta-se

utilizar, na versão do TM, a grafia: ריםמצ ב ] ארץב [י־עבד היית כ “pois escravo foste

[na terra] do Egito.

3.3.2. Delimitação, composição e estrutura

A perícope é intercalada pelos relatos de duas festas e atividades sociais. A

legislação sobre a festa das Semanas (vv. 9-12) se encontra entre duas outras

referências celebrativas: festa da Páscoa (vv. 1-8) e a festa das Tendas (vv. 13-15).

Trata-se de uma legislação que tem em vista datar os aspectos festivos que devem

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acontecer após a Páscoa. Dt 16,9-12 forma um bloco bem distinto. Pois, a

perícope se insere entre a descrição da festa da Páscoa e das Tendas. Ocorre uma

harmonização clara, o que oferece um aspecto um tanto tardio à narrativa. Nota-se

uma coerência de estilo narrativo, conteúdo e uniformidade de vozes. Há um

período para a realização da festa, um nome, bem como um local determinado

para sua celebração.

Logo após a indicação de comer pães ázimos, por um período de seis dias

e, no sétimo, fazer uma grande assembléia em louvor a YHWH (v. 8), há a

indicação de um novo cronograma, referindo-se, inevitavelmente, a uma outra

festa. Agora, deve-se contar sete semanas, a partir do inicio da colheita, para ter

um tempo favorável para a celebração da Festa das Semanas. O v. 9a abre a

narrativa realçando um convite: %l"-rP's.Ti t[obuv' h['îb.vi “Sete semanas tu contarás”.

Eis um tempo determinado para dar início à contagem das setes semanas66.

Após o convite para contar sete semanas, o texto apresenta, de maneira

clara, o nome da festa a ser comemorada: ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; t'yfi['w> “farás a

festa das Semanas para YHWH, teu Deus” (v. 10a). Embora o texto apresente o

verbo hf'[', “fazer”, está implícito o caráter festivo (v. 15) dado à peregrinação

empreendida em honra a YHWH67 e acompanhada com uma determinada parte,

chamada de “oferta voluntária”, como prova dos bons empreendimentos,

ocorridos nos campos e, em sinal das bênçãos recebidas ao longo do ano.

Juntamente com a expressão tA[bv' h['b.vi, “sete semanas”, utilizada para

abrir e concluir o v.9, o verbo rPes;, utilizado duas vezes, impondo à narrativa um

caráter de obrigatoriedade e periodicidade a uma festa que tem um determinado

tempo para começar. Não é por acaso que os termos sete semanas e contar se

repetem: AB ˂ ˃ AB, grafados paralelamente ao longo do versículo (v.9a + 9c),

dando unidade e coesão ao texto. Há um insistência em marcar o ciclo para iniciar

as festividades: sete semanas após o início da colheita das primeiras espigas.

Encontra-se uma compilação de exigências bem definidas: “tu contarás,

desde o começar [a meter] a foice no trigo” (v. 9); “tu farás a festa das Semanas”

(v. 10); “te alegrarás” (v.11), que envolve Israel em torno do preceito divino e,

66 Constata-se que o Código Deuteronômico apresenta as mesmas festas realçadas no Código da Aliança (Ex 23,14-17) e Ex 34,18.22-24. Salvo os detalhes acrescidos em Lv 23, os textos, uma vez cruzados, referendam as três importantes festas religiosas: Páscoa, Colheitas ou Semanas e a festa das Tendas. 67 Ex 34,22 realça o aspecto festivo ( תע ב ג ש ח ו ).

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com o recurso dos verbos, quase todos no imperfeito. Termina com a promessa de

bênção e prosperidade, seguindo o que fala o Senhor. Exigências e motivações se

intercalam:

Exigências Motivações

v. 9a – sete semanas tu contarás

v. 9c – tu começarás a contar

v.9b - tua foice começar a cortar

v. 9c – sete semanas

v. 10a – tu farás a festa das Semanas

v. 10b - parte da oferta voluntária de tua

mão, que tu darás

v. 10a – para YHWH teu Deus

v. 10c - te acumulou de bênçãos

YHWH, teu Deus

v. 11a - te alegrarás v. 11a - diante de YHWH, teu Deus

v. 11e - fazer residir lá seu Nome

v. 11d - lugar que escolheu YHWH, teu

Deus

v.12a - recordarás que escravo tu

estiveste no Egito

v. 12b - observarás e executarás esses

decretos

Nota-se que o eixo central é a identificação e atributos de YHWH,

intercalados por dois acontecimentos registrando, respectivamente, o tempo de

celebrar a festa das Semanas (v.9) e a experiência de escravo de Israel durante os

anos vividos no Egito (v.12). O tom convidativo à observância da norma conclui a

narrativa.

As exigências são apresentadas por meio de vários verbos indicando uma

determinada relação com YHWH. O destaque fica para o verbo ספר “contar”,

citado duas vezes, em relação à festa das semanas. Os verbos, compondo as

exigências, estão todos relacionados a uma motivação central: הי1 הוה א9י

“YHWH, teu Deus”. O conceito dessa divindade pessoal e exclusiva é realce na

narrativa. Não é por acaso que é citada quatro vezes (vv. 10a, 10c, 11a, 11d). As

motivações, por seu lado, afirmam quem é este Deus de Israel. Ocorre uma ênfase

na identificação de YHWH como Deus de Israel, elemento fundamental na fé

israelita.

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3.3.3. Comentário e análise semântica

Trata-se de definir a época em que a festa tem seu início. Chouraqui a

explica, apoiando-se na narrativa de Levítico: “Contai para vós, no dia seguinte ao

shabat, do dia em que conduzis o feixe do balanço, sete shabats. Contareis

cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo shabat e oferecereis, então, a YHWH

uma nova oblação” (Lv 23,15-16). Trata-se da festa de Pentecostes - cinqüenta

dias + um dia, período entre as comemorações da Páscoa, celebrada no dia 15 do

primeiro mês e Pentecostes, celebrado no terceiro mês68. A harmonia impregnada

nos textos de Dt 16,9-12 visa uma combinação de datas unindo as três

importantes festas religiosas celebradas em Israel.

Os eventos festivos tornaram-se ocasiões de rompimento com o cotidiano.

Neste sentido, não é em vão o convite: ^yh,ªl{a/ hw"hy> ynEp.li T'x.m;f'w> “e te alegrarás

diante de YHWH, teu Deus” (v.11a). A festa é nada mais do que uma ocasião de

desestruturar o cotidiano de modo controlado, com a finalidade de reconstruí-lo69.

No desejo de construir o novo, entrelaçam-se realidades religiosas e sociais. O

verso 11 é um destaque significativo, ao acentuar certa interação, envolvendo

YHWH, a família e demais grupos sociais. Apresenta uma interação entre o ser

divino e demais setores sociais. Na esfera familiar: tu, teu filho, tua filha; na

esfera social: teu servo, tua serva e o levita que vive entre tuas portas. Tal

analogia, envolvendo relações feitas na esfera do culto e do social, assinala que,

diante de Deus, prevalece o vínculo de irmandade70.

Há consenso entre os estudos que em época pos-exílica, a escola

deuteronomista71 teria concluída a redação de Dt 16,9-12. Possivelmente, na

68 Seguindo a narrativa de Ex 19,1 ocorre uma coincidência com a celebração da Aliança, quando do recebimento das normas devidas a Moisés. 69 Trata-se da correlação entre dois mundos distintos. É errôneo dizer que o rito religioso é algo que paira acima do universo social, de uma metalinguagem intocável. O sentido de criatividade busca uma reestruturação entre o divino, o indivíduo e sociedade. Cf. MARTINI, A., Rito e Crise da Modernidade, Mestrado no Departamento de Ciências da Religião, PUC-SP, 1995, pp.61-64. A palavra חג “festa” aparece quatro vezes ao longo dessa unidade: 16,10.13.15.16. 70 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 297. 71 A referência às três grandes festividades: Páscoa, Semanas ou Pentecostes e Cabanas ou Tabernáculos são festas relacionadas ao estilo nômade e agropastoril vivido por povos no Antigo Oriente. Não é difícil imaginar que a vida religiosa dos países limítrofes tenha influenciado calendários e ritos em Israel. De Vaux analisa rituais de sacrifícios mesopotâmicos, árabes e cananeus que, cedo, teriam influenciado ritos incorporados pela comunidade de Israel. Na comunidade de Qumran, a festa teve um momento de relativo sentido, sendo uma ocasião de celebrar a renovação da aliança. Já no judaísmo ortodoxo a festa das Semanas não se manteve como uma festa importante no calendário litúrgico. Não se encontra na Mishna nenhum tratado

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época do primeiro século a.C., há uma compreensão tardia, afirmando que a festa

das Semanas se identifica com a festa do dom da Tora72. Considerando a tradição

oral, que em nada diminui o seu significado festivo, após a comemoração da saída

do Egito, lembrada com a festa da Páscoa, momento em que Israel celebra seu

final histórico vivido sob o domínio egípcio, a festa das Semanas marca a entrada

de Israel sob o jugo divino, compreendido pelo dom da Torá, o livro por

excelência entregue a Moisés.

A festa das Semanas é a segunda do calendário, segundo Dt 1673. De

Vaux a considera a segunda festa de maior importância no calendário judaico74.

Trata-se de uma comemoração ligada ao universo agrícola, onde há um convite

para apresentar durante a festa uma oferta de caráter voluntário, conforme a

quantidade colhida, oriunda dos frutos provenientes da terra, a ser compartilhada

no local de culto escolhido em honra do nome de YHWH. Diferentemente do que

ocorria na festa da Páscoa, era ocasião de comer pães fermentados com trigos

vindos da primeira colheita na época.

Ao longo da narrativa de Dt 16,9-12, não há oponente. É um monólogo, de

cunho normativo, construído, tendo a palavra de YHWH como ponto central.

YHWH é identificado como um Deus pessoal da comunidade de Israel ^yh,(l{a/,

“teu Deus”, especificando um determinado tempo para que seu nome venha a ser

celebrado.

O substantivo גח , “festa”, em referência à festa das Cabanas, é utilizado

uma vez para descrever a segunda festa mais importante do calendário, celebrada

após as comemorações da Páscoa ou festa dos תוצמ , “pães ázimos”, (Nm 28,16-

17). A festa das Semanas, também celebrada em nome de YHWH, segue um

tempo fixado, após sete semanas depois do corte das primeiras espigas. Há um

consenso datando-a em meados do fim do mês de maio, começo de junho,

marcando o fim da colheita dos cereais.

que lhe faça referência. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, pp. 549-557. 72 CF. AVRIL, A.C.; La MAISONNEUVE, D., Les Fêtes Juives, Paris, Cerf, pp. 40-41. 73 A forma atual é o resultado de uma intensa elaboração envolvendo diferentes tradições e fases redacionais. Pode-se pensar que, no começo, havia um complexo legislativo profano (a atual secção casuística de Ex 21,12-22,6) e, mais tarde, o redator proto-deuteronomista elaborou pequenas unidades literárias, de conteúdo social e cultual, e as juntou às compilações profanas formando a estrutura básica do “código da aliança”. Cf. VICENT, R., La Fiesta Judía de las Cabañas (Sukkot), Interpretaciones midrásicas en la Bíblia y en el judaísmo antiguo, Navarra, Espana, 1995, p. 37. 74 Cf. DE VAUX, R, op. cit., p. 620.

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A determinação de ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; fazer uma “festa das semanas

para YHWH, teu Deus” (v.10a) é apresentada de modo muito claro e conciso,

passível de concluir que “o Código oferece a esta festa um significado

histórico”75. Ressalta-se ainda o uso do “hapax legomenon” תס מ 76 certificando

que se trata de um ato de plena generosidade77.

A festa tinha como meta, utilizando parte de uma oferta voluntária,

agradecer as bênçãos recebidas de YHWH (v. 10b). Não é por menos que se

encontra, por quatro vezes, referências à expressão ^yh,l{a/ hw"hy> “YHWH, teu

Deus”, (vv. 10a, 10b, 11a e 11d). De Vaux afirma que a característica da festa

constituía-se na oferta dos pães preparados com farinha nova e fermentados,

distinguindo-se, dessa forma, da festa da Páscoa que a antecedia78. A festividade

é motivo de alegria para todos os membros da comunidade. Dela ninguém pode se

esquivar. Aqui, a narrativa retoma o ideal de se alegrar diante de YHWH, num

local determinado com o propósito de fixar para sempre o nome do Deus de

Israel. O versículo retoma o ideal de se celebrar com toda a família, já citado em

outra parte do livro (12,7.12.18).

Mais do que uma lembrança dos anos vividos como escravos, a narrativa

faz uma comparação entre os v.11 e o v.12. Os grupos sociais formados pelos

escravos, servas, órfãos, viúvas, estrangeiros refletem a antiga realidade, outrora

vivenciada pela comunidade em terras egípcias. E, diante desta realidade, Israel é

convidado a observar e praticar as ordens de YHWH.

Realizada no interior de uma sociedade essencialmente agrícola, a festa era

ocasião de promover uma forte interatividade social, considerando a ênfase na

narrativa no uso da expressão ^yh,ªl{a/ hw"hy> ynEp.li T'x.m;f'w “E te alegrarás diante de

YHWH, teu Deus” (v. 11a). A época festiva era uma ocasião que extrapola a

esfera familiar. Eis o lado humanitário dos preceitos a serem cumpridos (v.12b).

Pela ocasião dos festejos, os grupos – por sinal, bem especificados na narrativa –

que se encontram fora da esfera familiar (servo, serva, levita, estrangeiro, órfão e

viúva) têm acesso garantido, pela ocasião da festa. Trata-se de saber onde estaria o

motivo legitimador para tais grupos sociais participarem, em condições iguais, da

75 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, op. cit. p. 265. 76 Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised, op. cit. p. 342. 77 Cf. ZORELL, F., תס מ . In: Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti, Fasc. 1-9, Roma, Pontificium Institutum Biblicum, 1968, p. 451. 78 Cf. DE VAUX, R. Instituciones del Antigo Testamento, op. cit., p. 620.

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festividade. Trata-se de uma festividade muito bem datada e realizada durante a

colheita do trigo, como bem especificam os textos de Ex 34,22; Gn 30,14; Jz

15,1. Uma festa tipicamente agrícola, na qual a primeira colheita deve ser

entregue num determinado local para, aí, ser celebrado o nome de YHWH,

seguindo os costumes locais e, marcando o ritual, por meio de uma doação de

caráter estritamente voluntário.

O caráter social da festa das Semanas aparece no registro que considera o

universo social representado pelo estrangeiro, o órfão e a viúva (v. 11),

extrapolando, assim, o âmbito meramente familiar. As bênçãos recebidas devem

ser partilhadas com os grupos sociais desfavorecidos que se assemelham à

realidade vivenciada por Israel, em terra do Egito (v. 12a).

A conclusão da unidade exige uma abordagem mais de cunho

comparativo, uma vez que aí se encontra o uso do verbo רכ ז “recordar”79, no qal,

remetendo à experiência vivida pelos antepassados em terras egípcias. O gesto de

manter a memória é de intenso significado à comunidade religiosa. Aqui,

compreendido em relação às três festas de peregrinação, a memória dos anos

vividos como escravos no Egito, bem como os gestos maravilhosos feitos por

YHWH em beneficio de Israel não devem passar ao esquecimento (Cf. Ex 15,15;

16,12; 24,18.22)”80. É um detalhe acentuado pelo uso da partícula explicativa yKi “pois, porque, de modo que”, seguida do substantivo db,[, “escravo, servo”, dando

um caráter contemplativo ao texto. Contemplar o quê? Eis um apelo por demais

significativo para ter como respaldo a ordem de hL,aeh' ~yQIßxuh;-ta, t'yfiê['w> T"r>m;v'w>

“observarás e executarás esses decretos”, (v. 12b). O termo hL,aeh' ~yQIxuh; “esses

decretos”, referenda todo o conjunto de normas entregues por YHWH81. Eis o

motivo da narrativa referir-se ao termo unindo as duas realidades.

Israel não pode mais voltar à condição de escravo, porque já fora libertado

por YHWH. Agora, a condição de liberdade inside numa praticidade evocada na

lei: recordar os tempos vividos sob o regime escravagista, nas terras do Egito e

viver o ideal de partilha entre todos, gesto por demais reforçado na narrativa: “tu,

teu filho, tua filha, teu escravo, tua escrava, o levita...o estrangeiro, o órfão e a

79Há uma considerável série de significados ao verbo רכ ז : recordar, trazer à mente, rememorar. Em Dt 16,12a, a modalidade, mediante a partícula explicativa כי, refere-se ao passado, aos anos vividos como escravo, servo no Egito.Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 192. 80 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio – Introducción y comentario, op. cit., p. 280. 81 Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised, op. cit., p.343.

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viúva” (v.11). O propósito principal referendado pela lei é o de assegurar à

comunidade uma condição de equidade entre todos. Por este motivo, não é difícil

justificar e associar os setores desvalidos da sociedade na participação das

festividades. A ocasião de celebrar encontra seu sentido último, não no passado,

mas no presente.

3.4. Os pobres são lembrados durante a colheita: Dt 24,17-22

Dt 24,17-21 se insere num contexto literário em que é possível verificar

uma série de leis relativas às diferentes situações da vida e aspectos da ética

cotidiana, vivenciados no interior da comunidade de Israel. Para Kramer82 os

capítulos 21-25 são partes das leis complementares referentes aos seis últimos

mandamentos, relacionados da seguinte forma: quinto (5,17 = 19,1-21,23), sexto

(5,18 = 22,13-23,15), sétimo (5,19 = 23,16-24,7), oitavo (5,20 = 24,8-25,4), nono

(5,21a = 25,5-12), décimo (5,21b- 25,13-16). Renunciando ao aspecto da

complementaridade, outros estudos realçam um conjunto de inúmeras leis

humanitárias, já, há muito, presentes no Antigo Oriente, retomadas pelos autores

bíblicos, demonstrando o poderio do javismo e seu desejo por uma equidade

social83.

O processo redacional evidencia, a partir da redação final do livro, um

Israel, numa época de plena ocupação da terra, tendo ao seu dispor um amplo e

emaranhado arcabouço jurídico84, em que a defesa dos grupos desfavorecidos,

82Cf. KRAMER, P. Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, op. cit., pp. 106-107. 83Pode-se falar que houve por partes dos autores do Código Deuteronômico, uma “interpretação das antigas tradições” utilizadas para expressar o poderio e responsabilidade dos monarcas pela manutenção da igualdade social nos limites de sua autoridade legal. Em se tratando de Israel a supremacia será sempre de YHWH. Cf. BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, pp. 80-82; WEINFELD, M., The Origin of the humanism in Deuteronomy. In: JBL 80, 1962, pp. 241-247. Bouzon fala de uma “grande semelhança temática” entre direito antigo e os códigos bíblicos. Cf. BOUZON, E., Escravidão e dívidas na legislação cuneiforme e seus reflexos na legislação do Antigo Israel. In: CADMO 8/9, 1998-1999, pp. 29-48. 84Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio,op. cit., pp. 327-328. O realce dado ao tema da “centralização do culto” reflete uma provável localização histórica, surgida durante a primeira reforma religiosa, de que se tem notícia no Antigo Israel com forte caráter centralizador na época de Ezequias (725-697 a.C.). O aspecto de centralidade cultual é um tema caro ao Deuteronômio (14,22-27; 16,1-8.9;17,8-13) que, de certo modo, trouxe consigo outras leis, provenientes do ambiente tribal, como o cuidado dispensado ao estrangeiro, levita, órfão e a viúva. De Ezequias, passando pela reforma de Josias (622 a.C), o Código Deuteronômico foi relido diante dos acontecimentos históricos, no exílio e pós-exílio. Ao comentá-la, Braulik destaca sete fases históricas. BRAULIK, G. O livro do

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citada quatro vezes na perícope (v. 17a-b, v.19e, 20d, 21d), encontra-se em

evidência considerando os séculos vividos na condição de escravo no Egito e a

primazia da Lei, como meio de identificação entre Israel e YHWH. As duas

realidades – ~yIr;c.mi, “Egito”, e הו צ מ “mandamento”, – foram preponderantes na

função de fornecer critérios à vida social de Israel. O Egito será associado à terra

da escravidão, recebendo forte e acentuada conotação ideológica (Ex 5,12-13;

12,17; 13,3. 20,2). Marca uma etapa histórica em que Israel viveu como

estrangeiro, e por isso deve prestar solidariedade aos estrangeiros em meio à

comunidade (vv. 18a. 22a). De Ezequias, passando pela reforma de Josias (622

a.C), o Código Deuteronômico foi sendo relido diante dos acontecimentos

históricos, no exílio e pós-exílio85.

O cumprimento da Lei, entendida pela fórmula hZ<h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;

“praticar esta palavra”, (v.18c.22b), é o meio pelo qual Israel encontra sua

identidade e respaldo para manter a equidade social, apresentada como vontade

divina. Assim, pode-se definir que a experiência do Êxodo somada à da aliança

firmada com YHWH, formam uma unidade indissolúvel86.

3.4.1. Dt 24,17-22: tradução, aspectos filológicos e variantes

Não farás desviar o direito do

estrangeiro [do] órfão

17a ~Aty" rGE jP;v.mi hJ,t; al{

e não tomarás como penhor a

roupa da viúva.

17b `hn"m'l.a; dg<B< lbox]t; al{w>

Tu te lembrarás que escravo foste no Egito

18a ~yIr:c.miB. t'yyIh' db,[, yKi T'r>k;z"w>

e te libertou YHWH, teu Deus, de

lá.

18b ~V'mi ^yh,Þl{a/ hw"hy> ^D>p.YIw:

Eis porque eu mesmo te ordeno

praticar esta palavra.

18c `hZ<h; rb"D"h;-ta, tAfê[]l; ^W>c;m. ykinOa' !Ke-l[;

Quando colheres a tua colheita no teu campo

19a ^d<f'b. ^r>yci(q. rcoq.ti yKi

Deuteronômio. In VV.AA., Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2003, pp.104-107. 85 Cf. Ibidem. 86 Cf. SÁNCHEZ, E., op. cit., p. 349.

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e esqueceres um feixe no campo 19c hd<F'B; rm[o T'x.k;v'w>

não voltarás para pegá-lo. 19d ATêx.q;l. bWvt' al{Ü

Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será.

19e hy<+h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;

Deste modo, te abençoará YHWH, teu Deus, em toda obra de tuas mãos.

19f ![;m;Ûl.

`^yd<y" hfe[]m; lkoB. ^yh,êl{a/ hw"hy> ^k.r<b'y>

Quando varejares tua oliveira, 20a êt.yzE jBox.t; yKiÛ

não repassarás [os ramos que ficaram] atrás de ti.

20c ^yr<x]a; raEp't. al{

Para o estrangeiro, para o órfão e

para a viúva será.

20d `hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;

Quando colheres a tua vinha 21a êm.r>K; ‘rcob.ti yKiÛ

não farás rebuscar [a vinha que ficou] atrás de ti.

21c ^yr<x]a; lleA[t. al{

Para o estrangeiro, para o órfão e

para a viúva será.

21d `hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;

Tu te lembrarás que escravo foste

na terra do Egito.

22a ~yIr"c.mi #r<a,B. t'yyIh' db,[,î-yKi T'r>k;z"w>

Eis porque, eu te ordeno praticar esta palavra.

22b `hZ<)h; rb"D"h;-ta, tAf[]l; ^W>c;m. ykinOa' !Ke-l[;

Duas observações são realces no v. 17. A primeira, trata de saber se

somente a frase rGE jP;v.mi hJ,êt; al{ “Não farás violar o direito do estrangeiro”, (v.

17a), não seria a parte original do versículo, uma vez que o v. 17b, hn"m'l.a; dg<B<

lbox]t; al{w> "e não tomará como penhor a roupa da viúva", foi retirado em outros

manuscritos. Caso isto tenha ocorrido, estamos diante de uma variante. A correção

se justifica mediante a comparação do TM com narrativas mais antigas87. Nota-se

que, do ponto de vista gramatical, a frase se escreveria "estrangeiro órfão", (órfão

com função de adjetivo). Desta forma, encontra-se um outro subgrupo, entre os

demais, formado pela categoria "estrangeiro órfão". Algumas traduções adotam

por variante o substantivo órfão, com o uso do wav coordenativo. O TM não

apresenta o waw coordenativo - delendum fortasse – e não se encontram motivos

87 As diferenças, ainda que pequenas, são de grafias e incapazes de apresentar uma variante significativa. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 21,10-34,12. In: WBC, Vol. 6b, pp. 594-595.

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para propor uma alteração diferente das outras citações encontradas no livro.

Assim, opta-se pela mesma ordem "estrangeiro, órfão e viúva".

Uma segunda nuância imposta ao texto refere se à expressão ~Aty" “órfão”,

prefixada com a conjunção ו, conforme se verifica na versão da LXX, na Versão

Siríaca, nos manuscritos do Targum Pseudo-Jônatas e na Vulgata e, não

simplesmente ~Aty", como grafa o TM. Em uma recensão da LXX, feita por

Orígenes, pode-se verificar certo óbelo no uso do termo kai. ch,raj, “e da viúva”,

como em 27,19. Tais observações se justificam ao verificar que, nas outras três

citações à trilogia social, no TM, usa-se a preposição ל “para”, identificando os

respectivos substantivos, como se encontram nos versos 19e, 20d, 21d: hn"m'l.a;l'w>

~AtY"l; rGEl; “para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva”, harmonizando a

narrativa e comprovando a existência de diferença no aspecto da grafia, mas não

uma variante. Opta-se por manter a narração do TM, considerando as pequenas

omissões de estilo gráfico.

No v.18a encontra-se uma especificação no tocante ao Egito, em alguns

poucos manuscritos hebraicos, na recensão da LXX feita por Orígenes de

Alexandria e no Targum Pseudo-Jônatas, como sendo "a terra" da servidão. Tais

manuscritos grafam יםר ארץ מצ ב “na terra do Egito”. Constata-se um acréscimo,

por meio do uso da preposição, acompanhada pelo substantivo terra. A segunda

observação é referente ao termo ~V'mi “de lá”. Ausência ocorrida no manuscrito

hebraico e no Pentateuco Samaritano, mas mantida no TM. Pode-se bem verificar

a compensação feita pelo TM ao acrescentar ~V'mi “de lá” omitido na LXX, em

relação à especificação “terra do Egito”. O acréscimo ocorrido no TM corrige a

ausência da expressão ארץב “na terra”.

No versículo v.19 há quatro observações a serem consideradas: a primeira

se refere ao uso da forma verbal ATx.q;l. “para pegá-lo”. Em seu lugar, usa-se o

substantivo ן יו ב א ל , “para o pobre”, semelhante ao termo grego: tw/| ptwcw/| kai. “e

para o pobre”. Esta incidência é atestada pela tradição do texto grego da LXX –

exceto para os cursivos do Códice Vaticano e, na recensão de Orígenes na LXX -

preferindo a eliminação do verbo pegar ao termo pobre. Na versão da LXX,

surge um quarto grupo, pela ordem: tw/| ptwcw/| kai. tw/| proshlu,tw| kai. tw/|

ovrfanw/| kai. th/| ch,ra| e;stai, "para o pobre, para o prosélito, para o órfão e para a

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viúva será". Verifica-se que a diferença não ocorre em outros manuscritos, o que

inviabiliza uma variante ao TM.

Uma segunda observação refere-se ao uso da conjunção ו “e” antecedendo

o termo ~AtïY"l ;, “para o órfão”. O uso da conjunção ocorre em dois manuscritos

hebraicos medievais, na Septuaginta, na versão Siríaca e na Vulgata. A terceira

ocorrência aparece no uso da conjunção ו “e” omitida diante da preposição ל

diante do termo hn"m'l.a;l'> “para a viúva”, como registra um manuscrito hebraico

medieval e o códice da LXX. A omissão é encontrada também no v. 20. Essa

diferença é encontrada em algumas leituras do códice manuscrito hebraico 9 e em

muitos manuscritos hebraicos medievais. Um outro marco no texto, que não chega

a propor divergências significativas ao conteúdo exposto na versão massorética, é

a leitura do termo ידך, “tua mão”, no singular, contra a forma ידיך, “tuas mãos”,

no plural, como usa o TM.

No v. 20, três observações são registradas: a primeira refere-se ao uso do

termo tw/| ptwcw/| kai., “e para o pobre”, encontrada no Códice Freer menor, do

século V. Trata-se de uma retroversão do termo לאביון, “para o pobre”, conforme

ocorre no v.19. Também poucos manuscritos da Septuaginta, da versão Siríaca e

dos manuscritos da Vulgata registram a leitura םתוי ל ו “e para o órfão”, variando

no emprego da conjunção ו, ausente no TM. Uma última observação ocorre no v.

20 referindo-se, novamente, ao uso da preposição ל “para”, omitindo a conjunção

como bem grafa o TM. Notam-se três diferentes grafias incapazes de sustentar ,ו

uma variante e que, de modo algum, deixam transparecer mudanças significativas

ou interpretações divergentes do TM.

As variações do v. 21a assemelha-se à do v. 20a. Ambas omitem o termo

^yr<x]a;, “atrás de ti” e acrescentam tw/| ptwcw/| kai. “e para o pobre”, como registra

o Códice Freer menor, ao utilizar-se de uma retroversão. A segunda variante

consta da tradução do texto grego da LXX e do Siríaco, colocando, antes, a

conjunção ו. Estas duas variantes ocorridas no v. 21 podem ser consideradas sem

importância. Vê-se que a forma gramatical usada na versão massorética

possibilitou mais clareza e objetividade ao texto.

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3.4.2. Delimitação, composição e estrutura

A delimitação do texto pode ser feita com base nas quatro passagens que

mencionam a defesa do estrangeiro, do órfão e da viúva (vv. 17b, 19e, 20d, 21d).

As repetições acenam para a unidade na narrativa em Dt 24,17-22. Tal círculo

narrativo pode ser conferido por meio de costumes e hábitos referentes à prática

do divórcio e medidas de proteção ao indivíduo (24,1-4. 8-9). Os apelos são

apresentados com ênfase na manutenção da integridade física da pessoa e no

desejo de praticar a justiça diante de YHWH. A defesa dos grupos desfavorecidos

e dos fracos (Cf. Dt 14,29; 16,11.14) apresenta o papel do juiz, mediador de

pequenos conflitos existentes nas relações internas dos grupos, sendo o grifo a

relação com um ser divino.

O corte delimitando o princípio e o fim da perícope é assinalado a partir do

v. 17 ao v. 22. Neles, encontram-se três temas em questão: não perverter a prática

do direito diante dos grupos socialmente frágeis (vv. 17.19.20); a lembrança dos

anos vividos no Egito (vv. 18a.22a) e o convite para fazer cumprir a palavra

ordenada por YHWH (vv. 18c. 22b).

Nota-se a insistência para que a prática do direito seja mantida. Os grupos

são utilizados como ícones na administração da justiça, por representarem as

camadas mais pobres da vida social. As leis têm como objetivo último estabelecer

a igualdade numa terra não pertencente a Israel, mas a YHWH e, em torno desses

grupos, centra-se a narrativa. Escolhe-se a tradição do Egito (vv.17-22), para

compreender a estrutura concêntrica na narrativa que retoma diretamente a defesa

dos grupos marginais. Pode-se formar a seguinte estrutura:

A Não desviar o direito (17a)

B Tu te lembrarás que escravo foste no Egito (18a-18b)

C Quando tu colheres a colheita no teu campo (19) ↔ hn"m'l.a;l'w>

~AtY"l; rGEl;

D Quando varejares tua colheita (20) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;

C` Quando colheres a tua vinha (21) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;

B` Tu te lembrarás que escravo foste no Egito (22)

A` Ordeno a praticar esta palava (22b)

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A lembrança da experiência do Egito é emoldura pela ordem de não

desviar o direito e praticar a palavra88. As referências ao tempo vivido no Egito

emolduram as três distintas realidades sociais, e três ocasiões de garantir meios de

vida para os pobres. Não ocorre nenhum desajuste na narrativa; pelo contrário, a

norma jurídica é evidente, ao impor práticas voltadas à defesa dos grupos

desfavorecidos, como base no estilo metafórico, evidenciando que o sofrimento

vivido na terra do Egito – o sofrimento do passado – não pode ser imposto no

momento presente. A estrutura concêntrica se forma citando os três mais

importantes gêneros agrícolas responsáveis pela sustentação econômica de Israel:

cereal, azeite e vinha.

Os vv. 19-21 comportam um estilo redacional de cunho jurídico. Trata-se

da forma evidente, comum no universo literário jurídico e, por este motivo, é de

fácil e rápida compreensão.

Observa-se, ainda, relativa importância no uso da partícula de negação לא,

“não”, cinco vezes assinalada no texto (vv. 17, 17a. 18b. 20a. 21a); o uso dos

verbos indicando o gesto a ser evitado, grafado sempre no imperfeito: “farás

violar” (v. 17a), “tomarás o penhor” (v.17b), “voltarás para pegá-lo” (v. 19a),

“repassarás os [ramos]” (v. 20a), “farás rebuscar” (v. 21a) e os substantivos

acusativos indicados após os verbos que impõem uma relação de causa e efeito,

isto é, uma determinada ação deve ser realizada em determinado contexto

beneficiando um grupo específico. Tais elementos definem a existência de um

mandamento formando este bloco temático, tendo como eixo a prática do não

roubar ou violar bens pertencentes a outros.

3.4.3. Comentário e análise semântica

Dt 24,17-22 constitui um texto de estilo legislativo. No interior desse

conjunto de normas verificam-se duas grandes tradições que guardam meios para

garantir a subsistência da família ligada aos trabalhos do campo. Na primeira, o

texto retoma a antiga tradição oriunda da saída das terras egípcias: a experiência

do êxodo. A outra se refere ao hábito de garantir os modos e os meios essenciais

88 Christensen opta pela centralidade priorizando os grupos sociais. Na centralidade da estrutura está o v. 19b: “Deste modo, YHWH, teu Deus, te abençoará em toda obra de tuas mãos”. Cf. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21,10-34,12, op. cit., p. 596.

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para a sobrevivência do outro: o tribalismo. Essas duas tradições, oriundas da

origem do povo de Israel, vigoram em inúmeras narrativas bíblicas89. São, aqui,

atualizadas e harmonizadas tradições num esforço de superação dos desafios

sociais marcantes, como se pode perceber no uso das expressões "quando tu

colheres......não.....para o estrangeiro.....". Ocorre uma relação de causa e efeito,

para evitar que aconteça um possível desvio da prática do direito. Há como

certificar-se dessas duas tradições presentes na narrativa90. Afinal, o êxodo

tornou-se paradigmático no processo de redação dos textos bíblicos, chegando a

estar no lugar de tantos outros êxodos.

Embora antiquíssimas, elas continuam dando sentido às normas tardias da

vida comunitária em Israel. Crê-se que não é à revelia que a tradição do êxodo

forme a moldura estrutural na narrativa, como se nota nas duas citações diretas à

tradição. A ênfase é dada por vontade do próprio YHWH: hZ<)h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;

^W>c;m. ykinOa', “te ordeno agir conforme esta palavra” (vv. 18b. 22b). Esta ordem

adquire sentido quando se considera o uso da partícula !Ke-l[;, “eis porque, por

isso”, levando a agir conforme o proposto por YHWH. Existe uma relação de

causa e efeito entre a lembrança do fato de ~yIr:c.miB. t'yyIh' db,[,, “escravo foste no

Egito”, (vv. 18a. 22a) e a ordem hZ<h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;, “agir conforme esta

palavra”, (vv. 18b. 22b).

Não é difícil de perceber a presença de uma tradição tribal no conjunto

dessas normas, e não é por acaso. Foi um projeto forjado em meio às vicissitudes

de ocupação das terras de Canaã91. Neste ponto, é necessário buscar um motivo

89Percebe-se que a defesa dos grupos desfavorecidos se faz considerando os grandes feitos de YHWH em prol de seu povo escolhido. Os episódios do êxodo, visto como fuga ou saída, é retomado ao longo de toda história de Israel. Do Egito para a terra prometida, a comunidade tem a oportunidade de criar novas relações sociais e novos vínculos éticos que defendem a sobrevivência dos clãs. Cf. GOTTWALD, N., As Tribos de YHWH. Uma sociologia da religião do Israel liberto 1250-1050 a.C., São Paulo, Paulinas, 1986, pp. 102-114. 90 Sobre a importância das tradições a literatura é vastíssima. Cf. BLENKINSOPP, J. El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, pp. 176-234. Estudos priorizam a experiência em terras egípcias de tal importância que chegam a migrar para textos litúrgicos. “A experiência do êxodo se confessa liturgicamente em um dos textos mais antigos das Escrituras: Dt 6,20-25. Cf. FERNÁNDES, P. J. T., “Un proyecto de solidaridad, justicia social y resistencia. Um estúdio a partir de Deuteronomio 15,1-18. In KAEFER, J. A. e JARSCHEL, H., (Orgs.), Dimensões Sociais da Fé do Antigo Israel, São Paulo, Paulinas, 2007, pp.53-67. 91 Este assunto é por demais caro nos estudos sobre a história da ocupação das terras de Canaã, independente do viés hermenêutico empreendido. Cf. BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, pp. 78-80. Sabe-se que a redação do Código Deuteronômico ocorreu numa época em que Israel, reino rival de Judá, não existia como nação por mais de um século. Tais mudanças no cenário geopolítico serão amplamente compreendidas pelos autores. Perspectiva endossada por

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para relacionar às épocas das colheitas, e o resultado das suas produções, com a

sustentabilidade física das pessoas ou grupos desfavorecidos. Por qual motivo

relacionar os bens da produção agrícola com grupos socialmente desfavorecidos,

como estampam as leis deuteronômicas? A resposta não pode vir a não ser de

algum fato histórico bem determinado.

“Tudo isso mostra como o Código Deuteronômico está próximo da realidade agrícola da Idade do Ferro e, de certa forma, interpreta esta realidade. A riqueza da produção agrícola é uma expressão das experiências fundamentais com o Deus de Israel. O êxodo e a dádiva da terra, como experiências constitutivas da relação com Deus, manifestam-se na liberdade jurídica, política e social dos agricultores israelitas em suas terras”92.

Neste aspecto, opta-se pelas experiências anteriormente vividas em terras

de Canaã, no período pré-estatal, quando Israel buscava compor-se como uma

nação independente. Israel não nasceu como uma cidade-estado, mas vivenciou

um período tribal, em que a preocupação com a sustentação física de seus

membros foi, frequentemente, uma meta. Kramer argumenta que tais leis foram

criadas para fortalecer, intensificar e institucionalizar as relações de partilha, de

solidariedade e fraternidade/irmandade, na realidade socioeconômica do povo

israelita93. Nota-se que o teor das leis visa transformar “o povo de Israel numa

sociedade de irmãos/irmãs ou no povo santo de YHWH”94.

Pela partícula negativa al{ “não”, no v.17a, inaugura-se um aspecto

imperativo diante do conjunto de leis em defesa da manutenção do direito aos

grupos sociais desfavorecidos, representados pelos estrangeiro, o órfão e a viúva.

Trata-se que, em hipótese alguma, deve acontecer a negação da prática do direito.

Tal alerta é sustentado pela referência ao Egito e pela observância do

mandamento.

No conjunto da narrativa, nota-se a existência de um conjunto de leis

voltado para garantir o jP;Þv.mi “direito”, dos grupos socialmente desprotegidos e

dele merecedores. Verifica-se que o termo não é citado aleatoriamente. A

Crüsemann: "O mais antigo indício de prescrições divinas, em forma escrita, encontra-se em Oséias, portanto no Reino do Norte em Israel, no séc. VIII aC. Os 8,12 é parte integrante da composição de Os 8,1-14, que inicia com o som da trombeta diante dos inimigos perigosos (8,13b). A clamorosa reação de Israel (8,2) é desmascarada como "enganosa". Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo Testamento,op. cit., p.36. 92 Cf. Ibidem, p. 316. 93 Cf. KRAMER, P. Origem e Legislação do Deuteronômio, p. 90. 94 Cf. Ibidem, p. 87.

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evidência está no uso do verbo hj'n", "desviar, afastar, torcer"95. A forma da

segunda pessoa do hifil, no imperfeito, coloca em observação um aspecto ético96

diante do não cumprimento da lei impondo parâmetros e limites durante a

realização da colheita97. No Código da Aliança (Ex 23,2.6) a referência é

explicita: não se deve ter a mínina intenção de "perverter, desviar" os rumos do

direito dos pobres e operários. O ato de burlar o direito é violentamente

condenado na pregação profética98 (Is 10,1-4; 5,25; 9,11.16.20; Am 2,7.8; 5.12).

Em Dt 24,17-21 o modo insistente pela busca da prática do direito é

apresentado de maneira entrelaçada às outras esferas da vida cotidiana. Agir com

base na prática do direito implica a lembrança dos tempos vividos no Egito (v.

18a, 22a) e na disposição em agir conforme a palavra (vv. 18b, 22b). Fica evidente

que agir com base no direito implica uma malha de outras atitudes a serem

executadas, cujo fim último é agradar a YHWH e, consequentemente, os membros

da comunidade. Os vv.19-22 retomam antigos costumes tribais, priorizando não a

ética individual, mas os grupos familiares. As colheitas anuais são vistas como

oportunidade no restabelecimento, não da igualdade, mas da garantia de que os

produtos da terra, como vinho, azeite e cereais fossem fundamentais na

sustentação dos grupos mais pobres.

Kramer destaca inúmeras semelhanças no uso do binômio jP;Þv.mi “direito”,

e הק ד צ , “justiça retidão”, com os textos da profecia de Ezequiel. Para ele, ocorrem

tantas similitudes que chega a propor total dependência literária de Dt 24,10-18

das afirmações expostas em Ez 18,5-2099. O binômio não se sustenta diante da

argumentação de Krašovec100, para quem o termo הק ד צ , "justiça", sempre teve,

desde os antigos códigos até sua compreensão na Bíblia Hebraica, uma

interpretação unilateral.

95 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 432. 96 Cf. Ibidem. 97 No hifil o verbo ocorre 77 vezes no AT. Cf. LISOWSKY, G., Konkordanz zum Hebräischen Anten Testament, pp. 922-923. 98 "O 'ai' (hōy) típico dos rituais fúnebres normalmente é usado com relação às pessoas mortas. Aqui, no entanto, é entoado diante de pessoas que, através da escrita, causam desgraças com procedimentos legais". Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo, p. 40. 99 Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, op. cit. p. 171. 100 Cf. KRAŠOVEC, J., La justice (ṣdq) de Dieu dans la Bible Hébraïque et l`interprétation juive et chrétienne, Freiburg Scheweiz, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1988, pp. 47-58.

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Crê-se que o aspecto mais adequado no contexto de Dt 24,17-22 seja o uso

desse termo técnico no cenário jurídico apresentando critérios balisadores nas

relações pessoais. Este contexto facilita compreender a relação entre a prática da

colheita e o ato de respigá-la, hábito garantido aos grupos socialmente

desfavorecidos. Agir com base no direito é um atributo do ser divino e,

consequentemente, implica o comportamento humano. Nesta interação entre o

atributo divino, que age, tendo o direito como princípio, a instauração do direito

passa necessariamente pelo processo de garantir a sustentabilidade dos pobres. No

texto percebe-se tal prolongamento no critério que deve nortear as épocas da

colheita.

Estão presentes, também, no texto duas referências ao Egito. Há duas

distintas citações: ~yIr:c.miB. t'yyIh' db,[, yKiä, “que escravo foste no Egito”, (v. 18a) e

um acréscimo no v. 22a: ~yIr"c.mi #r<a,B. t'yyIh' db,[,-yKi T'êr>k;z"w>, “lembrarás que escravo

foste na terra do Egito”, (v. 22a). Salvo o acréscimo do termo #r<a,B., “na terra”, o

local de sofrimento é marcado, tendo como referência, o Egito101. Dessa realidade,

Israel foi libertada pela mãos de YHWH. O verbo hd'P' "resgatar, redimir,

libertar"102, no qal, realça a ação ativa da divindade. Considerando o contexto do

uso desse verbo Nelson103 salienta que "a expressão 'te libertou (pādâ) YHWH,

teu Deus, de lá' é, virtualmente uma pequena profissão de fé com as implicações

do poder e justiça social". No livro do Dt há seis referências ao uso do verbo hd'P'

(Dt 7,8; 9,26; 13,6; 15,15; 21,8; 24,18), sendo que, em todas elas, há uma

explícita analogia envolvendo o gesto de YHWH em prol de Israel, e a terra da

escravidão, o Egito.

O narrador atualiza o sofrimento de épocas passadas com o momento

histórico atual, vivenciado pela comunidade; daí se pode compreender a defesa

dos grupos socialmente pobres com a condição dos filhos de Israel, outrora vivida

no Egito.

101 “A intervenção de Yhwh na história é considerada – evitando-se ou reduzindo-se, em consequencia, outros modelos tradicionais – a partir de um único modelo, ou seja, o modelo do auxílio prestado em uma situação de calamidade em vista da lamentação cultual”. Cf. LOHFINK, N., Grandes manchetes de ontem e de hoje. São Paulo, Paulinas, 1984, p. 104. 102 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P. p. 529. 103 Cf. NELSON, R. D., Deuteronomy: a commentary, op. ct., p. 292.

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O ~yIr"+c.mi, “Egito” evoca o local, por excelência, do êxodo104. Mas não é

difícil afirmar também as múltiplas interpretações, ao se relacionar o país do Egito

com os filhos dos hebreus. Já no II milênio a.C., durante a idade do ferro, os

egípcios se vêem diante de um grupo de pessoas de característica nômade,

formado por escravos sazonais e mercenários, provavelmente chamados Hapirus,

participando das construções situadas na região leste do Delta do Nilo, onde são

edificadas as pirâmides de Piton e Ramsés (Ex 1,11)105. Mais tarde, os patriarcas

Abraão e José se vêem no Egito, como se fosse preciso que a afirmação de uma

aliança divina devesse passar necessariamente pelo relacionamento com a figura

emblemática do Faraó. A saga de Moisés irá imprimir um caráter definitivo aos

egípcios como eternos inimigos dos hebreus. Neste contexto de violência e

opressão, ocorre o conhecimento do Deus YHWH pelos hebreus.

São leis oriundas dos mais diferentes espaços sociais e tradições literárias

que as tornam impossíveis de serem fidedignamente identificadas, devido às

inúmeras repetições e releituras feitas durante os séculos em que as tradições

circularam, até o estágio final da redação do livro.

Antigas tradições são reutilizadas pelo narrador de Dt 24,17-22, numa

abordagem fortemente negativa servindo de motivação na aproximação entre os

membros do povo de Israel. YHWH é entendido como um Deus pessoal dos

hebreus, após a experiência de fuga do Egito. Não é difícil perceber que a

consciência religiosa de pertença a uma experiência comunitária é força

aglutinadora na identidade social, pela qual o dever de cuidar do irmão é retomado

como lembrança dos tempos de penúria.

3.5. A não transgressão é o meio para um mundo estável: Dt 26,12-15

O capítulo 26 conclui o Código Deuteronômico. Este pode ser divido em

três distintos grupos temáticos: a) a importância com as primícias colhidas (vv. 1-

104 Trata-se de um evento de dimensões incomparáveis na literatura do Antigo Testamento. Cf. ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p. 31. 105 Na opinião de Boyer, as narrativas bíblicas realçam um tempo de pleno intercâmbio entre egípcios e hebreus. Os hebreus chegam a ocupar lugares de relevo na sociedade egípcia, tornando-se proprietários fecundos e merecedores de certa ascensão social. Cf. BOYER, F., Quand Israël rencontre Pharaon. In: LMB hors série, 2006, pp. 40-41. Ver também as afirmações de Bennett ao relacionar as teses de N. Gottwald e E. Tamez na identificação do período de opressão que antecedeu o movimento do êxodo. Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, op. cit., pp.108-110.

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11); b) o destino do dízimo e seus aspectos religiosos e sociais (vv. 12-15); c) o

desejo de realizar plenamente a aliança contraída com YHWH (vv. 16-19)106. A

narrativa de cunho eminentemente litúrgico, retoma leis já apresentadas em outras

partes do livro (Dt 18,4; 14,28-29), reafirmando os aspectos humanitários que

devem ocorrer durante a ocasião da oferta do dízimo trienal.

3.5.1. Dt 26,12-15: tradução, aspectos filológicos e variantes

Quando tiveres terminado de separar

toda a décima parte de tua colheita, no

terceiro ano, a décima parte,

12a rfe[.l; hL,k;t. יכ

hn"V'B ^t.a'WbT .rf:[.m;- lK'-ta,;

rfE[]M;h; tn:v. tviyliV.h

darás para o levita, para o

estrangeiro, para o órfão e para a viúva.

12b ywILel; hT'ät;n"w>

hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;

Eles comerão, em tuas portas,

fartar-se-ão.

12c ^yr<Þ['v.bi Wlk.a'w>

`W[be(f'w>

Dirás diante de YHWH, teu Deus: 13a ^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'r>m;a'w>

separei o que é consagrado da minha casa 13b tyIB;ªh;-!mi vd<Qoåh; yTir>[:ôBi

e também

o dei para o levita e para o estrangeiro,

para o órfão e para a viúva

13c ~g:w>

ywILel; wyTit;n>

hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;w>

conforme teu mandamento,

que me mandaste.

13d ^t.w"c.mi-lk'K.

ynIt"yWIci rv<a]

Não transgredi nenhum dos teus

mandamentos

13e ^yt,wOc.Mimi yTir>b:['-al{

106 Verifica-se a presença de antigas normas sociais recolhidas e que, uma vez agrupadas, oferecem estilo, ritmo e coesão à composição. Predomina um estilo de espiral ao compor a narrativa, onde temas citados anteriormente são retomados oferecendo um estilo original ao livro, como acontece no discurso de abertura: “Quando entrares na terra que YHWH, teu Deus te dará como herança” (v. 1), aqui, retomada, mas já citado em outras partes do livro (6,10; 7,1; 11,29; 17;14; 18,2). Verificam-se, ainda, antigos hábitos de cunho cultual e social, tais como: tradições cultuais destacando as funções sacerdotais no gesto de cuidar dos sacrifícios (vv.2-4); a fórmula utilizada durante o ato de ofertar a parte sagrada destinada aos grupos de necessitados (v.13); a referência a algum tipo de divindade ligada ao mundo vegetativo (v.14); uma possível forma de dedicação do santuário (.v15). Os vv. 16-19 formam a parte conclusiva do discurso recorrendo a solene referência ao termo técnico “hoje”, que dá um sentido sempre atual aos preceitos divinos. As camadas literárias, as inúmeras tradições juntaram-se na formatação do livro que possuímos hoje. Cf. KAEFER, J. A., Un pueblo livre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la composición del Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 2006, pp 237-238; ROFÉ, A., Deuteronomy: Issues and Interpretacion, London/New York, T&T Clark, 2002, pp. 205-219.

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109

e não esqueci deles 13f `yTix.k'(v' al{ïw>

Não comi disto [dízimo] no meu luto, 14a WNM,mi ynIaob. yTil.k;a'-al{

e não separei dele [dízimo] em estado de

impureza,

14b amej'B. WNM,mi yTir>[:bi-al{w>

e não dei dele [dízimo] para um morto. 14c tmel. WNM,Þmi yTit;n"-al{w>

Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus. 14d yh'l{a/ hw"hy> lAqB. yTi[.m;v'

Eu fiz conforme tudo o que me mandaste. 14e `ynIt"yWIci rv<a] lkoßK. ytiyfi§['

Dirige teu olhar desde tua santa morada

dos céus

15a ^v.d>q' !A[M.mi hp'yqiv.h;

~yIm;ªV'h;-!mi

e abençoa o teu povo,

Israel,

15b ^M.[;-ta, %rEb'W

laer"f.yI-ta,

e o solo que nos deste, 15c Wnl'_ hT't;n" rv<a] hm'd"a]h' taew>

conforme prestaste juramento aos nossos

pais,

15d Wnyteêboa]l; T'[.B;v.nI rv<a]K;

terra que destila leite e mel. 15e `vb'd>W bl'x' tb;z" #r<a,²

O v. 12 recebe quatro alterações: a) a primeira refere-se à uma alteração de

leitura. Deve-se evitar ler ע ה ל ירש , “separar”, na forma Hif’il. Prevalece uma das

formas verbais no infinitivo: ע ל רש ou ע ל רש ; b) a referência à frase hebraica hT'ät;n"w>

rfE[]M;h;( tn:v. literalmente “ano do dízimo darás”, na LXX lê-se to. deu,teron

evpide,katon dw,seij “e novamente a décima parte darás”, indicando uma

retroversão relacionada à frase מ ה תנ ש הת ת ר נ עש ; o Pentateuco Samaritano grafa

תות ונ “darás a ele”; c) em גרל ו , “e para o estrangeiro”, nota-se um acréscimo

conjuntivo, em dois manuscritos do Targum, LXX, Siríaco e Vulgata; d) poucos

manuscritos hebraicos medievais como no Targum, LXX, Siríaco e Vulgata

utilizam o acréscimo conjuntivo ל ו םתוי , “e para o órfão”. Verifica-se que tais

variações, e não são poucas, caem sobre pequenas partículas: conjunções e

artigos. Como tantas, até aqui, assinaladas, são insuficientes no tocante a mudança

ao TM.

No v. 13, cinco outras observações ocorrem, pela ordem: a) a LXX traz

uma tradição textual nos códices cursivos em minúsculos. O mesmo acontece na

Vulgata, referente ao uso da expressão evk th/j oivki,aj mou, “da minha casa”. As

edições remanescentes da LXX usam a 2a pessoa do singular; b) em muitos

manuscritos, como o Pentateuco Samaritano, LXX e Targum Pseudo-Jônatas

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encontra-se a grafia לגר e não רגל ו , como se encontra na versão do TM, omitido

junto ao códice Basiliano-Vaticano e no Códice Vêneto; c) uma ligeira alternância

de leitura é encontrada na LXX, Siríaco e na Vulgata ao fazer uso do prefixo

הנ מ ל אל ו d) a conjunção grafada no TM ;וליתום “e para a viúva” é omitida no

manuscrito da LXX; e) uma outra alternância de leitura surge no manuscrito 69 e

nos manuscritos: Pentateuco Samaritano, Siríaco e LXX, ao grafarem יךת מצו ,

“nenhum dos teus mandamentos”. As nove observações encontradas entre os vv.

12-13, apresentam, em sua maioria, correções ou pequenas harmonizações de

ordem meramente gráfica não chegando a constituir uma variante.

No v. 14, verificam-se quatro pequenas nuanças: a) poucos manuscritos

hebraicos medievais e a tradição do texto grego da LXX, exceto para o códice

Basiliano-Vaticano, mais os códices Vêneto, Freer, Siríaco utilizam a conjunção

antes da partícula negativa אל , “não”, na forma ולא; b) a conjução ו “e” é omitida

na tradição do texto grego da LXX. É utilizada a partícula negativa אל , “não”; c)

a omissão da conjunção ocorre também na tradição do texto grego da LXX,

exceto na recensão de Luciano; d) o uso explícito de רככל אש , “conforme o que”,

na LXX e Siríaco corresponde à conjunção kaqa ,, ,,, “assim como, conforme”,

indicando uma retroversão de רש א כ , “segundo o que, de acordo com o que”, a

Vulgata grafa omnia sicut como uma correção à expressão רכל אש , “tudo o que”.

Nenhuma variante pode ser anotada, diante de pequenas variações inacapazes de

sustentar uma variação ao sentido do texto.

No v. 15, ocorre somente uma observação referente ao uso do verbo שקף,

“dirigir o olhar”107. No Pentateuco Samaritano, utiliza-se a forma השקף e não no

imperativo na forma hi’fil השקיפה, “lance teu olhar”, como no TM.

Considerando todas as respectivas observações, nenhuma variante é

registrada no conjunto de texto. As alterações ocorrem em um pequeno número

de manuscritos. Se há algo na direção de uma nova redação, ao conjunto do

texto, refere-se ao acréscimo do grupo levita à trilogia social, como apresenta

Dt 14,28-29.

107 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L, Dicionário Bíblico, p. 691.

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3.5.2. Delimitação, composição e estrutura

Dt 26,12-15 apresenta-se como um texto bem conservado. No texto pode-

se justificar a coerência, a lógica interna, ao relacioná-lo com o texto antecedente

(vv. 5-10) e o texto posterior, formado pelos versículos 16-19. Nos vv. 5-10

encontra-se o que para muitos estudiosos é reconhecido como sendo o “pequeno

credo histórico”108 oriundo de tradições pré-monárquicas, num envolvimento

entre YHWH e os patriarcas, culminando com a saga dos hebreus na sua saída do

Egito. Na opinião de Kramer, ao lado de Dt 26,1-11, esse conjunto de versículos

(vv. 12-26) – “apêndices litúrgicos” - menciona as atividades no santuário

“central de Jerusalém”, legitimando uma real ocupação da terra de Canaã, além de

uma atividade religiosa condicionando a bênção de YHWH à pratica de

disponibilizar o dízimo109.

Após os vv. 12-15, surge outro breve discurso de exortação conclamando a

comunidade a obedecer e praticar no “hoje” de sua existência (vv. 16, 17, 18) as

ordens ditas por meio de Moisés. A utilização do termo םויה “hoje” favorece a

delimitação da narrativa. A insistência sobre essa partícula temporal םויה “hoje”,

evidencia que os fatos de outrora se atualizam na história presente. Ao longo de

sua existência, a comunidade de Israel presenciou inúmeras situações de

confrontos, diante de seus inimigos, mas também presenciou a ação protetora de

seu Deus, cumprindo as promessas feitas a Moisés. A compreensão ao conceito de

םויה “hoje”, não realça a especificidade de um determinado dia. Busca-se

compreendê-lo como conceito de atualidade histórica diante dos desafios

impostos ( Dt 5,10; 6,1; 11,8; 12,1). Todos os mandamentos de Deus devem ser

realizados.

108 Esta definição, até certo ponto, imposta à narrativa de Dt 26, 5-10, desde do trabalho de von Rad, não se sustenta diante dos recentes críticos. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paidéia Editrice, 1979, p. 175; Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 358-360. Mas, num cenário de debates, que ainda carece de síntese, Dt 26,1-11 liga-se às antigas tradições cultuais destacando o direito e privilégio do Deus de Israel, constituindo normas e evidenciando o caráter centralizador do templo, como as encontradas em Ex 34. Nada mais evidente em declarar que o Dt passou a existir quando o direito de privilégio de Javé defendido nas leis cúlticas foi combinado com a exigência de restringir culto e sacrifício a Javé num único local: no lugar que Javé escolher. Critério este resultante de algo “reelaborado deuteronomisticamente”, mediante as tensões existentes na narrativa. 109 Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, op. cit., p.180.

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Anotadas as três distintas narrativas, pode-se estabelecer a seguinte

estrutura ao capítulo 26: a) vv. 1-11: as primícias; b) vv. 12-15: o dízimo trienal;

c) vv. 16-19: discurso sobre o hoje de Israel.

Os destinatários beneficiados com a partilha são formados pelos mesmos

grupos sociais: יו ל “levita, גר “estrangeiro, םתוי “órfão” e הנ מ ל א , “viúva”. A

diferença entre as duas perícopes recai sobre a intenção final de agir segundo as

ordens divinas. Não se trata mais de agir na intenção de receber as bênçãos de

YHWH, mas, sim, o desejo de cumprir integralmente os mandamentos, como

meios de garantir a promessa divina de Israel habitar numa terra marcada

infinitamente pela prosperidade. Nota-se a ênfase dada à prática de comer até ficar

saciado (v. 12).

O texto bíblico não estabelece critérios no modo de disponibilizar,

distribuir e, quando necessário, armazenar a quantia de 10% de toda colheita aos

grupos necessitados110. Eles recebem o direito, por vontade de YHWH, de

comerem até ficarem satisfeitos111. Depara-se com uma máxima legal a ser

colocada em prática, mas sem nenhuma clara indicação significativa sobre o modo

de efetuar a partilha de uma porção considerada de suprimentos para um número

grande de pessoas112.

Uma primeira parte da perícope se forma diante das duas referências à

prática do dízimo e outras duas determinando a partilha dos bens aos necessitados

(vv. 12-13f). Com base na elaboração de dois paralelismos sinonímicos, ocorre

uma divisão na narrativa, formada ao relacionar dízimo x grupo de necessitado,

110 Não se tem conhecimento de nenhum outro livro do Antigo Testamento que tenha estabelecido uma norma obrigando o pagamento de um imposto, no nível de 10%, como registram os dois textos do livro do Deuteronômio (14,22-29; 26,12-15). Sabe-se de tal prática coletora pela pregação do profeta Amós 4,4. Mas, este a descreve como sendo uma entre inúmeras práticas de sacrifícios realizadas nas dependências de Betel e Guilgal. Zabatiero coloca em dúvida a compreensão da quantidade estabelecida, de 10%, como o grande número de pessoas oriundas das camadas empobrecidas, dignas também de receber o básico para garantir sua subsistência. Cf. ZABATIERO, J. P. T., Tempo e Espaço Sagrados em Dt 12,1 – 17,13. Uma leitura sêmio-discursiva, São Leopoldo, 2001, p. 140. 111 A raiz אכל adquire o mesmo sentido em todas as culturas antigas. A comida é compreendida como um dom supremo da divindade, sinal de pura bênção e prosperidade garantida. Adonai cumula seu povo de bens (Dt 12,15; Os 11,4; Ecl 2,24). Cf. Ottosson, in: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 251-256. Comer e beber são características marcantes da alegria pela vida. Oportuna recorrer ao senso pleno do hábito de comer, assinalada na epopéia de Gilgamesh: “Farta o teu corpo dia e noite! Sê alegre todo o dia! Salta e dança sempre!”. Comer juntamente com alguém sempre foi nas culturas antigas sinal supremo de estreita amizade. No AT e no NT o gesto realça confiança e plena comunhão diante dos desejos idealizados. Cf. Behn, J. in: KITTEL, G. e FRIEDRICH, G. (Orgs.), Grande Lessico del Nuovo Testamento, V. III, Brescia, Paideia, 1967, pp. 975-983. 112 Cf. Ibidem, p. 140.

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113

por um lado, e por outro, parte consagrada x grupo de necessitado. O grau de

importância no uso do paralelismo, ganha, ainda, mais força, com o uso dos

verbos ע רש , “separar, tomar a décima parte” e ןת נ , “dar”, que se entrelaçam. Com

base nessas observações, verifica-se a seguinte estrutura:

A: separar a décima parte da colheita no campo (v. 12a).

B: dar ao levita, estrangeiro, órfão e viúva (v.12b).

A1: separar o que é consagrado de minha casa (v. 13b).

B1: dar ao levita, estrangeiro, órfão e viúva (v. 13c).

Considerando-se esta estrutura, há de se verificar dois importantes

hábitos um tanto enraizados no universo religioso: a) o caráter obrigatório de

uma norma legal exaltando a obrigatoriedade na separação da décima parte dos

produtos colhidos; b) o gesto de disponibilizá-lo a um determinado grupo social

provém da décima parte conhecida como tyIB;h;-!mi vd<Qoh; “o consagrado de

minha casa” (v. 13b).

Nos versículos 13e-f-14a-c, verifica-se uma segunda parte da mesma

unidade. São citados antigos hábitos religiosos ligados às práticas do dia-a-dia, e

aqui, relacionados à parte da colheita a ser entregue como suprimentos essenciais

à sobrevivência dos grupos desfavorecidos, como: a não-transgressão dos

mandamentos; o não-esquecimento; o não-consumir do dízimo em momentos

fúnebres; o não-consumi-lo em estado de impureza; o não-subtrair parte do

dízimo na oferenda a um morto. Após a quíntupla negação (v. 14c), ocorre uma

dupla afirmação de retidão comportamental marcadas pelo uso dos verbos עמ ש

“ouvir” e ע הש “fazer” diante da לקו “voz” e וצ “mandamento” de YHWH (v. 14a-

e). No v. 15 se encontra o desfecho, a conclusão dessa segunda parte da perícope.

Trata-se da elevação de súplica, feita a YHWH, que habita num santuário – nada

garante que este templo seja o de Jerusalém -, solicitando a bênção sobre o povo

de Israel e a manutenção das promessas feitas aos patriarcas. Tais observações

possibilitam a seguinte estrutura:

A – Declaração de inocência diante dos mandamentos (v. 13e):

•••• yTir>b:['-al{ “não transgredi”

•••• yTix.k'(v' al{ “não esqueci”

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B – Declaração de inocência diante do dízimo (v. 14a):

• yTil.k;a'-al{ “não comi”

• yTir>[:bi-al{ “não separei”

• yTit;în"-al{ “não dei”

A1 – Declaração de inocência diante de YHWH (v. 14d)

• yTi[.m;v' “ouvi”

• ytiyfi[' “fiz”

B1 – Preces de solicitações (v. 15a-e)

• hp'yqiv.h; “dirige teu olhar”

• %rEb' “abençoa”

• T'[.B;v.nI rv<a]K; “conforme prestaste juramento”

Encontra-se semelhante estrutura paralela, presente nos vv. 12-13a nesta

parte do texto ao relacionar A + A1, B + B1. A confirmação ética, diante dos

mandamentos de YHWH, justifica o pedido feito na primeira pessoa: não

transgredi, não esqueci (v. 13b). O mesmo se verifica na constatação da trilogia

negativa de nada violar da décima parte oferecida, com as três solicitações de

preces apresentadas a Deus. Não há como negar o caráter cultual utilizado no

momento da oferenda da décima parte da colheita, disponibilizada para saciar e

nutrir setores menos favorecidos da sociedade.

3.5.3. Comentário e análise semântica

A obrigatoriedade do pagamento do imposto, oriundo da décima parte dos

trabalhos realizados no campo, seja na produção agrícola ou pastoril, é o tema

central nesta parte legislativa do Código Deuteronômico. Verifica-se claramente

que a preocupação com o cumprimento da lei, fixando a quantia de 10%, perpassa

todo este corpo redacional. Mas, nota-se que a prática de oferecer a quantia

estabelecida ocorre, tendo uma atividade litúrgica como instrumento. Tais

atitudes, de caráter litúrgico, acenam para a presença de antigas tradições literárias

reeditadas na formação do texto.

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A legislação é clara ao obrigar a disponibilidade da quantia de 10%. Trata-

se de uma reedição de Dt 14,28-29113 nesta parte do livro em que são retomados

todos os elementos anteriormente citados, como demonstra o quadro sinótico:

Dt 14, 28-29 Dt 26, 12-13a

Época

Ao final de três anos

Quando tiveres terminado de

separar toda a décima

parte de tua colheita no campo,

no terceiro ano

Quantidade tu farás tirar a décima parte

de toda a tua colheita no ano

a décima parte

Modo e a colocarás à disposição nos

teus portões.

[em tuas portas]

Destinatários Virá o levita,

pois ele não tem parte da

herança contigo,

o estrangeiro,

o órfão

e a viúva

darás para o levita,

para o estrangeiro,

para o órfão

e para a viúva

Finalidade e comerão até ficarem

saciados

e eles comerão,

em tuas portas,

e fartar-se-ão

Com referência à narrativa de Dt 26,12-13, Buis ressalta que este dízimo

“escapava ao controle do sacerdote, a partir do momento em que não havia mais

do que um santuário e que desvios de bens eram possíveis”114. Crê-se que, pelo

fato da oferta, correspondente a 10% dos produtos, não estar sob o controle do

sacerdote, seja possível compreender as inúmeras referências rituais e as 113 Cf. Prevalece uma unanimidade ao notar nesta parte conclusiva do livro a relação entre gestos litúrgicos, tão evidenciados nesta parte do livro, e a ênfase social por meio de uma obrigatoriedade de dispornibilizar a décima parte de todos os produtos da terra aos pobres. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, p. 345; VON RAD, G., Deuteronomio,op. cit., p. 177-179; CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy, 21,10-34,1. Nashville, Thomas Nelson Publishers, 2002, pp. 639-642. 114 Cf. BUIS, P,. Le Deutéronome, Beauchense, Paris, 1969, p. 349. Esta mesma opinião tem ressonância nas afirmações de : CAZELLES, H. RB, LV, 1948, p. 54-71. JAGERSMA. H., “The Tithes in the Old Testament”, OTS, XXI, 1981, pp. 116-128.

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declarações de inocência que acompanhavam, em forma de recitações e preces, o

gesto de oferecer a quantia a ser utilizada para a manutenção dos grupos

necessitados. Por outro lado, existe a possibilidade de pensar como de Vaux, para

quem “apesar do silêncio dos textos, se deve supor que uma parte ficava reservada

aos ministros”115. Detalhe compartilhado por Crüsemann, uma vez que os levitas e

sacerdotes são considerados como grupos sociais que formam parte de Israel.

“Mesmo assim, eles devem ser diferenciados claramente, às vezes explicitamente, das pessoas a quem o texto se dirige. Eles não possuem terras (hēleq, naḥalāh; por exemplo, 14,27; 18,1ss etc). O Deuteronômio não contém regras para sacerdotes”116.

Os vv. 13a-15a apresentam, pela ordem, os seguintes elementos que

compõem a cerimônia realizada durante o momento da apresentação do dízimo

trienal: a) ritual feito diante da divindade; b) oferta disponibilizada aos pobres,

segundo os mandamentos de YHWH; c) declaração de inocência diante das

ofertas; d) declaração de inocência diante dos mandamentos de YHWH; e)

pedidos de preces ao Deus de Israel. Percebe-se por meio dessas etapas, presentes

no texto, que a oferta estabelecida de 10% foi considerada como algo sagrado,

proveniente de parte de toda a colheita para ser oferecida “Diante de YHWH”,

isto é, em um santuário estabelecido.

A quantia estabelecida, na esfera de 10%, simbolizava algo razoavelmente

elevado, uma quantidade exuberante, considerando que a lei vigorava em todo país

de Israel. Eis um forte motivo para a possibilidade de ocorrerem frequentes fraudes,

se se considerar o conteúdo das declarações de inocências (vv. 13b-f-14e) que

antecedem a apresentação de súplicas a Deus presentes no versículo 15b-e.

O v. 13b-c relata duas práticas passíveis de acontecer diante do

mandamento: transgredi-lo ou esquecê-lo. Estas são as maiores de todas as faltas

que podem ocorrer diante de YHWH. Afinal, uma vez violados os mandamentos

tudo o mais é possível. Tal preocupação ocupa relativo destaque nas pregações

dos profetas que atuaram, junto ao Reino do Norte, anterior à queda da Samaria,

em 722 a.C.117. Feitas as declarações éticas diante das leis de YHWH, seguem

outras três declarações de inocência, por meio das quais é possível determinar três

115 Cf. De Vaux, Instituciones del Antiguo Testamento, op. cit., p. 490. 116 Cf. CRÜSEMANN, F., A Tora. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento,op. cit., p. 309. 117 Cf. Os 2,15. 4,6. 6,7. 8,1. 8,14. 13,6; Am 4,1. 5,6-7,14.

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diferentes tradições e possibilidades de desvios ocorridos diante da quantia

destinada aos pobres.

As três frases, embora por demais sintéticas, como as encontradas em Dt

26,14 oferecem elementos capazes de compreender a grandeza e a complexidade

dos cultos às divindades nos reinos de Israel. Impõem também a possibilidade real

de constatar que o javismo jamais foi uma unanimidade perene na comunidade

religiosa:

1) WNM,mi ynIaob. yTil.k;a'-al “Não comi disto [dízimo] no meu luto,

2) amej'B. WNM,mi yTir>[:bi-al{w> e não queimei dele [dízimo] em estado de

impureza,

3) tme_l. WNM,Þmi yTit;n"-al{w> e não dei dele [dízimo] para um morto .

O primeiro risco (v. 14a) dá destaque ao desvio de utilizar parte do dízimo,

ainda que seja pequena, em cerimônias fúnebres em que se comemoravam a morte

de uma determinada divindade ligada ao mundo vegetal ou ao mundo animal,

especialmente animais como os carneiros, os bodes e os bois. Almejava-se, por

meio da intervenção divina, obter leite e carne com fartura118. Tais práticas

idolátricas chegaram ao nível de anormalidade em Israel. Não são inócuas as

denúncias proféticas de Oséias e Ezequiel. Embora façam parte de outro momento

histórico, as críticas desses profetas podem bem exemplificar a declaração de

pureza, esquivando-se de qualquer atividade religiosa capaz de identificar-se com

Baal119 ou a outra de nome Tammuz120. Deuses a quem Israel recorria com

frequência.

118 Segundo as denúncias anti-idolátricas proferidas pelo profeta, trata-se de uma prática cultual oferecida a Tammuz (Ez 8,14). “As mulheres sentadas, chorando”, junto à entrada, situada ao norte do Templo de Jerusalém, é referência a uma antiga prática encontrada num ritual acadiano onde menciona: “No mês de Tammuz, quando Ishtar faz com que a população toda chore o seu amante Tammuz, e a família se reúne ali, Ishtar está presente”. Cf. HARRIS, R. L., In: DITAT, p. 2519. Com base na comparação entre os textos acádicos, há diferentes abordagens, nos mais diferentes períodos históricos, ao culto prestado à divindade de Tammuz. Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W. (Eds.), In: DDD, pp. 828-834; 119 O nome לע ב “senhor, marido, possuidor”, muitas vezes associado ao ambiente da casa, às relações familiares expressa também o nome de uma divindade que, em muito concorreu com a concepção javista. Uma vez que os ritos cananeus de fertilidade e prosperidade tinham Baal como defensor e provedor de tudo. Não há dúvidas de que este foi um forte concorrente ao conceito de unicidade vivenciado nos quatro séculos que antecedem a pregação de Amós, Oséias, Miquéias e Isaías. Cf. ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel em tempos del Antigo Testamento, Simancas, Valladolid, 1999, pp. 321-330. Israel pode até recorrer ao nome Baal como uma referência à supremacia de YHWH, mas análises da pregação de Oséias evidenciam relativa condenação ao recorrer a Baal. O javismo foi arduamente defendido por Oséias. Cf. LIMA, M. L. C., “A fidelidade de YHWH diante da infidelidade do povo: o anúncio de Os 2,18-25 no contexto de Os 1-3”. In: AT, n. 21, 2005, p.303.

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Oséias descreve o perigo de desintegração ética da comunidade religiosa.

Primeiramente, faz uma ameaça contra a quebra da aliança, simbolizada pela

prática da prostituição, mostrando a adesão às divindades cultuadas no reino do

Norte.121 A participação nos ritos de fertilidade cananeus faz com que YHWH

rejeite seu povo ameaçado de ser definitivamente destruído e definitivamente

ferido por outras nações (8,8; 9,3; 10,15). Somam-se ao baalismo as referências

às práticas idolátricas apontadas por Ezequiel (8,14), onde é possível perceber o

lastro cultual prestado às outras divindades que, se não chegaram a ter seus

templos e cultos estabelecidos, adquiriram espaços ainda no interior do santuário

nacional.

Um segundo risco de desvio poderia ocorrer, em tempos de oferecer

sacrifícios e holocaustos às divindades cananéias, utilizando, como oferta parte do

dízimo separado para YHWH. As liturgias marcadas pelos sacrifícios e

holocaustos foram demasiadamente denunciadas pelos profetas. Não foram

poucas as vezes em que Israel se deparou com a prática da idolatria122, pois há

harmonia entre textos bíblicos e extra-bíblicos que identificam uma divindade de

nome לע ב “baʿal” como sendo deus dos Cananeus123. Baal, identificado como

120 Tammuz, também conhecido como Dumuzi, já encontrado como uma divindade, na Suméria (a partir do 3o milênio a.C., tem seu culto ligado à fertilidade. “Tammuz morre no verão, na época da seca, descendo ao submundo. Em julho, no mês que leva seu nome, as mulheres choram a sua morte, com a finalidade de trazê-lo de volta, para garantir a fertilidade e a fartura, o que acontece no início da época das chuvas”. Cf. NEUENFELDT, E. G., Práticas e Experiências Religiosas de Mulheres no Antigo Israel. Um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-23. São Leopoldo, 2004, pp. 134-140. 121 A preocupação com os pobres não foi de modo algum negligenciada pelo profeta Oséias, como analisam alguns. Por ter exercido sua atividade profética num dos poucos períodos de equilíbrio social – reinado de Jeroboão II – Oséias deseja que sua sociedade seja “justa, adequando-se a algumas normas de convivência que podemos sintetizar no decálogo, animada por espírito de verdade, por afeto, por lealdade”. Cf. LUÍS SICRE, J., A Justiça social nos profetas. São Paulo, Paulinas, 1990, p. 224. 122Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 132-139. Na pregação de Oséias há referências tanto no singular como no plural a esta divindade, com a qual Israel veio a se prostituir (Os 9,10) רעול פ ע ב “Baal Fegor”, certamente uma divindade relacionada à região montanhosa de Moab (Nm 23,28). 123 Os autores bíblicos não se debruçam no aspecto negativo sobre לע ב . A falta de interesse pelo culto ao deus לע ב assemelha-se ao desprezo à qualquer prática marcada por uma certa idolatria, segundo Mulder. Os profetas visam enaltecer o culto a YHWH, um deus identificado com Israel. Sabe-se que o culto sofreu inúmeras censuras. Cf. Mulder, in: BOTTERWECK, J. G. e RINGGREN, H. (Ogrs), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 730-739. Na relação entre Canaã e Israel há aspectos fundamentais que não podem estar à margem: a) Israel tem em sua origem a experiência do Egito; b) O culto cananeu sempre foi uma inversão do culto ao javismo; c) As inúmeras hostilidades denunciadas contra práticas cananéias, foram vivenciadas no interior das comunidades israelitas. Cf. CRÜSEMANN, F., “Imaginário de violência como parte da história das origens. A lei do anátema e ordem legal no Deuteronômio”. In: DREHER, C.A., MUGGE, E., HAUENSTEIN, I., DREHER, I. S. (Orgs.), Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes. São Leopoldo, Oikos, 2006, pp. 218-238.

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senhor da natureza, da boa colheita e das chuvas em tempo certo, estará sempre

em contraponto com YHWH. Este último sempre o suplantará. O culto não

excluía comer parte dos sacrifícios oferecidos ao deus Baal124.

Um último desvio pode ocorrer no momento de prestar culto à morte125 de

uma respectiva divindade. Sabe-se da existência de ותמ , “morte”126, divindade

com o poder de controlar o mundo dos mortos, “uma terra de lodo e imundícies”.

Sua morada é conhecida como sendo לאוש , “sheol”127 (Jó 28,22; Am 9,2; Is

14,11). Pode-se ver também, na breve citação de Dt 26,14c, uma possível relação

com os rituais fúnebres lembrando a morte do deus Baal, celebrada na época do

verão, período em que a paisagem verde dos vales e montanhas seca, dando lugar

ao desaparecimento por completo da vegetação. Baal é o deus das montanhas, e

nelas-se localizam os inúmeros santuários edificados em seu nome128.

As declarações de inocência, indicadas nos vv. 13b-14e encontram seus

significados quando analisadas junto aos nós do sincretismo existente na vida

religiosa israelita. Tal sincretismo indica que, nem sempre, o javismo foi uma

unanimidade exclusiva. Ao seu lado, concorreram divindades como Baal, El,

Ashera129, Mot, Shemesh130 e, para agradá-los, recorriam-se, com frequência, à

profanação de partes do dízimo trienal.

A oração conclusiva (v. 15) pedindo a bênção e a prosperidade numa terra

boa e farta, tem por base as promessas seladas entre YHWH e os patriarcas (Gn

12, 2-3). Porém, a prosperidade não depende de um gesto unilateral de YHWH,

124 Cf. Sl 106, 28; Ez 20,30-43; Jr 2,23. 125 Na corrente religiosa javista, os cultos aos mortos foi fortemente rejeitado, bem como todo tipo de necromancia. Cabe à comunidade lamentar, sim, seus mortos, mas sem referência alguma a um tipo de divindade. Cf. FOHRER, G., História da Religião de Israel, Paulinas, São Paulo, 1982, pp. 265-266. 126 Não há consenso sobre se a divindade תו מ “morte” tem seu nome escrito nas páginas do Antigo Testamento. Para alguns, a divindade é textualmente comprovada nas duas citações de Os 13,14, onde a personificação é claramente identificada com um lugar, e também desafiada a se manifestar diante do poder absoluto de YHWH. A personificação da divindade da morte pode ser evidenciada em outros dois textos proféticos: Is 5,14, Hab 2,5. Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 598-603. 127 Ibidem. pp. 598-603. O termo לאוש é por demais incerta, que segundo Gerleman refere-se a um termo amplamente desenvolvido e, seu uso no AT, na maioria das vezes – sessenta e seis - ocorre em textos sapienciais. O termo induz à experiencia de dor, sofrimento, estado de angústia, desolação. Não são poucos os autores do AT a relacionar com o mundo dos mortos (Os13,14; Sl49,16;Jo 26,6.28,22). Cf. Gerleman לאוש . In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, V. II, pp. 1053-1057. 128 Cf. 2Rs 23,1-20. 129 Cf. NEUENFELDT, E. G., Práticas e Experiências Religiosas de Mulheres no Antigo Israel. Um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-2, op. cit., p. 43. 130 Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 764-768.

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120

mas implica uma ação anterior que envolve a comunidade no gesto de עמ ש ,

“ouvir” e ע הש , “agir” segundo a voz e os mandamentos de YHWH.

A memória da libertação do Egito foi, sem dúvida, a motivação, se não a

mais importante, pelo menos, uma grande força ideológica capaz de oferecer

elementos de sustentação131 para Israel trilhar seus passos na história, como nação

escolhida por YHWH e, deste modo, preservar a memória do javismo. Trata-se da

consciência de ter um deus pessoal a seu lado. Foi com esta compreensão na

divindade que as narrativas em torno da saída do Egito, foram preservadas. As

três grandes festas populares132 são marcadas pela prática da peregrinação até o

local escolhido por YHWH para ali fixar uma morada para sempre. Há um

aspecto cúltico no momento da distribuição do dízimo e, esta deve ser marcada

pelo ideal da partilha. Ao contrário, Israel não encontra meios para agradar a seu

Deus

O texto retoma, em sua primeira parte, temas já apresentados considerando

a prática do dízimo (Dt 14,28-29). Na segunda parte da narrativa (vv. 13-14)

adquirem realce as ações expressas pelos verbos xk;v' “esquecer” (v. 13f), e [m;v'

“ouvir” (v. 14d), e duas outras expressões ligadas a um local e realidade

semelhante: ^v.d>q' !A[M.mi, “desde tua morada santa”, mais a ação ^M.[;-ta,( %rEÜb'W,

“abençoa o teu povo”.

O verbo xk;v', “esquecer”, grafado na primeira pessoa do singular, adquire

o sentido de destacar a relação entre o ינ א , “eu”, (Israel) e o relacionamento com

YHWH. Esta atitude de esquecer-se de Deus é não mais relacionar-se com ele.

Entende-se a transferência de atitudes, agora direcionadas a uma outra divindade,

131A páscoa e a experiência do êxodo não são duas realidades palpáveis e objetivas, impossíveis de serem analisadas como atos históricos. “Em termos teológicos, a relação entre o ato e interpretação ou evento e palavra, é algo que não pode ser separado. O escritor bíblico não concebe o fato de ser um evento primário ou ‘objetivo’ a partir de algo deduzível, dedução subjetiva de um significado desenhado. Trata-se de um acontecimento jamais interpretado”. Cf. CHILDS, B. S., The Book of Exodus. Louisville, The Westminster Press, 1974. p. 204. Vale ressaltar que o povo de Israel não tem “história até não se converter em povo de Deus, isto significa, até a revelação patriarcal e mosaica. Da época anterior, quando seus antepassados “habitavam do outro lado do Rio e adoravam outros deuses” (Js 24,2) há vagas recordações (Gn 11,27-32; 22,20-24)”. Cf. GRELOT, P., Sentido Cristiano del Antiguo Testamento. Bilbao, Desclée de Brouwer, 1995, p. 259. 132 Esta é a ótica expressa pelo legislador deuteronômico de que as festas devem envolver todos os membros da família (Dt 16,11.14). Cf. HAAG, H., De la Antigua a la Nueva Pascua. Historia y Teologia de la Fiesta Pascual, Sigueme, Salamanca, 1980, pp. 92-93.

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121

que passou a ocupar o lugar de YHWH133. Eis o sentido que adquire a crítica

proferida por Oséias: Israel esqueceu-se de seu Deus, passou a não mais conhecê-

lo. Mesmo que Israel siga minuciosamente as práticas religiosas estabelecidas ao

cultuar seu Deus134, se não incentivar a partilha com os setores desfavorecidos,

seus gestos serão vistos como alguém que se esqueceu de sua particularidade com

YHWH.

Mais do que simplesmente escutar, o verbo [m;v', “ouvir”, induz a uma

atitude humana em relação ao Criador135. Ouvir a YHWH impõe o gesto de

obedecer-lhe, prestar-lhe culto, por meio dos decretos estabelecidos por vontade

do próprio criador. Induz a uma prática136. Trata-se de ser o mais coerente

possível. Não existe outra maneira de receber as bênçãos do Senhor, a não ser por

meio do gesto de ouvi-lo e prestar-lhe culto. A utilização do verbo ressalta a

unicidade e importância do Deus de Israel. A comunidade se vê diante de uma

divindade completamente diferente das demais existentes no Antigo Oriente. A

narrativa sublinha que não se trata apenas de tê-lo como eixo referencial, mas

combater, em seu nome, os cultos prestados ao deus Baal. Certamente, o risco de

deixar-se influenciar pelas divindades cananéias foi, sem duvida alguma, um

perigo que rondou a comunidade de Israel nas mais diferentes etapas históricas de

sua existência. Diante de tais considerações, o gesto de ouvir expressa toda a

riqueza de seu significado. A unicidade de YHWH e a pertença de Israel como

povo seu escolhido será uma idéia fundamental ao longo de toda pregação

profética, quer antes quer depois do exílio.

133 O verbo רכ ש na proporção do relacionamento entre YHWH e Israel será utilizado inúmeras vezes no antônimo רכ ז . Não poucas vezes, Israel será alertada de não se esquecer de seu Deus e das proezas por ele feitas em prol de seu povo escolhido (Dt 5,15; 8,18; 15,15; 16,12; 24,16. 22). A “aliança” será lembrada por Deus (Ex 2,24; 6,5; Lv 26,42), mas esquecida por Israel (Am 1,9; Is 56,6; Jr 3,16; 11.3). 134 Por séculos foram utilizados inúmeros elementos provenientes da natureza na prestação de culto a YHWH. Cf. ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento, p. 326. 135 A expressão עמ ש é soleníssima no ato de entender o relacionamento entre Israel e seu Deus. Trata-se de uma equação de cunho exaltativa envolvendo Israel e seu Deus. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, p. 128. Sabe-se que YHWH, na qualidade de ser único, sofrera concorrência com a divindade de Baal. Não há dúvida de que o uso imperativo do verbo, em Dt 6,4-5, visa conclamar sobre a comunidade israelita o poder impar e exclusivo do javismo. Escutar envolve a dimensão comportamental diante das normas divinas. Por isso, a YHWH, Israel deve se dirigir com todo o “coração, alma e força”. Cf. BLENKINSOPP, J., Deuteronοmio. In: CBSJ, Vol I, p. 309. 136 Ocorre um apelo de cunho exortativo imposto ao povo de Israel. Num mundo fortemente marcado pelo politeísmo a fidelidade a YHWH é vista como uma maneira própria de ser. Cf. LOHFINK, N., Ascolta, Israele – Esegesi di testi del Deuteronomio. Brescia, Paideia Editrice, 1998, pp. 67-68.

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122

Os termos ^v.d>q' !A[M.mi, “desde tua santa morada”, juntamente com a ação

expressa na frase ^M.[;-ta,( %rEÜb'W, “abençoa o teu povo” são expressões nítidas de

que esta parte conclusiva do texto se refere a termos usuais de uma oração137. A

solicitação pode encontrar seu significado mais pleno nas duas promessas feitas

por YHWH, que culminaram na posse da terra prometida. Em outras palavras, as

promessas feitas ao patriarca Abraão (Gn 12,2-3) culminam com as bênçãos sobre

o povo eleito, Israel (Gn 15,8). Vê-se que o autor deuteronomista harmonizou

duas tradições antiqüíssimas em forma de súplica, na narrativa. Trata-se de uma

bênção condicionada às atitudes de Israel ouvir a voz de seu Deus e cumprir todos

os mandamentos de YHWH. Só nestas verdadeiras cláusulas da obediência,

entendida como testemunho diante dos grupos mais necessitados, Israel se

apoderará da terra da promessa, como viverá para sempre em םלוש , “paz”; numa

“terra em que jorram leite e mel”.

3.6. O senso cúltico contra atos que impossibilitam a realização do projeto da bênção: Dt 27,11-26

A constatação de elementos de cunho cúltico, como a expressão: !mEa'

Wrm.a'w> ~['²h'-lk' Wnõ['w>, “e todo o povo dirá: amém”, citada doze vezes, ao longo de

toda a perícope de Dt 27,11-26, evidencia o aspecto litúrgico empreendido ao

texto, com a finalidade de dar ao conjunto de normas fixado, agora, proclamado

como Lei, uma nova e eficaz formulação138. Soma-se a referência às duas

montanhas – Garizim e Ebal – como cenário escolhido por vontade divina para

realizar uma cerimônia pela posse da terra, ao cruzar o Jordão.

3.6.1. Dt 27,11-26: tradução, aspectos filológicos e variantes

Ordenou Moisés ao povo naquele dia,

dizendo:

11a ~['h'-ta, hv,mo wc;y>w:

`rmoale aWhh; ~AYB;

137 Muitas análises a relacionam com a frase encontrada em IRs 8,43. Cf. BROWN, R, E., FITZMYR, J. A., MURPHY, R. E., NCBSJ, p. 245. 138 Na opinião de L`hour, Dt 27 nos remete diretamente ao livro do Josué, no desejo de compreender o amplo significado da assembléia de Siquém, e notar a existência de uma equivalência entre “Ebal e Garizim”. Cf. L`HOUR, J., “L`alliance de Sichen”. In: RB, v. 70, 1962, pp. 161-184.

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123

Estes permanecerão em pé

para abençoar o povo sobre o monte

Garizim,

12a %rEb'l. Wdm.[;y: hL,ae

~yzIrIG> rh:-l[; ~['h'-ta,

quando atravessarem o Jordão:

Simeão e Levi,

Judá e Issacar, José e Bejamim.

12b !DEr>Y:h;-ta, ~k,r>b.['B.

ywIlew> !A[m.vi

`!mIy"n>biW @sEAyw> rk"XF'yIw> hd"WhywI

E estes permanecerão em pé,

para a maldição,

no monte Ebal,

Rubem,

Gad e Aser e Zabulon, Dan e Neftali.

13a hL,aew>

hl'l'Q.h;-l[; Wdm.[;y:

lb'y[e rh:B. !beWar>

`yliT'p.n:w> !D" !lUWbz>W rveêa'w> dG"

Tomarão a palavra os levitas, 14a ~YIwIl.h; Wn['w>

eles dirão

para todo homem de Israel, com voz

altiva:

14b Wrm.a'w>

`~r" lAq laer"f.yI vyai-lK'-la,

Maldito139 o homem 15a vyaih' rWra'

que faz

estátua ou ídolo de metal fundido -

abominável para YHWH

15b hf,[]y: rv<a]

hw"hy> tb;[]AT hk'Sem;W ls,p,

obra de mãos de artista 15c ydEy> hfe[]m;

e a pendura às escondidas. 15d rt,S'B; ~f'w> vr"x'

Tomarão a palavra todo o povo 15e ~['Þh'-lK' Wn[w>

e dirão: amém! 15f `!mEa' Wrm.a'w>

Maldito quem desprezar seu pai e sua

mãe, 16a AMaiw> wybia' hl,q.m; rWra'

todo o povo dirá: amém! 16b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem remover a fronteira do

seu vizinho, 17a Wh[erE lWbG> gySim; rWra'

todo o povo dirá: amém! 17b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem desencaminhar um

cego no caminho, 18a %r<D"B; rWE[i hG<v.m; rWra'

139 Vale realçar a compreensão do verbo רר א “execrar, pronunciar uma maldição”. Uma “fórmula de maldição”. ALONSO SCHÖKEL, L., DBHP, p. 79.

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124

todo o povo dirá: amém! 18b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem desviar o direito do

estrangeiro, do órfão e da viúva, 19a jP;v.mi hJ,m; rWra'

hn"m'l.a;w> ~Aty"-rGE

todo o povo dirá: amém! 19b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem se deitar com a mulher

de seu pai, 20a bkevo rWra'

wybia' tv,aeä-~[i

pois descobriu o manto do seu pai, 20b wybia' @n:K. hL'gI yKi

todo o povo dirá: amém! 20c `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem mantiver relações com

todo [tipo de] animais, 21a bkevo rWra'

hm'heB.-lK'-~[i

todo o povo dirá: amém! 21b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem mantiver relações

com sua irmã, filha do seu pai ou filha

de sua mãe,

22a bkevo rWra'

AMai-tb; Aaå wybia'-tB; Atxoa]-~[i

todo o povo dirá: amém! 22b `!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>

Maldito quem mantiver relações com

sua sogra, 23a bkevo rWra'

ATn>t;xo-~[i

todo o povo dirá: amém!

23b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem golpear seu próximo

em segredo, 24a rt,S'B; Wh[erE hKem; rWra'

todo o povo dirá: amém! 24b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>

Maldito quem

pegar suborno para golpear a vida de

um sangue inocente,

25a { rWra'

yqI+n" ~D" vp,n< tAKh;l. dx;vo x;qEl{

todo o povo dirá: amém! 25b `!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>

Maldito quem não cumprir as palavras

desta lei,

yrEb.DI-ta, ~yqIy"-al{ rv<a] rWra'

taZOh;-hr"ATh;

praticando-as, 26a ~t'Aa tAf[]l;

todo o povo dirá: amém! 26b `!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>

Ocorrem pequenas diferenças no tocante à grafia na comparação entre os

manuscritos. No v. 12 notam-se cinco ressalvas de ordem tipicamente gráfica. A

primeira refere-se ao termo “monte Garizim”. Na Bíblia Rabbinica de Jacob ben

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125

Hayyim grafa-se יםז הר גר como se encontra em Dt 11,29. O códice manuscrito do

Pentateuco Samaritano une os substantivos na fórmula הרגרזים. Na Guenizá do

Cairo, encontra-se na forma ם)י(הר גריז . Outra variante refere-se ao códice

manuscrito hebraico 9.69 e poucos outros manuscritos da LXX e Vulgata utilizam

a forma לוי, subtraindo a conjunção ו, e não יו ל ו como apresenta o TM. Uma

terceira forma encontra-se junto ao Pentateuco Samaritano, LXX e Vulgata, que

registram a forma הד הוי subtraindo a conjunção ו. A quarta diferença, também de

ordem gráfica, refere-se ao nome רשכ ש י , “Issacar”, sem a partícula conjuntiva

encontrada em alguns manuscritos hebraicos medievais da LXX e Vulgata. O

mesmo caráter de subtração, correspondendo à grafia ףס יו , “José”, sem a

conjunção, é registrado, também, em poucos manuscritos hebraicos medievais,

entre os quais, Pentateuco Samaritano, códices cursivos (minúsculos) da LXX e

Vulgata.

No v. 13, verificam-se apenas duas breves diferenças gráficas. Uma,

subtraindo a conjunção ו, antecedendo a indicação da tribo de ןל בוז , é encontrada

no manuscrito hebraico 1, e em manuscritos medievais, divergindo do TM, ao

assinalar ןל בוז ו . Já o manuscrito Siríaco/Peshitta diverge do TM ao citar a tribo de

.ו Dan”, acrescentando a conjunção“ דן

O verbo הל ק , “desprezar”, no v. 16a, recebe algumas mudanças em sua

grafia. Dois manuscritos hebraicos medievais usam-no no tronco hif`il, no

particípio מקלה, com o sinal vocálico em tsere e não segol, como no TM, conforme

outros dois manuscritos hebraicos que utilizam לל ק מ , como pode ser encontrado

em Ex 21,17. Porém a LXX usa o termo o avtima,zwn, “o que desonra”. Uma

segunda diferença é encontrada no Pentateuco Samaritano referente ao modo de

grafar o verbo, na sua forma plural, na terceira pessoa, como faz o TM no v. 15:

רומ או , “responderão”.

Nos versículos 17 e 18, notam-se duas informações referentes à grafia do

verbo רמ א , que tem como critério a grafia usada no versículo 16: רמ או ,

“responderá”. Nota-se que vários manuscritos hebraicos medievais e a Bíblia

Rabbínica, de Jacob ben Hayyim, utilizam o sinal vocálico tsere e não segol ao

grafar o verbo hJ,m “desviar”, como se encontra no v. 19. A citação do verbo רמ א ,

no verso 19, como nos versos 20 e 21, segue a forma usada no v. 16b: רמ או .

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No v. 22, no Códice Vaticano (séc. IV), em alguns manuscritos, ocorre

uma correção ao grafar avdelfh/j patro.j h' mhtro.j auvtou/, “irmã do seu pai e de sua

mãe” = אחות אביו ואמו, “irmã do seu pai e sua mãe”. Neste caso, ocorre uma

variante, pois o interdito recai sobre o grau de parentesco tia e não irmã, como

salienta o TM: AMai-tb; Aa wybiÞa'-tB; Atxoa]-~[I “com a sua irmã, filha do seu pai e

filha de sua mãe”. Embora anotada a variante entre os graus de parentesco tia e

irmã, opta-se por manter o texto presente no TM. A grafia do verbo אמר

assemelha-se à do v. 16b: ואמר, como registram os vv. 23b, 24b, 25b e 26b.

Semelhante à expressão yqIn" ~D" “sangue inocente”, encontrada em Dt 19,10

em paralelo ao v. 25a, ocorre uma diferença registrada na Bíblia Rabbinica de

Jacob ben Hayyim que opta por דם נקיא.

Três ressalvas são indicadas no v. 26. A primeira provém do Targum

Pseudo-Jônatas referindo-se ao uso do termo ררוא “Infame”. Mudança apenas no

aspecto da forma, sem alternância na interpretação do verbo. Poucos manuscritos,

entre os quais: Pentateuco Samaritano, alguns códices cursivos minúsculos da

LXX acrescentam o sufixo לכ antes de אתזה ה ר ותה “estas leis”. Uma terceira

alternância é registrada na expressão םת ת או וש ע ל “praticando-as”, grafada no

Pentateuco Samaritano na forma: םת וש ע ל . Com exceção da observação ocorrida no

v. 22, que muda o grau de parentesco de irmã para tia – variante encontrada

somente no manuscrito do Códice Vaticano - não se encontra nenhuma nuança no

conjunto dos vv. 11-26.

Conclui-se, por meio da comparação entre os manuscritos, pequenas

diferenças no aspecto gráfico, num reduzido número de manuscritos, tendo como

parâmetro da versão do TM, sem a possibilidade de encontrar em Dt 27,11-26

nenhuma variante. Vale ressaltar a conclusão de inúmeros trabalhos que indicam

uma redação recente empreendida à perícope, datando-a de um período pós-

exílico mas que manteve a mais antiga informação de dimensão litúrgica – do

decálogo siquemita - conhecida no Antigo Testamento140.

140 Cf. GARCÍA LÓPEZ, F., El Pentateuco. Introdução a la lectura de los cinco primeiros libros de la Biblia. Navarra, Editorial Verbo Divino, 2003, p. 311; Boecker indica uma fase pós-prefácio à redação formada pelos capítulos 27,1-30,20. Os demais capítulos foram tardiamente somados ao livro, como: 1,1-4; 43 e 31-34. Cf. BOECKER, H. J., Law and the administration of justice in the Old Testament and Ancient East. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1980, p. 178.

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127

3.6.2. Delimitação, composição e estrutura

Embora seja o único versículo a explicitar a trilogia do estrangeiro, do

órfão e da viúva, não há como excluir o v. 19 de todo o conjunto da perícope. Os

vv. 11-26 formam uma unidade literária. Tal estrutura pode ser delineada,

considerando duas fórmulas usuais no livro do Dt: rmoale aWhh; ~AYB; “naquele dia,

dizendo”, que, ao lado da expressão ~t'Af[]l; ~AYh; ^W>c;m. ykiónOa' rv,a] “que eu hoje te

ordeno cumprir”, utilizada com freqüência nas introduções ou nas conclusões,

marcam a passagem de uma seção à outra141, além do bloco literário formado pelo

“dodecálogo siquemita”142 (vv. 15-26).

Nas ordens dadas por Moisés (v. 11) especificam-se dois grupos

recebendo, cada um, uma distinta tarefa: aos estabelecidos ao sul, no monte

Garizim, a responsabilidade de %r;Be “abençoar”; aos estabelecidos no monte Ebal,

ao norte, a tarefa de serem os responsáveis pela hl'l'q., “maldição” sobre o povo.

Responsáveis, porque o uso do verbo dm;[' “estar de pé, pernanecer em pé”, é

apresentado envolto em uma conotação fortemente ética.

A unidade entre as duas partes do texto (vv. 11-14 e vv. 15-26) se

estabelece pela ação dos levitas (v. 12), responsáveis de proferir, pela utilização

de um discurso eminentemente litúrgico, as doze maldições sobre todos os

homens de Israel (v.14).

Este texto (Dt 27,11-26) pode ser dividido em duas partes. Os vv. 11-14

formam um primeiro bloco e os vv. 15-26 constituem o conjunto das doze leis

proclamadas pelos levitas, sendo que a unidade entre as partes se faz pela função

exercida pela tribo de Levi.

Entre os versos 11-14, é possível encontrar elementos oriundos de outras

fontes do livro de Deuteronômio. Verifica-se que três elementos utilizados em Dt

11,26-29 sustentam a narrativa nesta parte do livro: a) bênção e maldição (v. 26);

b) cumprimento das ordens de YHWH, como instrumentos para o recebimento da

bênção ou da maldição143 (vv. 27-28); c) as indicações dos montes Garizim e

141 Dt 7,11; 8,1.11; 10,13; 11,8; 13,19; 15,5; 27,1; 27,10; 30,2; 31,22. 142 Termo cunhado por Von Rad diante do contexto em que Israel é chamado “hoje” a obedecer e cumprir todo o conjunto de leis diante de seu Deus, YHWH. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, op.cit. p. 182. 143 Pode-se pensar que estas “maldições” não chegam a ser declaradas, mas que se tratam de uma linguagem de caráter impositivo diante das obrigações das quais o povo não deve, em hipótese

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Ebal, como lugares privilegiados para dispensar as bênçãos ou as maldições. Não

são poucos os estudos que vêem nesta parte de Dt 11,26-29 o anúncio de uma

cerimônia sobre a aliança que se soma à outras prescrições litúrgicas apresentadas

em Dt 27,11-13144.

Seguindo estas mesmas observações, Christensen opta pela seguinte

estrutura formada entre os vv. 11-14145:

A) Grupos designados para abençoar o povo no monte Garizim vv.11-12

B) Simeão e Levi, Judá e Issacar, José e Bejamin v.12d

C) Grupos designados para amaldiçoar no monte Ebal v. 13a

D) Rubem, Gad e Aser e Zabulon, Dan e Neftali. v. 13d

E) Tomarão a palavra... com voz altiva v. 14a-b

O conjunto dos vv. 11-14 é formado por quatro grupos institucionais:

Moisés, os dois grupos tribais localizados em Garizim e Ebal, e os levitas. Cada

um deles tem uma determinada função. Pode-se verificar a seguinte dinâmica

imposta ao texto por meio de um paralelismo:

Moisés →→ ordens ao povo: v. 11

Monte Garizim →→ bênção: v. 12

Monte Ebal →→ maldição: v. 13

Levitas →→ falam ao povo: v. 14

Ao conjunto dos vv. 11-14, onde são agrupados dois grupos tribais, em

dois diferentes postos e com duas funções distintas, irá se juntar uma série de doze

normas, ligadas ao dia-a-dia. Verifica-se que este tipo de linguagem exortativa,

alguma, se esquivar. Cf. BUIS, P., “Deuteronome XXVII 15-26: Maledictions ou Exigences de L`alliance?”. In: VT, 17, 1967, pp. 478-479. 144 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, op. cit., pp. 369-372. Para Alonso Schökel o aspecto cerimonial não aparece de modo evidente, mas encontramos no texto a soma de inúmeras tradições litúrgicas. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco, op. cit., p. 364; ABBA, R., “Priests and Levites in Deuteronomy”. In: VT, XXVII, 3, pp. 256-267; CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy. Mich, William B. Eerdmans Publishing, 1976, pp. 330-334. “Deve ser enfatizado que essa literatura – demasiadamente diversificada para ser analisada aqui - não inclui, somente, discursos e narrativas sapienciais, mas sim uma série de mandamentos rituais; ordens sobre a cerimónia de bênção e maldição entre Monte Gerizim e Monte Ebal; o cântico de bênção às tribos reunidas em Israel, onde é dado um lugar de destaque para as tribos do norte e de Levi, enquanto Judá desempenha mais um papel marginal”. ROFÉ, A., Deuteronomy:Issues and Interpretation. Londo-New York, T&T Clark, 2002, p. 224. 145 Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 21,10-34,12. In: WBC, Vol. 6b.

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algo muito frequente nesta parte do livro, tem sempre a figura de Moisés como

principal mediador. A ação de sujeito principal na narrativa de Dt 11,26-29

executada pelo próprio Deus é aqui, transmitida à pessoa de Moisés.

Tais observações possibilitam estabelecer a seguinte estrutura para a

segunda parte:

1) Leis contra a prática da idolatria

• Proibição de imagem, objeto de fundição, obra de artesanato:

(v. 15)

2) Leis conclamando ao bom relacionamento familiar e social

• Apelo ao gesto de proteção ao pai e mãe: (v. 16)

• Proibição de violar a propriedade do vizinho: (v. 17)

• Proibição de desviar o cego do caminho: (v. 18)

• Alerta em defesa do direito do estrangeiro, do órfão e da viúva

(v. 19)

3) Leis de interdito sexual

• Não se deitar com a mulher do pai: (v. 20)

• Não se deitar com qualquer tipo de animal: (v. 21).

• Não se deitar com a irmã: (v. 22)

• Não se deitar com a sogra: (v. 23)

4) Leis de cunho ético-comunitário

• Proibição de golpear um companheiro secretamente: (v. 24)

• Proibição do suborno para golpear um inocente: (v. 25)

5) Comportamento ético-religioso

• Apelo para a prática das palavras da lei: (v. 26)

Ocorre uma semelhança entre a primeira e a última advertência. Os apelos

para evitar a prática da idolatria (v.15a-b) ecoam na fidelidade a todo o conjunto da

Lei que é o único meio de contemplar e conhecer os desígnios de YHWH (v. 26a-

b). Os laços familiares (vv. 16-19) formam um paralelo com as normas de cunho

mais social (vv. 24-25), tendo no centro leis de impedimento sexual (vv. 20-23).

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3.6.3. Comentário e análise semântica

A ênfase, de caráter cúltico, pode ser encontrada nestas afirmações: a) a

existência de dois grupos tribais localizados em lugares distintos: os que se

localizam sobre Garizim, pronunciam as bênçãos (v. 12a); os do monte Ebal são

portadores das maldições (v.13a); b) pela primeira vez, o grupo sacerdotal dos

Levitas recebe uma tarefa específica: entoar e dizer, com voz forte, as leis a serem

executadas pela comunidade (v. 14a); c) os dozes refrões que intercalam as

respectivas “maldições”, sendo que todos são concluídos com a fórmula

tipicamente litúrgica e solene: o amém.

Garizim e Ebal são localidades apresentadas de modo bem definido na

narrativa de Dt 27,11-14146. Numa comparação entre este texto com outras duas

narrativas, que também se utilizam desta identificação geográfica (Dt 11,26-29 e

Js 8,33-34) também ocorre o destaque dos montes Garizim e Ebal. Verificam-se,

também, constantes acréscimos posteriores à redação. Um argumento muito forte

é o de relacionar a posse da terra prometida à observância dos mandamentos de

YHWH.

Na narrativa de Dt 27,11-26, prevalece a expectativa de receber a bênção

por parte de YHWH. Pelo binômio hk'r'B., “bênção”, e a hl'l'q., “maldição, nota-se

a existência marcante de possuir ou não a proteção divina.

“Para o indivíduo e para o povo, existem somente dois caminhos: vida-bênção, morte-maldição. A ação dramática que se opta em Ebal-Garizim pretende demonstrar que toda a história e a vida do homem estão submetidas a estes critérios. Com sua conduta, o povo e também o indivíduo, podem desencadear um processo melhor ou o contrário. Uma vez na terra prometida, alcançada a paz, a bênção torna-se algo permanente, uma opção fundamental para todos (11,26; 30,19)147.

Moisés recebe a notoriedade. Dele tudo procede. Ele é o mediador entre a

vontade de YHWH e as necessidades dos homens de Israel. Aos poucos, o caráter

146 São duas “ localidades situadas no centro da terra prometida, formando o cenário de uma cerimônia que os israelitas devem realizar no mesmo dia em que cruzam o Jordão. Esta circunstância marca uma diferença significativa a respeito dos demais textos do segundo discurso de Moisés, situados além do Jordão; provavelmente, Dt 27 é uma interpolação tardia no discurso”. Cf. GARCÍA LÓPEZ, F., El Pentateuco. Introduccíon a la lectura de los cinco primeiros libros de la Biblia. Navarra, Editorial Verbo Divino, 2003, p. 311. 147 Cf. GUILLÉN TORRALDA, J., “Sobre el vocabulário de `bendición` del Pentateuco”. In: FERNANDEZ MARCOS, N., TREBOLLE BARRERA, J., FERNANDEZ VALLINA, J. (Orgs.). Simposio Biblico Espanol. Madrid: Universidad Complutense, 1984, p. 277.

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absoluto, centralizador na figura de Moisés se dilui junto às demais instituições,

representadas pelos doze líderes tribais e na função, pela primeira vez

especificada, dos levitas. Tudo acontece na seguinte ordem: Moisés ordena, os

líderes tribais abençoam ou não e, os levitas - oriundos da tribo de Levi (v. 12b) -

exortam todos os homens de Israel à observância das leis proclamadas. Nota-se

que existe um crescendo no interior da narrativa, o que leva Blenkinsopp a

concluir o caráter tardio imposto à redação148.

A narrativa apresenta três elementos legitimadores desta solenidade

litúrgica: a) Siquém, embora não explicitamente indicada na narrativa mas, pelas

indicações dos montes Garizim e Ebal, é o local escolhido para reunir todo o

Israel para ouvir a leitura dos mandamentos149. Situado a uma altitude de 881 mt,

voltado para o sul, o monte Garizim sempre se apresentava revestido de

pastagens, o que não era possível no monte Ebal, com 950 metros de altura e

localizado ao norte da cidade de Siquém, onde se encontra uma terra

predominantemente árida. Possivelmente, sejam esses os motivos para ser

escolhido como local da maldição; b) Os sacerdotes, oriundos da tribo de Levi,

são apresentados, pela primeira vez, com uma função de cunho eminentemente

religioso. A este grupo cabe a missão de ler laeÞr"f.yI vyaiî-lK'-la,, “para todo homem

de Israel”, (v. 14), de modo solene, com voz firme e altaneira o conjunto das doze

leis; c) !mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w >, “E todo o povo responderá: Amém”. Tal participação

dos homens de Israel, convidados a responderem simplesmente !mEa', “amém”,

destoa enormemente da reedição apresentada em Js 24. Na versão deuteronômica

tudo acontece de modo mais simples. Não acontece uma declaração soleníssima

exaltando a unicidade de YHWH, bem como a fidelidade inconteste do povo (Js

24,16-18; 21-24). O amém demonstra a aceitação em acolher o mandamento

pronunciado pelo levita, bem como, estabelecer um tipo de punição ao

transgressor.

As interdições anunciadas são todas de pleno conhecimento de Israel.

Segue o anúncio dos mandamentos divididos em cinco seções:

1) Maldição contra os idólatras. A prática da idolatria é condenada em

todas as esferas. Caso o delito viesse a ser julgado, o transgressor era 148 Cf. BROWN, R. E., FITZMYER, J.A., MURPHY, R.E., NCBSJ, p. 245. 149 O relato será retomado e detalhado em Js 24. Garizim e Ebal exerceram relativa importância na geo-política militar na defesa da cidade de Siquém, por suas posições tremendamente estratégicas. Cf. AHARONI, Y. e AVI-YONAH, M., BA, Macmillan, New York, 1977, p. 43.

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publicamente punido. Aqui, acentua-se o processo ou a punição feita em segredo.

Aquela que só Deus é capaz de ver e punir. A lei contra a idolatria já era

amplamente divulgada e conhecida. Aqui, o redator considera a lei apresentada no

Código da Aliança (Ex 20,23; 23,13), no Decálogo (Dt 5,8) e que será, mais tarde,

apresentada no conjunto das Leis de Santidade (Lv 19,4; 26,1)150.

2) Leis conclamando ao bom relacionamento familiar e social. Neste

conjunto, quatro leis são apresentadas. A primeira faz um apelo contra qualquer

atitude de venha amaldiçoar pai e mãe. O crime cometido contra o pai e contra a

mãe não deixa de ser uma reedição de Ex 21,17 e mantida na Lei de Santidade (Lv

20,19). Uma segunda lei, voltada para o estabelecimento da boa convivência,

proíbe usurpar a propriedade do vizinho (Dt 19,14). O direito deve também ser

estendido aos cegos e coxos. Esta terceira lei que compõe este conjunto de

normas, voltadas para o bom relacionamento familiar e social, surge pela primeira

vez em Dt 27,18, e será retomada nas Leis de Santidade (Lv 19,14). Uma quarta

lei evidencia a prática do direito ao grupo dos desvalidos (v. 19). Numa primeira

redação, no Código da Aliança, o grupo dos beneficiados parece estar mais

ampliado, além de serem apresentados como pessoas capazes de reivindicar ou

apelar contra a violação de seus direitos (Ex 22,20-23; 23,3).

3) Leis de interdito sexual. As proibições pairam na esfera dos laços

familiares: mãe (v. 20); irmã (v. 22) e sogra (v.23). A bestialidade também é

censurada no verso 21. A interdição da prática sexual com a mãe recebe uma

reedição (v.20). A proibição já fora assinalada no Código Deuteronômico (Dt

23,1) e sofrera uma reedição, uma significativa ampliação junto às Leis de

Santidade (Lv 18,7-17)151. A censura imposta à prática da bestialidade é mantida

no conjunto dos dois códigos legais (Ex 22,18; Lv 18,23.20,15). Em Dt 27,21 a

prática é tida como um gesto reconhecido como infâmia, isto é, um gesto que

desonra a pessoa. No Código da Aliança a mesma prática é apresentada como uma

grave violação em que o réu deve morrer: tm'(Wy tAmï hm'ÞheB.-~[i bkeîvo-lK', “todo

150 Nesta parte do trabalho os três Códigos serão citados e relacionados entre si. Toma-se por base a definição exposta por Crüsemann: “Como o Código Deuteronômico busca continuar, corrigir, complementar e substituir o Código da Aliança, assim o Código da Santidade quer proceder em relação ao Deuteronômio”. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, op. cit., p. 383. 151 A ampliação, e até certo modo, o detalhamento na proibição sexual com mulheres na esfera familiar, apresentada em Lv 18,7-17, evidenciam temas vividos no interior da comunidade religiosa na época pos-exílica. Cf. Ibidem, p. 407-408.

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aquele que se deitar com toda classe de animal, será morto” (Ex 22,18). A

condenação à morte não se mantém em Lv 18,23, em que a bestialidade deve ser

evitada para não violar a lei da pureza. Recorre-se ao verbo טמא, “ficar impuro,

continuar impuro”, no piʿel. Retomado em Lv 20,15, a mesma prática impõe

também ao homem, como ao animal a pena capital de morte. A prática sexual

com irmã ou sogra é uma proibição (vv. 22-23). A interdição é explícita no

Código Deuteronômico e posteriormente mantida na Lei de Santidade. Em Lv

18,9 o ato recebe uma proibição, ao passo que em Lv 20,17, este tipo de falta

contra a família, terá como pena máxima a morte de ambos. Esta mesma

dinâmica de agravamento da pena se mantém diante do homem que pratica

relação sexual com sua sogra. Em Lv 18,17 o incesto é proibido, e em Lv 20,14 o

incesto, uma vez comprovado e julgado, impõem aos delatores, homem e mulher,

a pena máxima de morte.

4) Leis de cunho ético em relação ao compatriota. A violência cometida

contra um companheiro, somada à prática de aceitar suborno, são comportamentos

que tornam o homem infame. O homicídio é citado pela primeira vez no decálogo

Ex 20,13. No Código da Aliança (Ex 21,12) causar a morte de alguém é motivo de

levar o réu também à morte. Em Dt 27,24, encontra-se um adendo: rt,S'_B; Wh[eÞrE

hKeîm; rWr§a', “Infame quem golpear seu próximo em segredo”. A inclusão do termo

rt,S'_B; “em segredo” permite perceber uma evolução, no texto do Deuteronômio,

em comparação com o Código da Aliança e a Lei de Santidade (Lv 24,17) que

estabelecem a pena de morte para quem ultrajar seu semelhante. Esta preocupação

em preservar a vida pode oferecer suporte à compreensão de não aceitar suborno

para golpear um inocente (v. 25). O crime de suborno não recebe nenhuma norma

na Lei de Santidade. Na narrativa de Dt 27,25 o suborno não deve acontecer,

tendo em vista a morte de um inocente. A ênfase ao gesto de aceitar suborno deve

ser evitada, pois se trata de um desvio de consciência, como registra o Código da

Aliança (Ex 23,8) e o Código Deuteronômico (Dt 16,19).

5) Comportamento ético-religioso. O último gesto, considerado como

infâmia, não apresenta uma lei propriamente dita, mas um solene apelo para a

comunidade religiosa não se esquecer de todo o conjunto de leis recebido de

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YHWH (v.26)152. Trata-se de um simples apelo, uma exaltação conclamando ao

não esquecimento de nenhum dos mandamentos contidos no conjunto da lei doada

por YHWH.

Dt 27,11-26 é um texto que se apresenta como um verdadeiro diálogo

litúrgico comparado à escolha, exclusividade suprema de YHWH, proferida pela

comunidade em Siquém (Js 24,14-24). O aspecto litúrgico pode ser comprovado

por meio do gesto de “abençoar o povo” (v. 12b), na palavra dita “para a

maldição” (v. 13a) e, pela repetição, um tanto solene, da palavra ןמ א “amém”, (vv.

15-26), pronunciada pela assembléia, por estar de acordo com todas as possíveis

infâmias a serem evitadas, proclamadas םל ר קו “com voz forte”, pelos levitas (v.

14). As bênçãos e maldições adquirem um amplo significado quando relacionadas

aos personagens e, consequentemente, às respostas pronunciadas pelo povo, após

ouvirem as leis ditas pelos levitas. Ebal e Garizim, dois lugares de culto ligados às

antigas tradições que remontam às fases predeuteronômicas153. O ןמ א “amém”,

reforça o caráter litúrgico impregnado em toda a perícope.

Destaca-se a utilização, por duas vezes, do verbo דמ ע “estar de pé,

permanecer”154, que seguido das respectivas preposições: ר2ב ל “para abençoar”,

(v. 12a) e הל ל ק ה ˉלע , “para a maldição” (v. 13a), impõem ações bem definidas aos

dois grupos tribais instalados em Garizim e Ebal. Seguindo o contexto da

narrativa, estes se apresentam “em pé” evidenciando a atitude de intercessão, de

vigilância, de prontidão junto à assembléia reunida, num lugar previamente

determinado. Vindos da tribo de Levi, responsáveis pela bênção (v. 12b), surgem

os sacerdotes, que não proclamam as bênçãos, mas um extenso diálogo litúrgico,

tendo por base um conjunto de leis provenientes do Código da Aliança e

reeditadas na Lei de Santidade, como anotadas acima.

A doxologia imposta ao conjunto da narrativa verifica-se pelo uso ritmado

da expressão ןמ א “amém, de fato”. Expressa uma atitude comportamental. O povo

ao ouvir a proclamação dos atos proibidos, responde de modo inconteste. A

expressão, de cunho conclusivo, ןמ א “amém”, está unida não somente ao anúncio 152 Possivelmente Dt 27,26 é acréscimo estabelecido durante a redação final do livro. Cf. SCHÖKEL, L. A., Pentateuco, p. 336. Ver também o parecer de Blenkinsopp. Cf. BROWN, R. E., FITZMYER, J. A. e MURPHY, R. E., NCBSJ, p, 246. 153 Os lugares não recebem nenhuma notoriedade durante o período da monarquia israelita. Pensa-se que dificilmente seria o lugar escolhido para manifestar a vontade de YHWH, e aí, perpetuar sua memória. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, op. cit. p. 183. 154 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBHP, p. 504; BROWN, F., DRIVER, S. e BRIGGS, C., BDB, p. 763; HARRIS, R. L., DITAT, p. 1637.

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das atitudes proibitivas - idolatria, comportamento ético-social, limites à prática

sexual, comportamento religioso – mas ao enunciado qualitativo de se tornar um

“infame, amaldiçoado” na vivência comunitária. Esta condição é o fio condutor

da narrativa. O verbo רר א “amaldiçoar, execrar” não é inúmeras vezes citado nos

textos do Antigo Testamento155. No livro do Deuteronômio é utilizado sempre no

senso exortativo de cumprir os mandamentos, os preceitos deixados por YHWH.

Todas as afirmações se voltam para esta condição. Não importa a classificação

social; o texto é explicito ao se dirigir laer"f.yI vyaiî-lK'-la, “para todo homem de

Israel” (v. 14).

A categoria social םע “povo”, é citada na abertura (v. 11) e na conclusão

da perícope (v. 26), além de perpassar todo o corpo do texto ao responder às

proibições proclamadas. A utilização é de uso genérico e não deixa dúvida de que

o conceito de povo não se reduz a uma realidade tribal ou clã. Trata-se de um

conceito vasto, aglutinador de todas as instâncias sociais, segundo as instituições

religiosas citadas no texto, como: a liderança de Moisés (v. 11), o nome das doze

tribos (vv. 12-13), os levitas (v. 14). Além destas instituições, encontram-se os

elementos materiais na formação e constituição do povo: a família (16a), o

respeito na demarcação da propriedade (v. 17a), a manutenção do direito dos

grupos desfavorecidos (v. 18a, 19a), a convivência ética com base no grau de

parentesco (vv. 20-23), as leis para conter homicídios (vv. 24,25).

A preocupação demasiada com a infâmia ou execração pública pode estar

implicada em algum tipo de revisão ou releitura empreendida em algum

determinado período histórico das leis. Há um acento muito forte voltado para o

desejo de viver honestamente, de modo equânime no interior da comunidade. O

comportamento justo deve imperar na convivência com os pais, com os vizinhos,

junto ao deficiente e aos setores pobres da comunidade (vv. 16-19). Numa outra

série, também contendo quatro advertências, merece respaldo: evitar a

contaminação por meio de certas práticas sexuais: wybiêa' tv,aeä-~[I “com a mulher do

seu pai”, hm'heB.-lK'-~[I “com qualquer animal”, Atêxoa]-~[ “com sua irmã”, ATn>t;xo)-~[i

“com sua sogra” (vv. 20-23). O uso insistente do verbo בכ ש “deitar, reclinar,

inclinar”, que, ao longo da narrativa, adquire um sentido sexual, reforça o caráter

155 Das 32 vezes em que o verbo é citado no Antigo Testamento, 16 encontram-se nos conjuntos dos capítulos 27,15-26 e 28,16-19.

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de pureza cultual, acenando para um período recente na redação de autoria do

redator deuteronomista.

3.7. Conclusão: uma prática jurídica que agrada a Deus

A existência de uma redoma de proteção em torno desses grupos, em

momentos bem específicos na vida social, religiosa e jurídica de Israel, e que

defendê-los passa a ser uma maneira de expressar o grau de relacionamento com

YHWH.

Na coletânea dos textos analisados – Dt 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12;

24,17-22; 26,12-15; 27,11-26 – onde as narrativas empregam uma linguagem ora

litúrgica, ora jurídica, nota-se a referência à trilogia social inserida num

determinado contexto. Pela ordem estudada, concluem-se os respectivos

resultados nos círculos narrativos:

a) A historicidade divina passa pela defesa dos marginalizados. Em

Dt 10,12-22 encontra-se uma declaração soleníssima sobre os atributos

do Deus de Israel. O texto não faz outra coisa a não ser exaltar os

poderes de YHWH, transmitidos ao longo de gerações. Apresenta a

singularidade do Deus de Israel. Uma divindade acima de todas as

outras. Incomparável em poder e realizações em defesa do povo por

ele escolhido. Entre inúmeras ações, vê-se um Deus solícito na defesa

do direito aos grupos socialmente fracos e enfraquecidos. Não é por

coincidência a insistência no uso dos verbos: faz justiça, ama o

estrangeiro, dá pão e roupa. Tais atitudes divinas devem ser repetidas

pela comunidade israelita, como prova de sua adesão filial a YHWH.

b) Existe um período definido para a prática da equidade. A narrativa

de Dt 14,28-29 realça um tempo determinado – “Ao final de três anos

– como período para disponibilizar a quantida especificada – décima

parte – aos necessitados. Tal atitude garante a bênção de YHWH. Não

existem gestos tangenciais para não pôr em prática tal determinação

divina. É clara a norma ao propor um tempo em que os pobres irão

“regojizar-se em suas portas”.

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c) Em família, alegram-se na presença do Todo Poderoso. A Festa das

Semanas tem um tempo determinado para acontecer, segundo Dt 16,9-

12. A contagem inicia-se a partir do ato de colher as primeiras espigas

de trigo. Na ocasião, parte dos produtos do campo será entregue em

um lugar de culto determinado. Duas são as ocasiões de alegria:

usufruir dos produtos colhidos no campo, e a ocasião de poder

observar e executar tal mandamento divino. Trata-se de um princípio

ideológico justificador de práticas gratuítas diante daquele que libertou

Israel da terra da escravidão.

d) Exercer o direito pela ocasião de colher os produtos da terra. A

ocasião da colheita dos produtos básicos da economia – trigo, azeite e

vinho – citados em Dt 24,17-21, é um momento de garantir a vigência

do direito dos grupos desprotegidos. Nenhuma quantia é

exclusivamente citada na narrativa. Em três ocasiões156 o texto declara

que não se deve voltar para pegar as sobras que ficaram para trás, mas

parte do produto, quando encontrada, pertencerá, como evidencia a

narrativa, a quem dela necessitar. Assim como a acasião da colheita, a

lembrança dos anos vividos na condição social de escravo, citada duas

vezes na narrativa, é um forte argumento que obriga a comunidade de

Israel a praticar e garantir o exercício do direito.

e) A não transgressão da lei como meio de receber a bênção. Pela

segunda vez, no conjunto das perícopes, a décima parte dos produtos

da terra é mencionada como pertencente ao estrangeiro, órfão e viúva

(Dt 14,28,29 = Dt 26,12-15). O fato de pertencer a um grupo

específico passa, primeiramente, pelo gesto de dar a quantia estipulada

em lei, com a finalidade desses grupos se fartar e suprir suas

necessidades. Há uma diferença quando da comparação com o texto de

Dt 14,28-29. Desta vez, ocorre maior elucidação ao mencionar as

possíveis ocasiões em que a décima parte dos produtos, quantia esta,

diga-se de passagem, exorbitante, corre o risco de ser desviada de sua

especificidade. Não é por acaso a referência, por cinco vezes, da

partícula de negação 9א “não”. Trata-se de um comportamento pautado

156 Cf. Dt 24,19d, 20c, 21c.

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pela ética de em tudo “ouvir a voz de YHWH”. Tal gesto exige um

comportamento voltado para praticar plenamente os princípios

expostos por Moisés, tendo assim, a garantia de viver numa situação

de paz.

f) A ação litúrgica reafirma a manutenção do direito. Fora do

conjunto dos textos que formam o corpo primitivo do livro (12-26), Dt

27,11-26 destaca uma ação litúrgica voltada para agradar a Deus. São

recitadas realidades presentes na esfera religiosa, social e familiar da

comunidade. A ação litúrgica, tendo à frente os levitas, é

compreendida como uma ocasião de relembrar Israel a não se esquecer

de todo um conjunto de leis impostas a Israel por seu Deus. Não se

exclui, nessa ação litúrgica, a defesa do direito ao estrangeiro, órfão e

viúva.

Como é possível perceber, as leis expressas são de cunho excessivamente

apodíctico. Não deixam brechas para argumentações possíveis. Por outro lado,

vale perguntar se estas leis foram de fato praticadas. A “décima parte” foi, de fato,

disponibilizada com evidência, como é possível perceber na leitura da lei? A

defesa intransigente dos setores, socialmente desfavorecidos, foi preocupação em

destaque no conjunto das relações econômicas? Nas épocas das colheitas a

separação da décima parte foi algo empreendido por setores responsáveis em fazê-

la? O gesto de não voltar para respigar o campo foi lembrado, num senso

rotineiro, e praticado? São questões deste naipe que serão analisadas adiante, e

para melhor compreender os textos desta parte do livro do Deuteronômio,

escolheu-se a época dos Tanaítas, com evidência às escolas de Rabi Hillel e Rabi

Shammay, na terceira parte da pesquisa.

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PARTE II: COMENTÁRIO DOS TEXTOS DA MISHNÁ E SUA INTERPRETAÇÃO DO DT

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4 Trilogia social nos textos da Mishná

4.1. A importância da Mishná na formação do judaísmo

Na forma em que chegou até nossos dias, a Mishná está dividida em seis

principais ordens. Cada ordem (seder) contém certo número de tratados. São 63

tratados que se dividem em capítulos; neles encontramos as respectivas normas.

Na abordagem optou-se por unir tratados que, embora sendo apresentados em

ordem diferente, abordam temas semelhantes.

Ao longo de toda sua existência, as comunidades religiosas de Israel,

espalhadas nos mais diferentes centros de produção literária, sempre estiveram

sob um determinado poder imperialista1.1Este pequeno país, por sua posição geopolítica, enfronhado entre grandes

potências regionais, sempre recebeu influência dos movimentos políticos e

literários de além fronteiras. Os projetos políticos, movimentos de revoltas ou

contra as reformas, as relações econômicas, ofereceram elementos dos mais

variados tipos à elaboração teológica, presentes nas páginas bíblicas. Impérios e

produções literárias se interagem.

4.1.1. A tradição judaica em meio à experiência da הל גו , "desterro"

O cenário dominado pela presença romana ocupa o centro dessa parte da

pesquisa. É durante a presença desse imperialismo brutal que tem início o

processo redacional da tradição oral, culminando com a Mishná. Logo após a

1 Consideram-se, principalmente os impérios Babilônico, Persa, Grego e Romano, por serem amplamente documentados, quer nos textos bíblicos quer em textos extrabíblicos. Cf. JOANNÈS, F., La vie de déportés de Juda en Babylonie. In: LMB, 161, 2004, pp.27-31; SCHWARTZ, J., Quelques réflexions à propor de trois catastrophes. In: DAHAN, G. (Org.), Les Juifs au regard de l`histoire, Paris, Picard, 1985, pp. 21-29.

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conquista romana da cidade de Jerusalém, com a destruição do II Templo, em 70

d.C., e que persistiu por mais de dois séculos, os sábios judeus, exatamente em

Yavneh (Jâmnia), procuravam responder aos desafios impostos sem, no entanto,

menosprezar as máximas bíblicas.

A pujança da cidade de Jerusalém, somada às classes sacerdotais e

funcionários envolvidos nos trabalhos da corte e do templo, muito servis às

normas ditadas por Roma, não serão capazes de impedir a dispersão de parte da

população das cidades mais importantes de Israel, diante das políticas efetuadas

pelos imperadores romanos. O regime imposto pelos romanos se apresentou como

um poderio avassalador. Os anos seguintes a 66 nada mais representam à

comunidade judaica, dentro e fora das terras de Israel - um sinônimo de destruição

em massa. A conjugação de forças, motivadas por líderes religiosos como R.

Yohanan b. Zakai, R. Akiba, R. José b. Halafta terá um caráter de nobre

resistência. Pois, sabe-se que nem todos os grupos religiosos se uniram contra a

dominação romana. Os fariseus, por exemplo, não foram favoráveis a qualquer

tipo de movimento insurrecional, preferindo apegar-se à leitura e estudo da Lei; é

a eles que devemos o surgimento do judaísmo sobre a forma do rabinismo.

Sempre envolta com as grandes mudanças políticas do cenário

internacional2, a compreensão da experiência do termo הל גו , “exílio, desterro”3,

2 “Por ser um corredor comercial, ligando o Egito com a Fenícia, o Norte da Síria, a Mesopotâmia e a Arábia, a terra de Israel sempre despertou o interesse dos grandes impérios: egípcios, assírios babilônicos, persas, gregos, romanos”. MARQUES, M. A., Beleza, sedução e morte: uma leitura exegética de Judite 16,1-12. Tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, 2008, p. 201. Destaque para o capítulo III, na seção sobre o “o grupo dos hasidim”, pp. 221-226. 3 O verbo grego διασπείρω, “dispersar”, está na raiz da palavra diáspora, presente na LXX e oriundo do III século a.C. Sob o pressuposto de dispersar, distribuir, disseminar foi possível empregar o conceito de diáspora às comunidades espalhadas em diversas localidades fora das terras de Israel. Segundo os textos bíblicos, o senso de ser estrangeiro, de viver em terras alheias, muito cedo foi experimentado pelos patriarcas (Gn 15,13; 23,4). A produção literária dos primeiros profetas, tidos como escritores, irá evidenciar as realidades históricas que submetem as comunidades de Israel à condição de estrangeiro. No uso do conceito תלוג , “desterrados” será desenvolvido as visões proféticas que visam o restabelecimento, em terras de Israel, da porção dos exilados na Babilônia e daqueles que permaneceram em Israel. A expressão, ץר את ה פונ ע כ ב ר אמ , “dos quatro cantos da terra” (Is 11,12), sinônimo retomados em Is 45,6: ץר אה ה צ ק מ , “dos confins da terra”, e em 56,7 no conceito de יםמ ע ה ־לכ א ל ר ק ה י ל פ ת ־יתי ב ית י ב כ , “pois a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos”, são nítidas referências às comunidades que vivem fora dos limites geográficos de Israel. Tais expressões soam como um autêntico projeto social de reconstruir uma nação espalhada pela dominação babilônica. O profeta Jeremias é outro que se utiliza de conceitos específicos ao expor o ideal de recompor uma nação dilacerada: ןפוץ צ ר א מ

לא ר ש י ינ ב ת־ה א ל ע ר ה ש א , “que fez subir os filhos de Israel da terra do norte” (Cf. Jr 16,15. 23,8). Nota-se que a palavra diáspora, de modo algum, traduz o peso histórico do conceito תלוג , “desterrados” que, na Bíblia, jamais pode ser entendida como algo abstrato quando se refere ao

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acompanhou todas as fases históricas vivenciadas pela comunidade religiosa de

Israel. Tal experiência pode ser verificada com clareza ao longo de inúmeras

produções literárias ocorridas em Israel. Produções essas, que colaboraram na

garantia da identidade e perspectivas de verdadeira sobrevivência ao longo de toda

sua existência. O fenômeno Israel não se compreende fora dos textos sagrados

produzidos pela comunidade. Eis um fator essencial na preservação da identidade

de Israel, em meio aos grandes confrontos do cenário militar e cultural impostos

pelos dominadores. Apaziguadas as armas, é preciso conter o domínio cultural.

Na composição da Mishná, a experiência da diáspora envolve todos os

fatores da vida social, religiosa e cultural dos judeus. O processo de compilação

dos textos da Mishná coincide com o período de ocupação do império Romano4.

Os planos desse avassalador império colocaram em risco a identidade ética das

comunidades religiosas de Israel. Embora residindo em terras de Israel, ou além

fronteira, as comunidades, na época dos Tannaítas, não perderam de vista o

projeto maior de viver, em meio às contradições históricas e sociais impostas pela

política imperialista, o seguimento dos trâmites expostos nos textos sagrados.

A Mishná é o resultado final de um processo redacional, no qual os sábios

de Israel não mediram esforços para compilar leis, tradições, conceitos divinos,

por meio de um esmerado trabalho, sempre pautado pela desenvoltura no

conhecimento da Torá escrita e oral, concluído em meados do ano 219 d.C.5. A

exílio, aos errantes, aos escravos ou ainda a um tempo de alienação. Cf. PAUL, A., Une voie d’approche du fait juif: diaspora et gālût. In: CARREZ, M.; DORÉ, J.; GRELOT, P. (Orgs.), De la Tôrah au Messie, Paris, Desclée, 1981, pp. 367-380. Segundo Manns, o conceito diáspora tornou-se uma realidade histórica junto às comunidades judaicas. Sua síntese apoia-se nos informes bíblicos e nos escritos de Flávio Josefo. Cf. MANNS, F., Le Judaïsme: milieu et memoire du nouveau testament, Jerusalém, Franciscan Printing, 1992, pp. 208-218; HORSLEY, R. A., Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial, São Paulo, Paulus,2004, p. 22. 4 Propícia a observação de Schwartz feita sobre as comunidades religiosas atingidas no percurso das três guerras envolvendo romanos e judeus: “O primeiro embate contra Roma se limitou à Terra Santa. O segundo, nascido de longo ressentimento, atingiu mais nitidamente a Diáspora, se bem que as forças não foram suficientes para impedir a terceira. A revolta, no final do reinado de Adriano, atingiu, em certos aspectos, o pivô da primeira revolta. E foi assim que o II século d.C. presenciou o desaparecimento de uma cultura de forma grega e a conclusão, na Judéia, do desastre largamente iniciado em 70 d.C.”. Cf. SCHWARTZ, J. À propôs de trois catastrophes, op.cit., p. 29; MANNS, F., op. cit., pp. 35-38. 5 A abordagem é consensual entre inúmeros estudos. Verifica-se que os fatos ocorridos em meados do ano 135, impuseram à organização rabínica novas exigências. Como bem analisam Strack e Stemberger: “O redator colecionou as fontes, selecionou as leituras mais importantes..., transmitiu assim o texto eclético a partir dos treze modos de halakhah como havia aprendido”. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica,Valencia, Soler, 1989, p. 202; Cf. KÜNG, H., Ebraismo, Milano, RCS, 2005, p. 160. Uma ressalva histórica feita por Miranda e Malca facilita compreender o surgimento da Mishná: “O cristianismo não se expandiu e o judaísmo rabínico não se consolidou nos vazios de um Império decadente ou de uma

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Torá exige um constante processo de renovação. Tal movimento está dividido

entre a pesquisa (Midrash) e o estudo-ensino (Talmud). Ao redigir a Mishná, os

sábios atingem um dos estágios desse processo de renovação da Torá6. O

conhecimento do passado se justifica numa harmonia e coerência com as máximas

divinas. Urge ensinar o passado, tendo em vista o futuro.

A compreensão do conceito de Torá se divide em dois aspectos que se

completam mutuamente. O termo clássico הל פ ע ב ה ש ר ו ת “Torá oral” usado pela

tradição judaica é considerado antigo na moderna literatura7. No outro lado existe

a בת כ ב ה ש ר ו ת , “Torá escrita”. Por Torá oral se entende o conjunto de normas

estabelecidas pelos sábios e fielmente transmitidas na relação mestre e discípulo.

Assim, deixa transparecer o primeiro parágrafo do tratado Pirkei Abhot:

“Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu a Josué, Josué aos anciãos, os anciãos aos profetas, os profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembléia. Estes diziam três coisas: sede cautelosos no julgamento, fazei muitos discípulos, colocai uma proteção em torno da Torá”8. Tais normas formam a jurisprudência rabínica que recebe o nome de הלכה,

halakhah. Aos sábios9, por meio de uma autoridade ilimitada, coube a missão de

civilização em perigo, como muitos miticamente acreditam. No que se refere ao cristianismo, foi diante de um mundo no melhor de sua forma que ele teve, desde o início, de apresentar também o melhor de si mesmo para garantir sua expansão e sua consolidação, como ilustra toda a literatura patrística. Quando o Nassi Shimon morreu e sucedeu-lhe seu filho Iehudá Hanassi, nos finais do século II d.C., a liderança palestina dos judeus cresceu de forma significativa. A posição social, a cultura, as habilidades de organizador e qualidades de estadista e de devoção fizeram de Iehudá um dos homens mais extraordinários de sua época. Até hoje é referido como “O Príncipe”, “Nosso Santo Rabino” ou simplesmente “Rabi”. Sob sua orientação foi compilado e organizado o código de leis, a Mishná”. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios Fariseus: reparar uma injustiça,São Paulo, Loyola, 2001, p. 51; Cf. COHEN, A., Le Talmud, Paris, Payot, 1986, p. 32. Horsley declara ser a Mishná “o fruto mais notável da atividade rabínica”. Cf. HORSLEY, R. A., Arqueologia histórica e sociedade na Galiléia, São Paulo, Paulus, 2000, p.166. 6 Cf. Ibidem. p. 64. 7Uma boa definição pode ser encontrada nos trabalhos de Safrai. Na sua opinião, deve-se ter certa precaução diante do entendimento dado à palavra torá. Na bíblia hebraica, o conceito básico dessa palavra é “instrução”, mas pode receber também um significado mais amplo sendo compreendida na sua forma plural: torot, ensinamentos, leis. Cf. SAFRAI, S., Oral Tora. In: SAFRAI, S. e TOMSON, P. J. (Orgs.) The literature of the Sages, Philadelphia, Van Gorcum, Assen/Maastricht, 1987, pp. 35-119. 8 Cf. Abot 1,1. DEL VALLE, C., (Ed.), La Misna, Salamanca, Sígueme, 1997, p. 837. 9 A compreensão de Torá, como texto sagrado, doado por Deus a Israel, por meio de Moisés, compreende sempre uma atualidade, aos desafios e problemas no hoje da existência humana. Nessa função de atualizar os conceitos divinos, está a função dos sábios. No tratado BQ (Babá qammá) 5,7 encontramos a seguinte afirmação, que justifica o conceito atual, em relação aos textos sagrados: “Porque a Escritura fala de casos presentes e comuns”. Essa compreensão transforma a jurisprudência não numa norma presa a um passado, mas inserida no universo de uma comunidade sempre em transformação. Útil a citação de Urbach, ao recorrer à uma visão de Santo Agostinho, alheio ao mundo cultural judaico, para enfatizar o apego incondicional à tradição e ao exercício dos sábios, em meio aos desafios da comunidade religiosa: “É uma verdade surpreendente que o povo judeu jamais abandonou suas leis, seja sob as normas dos reis pagãos ou

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interpretar a Torá e garantir a execução dos princípios das halakhoth. Tais

normas, englobando todos os aspectos da vida pessoal e comunitária, enfocavam

princípios como: nascimento, casamento, normas no trabalho na agricultura,

preceitos éticos e teológicos10.

O termo Torá implica duas diferentes conotações, compreensões. Torá

significa o trabalho de ensinar os mandamentos de YHWH e incentivar o

cumprimento das leis. Não há um grau hierárquico ao relacionar a oralidade ao

escrito. A diferença está no processo e não no valor de credibilidade ou

divergência de conteúdo.

“Rabban Yohanan ben Zakkai, com seus colegas e seus discípulos, começou a reconstruir a vida judaica sob a Palavra de Deus, na Torá. A Torá, para os fariseus não é somente a Escritura (Torá escrita); ela é também e sobretudo tradição (Torá oral)”11.

Os inúmeros percalços provocados por constantes guerras e violações de

direitos é a causa maior do desencadeamento do processo redacional imposto às

leis orais. Pode-se imaginar se não fossem essas últimas realidades cercearem a

vida da comunidade religiosa, não existiriam, em seu formato atual, os textos da

Mishná, e o exercício da oralidade seria corrente, ainda, em nossos dias.

4.1.2. A autoridade hermenêutica de Hillel

Separados por milhares de quilômetros e vivendo sempre sob os mesmos

domínios imperialistas12, a comunidade judaica instalada na região do Eufrates

jamais se distanciou culturalmente da cidade de Jerusalém13. Sabe-se que os

judeus manifestavam sua pertença ao templo de Jerusalém enviando, sob a dominação dos cristãos. Neste aspecto, ele se distingue das outras tribos e nações. Não houve nem imperador, nem rei que, os encontrando dentro de seu país, fosse capaz de impedir os judeus de se separarem, pela observância de sua Lei, do resto da família dos outros povos”. Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, Paris, Cerf-Verdier, 1996, p. 541. Ver também a análise de Briend sobre a vida das comunidades, privadas do templo, em terras da Babilônia. BRIEND, J., Une communauté juive sans temple. In: LMB, 161, 2004, pp. 33-35. 10 Sobre todos os tratados na Mishná, vale conferi-los mais adiante, quando oportunamente analisam-se os respectivos textos mishnáícos relacionando-os ao livro do Dt. 11 Cf. LENHARDT, P., “La valeur des sacrifices dans le judaïsme d`autrefois et d`aujourd`hui”. In: NEUSCH, M. (Org.), Le sacrifice dans les religions, Paris, Beauchesne, 1994, p. 62. 12 Manns apresenta uma síntese sobre os vários impérios e suas respectivas políticas frente às comunidades judaicas. Cf. MANNS, F., Le judaisme: milieu et mémoire du Nouveau Testament, op. cit., pp.25-40. 13 Salutar conferir as cidades babilônicas, bem como, suas características nos anos que seguiram o exílio babilônico. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, op. cit., pp. 27-28.

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periodicamente, a quantia correspondente dos frutos armazenados durante a

colheita, no cumprimento dos preceitos. Fala-se de caravanas formadas por

milhares de pessoas em marcha pelo deserto da Síria, com etapas em Palmira,

Damasco e Bashan em direção ao monte Sião14.

Seguindo a informação de Charlesworth, Hillel, cognominado “o velho”,

ou “o babilônico”, fez seus primeiros estudos sobre a Torá em sua terra natal,

Babilônia. Nasceu no ano 60 a.C. vindo a falecer em 20 d.C., vivendo sob as

políticas empreendidas por Herodes, o grande (37 – 4 a.C), sendo contemporâneo

de Jesus de Nazaré15. Não se sabe exatamente quando passou a residir em

Jerusalém no desejo de completar seus estudos, tendo como diretores os zugot,

“pares”, Shemayah e Avtalyon16.

O período da atuação de Hillel, juntamente com a escola do sábio

Shamai17, marca o surgimento da época dos tanaítas18. A novidade inaugurada por

esse brilhante sábio, do partido dos fariseus, não foi somente sua dedicação

incondicional à Torá, mas a possibilidade de estabelecer regras, relativas ao

método aristotélico19, no estudo dos textos bíblicos. Tem início o controle

racional sobre as interpretações. As sete regras hermenêuticas compiladas por

Hillel representam não apenas um momento, mas o modelo de interpretação

14 Cf. HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, Paris, Albin Michel, 2005, p. 18. Ao descrever sobre a importância do “concílio” de Yabné e seu esforço em determinar os livros canônicos ou não, Manns destaca que o crivo hermenêutico adotado considerou as regras estabelecidas por Hillel. Cf. MANNS, F., op. cit., p.41. 15 Cf. CHARLESWORTH, J. H. e JOHNS, L. (Orgs.); Hillel and Jesus: Comparative Studies of Two Major Religious Leaders, Minneapolis, Fortress Press, 1997, p. 4. As informações biográficas sobre este conceituado mestre da escritura carecem de uniformidade. Miranda e Malca destacam as 316 citações feitas sobre Hillel nas páginas do Talmud, bem como, lendas que se mesclam ao seu alto grau de importância no mundo intelectual da época. Fala-se, até, que teria vivido 120 anos, divididos em três fases distintas: quarenta anos em Babilônia, quarenta como estudante em Jerusalém e outros quarenta na qualidade de patriarca em Jerusalém. Cf. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, op. cit., p.121. 16 Inúmeras passagens do Talmud anotam o amor incondicional no estudo da Torá demonstrado por Hillel. Cf. HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, op. cit. p. 28; FRIEMAN, S., Who`s who in the Talmud, op. cit., pp. 163-165. As duplas de sábios marcam um período peculiar no cuidado das tradições. Fala-se que um estabelecia-se como nassi, “presidente”, enquanto o outro ocupava a cadeira de av bet din, “presidente do tribunal”. Embora sendo poucas as informações sobre a função dos pares, sabe-se que atingiram um elevado grau de reconhecimento e admiração, junto à população, após o ano 104. Cf. STEINSALTZ, A., Introduction au Talmud, Paris, Albin Michel, 1987, p. 32. 17 “Estes fariseus foram os dois últimos e mais ilustres dos cinco “pares”, mestres fariseus que trabalharam em duplas, como presidente e vice-presidente do San’hedrin”. Cf. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, op. cit. p. 122. 18 Cf. Ibidem, pp. 34-35. 19 Cf. WIGODER, G. (Ed.), Hillel. In: DE d J, Paris, Cerf/Robert Laffont, 1996, p. 470.

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rabínica praticada diante de qualquer texto bíblico20. Posteriormente, as regras

passam por um processo de reinterpretação chegando ao conjunto de treze regras,

na época de Rabi Yismael21 e posteriormente trinta e duas, no período da atuação

de Rabi Eliezer22. Não é de modo algum uma imposição de método a descoberta

de Hillel. Seu mérito está na capacidade de compilação de práticas interpretativas

há séculos em uso pelos sábios23. A seguir, busca-se elucidá-las tendo como

exemplos alguns versículos da Mishná, que serão estudados ao longo do

parágrafo 4.3.

a) רמ חוו לק , “fácil e complexo”. Procura estabelecer certa regularidade na

interpretação dos textos e nas normas estabelecidas partindo sempre do

que é mais simples para o que é mais complicado. Um exemplo da

regra verifica-se na máxima expressa sobre a quantia que faz parte da

respiga”, do preceito a ser separado durante a colheita. Nota-se“ ,פיאה

que a narrativa da Mishná faz uma relação que vai do simples para o

amplo ao afirmar: “se um recolhe algo do limite e o jogar com os

demais já não tem parte dele....o mesmo vale para a rebusca e para o

feixe esquecido” (Pea 4,3). Um outro exemplo encontra-se na contenda

entre R. Aquiba e R. Eliezer ao determinar quando há ou não cachos de

rebusca a serem disponibilizados aos pobres (Pea 7,7).

b) הו ש היר ז ג , literalmente “sentença idêntica”. A regra ressalta que entre

duas narrativas distintas prevalece a mesma interpretação, quando se

trata da mesma analogia. Compreende-se que a Bíblia colocou tais

expressões similares com o propósito de estabelecer uma reciprocidade

20 Passeto destaca o uso feito pela geração apostólica das regras de Hillel no ato de interpretação das escrituras. “Constatamos que o Novo Testamento, formando parte da tradição oral de Israel e a literatura cristã dos primeiros séculos, são testemunhos da oralidade de Israel e que mais tarde passam a serem escritos”. PASSETO, E., La influencia de la tradicíon oral de Israel en la tradicíon cristiana. In: El Olivo, XIX, 42, 1995, pp. 7-20. 21 Rabi Yismael (ben Elisha) foi uma grande personalidade na história da exegese bíblica. Atuou na terceira geração do tanaítas, tendo mantido inúmeros debates com R. Akiva, no cenário da hermenêutica. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introduccíon a la literatura talmúdica y midrásica, Valencia, Institución S. Jerónimo para la investigación bíblica, 1988, p. 49; FRIEMAN, S., Who’s Who in the Talmud, London, Jason Aronson, 1995, pp. 369-371. 22 Rabi Eliezer, conhecido como Eliezer ben José há-Gelilí, atuou na geração de Bar Kokba. Por meio das suas trinta e duas regras se explicam não somente as haggadah, mas toda a Torá. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introduccíon a la literatura talmúdica y midrásica, Valencia, Institución S. Jerónimo para la investigación bíblica, 1988, pp. 59-69. 23 Partindo da época dos pares (200 a.C. – 20 d.C), chegando à geração dos amoraítas (220 – 500 d.C.), Steinsaltz apresenta um quatro completo das quatro gerações que marcaram a tradição rabínica até a elaboração final do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud the Steinsaltz edition: A Reference Guide, New York, Randon House, 1989, p. 30.

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entre ambas. Essa regra, porém, deve ser usada com muita propriedade.

Ninguém, aleatoriamente, pode-se dar ao privilégio de estabelecer uma

gezerah shawah24. Um exemplo aplicativo dessa regra está em Pea

6,4, quando está em debate a separação dos feixes que ficam para trás

durante a colheita.

c) נ ב דח א בתוכ מ בא ןי , literalmente “construção principal a partir de um

único texto”25. Trata-se de vincular a citação feita em um texto a outros

textos, uma vez que entre eles são encontrados os mesmos paradigmas

ou terminologias26. “Um texto principal oferece aos demais um caráter

comum que os vincula em uma só família”27.

d) נ ב יםב תוכ ינ ש מ בא ןי , “construção principal a partir de dois textos”.

Verifica-se esta regra quando uma conduta é definida como senso

comum. O que recebe uma validade em um determinado texto, pode

ser semelhante em outros textos. Um nítido exemplo é a defesa sempre

incondicional do órfão, do estrangeiro e da viúva nas seis narrativas do

livro do Deuteronômio: 10,17-18; 14,28-29; 16,10-14; 24,17-21;

26,12-15; 27,11-26. No conjunto dos doze textos mishnáicos o nível

de preocupação com os pobres se repete (Pea 4,3. 6,4. 7,7; Msh 5,10;

Meg 2,5; Ned 11,3. BM 9,13).

e) טר פ ו לל כ , “Geral e particular”. Segundo Steinsaltz, Strack e Stemberger

esta regra de Hillel foi detalhada em oito princípios hermenêuticos por

R. Yismael28. Estabeleceu-se um processo capaz de levar ao pleno

conhecimento das afirmações presentes nos textos bíblicos,

relacionando o geral ao particular e o particular ao geral. A existência

de algo válido para todos relaciona-se, inevitavelmente, com o

particular. O geral não existe a não ser numa realidade particular e

vice-versa. Tal eficácia pode ser exemplificada pelo tratado Shebi 7,1

24 O conceito é amplamente exposto na obra de Strack e Stemberger. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica, p. 53. Estas outras regras são também elucidadas por Steinsaltz ao abordar os princípios hermenêuticos do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 150. 25 Tradução feita considerando as informações de STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., op. cit., p. 53. 26 Steinsaltz ressalta a existência de três tipos de binyan ab: a) o que nós encontramos quando olhamos para...?”; b) analogia construída a partir de um só verso; c) analogia construída com base em dois versos. CF. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 149. 27 Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., op. cit., p. 53. 28 Cf. Ibidem. pp. 53-54.

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ao argumentar sobre os produtos sujeitos à lei do sétimo ano: “Em

relação ao ano sétimo se estabeleceu uma regra geral: tudo o que é

comestível para o homem ou para os animais, as espécies dos

tingidores e o que não se conserva na terra, ficam sujeitos às regras do

ano sétimo”. Tal afirmação envolve também as pequenas hortaliças

selvagens utilizadas no trabalho de tingir as roupas.

f) דח א םקומ ב בו אצ יוכ , “semelhante a ele em outra passagem”. O exercício

de buscar compreender um determinado texto pode ser feito tendo

como princípio um texto mais elucidativo, mais claro, mais

compreensível. O que é mais evidente pode ajudar na compreensão de

textos quase sempre ininteligíveis, num primeiro momento29. Em BM

9,13 são refletidos os inúmeros tipos de comportamento, entre credor e

devedor, quando chega o momento de cobrar uma respectiva dívida.

Nota-se que ao longo da argumentação surgem vários exemplos a

serem evitados no desefo de não violar um preceito negativo. O credor

não pode apropriar-se de um bem sem o consentimento do Tribunal. A

máxima é detalhada ao declarar que o credor não pode aproveitar-se da

situação apropriando-se de meios ligados à produção, e aos afazares do

dia-a-dia, como: arado, moinho, colchão e utensílios domésticos.

g) נו י נ ע מ דמ ל ה רב ד , “algo que se explica por seu contexto”. Prevalece o

contexto, a realidade como elemento primordial na interpretação de um

determinado texto. Há uma evidência nessa regra. É preciso

compreender o contexto para se ter a exata interpretação, imposta pelo

texto ou realidade em questão. Saber quando se está ou não diante de

uma quantia a ser disponibilizada aos pobres, durante a colheita, exige

saber o modo e local onde começou a recolher os produtos do campo

(Pea 6,4).

Estar o mais próximo do texto bíblico foi a preocupação dos sábios na

aplicação e entendimento dos conceitos halákhicos. Desde o momento em que

Esdras empenhou-se, com todo o seu coração, para entender, praticar e ensinar a

Torá (Cf. Esd 7,10), os sábios vêem nele a função de sua existência: compreender

29 Um exemplo pode ser compreendido diante da prosperidade firmada com Abraão (Gn 12,3). Trata-se de um elemento central na pregação paulina, ao garantir aos pagãos a salvação por meio da justificação pela fé (Gl 3,8.16). Cf. PASSETO, E., La influencia de la tradición oral de Israel en la tradición cristiana, op. cit., p. 12.

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e não medir esforços para explicar e viver segundo os projetos da Torá. Não há

outra primazia junto aos sábios que não seja o bom exercício diante da Torá. A

primazia da Torá se impõe como um princípio natural. O que não é compreendido

num primeiro contato requererá um exercício com base no midrash - interpretação

e comentário, posterior, dos textos bíblicos. Prevalece uma interpretação literal da

escritura que, sempre, acena para um gesto concreto, como as normas expressas

pela Mishná.

4.2. Seder Zeraim" סדר זרעים

O tema sobre a agricultura inaugura a primeira ordem da Mishná que,

segundo comentário de Maimônides, é essencial à existência humana, pois sem

alimento o homem é incapaz de viver e de servir a Deus30. Nessa ordem, 31זרעים ,

"sementes", seis tratados encontram suas justificativas na utilização de textos

provenientes do livro do Deuteronômio, aqui analisados na seguinte sequência:

Pe’ah 4,3; 6,4; 7,7; Dem 1,2; Shebi 7,1 e MSh 5,10. Nota-se que todos os seis

capitítulos abordam o tema da colheita e a obrigatoriedade de disponibilizar parte

da quantia recolhida às pessoas ou grupos necessitaos.

4.2.1. הפא “Pe’ah”32 (córner, limite, divisa) 4,3

,נטל מקצת הפיאה Se alguém recolhe algo (dos frutos do

preceito) do limite (de teu campo)

e o jogar com os demais וזרק על השאר

;אין לו בה כלום já não tem parte nela;

,נפל לו עליה porém se jogar-se sobre eles,

e estender seu manto פירס טליתו עליה

.מעבירין אותה ממנו se o obriga a tirá-lo dali.

30 Cf. WIGODER, G. Sementes. In: DEdJ, p. 1103. 31 Nesta parte do trabalho, os conceitos da provenientes da הכ ל ה “Leis” não estão vocalizados, uma vez que utilizamos uma edição da Mishná sem os sinais massoretas. 32 Todos os textos da Mishná utilizados no estudo dos doze versículos, neste capítulo, foram encontrados na edição eletrônica, disponível em: http://kodesh.snunit.k12.il/. Na edição hebraica: מאגר ספרות הקודש. Acessado pela primeira vez em out. de 2008.

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,וכן בלקט O mesmo vale para a rebusca,

.וכן בעומר השכחה e para o feixe esquecido33.

No versículo, prevalece um vocabulário predominantemente punitivo. Está

em debate o recolhimento dos frutos, feito não pelo proprietário, nos limites do

seu campo, mas por um pobre que tem a intenção de fraudar o proprietário no

momento em que este colhe parte do produto disponibilizado no campo,

desvirtuando completamente os preceitos. Identificado o sujeito e o verbo na

narrativa, percebe-se a quem a Mishná direciona a repreensão. Os pobres acorriam

para fazer o pe`ah em sistema de pilhagem. Cada qual era resposável pelo seu

“monte”, ajuntado em determinados locais disponíveis no campo.

Seguindo a argumentação de Roth, o sujeito da frase é um “dos mais

pobres” que está colhendo o pe`ah deixado por um agricultor. Vale ressaltar que

certas pessoas ao colherem uma determinada quantia disponibilizada, segundo a

Torá, nem sempre usavam de honestidade34. O motivo da repreensão expressa na

frase visa alertar uma possível fraude. Caso um pobre esteja recolhendo sua parte

do pe`ah e venha a juntar essa quantia às outras que não foram por ele recolhidas

ou que pertençam ao proprietário ou a algum de seus companheiros, ele não

possuirá parte no montante recolhido. Afinal, seu desejo é de apossar-se de certa

quantidade de produtos que não lhe pertencem. Verifica-se a idéia de aproveitar-

se de uma situação, por demais corriqueira, e roubar parte de um produto alheio.

Percebe-se, nitidamente, o desejo denunciativo, diante de uma atitude não lícita.

Um pobre aproveita a situação da respiga para cometer um saque. Nessa situação,

a Mishná é clara ao acenar que o pobre que respiga אין לו בה כלום “já não tem parte

nela”, pois ela foi tirada da parte não estabelecida pelo preceito. Não se pode

violar a quantia estabelecida no preceito פיאה.

Na norma, prevalece o desejo de realizar a justiça. A porção isenta do

preceito – leia-se, יאההפ , “o pe’ah” - deve vigorar mediante o esforço do trabalho

honesto. Tal aspecto é destaque ao relacionar os frutos recolhidos ao uso dos

33 Cf. Dt 24,19-21. 34 “Os tribunais tem o direito de privar alguém de fazer a respiga, a fim de impor a obediencia à lei”. ROTH, R. S., Shiurim Pe`ah. Disponível em: <http://www.bmv.org.il/Shiurim/pe`ah/peah039.html>. Acesso em: 6 de abr. 2009.

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verbos: נפל, “cair, deitar-se, deixar cair”35, סר פ , “cortar, fatiar”, ירב ע ה , “transferir,

remover”. Não há meio de burlar o preceito imposto à colheita.

É intencional que a Mishná tenha relacionado a colheita dos frutos à

prática que legitima os grupos desfavorecidos de usufruírem do preceito

determinado. Não se deve, porém, em nenhuma instância, praticar a violação do

preceito, segundo argumento exposto na Mishná: וכן בלקט וכן בעומר, “o mesmo

vale para a rebusca e feixe”.

Nota-se que ocorre uma mescla da linguagem deuteronômica e a

linguagem normativa dos tratados. Um comportamento injusto – nesse caso a

violação do preceito – não se pode transferir para as demais instâncias

comunitárias. Há um rigor estabelecido pela Torá normatizando toda e qualquer

relação social. De Miranda e Malca destacam o posicionamento social e coletivo

dos sábios diante da situação da pobreza:

“Estender a tzedaká aos pobres com todo o coração tinha a significação intrínseca de um ato de virtude. Daí, ter-se desenvolvido o axioma que, se os ricos fossem realmente honestos e tementes a Deus, distribuiriam prazerosamente a riqueza que retinham em custódia de Deus entre os inúmeros credores de Deus – os pobres, os doentes, os desamparados, os necessitados etc.” 36. Os sábios visam corrigir uma prática de injustiça, de violação do direito

em curso ao afirmar: אין לו בה כלום, “já não tem parte nele” e מעבירין אותה ממנו, “se

o obriga a tirá-lo dali”. Na narrativa em questão, os sábios acenam à primazia e

autonomia da Torá e, somente com base em seus arcabouços, é possível

reconciliar os interesses individuais e coletivos, superando conflitos em vista do

bem comum. Para os sábios, a luta para impor a primazia da Torá era, sobretudo,

uma missão ética.

Com base na narrativa deuteronômica que garante aos pobres o direito de

respigar parte dos produtos deixados no campo, a Mishná ousa denunciar pessoas,

entre o grupo dos respigadores, que se apossavam, de modo fraudulento, dos

produtos recolhidos e pertencentes a outras pessoas que se encontravam na mesma

condição social. A denúncia é legítima, pois não se pode apoiar-se num preceito

divino e fazer dele ocasião de legitimar a desigualdade entre pessoas.

35 Cf. JASTROW, M., Dictionary of Talmud Babli, Yerushalmi, Midrashic Literature, and Targumim, p. 924. 36 Cf. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 95.

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4.2.2. הפא “Pe’ah” 6,437

38 :ואלו הן ראשי השורות Para os extremos das linhas vale o

seguinte׃

se começam dois (recolher os feixes) שניים שהתחילו מאמצע השורה

pelo meio da linha,

um se volta para o norte e outro se volta זה פניו לצפון וזה פניו לדרום

para o sul,

esquecendo (alguns feixes) a frente ou ושכחו לפניהם ולאחריהם

atrás deles,

;שכחה, שלפניהן os que caem diante deles são

considerados como feixes,

.אינו שכחה, ושלאחריהן ainda que os que caem detrás deles não

se consideram como tais.

,שורההיחיד שהתחיל מראש ה Se uma pessoa só começa pelo extremo

da linha

e esquece (alguns feixes) que estavam ושכח לפניו ולאחריו

uns adiante e outros detrás dele,

;אינו שכחה, שלפניו os que estão adiante dele não se

consideram como feixes esquecidos,

porém os que estão atrás são feixes ושלאחריו שכחה

esquecidos,

.שהוא בבל תשוב posto que a este se aplica׃ não voltarás

atrás39.

a tudo o que se ׃Esta é a regra geral זה הכלל

pode aplicar

;שכחה, כל שהוא בל תשוב o não voltarás atrás é considerado como

feixe esquecido,

.אינו שכחה, בל תשובוכל שאינו e a tudo que não se possa aplicar a ele

não voltarás atrás não é considerado

feixe esquecido.

37 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h12.htm>, edição eletrônica, acessada em 29 de dez. de 2008. 38 A métrica na divisão dos textos da Mishná é feita considerando a edição eletrônica. 39 Cf. Dt 24,19.

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O versículo alude a duas situações que visam esclarecer quando algo pode

ser considerado ou não na categoria de שכחה, “considerados como feixes”,

durante a realização da colheita. Os dois exemplos distintos justificam a máxima

apresentada em Dt 24,19:

Quando colheres a tua colheita

no teu campo

19a ^d<f'b. ^r>yci(q. rcoq.ti yKiä

e esqueceres um feixe no campo 19b hd<F'B; rm,[oå T'óx.k;v'¥w>

não voltarás para pegá-lo. 19c ATx.q;l. bWvt' al{Ü

Para o estrangeiro, para o órfão e

para a viúva será.

19d hy<+h.yI hn"ßm'l.a;l'w> ~AtïY"l; rGE±l;

Deste modo, 19e ![;m;Ûl.

te abençoará YHWH, teu Deus,

em toda obra de tuas mãos.

19f `^yd<(y" hfeî[]m; lkoßB. ^yh,êl{a/ hw"åhy>

‘^k.r<b'y>

O termo utilizado para determinar a quantia a ser disponibilizada aos

grupos desfavorecidos é חת כ ש ו “e esqueceres”. A Mishná visa determinar quando

e como a quantia dos produtos recolhidos deve ser disponibilizada conforme a

máxima deuteronômica.

Estes exemplos são importantes na medida em que, seguindo as exigências

bíblicas deixam dúvidas sobre o que deve ser de fato disponibilizado. A máxima

necessita ser regulamentada. Não é difícil imaginar que a norma não estava sendo

praticada durante o período da colheita, o que colaborava, em muito, para o

aumento da marginalidade, penalizando, ainda mais, os pobres e endividados no

decorrer dos anos.

Por feixe, entende-se a quantia recolhida pelo agricultor e guardada como

sendo resultado de seu trabalho. A dúvida é superada com dois exemplos

distintos: a) dois homens, recolhendo os feixes, em direção opostas – um para o

norte outro para o sul – começando pelas extremidades das linhas, a quantia de

produtos que venha a cair atrás deles, no momento da colheita, não deve fazer

parte da quantia por eles guardada como resultado do trabalho. Em outras

palavras: o que ficou atrás, não lhes pertence mais. Não pode ser somada à porção

por ele recolhida inicialmente. b) apenas um trabalhador faz a colheita,

começando na divisa de sua propriedade e, durante o ato, esquece porções de

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espigas, seja à sua frente ou atrás dele, sem ser arrancadas, apenas a porção que

ficou para trás é considerada parte do preceito. Este exemplo é, ainda, mais

esclarecedor.

Ao escolherem radicalmente as máximas bíblicas, os sábios visam meios

para pô-las em prática. Os argumentos surgidos em torno de uma máxima bíblica

nada mais refletem que os desejos de ver a justiça praticada junto aos membros da

comunidade. No texto da Mishná, fica definido, uma vez por todas, o que faz ou

não parte do feixe destinado ao preceito.

4.2.3. פאה “Pe’ah” 7,7

כרם שכולו

עוללות

Se uma vinha tem somente cachos de

rebusca,

, רבי אליעזר אומר

;לבעל הבית

segundo R. Eliezer pertencem ao

proprietário,

, ורבי עקיבה אומר

.לעניים

entretanto segundo R. Aquiba

pertencem aos pobres.

לא . . .כי תבצור ", אמר רבי אליעזר

" תעולל

)כא,דברים כד(

R. Eliezer arguiu: “se tu vindimas, não

tens que recolher os cachos da

rebusca”40.

, בציראם אין

.מניין עוללות

Porém, se não há vindimas, como

haverá cachos para a rebusca?

וכרמך לא "אמר לו רבי עקיבה

,)י,ויקרא יט" (תעולל

Replicou R. Aquiba: “não farás a

rebusca de tua vinha”41,

אפילו כולו

.עוללות

inclusive quando toda ela não tenha

mais que cachos de rebusca.

. . .כי תבצור "אם כן למה נאמר

"לא תעולל

Se é assim, por que está

escrito:“Quando colheres a tua vinha

não farás rebusca”?

os pobres não têm (Para mostrar que) אין לעניים

40 Cf. Dt 24,21. 41 Cf. Lv 19,10.

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, בעוללות

.קודם לבציר

direito aos cachos da rebusca

antes da vindima.

Dois ilustres sábios são citados neste versículo que procura determinar

quando existem עוללות, “pequenos cachos de uvas que não estão completamente

formados”42. No debate entre dois tanaítas, não existe consenso se tal quantia será

ou não disponibilizada aos pobres. Embora, seguindo argumentação dos sábios,

Rabi Aquiba43 e Rabi Eliezer44, discordantes em sua definição, prevalece a tese de

que só há respiga após o trabalho da vindima.

O problema a ser solucionado apresenta uma vinha cuja produção

apresenta somente uvas qualificadas como עוללות “rebusca” - entenda-se uma

plantação onde as uvas são de má formação ou de péssima qualidade para serem

utilizadas no lagar. R. Eliezer argumenta, seguindo a narrativa encontrada em Dt

24,21: hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; ^yr<_x]a; lleA[t. al{ ^m.r>K; rcob.ti yKi, “quando

colheres a tua vinha não farás rebusca na vinha que ficou atrás de ti. Para o

estrangeiro, para o órfão e para a viúva será”. Em sua opinião, toda a vinha, nessas

condições, pertencem ao proprietário, pois não pode ser feita, ainda, a vindima ao

longo de toda a plantação.

Em opinião contrária, R. Aquiba argumenta e defende a opinião de

entregar totalmente a vinha aos pobres, seguindo a formulação de Lv 19,10:

~k,yhel{a/ hw"hy> ynIa] ~t'ao bzO[]T; rGEl;w> ynI['l, jQEl;t. al{ ^m.r>K; jr<p,W lleA[t. al{ ^m.r>k;w>, “tua

vinha não rebuscarás nem recolherás os frutos caídos do teu pomar. Tu os

deixarás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou Senhor teu Deus”.

42 Um termo técnico no universo jurídico do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: The Steinsaltz Edition, Toronto, Random House, 1989, p. 238. O cacho de uva com defeito ou esquecido durante a colheita é tido como “uma porção reservada ao pobre”; Cf JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1051. 43 São inúmeros os autores que elevam ao mais alto grau do judaísmo farisaico, da época tanaítica, a pessoa de Rabi Akiva ben Iossef (40 a 135 d.C.). Grande estudioso da Torá oral e escrita, Akiva ordenou, por tópicos, as normas da jurisprudência, mais tarde culminando na redação da Mishná. É considerado mestre mais influente na época de Yavne. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p.119; DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 147; URBACH, E. E., Les sages d’Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p.621; SAFRAI, S., The literature of the sages, p. 71. 44 Sábio tanaíta da terceira geração, metade do século II d.C. Sua atuação foi considerável ao levar adiante as conclusões de Yavne. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 156; STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p.117.

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Salvo as dissonâncias entre R. Aquiba e Eliezer, a Mishná conclui, com

base na argumentação proposta pela Torá, que a rebusca não seja feita enquanto

não ocorrer a vindima. Nota-se que as argumentações visam enfrentar idéias

daqueles que se negavam a cumprir o direito, não possibilitando a prática da

rebusca, ou antecipando-a antes da vindima. Está em jogo o cumprimento do

direito de vindimar e de rebuscar. O crivo consensual provém da Torá.

4.2.4. Demay” 45 1,246“ דמאי

Aos produtos do dízimo duvidoso הדמאי

,אין לו חומש não se aplica a lei do quinto

,ואין לו ביעור nem da remoção,47

,ונאכל לאונן podem ser comidos por um que está de

luto,48

,ונכנס לירושלים ויוצא pode-se introduzir em Jerusalém e tirá-

los dali.

ומאבדין את מיעוטו

,בדרכים

Se, no caminho, se estraga uma

pequena quantidade, (não importa);

,ונותנו לעם הארץ pode-se dar a uma pessoa não instruída,

,mas haverá de comer o equivalente ואוכל כנגדו

ומחללין אותו כסף

,על כסף

(o preço do resgate) pode ser convertido

(em dinheiro) de uso comum:

,ונחושת על נחושת prata por prata,

,כסף על נחושת dinheiro por cobre,

,ל הפירותונחושת ע prata por cobre e cobre por frutos,

. ובלבד שיחזור ויפדה את הפירות contanto que alguém volte para resgatar

os frutos.

.Esta é a opinião de R. Meir .דברי רבי מאיר

,וחכמים אומרים Os sábios afirmam

45 A Mishná abre um parágrafo sobre produtos de origem desconhecida. Literalmente, a palavra ,significa “dúvida”. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 179; DEdJ דמאיp. 270. 46 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h13.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de 2008. 47 Cf. Dt 26,13. 48 Cf. Dt 26,14.

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יעלו הפירות וייאכלו

.בירושלים

que os frutos tem que ser levados a

Jerusalém e ali, devem ser consumidos .

No estudo e na interpretação das normas estabelecidas nos textos de Nm

18 e Lv 22, os sábios construíram uma jurisprudência relativa aos produtos

produzidos por pessoas tidas como incultas, identificadas como ץר אם ה ע “povo da

terra”49 e reconhecidas como negligentes na atribuição do dízimo sobre o

resultado da colheita. Ao abordar o tema, procuram responder o que fazer quando

se está de posse de um bem ou produto de procedência desconhecida, dos quais

não há certeza de que foram recolhidos os respectivos dízimos. A Mishná

apresenta uma norma, considerando as inúmeras leis bíblicas relacionadas aos

produtos do campo e à série de dízimos neles embutidos50.

As ordens na atribuição do dízimo, segundo Valle, seguiam estes critérios:

“Uma vez descontada a oferenda e o primeiro dízimo, do restante se separava no primeiro, segundo, quarto e quinto ano do sétimo ano outro dízimo (=segundo dízimo), que o proprietário devia levar a Jerusalém e consumi-lo ali. Para evitar os contratempos de transporte se permitia vendê-lo na província e aplicar o equivalente (um quinto do seu valor) na aquisição de alimentos em Jerusalém onde deviam ser consumidos. No terceiro e sexto do sétimo ano, este dízimo era entregue aos pobres (Dt 14,22-29; 26,12-15) e, por isso, era chamado dízimo dos pobres”51.

A Mishná procura resolver qual deve ser o comportamento diante de um

produto suspeito de não ter passado pelas exigências de recolhimento das

respectivas cifras dos dízimos. Quais são e em que consistem a חומש, “lei do

quinto” e da ביעור, “remoção”, uma vez que está evidente, segundo a lei, que

parte do dízimo deve ser consumido em espécie na cidade de Jerusalém?

49 “Quem é um am há-arets? Aquele que não come do alimento não consagrado em estado de pureza levítica – esta é a opinião de R. Meir. Mas os sábios dizem: seja quem for que não separa corretamente o dízimo de sua produção...aquele que não recita o Shema - pela manhã e à tarde – é a opinião de R. Eliezer. R. Yehoshua diz: aquele que não coloca os tefillin. Ben Azzai declara: aquele que não tem mezuza à sua porta e não tem franjas em sua vestimenta. R. Yonathan bar Yossef é da opinião que seja quem for que tem filhos e não os faz estudar a Torá. Outros dizem: mesmo se um indivíduo estudou a Escritura e a Mishná, mas se ele não frequenta os eruditos, hão de considerá-lo como um am há-arets”. Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 652. 50 Na época do Segundo Templo, “o agricultor era obrigado a separar a quinta parte de sua produção agrícola que ele “ofertava” aos sacerdotes uma décima parte do restante, como primeiro dízimo. Cf. DEdJ, p. 270. 51 Cf. DEL VALLE C. (org.), La Mishna, p. 67.

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A resposta deve ser compreendida por um aprimorado sistema de

recolhimento e fiscalização posto em prática pelos sacerdotes. Há um sistema

rígido de lealdade ao Senhor (Dt 13,1). Ao apresentar-se como Deus único e

realizador de inúmeras obras em favor de seu povo escolhido, Ele passa a ser a

garantia de prosperidade e segurança. Não há outro Deus capaz de garantir a

aliança firmada. Este modo de pensar a relação Deus e Povo é levado às últimas

consequências no Código do Deuteronômio, ao fazer a releitura dos temas já

apresentados em Ex 20,22–23,33. Nada mais justo do que enfatizar a intimidade

feita por meio de uma aliança entre YHWH e seu povo, Israel. Os textos, mais do

que realçar a aliança contraída com essa divindade, visam destacar a lealdade e

exclusividade a ele prestadas. Ao associar o cumprimento do recolhimento dos

dízimos à vontade de YHWH, forjou-se, sim, um arcabouço de idéias

infindáveis52.

Há de se ter clareza de que a tributação do dízimo sobre os produtos do

campo ocorria todos os anos. Durante o primeiro, segundo, quarto e quinto ano,

tempo que compõe o conhecido ciclo da שמיטה, os moradores do país eram

obrigados a realizar, assiduamente, o pagamento do 53מעשר שני ou segundo

dízimo. Esses produtos ou a sua soma equivalente em dinheiro, deveriam ser

levados a Jerusalém e ali consumidos. O 54מעשר ראשון ou primeiro dízimo, seguia

as prescrições elencadas em Nm 18,21.24, sendo destinado aos levitas. No

terceiro e sexto ano, do período da Shmîtah ou período do ano sabático, a soma

dos dízimos era destinada à população dos desfavorecidos economicamente, aos

merecedores do 55מעשר אני ou dízimo dos pobres (Dt 14,28-29; 26,12)56.

Os autores da Mishná, diante dos produtos reconhecidos na categoria דמאי,

“duvidoso”, optam por isentar o proprietário de uma série de normas. A primeira

refere-se ao ato de efetuar o pagamento, no quinto ano, ficando, deste modo,

isento do segundo dízimo. Fica também dispensado de levá-lo, em mercadoria ou

em espécie monetária, a Jerusalém e lá encontrar seu destino final. Uma terceira

52 Quanto à quantidade a ser oferecida no pagamento do dízimo há inúmeras abordagens. Cf. ZABATIERO, J. P. T., Tempo e espaço sagrados em Dt 12,1-17,13, p. 137-142. 53 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 222. 54 Cf. Ibidem. p. 221. 55 Cf. Ibidem. 56 O ato de não disponibilizar os respectivos dízimos e valores correspondentes será também denunciado no tratado Abhot 5,9. Ver análise mais adiante, p. 177.

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isenção, proveniente de um דמאי, privilegia a pessoa em estado de luto, a quem é

facultado o consumo de tal quantia.

Ao comentar o conceito técnico de אנינות, “aninut” forma plural de אונן,

“onen”, corrente na halakhah, Steinsaltz acentua um tempo de “isenção de todo

preceito positivo”, enquanto perdurar o período de luto57. A Mishná quebra esse

preceito. Ao declarar ונאכל לאונן, “Podem ser comidos por um que está de luto” os

produtos tidos como demay adquirem uma norma especial, podendo ser

consumidos, mas na cidade de Jerusalém, conforme a máxima subscrita por R.

Meir58. Possivelmente, esta parte do segundo dízimo, consumido em Jerusalém,

devia coincidir com a época em que os israelitas subiam em direção à cidade de

Jerusalém para as festas de peregrinação. Sendo assim, vê-se que a

obrigatoriedade de consumo em Jerusalém servia para a subsistência dos

peregrinos nos dias em que perduravam os festejos.

4.2.5. Shebiit” 7,159“ שביעית

:כלל גדול אמרו בשביעית

Em relação ao ano sétimo se

estabeleceu uma regra geral:

, אכל שהוא מאוכל אדם

, וממין הצובעין, ומאוכל בהמה

ואינו מתקיים בארץ

tudo o que é comestível para o homem

ou para os animais, as espécies dos

tingidores e o que não se conserva na

terra,

יש לו שביעית

,ולדמיו שביעית

ficam sujeitos às regras do ano sétimo,

como também o dinheiro obtido em sua

venda.

,Estão sujeitos à lei da remoção60 יש לו ביעור

57 Cf. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 162. O período de exéquias envolvia a morte de alguém próximo ao círculo de parentesco em primeiro grau: pai, mãe, irmã, irmão, filho, filha, marido ou esposa. De todo e qualquer mandamento positivo – orar o Shema, uso do tallit, comer carne e beber vinho, comer da oferta do segundo dízimo e comer dos sacrifícios sagrados impunha certa proibição, no período da vigilância fúnebre na esfera familiar. 58 Fala-se que foi o primeiro discípulo de Rabi Ushmael e posteriormente de Rabi Akiva, no período tanaíta. Homem de memória privilegiada, escriba de profissão, deu sequência aos ensinamentos deixados por seu mestre, Akiva. Seu trabalho foi de fundamental importância ao compilar as tradições orais sendo indispensáveis na redação da Mishná. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 176. 59 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h15.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de 2008.

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e mesmo o dinheiro obtido em sua .ולדמיו ביעור

venda.

?Quais são ואיזה זה

, זה עלי הלוף השוטה

, והרגילה, והכרישין, העולשין, ועלי הדנדנה

.ונץ החלב

As folhas de ervas silvestres, as folhas

de menta, a escarola, os alhos, a flor-

de- leque e a flor-de-leite.

, ומאוכל בהמה

החוחין

.והדרדרין

E as ervas para o gado? As sarças e os

espinhos, espécies que usam os

tingidores?

.Os brotos de anil e do falso açafrão .וקוצה, וממין הצובעין ספחי איסטיס

יש להן

,שביעית ולדמיהן שביעית

Eles estão submetidos à lei do sétimo

ano, e também o dinheiro obtido em sua

venda.

יש להן ביעור

.ולדמיהן ביעור

Eles estão sujeitos à lei da remoção,

o mesmo que o dinheiro obtido em sua

venda.

Um grande problema era definir quais os produtos que estão ou não sob as

normas estabelecidas no ano sabático. Duas diferentes realidades estão no centro

dessa norma posta em prática: o repouso da terra61 e a anulação dos casos das

dívidas financeiras62. A chegada do sétimo ano propiciava uma era de equidade,

um recomeçar de novo, entre todos os grupos sociais. Tempo de negação de

qualquer experiência acenando concentração de bens e acúmulo de riqueza.

Seguindo as orientações vindas da Torá63, a שביעית, “Shebiit”, ou ano sabático era

o tempo por excelência da reparação das injustiças, da equiparação da

concentração de renda oriunda do acúmulo de terras ou cobranças de juros por

empréstimos realizados. Refere-se ao período da distribuição de renda àqueles

diretamente envolvidos nas tarefas do dia-a-dia: escravos e empregados e um

posicionamento objetivo e claro, por parte dos sábios, em motivar o povo a viver

sob a soberania de YHWH.

60 Cf. Dt 26,13. 61 Refere-se ao conceito da שמיטת קרקע, “libertação da terra”. Todos os produtos devem permanecer no campo e serem consumidos por animais, aves e apanhados por pessoas. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 260. 62 Refere-se ao conceito da שמיטת כספים, “cancelamento das dívidas financeiras”. Cf. Ibidem, p. 261. 63 Cf. Ex 23,10-11; Lv 25,2-7; Dt 15,1-6.

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161

O texto diz que todos os produtos da terra, tidos como comestíveis pelos

homens e animais, estão sujeitos à lei . O texto da Mishná é explícito: כל שהוא א

e“ ,ומאוכל בהמה tudo que é comestível ao homem” e também“ ,מאוכל אדם

comestível para os animais” está disponibilizado quando da chegada do ano

jubilar. Nada deve ficar excluído da lei do sétimo ano, nem mesmo a lei da

remissão sobre qualquer produto.

Nada deve deixar de ser considerado no tempo da remissão. Neste aspecto,

compreende-se o argumento considerando, até mesmo, as pequenas ervas, ervas

selvagens, tidas como insignificantes e utilizadas para o tingimento de roupas, tais

como: ervas silvestres, folhas de menta, escalora, alho, flor-de-leque, flor-de-leite,

broto de anil, falso açafrão. Tudo deve ser disponibilizado com a chegada do ano

sabático.

Há de se evitar os abusos sociais. Esse adendo pode ser considerado pelo

uso do termo 64ביעור, “remoção”, quatro vezes corrente no versículo. Uma vez

que tudo está submetido à lei do ano sabático, também ביעור ולדמיו ביעור לו יש ,

“ficam sujeitos à lei da remoção e mesmo o dinheiro obtido em sua venda”. Isto é,

a remoção do dízimo dos produtos do ano quarto e sétimo; esse último,

coincidindo com o ano jubilar, deve estar sujeito à lei do período sabático. Nada

pode escapar da regra máxima com a chegada do ano da remissão65. O projeto

imposto é fruto da vontade divina. Os argumentos dos sábios encontram eco e

credibilidade por serem oriundos do próprio Senhor: hw"hyl;( hJ'miv. ar"q'-yKi, “pois se

chama remissão para o Senhor” (Dt 15,2).

Os sábios eram profundos conhecedores das inúmeras relações sociais

geradoras de injustiças. O posicionamento ético diante de uma situação de

injustiça é inquestionável. A primazia volta-se ao ano sabático, princípio e eixo de

toda prática na esfera social. Trata-se de uma intervenção por demais ambiciosa

por parte dos sábios, mas pautada na instância da Torá, o que lhes dava maior

credibilidade e confiabilidade junto às mais diferentes instâncias da esfera social.

Não falam em nome próprio, mas sim em nome de YHWH. A base de toda

argumentação não é outra se não a realização da vontade e palavra do Senhor.

64 Cf JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 164. 65 Cf. Dt 15,9.

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4.2.6. Maaser Shení” 5,10“ מעשר שני

,במנחה ביום טוב Na tarde do último dia

;היו מתוודים se faz a confissão.

:כיצד היה הווידוי Qual era a fórmula da confissão?

"ביערתי הקודש מן הבית" Separei o que é consagrado da minha

casa

(Dt 26,13),

isto é, o segundo dízimo e os frutos das .יזה מעשר שני ונטע רבע

árvores do quarto ano.

"נתתיו ללוי" Dei-o para o levita (Dt 26,13)

.זה מעשר לוי isto é, o dízimo do levita.

" וגם נתתיו" Também fiz outra entrega (Dt 26,13).

.זו תרומה ותרומת מעשר a saber, a oferta e a oferta do dízimo,

" לגר ליתום ולאלמנה" Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva (Dt 26,13),

,זה מעשר עני Fiz a entrega do dízimo dos pobres

,ולקט שכחה ופיאה o fruto da respiga, o fruto esquecido e o

da esquina,

.אף על פי שאינן מעכבין את הווידוי ainda que isto não invalida a onfissão.

.זו חלה, "מן הבית" da minha casa, isto é a massa (devida ao

sacerdote).

O vocabulário predominante na perícope é cúltico, com destaque para a

oração pronunciada durante o gesto de oferecimento de um sacrifício ou de um

dos dízimos prescrito pela Torá. Ao declarar במנחה ביום טוב, “na tarde do último

dia festivo”, a Mishná refere-se às orações que acompanhavam a entrega dos

dízimos no quarto e sétimo ano, do período sabático66.

A fórmula proposta na Mishná tem origem no texto de Dt 26,13-1567. Na

sequência, são considerados três diferentes dízimos. A primeira oferta citada é זה

שני מעשר , “isto é o segundo dízimo” ofertado “durante o primeiro, segundo, quarto

66 O termo יום טוב, “O grande Festival”, alude à festa da Páscoa. Cf. DEL VALLE, C., La Misna, p.179. O termo pode também referendar as respectivas festas: Shavuot, Rosh HaShanah e Sukkot. Em certos contextos refere-se ao dia do perdão, Yom Kippur. 67 Cf. M. Msh. 5,12-13.

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e quinto ano do período sabático”68. Sob essa quantia era determinado seu

consumo, quando possível, em Jerusalém, podendo, de acordo com a realidade,

ser trocada pela quantia equivalente em dinheiro.

O versículo cita לוי מעשר זה , “isto é, o dízimo do levita”, conhecido como

ראשון מעשר 69, “primeiro dízimo”. Este dízimo inicial era entregue ao levita, após o

cumprimento da תרומה, Teroumah, ”oferta” sobre o resultado de toda a colheita. O

levita, por sua vez, era obrigado a doar um décimo de todos os dízimos ao

sacerdote. Todos os moradores em Israel tinham obrigação de cumprir o preceito,

que direcionava um décimo para os sacerdotes.

Um terceiro dízimo era destinado ao estrangeiro, órfão e viúva. Pertencem

a esta trilogia os grupos dos pobres, escravos. O versículo é muito objetivo ao

apresentar os destinatários do עני עשרמ , “dízimo dos pobres”. A redação

Mishnáica segue paralela ao texto de Dt 24,19.20.21. A realidade da respiga, do

esquecimento e do ato da vindima acenam para o cumprimento de todas as

normas que não podiam ser negligenciadas pelos agricultores.

Todos os sacrifícios feitos eram seguidos de oração. A מעשר וידוי ,

“confissão do dízimo”, tinha como elemento único a recitação de Dt 26,13-15.

Seguindo a própria Mishná, e apoiado nos comentários de Del Valle e Steinsaltz70,

a prática de recitar o conteúdo desses versículos foi abolida por ordem de João

Hircano (135-104), considerando as inúmeras faltas no ato de cumprir

corretamente as prescrições ao disponibilizar a quantia dos respectivos dízimos,

segundo a cifra estabelecida.

“O segundo dízimo está destinado à comida, à bebida e à unção; para comer o que habitualmente se come; para beber, o que realmente se bebe; para usar como unguento, o que habitualmente se usa como unguento”71. Os preceitos referentes ao dízimo exigiam um trabalho, empreendido por

parte do doador, e seu gesto é qualificado no momento em que ele a recita

manifestando, deste modo, de forma correta, sua confiança na soberania de Deus,

atualizada todos os anos, ao cumprir a norma estabelecida. Praticá-la é reafirmar

sua confiança nas bênçãos vindas de Deus, sinônimos de prosperidade na colheita,

68 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 222. 69 Um décimo da quantia recebida era entregue pelo levita ao sacerdote. Cf. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 221. 70 Cf. M. Msh 5,15; DEL VALLE, C., La Misna, p.180; STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 185. 71 Cf. M. Msh, 2,1.

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satisfação em construir uma sociedade de iguais e esperança daquele que crê no

amor de Deus. O fiel se vê na qualidade de cumpridor da vontade do Senhor. O

próprio Deus o qualifica.

4.3. Seder Mo´ed”72“ סדר מועד

Esta ordem determina as normas para os dias festivos e como celebrá-los

do modo mais solene possível. Na época do acontecimento das festas, ocorrem as

manifestações exteriores demonstrando o grau de compreensão da Torá e das

normas estabelecidas pelos ensinamentos dos sábios.

4.4. Megillah” 2,573“ מגילה

,כל היום כשר לקרות את המגילה Todo dia é apto para a leitura do rolo,

, ולקריאת ההלל

, ולתקיעת שופר

,ולנטילת לולב

para recitar o hino de louvor,

para o toque do shofar,

para pegar o ramo,

, ולתפילת המוספין

, ולמוספין

,ולווידוי הפרים

, ולווידוי המעשר

, ולווידוי יום הכיפורים

, לסמיכה

,ולשחיטה

para a oração adicional,

para os sacrifícios adicionais,

para a confissão no sacrifício dos

touros, para a confissão com motivo do

dízimo74, para a confissão no Dia da

Expiação,

para a imposição das mãos

para sacrificar,

, לתנופה

, להגשה

, לקמיצה ולהקטרה

para agitar,

para colher um punhado,

para queimar o incenso,

72 Desta ordem fazem parte temas ligados às respectivas festas: Sábado, Funções exercidas durante os festejos, Páscoa, Ciclos, Dia do Perdão, Festa das Cabanas, Dias Festivos, Ano Novo, Dias de Jejuns, Livro de Ester, Festas menores, Sacrifício Festivo. Considera-se na pesquisa somente o Livro de Ester por apresentar uma determinada norma no texto de Dt 26,12-15. 73 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h2a.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de 2008. 74 Cf. Dt 26,13-15.

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, למליקה

, לקבלה

, ולהזיה

, להשקאת סוטה

, ולעריפת העגלה

.ולטהר את המצורע

para torcer a cabeça das aves,

para receber o sangue,

para a aspersão,

para fornecer a água à suspeita adúltera,

para desnucar o garrote

para purificar o leproso.

A expressão היום כל , “todo dia”, remete às leituras obrigatórias que devem

acontecer durante a realização das respectivas festividades e atividades

religiosas75. As festas traduziam a plena convicção de estar em sintonia com a

vontade de Deus, além de oferecer, por um determinado tempo, certo

distanciamento dos dias ordinários e aprendizagem com os fatos do passado,

significativos à vida de todas as comunidades religiosas, dentro ou fora do

território76.

O versículo faz referência explícita às festas de Purim 77 המגילה את לקרות ,

“para a leitura do livro”; Ano Novo, שופר ולתקיעת , “para o toque do shofar” e Dia

de Expiação; Tabernáculo, לולב ולנטילת , “para pegar o ramo”; Sábados e dias

festivos, המוספין ולתפילת , “para oração adicional” além de outras inúmeras leituras

obrigatórias ao longo do dia e diante de situações específicas, como: queima de

incenso, aspergir o sangue, purificar o leproso e dar água à suspeita adúltera. O

texto agrupa uma série de vários atos sociais e religiosos, acompanhados pelas

respectivas leituras bíblicas, que especificam a recitação do texto de Dt 26,13-15

no momento da entrega dos dízimos anuais.

Embora não haja, ao longo do versículo, nenhum tipo de preferência ou grau

de importância a uma determinada prática religiosa, a recitação de Dt 26,13-15 pode

ser notada como um gesto habitual no período Tanaítico, quando da entrega dos

dízimos, como fora mencionado no tratado sobre as normas estabelecidas ao

segundo dízimo78. Trata-se de um agir conforme as regras estabelecidas por vontade

de Deus. Gesto compreendido como um ato de amor, livre e consciente,

75 O capítulo dois esclarece dúvidas quanto à leitura do livro de Ester durante a cerimônia de Purim, e outras leituras obrigatórias em dia de festa. 76 Manns faz uma síntese das principais festas ligadas ao cotidiano religioso. MANNS, F., Le judaisme: milieu et mémoire du Nouveau Testament, pp. 99-132. 77 Cf. WIGODER, G. Rouleau. In: DEdJ, p. 649. 78 Cf. M. Msh. 5,10.

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fortalecendo a unidade com Deus79. Nota-se o grau de unidade nas normas

estabelecidas pelos sábios no desejo de mostrar o amor a Deus. A fidelidade a Deus,

bem como, a busca pela santidade expressa nos textos bíblicos, é vivenciada por

meio de gestos litúrgicos e por uma prática social 80.

4.5. ”Seder Nashim“ סדר נשים

O tratado נדרים, “votos” apresenta normas visando concretizar as disposições

estabelecidas em Nm 30. Centra-se nas regras indispensáveis na firmação de um voto

entre um homem e uma mulher, elucidando também as possíveis condições

favoráveis para anulá-lo. Nos seus sete tratados, esta terceira ordem versa sobre

normas de condutas em relação às mulheres, sempre com base nos textos da Torá (Cf.

Dt 20,2-9; 24,1; 25,5; Ex 22,16; Nm 5,11-31.6.30) e em Rt 4.

4.5.1. Nedarim” 11,381“ נדרים

קונם שאיני נהנה

לברייות

Diz-se:

“qonam se tiro proveito

de qualquer pessoa”,

,אינו יכול להפר não pode anulá-lo,

ויכולה היא ליהנות בלקט

ובשכחה

.ובפיאה

ainda que ela possa beneficiar-se da

respiga, do fruto esquecido82 e da rua de

teu campo.

קונם כוהנים ולויים

, נהנים לי

;ייטלו על כורחו

Diz-se:

“qonam os sacerdotes e levitas que se

beneficiam de mim” se o colhem pela

força.

Porém se diz: “qonam”

79 Para os Tanaítas existe a distinção entre o agir por amor e agir pela fé. Segundo Rabi Akiva, os gestos feitos com amor são acompanhados pelas características do amor e do martírio. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 433. 80 Cf. Ibidem, p. 383. 81O texto hebraico é uma reprodução do programa eletrônico. Cf. < http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h33.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008. 82 Cf. Dt 24,19.

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, כוהנים אלו ולויים אלו נהנים לי

.ייטלו אחרים

estes sacerdotes e levitas que se

beneficiam de mim, outros o podem

colher (os frutos devidos).

O texto desenvolve-se no contexto em que o marido ou pai pode anular o

voto feito pela esposa ou filha83. Apelando ao conceito técnico de םקונ , qonam, o

voto feito por uma mulher pode ser cancelado. Segundo a definição dos sábios

“trata-se de um voto específico onde a pessoa proíbe a si mesmo de comer algo ou

visa beneficiar-se de alguma coisa ou de alguém ao dizer: “esta pessoa é para mim

um qonam”84.

O versículo apresenta três diferentes argumentações quanto ao uso do

termo qonam. Num primeiro momento, não há meio para retirar uma falta

cometida por uma mulher caso esta venha, diante de qualquer contexto social,

tirar proveito de alguém ou de algo pertencente à outra pessoa. Por se tratar de

uma violação na qual a pessoa venha se beneficiar de modo injusto, להפר יכול אינו ,

“não pode anulá-lo”, declara a Mishná. Mas a mulher, embora tendo cometido

algum delito, pode, seguindo a prescrição de Dt 24,19, usufruir da lei da respiga:

“Quando colheres a tua colheita no teu campo e lá esqueceres um feixe, não

voltarás para pegá-lo. Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será. Deste

modo te abençoará YHWH, teu Deus, em toda obra de tuas mãos”.

Num segundo exemplo, a norma refere-se aos sacerdotes e levitas que, no

exercício de suas funções, venham a obter lucros indevidos. Tal violação de

direito não há como ser revocada, pois se trata de uma forma de aquisição

indevida: כורחו על ייטלו , “se colhem pela força”. Neste caso as autoridades

religiosas estariam usurpando de um direito fixado, anteriormente pela halakhah.

Segundo o tratado sobre os produtos do campo, são quatro os tributos fixos dos

quais sacerdotes e levitas tem direitos garantidos: produtos do campo, o dízimo

oriundo da primeira colheita, os dízimos apresentados no templo, além das obras

de caridade marcadas pela disponibilidade dos produtos do campo aos grupos

sociais desfavorecidos85.

83 Os vários tipos de votos feitos por uma mulher, estando ela na qualidade de esposa ou filha, e que podem ser anulados pelo marido ou pai, são tratado no versículo 11. 84 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 251; JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1335. 85 Cf. M. Peá 1,1.

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Um terceiro exemplo é apresentado considerando o mesmo caso – violação

cometida por um sacerdote ou levita. A diferença está em afirmar que, na mesma

intensidade da violação cometida sobre a pessoa, outras pessoas podem colher os

frutos devidos, retirados por sacerdotes e levitas. Nota-se aqui um conceito

fundamental de justiça (Cf. Ex 21,24; Dt 19,21).

O grau de importância diante da narrativa de Dt 24,19, por parte dos sábios

é absoluto. Mesmo diante de um caso reconhecido como qonam não existem

meios capazes de impedir a prática da respiga dos feixes esquecidos no campo

durante o tempo da colheita.

4.5.2. Gittin” 5,886“ גיטין

As inforrmações presentes em Dt 24,1-4 fundamentam os debates no

tratado גיטין, “Gittin”, estabelecendo regras para a plena realização do litígio

entre marido e esposa. O tratado está dividido em nove capítulos, sendo o quinto

dedicado às regras da םלו ש , “paz” no interior das comunidades.

:אלו דברים אמרו מפני דרכי שלום

As seguintes coisas foram ditas para

favorecer a paz.

, כוהן קורא ראשון

, אחריו לוי

,ואחריו ישראל

.מפני דרכי שלום

O sacerdote lê primeiro,

depois dele o levita

e depois dele um israelita leigo

para favorecer a paz.

, מערבין בבית ישן

.מפני דרכי שלום

O erub seja feito na casa antiga

para o bem da paz.

, בור שהוא קרוב לאמה מתמלא ראשון

.מפני דרכי שלום

A cisterna que está próxima a um canal

se enche primeiro, para o bem da paz.

,יש בהן גזל מציאת חירש שוטה וקטן

.מפני דרכי שלום

Ao encontrado por um surdo-mudo,

um idiota ou um menor, se aplica a lei

do roubo pelo bem da paz.

R. Iossef afirma: trata-se de roubo .גזל גמור, רבי יוסי אומר

formal.

86 O texto hebraico foi extraído do programa eletrônico< http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h36.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008.

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, ודגים יש בהן גזל מצודות חיה ועופות

.מפני דרכי שלום

Ao preso na rede (o alçapão), sejam

animais, aves, peixes, se lhes aplica a

lei do roubo pelo bem da paz.

R. Iossef afirma: trata-se de roubo .גזל גמור, רבי יוסי אומר

formal.

, מה שתחתיו גזל העני המנקף בראש הזית

.ני דרכי שלוםמפ

Se um pobre vareja a copa de um

oliveiral, a todo o que está debaixo (da

árvore) se lhe aplica a lei do roubo pelo

bem da paz.

גזל , רבי יוסי אומר

.גמור

R. Iossef afirma: trata-se de roubo

formal.

אין ממחין ביד עניי גויים

, אהבלקט בשכחה ובפי

מפני דרכי

.שלום

Não há de proibir aos pobres não

israelitas recolher os frutos da respiga,

do esquecido87 e do limite de teu campo

para o bem da paz.

Ter gestos voltados para a harmonia. Essa é a tônica central desta parte do

tratado sobre o divórcio. O conteúdo do texto é claro: דרכי מפני אמרו דברים אלו

As seguintes coisas foram ditas para favorecer a concórdia”. São“ ,שלום

apresentadas sete atitudes, comuns ao cotidiano, exemplificando maneiras que

devem ser imitadas para se viver em harmonia, podendo ser divididas em três

grupos distintos.

Num primeiro bloco, aparecem três práticas por demais comuns: na

Sinagoga a leitura da escritura deve seguir o grau hierárquico. Nos dias festivos:

Páscoa, Festa das Semanas, Ano Novo, Dia do Perdão e Cabanas88 não são poucos

os que se dispõem à leitura da Torá. Na finalidade de evitar debates inúteis a

Mishná estabelece uma certa ordem. A leitura seja feita na seguinte ordem:

sacerdote, levita e, em seguida, o leigo. O עירוב “erubh”, literalmente traduzido

por “mistura, conjunção”89, diz respeito a um processo legal, criado pelos rabinos,

para facilitar a observância de atos casuísticos, em dia de sábado, com atenção

87 Cf. Dt 24,19s. 88 Festas fundamentadas nos textos bíblicos. 89 Cf. JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1075.

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centrada na não transgressão das leis90. As questões referentes ao erubh devem

ser encaminhadas na casa mais antiga entre as vizinhanças. A terceira norma

refere-se ao abastecimento de água para os moradores de uma determinada

região91. A Mishná aconselha que as cisternas próximas da fonte sejam cheias,

num primeiro momento.

Um segundo bloco visa elucidar a compreensão do גמור גזל , “roubo

formal”. A afirmação procede de R. Iossef92, citada três vezes, após três diferentes

atos. Não importa a pessoa que venha a furtar algo: sempre será considerado um

crime, pois, se trata de uma prática abominável diante dos preceitos de YHWH:

Ex 20,15; Lv 19,11. Com vista à concórdia, mesmo que a falta venha a ser

cometida por um surdo-mudo, um idiota ou por uma criança, o ato será

considerado um “roubo formal”, devendo a pessoa sofrer as punições

estabelecidas. O material usado para prender animais, aves ou peixes pertence a

algum tipo de proprietário. Assim, apropriar-se de animais, peixes ou aves pegos

nas armadilhas, não há como não ser considerado um roubo formal. O mesmo

julgamento recai sobre o momento em que um homem pobre recolhe da copa das

árvores os frutos, colocando-os com as próprias mãos sob a árvore. Conclui-se

que, nos três exemplos ocorre a violação de uma norma negativa. O roubo, não

importa quem venha a cometê-lo, é considerado um crime, visando o

estabelecimento de uma convivência social em equilíbrio: שלום דרבי מפני , “pelo

bem da paz”.

O versículo conclui com um realce dado ao gesto de não proibir, quer

israelita, quer pagão, de por em prática o direito de respiga expresso em Dt

24,19s. O texto é inovador ao referendar os גויים עניי , “pobres não israelitas”.

90 Existe uma variedade de éruv. Steinsaltz realça: a) erubh do passeio/quintal: fica proibido, em dia de sábado, transportar qualquer coisa que seja do domínio público para o privado. Segundo a mesma lei não é proibido fazer o contrário, isto é, transportar do círculo privado ao coletivo; b) éruv das iguarias cozidas: quando uma festa, seguindo o calendário, cai numa sexta-feira fica proibido preparar a refeição para o sábado; c) éruv das fronteiras: a norma segue o preceito estabelecido em Ex 16,29 determinando a medida exata a ser percorrida em dia de sábado. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, pp. 240-241; Cf. WIGODER, R., Érouv. In: DEdJ, pp. 321-323. 91 O tratado עירוב, “erubh” delimita as ações a serem consideradas quando diz respeito a uma cisterna de domínio privado ou público. 92 Rabi Yossef (ben Chalafta) faz parte da quarta geração de tanaítas, do II século. Proveniente de uma destacada família da Babilônia, é citado em inúmeros tratados do Talmud, exceto (Bikkurim, Me’ilá, Tamid, Horayot e Haguigá). Era um dos cinco rabinos refugiados na Babilônia durante a revolta de Bar Kochbá. Com o fim das restrições impostas por Adriano, retorna à Palestina tendo grande destaque nas assembléias de Yabne e Usha. Cf. FRIEMAN, S., Who’s who in the Talmud, London, Jason Aronson, 1995, pp. 400-403.

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Visando a convivência harmoniosa entre as vizinhanças os proprietários de terras

são intimados a contemplar, nos tempos da colheita, não apenas o compatriota

israelita, mas na mesma proporção o estrangeiro93.

4.5.3. סוטה Sotah 9,1094

Sempre na procura de adequar-se às observações determinadas pela Torá,

o tratado סוטה “Sotá” foi redigido no desejo de solucionar casos de infidelidade

da esposa, conforme o previsto em Nm 5,11-31. Da confirmação das

testemunhas, passando por todo o trâmite processual, até chegar à condenação ou

absolvição da mulher, o tratado expõe em detalhes as etapas do processo.

.יוחנן כוהן גדול העביר הודית המעשר

O Sumo Sacerdote Yojanán aboliu a

confissão do dízimo95.

אף הוא ביטל את המעוררים

.ואת הנוקפין

Também acabou com aqueles que

tinham a missão de despertar e de

golpear.

.היה פטיש מכה בירושלים, עד ימיו Em seus dias bateu o martelo em

Jerusalém.

אין אדם צריך לשאול , ובימיו

.על הדמאי

Em seu tempo, não havia necessidade

de perguntar (se um fruto) era dízimo

duvidoso.

Na dinastia dos Macabeus e Asmoneus, o nome de João Hircano I surge na

função de sumo sacerdote e rei em Jerusalém, durante os anos de 134 – 104 a.C.

Nesse período acontece o apogeu do estado Asmoneu, em que as decisões desse

monarca e líder religioso garantem um período de prosperidade em Jerusalém96.

Alguns de seus atos foram registrados nesse tratado da Mishná. Sob seu domínio o

governo passa a ter maior liberdade diante da Síria, constantes relações com 93 Cf. Lv 19,9-10. 94 Comparações são feitas considerando possíveis influências do Código de Hamurabi. Cf. DEL VALLE, Carlos (ed.), La Mishna, p. 569. Página eletrônica: http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h35.htm, acessado em 29 de dezembro de 2008. 95 Cf. Dt 26,13. 96 Cf. BASLEZ, M-F., Les Maccabées: guerre coloniale et événement fondateur. In: LMB, 168, 2005, pp.19-23.

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Roma e, às vezes, com o Egito, o que favoreceu o enriquecimento e o

fortalecimento da aristocracia, acompanhados por uma relativa crise relacionada à

prática devocional por parte dos sacerdotes97.

“Os inúmeros grupos de “piedosos” se mostravam receosos ou permaneciam à margem. Davam-se por satisfeitos com a garantia de uma liberdade de culto, e a segurança de poder levar uma vida de acordo com a lei; em relação aos seus males e dificuldades presentes, não confiavam em um solução humana, se não que esperavam uma futura e gloriosa intervenção divina que transformaria o destino do mundo. Os caminhos, algumas vezes tortuosos, seguidos pelos Macabeus, e especialmente por Jónatan, para alcançar seu objetivo naqueles momentos de transtorno e nas disputas deste mundo, é evidente que não tiveram a aprovação dos “piedosos” 98. O versículo apresenta um momento em que os sábios procuram repensar o

judaísmo99. A prática devocional, conforme a narrativa de Dt 26,13, deixara,

desde o tempo de Esdras, de ser praticada. Apenas os dízimos direcionados aos

sacerdotes eram efetuados, ficando o grupo dos levitas alijados de tal direito. Eis o

motivo que levou o sumo sacerdote João Hircano a abolir o gesto religioso que

direcionava o dízimo aos levitas e aos pobres100.

Outros gestos abolidos pelo sumo sacerdote foram o canto cotidiano,

entoado pelos levitas, com base no Salmo 44,24: “Desperta! Por que dormes,

Senhor?”, com a finalidade de evitar blasfêmias; o uso do bastão para ferir os

animais na testa, antes de serem mortos e a proibição de trabalhar em dias

97 Um grupo conhecido como pacifista, mas radicalmente contra os privilégios dos sacerdotes e o elevado grau de enriquecimento da aristocracia, resultado da política expansionista empreendida por João Hircano, se vê representado na reação dos fariseus. Cf. NODET, É., Les pharisiens sont les héritiers des Maccabées. In: LMB, 168, 2005, pp. 24-27; DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios Fariseus, p. 38; PAUL, A. O judaísmo tardio: história política, São Paulo, Paulinas, 1983, pp. 34-35. 98 Cf. NOTH, M., História de Israel, Barcelona, Garriga, 1975, p. 341; HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, Paris, Albin Michel, pp.34-39. Sievers, na tentativa de por um fim ao estereótipo em relação aos fariseus, ressalta doze aspectos históricos, ao demonstrar o alto grau de inserção farisaica na comunidade judaica ao longo de toda a dominação romana. Cf. SIEVERS, J. Who were the pharisees?. In: CHARLESWORTH, J. H. e JOHNS, L. L., Hillel and Jesus: comparative studies of two major religious leadres, Minneapolis, Fortress Press, 1977, pp. 137- 155. 99 A Mishná Sotah, como outras diversas mishnaiot, surgiu durante a época em que as práticas cultuais e jurídicas estavam em franca atividade, na época do Templo. Análises paralelas entre outros textos, recentes – Filon e Josefo – descrevem diferenças no modo de praticar ritos punitivos quando se trata de denuncias de infidelidade matrimonial e punições às mulheres. Sotah, possivelmente, teve sua redação em meados do século II. Cf. ROSEN-ZVI, I., Sotah Tractate. Disponível em: <http://jwa.org/encyclopedia/article/sotah-tractate>. Acesso em: 25 de mar. 2009. 100 Segundo Valle, a recitação do ato de fé, segundo Dt 26,13, era um contra-senso na medida em que não se cumpria mais o preceito, como estabeleceu a Torá. DEL VALLE, C., La Misha, p. 589.

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semifestivos. Caiu por terra, também, a obrigatoriedade de saber sobre

determinada quantidade de alimento pesava ou não o dízimo duvidoso.

Pelo texto não se pode afirmar se a recitação sobre os dízimos, com base

na prescrição deuteronômica, voltou ou não a ser praticada com toda a devoção

conforme manda a tradição, mas é notório que, pelo menos na época de Hircano, o

rito religioso veio a ser abandonado por falta de coerência.

4.6. ”Seder Neziqin“ סדר נזיקין

As leis versam sobre fatos ligados ao mundo da economia e transação

financeira, ao homicídio e meios para estabelecer a corte de justiça, bem como a

qualificação das testemunhas. Esta quarta ordem da Mishná apresenta

inúmeras leis versando sobre a superação de contendas na esfera pública ou

privada. Fatos ligados ao mundo econômico, social e religioso. A ordem, salvo

qualquer anacronismo, é um verdadeiro “código civil” na superação de conflitos

na esfera econômica e social.

Primeira Porta, Porta Média e Porta Última formam um único tratado, que

devido à extensão dos 30 capítulos, foi dividido em três secções. Os danos

causados por uma pessoa a outra ocupam a Primeira Porta. As questões de ordem

econômica ocupam a Porta Média. As exigências e critérios nas relações de

compra e venda são assuntos para a Porta Última101.

4.6.1. Bava Metzia” 9,13“ בבא מציעה

,המלווה את חברו Se alguém faz empréstimo a seu

próximo,

לא ימשכננו אלא

;בבית דין

não tomará dele nenhum penhor sem o

consentimento do tribunal,

,ולא ייכנס לביתו ליטול את משכונו nem entrará em sua casa para pegar a

prenda,

:uma vez que está escrito שנאמר

101 Cf. DEL VALLE, C., La Mishna, p. 635; STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature talmúdica y midrásica, pp. 174-176. Texto hebraico copiado na página eletrônica: <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h42.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008.

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." . .אשר אתה נושה בו , והאיש; תעמוד, בחוץ"

).יא,דברים כד(

permanecerá fora, e o homem a quem

fizeste o emprestimo virá... (Dt 24,11).

,היו לו שני כלים Se (o devedor) tiver dois utensílios,

נוטל אחד

;ומחזיר אחד

(o credor) poderá pegar um,

porém deixará o outro.

, מחזיר את הכר בלילה

.ואת המחרשה ביום

Deve devolver o colchão à noite

e o arado ao dia.

, ואם מת

אינו מחזיר

.וליורשי

Se morre (o devedor),

(o credor) não tem que devolvê-lo aos

herdeiros.

,רבן שמעון בן גמליאל אומר Rabán Simeão ben Gamaliel ensina:

אף לעצמו אינו מחזיר אלא

;עד שלושים יום

inclusive mesmo ao devedor não tem

que devolvê-lo antes de trinta dias.

, ם ולהלןמשלושי

.מוכרו בבית דין

A partir de trinta dias poderá vendê-lo

com consentimento do tribunal.

, אלמנה בין שהיא ענייה

בין שהיא עשירה

De uma viúva, seja pobre

ou rica,

,אין ממשכנין אותה não se há de pegar nada em penhor,

:porque está escrito שנאמר

בגד , תחבול לא"

).יז,דברים כד" (אלמנה

não tomarás em penhor as roupas da

viúva (Dt 24,17).

, החובל את הריחיים

; עובר בלא תעשה

.וחייב משום שני כלים

Se alguém toma como penhor um

moinho,

quebrando um preceito negativo,

se torna culpado por razão de pegar dois

objetos,

:uma vez que está escrito שנאמר

" ורכב, לא יחבול ריחיים"

).ו,דברים כד(

não se tomará em penhor a pedra

inferior ou superior do moinho. (Dt

24,6)

ולא ריחיים ורכב בלבד

,אמרו

Não disseram só a pedra inferior e

superior do moinho,

שעושין בו אוכל אלא כל דבר todos estes objetos com o qual se

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,נפש prepara a comida,

:uma vez que está escrito שנאמר

" הוא חובל, כי נפש"

).ו,דברים כד(

“porque seria pegar em prenda uma

vida”. (Dt 24,6).

A דין בית , “corte, tribunal”,102 não era somente um espaço para julgar e

decretar respectivas sanções aos infratores por seus crimes praticados, mas uma

entidade responsável em elaborar leis para aproximar o homem ao seu Criador,

em harmonia com toda a sociedade. Este princípio pode ser verificado

considerando o uso dos textos bíblicos feito pelos magistrados.

Em sua estrutura, o versículo acena à superação de inúmeros conflitos.

Diante de um מלוה, “empréstimo” não há meios de tirar proveito de uma possível

situação de dependência do חבר, “próximo”, caso esse tenha solicitado um

empréstimo, seja ele em bens ou dinheiro. Compete ao tribunal definir ou não a

quantia a ser pega como penhor. Fica também estabelecido que nada o credor

tome como propriedade sua com o objetivo de saldar a dívida. Com base na

máxima bíblica: “ficarás do lado de fora, e o homem a quem fizeste o empréstimo

virá para fora trazer-te o penhor” (Dt 24,11), os sábios criaram uma

regulamentação impondo um princípio essencialmente proibitivo. Pela expressão

uma vez que está dito, escrito,” é introduzida uma máxima como“ ,שנאמר

resultado de um processo de interpretação determinando que tal prática é

absolutamente proibida. Nesse caso, a propriedade, a casa, era compreendida

como um espaço inviolável.

As relações comerciais não devem ser feitas com base na violação de

direitos. Este princípio pode ser notado ao longo do segundo parágrafo do

versículo, ao apresentar uma máxima, seguida de um exemplo e novamente uma

máxima. A primeira máxima trabalha com uma categoria de valor utilizando uma

comparação: כלום שני , “dois utensílios”, אחד נוטל , “pegar um” e אחד ומחזיר , “deixará

o outro”. O jogo numérico visa alertar que o devedor precisa de meios para

trabalhar e quitar sua dívida. A retenção de todos os seus meios de trabalho seria a

legitimação de sua redução ao estado de pobreza permanente. O exemplo את מחזיר

בלילה הכר , “deve devolver o colchão à noite” e ביום המחרשה ואת , “e o arado ao dia”

102 O Talmud acena para a existência de vários níveis de tribunais formados por três, vinte e três, setenta e um juízes, no período do segundo templo. Após a destruição de Jerusalém, o sábio tanaíta, Yohanam ben Zakkai, transferiu o sinédrio para Yavneh. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 168.

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acena novamente para o princípio da não violação de direito. Assim como o

colchão é usado para dormir, o arado é visto como instrumento essencial para

trabalhar a terra. O exemplo mostra a necessidade do trabalhador de emprestar um

determinado objeto, caso este demore a ser devolvido. Não há possibilidade de

reter um bem indispensável de alguém. A segunda máxima alerta para a proibição

de transferência dos débitos. Não existem meios de transferir para uma geração

contratos de dívidas contraídas por uma outra geração. Uma descendência não se

vê obrigada a pagar uma dívida por ela não contraída. Entre os litigantes deve

haver uma relação comercial na base do direito.

As normas estabelecidas demandam uma honestidade sem limites. Nesse

prisma deve-se compreender a citação de Raban Simeão ben Gamaliel II103. Esse

destacado fariseu, tanaíta da terceira geração, enfatiza o princípio de que, nas

relações comerciais, deve-se levar em conta a pessoa e não um desenfreado desejo

em acumular, a qualquer custo, o lucro. Ao reter algo do devedor, o credor deverá

devolver antes de um período determinado de יום שלושים עד , “até trinta dias”.

Após esse tempo ao credor está facultada a possibilidade de vender o objeto que

está sob sua responsabilidade, mas não a qualquer preço, causando desta forma

maior dano ao devedor. A lei obriga consultar o tribunal a fim de que se faça uma

adequada avaliação do patrimônio posto à venda.

Como apelo à solidariedade, a narrativa retoma a máxima afirmada em Dt

24,17: “Não farás violar o direito do estrangeiro, do órfão e não tomarás como

penhor a roupa da viúva”. É possível perceber o desejo de ter a vida pautada pelas

máximas das leis recebidas por Israel e transmitidas pelos sábios. Seguindo o

texto bíblico, a Mishná também enfatiza a proteção aos bens pertencentes à viúva.

A novidade, e aqui não há como não perceber o desejo de viver sob as ordens de

YHWH, está no destaque dado à redação da norma legal, em especificar a

condição social: ענייה שהיא , “seja pobre” ou עשירה שהיא , “seja rica”.

A observância de uma מצוה, “ordem”, proveniente da Torá e definida

pelos sábios como dom de Deus para o bem dos homens104, visa a realização do

103 Este sábio atuou durante a época de grande perseguição e sofrimento imposto pelo regime romano. Teria estado na fortaleza de Bar Kochbá, conseguindo escapar do massacre. Simeão ben Gamaliel foi patriarca em Jerusalém sendo seus contemporâneos: Rabi Meir, Rabi Natan, Rabi Iehudá ben Hai, Rabi Shimon ben Yochai ilustres tanaítas. Seu filho, Rabi Iehudá Hanassi foi o compilador da Mishná. FRIEMAN, S., Who’s who in the Talmud, pp. 278-280. 104 Urbach define a revelação de Deus por meio de ordens, autorizações e interdições. O homem é convidado a encontrar sua plena realização no cumprimento dos preceitos divinos. O ato de

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homem em relação a Deus e a instauração do bom relacionamento na sociedade.

Este é o motivo da observância de uma ordem negativa: “Não tomarás como

penhor as duas mós, nem mesmo a mó de cima, pois assim estarias penhorando

uma vida” (Dt 24,6). Este é o sentido da expressão: בלא עובר, הריחיים את החובל

.”Se um toma como penhor um moinho quebrando um preceito negativo“ ,תעשה

Neste versículo nota-se a busca pela harmonia na convivência social na afirmação:

נפש אוכל בו שעושין דבר כל אלא , “todos estes objetos com o qual se prepara a

comida”, garantindo, assim, o direito aos bens utilizados no trabalho.

Fica evidente que os enunciados fundamentais provenientes dos textos

bíblicos foram amplamente explicitados, passo a passo, em todo o corpo da

jurisprudência rabínica105. A ética em relação ao próximo deve se pautar pelo

cumprimento da justiça.

“A regra de ouro de seu comportamento fora dada por Hillel, cerca de uma geração antes do nascimento de Cristo, como evolução progressiva de Levítico 19,18.34: “O que não desejas para ti, não o faças a teu próximo”. O conceito de próximo não se limita aos israelitas. Implica todos os humanos e, de certa forma, toda a Criação. Segundo Rabi Iehoshua ben Chananiá, também “os justos dos povos do mundo”, em outras palavras, os justos não-israelitas, participarão do mundo futuro, do mundo por vir (Olam habá) ao lado de Israel. Rabi Meir dizia: “Um não-judeu que segue a Torá é semelhante ao sumo sacerdote”106

4.6.2. Avot”, 5,9“ אבות

O tratado procura justificar a transmissão dos ensinamentos da Torá,

começando por Moisés até o último tanaíta, Rabi Yehudah Hanassi, editor da

Mishná, no século II d.C. As máximas sapiênciais são de autoria de vários sábios

e provenientes do III a.C.107.

:Em quatro momentos a peste aumenta בארבעה פרקים הדבר מרובה

transgressão nada mais é do que a diminuição da personalidade humana. O gesto de cumprir um mandamento outorga ao realizador o poder daquele que o ordenou: Deus. Um amplo estudo sobre o tema está no capitulo treze da obra. Cf. URBACH, E. E., Les sages d’Israël:conceptions et croyances des maîtres du Talmud, pp.229-415. 105 Por jurisprudência entenda-se o desenvolvimento do conceito הכ ל ה , “Halakhah”, formado pelos mandamentos vindos da Torá, passando pela lei oral e pelo desenvolvimento dos ensinamentos dos sábios. Cf. WIGODER, G., Jurisprudence rabbinique. In: DEdJ, pp. 412-419. 106 DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 97. 107 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 31. Conforme edição eletrônica: <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h49.htm> . Acessado em dez. de 2008.

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,ובשביעית ,ברביעית

ובמוצאי החג , ובמוצאי שביעית

:שבכל שנה

no ano quarto, no ano sétimo,

ao final do ano sétimo e ao final da festa

dos tabernáculos, todos os anos.

,ברביעית

פני מעשר עני מ

;שבשלישית

מפני מעשר , בשביעית

;עני שבשישית

,במוצאי שביעית

; מפני פירות שביעית

,במוצאי החג שבכל שנה ושנה

מפני גזל מתנות

עניים

No ano quarto

a causa do dízimo108 dos pobres

do ano terceiro;

no ano sétimo, a causa do dízimo dos

pobres do ano sexto;

ao final do sétimo ano,

a causa dos produtos do ano sétimo;

ao final da festa anual dos tabernáculos,

a causa do roubo dos dons109

dos pobres.

A expressão רב ד , “pestilência, peste” é utilizada para expressar as

inúmeras ocorrências em que o não cumprimento de uma מצוה, “mandamento,

ordem” acontece. Procura-se enfatizar um desvio feito de modo intencional. O

descumprimento da מצוה é violado propositadamente. Trata-se de um מצוה הבאה

.um mandamento que foi diretamente transgredido”110“ ,בעבירה

Pelo uso do conceito הדבר מרובה, “a peste aumenta” quatro tipos de

violações ocorrem com certa frequência, comprovada pela referência de tempo

todos os anos”. Nota-se um modo elucidativo ao indicar“ ,שבכל שנה

primeiramente as quatro violações, na seguinte ordem: ברביעית, “no ano quarto”;

,ובמוצאי החג ao final do ano sétimo” e“ ,ובמוצאי שביעית ;”no ano sétimo“ ,ובשביעית

“e ao final da festa dos tabernáculos”. Listadas as violações, a Mishná passa a

explicar os motivos pelos quais ocorrem as violações. Pode-se identificar a

seguinte estrutura na composição:

Ano quarto __________________________ dízimo dos pobres

Ano sétimo __________________________ dízimo dos pobres

Final do ano sétimo ____________________ produtos do sétimo ano

Final da festa dos Tabernáculos __________ roubo dos dons

108 Cf. Dt 24,18 109 Cf. Dt 14,28-29. 110 Cf. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 222.

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Das quatro violações elencadas, três ocorrem ao longo dos sete anos que

compõem o período sabático. ברביעי מפני מעשר עני, “No ano quarto, a causa do

dízimo dos pobres” deixa de ser realizada. A narrativa bíblica determina: “ao final

de três anos, tu farás tirar a décima parte de toda a tua colheita deste ano e farás

disponibilizar nos teus portões” (Dt 14,28). Essa quantia especificada pertenceria

aos pobres. O dízimo trienal devia ser entregue diretamente aos pobres, aos

socialmente necessitados. Eis uma maneira da jurisprudência rabínica de

contemplar a dádiva proveniente de Deus.

A segunda violação continua a ressaltar o מעשר עני, “dízimo dos pobres”

realizado a cada triênio. No sétimo ano deveria ser entregue aos pobres a

quantia separada do dízimo do sexto ano. Há um tempo fixado para

disponibilizar aos pobres seus dízimos. Eles não têm outros meios capazes de

garantir sua sobrevivência. Esta fixação fica evidente ao relacionar בשביעית

no sétimo ano, a causa do dízimo dos pobres” com o período“ ,מפני מעשר

do ano sexto”. Este dízimo era sonegado duas vezes num período de“ ,שבשישית

sete anos. A solidariedade para com os grupos dependentes, como meio de

expressar a dádiva libertadora recebida por seu Deus, não acontecia, por

intencional negligencia (Dt 14,29).

O conjunto das normas deuteronômicas apresenta uma regulamentação

para circunstâncias bem específicas. Há clareza sobre o que fazer ou não fazer

diante de diferentes realidades e ambientes envolvendo a sociedade judaica. Neste

prisma, a sonegação dos produtos do sétimo ano é a terceira violação denunciada

na declaração: מפני פירות שביעית, במוצאי שביעית , “ao final do ano sétimo, a causa

dos produtos do ano sétimo”. Trata-se, literalmente de abandonar a lavoura, bem

como os frutos, os alimentos nela cultivados, com a chegada do sétimo ano, tempo

jubilar111. A compreensão da importância do ano sabático, bem como o teor da

crítica, fica elucidada comparando com a norma estabelecida sobre o ano sabático:

“Se alguém tem frutos do ano sétimo e chega o tempo da remoção, tem que distribuí-los como alimento para três refeições ao máximo por pessoa. Os pobres podem comer depois que tenha começado o tempo da remoção, porém os ricos, não. Tal é a opinião de Rabi Yehuda. Rabi Yosé ensina: tanto o pobre como o rico podem comer deles depois que tenha chegado o tempo da remoção” 112.

111 Cf. Ex 23,10-11; Lv 25,1s.; Dt 25,1s. 112 M. Shebi 9,8. As normas sobre o que fazer com os produtos da lavoura quando da chegada do Ano Jubilar formam o tratado Shebiit “Ano Sabático”.

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Fica evidente que o gesto de disponibilizar os produtos do campo no

tempo sabático foi negligenciado. Ocorre, numa falta contra as ordens de Deus e

um total desrespeito pelos direitos legítimos dos pobres. A negligência é

denunciada. A Mishná não deixa de lado as responsabilidades dos israelitas, que

sofrerão diante de sua sonegação.

Uma quarta violação, intitulada de גזל, “roubo”, acontecia com a chegada

das festas agrícolas. Páscoa, Semanas e Sukkot eram as três importantes festas de

peregrinação marcadas por eventos históricos atrelados à realidade social da

comunidade. Sukkot113 é o cenário escolhido para a denúncia na transgressão do

mandamento que determina deixar no campo a quantia dos pobres. Na estação do

outono aconteciam as colheitas no campo e nessa ocasião deveria, com o máximo

de fidedignidade, ser abandonada, na lavoura, a décima parte, para ser consumida

pelos pobres até que esses se fartassem (Lv 19,10; Dt 14,28-29).

Chegou-se ao nível da banalização o dever de disponibilizar parte dos

frutos da terra aos grupos sociais em risco de sobrevivência. Diante disso, a

sonegação é compreendida como o meio, por excelência, de favorecer o aumento

da peste. Ao codificar os quatro meios, bem como a época em que הדבר מרובה, “a

peste aumenta”, os sábios acenam não somente para a chegada do juízo divino,

mas para a diminuição da dignidade humana. Ao transgredir um mandamento

divino, o homem perde sua referência divina, além de possibilitar o aumento da

pobreza no interior da comunidade.

4.7. Conclusão

Os sábios não são em nada flexíveis diante das normas oriundas da Torá.

Os casuísmos são cuidadosamente respondidos com a máxima preocupação de

não violar nenhum preceito, nenhuma vontade expressa por Deus. Os preceitos

não são compreendidos como uma regra, pura e simplesmente, mas o único meio

pelo qual a humanidade é capaz de chegar ao grau de santidade.

113 A festa é celebrada entre a última semana de setembro e a primeira quinzena de outubro, correspondendo ao dia 15 de Tishri, pelo calendário lunar, tendo a duração de sete dias. Relembra os anos errantes vividos por Israel em busca da terra prometida, quando a comunidade residiu em cabanas (Lv 23,42-43).

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Na esfera da ética social, considerando as denúncias pelo não

comprimento das práticas religiosas referentes à época da colheita114, ao

dízimo115, à chegada do ano sabático116, às respectivas leituras bíblicas durante o

período das festividades117, às anulações dos votos feitos por homens e mulheres

em seus tribunais118, frente às situações de divórcio119, em ocasiões em que

mulheres venham a ser denunciadas pela prática de adultério120, aos conflitos

diante de empréstimos em dinheiro ou em trabalhos não quitados121 ou em meio a

conselhos, vindos dos mais diversos círculos sapienciais122, são meios para a

prática da justiça. Justiça essa vivenciada na relação com o pobre e sua situação de

marginalidade. Tal gesto fica explicado nas afirmações de Miranda e Malca:

“Cientes das injustiças do mundo em que viviam, os fariseus manifestavam uma fé indestrutível nos impulsos humanísticos do coração humano, ao tempo em que eram realistas e lúcidos. Julgaram acertado formular a busca pela justiça (tzedaká), a prática da caridade e da benevolência numa obrigação religiosa. Sem a pressão da lei religiosa, muitos poderiam desviar seu olhar dos pobres, das injustiças e dos necessitados. Como os salmistas, os profetas e os sábios, os fariseus serão unânimes em apresentar a justiça como uma exigência da vida social e como fruto de uma autentica relação com Deus”123. O tema da defesa dos pobres parece, não poucas vezes, violado em

momentos cruciais, ao mesmo tempo em que ocorre a busca em recompor as

oportunidades perdidas na relação com o próximo e com Deus. A pobreza não é

compreendida como algo natural. Natural é a fé em Deus que criou tudo e tudo

disponibilizou livremente à humanidade. Esta, por sua vez tem a função de mero

administrador dos bens recebidos.

No conjunto dos doze textos da Mishná nota-se a presença de relações

contratuais que são, em bom número, de cunho religioso. Por religioso entenda-se

a origem que levou os sábios a elaborarem uma determinada norma. Só existe a

preocupação em disponibilizar os produtos no campo porque existe um preceito

escrito da parte da divindade: dar garantias de que os pobres terão meios para

114 M. Pea. 4,3; 6,4; 7,7. 115 M. Dem. 1,2; MSh 5,10. 116 M. Shebi. 7,1. 117 M. Meg. 2,5. 118 M. Ned. 11,3. 119 M. Git. 5,8. 120 M. Sot. 9,10. 121 M. BM. 9,13. 122 M. Abht. 5,9. 123 DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 93.

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sobreviver. Eis o projeto divino. Por meio dos textos, compreende-se o real

sentido da experiência religiosa. Experiência essa sempre vinculada ao mundo

real. É na busca de superação dos conflitos, ocasionados pelo não cumprimento de

uma máxima divina que se compreende a existência do Deus que tudo criou.

Diante da enorme quantidade de bens arrecadados a cada ano, fica evidente que os

pobres encontram garantia de subsistência. Eis o aspecto do enfoque social

existente nas leis Mishnáicas.

Há também certos preceitos de ordem contratual. Podem ser classificadas

as normas vigentes nas relações financeiras ou que sejam realizadas exigindo

previamente algum tipo de contrato entre as partes envolvidas124. Verifica-se que

os contratos, mais do que meras ideias, sustentam a equidade e visam estabelecer

e perpetuar uma convivência de paz entre os membros de um determinado grupo

social.

Embora em menor grupo, há uma norma de cunho sapiencial, como pode

ser notado nas denúncias contra os quatro tipos de sonegação dos dízimos125.

Denúncias, diante de um gesto intencional de não cumprir determinada ordem,

refletem a preocupação, sempre presente, de cumprir os preceitos da Torá, bem

como, o grau de sensibilidade pela equiparação social presente nos ensinamentos

dos sábios de Israel. Fica elucidado um princípio de causalidade: o surgimento

dos grupos sociais desfavorecidos revela o grau de apego de todos os preceitos de

Deus. Os apelos dos sábios seguem na direção de colocar a pessoa diante de sua

divindade. O uso da expressão: “a causa pelo roubo dos dons dos pobres” (Ab 5,9)

é, por demais, significativa. Ela não só acena para os bens que fazem parte natural

da “causa” dos pobres, como, com toda teimosia, apela contra aqueles que não

medem limites para desviar o que é de direito dos pobres. O “roubo dos pobres”

acontece. Mais do que uma mera força de expressão de linguagem, os sábios

procuram restabelecer o grau de sintonia entre o contribuinte e o ser de Deus.

Afinal, somente o Senhor dá garantia de segurança e prosperidade.

124 Cf. BM 9,13; Sot 9,10; Git 5,8 e Ned 11,3. 125 Cf. Ab 5,9.

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5 A trilogia social nos textos deuteronômicos e mishnáicos

Neste capítulo, são analisados os doze versículos da Mishná, divididos em

três blocos. Com base na trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva, procura-se

analisar os dois universos literários. Tal proposta elucida, ainda mais, o objeto

prioritário desta tese. No esforço comparativo entre as narrativas, somente as

explícitas referências aos grupos sociais marginais serão analisadas seguindo a

ordem numérica do livro do Deuteronômio. Com base nesse critério, forma-se a

seguinte ordem na apresentação: 1) O dever de disponibilizar os dízimos. Dt

26,12-15 comparado aos versículos: Dem 1,2; Shebi 7,1; MSh 5,10; Meg 2,5 e Sot

9,10; 2) O direito dos pobres pela respiga. Dt 24,19-21 comparado com os

versículos: Pea 4,3; 6,4; 7,7; Ned 11,3; Git 5,8; BM 9,13; 3) A violação do direito

dos pobres. Dt 14,28-29 comparado ao versículo Ab 5,9. A escolha dos versículos

da Mishná foi feita considerando a similaridade do respectivo texto bíblico que

oferece fundamentação a uma respectiva ordem.

5.1. O dever de disponibilizar os dízimos

Dt 26,131 Dem 1,22

13Dirás diante de YHWH, teu Deus:

separei o que é consagrado da minha

casa

e também o dei para o levita, para o

aAos produtos do dízimo duvidoso bnão se aplica a lei do quinto cnem da remoção3.

1 Na comparação entre as narrativas, serão considerados somente os versículos que dão sustentação argumentativa à norma estabelecida na Mishná, uma vez que a perícope, em todo o seu contexto já foi analisada na segunda parte do trabalho. 2 As letras dividindo o verso da Mishná são para simples conferência, uma vez que essa subdivisão inexiste na narrativa original. 3 Cf. Dt 26,13.

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estrangeiro, para o órfão e para a viúva,

conforme teu mandamento, que me

mandaste.

Não transgredi nenhum dos teus

mandamentos

e não esqueci. 14Não comi disto [dízimo] no meu luto,

e não queimei dele [dízimo] em estado

de impureza,

e não dei dele [dízimo] para um morto.

Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus.

Eu fiz conforme me mandaste.

dPodem ser comidos por um que está de eluto4. fPode-se introduzir em Jerusalém e

tirá-glos dali. hSe, no caminho, se estraga uma

pequena iquantidade, (não importa); jpode-se dar a uma pessoa não

instruída, kmas haverá de comer o equivalente. l(O preço do resgate) pode ser

convertido m(em dinheiro) de uso

comum: nprata por prata, dinheiro por cobre, oprata por cobre e cobre por frutos, pcontanto que alguém volte para

resgatar qos frutos. rEsta é a opinião de R. Meir. sOs sábios afirmam que os frutos tem

que tser levados a Jerusalém e ali,

devem ser uconsumidos .

A semelhança entre as narrativas está em apresentar aspectos em relação

ao dízimo. Nota-se: 1) os textos destacam a elaboração de normas para

disponibilizar certas quantias do dízimo. Dt estabelece a cifra “da décima parte”

(v. 12); 2) o tratado reconhece as leis envolvendo o dízimo, mas ressalta que,

4 Cf. Dt 26,14.

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sobre o dízimo de procedência duvidosa, rege uma norma de aspecto negativo

(Dem 1,2a). As duas narrativas expressam a importância de separar certa quantia a

ser disponibilizada a um determinado grupo de pessoas.

As diferenças são significativas. O Dt estabelece uma lei diante do dízimo

de procedência certa, reconhecido como puro, pela lei. Ao passo que na narrativa

da Mishná a lei tem um aspecto negativo, pois apresenta normas a serem

praticadas diante de uma soma de procedência duvidosa. Não se tem certeza da

origem e do processo utilizado na aquisição de determinada mercadoria. Nessa

condição a soma pode ser consumida em qualquer lugar e por alguém não judaíta.

É possivel também ser trocada por espécie em dinheiro, desde que seja uma

quantia equivalente. Esquematicamente:

Dt 26,12-15 Dem 1,2

Dízimo Consagrado Impuro

Destinatários pobres judaítas pobres não judaítas

local de consumo tuas portas/casas Jerusalém ou em qq. lugar

motivação cumprir o mandamento --------------

ordem proveniente do Senhor estabelecida por R. Meir

Percebe-se a substituição em espécie monetária referente à quantia a ser

obrigatoriamente consumida por alguém não judaíta. Nota-se que esta foi uma

maneira de resolver sobre a utilização do dízimo proveniente do עם הארץ “povo da

terra”. A lei expressa em Dem 1,2 tem como alvo este grupo social. Sobre esta

quantia não pesa nenhuma obrigatoriedade da parte do Senhor, por isso, existe a

possibilidade de trocar a quantia do dízimo por algo equivalente em espécie. A

regra estabelecida por R. Meir atualiza um preceito negativo diante de

determinada quantia, desde que esta seja relativa ao dízimo.

Por “povo da terra” é justo ressaltar que a compreensão soa diferente

quando comparado ao conceito predominante do AT. Escrito ao longo do segundo

século da nossa era, o tratado Dem reflete as relações entre as comunidades

judaítas instaladas nas regiões de Judá e Galiléia, em meados do século II. Nesse

ambiente adverso à soberania dos fariseus, deve ser compreendida a relação das

comunidades religiosas com pessoas ou grupos sociais alheios aos seus costumes ou

traços culturais.

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A motivação religiosa pode ser vista um alto grau de observância e apego

às leis bíblicas. O controle de todo o trabalho e produto do solo é regido pelas

normas estabelecidas pela Torá, e os sábios a veem como regra, são apenas

controladora dos trabalhos agrícolas, mas como meio de agradar a YHWH. O

possuidor de uma determinada quantia a ser disponibilizada tem a obrigatoriedade

de saber a procedência do produto. O cumprimento dessa certeza é algo intrínseco

em Deuteronômio (cf. 26,13-14), e sofreu um aspecto minucioso na redação do

tratado Dem 1,2. O que está em questão é não burlar uma lei divina. Para isso os

sábios são lúcidos ao declarar que “aos produtos do dízimo duvidoso não se aplica

a lei do quinto nem da remoção” (cf Dem 1,2a-c). Afinal, o dever de agradar e

receber a bênção de YHWH é a finalidade de todo esforço da comunidade.

5.1.1. Produtos disponibilizados no sétimo ano.

Dt 26,13 Shebi 7,7

13Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus mandamentos e não esqueci.

aEm relação ao ano sétimo se estabeleceu buma regra geral: tudo o que é comestível cpara o homem ou para os animais, as despécies dos tingidores e o que não se fconserva na terra, gficam sujeitos às regras do ano sétimo, hcomo também o dinheiro obtido em sua ivenda. Fica sujeito à lei da remoção5, je mesmo o dinheiro obtido em sua venda.

kQuais são? As folhas de ervas silvestres, las folhas de menta, a escarola, os alhos, a mflor - de- leque e a flor-de-leite. nE as ervas para o gado? As sarças e os oespinhos. Espécies que usam os ptingidores? qOs brotos de anil e do falso açafrão. rTodos eles estão submetidos à lei do

5 Cf. Dt 26,13.

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ssétimo ano, e também o dinheiro obtido tem sua venda. Estão sujeitos também à ulei da remoção, o mesmo que o dinheiro vobtido em sua venda.

A aproximação entre as perícopes ocorre no uso do verbo רע ב , “remover,

separar”, utilizado na forma piel, em Dt 26,13: tyIB;h;-!mi vd<Qoåh; yTir>[:ôBi, “separei o

que é consagrado da minha casa” (v.13) e, a expressão יש לו ביעור, “ficam sujeitos

a lei da remoção”, em Shebi (v.c). As demais afirmações, em ambos os textos,

seguem independentes.

Nos dois textos, prevalece um longo discurso relativo ao que deve ser

disponibilizado aos pobres. O texto de Shebi apresenta um aspecto explicativo

diante do que deve ou não ser disponibilizado com a chegada do ano jubilar e do

dízimo. A narrativa não discorre em generalidades. Visa prestar um

esclarecimento ao citar espécies de vegetais sobre os quais pesam a lei do ano

jubilar. São apresentados esclarecimentos de bens sobre os quais recaem a lei do

sétimo ano e outras duas, sobre os produtos sujeitos à lei do dízimo.

Em primeiro lugar, acena para todas as espécies de comestíveis, utilizados

pelos homens e úteis aos animais. Sob esses bens recae a lei do sétimo ano. Um

segundo esclarecimento visa as espécies de ervas naturais utilizadas para o tingir

das roupas. Um outro esclarecimento ressalta as espécies de plantas que não se

conservam sob a terra. Fica também disponibilizada toda e qualquer quantia em

dinheiro recebida com a venda dos respectivos produtos.

A perícope obedece à seguinte estrutura, nessa primeira parte:

A – No sétimo ano devem ser disponibilizados:

a) Produtos comestíveis (homem e animal)

b) Produtos utilizados pelos tintureiros

c) Produtos que não se conservam na terra.

Uma segunda parte da narrativa de Shebi acentua a obrigatoriedade do

dízimo de vários produtos colhidos, serem destinados aos pobres. O texto, em tom

elucidativo, parece querer impedir possíveis fraudes de sonegação ao apresentar a

frase: quais são os produtos? E os sábios, por sua vez, demonstram um forte rigor

e apego às normas estabelecidas no Dt. São os seguintes produtos:

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B – Produtos sujeitos à remoção:

a) Tipos de ervas silvetres

b) Ervas para os animais

c) Ervas utilizados pelos tintureiros

A clareza e objetividade marcam o texto da Mishná, impregnada de um

aspecto elucidativo, esclarecedor. Por duas vezes, afirma-se que esses produtos

estão sujeitos à lei do dizimo e do ano jubilar. Mesmo que tal quantia venha a ser

colocada a venda, o dinheiro recebido será integralmente disponibilizado para os

pobres. Está em jogo a felicidade dos pobres e, para que isso aconteça, é preciso

compreender e radicalizar a partilha dos bens. Eis algo esclarecedor, quando

comparado às normas sobre o ano jubilar, expostas nos textos bíblicos. Não é por

outro motivo que duas vezes o texto recorre à expressão ולדמיו שביעית, “como o

dinheiro da venda do sétimo ano” (v. b+f), e em outras duas à expressão ולדמיו

.e mesmo o dinheiro obtido de venda da remoção” (v. c+g)“ ,ביעור

A narrativa de Dt 26,13, quando comparada ao texto expresso em Shebi

7,1, apresenta leis, num contexto mais geral, de modo mais amplo. Apresenta um

arcabouço legal menos contextualizado, o que não poderia ser diferente, uma vez

que a Mishná procura meios para colocar em prática os preceitos expostos no Dt.

A comparação deixa transparecer que Dt 26,12-15 trata de uma lei que se impõe

diante do resultado final da empreitada, da colheita. Tal detalhe pode ser

verificado diante da expressão: “Quando tiveres terminado de separar toda a

décima parte de tua colheita, no terceiro ano” (v. 12).

A linguagem é litúrgica e acena para uma profissão de fé diante de Deus:

“Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e

também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva” (v. 13).

Outro detalhe que realça o cenário litúrgico é a declaração de inocência, ainda

diante de Deus, no uso da partícula de negação 9א , “não”, acompanhada de cinco

respectivos verbos, que enaltecem o grau de perfeição do fiel diante de Deus:

yTir>b:['-al{, “não transgredi”, yTix.k'v' al{w>, “e não esqueci”, yTil.k;a'-al{, “não comi”,

yTir>[:bi-al{w>, “e não queimei” e yTit;n"-al{w>, “e não dei”. O aspecto litúrgico continua

ao longo do resto do versículo exaltando o grau de inocência diante de Deus: “eu

ouvi a voz de YHWH...eu fiz conforme mandaste” (v.14) e conclui com a

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apresentação de uma oração conclamando as bênçãos divinas sobre o povo de

Israel, sobre o solo cultivado e certeza de prosperidade (v.15).

A comparação realça o grau de comprometimento e inovação empreendido

pelos sábios da Mishná. Há que ressaltar que para elaborar as normas referentes

ao ano jubilar e ao dízimo os sábios ampararam-se num texto deuteronômico de

cunho eminentemente litúrgico, fortemente confessional. Eles retrabalharam o

texto de tal forma que chegaram a ampliá-lo, diga-se de passagem, com coragem,

somando leis regulamentadoras do ano sétimo inexistentes em Dt 26,12-15,

acarretando maior legitimidade às suas propostas.

5.1.2. O dízimo dos pobres e a declaração no dia festivo, por excelência

Dt 26,13 MSh 5,10

13Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o

estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus mandamentos e não esqueci.

aNa tarde do último dia festivo bse faz a confissão6. Qual era a fórmula

da cconfissão? dSeparei o que é consagrado da minha ecasa (Dt 26,13),

fisto é, o segundo dízimo e os frutos das gárvores do quarto ano. dDei-o para o hlevita (Dt 26,13) isto é, o dízimo do ilevita. Também fiz outra entrega (Dt

26,13) j a saber, a oferta do dízimo, kPara o estrangeiro, para o órfão e para

a lviúva (Dt 26,13), (fiz a entrega) do mdízimo dos pobres, o fruto da respiga,

o nfruto esquecido e o do limite (de teu ocampo); ainda que isto não invalide a pconfissão. gDa minha casa, isto é, a qmassa (devida ao sacerdote).

6 Cf. 26,13.

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A narrativa de MSh 5,10 é redigida com base nas afirmações presentes em

Dt 26,13, o que lhe oferece um alto grau de antiguidade, remetendo-a ao período

da assembléia de Iavne7. São citadas as três espécies de dízimo a serem

disponibilizados, cada qual, a seu tempo: a) o segundo dízimo recolhido no ano

um, dois, quatro e cinco, levado para ser consumido em Jerusalém (v.c); b) o

dízimo do levita, conhecido como o primeiro dízimo (v.d); c) o dízimo dos pobres

(v.f).

MSh acena para a tarde do último dia festivo como momento de fazer a

confissão de fé. Ou seja, de declarar diante da presença de Deus a inocência. Esse

dia é chamado de בם טויו , a saber, a tarde do último dia da grande festividade que

é “dia da Páscoa” (v.a), com a duração de sete dias. O conteúdo apresentado tem

como eixo Dt 26,13. Em torno da frase: “separei o que é consagrado da minha

casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva,

conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus

mandamentos e não esqueci” é construído MSh 5,10, que procura enquadrar neste

texto litúrgico, os três tipos de dízimos que eram acompanhados pela recitação de

Dt 26,13.

Outro detalhe similar, na aproximação dos textos, são as repetições da

trilogia social. Ambas apresentam referências à trilogia social. Em MSh ocorre

uma separação. Ao descrever a entrega do dizimo primeiro, destinado ao levita, a

frase cita somente a primeira parte na narrativa. Isto é: “o dei para o levita”, pois

ressalva o dízimo levita. Ao disponibilizar o dízimo “para o estrangeiro, para o

órfão e para a viúva”, a narrativa chama a atenção para o fato de que está se

referindo ao dízimo disponibilizado para a garantia de sustentabilidade dos

pobres. Aliás, a ressalva está no próprio texto na afirmação: ינ ר ע ש ע מ , “dízimo dos

pobres”. A esses foi dada a liberdade da respiga e de colher os frutos esquecidos

no campo.

No tocante às diferenças, Dt 26,13 carece de exatidão. Por ser uma

máxima, provoca certa imprecisão quando comparado à Mishná. Dt afirma:

“Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte” (v.12). MS precisa a

época de oferecer os dízimos ao afirmar: “Na tarde do último dia faz a confissão”

7 Ao analisar as etapas redacionais impostas à Mishná, Manns argumenta que “as mishnaiot que são ligadas aos versos da Escritura são antigas”. Ele toma como exemplo o texto em análise: MSh 5,10. Cf. MANNS, F., Pour lire la Mishna, p. 152.

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(v.a). A trilogia social é citada duas vezes, por completo, em Dt (vv. 12, 13) e não

é dividida em referências como acontece em MSh (vv. d+f). Dt não faz nenhuma

lembrança à obrigatoriedade de disponibilizar o הל ח , “massa”, dom dos fiéis

entregue aos sacerdotes, como faz MSh (v.G). Essa espécie de massa de fazer pão

que era ofertada aos sacerdotes, com base na narrativa de Nm 15,20: “Como

primícias da vossa massa separareis um pão; fareis esta separação como aquela

que a fez com a eira”8.

Como em Shebi 7,7 a narrativa de MSh 5,10, embora sendo muito antiga,

assemelhando-se em muito ao texto do Dt, guarda ligeiras diferenças e acentua,

embora partindo de um texto com fortes aspectos cúlticos, a obrigatoriedade para

com todos os tipos de dízimos. Nota-se um esforço da comunidade religiosa em

aproximar ao máximo, sua experiência religiosa com os preceitos das Escrituras.

5.1.3. O dízimo lembrado nas ocasiões festivas

Dt 26,12-15 Meg 2,5 12Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte de tua colheita, no terceiro ano, a décima parte, darás para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. Eles comerão, em tuas portas, fartar-se-ão.

13Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus mandamentos e não esqueci.

aTodo dia é apto para a leitura do rolo, bpara recitar o hino de louvor, cpara o toque do shofar, dpara pegar o ramo, epara a oração adicional, fpara os sacrifícios adicionais, gpara a confissão no sacrifício dos touros, hpara a confissão com motivo do dízimo9, ipara a confissão no Dia da Expiação, jpara a imposição das mãos kpara sacrificar, lpara agitar, mpara colher um punhado, npara queimar o incenso, opara torcer a cabeça das aves,

8 Ao comentar o tratado Massa ( הל ח ), Del Valle acena à atualidade dessa prática. Ainda hoje se separa a quantia do הל ח , “massa”, mas por não haver quem seja digno de comê-la, tal quantia é queimada. Cf. DEL VALLE, La Misna, p. 185. 9 Cf. Dt 26,13-15.

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14Não comi disto [dízimo] no meu luto, e não queimei dele [dízimo] em estado de impureza, e não dei dele [dízimo] para um morto. Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus. Eu fiz conforme me mandaste. 15Dirige teu olhar desde tua santa morada dos céus e abençoa o teu povo, Israel, e o solo que deste para nós. conforme prestaste juramento para nossos pais, terra que destila leite e mel

ppara receber o sangue, qpara a aspersão, rpara fornecer a água à suspeita adúltera, spara desnucar o garrote tpara purificar o leproso.

A יםר וג פח “Festa de Purim” sustenta a referência bíblica. Nela se encontra

motivação para existir, seguindo os registros do livro de Ester10. São nas ocasiões

festivas que o povo expressa suas mais íntimas e profundas convicções sociais e

religiosas. A festa começou a ser celebrada no dia 14 do mês de Adar; somente no

século II d.C., após receber um tratado na redação da Mishná, invocando a vitória

dos hebreus, sobre os inimigos persas e, como Deus pode manifestar sua presença

diante dos revezes da vida11. No tempo dos Amoneus a festa era conhecida como

“o dia de Mardoqueu” (2Mc 15,36).

A experiência da diáspora, acelerada pela guerra contra as tropas romanas

(66-73), pôs em risco a perda total das tradições sapienciais e religiosas da

comunidade. A devastação final viria, seis décadas mais tarde, com o fracasso do

levante liderado por Bar Kochba (132-135). Essa última experiência, bélica

arruinou profundamente toda a região da Judéia. Os lastros do fracasso estão na

destruição da população, no desaparecimento de grandes escolas rabínicas e na

edificação do templo em louvor a Júpiter Capitolino, na antiga cidade divina

Jerusalém12. Tais referências históricas favorecem a compreensão do estilo

redacional presente em Meg 2,5. Ocorre um aspecto diretivo no uso dos verbos no

infinitivo que relembra inúmeras atividades sociais e religiosas: Festa do Ano

Novo (v.c), Festa dos Tabernáculos (v.d), os ritos adicionais pela ocasião dos

sábados festivos (v.c), ritos de purificação dos sacerdotes e do povo (v.g), ritos de

remissão dos pecados (v.s). As citações encontram fundamentos nos textos

10 Est 9,20-28. 11 Cf. Encyclopaedia Judaica, V. XIII, pp. 1390-1391. 12 Cf. GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel, pp. 295-303.

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bíblicos, e ao retomá-las a Mishná lança as bases fundamentais para a vida social

da comunidade judaíta.

Os mestres rabinos crêem que há somente um meio para agradar a Deus:

conhecê-lo. Ensinar era uma obrigação dos sábios. Para isso são indispensáveis o

estudo e as obras de caridade, como acenam de Miranda e Malca:

“No seio do povo permanentemente tentado pelo politeísmo, o grande mérito dos fariseus, por sua ação educativa e seus exemplos pessoais, foi manter o povo numa severa fidelidade ao Deus único. Esse sistema educacional fez com que o povo judeu tivesse um nível religioso e moral bem mais elevado do que o das populações vizinhas”13.

A similaridade com o texto de Dt 26,12-15 poderia ser nula, se não fosse a

inclusão da frase “para a confissão com motivo do dízimo” (cf. Meg 2,5h). Com

exceção dessa frase, os dois textos correm em direção antagônicas. As inúmeras

festas e orações elencadas em seus próprios tempos, não deixam de ser uma

novidade expressa pelos sábios. Trata-se de um convite “lembrete” diante de um

círculo litúrgico sobrecarregado de símbolos e eventos.

Por último ocorre a lembrança da confissão do dízimo, citada como uma

obrigatoriedade trivial na vida de um religioso. Vale notar que os redatores da

Mishná embora longe do templo outrora destruído (70 d.C), guardam a memória

de uma prática religiosa fortemente revestida de um gesto social. A oração era

feita no exato momento em que se depositava, ou deliberava a quantia

estabelecida para os pobres. Eis o mérito expresso pela Mishná: a destruição do

templo não serve de álibi para descumprir um mandamento de Deus voltado para

amparo dos pobres.

5.1.4. A confissão do dízimo abolida pelo Sumo Sacerdote

Dt 26,13 Sot 9,10

13Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva,

aO Sumo Sacerdote Yojanán

13 DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Os sábios fariseus, p92.

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conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus mandamentos e não esqueci.

baboliu a confissão do dízimo14. cTambém acabou com aqueles que

tinham da missão de despertar e de

golpear. eEm seus dias bateu o martelo em fJerusalém. gEm seu tempo, não havia necessidade

de hperguntar (se um fruto) era dízimo iduvidoso.

O que facilita a comparação entre as duas narrativas é a nítida referência à

oração “separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita,

para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me

mandaste”, baseada em Dt 26,13, proferida no momento de entrega do dízimo,

como estabelecia a lei. A recitação servia como uma espécie de “atestado de boa

procedência” do dízimo oferecido.

Conheciam-se prescrições para se evitar transações com produtos sobre os

quais pesa a suspeita do dízimo duvidoso. Oportuna a referência à descrição

encontrada no livro de Tobias15, sobre a prática em vigor, em meados do início do

século II a.C. Apesar do aspecto da canonicidade empreendido ao livro, nota-se

um peso forte dado à centralização, em Jerusalém, referente ao dízimo. Tal

observância teria ocorrido logo após a queda do segundo Templo. A quantia,

anteriormente recolhida pelos levitas nas colônias, nos lugares onde se davam as

próprias produções, passa a ser pagável num lugar central: Jerusalém16.

Possivelmente, nem todas as normas tiveram peso de lei pétrea e, por isso,

ao longo dos anos sofreram mudanças ou deixaram de ser praticadas ou se

tornaram insignificantes para a comunidade religiosa. Um exemplo de mudança

na tradição e costume foi a obrigação da prática das atividades impostas por João

14 Cf. Dt 26,13. 15 Cf. Tb 1,6-8. 16 Cf. SCHMIDT, F., O Pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, São Paulo, Loyola, 1998, pp. 189-190.

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Hircano17 no modo de recolher o dízimo18. A prática de pesquisar sobre o dízimo

duvidoso caiu por terra. Com base nos argumentos de Schmidt, esse preceito

religioso foi suprimido, pois os “principais beneficiários são, de agora em diante,

os sacerdotes e não os levitas”19. Em Sot 9,10 pode-se notar o valor histórico

recolhido pelos sábios num período conturbado na vida social e religiosa em

Jerusalém.

João Hircano exerce o cargo gozando de total independência diante dos

selêucidas, enfraquecidos, sobretudo, após a morte de Antíoco VII, na batalha

contra os partos. Em meio a crises internas, que parecem cada vez mais

incontroláveis, o poderio beligerante selêucida cede, vertiginosamente, sua

influência sobre as terras espalhadas na Judéia, o que acaba facilitando, ainda

mais, os planos expansionistas colocados em marcha por Hircano20. Registram-se

a formação de um exército profissional, frentes de batalhas nas fronteiras de

Mádaba, na Iduméia, em Siquém e a destruição do templo de Garizim, em

meados do ano 108 a.C. A fragilidade dos reinos helenistas do leste possibilitam

17 Há suspeitas sobre a identidade do personagem citado pela Mishná, em Sot 9,10. Não são poucos os que associam o Sumo Sacerdote Yohanan à dinastia dos Asmoneus. Matatias, filho de João, filho de Simão, sacerdote da linhagem de Joiarib” teria dado início à revolta contra a profanação do Templo, em 166 a.C., pelos helenistas; o que, segundo Roth, seria impossível, pois ambos não chegaram ao posto de Sumo Sacerdote. Outro possível personagem pretendente ao cargo seria o Sumo Sacerdote Yohanan, citado em Ne 12,22-23. Mas esse teria vivido em meados de 410 a 370 a.C. A figura, historicamente mais próxima, ao personagem em questão, seria mesmo um outro membro da família dos Asmoneus chamado João Hircano. Esse sim, teria ocupado o cargo máximo na linhagem sacerdotal, entre os anos 135 a 104 a.C. Cf. ROTH, R. Simchah, DissertaçãoSotah, 9, 10. Disponível em: <http://www.bmn.org.il/shiurim/sotah/sot105.html>. Acesso em 18 de mar. 2009. 18 Sobre os deveres de culto e exigências sociais assegurada ao Sumo Sacerdote, oportuna as observações elencadas por Jeremias. Ao Sumo Sacerdote pesava uma representação de “santidade eterna”, ainda que pese denúncias de usurpação no cargo. Cf. JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário, São Paulo, Paulinas, 1969, pp. 208-223. 19 SCHMIDT, F., O Pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, p. 191. Esse, por sua vez, recorre às informações listadas por Flávio Josefo que, com base num edito de Júlio Cesar, acena que “[Os judeus] pagarão a Hircano e a seus descendentes o dízimo que pagaram a seus antepassados”. A reforma imposta por Hircano nada mais objetivava que o acúmulo e monopólio total dos dízimos em mãos dos sacerdotes, inutilizando, para tal controle, qualquer investigação sobre os dízimos recolhidos. 20 Cf. GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias, São Paulo, Teológica/Loyola, 2005, p. 269. Não são poucos os historiadores que sublinham a atmosfera marcada por um saudosismo de cunho nacionalista sobre a qual as grandes epopéias davídicas e salomônicas devem ser reinventadas por meio do expansionismo posto em prática pela realeza judaica da época. Cf. NOTH, M., Histoire D’Israël, Paris, Payot, 1970, pp. 390-392; SCHIMIDT, F., O pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, p. 187.

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uma certa prosperidade econômica na Judéia21. O ponto alto será a destruição da

antiga capital Samaria. A governabilidade de Hircano é fortemente marcada por

um estilo helênico de governar, o que irá atrair correntes oposicionistas lideradas

pelo grupo dos fariseus, conhecido junto às camadas populares de חא - irmão ou

companheiro - por serem em sua maioria doutores da Lei.

“O farisaísmo, com sua doutrina fundamentada na tradição oral, que tinha a mesma importância que a lei escrita, conseguiu abrir-se criticamente a novas respostas possíveis a perguntas que tinham se tornado atuais. Numa época em que os vínculos coletivos já não sustentavam nem abrigavam de modo natural a pessoa individual e o indivíduo tinha começado a perguntar de modo individual pela justiça em um mundo cheio de injustiça, perversidades e derramamento de sangue, ainda mais sob a impressão das perseguições contra as pessoas fiéis à lei, também o farisaísmo integrou a doutrina da ressurreição dos mortos e da recompensa pós-morte, da alma que pode ser castigada ou recompensada após a morte”22. O governo de João Hircano tende favoravelmente ao grupo religioso dos

saduceus que se tornaram absolutos no controle das ações governamentais e

administração das atividades sócio-religiosas envolvendo-se não somente junto ao

Templo de Jerusalém, mas nas ações e controle do Sinédrio. Eis a possibilidade de

entender a anulação do rito sobre a pureza dos dízimos oferecidos, imposta por

Hircano que, atrelado a um grupo majoritário, representado pelos saduceus,

imprime aos hábitos religiosos um estilo altamente helenístico.

A fragilidade dos governos que se sucedem na Judéia pode ser percebida

após a morte de Hircano, em 104 a.C. Seu filho Aristóbulo sobe ao trono, mas

tendo na retaguarda um famigerado e fratricídio golpe de estado, impondo à

morte, por meio de cárcere e fome, seus irmãos e sua própria mãe, esta, sucessora

legítima ao trono, além de dar continuidade às políticas beligerantes de Hircano.

Embora tenha seu governo vigorado apenas um ano, foi tempo suficiente para

impor uma campanha contra Ituréia do Norte, e chega ao ponto de obrigar toda a

população a praticar a religião judaica, impondo o rito da circuncisão. A política

expansionista somada ao estilo helenista empreendida por Alexandre Janeu (103-

76 a.C.), como sucessor de Aristóbulo, segue em ritmo acelerado, ao longo do

primeiro século a.C. Uma guerra civil nos anos 96-95 a.C. não tardará a surgir,

21 GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias,p. 270. 22 Ibidem, p. 277.

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resultando na morte de mais de 800 pessoas ligadas ao partido dos fariseus. Essa

guerra foi responsável pelo total enfraquecimento cultural e social da comunidade

religiosa e terá seu final somente com o surgimento da nova política internacional

adotada por Pompeu, que se impõe como autoridade na Síria e Judéia.

Crê-se que tais aspectos históricos facilitam compreender a decisão

tomada pelos sábios, expressa em Sot 9,1. A comparação entre as duas narrativas

se justifica somente na medida em que Dt 23,13 oferece sustentação à narrativa

apresentada pela Mishná. O texto bíblico deixa de ser recitado mediante o ato da

entrega do dízimo que caíra em desuso havia mais de três séculos, e como era

benéfico aos sacerdotes do templo de Jerusalém, não havia motivo para mantê-lo,

uma vez que a primazia farisaica no final do século II era unânime. Os sábios

buscam, sim, coerência frente à respectiva norma bíblica.

5.2. O dever de garantir aos pobres o direito da respiga

Na época em que se faz a colheita, o proprietário é obrigado a

disponibilizar os cantos da propriedade para serem colhidos pelos pobres. Esse

espaço, juntamente com os produtos do campo que se encontram sobre ele, é

conhecido como Pea. Uma prática social voltada à justiça no mundo da

agricultura23. A Torá não chega a estipular a quantia mínima, mas os rabinos

determinam o equivalente a um sexagésimo de todo o produto existente no

campo, como valor mínimo a ser disponibilizado no campo para que os pobres

encontrem porções que lhes possam garantir subsistência.

5.2.1. O recolhimento do Pea não é ocasião de roubar o proprietário

Dt 24,19-21 Pea 4,3 19Quando colheres a tua colheita no teu

campo e esqueceres um feixe no campo

não voltarás para pegá-lo.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

aSe alguém recolhe algo (dos frutos do bpreceito) do limite (de teu campo) ce o jogar com os demais, djá não tem parte nela.

23 Cf. SPITZER, J., Peʿah: os cantos dos nossos campos. Disponível em: <http://www.myjewishlearning.com/practices/Ethics/Tzedakah_Charity/Requirements/The_Corners_of_Our_Fields.shtml>. Acessado em: 06 abr. 2009.

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viúva será.

Deste modo, te abençoará YHWH, teu

Deus, em toda obra de tuas mãos. 20Quando varejares tua oliveira,

não repassarás [os ramos que ficaram]

atrás de ti.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva serão. 21Quando colheres a tua vinha

não farás rebuscar [a vinha que ficou]

atrás de ti.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva será.

ePorém se jogar-se sobre eles fe estender seu manto, gestá obrigado a tirá-lo dali. hO mesmo vale ipara a rebusca e para o feixe

esquecido.

A ênfase na comparação entre Pea 4,3 e Dt 24,19-21 encontra seu motivo

no uso dos verbos רצ ק “recolher” (cf. Dt 24,19, Pea 4,3a) e o gesto adotado diante

de alguém que venha a esquecer um determinado דהש ר ב מ ע “feixe no campo”,

presente em ambos os textos (Dt 24,19, Pea 4,3i).

Enquanto Dt 24,19-21 indica para a obrigatoriedade de disponibilizar os

produtos existentes nos cantos do campo: “quando varejares tua oliveira, não

repassarás [os ramos que ficaram] atrás de ti” (v. 20), a Mishná condena o mau

uso da lei feita por grupos de pobres no momento de respigar produtos. A ocasião,

longe de proporcionar a igualdade, tornou-se ocasião de crime cometido contra o

proprietário: “Se alguém recolhe algo (dos frutos do preceito) do limite (de teu

campo) e o jogar com os demais já não tem parte nele” (a – d). É nítido o aceno

dado pela Mishná contra as fraudes cometidas contra o proprietário pela ocasião

da respiga e do feixe esquecido. A Torá acena a um gesto de justiça e ocasião

dos pobres encontrarem meios para sobreviverem, e Pea alerta a “pessoa para não

roubar dos proprietários” 24.

24 Cf. Ibidem.

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5.2.2. A radicalidade da lei do “não voltar atrás”

Não é por mero acaso que a palavra שכחה “feixe esquecido”25, é seis vezes

citada pela M. Pea (g,i,n,o,t,x). Trata-se de saber o que será disponibilizado aos

pobres. A norma presente em Pea 6,4 encontra seu fundamento em Dt 24,19, ao

utilizar o termo hd<F'B; rm[o T'x.k;v'w> “e esqueceres um feixe no campo” (v. 19). A

quantia esquecida é o critério adotado para dispor ou não parte da colheita.

Dt 24,19 Pea 6,4

Quando

colheres a tua colheita no teu campo

e esqueceres um feixe no campo

não voltarás para pegá-lo.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva será.

Deste modo,

te abençoará YHWH, teu Deus, em

toda obra de tuas mãos.

aPara os extremos das linhas vale o bseguinte: se começam dois (a recolher

os cfeixes) pelo meio da linha, um se

volta ao dnorte e outro se volta ao sul,

esquecendo e(alguns feixes) à frente e

atrás deles, fos que caem diante deles são gconsiderados como feixes esquecidos, ha não ser que caem detrás deles não

são iconsiderados como tal.

jSe uma pessoa só começa pelo extremo kda linha e esquece (alguns feixes) que lestavam, uns adiante e outros detrás

dele, mos que estão adiante dele não se nconsideram como feixes esquecidos, oporém os que estão atrás, sim, pposto que a este se aplica: não voltarás qatrás26. rEsta é a regra geral: a tudo o que se

pode saplicar o não voltarás atrás, é

25 Um conceito técnico no universo da legislação. Seguindo o preceito de Dt 24,19, a disponibilização do “feixe esquecido” é compreendido como um espécie de presente disponibilizado aos pobres. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud:A Reference Guide, p. 266. 26 Cf. Dt 24,19.

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tconsiderado como feixe esquecido, ua não ser que não se possa aplicar a ele vnão voltarás atrás não se considera

como xfeixe esquecido.

Percebe-se como os sábios buscaram na Torá uma equação para poder

estabelecer quando algo faz ou não parte da quantia, obrigatoriamente,

disponibilizada aos pobres. Prevalece o argumento maior proveniente da Torá. Em

outras palavras, o trabalhador, no momento em que recolhe os feixes previamente

amontoados em fileiras, não deve “voltar para pegá-los” (v. 19). Essa quantia –

esquecida – já é para ser juntada pelos pobres. Prevalece a cláusula da lei: 9ב ושת א

ותח ק ל “não voltes para pegá-lo”.

5.2.3. Em qualquer situação os pobres serão lembrados

Os cachos de uvas reconhecidos como תעוללו (defeituosos, cachos falhos,

mal formados) devem ser disponibilizados para os pobres. Trata-se de um נותת מ

presentes aos pobres”27. Porém, no caso apresentado em Pea 7,7, ficaria o“ עניים

proprietário em total prejuízo ao ver toda produção disponibilizada aos pobres? A

Mishná impõe tal questionamento no desejo de impossibilitar uma possível

violação dos direitos de respiga garantido aos pobres.

Dt 24,21 Pea 7,7

Quando

colheres a tua vinha

não farás rebuscar [a vinha que ficou]

atrás de ti.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

aSe uma vinha tem somente cachos de brebusca, segundo R. Eliezer pertencem

ao cproprietário; dentretanto segundo R. Aquiba

pertencem eaos pobres. fR. Eliezer arguiu: “se tu vindimas, não gtens que recolher os cachos da

27 Era comum separar parte da colheita e entregá-la aos pobres, como gesto de caridade, cumprindo preceitos da Torá, comumente chamados de: עני עשרמ “dízimo do pobre”, לקט “respiga”, פאה “canto do campo, limite da plantação”, רטפ “simples uvas caídas por terra durante a colheita”, עוללות “pequenos cachos de uvas”. Cf. STEINSALTZ, R, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 225.

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viúva será.

rebusca”, (Dt 24,21). hPorém se não há vindimas, como

haverá icachos para a rebusca? jReplicou R. Aquiba: “não farás a

rebusca kde tua vinha”, (Lv 19,10). linclusive quando toda ela não tenha

mais mque cachos de rebusca. nSe é assim, por que está

escrito:“Quando ocolheres a tua vinha

não farás rebusca”? p(Para mostrar que) os pobres não tem qdireito aos cachos da rebusca rantes da vindima.

5.2.4. Não há meios de revogar o direito da Torá

O versículo apresenta três cláusulas em torno de situações em que pesam o

conceito de conam, divididas nos parágrafos: a) a – e, b) f – h, c) i – l. Somente no

primeiro, a – e, ocorre a nítida referência ao termo הח כ ש “fruto esquecido”. Nota-se

que a narrativa de Ned 11,3 leva às últimas conseqüências o caráter defensivo dos

pobres, ao garantir à esposa o direito de respigar no campo em busca dos produtos

esquecidos. Busca-se solucionar um litígio entre as partes: mulher e marido.

Dt 24,19 Ned 11,3

Quando

colheres a tua colheita no teu campo

e esqueceres um feixe no campo

não voltarás para pegá-lo.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva será.

Deste modo,

te abençoará YHWH, teu Deus, em

toda obra de tuas mãos.

a(Se diz): “conam se tiro proveito bde qualquer pessoa”, não pode anulá-

lo, cainda que, ela possa beneficiar-se da drespiga, do fruto esquecido28 e da rua

de eteu campo. f(Se diz): “conam os sacerdotes e

levitas gque se beneficiam de mim” se o

colhem hpela força.

28 Cf. Dt 24,19.

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i(Porém se diz: “conam”) estes

sacerdotes je levitas que se beneficiam

de mim, koutros o podem colher (os

frutos ldevidos).

Se a mulher diz ao seu marido: “Eu juro – conam – que não retirarei

nenhum benefício da população”. Ela declara sua disposição em não receber

nenhum bem ou quantia pertencente ao marido, pois ele não tem poder de anular

a promessa feita pela mulher, a ela cabe, segundo os princípios da Torá, o direito

de ser sustentada e beneficiar os produtos do campo em determinadas épocas. A

Guemará, ao comentar Ned 11,3, realça o direito da mulher beneficiar-se dos bens

do marido, uma vez que ela já não se encontra incluída nos pertences ou

propriedades do marido29. Ao marido cabe aceitar, pois é impossível anular um

preceito proveniente da Torá.

Essa radicalidade pode ser conferida nas afirmações feitas em benefício da

mulher: ויכולה היא ליהנות בלקט ובשכחה ובפיאהת “ela possa beneficiar-se da respiga,

do fruto esquecido e da rua de teu campo”. A mulher, na qualidade de divorciada -

e não necessariamente na condição social de viúva - passa a ter amplos poderes

de entrar e recolher a parte que lhe cabe, do campo, na época da respiga, dos

frutos esquecidos, além de beneficiar-se da pe’ah. Na época da Mishná as

cláusulas se referem aos bens ou mercadorias pertencentes ao marido e não

obrigatoriamente a um campo com plantações diversas.

Não há maiores semelhanças entre as narrativas, mas nota-se que a

prerrogativa defendendo o estrangeiro, órfão e viúva, em Dt 24,19, é agora

compreendida na pessoa da mulher divorciada.

5.2.5. Esforços voltados para a manutenção da paz

Considerando os esforços voltados para a superação das desigualdades

sociais e a harmonia social entre diferentes grupos, a narrativa presente em M.

Gittim 5,8 demonstra, entre inúmeros hábitos marcantes na vida religiosa e social,

um grau de sensibilidade social, ao situar os direitos dos pobres, como meio para

29 Cf. GUEMARA, encontrado em <http://www.come-and-hear.com/nedarim/nedarim 83.html>. Acessado em: 10 de Abr. 2009.

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conviverem em paz. Verifica-se que as três práticas, garantidas na Torá: respiga,

recolhimento dos produtos esquecidos e limite do campo, são garantias dadas aos

pobres não judaítas (l. u-y).

Dt 24,19-21 Git 5,8

Quando

colheres a tua colheita no teu campo

e esqueceres um feixe no campo

não voltarás para pegá-lo.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva será.

Deste modo,

te abençoará YHWH, teu Deus, em

toda obra de tuas mãos.

Quando

varejares tua oliveira,

não repassarás [os ramos que ficaram]

atrás de ti.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva serão.

Quando

colheres a tua vinha

não farás rebuscar [a vinha que ficou]

atrás de ti.

Para o estrangeiro, para o órfão e para a

viúva será.

aAs seguintes coisas foram ditas para bfavorecer a concórdia. O sacerdote lê cprimeiro, depois dele o levita e depois ddele um israelita leigo para favorecer a econcórdia. O erub seja feito na casa fantiga para o bem da concórdia. gA cisterna que está próxima a um canal hse enche primeiro, para o bem da iconcórdia. Ao encontrado por um

surdo-jmudo, um idiota ou um menor,

se aplica a klei do roubo pelo bem da

concórdia. lR. Iossef afirma: trata-se de roubo

formal. mAo preso na rede (o alçapão), sejam nanimais, aves, peixes, se lhes aplica a

lei odo roubo pelo bem da concórdia. pR. Iossef afirma: trata-se de roubo qformal. Se um pobre vareja a copa de

um roliveiral, a todo o que está debaixo

(da sárvore) se lhe aplica a lei do roubo

pelo tbem da paz. R. Iossef afirma: se

trata de uum roubo formal. Não há de

proibir aos vpobres não israelitas

recolher os frutos da xrespiga, do

esquecido30 e do limite de teu ycampo

para o bem da paz.

30 Cf. Dt 24,19s.

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Em Dt 24,19-21 os três momentos ligados ao tempo da colheita: 1) “a tua

colheita no teu campo” (v.19); 2) “varejares tua oliveira” (v.20); 3) “colheres a tua

vinha” (v.21) direcionam-se para estarem disponíveis ao estrangeiro, órfão e viúva

(vv. 19, 20 e 21) dos círculos judaítas, embora o texto não faça nenhuma

exigência neste sentido. Gittim, pelo contrário, especifica o grupo dos pobres e,

ainda, qualificando-os como עניי גויים “pobres não israelitas, pobres estrangeiros”.

Para os sábios está em jogo não aspectos beligerantes na convivência social mas o

real interesse em uma convivência pacífica entre os pobres que convivem numa

mesma realidade31. A busca por uma harmonia comunitária permeia todo o

versículo. Não é em vão a definição de roubo estabelecida por R. Iossef32.

Entende-se por roubo formal a posse ilegítima dos frutos colhidos por um pobre e

sorrateiramente apropriados por um outro trabalhador. A qualificação de “roubo

formal” busca manter as boas relações comunitárias objetivando a paz, que é vista

como importante para o grupo social dos pobres.

5.2.6. Relações comerciais sem usuras

A proibição de violar o direito em transações comerciais é um princípio

apodíctico, determinante na narrativa de Dt 24,17 e em outras partes do livro33.

Diante dessa apresentação de caráter irrefutável, a M. BM 9,13 não faz outra

coisa que não seja contextualizar, com gestos do dia a dia, tais máximas34. BM

não somente faz inúmeras exemplificações situando a aplicação das leis, como

amplia a defesa em relação à viúva. A amplitude é por demais realçada na

especificação feita em torno do sujeito אלמנה “viúva”. A בין , אלמנה בין שהיא ענייה

viúva, seja pobre ou rica” recebe a defesa da lei. BM defende seus“ שהיא עשירה

bens como algo inalienável.

Dt 24, 17 BM 9,13

aSe alguém faz empréstimo a seu

31 Salutar a perspectiva apontada pela Guemara ao comentar Gittin, 5,8: “nós apoiamos os pobres pagãos, juntamente com os pobres de Israel. Visitar os doentes do pagão, juntamente com os doentes de Israel, e enterrar os pobres do pagão, juntamente com os mortos de Israel, seguindo o interesse pela paz”. Disponível em: <http://www.come-and-hear.com/gittin/gittin_61.html>. Acesso em 11 de Abr. 2009. 32 Conferir nota sobre a atuação de R. Iossef no § 3.5.2. 33 Cf. Dt 17,1.11.15; 18,1.9; 19,14; 22,1.4; 23,17; 26,4. 34 Conferir a análise de BM 9,13 no § 3.6.1.

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Não farás violar o direito do estrangeiro

[do] órfão

e não tomará como penhor a roupa da

viúva.

próximo, bnão tomará dele nenhum penhor sem o cconsentimento do tribunal, nem entrará dem sua casa para pegar a prenda, uma

vez fque está escrito: permanecerá

fora35. (Dt g24,11). Se (o devedor) tiver

dois hutensílios, (o credor) poderá pegar

um, iporém deixará o outro. Deve

devolver o jcolchão a noite e o arado ao

dia. Se morre k(o devedor), (o credor)

não tem que ldevolvê-lo aos herdeiros.

Rabán Simeão mben Gamaliel ensina:

inclusive mesmo nao devedor não tem

que devolvê-lo antes ode trinta dias. A

partir de trinta dias ppoderá vendê-lo

com consentimento do rtribunal. De

uma viúva, seja pobre sou rica, não se há de pegar nada em tpenhor,porque está escrito: não tomarás uem penhor as roupas da viúva36 (Dt v24,17). Se alguém toma como penhor

um wmoinho, quebrando um preceito xnegativo, se torna culpado por razão de ypegar dois objetos, uma vez que está zescrito: não se tomará em penhor a

pedra a1inferior ou superior do

moinho.(Dt 24,6) b1Não disseram só a pedra inferior e c1superior do moinho, se não todo

objeto d1com o qual se prepara a

comida, e1uma vez que está escrito:

35 Cf. Dt 24,11. 36 Cf. Dt 24,17

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f1porque seria pegar em prenda uma

vida. g1(Dt 24,6).

Há sintonia em defender a causa da viúva, considerando essa máxima

bíblica, entre os rabinos37. Pois uma viúva não pode correr o risco de ficar em

descrédito diante de seus vizinhos. Em tempos em que ela ocupa a administração

da casa, a viúva era obrigada a comparecer diante do tribunal e expor os meios

disponíveis para manter seus filhos e filhas (BB 9,6).

5.3. A violação do direito dos pobres

Se a finalidade dos ensinamentos da Torá é colocar a humanidade sob a

aceitação do reino dos céus38, a narrativa de Ab 5,9 se apóia no texto de Dt 14,28-

29 para acusar o desvio, no ano quarto e no final da festa dos Tabernáculos, do

direito dos pobres de recolher os produtos no campo. Por duas vezes a narrativa se

apóia em Dt 14,28-29. Num primeiro momento denuncia o não cumprimento do

preceito pelo dízimo dos pobres (v. 28), e num segundo momento, o fato de não

disponibilizar os produtos do campo, ao final da festa dos Tabernáculos (vv. 28-

29). “Tabernáculos” acontecia no final do ano agrícola. A Mishná denuncia que,

já nos tempos tanaíticos, a violação do direito dos pobres não foi considerada.

Dt 14,28-29 Ab 5,9

Ao final de três anos,

tu farás tirar a décima parte de toda a

tua colheita deste ano

e farás disponibilizar nos teus portões.

Virá o levita,

Porque

ele não tem parte da herança contigo,

aEm quatro momentos a peste aumenta: bno ano quarto, no ano sétimo, cao final do ano sétimo e ao final da

festa ddos tabernáculos, todos os anos. fNo ano quarto ga causa do dízimo39 dos pobres hdo ano terceiro;

37 Cf. FREEDMAN, H., Introduction to Baba Mezi‘a. In: EPSTEIN, I (Ed.), Soncino Babylonian Talmud. Disponível em: <http://www.come-and-hear.com/babamezia/babamezia_103.html#chapter_ix>. Acesso em: 13 de abr. 2009. 38 Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 417. 39 Cf. Dt 14,28

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o estrangeiro, o órfão e a viúva,

que vivem nas tuas vizinhanças

e comerão

e se satisfarão.

Deste modo,

te abençoará YHWH, teu Deus

em todas as obras que tuas mãos

realizarão.

ino ano sétimo, a causa do dízimo dos jpobres do ano sexto; kao final do sétimo ano, la causa dos produtos do ano sétimo; mao final da festa anual dos

tabernáculos, na causa do roubo dos dons40 odos pobres.

5.4. Conclusão

Estabelecer uma unidade e, ao mesmo tempo, uma interação com toda a

Torá pode ser uma equação após comparar esses dois universos literários.

Evidentemente, sobre a Torá recai toda a primazia, mas nota-se a liberdade com

que os sábios atualizam a Torá, na certeza de que nela está a vontade e as bases do

reino divino. Os sábios se esforçaram para atualizar os textos bíblicos, pelos quais

eles declaram total submissão, num gesto de profundo amor. Esse esforço impõe

um caráter profundamente místico e realmente martiriológico.

A Mishná realça a forma e a força das ordens divinas. O não cumprimento

de uma norma é sinônimo de ferir o tecido social comunitário, além de desvirtuar-

se dos projetos divinos. Adonai se identifica com Israel. Eis um ponto crucial na

reflexão empreendida pela tradição judaica, que oferece sentido à comunidade

religiosa. O chamado a ser “nação santa” não é passado, mas existencial, real e

atualizado.

Os sábios debruçaram-se sobre a Torá. O valor dado ao estudo, à

atualização e ao comprometimento com os preceitos divinos, presentes nos textos

do Deuteronômio não encontram outro sentido a não ser o de sempre perpetuar o

encontro com YHWH, isto é, confirmado com atualizações impostas às

comunidades, como é possível perceber na análise dos versículos Ab 5,9, Ned

11,3, Git 5,8. É imposta uma total radicalidade às comunidades para que seu agir

reflita a vontade do Criador. Eis a única maneira de atualizar e viver a aliança

contraída entre YHWH e seu povo eleito. 40 Cf. Dt 14,28-29.

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6 Conclusão final

A análise deste trabalho insere-se em dois universos literários:

Deuteronômio e Mishná. A leitura foi feita considerando os grupos sociais

estrangeiro, órfão e viúva, identificados como trilogia social. Essa trilogia é

encontrada seis vezes no livro do Dt (10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21;

26,12-15; 27,11-26). Verifica-se que, em torno desses grupos, há um determinado

corpo jurídico, normas legais, que implicam determinadas práticas religiosas e

sociais, voltadas para garantir a subsistência daqueles grupos. Há uma espécie de

redoma jurídica capaz de garantir o sucesso e evitar o infortúnio desses grupos no

interior da sociedade. Defendê-los é a expressão da fé e do amor divino. A

insistência na defesa desses grupos sociais foi a motivação primeira desta

pesquisa.

Os contextos sociais e históricos em torno do Dt e da Mishná são distintos.

Embora não se ignorem as diferentes sociedades, que forjavam o surgimento

desses conjuntos literários, é útil apresentar algumas interrogações: qual o

ambiente social que possibilitou o surgimento dos grupos sociais םתו י, ר ג , נ נ מ ל א ?

Há diferenças conceituais entre a trilogia social formada por essas três categorias

no Dt, e a compreensão do conceito de י נ ע “pobre, indigente”, “necessitado”1

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1e ןיו ב א “pobre, necessitado”2, defendido pela corrente profética do século VIII/VII?

Outro cenário elucidativo acena para à Mishná. Quais eram os grupos sociais que os

autores da Mishná procuraram defender, apoiando suas normas nos textos do Dt? As

camadas pobres, do século II, sob a dominação romana, estão em sintonia com os

grupos sociais desfavorecidos do Dt? Em que medida os hábitos religiosos, como o

pagamento do dízimo, o cumprimento do ano jubilar, perdão das dívidas são realces

na Mishná? Pela ordem, procura-se esclarecer, primeiro, as questões em torno do Dt.

As consequências sociais sentidas num estado beligerante, junto aos

camponeses, após a guerra de 722 a.C. e, mais tarde, com as incursões no território

de Judá, chefiadas por Senaquerib (705-681 a.C.), fornecem relevantes informes na

compreensão do surgimento de leis e práticas dos grupos sociais desfavorecidos. De

Salmanasar III (858-824 a.C.), passando por Teglat-Falasar III (745-727 a.C.), até o

episódio final de 722 a.C., quando ocorre a destruição do reino de Israel, na guerra

imposta por Salmanasar V (726-722 a.C.), as incursões do reino assírio serão

constantes em direção aos estados situados na região sul, sobretudo em direção ao

Egito3. Até meados do ano 663 a.C., quando crises internas e a perda da guerra

contra o Egito, provocam o declínio do império Assírio.

Os grupos נ נ מ ל א, םתו י, ר ג diferem-se dos grupos sociais defendidos pelo

movimento profético dos séculos VIII e VII. O período áureo da profecia,

inaugurado por Amós, Oséias, Miquéias, Isaías4, depara-se com uma sociedade

agrária surpreendida pelo movimento econômico e militar empreendido pelo governo

de Jeroboão II (783-743 a.C.). O aumento das fronteiras do reino de Israel, em

direção ao norte e ao sul (cf. II Rs 14, 25-27), leva às consequências inevitáveis de

um rápido processo de pauperismo imposto aos homens livres, proprietários de terras

e com heranças garantidas, pois o projeto jeroboânico visava o aprimoramento do

aumento de impostos e o controle das rotas comerciais.

1 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 509. 2 Cf. Ibidem. p. 22. 3 Não faltaram tentativas de opor-se ao regime imposto pelos reis assírios. As tentativas de insurreição foram em sua maioria frustrantes. A política mercantil escravagista impôs-se de modo avassalador. Cf. GARMUS, L., op. cit., p. 13. 4 Sicre realça o exercício da escritura inaugurado pelos profetas do século VIII. Há uma diferença da época “reformista” representada nas atividades de Débora, Samuel, Elias e Eliseu. Tal corrente, apesar das denúncias contra os desvios do povo, não propõe o abandono das estruturas. Após Amós e Oséias, a problemática social é elemento central na crítica dos pecados praticados contra YHWH. Cf. LUIS SICRE, J., Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem, Petrópolis, Vozes, 1996, pp. 242-243.

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As instruções catequéticas exaltando a experiência de Israel com a divindade

YHWH (cf. Dt 6,21-23; 26,5b-10), consideram, e, em muito, a saída do Egito,

identificado como terra da escravidão, e a experiência tribal. Tais períodos fornecem

elementos essenciais na elaboração da teologia da terra5. São fatos que marcaram a

origem de Israel e serão utilizados pelos profetas, na apresentação de suas críticas

contra as violações e desvios do direito e da justiça impostos aos אנשים “homens” que

veem suas situações se agravarem com a destruição do reino do norte, em 722 (cf. Is

11,1-9; Os 12,10. 13,4; Mq 6,3-4).

As descrições de Amós acenam para um cruel sistema de violação dos

direitos dos grupos socialmente desfavorecidos impostos pelos altos proprietários de

terras e atrelados à corte (cf. Am 3,9; 4,1; 5,12; 8,4.6). O panorama nacional, em

meados do ano 760 a.C., demonstra enorme atividade comercial que assegura uma

complexa estrutura econômica, nos mais diversos setores da sociedade palestinense.

Causa maior desse período de expansão acontece entre os anos de 806 a.C., época em

que Assíria surge como grande império, até o ano de 747 a.C., quando sobe ao trono

o grande Teglat-Falasar III (747-727 a.C.)6. Nesse período o reino de Israel não sofre

nenhum infortúnio. A única preocupação da realeza, seja em Judá, seja em Israel, é a

de olhar para seus próprios interesses internos. Está na crítica profética a única

corrente de oposição ao modelo político empreendido por Jeroboão II7.

As profecias defendem o ישא ה “ο homem, ο indivíduo, ο pai, ο nobre, ο

valente”, em seu sentido mais genérico8. Este homem, visto como cidadão e

merecedor de direitos, está se tornando um י נ ע “pobre, indigente” um ןיו ב א “pobre,

necessitado”. As elites citadinas, os proprietários dos latifúndios e os grandes

comerciantes conseguem acumular, cada vez mais, riquezas por um sistema de

extorsão das famílias camponesas, por meio de saques, empreendidos pela guerra e

5 TCHAPÉ, J. B., “A tomada de posse da terra de Cannaã por Israel no livro do Deuteronômio”. In: CONCILIUM, n. 320, 2007/2, p. 54. “A terra não se apresenta apenas como um lugar de bênção, de vida e de prosperidade, É o lugar onde Israel deve fazer a vontade de Deus, o lugar onde o povo é chamado a pôr em prática as leis e os costumes que Moisés recebeu de Deus (Dt 4,5; 5,31; 6,1; 12,1). 6 O surgimento dos impérios não é novidade na história antiga. No cenário bíblico, Israel deparou-se pela primeira vez com um poder imperial a partir dos resultados da política imposta por Teglat-Falasar III. As guerras são analisadas como uma conquista executada em vários estágios. Cf. GARMUS, L., O imperialismo: estrutura e dominação. In: RIBLA, n. 3, pp. 7-20. 7 ALBERTZ, R., op. cit., p. 299: “Nestas circunstâncias, os trabalhadores do campo sucumbiram sob a opressão financeira da classe privilegiada, e se viram inevitavelmente submetidos a uma dependência total dos detentores do poder econômico, logicamente o empobrecimento de um amplo setor da população. Os profetas designam a esse grupo com os nomes típicos de “os desvalidos” (dal), “os pobres” (ʼebyôn), ou “os indigentes” (ʿanaw/ʿaní)”. 8 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 49-50.

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pelo trabalho forçado, na cidade – na utilização de mão de obra nas grandes

construções públicas - e no campo. Nessa realidade, é possível compreender as

denúncias proféticas (cf. Mq 2,1-5; Is 5,8). Na opinião de Schwantes os homens

livres estão impossibilitados de garantir às futuras gerações o controle de suas terras.

Eis o motivo primário dos oponentes da realeza, representados pelos profetas:

“Podemos, pois, dizer que, no século VIII, em Judá e em Israel, o campesinato é um fator político, capaz de articular sua insatisfação diante de regimes opressivos, como o de Jeroboão II, e de decidir sucessões”. As correntes proféticas do século VIII, a de Amós em especial, não só tem esse contexto como pano de fundo, mas ela mesma é uma das vozes da gente do campo. A base social e organizada dessa profecia é o campesinato”9.

O aparecimento dos grupos sociais: הנ מ ל א, םתוי , רג não se relaciona aos

anúncios condenatórios proferidos pela corrente profética do século VIII. Essa, pela

essência de seu conteúdo, se volta para a defesa do cidadão, do varão em estado de

empobrecimento ou em vias de perder a terra, a herança em decorrência de um

sistema.

O aumento do número de refugiados rumo à região Sul do país, Judá, é

considerável, após 722 a.C10. Juntamente com esse aglomerado de pessoas, migram,

também, as fortes tradições religiosas. No interior desse fluxo migratório rumo ao

estado de Judá, estariam os autores da “escola deuteronomista”, como explica

Römer:

“Os escribas também mantinham os anais, estavam envolvidos na correspondência diplomática e compilavam leis. Sabemos que também mantinham registros de acontecimentos memoráveis, por exemplo, de atividades proféticas em palácios ou textos. Mas sua capacidade de escrever conferia-lhes também certa independência do rei que, nem sempre, sabia escrever, e, como podemos deduzir de textos egípcios, podem ter considerado a si mesmo intelectualmente superiores. É claro que os escribas podiam também escrever por própria iniciativa e tentar, através de seus escritos, influenciar a política da corte”11.

9 SCHWANTES, M., A terra não pode suportar suas palavras: reflexões e estudo sobre Amós”, Paulinas, São Paulo, 2004, pp. 98-99. Oportuna a exposição gráfica apresentada por Reimer, ao analisar as palavras do profeta relacionadas com as dimensões: social/jurídico, religioso, administrativo. Cf. REIMER, H., “Amós: profeta de juízo e justiça”. In: RIBLA, n. 35/36, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 181. 10 RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, história e literária, Petrópolis, Vozes, 2008, p.73: “O fim do reino do Norte causou importantes mudanças demográficas e sociais em Judá. Investigações arqueológicas sugerem nitidamente um aumento da população e uma ampliação da cidade de Jerusalém na segunda metade do século VII, provavelmente após 722”. 11 RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, história e literária, p. 53. Lamadrid também ensaia ler os acontecimentos do Antigo Israel, à luz da escola deuteromista. GONZÁLEZ LAMADRID, A., As tradições históricas de Israel: introdução à história do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999. pp. 19-24. Os deuteronomistas não se furtam em tecer ao longo dos importantes fatos históricos suas considerações. Assim se forma o livro do Dt: resultado de um processo redacional sobre os fatos marcantes da vida religiosa de Israel e Judá. De modo tradicional

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O entrave político envolvendo o rei Ezequias (727-698 a.C.) e sua fracassada

coalizão de reinos contra a Assíria, desta vez chefiada por Senaquerib (705-681

a.C.), leva a uma situação social alarmante12. Dominada a rebelião, em 701 a.C., Judá

se vê na situação de pagar pesados tributos ao reino assírio (cf. 2Rs 18,14-16), além

de lastimar a destruição de 46 cidades somadas às fortalezas de Laquis e Lebna.

Ezequias permanece no trono mas vê seu reino diminuído, transformado em Cidade-

Estado, e obrigado a submeter-se à categoria de vassalagem13.

Em meados do ano 605 a.C., sobe ao trono babilônico o príncipe herdeiro

Nabucodonosor. O novo império cresce em direção ao oeste. Após se recuperar de

uma derrota contra os egípcios, marchou pessoalmente contra as muralhas da cidade

de Jerusalém14. No intuito de fortalecer, cada vez mais, o império, sob sua liderança

organizou incursões militares, todas elas bem sucedidas. Em 597 a.C. tomou a cidade

de Jerusalém, contando com um exército formado por caldeus, arameus, moabitas e

amonitas (cf. 2Rs 24,2). Judá terá seu rei Joaquim deportado para Babel, juntamente

com a nobreza de Judá (cf. 2Rs 24,17). A saída dos caldeus deixa para trás um rastro

de destruição e ruína, cuja representação maior espelha-se numa comunidade

aceita-se os capítulos 12-16, sob o reinado de Josias (640-609 a.C.). O Deuteronômio josiânico não passaria de um conjunto de leis. A esse conjunto de leis agrupam-se relatos relacionados ao decálogo (Dt 5) e à chegada na terra (Dt 1-3), mais o relato da experiência do Sinai (Dt 9-10). Após o reinado de Josias o Dt é compreendido como leis numa história, que comentam o Decálogo. No exílio babilônico é acrescentado Dt 16-18, dando enfoque às instituições e constituindo um código de leis. Os capítulos 19-25 são pós-exílicos. A eles são agrupados os capítulos 6,11 – adesão aos mandamentos – e o discurso sobre o valor da lei: Dt 4. Época em que o Dt passa a ser compreendido como o livro das leis de Moisés. Após o ano de 540, sob o domínio dos persas, o livro passa por um processo editorial, formando o texto hoje conhecido. Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio, op. cit., pp. 32-35. Ainda considerando os importantes fatos, Kaefer acena outra possível formação do Dt. Cf. ADEMAR KAEFER, J., Un pueblo libre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la composición del Pentateuco, op. cit., pp. 238-242. Um exemplo entre acontecimento e relato é oferecido por Römer. Cf. RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, histórica e literária, op. cit., p158-159. 12 Cf. NAKANOSE, S., Uma história para contar:a Páscoa d Josias: metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30, São Paulo, Paulinas, 2000, p. 155; ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel em tempos del Antigo Testamento, Simancas, Valladolid, 1999, p. 307. Os argumentos sobre este período são semelhantes entre os autores. 13 A época ecoa nas profecias de Is 1,7-9; Ez 16,27. 14 Considerando as narrativas históricas e proféticas, Ludovico informa, passo a passo, as diversas fases da presença dos caldeus nas terras de Judá, bem como os movimentos insurgentes contra a política avassaladora empreendida no reino de Judá. Cf. GARMUS, L., “A comunidade de Israel em Crise: o exílio da Babilônica”. In: EsBi, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 23-37. A partir da presença babilônica que ocupa um cenário de mais de quarenta anos, a história das comunidades religiosas de Judá ocupam diferentes cenários geográficos, segundo a análise de Gunneweg. Existe um grupo que fica em Judá, outro parte é assentado em diferentes regiões na Babilônia, restando ainda aqueles que já residiam na diáspora, a partir do evento de 722 a.C., ocorrido na Samaria. Os relatos históricos e teológicos correm independentes um do outro. Cf. GUNNEWEG, A. H.J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias. São Paulo, Teológica & Loyola, 2005, pp. 205-217.

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religiosa exilada e sem Templo, além de fracassadas sublevações15 que colaboraram

para o total aniquilamento do estado de Judá16. A província de Judá, não somente

vivenciou sua destruição total, como amargou, por quatro décadas, humilhação e

desintegração social em terras Babilônicas. Neste cenário, ocorre um esforço literário

impregnado pela corrente deuteronomista, resultado de um amplo trabalho de

revisão de sábios e profetas, como afirma Crüsemann:

“É a teologia do Deuteronômio e do amplo movimento deuteronômico/ deuteronomista que proporciona ao Êxodo sua posição central na Bíblia. A maneira como ele é interpretado, para o presente, do tempo dos reis tardios e, portanto, renarrado, foi, com razão, definida como “centro da teologia bíblica”17.

Pela tradição judaica, tendo à frente o partido dos fariseus, percebe-se o

mesmo movimento de releitura. Os autores da Mishná transformaram as máximas

bíblicas em argumentos irrefutáveis na defesa dos pobres de sua época. As diferenças

acenam para momentos significativos da vida familiar e social das comunidades

religiosas dispersas nas mais diferentes realidades. A motivação maior em reunir as

inúmeras tradições pode ter ocorrido a partir do momento em que a “ameaça mortal”,

representada no exílio babilônico, impôs aos judaítas a possibilidade total do seu

desaparecimento18.

Com base nas análises presentes no capítulo V, é possível analisar três

diferentes situações sociais, intimamente ligadas à vida social e destacadas na

Mishná dando prova de total fidelidade à Torá. Os sábios fariseus redigem as

normas, em defesa dos grupos desfavorecidos, do século II d.C, sob o regime

imperialista romano. Antes, porém, julga-se salutar indicar três aspectos que

15 O estado de completa destruição e falta total de qualquer autonomia administrativa, considera as três ocupações babilônicas no território de Judá: 597, 587 e 582. A deportação definitiva, visando pôr fim a qualquer resistência, ocorre no ano de 587. 16 Cf. ALBERTZ, R., Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento, Madrid, Simancas Ediciones, v. II, 1999, p. 461. 17 CRÜSEMANN, F., Cânon e História Social: ensaios sobre o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2009, p. 309. Na mesma perspectiva segue Römer: “A novidade da história deuteronomista consiste em revisar os textos mais antigos, e organizá-los em uma composição coerente que relata a história de Israel, das origens ao Exílio. Para Römer o trabalho desses “Deuteronomistas” da época do exílio prepara, assim, o caminho em direção à “religião do livro”. RÖMER, T., Naissance da la Bible. In: LMB, n. 137, 2001, p. 19. 18JOHNSON P., História dos Judeus, São Paulo, Imago, 1995, p. 93: “Foi no exílio que as normas da fé começaram a parecer de importância máxima: normas de pureza, de asseio, de dieta. Tais leis eram agora estudadas, lidas em voz alta, decoradas. É provável que desse tempo date a injunção do Deuteronômio 6,6-8. No exílio, os judeus, privados de um estado, tornaram-se uma nomocracia – e se submetiam voluntariamente a uma lei que só poderia ser posta em vigor por consenso. Nada dessa espécie tinha jamais ocorrido na história”.

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marcam qualquer leitura em torno dos textos da Mishná e que garantem a

manutenção da experiência religiosa do Antigo Israel às futuras gerações. São eles:

1) O caráter de irrevogabilidade da Torá: Analisadas as inúmeras ocasiões

bélicas que assolaram a província da Judéia, impostas por uma série de

grandes impérios, com base nos relatos bíblicos, edificou-se “uma cerca

em torno da Torá”19 o que preservou a identidade nacional de Israel. O

conceito de ב ד ההו ר י “Palavra de YHWH” (cf. Is 39,8; Jr 13,3; Ez 27,1);

foi elemento primordial para salvaguardar a identidade de Israel. A

“Palavra de YHWH” é um pleno testemunho da intervenção divina na

história. Os ensinamentos em torno do conceito da Torá, antes de ser um

cânon reunindo uma série de livros é, antes de tudo, o ato de ensinar20 a

Torá Oral. Este senso de irrevogabilidade pode ser visto na série dos doze

textos da Mishná abordados na pesquisa. À mulher não há meios de

negar-lhe o direito de respiga, ainda que ela se encontre na situação de

divorciada. Ela tem o direito de efetuar a respiga e encontrar meios para

garantir sua sobrevivência (cf. Ned 11,3). Os empenhos humanos devem

estar direcionados para edificação da paz, com base nas normas da Torá21.

A Mishná oferece os meios para implementá-los na vida da comunidade

(cf. BM 9,13p-u). Esta apego central à Torá estabelecerá o eixo em torno

do qual Israel se constituirá e encontrará sua identidade como nação22.

2) O desejo de servir a YHWH é viver em sua sintonia: No uso do

tetragrama o nome de Deus é identificado como uma real divindade,

imanente, mas ao mesmo tempo transcendente, diferentes das divindades

19 M. Ab 1,1: “Moisés recebeu a Torá no Monte Sinai e a transmitiu a Josué. Josué a transmitiu aos anciãos e estes a transmitiram aos profetas. Os profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembléia. Estes disseram três coisas: “Sede cautelosos no exercício da justiça; fazei muitos discípulos; fazei uma cerca em torno da Torá”. Simão, o justo, estava entre os homens da Grande Assembléia. Dizia ele: “O mundo repousa sobre três coisas: sobre a Torá, sobre o Culto e sobre os atos de caridade”. 20 Cf. <http://www.ista.edu.br/semanateologica/extras/carta_romanos.pdf>. Acessado em 10 de jun. de 2009. 21 A aproximação tornou-se intensa a partir da destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C. A aproximação de relevantes mestres na Grande Assembléia teve, como eixo, prestar um serviço de proteção à Torá Escrita e Oral. Estava em jogo a perda das tradições. Aos sábios não faltaram outra opção a não ser de reorganizar e recontar a Torá. O resultado dessa reviravolta leva o nome de Mishná (optar pelo estudo e ensinar por repetição). Cf. LENHARD, P. e COLLIN, M., La Torah orale des pharisiens: textes de la Tradicion d`Israël, Paris, Cerf, 1990, pp. 8-11. 22 Crüsemann apresenta o conceito de “Pátria Portátil”. “Os judeus salvaram-se do grande incêndio do Segundo Templo e, por assim dizer, arrastaram-no consigo ao exílio como uma pátria portátil, atravessando toda a Idade Média”. Crüsemann, F., Cânon e História Social: ensaios sobre o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2009, p. 345.

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do Antigo Oriente. A fé, nessa divindade, pode ser plenamente sentida na

declaração de fé, forjada no Israel pós-exílico: דח ה א הו י “Deus Um” (Dt

6,4). Não resta dúvida de que, em torno da Torá, proveniente de YHWH,

Israel vivenciou, nos mais diferentes estágios de sua história, o que os

sábios chamam de “a Shekhina” ou seja a “existência de Deus no seio da

história”23. Esse YHWH, que é Um, torna-se o Deus dos pequenos.

Estudar a relação entre Deus e os pobres, ou pequenos é, antes de tudo,

optar por um tipo de aproximação: considerar a identidade dos pobres em

relação a YHWH, perceber o modo como o Deus de Israel se abaixa e

lhes dirige seu olhar preferencial (cf. Sl 113,6). Os Salmos testemunham

o privilégio do ינ ע ou ונ ע direcionado a esse Deus24.

3) Total submissão à administração romana: Todo o processo da redação da

Mishná coincide com a presença dominadora dos romanos na Judéia.

Roma impõe um regime hierárquico-patriarcal a todos os setores da vida

pública e familiar. Na base de um sistema econômico mercantil

escravagista, o sistema de arrecadação de vários impostos fazia crescer,

mais e mais, o endividamento e o número de escravos e escravas. O poder

político era atrelado ao religioso. A tática de aliar-se com os poderes

religiosos, nas províncias, era um dos meios para manter os privilégios

romanos em todo o vasto império25. Nesse cenário de completa

dominação, estão todos os versículos da Mishná analisados no capítulo 23 Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, pp. 43-72. 24 Cf. COULANGE, P., Dieu, ami dês pauvres:Etude sur la connivence entre le Très-Haut et les petits, Fribourg, Academic Press, 2007, pp. 12-16. 25 TÁCITO, Agrícola, 30,3-31,2. “...mais perigosos do que todos [os outros dominadores] são os romanos, de cuja arrogância em vão pensamos poder escapar através de submissão e comportamento leal. Esses ladrões do mundo, depois de não mais existir nenhum país para ser devastado por eles, revolvem até o próprio mar; quando o inimigo é rico, eles são ávidos; quando é pobre, ambicionam a sua honra; nem o oriente nem o ocidente satisfizeram a sua gula; são os únicos entre todos que, com a mesma cobiça, querem apoderar-se da riqueza e da pobreza. Saquear, assassinar, roubar – a isso eles chamam de dominação; e ali onde criaram um deserto – a isso eles chamam de paz. Crianças e familiares são para todos, conforme a vontade da natureza, o que temos mais precioso; através de recrutamento, eles são tirados de nós, para que, em algum outro lugar, façam trabalho escravo; mulheres e irmãs, mesmo quando escapam dos desejos dos inimigos, são violentadas por aqueles que se chamam amigos e hóspedes [=romanos]. Bens e propriedades transformaram-se em impostos; a colheita anual dos campos torna-se tributo em forma de cereal (frumentum); sob espancamentos e insultos, nossos corpos e mãos, são massacrados na construção de estradas através de florestas e de pântanos...”. Tradução de Ivoni Richter. Cf. REIMER, H. e REIMER, I. R., Tempos de Graça: o jubileu e as tradições jubilares na Bíblia, São Paulo, Sinodal/Paulus/Cebi, 1999, pp. 120-121. Giordani oferece inúmeros editos apresentando várias maneiras punitivas e sansões físicas impostas pelos imperadores. Cf. GIORDANI, M. C., História de Roma: antiguidade clássica II, Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 336-346.

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precedente e aqui retomados, no desejo de compreendê-los em seu

contexto vital.

No âmbito literário, a Mishná, numa época drástica no cenário internacional,

mantém seu posicionamento absoluto de agradar a YHWH e cumprir os preceitos da

Torá. Segue-se a análise de diferentes práticas religiosas vivenciadas pelas

comunidades, num cenário totalmente adverso. Nota-se, aí, a importância das leis da

Torá e a comprovação de que o judaísmo mishnaico soube, não somente receber, mas

também contextualizar as normas do Dt em fatos do dia-a-dia da vida social. Sobre

isso, podem-se citar três aspectos disso:

a) O dever de disponibilizar os dízimos: YHWH exerce sua soberania,

original e sustentadora de todas as outras realidades. Ao reconhecer a soberania de

YHWH, e sabedores das inúmeras vicissitudes históricas ocorridas no passado, os

sábios buscam meios para implementar o desejo da suprema divindade. Quando

comparado à narrativa de Dt 26,13, cinco tratados da Mishná (Dem 1,2; Shebi 7,1;

Msh 5,10; Meg 2,5 e Sot 9,10), apresentados no capítulo V, de modo descritivo,

mostram diferentes realidades sociais. É nítido o desejo de jamais violar um preceito

estabelecido pela Torá – entenda-se nesta parte do trabalho, o Dt. Os tratados deixam

claro que a prática de recolher o dízimo e destiná-lo ao templo, ou aos grupos

socialmente pobres, não caiu em desuso no período mishnaico. Sobre o dízimo

duvidoso não se aplica nenhuma lei. E não podia ser diferente. Afinal, não é sagrado

e, por isso, não pesa sobre ele nenhuma norma. A comparação revela o alto senso de

receptividade das leis expressas no Dt.

b) O direito dos pobres pela respiga: A realidade social da comunidade

judaíta, durante o domínio romano não foi diferente de épocas passadas. Embora a

vida das comunidades, no interior do império, fosse gradativamente se tornando mais

branda, podem-se perceber, de maneira evidente, os esforços em zelar pelo bem estar

da comunidade26. As normas da Mishná visam fazer valer a prática do direito no dia-

a-dia dos pobres (Pea 4,3; 6,4; 7,7; Ned 11,3; Git 5,8; BM 9,13). O judaísmo do

primeiro século não se impõe como religião. Caracteriza-se mais com ações ou

práticas devocionais e sociais para garantir a sobrevivência de seus membros. Nestes

26 No governo do imperador Antonio Pio (138-161) a vida das comunidades judaicas, gradativamente, começa a usufruir de melhores meios de sobrevivência. Tribunais são reorganizados, escolas abertas. Os grupos espalhados pelo vasto império gozam de toda efervescência arquitetônica do final do segundo século. Cf. de MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 51.

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tratados, nota-se que homens e mulheres são tratados com os mesmos direitos, vistos

como inalienáveis. Não se pode violar o preceito divino, muito menos o direito da

pessoa.

c) Denúncia contra a violação dos diretos dos pobres: Nota-se um

conceito inovador da tradição judaica na defesa do direito da pessoa do pobre,

expressa de modo literário. E não poderia ser de outra maneira. O tratado Ab 5,9,

apoiando-se na lei do dízimo trienal a ser disponibilizado aos pobres, denuncia os

atos negligentes daqueles que visam arruinar a vida dos pobres, negando-lhes o

direito de usufruir da décima parte dos produtos ou bens acumulados no período de

três anos. Os rabinos, de posse de toda essa tradição literária, optam pelo

enaltecimento da justiça. Criticam a violação dos direitos. Não se percebe, em

nenhum momento sequer, desejo de encobrir situações errôneas, em detrimento de

um possível poder local, ou na manutenção de privilégios de pessoas ou grupos. A

convivência fraterna, no interior da comunidade, deve expressar o ideal de viver e

instaurar a máxima harmonia social. O ideal de viver sob as bênçãos de YHWH é

medido na proporção em que o direito e a justiça são praticados e mantidos na vida

dos pobres. Quer para a Torá, quer para a Mishná, bem como para toda a tradição

judaica, não há outro modo de experimentar que “Deste modo te abençoará YHWH,

teu Deus, em todas as obras que tuas mãos realizarão” (Dt 14,29).

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Paris: Bayard, 2005.

FLAMMARION-INSTITUT DU MONDE ARABE. Syrie, mémoire et civilisation, Paris, 1993.

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Collection des Universités de France, 2 vol., 2000.

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OLYAN, S. M. Asherah and the Cult of Yahweh in Israel. Atlanta: Scholars Press, 1988.

SAFRAN, A., Israël dans le Temps et dans l`espace: thèmes fondamentaux da la spiritualité juive. Paris: Payot, 1980. 403 p.

STROUMSA, G. G. La fin du sacrifice: les mutations religieuses de l`Antiquité tardive. Paris: Odile Jacob, 2005.

VV.AA. Flávio Josefo: uma testemunha do tempo dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1986, 95 p.

11. Documentos da rede internet

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GUEMARA, <http://www.come-and-hear.com/nedarim/nedarim 83.html>. Acessado em: 10 de Abr. 2009.

FINKELSTEIN, I. e SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed: Archageology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York, The Free Press, 2001, disponíveis em <http://www.airtonjo.com/resenhas5a.htm>. Acesso em 10 de jun. 2009.

Mishna Shiurim Pe`ah. Disponível em: <http://www.bmv.org.il/Shiurim/pe`ah/peah039.html>. Acesso em: 6 de abr. 2009.

“Para não dizer “Yavhe” : o sínodo adota esta disposição. Cf. <http://www.zenit.org/article-19440?l>. Acesso em 21 de fev. de 2009.

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