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A TRIVIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Tercio Sampaio Ferraz Junior 1. Limites metódicos e objetivos desta investigação Uma cozinheira sem grandes méritos é capaz, no entanto, de "fa- zer o trivial". Esta expressão bastante comum denota um sentido da pala- vra trivial, para o qual chamamos a atenção. Uma coisa se torna trivial quan- do perdemos a capacidade de diferenciá-la e avaliá-la, quando ela se torna tão comum que passamos a conviver com ela sem sequer nos aperceber- mos disto. O trivial é, pois, "algo que gera alta indiferença em face das diferenças" (cf. Luhmann, 1972, v.2:255). O tema dos direitos humanos constitui, sem dúvida, uma preocu- pação jurídica universal. Largamente discutido e explorado, sua menção entre os juristas tende a evocar conhecidas fórmulas, algumas até de gos- to retórico duvidoso, muitas suficientemente vazias para banalizar a sua importância. Esta banalização aponta não poucas vezes para um tratamento do tema com nobres mas nem sempre convincentes intenções moralizan- tes, recorrendo o jurista a expressões tornadas vazias, cuja força argumen- tativa remonta aos séculos XVIII e XIX. Outras vezes, esta banalização re- sulta das críticas positivistas, no amplo espectro significativo da expres- são, que, no entanto, também num uso candidamente moralizante, con- trapõe mistificação e vigor científico, objetividade e subjetivismo incon- trolável etc. Mas a banalização mais terrível é aquela que se dá ao nível da ação, aquela que, ao afirmar direitos humanos, conserva-os na sua in- tocabilidade e supremacia na exata medida em que os destitui na prática. Esta banalização prática, mais do que qualquer outra, trivializa os direitos fundamentais da pessoa humana. A trivialização dos direitos humanos é um tema de nossa época. Explicá-la exige a eleição de procedimento metódico pertinente. Propo- mos o tratamento da trivialização dos direitos humanos como um proble- ma. Entendemos por problema um conjunto de possibilidades estrutura- 99

A trivialização dos direitos humanos - Tércio Sampaio Ferraz Junior

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  • A TRIVIALIZAO DOS DIREITOS HUMANOS

    Tercio Sampaio Ferraz Junior

    1. Limites metdicos e objetivos desta investigao

    Uma cozinheira sem grandes mritos capaz, no entanto, de "fa-zer o trivial". Esta expresso bastante comum denota um sentido da pala-vra trivial, para o qual chamamos a ateno. Uma coisa se torna trivial quan-do perdemos a capacidade de diferenci-la e avali-la, quando ela se torna to comum que passamos a conviver com ela sem sequer nos aperceber-mos disto. O trivial , pois, "algo que gera alta indiferena em face das diferenas" (cf. Luhmann, 1972, v.2:255).

    O tema dos direitos humanos constitui, sem dvida, uma preocu-pao jurdica universal. Largamente discutido e explorado, sua meno entre os juristas tende a evocar conhecidas frmulas, algumas at de gos-to retrico duvidoso, muitas suficientemente vazias para banalizar a sua importncia. Esta banalizao aponta no poucas vezes para um tratamento do tema com nobres mas nem sempre convincentes intenes moralizan-tes, recorrendo o jurista a expresses tornadas vazias, cuja fora argumen-tativa remonta aos sculos XVIII e XIX. Outras vezes, esta banalizao re-sulta das crticas positivistas, no amplo espectro significativo da expres-so, que, no entanto, tambm num uso candidamente moralizante, con-trape mistificao e vigor cientfico, objetividade e subjetivismo incon-trolvel etc. Mas a banalizao mais terrvel aquela que se d ao nvel da ao, aquela que, ao afirmar direitos humanos, conserva-os na sua in-tocabilidade e supremacia na exata medida em que os destitui na prtica. Esta banalizao prtica, mais do que qualquer outra, trivializa os direitos fundamentais da pessoa humana.

    A trivializao dos direitos humanos um tema de nossa poca. Explic-la exige a eleio de procedimento metdico pertinente. Propo-mos o tratamento da trivializao dos direitos humanos como um proble-ma. Entendemos por problema um conjunto de possibilidades estrutura-

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    das em alternativas. Um problema, nestes termos, no mediatiza uma ver-dade, isto , a partir dele no possvel deduzir sua soluo, pois um pro-blema pressupe justamente a existncia de mais de uma soluo. Pensar um tema problematicamente , assim, partir de um problema para pro-blemas cada vez mais amplos e abstratos. Neste sentido, podemos dizer ento, no existe uma lgica dedutiva adequada para o raciocnio proble-mtico. Uma anlise problemtica deve, pois, abrir-se e preparar-se para contradies patentes, desenvolvendo regras de natureza pragmtica e tc-nicas de uso intersubjetivo (cf. Ferraz Jr.: 1973). Assim, no lugar da dedu-o lgica surge uma tcnica, a tcnica da recepo consciente de deci-ses j ocorridas num tempo, que servem, ento, de premissa para a an-lise comparativa de problemas e decises de problemas (Luhmann, 1971:260ss). Isto significa que a direo da explicao fica invertida: ao invs de partir do problema para buscar uma soluo, encara a soluo como a resoluo decisria de um problema, cuja problematizao (da de-ciso) processa a investigao na direo de problemas mais amplos e mais complexos.

    Esta postura metdica traz uma conseqncia relevante, que mere-ce o devido destaque. A problematizao da trivializao dos direitos hu-manos exige, de algum modo, uma certa neutralizao dos prprios direi-tos humanos como temtica de investigao. Esta neutralizao no quer dizer que nos coloquemos impassveis diante deles, eximindo-nos de qual-quer juzo de valor, mas sim que procuramos abortar qualquer valoriza-o a eles referida, referindo-a a uma estrutura contextual. A neutraliza-o exigida pelo tratamento problemtico significa, pois, no uma exigncia de fria objetividade, mas de consciente imparcialidade. No nos propo-mos, assim, nenhuma discusso de fundamentos essenciais, nem da tese da existncia inegvel, universal e geral dos direitos humanos, mas nos preocupamos com a sua positivao na sociedade contempornea enquan-to soluo decisria de um problema que desencadeia, no contexto, pro-blemas em seqncia, os quais, por sua vez, provocam outras decises e assim sucessivamente. Ao fazer isto, bom que se esclarea, nossa atitu-de metdica se insere tragicamente num contexto problemtico que ela procura revelar, como se perceber a seguir.

    2. Direitos Humanos como problema

    Os direitos humanos constituem um dado tpico da cultura moder-na. No que a questo no possa ser localizada em outras pocas. Simples-mente, eles constituem uma deciso estrutural que se d num contexto definido, limitando-se e circunscrevendo-se, assim, a sua universalidade como questo temtica. No se pretende, com isso, negar as tentativas jus-naturalistas de fund-los universalmente. Apenas queremos dizer que o

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    uso comum da expresso direitos humanos define certos problemas num contexto estrutural peculiar.

    Desejamos, para este propsito, adotar, embora com alteraes conscientes de sentido, uma classificao de Henrique Vaz (1963:13ss), distinguindo trs constelaes problemticas na chamada civilizao oci-dental. Admitindo, para os nossos objetivos, o conceito de homem como o centro delas, falamos em problema clssico, moderno e contemporneo.

    A constelao problemtica clssica se debate entre a ordem do mundo (cosmos) e a insero do homem nesta ordem. Com todo o res-peito pelas generalizaes apressadas e inconscientes, aceitamos, no en-tanto, a idia de que a cultura clssica capta este problema como uma ques-to de hierarquia de ordens. O homem se coloca diante do cosmos en-quanto totalidade perfeita e acabada, no importando em quantas partes ou subordens ele se divida. Pressuposto metafsico desta problemtica uma substancialidade que deve ser assegurada, a existncia de traos cons-tantes, de um cerne do ser, idntico a si mesmo. Idias como a de mudan-a irreversvel, desenvolvimento, evoluo, inovao no cabem ou tm importncia perifrica ali dentro. O importante a fixao de invariantes, fixao que exclui outras possibilidades e despreza eventuais variveis. O problema , aqui, como integrar e conceber o homem como parte de uma totalidade hierrquica que o envolve.

    Na viso aristotlica, por exemplo, existe entre as formas csmicas uma relao chamada de imitao, segundo a qual as formas inferiores exe-cutam atos que, num nvel mais modesto da hierarquia csmica, signifi-cam a realizao e ao mesmo tempo a negao do modelo proporcionado pelas formas superiores. Neste sentido dir-se- que o movimento circular do primeiro cu imita a imobilidade do primeiro motor, da mesma ma-neira que o ciclo das estaes imita o movimento das esferas celestes, sendo o prprio movimento uma imitao da imobilidade divina e a contingn-cia, uma imitao da necessidade. Ora, a identidade de todos os seres por meio de um mesmo fim, que permite a imitao em cadeia, revela-se co-mo uma diversidade de meios, isto , como a necessidade de mediao por parte do imitador e ausncia de mediao por parte do imitado. O problema aqui , ento, saber como a contingncia, isto , a possibilidade-de-no-ser, pode imitar a perfeio subsistente do primeiro motor. Em ou-tras palavras, como pode o homem, ser contingente, imitar a imobilidade plenamente suficiente (autrquica) de deus (sobre o assunto v. Ferraz Jr., 1969).

    Ora, nesta relao de imitao (de formas superiores pelas inferio-res) no h lugar para direitos humanos como problema. Num universo hierarquizado e, em certo sentido, esttico, e em termos de correlao entre partes e todo, a sociedade o resultado da integrao de partes comple-mentares ou ajustadamente concorrentes. O papel do homem no mundo apenas um enigma que deve ser decifrado (cf. Ferraz Jr., 1969:170ss).

    Seguindo, neste passo, as observaes de Hannah Arendt (1981:diversas passagens), deve-se lembrar a distino, na Antigidade, en-

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    tre polis e oikia. Dizia-se que enquanto a oikia (domus, a casa) aceitava o governo de um s, a polis era composta de muitos governantes. Por isso, para Aristteles, lembra Arendt, todo cidado pertencia a duas or-dens de existncia, pois a polis dava a cada indivduo, alm de sua vida privada, uma espcie de segunda vida, a sua bios-polticos. Era a distino entre a esfera privada e a esfera pblica. Esta distino sofreu durante os sculos seguintes modificaes importantes. A diferena entre ambas, na Antigidade, fazia com que a esfera privada se referisse ao reino da neces-sidade e a uma atividade cujo objetivo era atender s exigncias da condi-o animal do homem: alimentar-se, procriar, vestir-se, repousar etc. A necessidade, dizia-se, coagia o homem e o obrigava a exercer um tipo de atividade para sobreviver. Para usar a terminologia de Arendt e cujo pen-samento expomos e interpretamos numa forma livre, podemos denomi-nar esta atividade de labuta (labor, Arbeit, travaille). A labuta distinguia-se do trabalho (work, Herstellung, oeuvre). A labuta (a traduo brasileira da obra de Hannah Arendt usa labor) tinha a ver com o processo ininterrup-to de produo de bens de consumo, o alimento por exemplo, isto , aque-les bens que eram integrados no corpo aps sua produo e que, portan-to, no tinham uma permanncia no mundo. Eram bens que pereciam. A produo destes bens exigia instrumentos que se confundiam com o prprio corpo: as mos, os braos ou suas extenses, a faca, o cutelo, o arado. Neste sentido, o homem que labuta, o operrio, pode ser chamado de animal laborans.

    O lugar prprio da labuta era a casa (oikia, domus) e a disciplina que lhe correspondia era a economia (de oiko nomos). A casa era a se-de da famlia e as relaes familiares eram baseadas na diferena: relaes de superior e inferior, de comando e obedincia, donde a idia do pater familias, do pai, senhor de sua mulher, seus filhos e seus escravos. Isto constitua a esfera privada. A palavra privado tinha aqui o sentido de pri-vus, de ser privado de, daquele mbito em que o homem, submetido s necessidades da natureza, buscava a sua utilidade no sentido de meios de sobrevivncia. Neste espao no havia liberdade, da qual se estava priva-do, em termos de uma participao num autogoverno comum, pois to- dos, inclusive o senhor, estavam sob a coao da necessidade. Liberar-se desta condio era privilgio de alguns, os cidados ou cives.

    O cidado exercia sua atividade prpria num outro mbito, a polis ou civitas, que constitua a esfera pblica. A ele se encontrava entre os seus iguais, sendo livre a sua atividade. Esta merecia a denominao de ao (action, Handlung). A ao partilhava uma das caractersticas da labuta, sua fugacidade, futilidade e perecividade, posto que era concebi-da como um contnuo sem uma finalidade preconcebida e que se consu-mia no seu prprio realizar-se. Mas diferena da labuta, a ao significa-va a dignificao do homem. Igual entre iguais, o homem na polis exerci-tava sua atividade em conjunto com os outros homens, igualmente cida-dos. O seu terreno era o do encontro dos homens livres, os que se auto-governam. Da a idia de ao poltica, dominada pela palavra, pelo dis-

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    curso, pela busca dos critrios do bem governar. O homem que age o politicon zoon, o animal poltico.

    A ao caracterizava-se pela sua ilimitao. Como se tratava de ati-vidade dominada pela espontaneidade, como toda ao era concebida co-mo criao de um fluxo de relaes polticas, no havia como prever a ao. O agir enquanto um iniciar continuamente relaes, alm de ilimita-do, era pois imprevisvel, no podendo suas conseqncias ser determi-nadas logicamente de antemo. Isto explicava a inerente instabilidade dos negcios humanos, das coisas da poltica de modo geral, cuja nica esta-bilidade possvel era a que decorria da prpria ao, de uma espcie de virtude, como por exemplo o equilbrio e a moderao prprios da pru-dncia. Da a exigncia tambm de ars, de tchne. Entre a ao e a labuta havia, pois, trabalho. Ao contrrio delas, este no era ftil, mas dominado pela relao meio/fim. O trabalho era concebido como uma atividade que tinha incio, desenvolvimento e termo. O termo do trabalho era o objeto produzido. Para fabric-lo, o trabalhador ou arteso utilizava-se de instru-mentos, que no se confundiam com o seu corpo: o molde, o modelo, a concepo. E o produto obtido tambm dele se destacava, adquirindo, enquanto artificialidade humana, uma permanncia no mundo.

    Assim, para que a estabilidade dos negcios humanos (polticos) pu-desse ser alcanada faziam-se necessrias certas condies: as fronteiras territoriais para a polis, as leis para o comportamento, a cerca para a pro-priedade, que eram ento limites para a ao, muito embora a estabilida-de dessa no decorresse daqueles limites, apenas por eles se condiciona-va. Ou seja, a polis, enquanto teia de relaes, exigia no s a delimitao fsica, trabalho do arquiteto, mas tambm legislao, que era trabalho do legislador, considerado uma espcie de construtor da estrutura da cidade.

    Na Antigidade, pode-se dizer, a legislao enquanto trabalho do legislador no se confundia com o direito enquanto resultado (contnuo) da ao. Em outras palavras, havia uma diferena entre lex e jus na pro-poro da diferena entre trabalho e ao. Deste modo, o que condicio-nava o jus era a lex, mas o que conferia estabilidade ao jus era algo ima-nente ao: a virtude do justo, a justia.

    Pode-se perceber que falar neste contexto em direito dos homens no faz propriamente sentido. O contexto no suscita qualquer problema que d significado expresso. Num universo de integrao, as oposies so complementares e adaptativas. A distino e a complementaridade en-tre a esfera pblica e a privada no induzem a destacar a expresso direi-tos humanos numa forma universal. Nem para isso contribui a noo de liberdade como cerne da cidadania, vista antes como status libertatis em oposio complementar a status servitutis que era por aquela exigido. Nem o direito grego nem o romano chegaram a encarar o jus como uma uni-versalidade fundada no ser homem. No direito romano, por exemplo, sem-pre se entendeu o jus como algo delimitadamente prprio de um grupo social: o jus civile era o direito dos cidados, como o jus gentium era o direito prprio das situaes em que os litgios envolviam estrangeiros,

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    exigindo um pretor especial, o praetor pereguinus. A grande importncia que adquiriu o jus gentium, ao qual recorriam tambm os cives romani, nunca lhes excluiu o direito a eles reservado: o jus civile (cf. Weber, 1976:397).

    A distino entre a esfera pblica e a privada transforma-se no cor-rer da Idade Mdia. ainda Hannah Arendt quem observa a sutil diferen-a na traduo que Santo Toms faz da expresso aristotlica politicon zoon que passa a ser em latim animal sociale. A noo de social em lugar de poltico embaralha aos poucos a distino, ao mesmo tempo em que anuncia um novo contexto estrutural. Afinal, se poltica era apenas a esfe-ra pblica, a palavra social, mais amplamente, no deixava de caber tanto pblica quanto privada. O mbito domstico tambm era social. Com isto se principiaria uma projeo do privado sobre o pblico com impor-tantes conseqncias para a questo dos direitos humanos.

    Passamos, pois, a nos referir a uma segunda constelao problem-tica: a moderna. Na problemtica moderna o homem sai dos limites da polis e passa a cidado nacional ou a indivduo na nao. O cosmos deixa de ser uma ordem pr-dada, uma hierarquia esttica e imutvel de ordens e movimentos, aparecendo o homem como indivduo isolado que, dian-te da natureza e da sociedade, constitui um plo que a elas se ope. O mundo, destarte, torna-se um risco e um desafio. A cultura moderna cap-ta esta relao como um problema de ordenao do mundo pelo homem. Filosoficamente surge a problemtica do ego que se analisa e analisa o mun-do, o que econmica, social e politicamente se expressar em conflitos e lutas que traam o roteiro das primeiras revolues modernas. Nestes conflitos o homem se assume como indivduo em oposio sociedade. O mundo deixa de ser o seu lugar natural, para ser um ambiente hostil, donde o aparecimento do Estado como um guardio e, ao mesmo tempo, como uma ameaa.

    Na era moderna, a generalizao do social como noo comum esfera do governo e da famlia, permitir uma nova oposio que, pouco a pouco, caracterizar a distino entre a esfera pblica e a privada. Referimo-nos dicotomia social ou individual. O entendimento desta di-cotomia depende da compreenso da progressiva assimilao que sofre a noo antiga de ao pela noo de trabalho. Ou seja, a velha noo de ao ligada virtude passa a se identificar com a moderna noo de ao como atividade finalista, prxima do que a Antigidade chamava de tra-balho. Deste modo, a ao tornada um fazer, portanto entendida como um processo que parte de meios para atingir fins, assiste ao crescimento hegemnico do homo faber e sua civilizao. Ora, como o fazer traz em si uma nota de violncia e de fora (da madeira in natura se faz tbua e se faz mesa, o que pressupe a supresso da rvore), a esfera poltica pas-sa a ser vista como domnio, subordinao e no agir conjunto. O fazer antigo tambm era domnio, mas sobre coisas, no sobre homens. Trans-portada para a poltica, a fabricao concebe o agir poltico como consti-tuindo a esfera pblica mas num sentido novo. Como o trabalho do arte-

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    so solitrio (na Antigidade como na Idade Mdia, o mestre no era senhor do aprendiz, mas amo das tcnicas) e o lugar da sua socializao o mercado, transporta-se para a esfera pblica a noo de mercado. O agir poltico comea, ento, a ser visto como uma atividade produtora de bens de uso: a paz, a segurana, o equilbrio, o bem-estar, sendo o dom-nio das tcnicas polticas (entre as quais se admite a violncia-revoluo) o seu instrumento.

    A homogeneidade da esfera pblica s pode ser garantida, ento, como um conjunto a sociedade que se ope a outro conjunto de um s elemento o indivduo. Como, porm, a esfera privada tambm so-cial, a diferena entre ambas exigir um elemento caracterizador novo, capaz de conformar o que pblico e o que privado. Este elemento no-vo um artefato, um ente artificial, como qualquer produto de trabalho: o Estado. Neste sentido Hobbes nos ir falar do Leviat, como um corpo artificial que encarna o social e possibilita a convivncia dos indivduos. Juridicamente, o Estado, um verdadeiro organismo (burocrtico) de fun-es, um ente abstrato, produto do agir poltico entendido como fazer, guarda perante os indivduos uma relao de comando supremo: sobera-nia. O direito do poder soberano sobre o poder dos indivduos nas suas relaes marca a distino entre a esfera pblica e a privada: sociedade poltica/sociedade civil.

    Como se subentende que as relaes privadas sejam utilitrias num sentido prprio e as pblicas sejam abrangentes e gerais, visando ao bem de todos, dir-se- que o interesse pblico prepondera sobre o privado. Como, no entanto, a presena do Estado irradiante e, aos poucos, torna-se avassaladora, a esfera privada tem seu sentido alterado. Social, como a p-blica, que poltica, ela encarna a atividade econmica, mas de uma for-ma extrovertida: o terreno do mercado, das trocas, do comrcio; com isso, o privado ganha condies para se identificar com a produo da riqueza e esta com a propriedade. Esta identificao no ocorria na Anti-gidade, tanto que havia escravos ricos, os quais, no obstante, no goza-vam do privus, do lugar que lhes era prprio. A identificao do privado com a propriedade da riqueza e a falta de nitidez da distino entre a esfe-ra pblica e a privada far nascer a idia de proteo da sociedade econ-mica contra os excessos do Estado: os direitos individuais.

    neste contexto que os direitos humanos surgem como proble-ma. A ruptura das antigas hierarquias exige um esforo de coalizo dos interesses privados. Da a necessidade do estabelecimento de normas abs-tratas que deveriam fundar-se no prprio homem enquanto razo orde-nadora, o que, de fato, no plano econmico-social dever garantir a luta do indivduo pelo seu "sucesso" (Henrique Vaz, 1963:18), ou seja, a pos-sibilidade de realizao do ideal do burgus bem-sucedido. Na Idade M-dia, as trs ordens, clero, nobreza e povo, eram regidas por direitos pr-prios: os privilgios. Estes eram constitudos pelos costumes prprios de cada comunidade e pelos forais, diplomas do rei ou do senhor feudal que fixavam a organizao da comunidade, garantiam a propriedade imvel,

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    estabeleciam tributos etc. Os privilgios tinha-os, porm, cada ordem. As relaes comerciais entre as cidades exigiam, porm, normas que cobris-sem os espaos intermdios. Com base no direito romano vulgarizado (foi o fenmeno da recepo) surgiu paralelamente um direito comum a to-das as cidades e que passou a ser conhecido como jus commune, diferen-te do antigo jus gentium, que era prprio do estrangeiro. Com base num direito comum a todos os burgueses, esboa-se a idia de um direito dis-tinto de qualquer privilgio. Esta noo vem ao encontro da generaliza-o do homem como ser livre no sentido que o Cristianismo atribui ex-presso. Identificando liberdade com livre-arbtrio enquanto qualidade in-terna da vontade, que se expressa num nolle et velle, o Cristianismo cria uma condio a qual partilham todos os homens, independentemente do seu status. O carter ntimo dessa liberdade, porm, permite tambm que o indivduo se torne um centro isolado. O livre-arbtrio se exerce no importa se o exerccio possvel ou no. Ou seja, admissvel querer e no poder. Mas, querer algo e no poder, isto , se o livre-arbtrio no pode se exteriorizar publicamente, isto significar uma restrio liber-dade. Neste sentido, at mesmo a presena do outro ser, de algum mo-do, uma condicionante restritiva. O lado pblico da liberdade-livre-arbtrio far dela, assim, um direito fundamental. o conceito de liberdade como no-impedimento, chamado conceito negativo de liberdade.

    Esta noo torna-se crucial para o capitalismo nascente. A imposi-o de uma generalizao da liberdade marca a disputa pelo poder polti-co. O antigo status libertatis dos antigos com isso se transforma: constri-se um conceito positivo de liberdade, como autonomia. Na confluncia do negativo e do positivo surge assim a liberdade como direito humano fundante, ao mesmo tempo intimista, prprio, de cada um, e genrico, universal, pblico. A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789 bem manifesta este contexto estrutural. Nela, a conservao dos "direitos naturais e imprescritveis do homem" considerada o "fim de toda associao poltica" (n 2). A liberdade, enquanto "poder de fazer tudo quanto no prejudique a outrem" (n 4) permitir entender assim a "utilidade comum" e, simultaneamente, as "distines sociais" (n 1). Os direitos humanos constituem assim um princpio de unidade e inte-grao num mundo de diversidade e atomizao.

    A filosofia do homo faber, contudo, acaba por degradar o mundo, porque transforma o significado de todas as coisas numa relao meio/fim, portanto numa relao pragmtica. Com isso, torna-se impossvel desco-brir que as coisas possam ser valiosas por elas mesmas e no simplesmen-te enquanto meios. A tragdia desta concepo est em que a nica possi-bilidade de se resolver o problema do significado das coisas encontrar uma noo que em si paradoxal, ou seja, a idia de um fim em si mes-mo. Esta idia de um fim que no mais meio para outro fim um para-doxo, porque, nessa concepo, todo fim deve ser meio para um fim sub-seqente (Hannah Arendt, 1981). 106

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    Foi Kant quem, ao tentar uma soluo para o dilema, props que o homem, nesta concepo utilitria, afinal aquele que um fim em si mesmo. Da sua conhecida idia de que o homem nunca deve ser objeto para outro homem. Esta proposta, contudo, no resolve de todo o pro-blema, pois, no momento em que colocamos o homem como centro do mundo, como nico fim por si, portanto como a nica coisa valiosa por si, ento todo o resto se torna algo banal, no valioso, salvo quando tem um sentido para o homem ou quando para ele um instrumento. Neste sentido, qualquer coisa s ter valor se contiver trabalho humano, pois se instrumentaliza. Assim, no mundo do homo faber a esfera pblica, que na Antigidade era a esfera do homem poltico, passa a ser a esfera do mer-cador. A concepo de que o homem um construtor, um fabricante de coisas, conduz concluso de que o homem s consegue se relacionar devidamente com outras pessoas trocando produtos com elas (Hannah Arendt, 1981).

    Ora, na sociedade dominada pela concepo do homo faber a tro-ca de produtos se transforma na principal atividade poltica. Nela os ho-mens comeam a ser julgados no como pessoas, como seres que agem, que falam, que julgam, mas como produtores e segundo a utilidade dos seus produtos. Aos olhos do homo faber, a fora de trabalho apenas um meio de produzir um objeto de uso ou um objeto de troca. Nesta so-ciedade, na sociedade dominada pela idia da troca, o direito passa a ser considerado como um bem que se produz. a identificao do jus com a lex. O bem produzido por meio da edio de normas constitui ento um objeto de uso, algo que se tem, que se protege, que se adquire, que pode ser cedido, enfim, que tem valor de troca. Ora, como no mercado de trocas os homens no entram em contato diretamente uns com os ou-tros, mas com os produtos produzidos, o espao da comunicao do ho-mo faber um espao alienante porque de certa maneira exclui o prprio homem. O homem neste espao se mostra atravs de seus produtos. Es-ses produtos so as coisas que ele fabrica ou as mscaras que ele usa. Em conseqncia, no mundo do homo faber o direito, transformado em pro-duto, tambm se despersonaliza, tornando-se mero objeto. O direito con-siderado objeto de uso o direito encarado como conjunto abstrato de normas, conjunto abstrato de correspondentes direitos subjetivos, enfim o direito, objeto de uso, um sistema de normas e direitos subjetivos cons-titudos independentemente das situaes reais ou pelo menos considera-dos independentemente destas situaes reais, mero instrumento de atua-o do homem sobre outro homem. Est a a base de uma concepo que v no direito e no saber jurdico um sistema neutro que atua sobre a reali-dade de forma a obter fins teis e desejveis.

    Neste contexto, a questo dos direitos humanos passa a manifestar-se na contradio entre, de um lado, a relao meramente pragmtica do ho-mem com o mundo, o qual, vendo no mundo apenas um problema, trans-forma sua ao numa opo hipottica que se modifica conforme os re-sultados e cuja validade repousa no seu bom funcionamento e, de outro,

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    a perda progressiva do senso comum e a conseqente dissoluo dos va-lores, espelhada num certo vazio dos padres de julgamento.

    At o sculo XVIII, numa concepo que devia legitimar-se peran-te a razo, atravs da evidncia de seus axiomas e da concatenao lgica de suas proposies, a teoria dos direitos humanos ainda tinha, porm, uma dignidade especial. O imprio das relaes lgicas era o pressuposto bvio da formulao de leis naturais, universalmente vlidas, ao que se agregava o postulado antropolgico que via no homem no mais um ci-dado da cidade de Deus, mas um ser natural, um elemento de um mun-do concebido segundo leis naturais. Os direitos do homem constituam assim um sistema ordenado e esttico de direitos subjetivos universais. Contudo, como o homem era tambm concebido como um ser que age sobre o seu mundo circundante, o sistema dos direitos do homem, man-tidos como um fim, passa a exigir uma certa dinamicidade que o transfor-mar profundamente. Mormente a sua inscrio como Declarao de Di-reitos Fundamentais nas constituies do final do sculo XVIII confere ao sistema esse carter de ordem dinmica, capaz de absorver eventuais perturbaes, em termos de articulao entre conflito e harmonia. O exer-ccio desta funo, que est na base do constitucionalismo moderno, des-venda sutilmente uma transformao dos direitos do homem em um meio que serve a um fim inconsciente, que ser captado dentro da Histria, con-cebida no como categoria terica, mas prtica: a Histria deixa de ser uma compreenso do passado, para ser uma projeo do futuro.

    Ora, isto destri o sentido moderno de direitos do homem, que deixam de servir a uma viso totalizadora da vida poltica e jurdica, para ser um instrumento de mudana e transformao. Com isto passamos a uma nova constelao de problemas, a problemtica contempornea, que se distingue por uma concepo do homem como animal laboram, isto , no apenas como ordenador, mas como o transformador das estruturas do mundo, e o mundo como o resultado cambiante de um projeto, como uma estrutura planificada que, ademais, inclui o prprio homem como seu elemento. Socialmente, temos, ento, o problema da organizao dos qua-dros tcnicos e profissionais, economicamente o problema da produo planificada, politicamente, o da presena das massas no Estado, isto , da governabilidade. No plano jurdico, o direito que na Antigidade era ao, que na Era Moderna passa a trabalho produtor de normas, isto , objetos de uso, no mundo contemporneo passa a labuta, isto , produo de ob-jetos ou bens de consumo. Que significa isto e qual sua conseqncia pa-ra os direitos do homem?

    Em primeiro lugar, seguindo a anlise de H. Arendt (1981), deve-mos observar que a labuta ao contrrio do trabalho no tem uma produti-vidade. Ou seja, o trabalho pode ser visto pelos seus resultados e seus pro-dutos, que permanecem. A labuta no produz propriamente alguma coi-sa, no sentido de que os bens de consumo so bens que esto para o ho-mem na medida em que so consumidos pelo homem, isto , que so read-quiridos pelo corpo que os produz. Mas no obstante, a labuta tem uma

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    forma de produtividade que no est em produtos, mas na prpria fora humana que produz. Esta fora humana no se esgota com a produo dos meios de sobrevivncia e subsistncia, mas ela inclusive capaz de ter um excedente e este excedente que no mais necessrio reprodu-o de cada um que constitui aquilo que a labuta produz. Em outras pa-lavras, o que a labuta produz fora de trabalho, portanto, condies de subsistncia.

    Ora, enquanto na sociedade do homo faber o centro dos cuidados humanos era a propriedade e o mundo se dividia em propriedades, j nu-ma sociedade dominada pela idia do animal laboram, ou seja, na socie-dade de operrios ou sociedade de consumo, o centro no mais o mun-do, construdo pelo homem, mas a mera necessidade da vida, a pura so-brevivncia. Como o animal laborans, o homem que labuta, ou lato sen-su, o operrio, est no mundo, mas indiferente ao mundo, mesmo por-que a labuta, por assim dizer, numa certa medida, no precisa do mundo construdo pelo homem, a atividade do labutar uma atividade extrema-mente isolada. Em termos de labuta compartilhamos todos um mesmo destino, mas no compartilhamos coisa nenhuma, porque a sobrevivn-cia acossa a cada qual individualmente e nos isola uns dos outros. O ho-mem movido pela necessidade no conhece outro valor, nem conhece outra necessidade, seno a sua prpria sobrevivncia. Na sociedade de ope-rrios somos todos equalizados pela necessidade e voltados para ns mes-mos. Somos todos fora de trabalho e, nesse sentido, um produto emi-nentemente fungvel. No mundo do animal laborans tudo se torna abso-lutamente descartvel. Nada tem sentido, seno para a sobrevivncia de cada qual, ou seja, numa sociedade de consumo, os homens passam a ser julgados todos segundo as funes que exercem no processo de trabalhar e de produo social.

    Assim, se antes, no mundo do homo faber, a fora de trabalho era ainda apenas um meio de produzir objetos de uso, na sociedade de con-sumo confere-se fora de trabalho o mesmo valor que se atribui s m-quinas, aos instrumentos de produo. Com isso, se instaura uma nova mentalidade, a mentalidade da mquina eficaz, que primeiro uniformiza coisas e seres humanos, para depois desvalorizar tudo, transformando coi-sas e homens em bens de consumo, isto , bens no destinados a perma-necer, mas a serem consumidos e confundidos com o prprio sobrevi-ver, numa escalada em velocidade, que bem se v na rapidez com que tudo se supera, na chamada civilizao da tcnica. O que est em jogo aqui a generalizao da experincia da produo, na qual a utilidade para a sobrevivncia estabelecida como critrio ltimo, para a vida e para o mundo dos homens. Ora, a instrumentalizao de tudo, por exemplo, a criana que de manh escova os dentes, usa a escova, a pasta e a gua e com isso contribui para o produto interno bruto na nao, conduz idia de que tudo afinal meio, todo produto meio para um novo produto, de tal modo que a sociedade como um todo se concentra em produzir objetos de consumo. Consumo este, de novo, meio para o aumento da

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    produo e assim por diante. Na lgica da sociedade de consumo, tudo que no serve ao processo vital destitudo de significado. At o pensa-mento torna-se mero ato de prever conseqncias e s nessa medida valorizado. Entende-se assim a valorizao dos saberes tcnicos, sobretu-do quando se percebe que os instrumentos eletrnicos exercem aquela funo calculadora muito melhor do que o crebro. E no direito esta lgi-ca da sociedade de consumo torna-o mero instrumento de atuao, de con-trole, de planejamento, tornando-se a cincia jurdica um verdadeiro sa-ber tecnolgico.

    O ltimo estgio de uma sociedade de operrios, de uma socieda-de de consumo, que a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automtico, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espcie e a nica deciso ativa exigida do indivduo fosse por assim dizer deixar-se levar, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ain-da sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranquilizante. Para o mundo jurdico o advento da socie-dade do animal laborans significa, assim, a contingncia de todo e qual-quer direito, que no apenas posto por deciso mas vale em virtude de decises, no importa quais, isto , na concepo do animal laborans criou-se a possibilidade de uma manipulao de estruturas contraditrias, sem que a contradio afetasse a funo normativa. Por exemplo, a resciso imotivada de um contrato de locao permitida, amanh passa a ser proi-bida, depois volta a ser permitida, sendo tudo permanentemente reconhe-cido como direito, no incomodando a esse reconhecimento a sua muta-bilidade. A filosofia do animal laborans deste modo assegura ao direito, enquanto objeto de consumo, uma enorme disponibilidade de contedos. Tudo passvel de ser normado e para uma enorme disponibilidade de endereados, pois o direito no depende mais do status, do saber, do sen-tir de cada um, das diferenas de cada um, da personalidade de cada um. Ao mesmo tempo continua sendo aceito por todos e por cada um em ter-mos de uma terrvel uniformidade.

    O trao mais caracterstico do direito contemporneo , nestes ter-mos, o fenmeno da positivao (Luhmann, 1969:141). Embora a positi-vao seja um processo que j chamasse a ateno dos juristas no incio do sculo XIX e ali ganhasse os seus primeiros delineamentos tericos, no sculo XX que ele se torna propriamente um patamar irrecusvel de todas as construes jurdicas, sejam a seu favor, sejam criticamente contra.

    No processo de positivao do direito, alarga-se a importncia do direito positivo, como aquele que vale em virtude de uma deciso e s por fora de uma nova deciso pode ser derrogado. Se o legalismo do s-culo passado entendeu isto de um modo restritivo e unilateral, reduzindo o direito lei enquanto norma posta (positivada) pela vontade do legisla-dor, a teoria jurdica atual tratou de reinterpretar o fenmeno da positiva-o, procurando superar as dificuldades e limitaes da jurisprudncia anterior.

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    O fenmeno da positivao prende-se, a nosso ver, problemtica contempornea, que acabamos de esquematizar; o seu entendimento, por sua vez, abre um caminho para a compreenso do problema dos direitos do homem em nosso mundo, na medida em que a positivao deixa trans-parecer a questo do vazio dos padres, ocultando-a, ao mesmo tempo, atravs de mecanismos funcionais e pragmticos.

    "Positivao" e "deciso" so termos correlatos. "Deciso" to-mada aqui num sentido lato, que ultrapassa os limites da deciso legislati-va, abarcando tambm, entre outras, a deciso judiciria, na medida em que esta pode ter tambm uma qualidade positivante, quando, por exem-plo, decide sobre regras costumeiras. Toda deciso implica, alm disso, motivos decisrios, premissas de valor que se referem a condies sociais e nelas se realizam. O que caracteriza o direito positivado e, neste senti-do, o fato de que estas premissas da deciso jurdica s podem ser pressu-postas como direito vlido quando se decide sobre elas. Da a entender-se por positivao do direito o fenmeno segundo o qual, "todas as valora-es, normas e expectativas de comportamento na sociedade tm de ser filtradas atravs de procesos decisrios antes de poderem adquirir a vali-dez jurdica" (Luhmann, 1969:141). Toda norma implica, nestes termos, a sua posio no sentido de uma "interferncia decisria do poder" (Mi-guel Reale, 1968:140).

    Nos quadros da positivao do direito, transforma-se, como se po-de perceber, o sentido funcional dos direitos do homem concebidos co-mo jus eminens, sua positivao, na forma constitucional das declaraes, embora os postule como invariantes, obriga renncia a uma ordem in-varivel. Esta renncia, em verdade, compensada no interior mesmo das concepes constitucionais pela idia de que constituies apenas garan-tem os direitos fundamentais, no os constituem. Esta forma, pela qual o direito positivado tenta responder pela sua prpria estrutura, esconde, no entanto, um dilema. Ao afirmar-se que os direitos humanos fundamen-tais so inseparveis de sua garantia constitucional, o constitucionalista de algum modo perverte o seu carter de jus eminens. Afinal, se garantias so "limitaes, vedaes impostas pelo constituinte ao poder pblico" (Ferreira Filho, 1970:240), elas, de fato, s tm condies de funcionar atravs do prprio poder pblico: o homem transformador das estrutu-ras do mundo, das quais ele prprio faz parte. neste contexto que ocor- re a trivializao dos direitos do homem.

    3. A trivializao dos direitos do homem

    A constitucionalizao dos direitos do homem, no mundo contem-porneo, na forma de declaraes conjugadas a garantias, torna-os, pois, direitos triviais na proporo em que eles proliferam, se difundem e se alteram. Isto no significa, claro, que as novas formas de direitos do ho-

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    mem, inicialmente um conjunto de supremos direitos individuais, poste-riormente, de direitos polticos, sociais, econmicos e, afinal, de direitos especiais das mulheres, das crianas, das minorias, sejam triviais no seu con-tedo. Tornam-se triviais, porm, na medida em que a jurisdicidade do seu sentido se torna trivial, isto , na medida em que o seu significado jurdico s pode ser obtido a partir de outros contedos significativos e de outras relaes funcionais.

    Como se disse a princpio, trivial significa alta indiferena em face das diferenas. Para cada indivduo, numa sociedade de consumo e cujo direito foi positivado, qualquer direito subjetivo, inclusive os direitos fun-damentais, deixa de ser percebido como algo que lhe diz respeito, para ser reencontrado, em si mesmo, apenas em suas projees normativas, em suas pretenses e interesses. Isto possibilita um imperceptvel cmbio de normas, alteraes constitucionais no caso dos direitos fundamentais, sem que se tenha a sensao de uma mudana no seu contedo significa-tivo essencial. Ou seja, trivializao significa que os direitos do homem, ao manterem sua condio de ncleo bsico da ordem jurdica, nem por isso deixam de ser objetos descartveis de consumo, cuja permanncia, no podendo mais assentar-se na natureza, no costume, na razo, na mo-ral, passa a basear-se apenas na uniformidade da prpria vida social, da vida social moderna, com sua imensa capacidade para a indiferena. Indi-ferena quanto ao que valia e passa a valer, isto , aceita-se tranquilamen-te qualquer mudana. Indiferena quanto incompatibilidade de conte-dos, isto , aceita-se tranquilamente a inconsistncia e se convive com ela. Indiferena quanto s divergncias de opinio, isto , aceita-se uma falsa idia de tolerncia, como a maior de todas as virtudes. Este afinal o mundo jurdico do homem que labuta, para o qual o direito apenas e to-somente um bem de consumo.

    Esta situao de uniformidade pela indiferena perversa. A trivia-lizao dos direitos do homem processa, assim, uma espcie de neutrali-zao das relevncias valorativas contidas nos enunciados normativos fun-damentais na medida em que a confiana ingnua na validade de fins su-premos decresce e a mobilidade e a diferenciao sociais crescentes aba-lam os fundamentos do consenso. Esta neutralizao ocorre por meio de valoraes ideolgicas, isto , valoraes metacomunicacionais que esti-mam estimativas, avaliam avaliaes, selecionam selees, garantindo des-tarte o consenso daqueles que precisam manifestar os seus valores, asse-gurando a possibilidade de sua manifestao. Ao mesmo tempo, tais valo-raes ideolgicas pervertem os prprios valores, ao estabiliz-los, pois criam a impresso de sua universalidade numa forma histrica concreta que aparentemente as esgota.

    Com isso, verdade, a valorao ideolgica estabelece condies para que os valores variem s na medida das necessidades de ao, ao ga-rantir consenso ou, ao menos, um certo consenso, na manifestao dos valores, assegurando, neste limite, a possibilidade de sua expresso. Mas ao faz-lo, ela est se constituindo numa instncia que vai neutralizar a

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    valorao, na medida em que ela perverte o valor, retirando-lhe o sentido de smbolo aberto a mltiplas conotaes, o que provocaria, inevitavel-mente, conflitos em larga escala.

    Isto posto, podemos entender em que medida o dilema proposto anteriormente contornado. Em princpio, os direitos do homem expres-sam valores fundamentais e inalienveis da vida poltica. Nesta medida, o seu reconhecimento pelo direito positivado significa a sua aceitao co-mo invariante, donde a sua utilizao como critrio para a seleo de dife-rentes comportamentos e normas a eles referidas. Nestes termos, eles se estabelecem como fim da atividade poltica. Ora, a mera fixao destes fins para a ao no pode ocorrer de modo unvoco, funcionando, ao con-trrio, apenas como orientao necessariamente elstica para a compara-o e opo entre meios apropriados, no podendo a sua prescrio ou proibio abstrata constituir um juzo merecedor de confiana para a ao. Em outras palavras, os valores expressos na declarao dos "direitos do homem" tm de ser concebidos abstratamente, para deixar em aberto as diversas possibilidades de ao. Ora, isto s pode ser alcanado quando sua "seletividade" dirigida aos comportamentos visados, que podem ocorrer de modo variado, de tal maneira que estes ltimos venham a fun-cionar como prisma para a seleo de meios apropriados. V-se, por a, que a simples declarao dos direitos, de fato, em virtude da sua flexibili-dade abstrata, pode trazer dificuldades: a idia de que o direito aos fins d tambm o direito aos meios perde sua fora.

    Um exemplo disto pode ser visto nos sistemas polticos atuais. Mui-tos deles desenvolvem esta espcie de perverso dos valores dominantes, atravs da inverso de fins e meios na poltica. Assim, o poder dado aos polticos para que realizem aqueles valores. Mas o objetivo da sua ativida-de passa a ser a manuteno daquele poder que, de meio, passa a ser o fim real de sua ao. Com isso, pervertem-se os valores, que so neutrali-zados e instrumentalizados. Evidentemente, o perigo da manipulao ideo-lgica est numa perda de contato com a prpria complexidade do siste-ma que pode, no limite, tornar-se totalmente indeterminvel. Este perigo contornvel, desde que a neutralizao ideolgica permanea formal, isto , no impea, ao contrrio, possibilite o oportunismo do cmbio de valores, o que, na prtica, obtido pelo desdobramento e diferenciao do poder, atravs do que certos smbolos, normas e instituies que so, em cada esfera de competncia (a organizao de administrao pblica, a prxis decisria da justia, a atividade legislativa) reciprocamente neutralizados.

    neste momento que a valorao ideolgica atua, no sentido de neutralizar os direitos dos homens, atravs da criao de expresses sim-blicas como garantias constitucionais, mas tambm regras de hermenu-tica, fices jurdicas, distines formais, que, de certa maneira, de ins-trumentos que so (meios) passam a constituir os verdadeiros objetivos da vida poltico-jurdica.

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    A valorao ideolgica, portanto, torna rgida, nesta medida, a de-clarao dos direitos do homem. Ela explica, a nosso ver, como o direito positivado compensa, no interior da sua prpria estrutura, a ausncia de uma ordem no extremo imutvel. A ideologia fixa os direitos do homem, dando-lhes o carter de cerne "indiscutvel", de tal modo que, em princ-pio, eles no podem ser questionados, permitindo-se, apenas, a sua dis-cusso tcnico-instrumental: ao manifestar uma superioridade valoradora a ideologia elimina, artificialmente, outras possibilidades. Isto ocorre mes-mo dada a inevitabilidade de mltiplas ideologias, sejam em confronto, ou de modo a estabelecer-se entre elas um relacionamento indiferente: mesmo quando elas se contrapem e se criticam, os direitos da pessoa sobrepairam acima das injunes. Isto permite e esclarece, alis, que regi-mes polticos to diversos assinem e subscrevam a Declarao dos Direi-tos do Homem da Organizao das Naes Unidas, absorvendo-a, sem maiores problemas, em seus estatutos jurdicos. Isto possvel porque e na medida em que a neutralizao ideolgica permanea formal, no im-pea, ao contrrio, propicie o oportunismo do cmbio de valores.

    preciso, entretanto, salientar, finalmente, que a valorao ideo-lgica, ao neutralizar os direitos do homem, perverte, de certo modo, o seu sentido, fazendo deles um jus eminens juridicamente castrado. Instrumentalizando-os, ela lhes aplica uma capitis deminutio, retirando-lhes a qualidade de verdadeiros: eles no funcionam porque so verda-deiros, mas so verdadeiros porque funcionam. Na sua funo de orientar e determinar a ao poltica e jurdica, eles se tornam substituveis, isto , uma possibilidade entre outras, o que ficou claro com o advento dos totalitarismos fascistas em nosso sculo.

    Com isto, entrementes, abrimos as portas para uma ltima e mais perversa caracterstica da trivializao dos direitos do homem: a perda da dimenso da responsabilidade humana por uma obra pela qual cada ho-mem , de fato, responsvel.

    A noo tradicional de responsabilidade pode ser analisada com re-lao s dimenses do tempo (Wisser, 1967). Ela postula, assim, instn-cias que se apoderam do tempo e que no se destroem com sua passa-gem. Estas instncias permitem olhar o passado, o presente e o futuro co-mo uma espcie de nunc stans, um permanente que delineia e configura a ao, definindo expressamente como devemos atuar. Destarte, a respon-sabilidade instancial, no levanta dvidas, mas estabelece normas. es-catolgica e chega sempre a uma instncia ltima, que decide sem apelao.

    Esta noo de responsabilidade era pressuposto essencial dos di-reitos do homem no contexto da problemtica moderna. Neste sentido, os direitos fundamentais eram como instncias ltimas: liberdade, igual-dade, vida, propriedade.

    Pois bem, no direito positivado, esta instancializao neutraliza-da por um mecanismo interno a valorao ideolgica , o que provo-ca um vazio no plano da responsabilidade, pois o homem se v provoca-do por condies inseguras a tomar uma deciso pela qual ele responde

    REFERNCIAS (pela or- dem de citao)

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    apenas como funo e no como pessoa. A pessoa, como "aquele sujeito cujas aes so capazes de imputao", portanto, aquele sujeito "que no se submete a outras leis seno quelas que ele prprio, s ou com outros, se d" (Kant, 1966:329) torna-se, pois, um simples reflexo da ordem posi-tivada. Isto porque a ideologia retira da deciso a possibilidade de ela ser verdadeira, restando-lhe apenas a possibilidade de ser eficaz; as decises humanas tornam-se ideolgicas na medida em que, na sua funo de solu-cionar um problema, so substituveis. O juiz que decide no o faz como pai de famlia, ou como membro de um clube etc, mas como membro da magistratura, do mesmo modo que aquele que move um processo no o faz como dono de um automvel, empregado na companhia tal etc. mas como parte processual e no como pessoa. A ideologia alivia a responsa-bilidade da carga pessoal, ao tornar as decises socialmente funcionaliza-das. Com isto, porm, a responsabilidade torna-se vazia, na medida em que toda funo imunizvel contra a crtica material, de contedo, aguando-se, apenas, a possibilidade de crtica formal em termos de con-trole da correo tcnica.

    Ora, isto abre, sem dvida, uma perspectiva bastante inquietadora no que diz respeito aos direitos do homem. Funcionalizando-se a escato-logia que os explica, perde-se tambm a dimenso instancial da responsa-bilidade, no sentido de que o homem continua responsvel por suas deci-ses, mas no h critrios instncias que ele possa assumir como seus. Com isto camos numa situao perigosa em que toda responsabili-dade instancial assumida configura-se como contestao e subverso, a me-nos que se funcionalize e se esvazie.

    E esta , provavelmente, a conseqncia mais perversa da triviali-zao dos direitos do homem em nossos tempos, em que todos somos funcionalmente responsveis pelos atos da coletividade, mas a ningum em particular como pessoa se pode imputar esta responsabilidade. Isto , somos responsveis como cidados, como funcionrios adminis-trativos, como membros de uma sociedade recreativa, como maiores de 18 ou 21 anos, em uma palavra, como uma varivel que se preenche quan-do assumimos uma funo.

    Tercio Sampaio Ferraz Jr. professor titular da Faculdade de Direito da USP.

    Novos Estudos CEBRAP

    N 28, outubro 1990 pp. 99-115

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