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A Ultima Dama Do Fogo

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Náufraga. E sem memória. Tudo o que Deora queria era saber quem era, mas sua jornada lhe reservava mais do que isso, porque também era uma jornada interior. Iniciada nos mistérios da Ordem Vermelha, a inocente jovem descobre o verdadeiro valor da amizade, o desafio de conhecer os saberes ocultos, o perigo que ronda os que buscam a essência do fogo. Uma essência que ela terá de dominar. Mas estará ela preparada para isso? Conseguirá redescobrir a magia perdida? Ou a busca por si mesma fará com que seja reduzida a cinzas?

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Marcelo Paschoalin

  • A ltima Dama do Fogo

    Edio Digital

    2013

  • Diagramaoletraimpressa.com.br

    CapaCarol Mylius carolmylius.com

    RevisoGeorgette Silen

    Copyright (C) 2013 Marcelo Paschoalin

    Todos os direitos reservados. proibida a distribuio ou cpia dequalquer parte desta obra sem o consentimento escrito do autor.

    Criado no Brasil

  • ndicePrefcio A jornada da heronaTomo I

    PreldioCaptulo 1Captulo 2Captulo 3Captulo 4Captulo 5Captulo 6Captulo 7Captulo 8Captulo 9Captulo 10Captulo 11InterldioCaptulo 12Captulo 13

    Tomo IICaptulo 1Captulo 2InterldioCaptulo 3Captulo 4Captulo 5InterldioCaptulo 6Captulo 7Captulo 8Captulo 9Captulo 10Captulo 11InterldioCaptulo 12

  • Captulo 13Captulo 14Captulo 15Captulo 16Captulo 17Captulo 18InterldioCaptulo 19Captulo 20Captulo 21InterldioCaptulo 22Captulo 23Captulo 24Captulo 25InterldioCaptulo 26InterldioCaptulo 27Eplogo

  • Prefcio A jornada da heronaNos anos de 1996 e 1997 do sculo XX, participei da escola de

    dramaturgos e escritores patrocinada pela Fundao Cultural CassianoRicardo em So Jos dos Campos, interior de So Paulo, um projetopioneiro que tinha por um de seus objetivos formar escritores edramaturgos para suprir a carncia de profissionais que havia na regio.Lembro-me de que o grupo comeou com cerca de cinquenta alunos eterminou com onze. , a jornada foi rdua, e somente aqueles queatenderam seu chamamento conseguiram seguir at o final.

    Nesse curso, tive a grande oportunidade de conhecer pessoalmente, etornar-me amiga depois, do dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, conhecidono meio teatral por seus excelentes trabalhos, ganhadores dos prmiosMolire e APCA Associao Paulista dos Crticos de Arte, como Livro deJ, Sacra Folia e Bella Ciao, entre outros. Do grande pblico, cujainfluncia da televiso macia, Luiz Alberto de Abreu reconhecido porser um dos coautores da srie Hoje Dia de Maria, exibida pela RedeGlobo de Televiso em 2005. A primeira parte contou com oito episdiose a segunda, uma continuao das aventuras de Maria, cinco episdios,um sucesso de pblico e crtica.

    No curso de Dramaturgia coordenado por Abreu, fui apresentada pelaprimeira vez chamada Jornada do Heri. Mestre em elaborar enredosque percorrem essa jornada, Abreu nos fez conhecer e entender asdiversas etapas que permeiam o caminho seguido pelos protagonistas, eantagonistas, de muitas histrias conhecidas por ns e outras totalmentenovas. Foi com brilho nos olhos e muita emoo que passei a entender ossignificados do chamamento, da negao e da busca em filmes como StarWars, que eu admirava, e tambm ao ser apresentada a obras como OSenhor dos Anis, de Tolkien, Le Morte dArthur, de Malory, e CrnicasSaxnicas de Bernard Cornwell, leituras obrigatrias na fase depreparao dos alunos para entender mitos e arqutipos de construo depersonagens e trajetrias de narrativa. Foi nesse perodo tambm que medeparei com as obras de Joseph Campbell, em especial O Poder do Mito,seguindo depois para O Heri de Mil Faces e As Mscaras de Deus.

    Abreu nos fez vislumbrar o mecanismo que envolve a trajetria a serpercorrida por todo personagem rumo ao que ele chamava de condio desbio, o quanto o chamamento o momento em que o jovem, que nadasabe sobre si ou sobre seu destino, recebe uma importante misso assusta e provoca negao, a princpio, para que depois seja absorvidoem sua essncia e gere a sequncia de fatos e aventuras que o elevaro condio de protagonista. Vemos isso em Luke Skywalker em StarWars, Frodo Bolseiro em O Senhor dos Anis e nos contos do rei Arthurespalhados pela literatura. Mas Abreu tambm nos mostrava o quanto a

  • negao a tal fato pode resultar em desastrosas condies. Vide DarthVader em Star Wars, ou mesmo Smagol em O Senhor dos Anis,criaturas que sucumbiram em sua jornada, perdendo seus princpios eresumindo-se em papis que nada mais so do que simulacros de umfalso poder e ausncia de sabedoria. Vader ainda teve seu momento deredeno ao final da saga de George Lucas, ao contrrio do ex-hobbit quese destruiu junto ao seu objeto de desejo. Os arqutipos soapresentados juntamente com as escolhas que devem fazer, cabendo aopersonagem recusar ou aceitar seu chamado. Ele forte, difcil de serignorado, e modifica por completo sua vida e as das pessoas que oacompanharem.

    Joseph Campbell, em seu O Poder do Mito, diz que as sociedadesmodernas perderam seus arqutipos modelos de comportamento queauxiliam na evoluo pessoal ao negarem mitos e rituais de passagem,fundamentais para que a criana se torne homem, para que os papissejam definidos e a vida crie um sentido mtico em sua existncia. Elealertava sobre as diversas ocorrncias registradas nas grandes cidades,violncia a abuso de comportamentos condizentes como fruto da ausnciade modelos a serem seguidos, de jornadas no concludas, ou nem aomenos iniciadas, e o quanto o ser humano estava se afastando dosmodelos arquetpicos que constroem uma psique individual, que depois serefletiria no coletivo. Campbell lamentava a distncia que o homemmoderno imps aos seus mitos, pois somos seres mticos em essncia,buscamos modelos em que nos apoiar e jornadas a serem cumpridas quenos tragam um sentido maior, nos tirem da escurido do no-saber para aclaridade do Ser.

    Durante esse curso, tive o prazer de tomar contato com a obra deMarion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon, primeira de muitas obrasda autora que viriam parar em minhas mos. E ao observar a trajetriada personagem Morgana, conclu que o caminho do heri tambm seaplica herona. O chamamento, a negao e a busca esto l, elevandoa jovem filha das terras celtas para a condio de Sbia entre seu povo,no sem muito sacrifcio, sofrimentos, dores e alegrias, algumas vezesefmeras, na maioria permanentes. preciso que aqui fique um aviso: atrajetria do heri e da herona no um caminho de rosas, tampoucobelo ou desejado. , antes de tudo, uma misso, e como tal deve serencarada e aceita, ou negada. As consequncias da escolha doprotagonista de tal misso se refletiro nele, de qualquer forma, sejaqual for.

    Minha surpresa ao receber o original dessa edio de A ltima Dama doFogo, de Marcelo Paschoalin um autor de que muitos ainda ouvirofalar foi poder ler, aps tanto tempo, um livro que realmente trabalhou

  • em mincias com a trajetria da herona, sua jornada rumo ao saber e aoconhecimento. Paschoalin no um escritor novato, autor de oito livros,alguns publicados em ingls, e tambm autor de RPGs. Isso, com certeza,foi determinante no momento de elaborao da Dama uma formacarinhosa ao qual me refiro ao livro , pois impossvel deixar deperceber os degraus impostos sua protagonista, a jovem Deora, em suajornada pelo conhecimento e ascenso.

    Deora comea como todas as heronas ela no sabe quem . E naignorncia sobre si e sua vida estgio em que todos os protagonistassempre se encontram ela recebe sua misso. E a partir desse instante,ao aceitar o chamamento para sua morte e renascimento, no h maisvolta. Mesmo quando Deora reluta em determinado momento, duvidandode seu real papel outro fato inerente ao desempenho exigidos dasheronas a misso se impe, a f a alcana de forma inabalvel,renovando suas foras e fazendo-a cumprir seu destino. Um papelrealmente grandioso.

    Paralelo trajetria de Deora temos tambm a de Ivoreen, outrapersonagem que merece destaque. Ivy, como carinhosamente chamadapor Deora, inicia no caminho da herona, mas qual seu destino? Qualrumo decide tomar? Atalhos no so admitidos na trajetria da herona,pois no conduzem ao saber apenas criam a iluso que se desfaz aomenor toque. Ivy to fundamental trama quando Deora, ambasextremos muito bem descritos pelo autor.

    H outros personagens igualmente deslumbrantes, como a sbiaMirhaanna, uma mulher forte que j cumpriu sua jornada da herona, eque agora auxilia Deora a encontrar a sua, mesmo que isso seja atravsde atitudes e palavras muitas vezes de estranha compreenso. E htambm a maravilhosa construo de cenrios de Vlyn, onde ocorre aao da narrativa, e os mistrios instigadores que cercam o GrandeContinente, deixando a imaginao do leitor em polvorosa.

    Marcelo Paschoalin soube, como poucos, escrever uma narrativapontuada por frases que nos fazem refletir e muito sobre nossa prpriajornada. Fala de f, redeno, busca, sacrifcios, fidelidade e magia, muitamagia.

    Como o prprio autor afirma: O caminho inicitico trilhado por todosns.

    Eu, sinceramente, espero que o leitor encontre o seu nas pginas desselivro.

    Tenham uma boa leitura e que as bnos de Berilla os acompanhem.

    Georgette Silenautora da srie Lzarus

  • Tomo I

  • PreldioMantenham o curso!Os brados do capito mal podiam ser ouvidos, pois a fria da

    tempestade, orquestrando uma melodia de ventos, relmpagos e granizo,no cessava. Todos a bordo sabiam que o galeo havia se transformadoem um brinquedo nas mos de um displicente infante, mas nenhummembro da tripulao ousava sequer pensar em se entregar fora dasondas. A tempestade no duraria muito, pensavam, pois j lutavam hmais de uma hora contra sua fria. Mas pela mente do contramestre aslembranas de um porto seguro se dissipavam cada vez mais.

    Sob o convs, na cabine reservada aos passageiros, duas pessoas seabraavam, sem saber o que o destino havia lhes reservado. O maisvelho, com cabelos brancos como o granizo que batia contra o navio eolhos azuis como o mar revolto, estava trajando uma tnica prpura,com um capuz cobrindo sua cabea.

    Sabe que esta minha ltima jornada e que no nutro esperanaspor um bom final, tentava, apesar dos troves, acalmar a jovem a eleabraada. mas sei o que a aguarda. Tenho certeza de que honrar aoportunidade que o destino lhe d para que sua vida seja plena emvirtude.

    As lgrimas da jovem, que no aparentava possuir mais do que vinteanos, corriam profusamente por sua face, manchando o vestido escarlateque estava usando. Seus cabelos castanhos estavam revoltos, sinal deque acordara s pressas quando a tempestade se anunciou, e sua pelealva e macia era apenas um arauto de sua beleza singular, que poderiaser resumida na pureza de seus olhos de esmeralda.

    Eu no desejo isso, Zagar! ela soluava. Meu lugar aqui! Nopode o destino ser to cruel a ponto de me separar daquele que cuidoude mim e tudo me ensinou...

    Zagar a abraou mais carinhosamente, deixando que suas palavrasbrotassem como sussurros nos ouvidos da jovem:

    Sim... Mas isso se deve a seu pai, que me fez aceitar o papel de serseu tutor quando sua me voltou aos braos do Eterno. Quisera eu tersido abenoado com uma esposa... E filhos...

    Os soluos cessaram, mas o pranto continuava e a jovem se agarravacada vez mais tnica de Zagar.

    Mas o que farei quando chegar a Vlyn, se conseguir vencer atempestade? E se a maldio da morte sempre viva ainda persistir?

    No, no h nada que possa faz-la temer. Uma nova magia estnascendo na ilha de Vlyn e de l poder seguir para o GrandeContinente, se assim os deuses desejarem. passou o dedo pela facealva da jovem, secando uma das lgrimas. Sabe que pode usar essa

  • magia! Aprenda e utilize bem seus conhecimentos.Mas...E quando chegar o momento, talvez seus atos tenham sido os

    precursores daqueles que iro trazer a Era Dourada novamente.Engolindo o choro, abraou-o ainda mais forte, mas o balano do navio

    logo os lanou ao cho. Foi ento que, levantando-se com dificuldade, elaviu que a gua comeava a passar por baixo da porta de sua cabine...

    E, de sbito, a porta foi escancarada. Contendo um grito, porm,percebeu que no era uma massa dgua que entrava, mas sim o capitodo navio, totalmente encharcado. Escorando-se num dos mveis presosao cho da cabine, ele puxou pelas mos a jovem.

    No h muito tempo! estendeu a outra mo para Zagar, sua vozdemandando urgncia. O casco foi comprometido quando noschocamos com algo... Tenho um escaler j preparado, mas no podemosperder tempo!

    A jovem olhou com desespero para Zagar:Meus pertences, minhas...No h tempo! bradou o capito. Precisamos subir agora!E novamente foram lanados ao cho pela fora das ondas.

    Desvencilhando-se de quem a segurava, a jovem conseguiu alcanar umagaveta, de onde rapidamente retirou uma gargantilha de esmeraldas e acolocou no pescoo. Pondo-se em p novamente, o capito falou comzombaria:

    Meus homens esto lutando por suas vidas e tu apenas te preocupascom riquezas...

    Jamais repitas isso, capito, Zagar o interrompeu, colocando oindicador direito diante dos olhos dele ou sero tuas ltimas palavras.No posso impedi-la de levar consigo o nico elo fsico que Deora temcom sua me. Mostra o caminho.

    A jovem Deora segurou nas mos de Zagar e, em meio aos trancos ebalanos do galeo, conseguiram atingir o convs. L, contudo, a situaose mostrava infinitamente pior do que se podia imaginar: algunstentavam, a todo o custo, reparar a vela do mastro principal, queaparentava no poder suportar por muito mais tempo o vigor dos ventos,outros corriam com baldes jogando a gua para fora.

    Enquanto passavam pelos homens que lutavam por suas vidas, ocapito se deixava tomar pela angstia. Tudo o que temia estavatomando fora, mas pouco podia fazer para salvar sua tripulao.Restava-lhe, somente, permitir que os dois que conduzia pudessemescapar.

    Nau pronta, capito. o contramestre acenou de longe, sem muitareverncia, segurando as amarras do escaler.

  • Sem palavra, o capito conferiu se as provises estavam na pequenanau, j estendendo a mo para Deora, que prontamente se colocou nocentro. Zagar, no entanto, no se moveu.

    Meu senhor, no posso permitir que fiques conosco. a sinceridadeestava nos olhos do capito. O galeo no mais seguro.

    Mas, como se a tempestade respeitasse a voz de Zagar, silenciou porum momento:

    H sete anos, capito, disse, ainda segurando nas mos de Deora. foi em teu navio que deixamos o Grande Continente, sendo um dosprimeiros a seguir o caminho do xodo. Sabes muito bem que a magia o que d fora ao nosso povo, e sabes tambm que no podamos lpermanecer. Enorme foi tua bondade ao permitir que Deora conoscoembarcasse, mesmo nela no fluindo o sangue de nossas mes, e issono pode ser esquecido. por isso que, quando decidi retornar, sendo oprimeiro a acreditar que o xodo teria um fim breve, escolhi a ti comoaquele a nos guiar. Deora seguir para Vlyn, com as bnos da amadadeusa Andora, regente de toda a natureza, e ir buscar a nova magia quepode fazer com que, um dia, todos retornemos. Eu, no entanto, contigopermanecerei, pois no posso te deixar sem que o remorso por ti e porteus homens me consuma pelo resto dos dias.

    Zagar, no!Os gritos de Deora, em franco desespero quando Zagar soltou sua mo,

    foram abafados por um trovo ensurdecedor, prenncio de uma novainvestida da tempestade. Com um aceno, o capito deu permisso aocontramestre para que as amarras fossem soltas e o escaler se afastourapidamente. Os brados de Deora no mais puderam ser ouvidos e, poucodepois, as altas ondas impediram que Zagar fosse capaz de observar ajovem que esteve sob seus cuidados por tantos anos.

    A pequena embarcao no havia sido concebida para sobreviver emmeios tempestuosos, mas precisava, ao menos desta vez, ser capaz deatravessar o temporal e atingir guas mais calmas. Porm, a fria dasondas parecia no ter fim e Deora, finalmente deixando que sua razofalasse mais alto, amarrou-se ao escaler para que, se fosse jogada aomar, pudesse alcan-lo sem muitos problemas. Com um remo nas mos,em vo tentava manobrar a pequena nau, que havia se tornado nadaalm de uma marionete sob controle das ondas. Por ser noite, somente oclaro dos relmpagos podiam gui-la, o que no a impediu de lutar.Todavia, suas foras estavam se esvaindo, e Deora percebeu o quo difcilera remar contra todas as correntezas de Andora.

    Ento, sem aviso, as ondas se acalmaram apesar dos ventos rugiremcomo nunca antes haviam feito. Deora suspirou, aliviada, e deixou que oescaler seguisse por uma leve corrente marinha por alguns instantes.

  • Mas, quando os raios novamente iluminaram os cus, o pavor tomouconta da jovem que, murmurando todas as preces que conhecia, largou oremo e se segurou ainda mais fortemente pequena embarcao...

    A razo de seu pavor no era infundada, pois aquela calmaria eraapenas o anncio da formao da maior das ondas, to alta quanto umdrago, to extensa quanto as asas de um pssaro roca. E, com umrugido mais poderoso que todos os troves juntos, a onda quebrou,tragando o escaler e Deora para as profundezas do mar.

  • Captulo 1As gaivotas j singravam os cus em uma constante revoada quando

    Brion retornou de sua pescaria, um tanto insatisfeito com a pequenaquantidade de peixes que havia em sua rede. Sabia, no entanto, que eramais do que ele e sua esposa precisariam nos prximos trs dias,fazendo-o se recriminar por desejar dos mares mais do que seria justopara si. Remando pelas guas que banhavam a praia de Mitarna, vaziacomo de costume quela hora, o pescador sorriu, admirando a rotina deseus dias. Porm, desta vez, havia algo mais, suficiente para fazer comque Brion se sobressaltasse.

    Ora, ora... uma pequena embarcao balanando ao ritmo dasondas, parcialmente presa na areia da praia, era o que chamava suaateno. Quem em s conscincia deixa um barquinho mal ancoradoassim?

    Desembarcando rapidamente, o pescador se aproximou da nau,enquanto notava o nome entalhado na proa, escrito com smbolosestranhos, talvez grafado em um idioma desconhecido. Contudo, aoadmirar a estrutura de madeira, percebeu entalhes em toda a extensoda quilha, como se o barco tivesse sido feito por um arteso e no umcarpinteiro. Mas sua estupefao chegou ao pice quando, ao ouvir umgemido, percebeu que uma pessoa estava deitada de bruos, amarradapor um dos braos pequena embarcao.

    Por Valys! murmurou Brion. Roupas vermelhas! As ondastrouxeram uma donzela da nobreza at aqui!

    Como se houvesse percebido a presena do pescador, a jovem tentou semover, tossindo. S ento viu o interior da pequena nau quase todotomado por gua do mar, concluindo que a jovem, vtima das fortestempestades dos ltimos dias, tivesse tentado escapar... Mas no haveriade ter vindo sozinha, pensava enquanto desatava o n que a prendia,pois no seria possvel que tivessem deixado uma nobre singrar os maresdesacompanhada. Apoiando o corpo da jovem no seu, ajudou-a a sesentar na areia, pacientemente aguardando at que ela expelisse toda agua de seus pulmes.

    Sei como ruim engolir tanta gua salgada, havia esperado atque ela se recompusesse, falando em tom calmo, olhando para os cus. por isso que navego somente quando as mars esto tranquilas. Eudeveria saber que os mares iriam trazer algo diferente hoje, pois hmuito no vejo as gaivotas to cedo aqui em Mitarna... Mas, antes queme esquea, meu nome Brion...

    A jovem, ainda com os olhos fixos na areia, disse, como se sussurrasse:Eu sou... Deora.Ainda por alguns instantes o pescador aguardou, como se esperasse o

  • enfadonho discurso de um nobre, dizendo seu nome, linhagem e terrasque possua, mas a jovem permaneceu em silncio.

    Mas de onde vens, Deora, e onde esto aqueles que contigo vieram? ele a fitava, seus olhos tomados por dvidas sinceras. Se fostesvtima de um naufrgio, o que no algo comum nas guas de Vlyn,temos condies de tentar localizar teu navio... Ainda assim, a ltimaforte tempestade ocorreu trs dias atrs. Quem cuidou de ti durante todoesse tempo?

    Mas Deora no disse palavra alguma. Seus pensamentos estavamvazios por mais que tentasse se recordar de algo, o que passava porsua mente eram apenas lembranas inertes, fragmentos de memria,escassas peas do quebra-cabeas que era sua vida.

    Eu... apoiou a cabea nas mos, numa tentativa surda de seprender a algum elemento que pudesse esclarecer-lhe algo sobre o queestava fazendo ali e de onde viera. Eu no lembro... De nada.

    O sorriso deixou os lbios de Brion quando o pescador tentou imaginarque eventos poderiam ter ocorrido recentemente na vida da jovem paraque esquecesse tudo, a no ser seu nome. Mas, acreditando serpassageiro, o pescador se ergueu lentamente e, com o sol s suas costas,vislumbrou o ornamento de pedras verdes no pescoo de Deora.

    Parece-me mesmo que tu pertenas nobreza, jovem. voltou-separa a direo do vento, esperando dele as respostas para as perguntas. Mas h coisas que riqueza alguma pode nos dar.

    Deora o fitou por alguns instantes, vendo seus cabelos grisalhosbrilhando ao sol. As feies do pescador denotavam a simplicidadedaqueles que vivem uma existncia pacfica, suas rugas, profundas,revelando as noites de sono perdidas espera de alimento. Entretanto,mais do que isso, eram os olhos de Brion, tintos de um azul profundo,que inspiravam confiana, pois Deora acreditava que j havia fitado olhoscomo esses em algum lugar, h algum tempo. E foi essa confiana que afez questionar, aceitando as respostas de Brion como totalmenteverdadeiras:

    Onde aqui? Esta praia...? Essa Mitarna?...No te contarei apenas sobre Mitarna, mas tambm sobre Vlyn. o

    pescador sorriu, abrindo os braos, sentindo-se como um narrador de umconto antigo. Esta ilha chamada de Vlyn, e lar daqueles queousaram deixar o Grande Continente quando navegaram para o sul.Minha vila, Mitarna, no mais que uma pequena comunidade pesqueira,que sobrevive com as bnos dos deuses que nos do o suficientequando jogamos nossas redes ao mar. E, do nosso ancoradouro, passamas naus que carregam ametistas com destino ao Grande Continente e asespeciarias, gado e ao que recebemos em troca. Contudo, a vila de

  • Jollern, a cerca de seis horas daqui, que extrai as ametistas, pois forameles que abriram a mina na parte sudeste da ilha... olhou novamentepara os cus, vendo a posio do sol no firmamento. Mas aguarda umpouco. Vou at minha casa pegar algum bom alimento para ti, masretornarei em breve.

    Deora ouvia a tudo com ateno, como se procurasse buscar umlampejo de memria atravs das palavras de Brion, mas sua tentativaresultou infrutfera. Ainda assim, ela sorria.

    uma bela ilha, com certeza, Brion. Eu esperarei por ti e... Obrigada.Obrigada por tudo o que fazes por mim.

    O pescador pensou que jamais ouviria uma nobre agradecer por algo edeixou que o brilho nos seus olhos revelasse isso. Com uma marcharpida, prontamente seguiu na direo de uma trilha que levava pequena comunidade pesqueira.

    Sentindo-se recuperada, Deora se ps em p e olhou para seu reflexona gua acumulada na pequena embarcao que a havia trazido at Vlyn seus cabelos estavam em desalinho e seu vestido pudo em algunspontos, at mesmo deixando mostra seu ombro esquerdo. Mas era noadorno de esmeralda que trazia em seu pescoo, brilhando como se delepulsasse vida, que seus olhos se fixaram.

    Tocando sua gargantilha, por um instante, vislumbrou um claro emmeio escurido de sua memria uma nica cena, mas suficiente paraque a jovem se sentisse no mais to s: era o momento em que algumcolocava no pescoo de uma recm-nascida aquela joia. Deora, de algumamaneira, soube que era a garota, mas ainda no se recordava de maisnada...

    Certas lembranas devem ser deixadas para trs, criana.A voz parecia ter vindo de todos os lugares, despertando Deora de seu

    sonho acordado. Volvendo os olhos pela extenso da praia, no encontrouningum. Era, com certeza, uma voz feminina e suave, mas a jovemduvidava que houvesse sido fruto do pequeno lampejo de memria quetivera. Mas ao ver Brion, j retornando com uma pequena cesta de vime,acenando para ela, a jovem ousou pensar que sua imaginao estavapregando-lhe peas.

    bom ver que j te levantaste. o pescador deixou a cesta na areiae se sentou. Karina, minha esposa, ficou feliz em saber que teramosuma nobre hspede em nossa casa hoje... claro, se aceitares nossoconvite.

    A jovem deixou todas as preocupaes de lado ao sentir o aroma de podoce com frutas e leite quente mesmo antes da cesta ser aberta. A fome,algo que Deora enfrentara nos ltimos dias, agora se mostrava com todoo vigor, e o pescador notou isso em sua face.

  • No mais fiques em p, Deora. A comida deve ser saboreada junto areia e s ondas. O po acabou de sair do forno e o leite foi tirado hpouco. riu ao ver que ela ainda no se mexera. Vamos, o queaguardas? Um convite formal?

    A jovem se contagiou com o riso de Brion e, sentando-se ao seu lado,compartilhou da mesma alegria. Juntos, dividiram o po e tomaram damesma jarra de leite. Nobre ou no, pensava o pescador, Deora era umapessoa de excepcional simplicidade.

    Quando o sol estava alto, os dois juntaram as coisas e seguiram emdireo casa do pescador. Pelo caminho, Brion mostrava tudo o quehavia, chamando cada planta e cada animal por seu nome particular,revelando saber mais do que apenas contar histrias. E, no muitodepois, avistaram uma construo de alvenaria, humilde em suaaparncia, singela em seus detalhes, um pouco afastada da vila, poissomente ao longe outros rolos de fumaa subiam aos ares...

    Um fogo estava aceso em um amontoado organizado de pedras, tal qualum fogo improvisado, e sobre ele peixes assavam. Ao lado, uma jovemos recebia sorrindo.

    Karina, esposa de Brion, tinha os cabelos, da mesma tonalidade de seusolhos castanhos, em tranas, brilhando sob o sol, enaltecendo a beleza desua fronte. Suas roupas, um misto de vestido e avental, estavam umpouco impregnadas com aroma de especiarias, mas Deora parecia maisimpressionada com os quinze ou dezesseis anos que aparentava possuir.

    Meu marido! tinha uma voz juvenil. Comeava a me preocuparcontigo, pois mesmo trazendo to nobre visita no te costumas demorar.Minha senhora, ela fez uma reverncia. s nossa hspede e sou tuaserva durante tua estada. Algo que possa fazer para te servir nesteinstante?

    Deora olhou para Brion com olhos indagadores, mas o pescador apenassorriu, sem nada dizer. Um pouco encabulada, aproximou-se de Karina,erguendo-a.

    Devo ser eu tua serva, minha anfitri, pois a ti e ao teu marido devotoda a retribuio por vossos cuidados. Dessa forma, somos iguais, enenhuma de ns tem algo a dever. Somos Deora e Karina, e no servasuma da outra.

    O sorriso de Brion cresceu enquanto as duas se abraavam como sevelhas amigas fossem. E, enquanto conversavam, o pescador cuidou determinar a preparao do almoo para que os trs pudessem comer comas bnos dos deuses.

    Aps almoarem, descansaram sob a sombra de uma figueira que Brionse orgulhava de ter plantado. Riram. Conversaram sobre muitas coisas.Deixaram que a noite casse antes de retornarem aos seus afazeres

  • Brion cuidando de seu barco, Karina de seu jantar. Sozinha, brindada pelamais prateada das luas, Deora deixou que o sereno e a calmaria fossemsuas nicas companhias.

    Esta noite venho busc-la, criana.E novamente Deora olhou ao redor, no vendo ningum. Era a mesma

    voz que ouvira na praia, ecoando como se viesse de todos os lugares.Lentamente, caminhou em direo casa, ainda volvendo o olhar para secertificar de que ningum mais estava l.

    Disseste algo? perguntou para a senhora da casa. Acho que ouviuma voz me chamar...

    No, Karina se virou por um momento, ainda mexendo umapanela. e tambm nada ouvi, embora estivesse absorta em minhaculinria... provou um pouco com uma colher menor de madeira,sorrindo em aprovao. Teremos sopa de legumes. Queresexperimentar?

    Deora balanou a cabea em negativa e se sentou junto ao pilo queguardava um dos cantos do cmodo, ainda pensando na voz que ouvira.No muito depois, Brion retornou, sua face tomada pela expresso dequem fez bem o seu trabalho. Aps o pescador pegar uma cumbuca,vido pela comida de Karina, as duas tambm puderam comer, desta vezsem conversarem muito devido ao cansao.

    Depois da frugal refeio noturna, a dona da casa preparou uma camade palha improvisada para Deora, no tardando at que todos estivessemdeitados. Ainda observando o curso da lua pelo cu, atravs da janela docmodo onde estava repousada, a jovem nufraga se deixou dominarpelo sono.

    E seu sonho fluiu com vagar, mesclando memrias perdidas comfantasias desordenadas, em um catico ir e vir de imagens e sons semsentido e sem direo. Mas, emergindo desse turbilho difuso, um brilhotomou lugar, ofuscando e inebriando, at que Deora viu uma velha todavestida de branco no centro de uma encruzilhada, com quatro objetos aosseus ps. Um a um, flutuando e girando em torno da anci, eles setransformavam: uma espada, um clice, uma moeda de prata e ummanto. A luz, ento, comeou a ofuscar a viso novamente, impedindoque qualquer outra coisa fosse vista e, quando no mais a jovem pdesuportar o brilho, ela acordou.

    A lua no estava mais no cu, embora a noite ainda imperasse, comose no houvesse lugar para o nascimento de um novo dia. Levantando-sesilenciosamente, a jovem viu seus anfitries alheios a tudo, com exceodo deleite de seus sonhos, dormindo abraados com seus corposencaixados um no outro, enquanto caminhava em direo a uma bacia decobre onde havia gua para lavar o rosto e as mos. Aps cuidar um

  • pouco de seus cabelos castanhos, Deora saiu da casa para sentir a brisada madrugada. Tentava, sob a bno da noite, descobrir algumsignificado para seu estranho sonho, mas a imagem da anci que a fitavalongamente no saa de sua mente.

    Se quer as respostas, criana, siga para o sul.Era a terceira vez que a voz se fazia ouvir. Deora, porm, estava

    disposta a pr um fim nesse jogo de mistrios, deixando tudo para trs,sem ao menos avisar seus anfitries. Caminhando por uma trilha queseguia para a direo sul, evitando a vila de Mitarna, deixava que aousadia tomasse o lugar do receio, a confiana dissipasse a dvida e, comessas armas em seu corao, atravessava a distncia que a separava deseu destino.

    Quando o sol despontou no horizonte, a jovem avistou uma figuraenvolta em trajes rubros que tremulavam ao vento como a chama crepitana fogueira. Encoberta pelo manto, a uma mulher deixava somente suasmos e sua face mostra, embora uma mecha de cabelo ruivo escapassepor baixo do capuz.

    Ao se aproximar da encruzilhada, Deora sentiu que havia passado poralgum tipo de teste, pois a mulher sorriu em aprovao. Antes que ajovem principiasse a falar, a mulher ergueu seu brao direito, com a moespalmada mostra. Contudo, no foi o gesto que calara Deora, mas aimagem de uma chama, marcada a ferros em sua mo, to ntida queparecia ter sido feita recentemente.

    Sua curiosidade a impele adiante com vigor, criana. Agradeo por tervindo at aqui.

    Era a mesma voz que por trs vezes havia falado jovem. Porm,dessa vez, no ecoava, partindo apenas daquela figura misteriosa queparecia esconder segredos para os quais no estava preparada... Ainda. Aboca de Deora novamente se abriu para falar algo, mas a mulher ainterrompeu com o olhar, retornando em seguida o brao para suaposio natural:

    Sei que h muitas perguntas, criana. Mas, por hora, basta saber quemeu nome Mirhaanna. Sente-se pronta para caminhar?

    Deora tinha a ntida impresso de que a mulher j a conhecia ou, aomenos, estava destinada a encontr-la. Haveria de segui-la, mas atonde? E por qu?

    Antes preciso avisar Brion e Karina. Eles foram to bons ao cuidar demim que no posso partir sem, ao menos, lhes dizer algo. Chamar-me-ode ingrata...

    Est morta, criana. a voz de Mirhaanna se tornara spera como ofogo que consome a madeira verde. Ou, em breve, estar.

    Deora estacou, plida, e olhou ao redor, como se esperasse que dezenas

  • de assassinos surgissem do nada. Instintivamente buscou algo no cinto,mas nada havia para usar como proteo se fosse atacada...

    Mirhaanna novamente sorriu e comeou a andar, como se apreocupao da jovem no a afligisse. No entanto, ao perceber que Deoracontinuava imvel, voltou-se e disse:

    por isso que no a chamaro de ingrata, criana. Mas, por causa demeu atraso em vir aqui, tenho de fazer com que o pescador e sua mulherpensem que est morta, ou melhor, que nunca tenha existido.

    Quer dizer que vinha ao meu encontro? a jovem se aproximou deMirhaanna. Sabia que eu chegaria a Vlyn? Como?...

    Sem se voltar, a mulher respondeu:Tudo ao seu tempo, criana. Quanto mais nos demorarmos, mais

    longe estaro as suas respostas.Apressando o passo para se manter ao lado de Mirhaanna, Deora

    arriscou uma ltima pergunta:Mas para onde vamos?Mirhaanna suspirou longamente. Teriam os sinais sido mal

    interpretados?Piros. murmurou, olhando adiante.Caminharam at o sol ficar por sobre elas, imponente na abbada

    celestial, imperando como h eras fazia, sem intervir nos afazeres dosmortais e dos deuses. Percebendo que a jovem no mais suportariacaminhar, tanto pelo calor como tambm pelo cansao, Mirhaanna indicoua sombra de um abeto e, de sob o manto, retirou um odre cheio de guacristalina, o qual ofereceu a Deora. A jovem agradeceu com um sorriso e,depois de saciada, retornou o recipiente a Mirhaanna. Porm, umapergunta ainda teimava em ecoar na mente da jovem:

    Mirhaanna... Sobre minha morte... Eu no vou morrer, correto?Claro que vai, criana... a aspereza da voz de Mirhaanna assustou

    Deora. Todos vamos, um dia. Mas alguns morrem e renascem sem quese deem conta.

    No consigo compreender. Morte e renascimento?Mirhaanna, ento, assumiu uma postura de quem olha para o vazio,

    recordando-se de algo. Estaria Deora pronta?Conhece a verdadeira histria de Vlyn, criana?Sei sobre a formao de Mitarna e Jollern... Sei que a ilha ainda

    pouco explorada e escassamente povoada...No, no... Mirhaanna balanou a cabea. No isso, criana.

    mirou nos olhos da jovem. Precisa saber a verdadeira histria.Deora assentiu, em silncio. Aqueles olhos demandavam obedincia.A ilha de Vlyn um altar. Porm, o que existia de sagrado aqui era a

    morte sempre viva, uma bno e uma maldio sem par. Mas deixemos

  • que a histria siga seu fluxo correto e partamos do incio de tudo...Mirhaanna ergueu-se e Deora, sem compreender, levantou-se tambm.

    Retomavam a marcha em direo ao sul.No h como lhe contar tudo, criana. O que tenho a dizer descrito

    em dezenas de tomos msticos, mticos e lendrios, e por isso queminha histria pode parecer truncada ao resumir todos essesconhecimentos em uma simples narrativa... No incio dos tempos, Luz eTreva dividiam o Todo e, da sua unio, nasceu o Eterno, o maior dentretodos os deuses. Sozinho, pois Luz e Treva retornaram ao Todo como sole lua, o Eterno concebeu a criao dos quatro primeiros deuses: Hiljam,Berilla, Nivus e Dalya. Abenoando seus filhos, respectivamente, com osdons da luz e sabedoria, magia e essncia, amor e paz, treva e cura, oEterno voltou ao Todo, onde se transformou nas estrelas. Mas os quatroprimeiros deuses tambm se uniram para gerar seus filhos: Nivus eBerilla deram forma a Andora, a natureza, e Valys, o artfice; Hiljam eDalya conceberam Lapher, senhor da justia, e Gwyanna, senhora da vidae morte. Est compreendendo?

    Todas as imagens passavam pela mente de Deora, como se estivesseapenas se recordando de algo h muito reservado nos recnditos de suasmemrias. A jovem assentiu.

    A obra mais divina da criao dos deuses se iniciou com um ato deautossacrifcio de Andora, a deusa da natureza, que fez de seu seioesquerdo nosso mundo... Mas todos os deuses tomaram parte na criaoe, em verdade, somente quando o mundo estava quase todo pronto quea deusa viu o resultado de seu ato. E foi da sua mais pura lgrima dealegria que toda a vida nasceu. O exato lugar onde a lgrima divina caiu hoje o centro do Grande Continente...

    um pouco confuso...Mirhaanna riu com a interrupo da jovem, percebendo que, muito

    lentamente, Deora compreenderia o verdadeiro significado de tudo. Emseu ntimo, Mirhaanna sabia que estava fazendo a coisa certa ao levarDeora para Piros.

    Isso, criana, um dos grandes mistrios que se oculta em Piros. Emsuma, tudo criao dos deuses... E por isso, tudo, sem exceo, divino.

    Havia um brilho no olhar de Deora, mas permaneceu em silncio.Mas no deixemos que a histria perca seu rumo. Apesar de ter

    contribudo ativamente para a formao do mundo, Gwyanna, a deusa dociclo eterno da vida e morte, estava insatisfeita. Ela via, em todos oslugares, a vida ser reverenciada, enquanto morte era relegada aexistncia secundria. Em um lapso de insanidade, Gwyanna concebeu ailha de Vlyn.

  • Insanidade? interrompeu novamente Deora.Se me deixar terminar, criana, entender... Das mos do artfice

    Valys a ilha foi formada, mas Gwyanna pessoalmente concedeu aessncia mstica do local, tornando a ilha um altar para a morte... Emcontraposio ao Grande Continente, que era seu altar para a vida. EmVlyn, aqueles que morressem retornariam uma vez mais.

    Um arrepio percorreu a espinha de Deora ao saber que estava em umlugar que, apesar de ter sido concebido por uma deusa, era amaldioado.Mas a jovem nada disse e continuou a ouvir a narrativa.

    Gwyanna atraiu diversas criaturas para Vlyn e, utilizando-se do poderde sua essncia mstica, ceifou suas vidas com um nico ato. Com asmortes maculando o solo de Vlyn, a maldio da morte sempre viva foialimentada e as criaturas retornaram como mortos-vivos. Em sua insanaalegria, Gwyanna impeliu suas criaturas adiante e fez com que atacassemo Grande Continente.

    Deora imaginou um exrcito de criaturas fantasmagricas e disformesatravessando os mares, destruindo naus e assaltando cidades, nopodendo ser por nada atingidas. E tais pensamentos nublaram sua mentepor alguns instantes, pois no se recordava de como havia alcanado aspraias de Mitarna em um pequeno barco.

    Mas a pior dentre todas as criaturas eram os Drages de Ossos.Criadas a partir da morte de drages to altos quanto torres, trs dessascriaturas trouxeram o verdadeiro caos e a mais pura destruio aoGrande Continente. Somente as cinzas restariam se no fosse ainterveno do Fnix.

    Mirhaanna ainda olhava para o vazio, seus olhos brilhando a cadapalavra dita.

    O grande pssaro de chamas, testemunha da criao da obra divina,guardio da essncia flamejante... Era o pssaro de Berilla, a deusa damagia, dado a ela por Nivus, seu consorte, deus do amor e paz. O Fnixsabia que o momento de deixar o mundo de Andora havia chegado e quebatalhar contra os trs Drages de Ossos era seu ato final.

    Em silncio, Deora viu uma lgrima rolar pela face de Mirhaanna. Oque haveria de to importante naquela histria?

    Em uma batalha sem par, o Fnix se sacrificou, explodindo emchamas, destruindo-os, enquanto se exauria em suas prprias labaredas. um sorriso, ento, deu lugar lgrima de Mirhaanna. E das chamasnasceu um jovem Fnix, que guardaria o mundo de Andora por muitotempo. No entanto, o ato do pssaro flamejante no somente destruiu osDrages de Ossos como tambm purificou toda a ilha de Vlyn. Com amorte e a vida, extino e nascimento do Fnix, fim e comeo, a ilha deVlyn no precisava mais ser um altar para a morte sempre viva e a

  • maldio deixou de existir.O ciclo da morte e vida voltou a ter fora sem que a ilha precisasse

    ser seu canalizador... interveio Deora. exatamente isso, criana. sorriu Mirhaanna. Mas ainda h

    mais um ato que deve ser narrado.A jovem assentiu e pacientemente aguardou enquanto a outra tomava

    mais um gole da cristalina gua de seu odre.Tudo o que lhe disse at o momento pertence esfera das lendas.

    Apesar de acreditar com toda a fora de meu corao em cada umadaquelas palavras, nada posso provar. Mas o que agora vou lhe dizerrealmente ocorreu e no h motivo para dvidas: h exatos oitenta eoito anos, Berilla, a deusa da magia, morreu.

    A jovem estremeceu ao ouvir isso, embora em seu corao sentisse queas lgrimas um dia derramadas pela morte da deusa j haviam secado.

    Berilla ousou desafiar os outros deuses, vindo ao Grande Continentesem sua permisso, para atravessar o labirinto sob as Montanhas Maradijunto de mortais. Ela foi advertida de que, se desejasse continuar, osdeuses retirariam sua essncia divina e ela seria apenas mais umamortal... Mas se desistisse de sua empreitada, manteria os poderes quefaziam dela uma deusa.

    Berilla disse que continuaria... murmurou Deora.H mais caractersticas mortais em um deus do que eles ousam

    especular, criana. Mas, ao afrontar os deuses, teve de si retirada acondio divina, partindo junto aos mortais como uma igual. O labirinto,porm, apresentava-se como um grande desafio at mesmo para umadeusa e, por diversas vezes, pensaram em retornar. Com Berilla sempre frente, foram emboscados. A deusa da magia foi atingida com umferimento mortal e sua dor fez com que um impulso de sobrevivnciaviesse tona... Instintivamente ela drenou toda a essncia msticaexistente e, naquele momento, a magia, como era conhecida at ento,acabou.

    Aquelas palavras atingiram Deora como um fulminante raio. Naqueleinstante, sentiu uma dor em seu corao, suficiente para quevislumbrasse um beb, ainda no colo, envolto em panos de linho em tonsde terra, chorando muito, como se houvesse sido atingido por algoinfinitamente poderoso...

    A deusa da magia foi levada por seus companheiros e, enfim,alcanaram o lendrio Castelo da Luz, local onde todas as mculasmortais teriam fim. Mas suspirou Mirhaanna Berilla era umadeusa... Nada salvaria sua vida.

    Deora olhou para o ocaso, tentando compreender que foras teriaminfluenciado a deciso de uma deusa para que deixasse para trs o manto

  • da divindade, tornando-se una com os mortais, mas no chegou resposta alguma.

    Existia magia... Ningum tentou curar seus ferimentos magicamente?A mulher olhou para a jovem com um olhar de ligeira desaprovao.Acredito que seus pensamentos ocupam tanto de seu tempo, criana,

    que no permitiram que ouvisse o que disse h pouco... H muito aaprender, mas no ser uma mente dispersa que compreender tudo oque h para ser ensinado. Eu disse que Berilla drenou toda a essnciamstica de Andora... No havia como magia alguma ser realizadanaquelas circunstncias... No a magia que conheciam.

    Murmurando um pedido de desculpas, Deora voltou a se concentrar.Havia tanto para saber, mas to pouco tempo...

    A indagao faz parte do crescimento, criana, mas deve aprender acontrolar o impulso de chegar sozinha aos lugares onde somente com aajuda de algum alcanar... ela balanou a cabea. Nada foi capazde salvar a vida de Berilla. Ela ainda tomou em suas mos o fio de suavida por muito tempo, mas houve um dia em que o fardo se tornoupesado demais... E, como lhe disse, h oitenta e oito anos a deusa damagia morreu...

    A jovem novamente percebeu os olhos dela se encherem de lgrimas,mas a mulher conteve sua emoo, fazendo com que secassem antes queDeora pudesse dizer algo.

    A morte de toda a magia continuou Mirhaanna. foi um eventomuito mais desastroso do que qualquer ser, mortal ou divino, poderiasupor. O fim da magia, porm, no foi o que mais nos atingiu... Foi...

    A mulher ficou calada. Deora esperou por alguns instantes, maspercebeu que nada mais seria dito.

    O que houve, Mirhaanna? a jovem rompeu o silncio. Qual foi apior consequncia do fim de toda a magia?

    A mulher parou de andar por um momento e olhou para Deora, com aface da mais pura tristeza, coroada por um rio de lgrimas que teimavaem descer sem cessar.

    A morte de quase todos os seres msticos e fantsticos de Andora.Subitamente, imagens desconexas passaram diante dos olhos de Deora,

    rodopiando e girando to rapidamente que uma vertigem repentinaacometeu a jovem. Um pouco fora de si, ela comeou a balbuciar:

    Gritos... Sangue... Eles caam por todos os lados... Uns poucosemitiam gritos to terrveis que podiam gelar os ossos... Mulheres viamseus filhos morrerem em seus braos... Crianas se agarravam aos corposinertes de seus pais... Lgrimas... Choro... Morte... Morte ao meu redor...

    Num timo, Mirhaanna secou as lgrimas e ps as mos por sobre osombros de Deora, sacudindo-a para que voltasse a si. Por algum tempo

  • disse o nome da jovem, em vo, at que Deora, com a face em agonia,olhou para Mirhaanna e fez uma simples pergunta:

    Por qu?A mulher a abraou como uma me abraa a filha desamparada,

    esperando que a serenidade voltasse a reinar. Aps algum tempo, sob osltimos raios do sol que se punha, Mirhaanna voltou a falar:

    Vejo que foi muito afetada por essa histria, criana. como sesentisse a dor dos elfos de Amtal quando Berilla deixou este mundo...

    Elfos de Amtal?Mirhaanna voltou a caminhar para o sul e instigou Deora a fazer o

    mesmo, enquanto respondia a pergunta da jovem, j podendo observar onascimento da primeira estrela noturna:

    Est vendo aquela estrela amarelada, criana? Ns a chamamos deestrela de mbar... Surgiu quando Berilla morreu, como um sinal de quesempre estaria a velar por ns, mesmo junto ao Eterno... Mas no voume esquivar de lhe esclarecer sobre a tragdia de Amtal ou o que houvecom os elfos.

    O que so esses elfos? estranho que no se recorde nem mesmo dos elfos, criana... O

    povo lfico foi um dos primeiros a compreender a existncia dos deuses ea ter conscincia de si como criaturas que podiam pensar e moldar omundo ao seu redor. Sua longevidade os fazia viver por sculos e no erararo que manifestassem grande aptido para a magia em sua mais puraforma, mas isso foi na Era Dourada.

    Era Dourada? como chamamos o tempo em que viviam entre ns, humanos. Mas

    todos partiram no Grande xodo.Como eram esses elfos? Deora parecia cada vez mais interessada.Eram mais esbeltos, embora um pouco mais baixos, e alguns tinham

    uma compleio robusta, todos ostentando orelhas levemente pontudas.Porm, estamos nos desviando do curso correto do tempo. Deixe-me falarsobre Amtal. Era uma cidade onde os elfos e outros povos fantsticosviviam em harmonia e seu crescimento se refletia nas cidades vizinhas...At Berilla morrer e a essncia mstica ser drenada... Em uma nicanoite, toda a populao de Amtal pereceu. Hoje, a cidade em runas umlugar maldito e somente poucos se atrevem a entrar pelos portesguardados por mortos-vivos.

    Mas onde...?Longe daqui, criana. interrompeu Mirhaanna. A Necrpole de

    Amtal fica no Grande Continente. No se preocupe com isso.Deora assentiu com um movimento de cabea, um pouco aliviada.Os elfos, ento, perceberam que a morte da magia no havia atingido

  • somente seu povo, mas tambm todos os povos msticos e fantsticos.Sabendo disso, o conselho de ancios de radan, a primeira cidade lfica,foi convocado e, aps discutir por sete luas, finalmente chegou a umconsenso: era necessrio que deixassem o Grande Continente e que umnovo local fosse encontrado para que pudessem viver como antes. Apalavra dos ancios correu e alcanou a todos, retornando com aanuncia dos grandes lderes de cada povo. Foi assim que, h sete anos,o xodo dos Filhos de Andora ocorreu.

    Deora escutava como se aquilo houvesse sido parte de sua vida. Noentanto, nada parecia se encaixar corretamente, como se diversos elosda corrente estivessem perdidos nas encruzilhadas do tempo. Contudo, ajovem no ousava mais especular sem que a histria toda lhe fossecontada, para que nenhum outro elo se perdesse.

    H sete anos, continuou Mirhaanna. galees lficos partiram dePorto Sernia, em Siarit, no Grande Continente, rumo ao inexplorado edesconhecido sul, onde buscaram terras novas para se viver. Nosomente elfos embarcaram como tambm muitos outros seres, deixandopara trs apenas os humanos ou aqueles que poderiam prejudicar ajornada.

    Prejudicar?Sim. Criaturas malignas foram abandonadas prpria sorte para que

    sobrevivessem num mundo sem magia. E so, hoje, a grande mcula doGrande Continente, inimigos mortais dos humanos.

    Mas as criaturas foram deixadas para morrer!Isso no deveria fazer com que se voltassem contra ns, como se nos

    culpassem das mortes de seus povos, quando a verdadeira causa era amorte da magia. Ainda assim, no me interrompa, pois falta muito poucopara concluir essa histria.

    Tudo bem. disse a jovem, olhos agora na lua cheia que iluminava aface de Mirhaanna.

    A magia morreu... Os galees partiram... A Era Dourada teve fim...Mas os humanos no desistiram facilmente e a prova disso foi a busca poruma nova magia, iniciada por aqueles que conheciam o paradeiro dealguns itens que continham a essncia dos deuses. Um desses grupos defeiticeiros veio para Vlyn e encontrou o que buscava.

    A mulher seguiu o olhar de Deora, sorrindo ao ver as centenas deestrelas que j povoavam os cus naquele instante, a marca do Eterno,testemunha silenciosa de tudo o que ocorria. A jornada logo teria fim,sabia, pois o caminho que percorriam j era, h muito, seu conhecido.

    Com os saberes adquiridos, os feiticeiros passaram a erguer um lugarpara que pudessem desenvolver suas habilidades sem que seus estudosfossem perturbados pelos mortais que no dispunham do dom mstico

  • verdadeiro. No tardou at que uma verdadeira confraria fosse formada,seus membros passando a serem reconhecidos por mantos de cor rubra.

    Ao som daquelas palavras, o traje de Mirhaanna pareceu se tornarcomo a chama da fogueira que cresce quando alimentada. Mas no foiapenas isso, pois o prprio manto comeou a emitir uma suave luzbruxuleante que iluminou a face da mulher de forma sombria.

    Eles formaram a Ordem Vermelha, a maior confraria de feiticeirosque j existiu. O local que construram foi uma torre onde todos os seussegredos foram guardados. E essa torre se chama...

    Ao virar a ltima curva da trilha, Deora avistou uma construomajestosa, formada de tijolos vermelhos como rubis, quase brilhandoentre duas piras que, como sentinelas atentas a tudo, guardavam ocaminho principal. A construo escarlate possua quatro andares, mas seimpunha como a maior obra do mundo, graas a sua majestade silenciosae beleza incomparvel. Era, supunha a jovem, a torre de que Mirhaannahavia falado, e sem dvida seu destino final. Com uma admirao contidae uma voz solene, Deora completou a ltima frase do discurso deMirhaanna:

    ...Piros.A mulher sorriu, satisfeita. Enfim, havia trazido a jovem para l e a

    primeira parte da tarefa estava cumprida. Aps se aproximarem das duaspiras acesas, Mirhaanna deu trs passos em direo torre, mantendo-seto distante das chamas quanto Deora. O vento comeou a soprar maisforte.

    chegado o momento de tua morte. Mirhaanna passou a um tommais formal, embora no aparentasse demonstrar emoo.

    Deora sobressaltou-se, mas nada disse. No entanto, seus pensamentoscomearam a buscar algo indefinido, como se fosse sua nicaoportunidade de sobrevivncia.

    Ests preparada para morrer?Olhando ao seu redor, Deora percebeu que muitas outras figuras se

    aproximavam, ainda envoltas pela penumbra, e soube, naquele instante,que no haveria fuga. Volvendo seus olhos para as duas piras e paraMirhaanna, que aguardava sua resposta, Deora se lembrou de seu sonhoe ousou trilhar um caminho diferente:

    Estou em uma encruzilhada, Mirhaanna. Norte o meu ponto, sul oseu... As chamas guardam o leste e o oeste. O que me aguarda?

    Um murmrio de espanto foi ouvido por um instante, emitido poraqueles que cercavam a jovem. Porm, assim como a voz de Deora haviadado origem ao murmrio, a de Mirhaanna o extinguiu.

    O que h nesta encruzilhada?Os olhos de Deora viam a si mesma, duas piras e Mirhaanna. Mas os

  • olhos de sua alma, aqueles que vivenciaram o sonho, enxergavamapenas os quatro objetos que antes se encontravam aos ps da figuraonrica misteriosa.

    Uma espada, um clice, uma moeda de prata, um manto.Um novo murmrio se fez ouvir, mas se encerrou antes que Mirhaanna

    pudesse continuar a questionar Deora:O que buscas?Conhecimento.E o que fars quando alcan-lo?Dele farei uso, para que outros possam ser, por ele, iluminados.E, pela ltima vez, as vozes se levantaram como se sussurrassem entre

    si. Contudo, todo o som, inclusive o farfalhar das folhas e o caminhar dovento, teve seu fim quando Mirhaanna se aproximou de Deora com trspassos largos.

    Antes de prosseguirmos, preciso que prometas jamais revelar ossegredos que existem em Piros. Assim o fazes?

    Sim, Mirhaanna.Que assim seja, ento. A ti cabe escolher como devers morrer. Qual

    o teu desejo?Deora mordeu o lbio inferior, olhando no fundo dos olhos de

    Mirhaanna como se suplicasse surdamente por ajuda. Naquele instante,recordou-se de todos os ensinamentos que lhe haviam sido passadosdurante a jornada que juntas trilharam. De repente, havia uma sada.

    Desejo morrer como o Fnix.Tua morte ser um sacrifcio em prol de quem?A jovem observou as duas piras que incessantemente crepitavam sob a

    luz do luar e volveu os olhos para a magnfica torre. A resposta estavadiante dela:

    Meu sacrifcio por Piros.Mirhaanna pareceu sorrir por um instante, mas Deora no sabia se era

    de aprovao ou ironia. A mulher, ento, ergueu a voz mais uma vez:Tuas sete respostas foram satisfatrias... Amarrem-na!Dois seres que se moviam na escurido da noite rapidamente agiram,

    atando as mos de Deora e vendando-lhe os olhos. Com apenas a audiopara gui-la, a jovem temeu por sua vida, mas tranquilizou-se ao ouvir avoz de Mirhaanna uma vez mais:

    O ar que te envolve possui o poder de te dar o primeiro sopro devida, assim como o de impedir que respires. Se respeitares o ar, d umpasso adiante.

    O vento rodopiou ao redor de Deora, envolvendo-a, quase fazendo comque perdesse o equilbrio. Ainda assim, a jovem venceu o medo da dvidae deu o primeiro passo. O vento cessou.

  • A gua tem o poder de curar quando usada com sabedoria, mas podematar quando corrompida. Se respeitares a gua, bebe do cliceenvenenado e d um passo adiante.

    Aos seus lbios foi trazido um clice cheio de um lquido de odor acre.Deora podia sentir o aroma de dezenas de venenos misturados, mas seutemor no foi capaz de venc-la, pois sabia que o Fnix devia sesacrificar para poder renascer. A jovem sorveu todo o contedo do clicee, quando este foi retirado de seus lbios, mesmo tonta com todos osvenenos que agora corriam junto de seu sangue, deu o segundo passo. Atontura findou.

    A terra em que pisas guarda o poder de te sustentar, assim como o defazer com que caias nos mais profundos abismos. Se respeitares a terra,d um passo adiante.

    Deora pde perceber um ligeiro tremor sob seus ps, rachando o solo ecriando valas e crateras. Seus ps se moldavam justamente ao pequenopedao de solo ainda intacto e sentia que tudo o mais era vazio. Mas nomais temia e deu seu terceiro passo. Experimentou a terra intacta sobseus ps.

    O fogo que arde pode aquecer a noite fria e incendiar o abrigoderradeiro. Se respeitares o fogo, d um passo adiante.

    Porm, antes que pudesse executar a ordem, Deora sentiu o calorimensurvel de uma chama diante de si, na altura dos olhos. Estavaprximo o suficiente para que o cheiro de seu cabelo queimando aalertasse com todos os instintos de fuga e pavor. Mas a jovem confiavaem Mirhaanna e sabia, intimamente, que nada lhe aconteceria. Vencendoo temor de ser cegada pelo fogo, deu seu quarto passo. A chama foitirada de sua frente naquele instante.

    A venda e as amarras foram retiradas e Deora se viu diante dos portesda torre de Piros. Mirhaanna sorria com os braos abertos e muitaspessoas se postavam em duas filas cerimoniais, que seguiam das pirasat as colunas dos portes. Erguendo a mo onde se via a chamamarcada a ferros, Mirhaanna disse:

    Os portes de Piros esto abertos a ti, Deora, nossa irm na chama.Vem comigo, por favor.

  • Captulo 2O som de seus passos apressados ecoou pelo corredor que levava aos

    alojamentos dos mestres, cessando apenas quando estacou diante daporta de carvalho macio. Sua respirao ofegante no era fruto dacorrida desabalada, mas de seu nervosismo, ainda incontido ao ajeitar acapa rubra, smbolo dos aclitos da Ordem Vermelha. Antes que fizessequalquer movimento, a porta se abriu.

    Pode entrar, minha irm. Eu a aguardava.Mestra, eu...Sente-se, Deora. interrompeu a outra. Precisamos conversar.A jovem tomou seu lugar em uma cadeira de madeira escura e passou

    a observar o quarto. Era provavelmente a quinta vez que estivera ali nosltimos trs anos, embora parecesse que nunca antes contemplara asestantes repletas de livros sobre magia e alquimia, ou mesmo a imagemda deusa Andora sobre a mesa de centro. Ento sua ateno se voltoupara a mestra que, aps fechar a porta, sentou-se em uma poltronaconfortvel diante dela, com as costas para a janela. O manto vermelho,a face serena, o sorriso de quem sabe das preocupaes e anseios dosmais jovens... Tudo era o mesmo em Mirhaanna, a mulher que aprenderaa respeitar com todas as foras de seu corao.

    Quando li sua mensagem percebi que era algo urgente. a aclitatentava decifrar o olhar misterioso com que a mestra a observava.

    Mirhaanna, por sua vez, considerava sua aluna como um estrategistaconsidera uma batalha. A ela, Deora sempre pareceu ser uma crianacom sede de saber, mas naquele instante, vestida com os trajesritualsticos que lhe cabiam, sua aluna refletia a imagem do que um diaela mesma fora.

    Tem estudado muito, Deora? H algum tempo que no acompanhoseu desenvolvimento.

    A aluna queria crer que talvez Mirhaanna apenas desejasse conversar,mas abandonou de lado esse pensamento ao se lembrar da urgncia comque sua mestra a convocara. Aquilo a deixava um pouco desconfortvel.

    Tenho progredido da mesma forma que a chama consome a vela:meus passos so lentos, mas todo o caminho observado e estudado.

    Em silncio, Mirhaanna questionava se a resposta de Deora, enigmticacomo sua pergunta havia sido, era resultado de seus estudos ou reflexode suas aspiraes. Ela havia aprendido, mas quanto?

    J faz trs anos desde que sua morte e renascimento forjaram suanova vida, minha irm. s vezes, me pergunto se realmente sabe o quehouve.

    A lembrana dos questionamentos diante dos portes de Piros voltou mente de Deora, que nitidamente se lembrava de cada pergunta

  • formulada e resposta dita. Recordou-se tambm dos primeiros dias deaprendizado, quando lhe foi ensinado como reconhecer um irmo nachama por palavras e gestos. Mas o fato que mais marcara sua vida emPiros foi o momento em que Mirhaanna lhe ensinou sua primeira magia.

    Fui iniciada, mestra, Deora deixou que as recordaes vagassempor sua mente. e a iniciao a morte para a vida pregressa, assimcomo o nascimento para uma nova vida.

    Mirhaanna balanou a cabea afirmativamente, ainda contemplandosua aluna.

    E, uma vez iniciada nos conhecimentos da Ordem Vermelha, foiacolhida em Piros?

    Mestra, sabe de tudo isso. Por que faz...?Por que estou perguntando coisas que j sei? interrompeu

    Mirhaanna. Porque a aluna jamais pode esquecer certas coisas. Jamais!Sim, Piros tornou-se minha morada quando recebi o primeiro grau da

    Ordem Vermelha. Deora se rendeu aos questionamentos, por maisintrigada que estivesse. Tornei-me uma aclita e meu trabalho consisteem auxiliar os demais enquanto aprendo com eles.

    Aps assentir com um gesto de cabea, Mirhaanna continuou:O que magia?A lembrana das muitas horas passadas debruada sobre os livros que

    guardavam os mistrios ocultos novamente emergiu com toda a suavivacidade na mente da aclita.

    Magia a manifestao da conscincia individual sobre um fato real,moldando-o de acordo com sua vontade.

    Quais so os limites da magia?O alcance visual do conjurador o limite espacial. O limite temporal

    equivale concentrao que, quando no mais mantida, faz a magiacessar. E o principal limite, potencial, a plausibilidade da magia perantetodos os observadores conscientes.

    Foi ento que Mirhaanna riu, e seu riso preencheu todo o aposento.Mestra, o que est havendo? a jovem abriu os braos, perplexa.Suas respostas, minha irm, o riso deu lugar a um terno sorriso.

    realmente indicam seu fervor pelos estudos e a tornam apta a galgardegraus mais altos. Pairava uma dvida, mas ela se dissipou quando suavoz se fez ouvir.

    Ainda no estou entendendo. Isso era to urgente?De certa forma, sim. Mirhaanna voltou a mostrar seu semblante

    sereno e calmo. H uma pessoa que deseja fazer tantas ou maisperguntas, pois pretende envi-la em uma misso especial.

    Uma misso?No posso dizer os detalhes, mas certo que todo o conhecimento

  • adquirido entre estas paredes fez um largo gesto com os braos,indicando que falava da torre como um todo. ser necessrio para queseja bem-sucedida. Antes que eu a leve, preciso lanar uma ltimapergunta: aceita essa misso?

    Os olhos de Deora piscaram por duas vezes, no escondendo a alegriaque sentia em, pela primeira vez desde que fora iniciada, seguir rumo aodesconhecido, dependendo somente de si e de tudo o que haviaaprendido.

    Com toda a certeza, mestra.Em silncio, Mirhaanna levantou-se e se dirigiu para a porta, abrindo-a

    devagar. A jovem, porm, ainda estava absorta pelas ideias de aventura edescoberta.

    No sentada que ir a lugar algum, minha irm na chama. elaainda mantinha a porta aberta. O Grande Mestre a aguarda.

    De um salto, Deora levantou-se e uma vez mais ajeitou o vestidoescarlate e a capa rubra. Seu corao estava aos pulos.

    O Grande Mestre?! Mas, por que no me disse...?Porque eu sabia que ficaria assustada com a ideia de estar perante o

    membro mais graduado da Ordem Vermelha. Mesmo assim, no comreceio ou temor que deve se aproximar, mas com o respeito de quemsabe que ele galgou todos os degraus por seu prprio merecimento. principiou a andar. Vamos.

    Caminharam, lado a lado, pelos corredores que levavam escada emespiral ligada com o andar superior. Deora mexia as mos sem cessar.

    Somente conversei com o Grande Mestre quando fui acolhida. Depois,apenas o vi nas cerimnias mais importantes, mas no tive oportunidadede falar com ele.

    Oportunidade? indagou Mirhaanna, parando no topo da escada emespiral. E o que esperava dizer?

    Desejava saber como ele realmente , mestra. O que anseia? O queespera da Ordem Vermelha? nisso o que penso quando minha mente sevolta para o Grande Mestre.

    Sobre as duas irms na chama uma luz arroxeada incidia, originada dosraios de sol que atravessavam um vitral, cujas cores representavam omomento em que Valys, o deus artfice, moldava o mundo em formao.Mirhaanna sorriu.

    Reconhece esse momento, minha irm? quando a forja de Valys foiutilizada para dar forma a este mundo. O que desejava Valys? Apenasconstruir as fundaes daquilo que seria, em verdade, criado pelos outrosdeuses e por todas as criaturas que aqui vivessem. olhou para suaaluna. o mesmo que o Grande Mestre deseja, criana... Hanvor quersomente preparar o caminho para que cada um de ns possa edificar o

  • templo de sabedoria e boas aes, cujas estruturas esto em nossa maisntima essncia. Mas precisamos nos apressar, porque ele nos aguarda.

    No entanto, antes que dessem um nico passo, Deora se adiantou e sepostou sua frente, com uma expresso de mais pura felicidade.

    Sabe h quanto tempo no me chama de criana, Mirhaanna?A mestra, por sua vez, retrucou no mesmo tom de alegria:Sabe h quanto tempo no me chama de Mirhaanna?E, depois de um rpido abrao fraterno, partiram em um ritmo mais

    apressado em direo ao Salo da Sabedoria, estacando finalmentediante do portal de madeira avermelhada decorado com os smbolosmsticos da Ordem Vermelha. Mirhaanna colocou-se diante de uma pia decobre, na qual lavou suas mos por trs vezes, enquanto Deora tomavaseu lugar ao lado de um pequeno gongo, segurando a baqueta com a moesquerda. Quando Mirhaanna estava pronta, Deora soou o instrumentopor trs vezes, seguido de uma ltima badalada, informando que umamestra estava cruzando os portais do Salo da Sabedoria, seguida poruma aclita.

    As paredes, que mediam exatamente oito metros de comprimento,formavam um octgono perfeito, e de cada seo mdia saa o vrtice deuma estrela de oito pontas, incrustada no piso de mrmore rubro. Tronosfeitos da mesma madeira do portal jaziam junto s pontas do octograma,cada qual trabalhado de maneira nica, com motivos que lembravam osdeuses de Andora. Mas apenas sete tronos abrilhantavam o Salo daSabedoria, pois o oitavo, que seria o de Berilla, no oeste, dava lugar aoportal pelo qual Deora e Mirhaanna estavam passando.

    Mestra e aluna caminharam com passos que pareciam seguir o ritmo deuma inaudvel cano at o centro do Salo da Sabedoria, onde umachama vermelha como sangue ardia sem nada queimar, iluminando todoo local com uma suave luz rubra. Diante delas, na parede oriental, estavao trono de Hiljam, ocupado por Hanvor, um homem calvo e ligeiramenteobeso, trajando o manto escarlate dos mestres e carregando o medalhode Grande Mestre da Ordem Vermelha. Mas, mesmo antes de sepostarem diante dele, ergueu-se com a humildade de um peregrino e asabraou, beijando suas frontes da mesma forma que dois aclitos secumprimentavam quando h muito no se viam.

    Tuas ordens, Grande Mestre, com sucesso foram cumpr...No h necessidade de formalidades, Mirhaanna. interrompeu, com

    um largo sorriso. Posso ver que nossa aclita est aqui. E a mimparece que sua compleio em nada mudou desde que Piros se tornouseu lar.

    Deora surpreendeu-se com seus modos, parecendo no se importar commesuras a ele dirigidas, mesmo sendo o Grande Mestre da Ordem

  • Vermelha. Ela esperava que sua recepo seguisse o mesmo ritual deapresentao comum a esse tipo de encontro, mas Hanvor conduzia ascoisas de modo distinto...

    Acredito que estejas te perguntando o que est havendo, no ,Deora? Tua mente deve estar revolta com os pensamentos de falta dehierarquia, ausncia de formalidade... Precisas aprender que, emverdade, todos os irmos de nossa Ordem so aclitos, sem outroobjetivo a no ser servir e auxiliar seus pares. E de que vale isso tomou o medalho de Grande Mestre em suas mos. se no h irmoscom quem dividirmos nossas alegrias e fardos? Compreendes agora?

    Sim, Grande Mestre. assentiu, surpreendendo-se cada vez mais.No entanto, voltou-se para Mirhaanna, colocando sua mo

    esquerda sobre o ombro direito dela. conheo-te bem. No foi emsilncio que vieste com Deora at o Salo da Sabedoria. O que ela jsabe?

    Ela pode te dizer o que conversamos... Mirhaanna ps sua moesquerda sobre o ombro direito da aclita, olhando para ela. Deora?

    Como se sentisse que os gestos de sua mestra e do Grande Mestredevessem ser repetidos, a jovem colocou sua mo esquerda sobre oombro direito de Hanvor. Porm, antes que pudesse dizer algo, umaestranha energia comeou a ser sentida, partindo do centro do tringuloequiltero formado pelos braos dos trs irmos na chama. Era umaenergia capaz de preench-los com a plenitude da fraternidade da OrdemVermelha, trazendo o calor da chama que ardia no centro do Salo daSabedoria para dentro dos coraes dos trs. E, sob a fora mstica queos completava, Hanvor e Mirhaanna trocaram olhares imperceptveis,cheios de admirao, surpresa e respeito.

    Sei que uma misso me destinada e que meus conhecimentos serotestados durante seu desenrolar.

    Permaneceram ainda envoltos pela aura de essncia por algum tempo,em silncio, at que, plenos de poder mstico, romperam a ligao fsica,retirando os braos dos ombros de seus irmos, fazendo com que tudo oque fora tacitamente invocado se dispersasse.

    O que desejamos, Deora, Hanvor mantinha a voz baixa. recuperar um item que foi perdido. Para tanto irs ao Grande Continente,cruzars o rio Medial e aportars perto de Amtal. Nas runas prximas cidade maldita, encontrars o Elmo de Ametista, feito pelas mos divinasde Valys, o artfice, e somente ento retornars. Tua misso no ter fimat que todos esses objetivos sejam alcanados.

    Mas, questionou a aclita o que esse Elmo de Ametista? Porque to importante assim, Grande Mestre?

    Antes de respondermos teus questionamentos, replicou a mestra

  • precisamos saber se ainda aceitas a misso.Hanvor e Mirhaanna, duas testemunhas solenes, em silncio

    aguardaram.Pela chama que arde no centro do Salo da Sabedoria, prometo que

    trarei o Elmo de Ametista e o entregarei para o Grande Mestre.Em unssono, Hanvor e Mirhaanna disseram:Que seja assim, ento.Naquele momento, a chama central do Salo da Sabedoria bruxuleou

    como Deora jamais havia visto, mas foi por apenas um nico instante.Como se entendesse o significado da importncia de sua promessa, aaclita permaneceu calada. O Grande Mestre, contudo, no deixou que osilncio imperasse:

    Deora, antes que partas, preciso que eu saiba... Que magiasconheces?

    Mirhaanna se apressou em falar algo, mas um gesto de Hanvor ainterrompeu.

    Voltei-me para a cura, Grande Mestre. respondeu Deora. Seicomo invocar a essncia mstica para estancar o sangue, fecharferimentos e at mesmo debelar doenas.

    E a chama? questionou Hanvor, intrigado.Deora balanou a cabea, lentamente, como se no compreendesse. O

    Grande Mestre virou-se para Mirhaanna, olhos acusadores.Como poderias permitir que um irmo, sob teus cuidados, se

    submetesse a uma misso dessas sem conhecer o caminho da chama? sou no mestra?

    Mirhaanna olhou nos olhos de Hanvor, no em desafio, masdemonstrando a sinceridade daquilo que comeava a dizer:

    Eu no podia, Grande Mestre, mesmo sabendo que sem conhecer ocaminho da chama Deora teria poucas chances de retornar. Ela apenasuma aclita!

    Um dia, antes de te tornares mestra, tambm foste aclita,Mirhaanna... Por Hiljam, um ttulo to importante assim?

    E o ritual, Hanvor? Mirhaanna trilhava um caminho perigoso aochamar o Grande Mestre pelo nome, algo que Deora sabia que nodeveria ser feito. Um irmo no pode receber tal conhecimento se nopassar pela cerimnia adequada... Sabes que esse ritual no pode serexecutado diante de uma aclita.

    Que o fogo nos consuma, mestra, se todos os rituais juntos foremmais importantes que a vida de um de nossos irmos na chama! Noimporta se Deora aclita, precursora ou mestra, Mirhaanna! Se ela noconhecer o caminho da chama estar fadada a perecer.

    A culpa no de Mirhaanna. interrompeu a jovem.

  • Os dois a olharam, um tanto quanto incrdulos, e cessaram a discusso.Mas, Deora, o que dizes? Eu... o brao erguido de Hanvor, exibindo

    a palma marcada a ferros com a chama, silenciou a mestra.A aclita notou a palma marcada a ferros com a chama, assim como a

    da mestra.Mirhaanna sabia que sem tal conhecimento eu fatalmente no

    atingiria os objetivos da misso, Grande Mestre, e tentou me ensinar ocaminho da chama, trazendo at mim pergaminhos que continham osrituais para que pudesse dominar tal poder. Mas me neguei, pois sabiaque ainda no havia chegado a hora de conhec-los, e... Principalmenteporque, se ela me ensinasse, estaria quebrando juramentos que, comcerteza, fez ao receber aqueles rituais. Se h uma culpa, deve recairsobre mim.

    Hanvor se manteve em silncio por alguns instantes, olhando para ovazio. Parecia imerso em dezenas de indagaes inauditas e, por mais deuma vez, franziu o cenho, como se prestes a dizer algo ou a tomar certaao. Ento, por fim, olhou para Mirhaanna, retomando o ar deautoridade que o ttulo de Grande Mestre emanava.

    A aclita Deora partir ainda hoje, mas no sem antes conhecer docaminho da chama. O Salo da Sabedoria ter suas portas fechadas paraque tu, mestra, possas ensin-la, e somente sero descerradas ao ocaso.

    E o Grande Mestre, ento, passou pelas duas, despedindo-se com omesmo cumprimento de antes, mas sem nada dizer. Ao passar pelosportais, eles se fecharam com o rudo de milhares de trancas. As duas,aclita e mestra, estavam sozinhas.

    Por qu?Deora olhou para sua mestra, sem responder, como se aguardasse

    outra pergunta, o que no tardou a ocorrer:Por que mentiu para o Grande Mestre, Deora?Porque ele desejava repreend-la de uma forma ou de outra.

    sorriu. Por um lado, por no me ter ensinado o caminho da chama...Porm, se o tivesse feito, ele a repreenderia por ter dado conhecimento aquem no podia receb-lo. Mas, por dizer que a responsabilidade daescolha cabia a mim, ficou sem ao alguma. ela parou por uminstante. H algum tipo de rivalidade?

    A mestra balanou a cabea negativamente por alguns instantes. Umpequeno brilho se fez em seus olhos quando respondeu:

    No h uma rivalidade, mas, sim, um saudvel cime.Cime?Sim. disse a mestra. Porque fui eu que a iniciei na Ordem

    Vermelha, Deora. Hanvor desejava ter sido a pessoa que a acolheria.A jovem mais uma vez olhou para a mestra com a indagao em seus

  • olhos.Eu sou apenas uma aclita... E nem possuo tantos conhecimentos

    assim. Agora o momento de questionar o porqu disso.Mirhaanna j se sentava ao lado da chama que ardia no centro do

    Salo da Sabedoria, convidando Deora a tomar seu lugar diante dela,com o fogo sendo o terceiro vrtice do ento formado tringuloequiltero.

    Quando disse a ele que a iniciaria nos segredos e conhecimentos,Hanvor e eu jogvamos uma partida de xadrez. No foi por acaso que,quando disse seu nome, era um peo que estava em minha mo, prestesa avanar.

    Sim, entendo que eu seja apenas um peo nesse jogo. Sou uma peade menor valor...

    A mestra levou seu dedo aos lbios, calando Deora por um instante, daforma como um irmo chamava a ateno de outro durante os rituais.Percebendo que a jovem agora compreendia que seus ensinamentos jhaviam comeado, Mirhaanna continuou:

    Pees podem ser promovidos. Ou acha que o fato de eu ter elevado opeo para rainha, e com essa pea vencido o jogo, no significa nada?

    Deora, ento, compreendeu o significado de suas longas horas deestudo, percebendo que eram fases em que o peo abria caminhoadiante, rumo oitava fileira, onde poderia ser elevado. A mestra,fechando os olhos, instigou a aclita a fazer o mesmo. Sua voz no eramais que um sussurro quando comeou a falar:

    Quando nos livramos de um de nossos sentidos, os outros se tornammais apurados. O que aprender, aclita, somente ser realmentecompreendido se deixar de lado a viso, a audio, o olfato, o paladar e otato... Pois ser sua essncia o receptculo desse conhecimento, e noseu corpo. Compreende?

    Os lbios de Deora se moveram, mas nenhum som foi emitido, porqueela j se encontrava no estado de semiconscincia da verdadeirameditao. Sabia que Mirhaanna tambm nada estava dizendo com seucorpo fsico e que, naquele momento, um elo maior as unia.

    O poder da verdadeira chama, o poder que arde em Piros, tambmexiste em cada um de ns que ousamos romper as barreiras que nosimpedem de prosseguir rumo ao desconhecido. O caminho da chama,aclita, nada mais do que aquele trilhado quando carregamos a tochaque traz o fogo verdadeiro e consumimos o mundo material ao romper abarreira fsico-espiritual. O caminho da chama um caminho deconhecimento, mas tambm de destruio.

    Com cada palavra, Deora imergia em seu subconsciente, vagando emdireo s profundezas de sua alma. Sua essncia fazia o trajeto do

  • caminho da chama e, carregando uma tocha mstica em direo piraque ardia dentro de si, a jovem se surpreendeu ao ver que aquilo quebuscava era to imponente quanto torre de Piros.

    Ateie fogo tocha que carrega e siga o caminho reverso, retornandoao plano fsico. Rompa uma vez mais a barreira, s que tenha em mos atocha mstica que arde com a chama mais pura de conhecimento e poder.Quando atravessar tal limite, e somente ento, abra os olhos e direcionea chama em suas mos para o alvo de sua magia... Ter somente um oudois instantes para poder fazer isso aps cruzar a fronteira fsico-espiritual, pois a chama se dissipar. Est preparada, aclita?

    A jovem no chegou a responder a pergunta, pois enquanto Mirhaannafalava sua essncia j agia conforme ensinado, ateando fogo tochamstica, carregando-a em uma corrida em direo ao portal que separavasua alma de seu corpo. Quando Mirhaanna abriu os olhos, aguardandouma resposta, viu que Deora agia como se dominasse a magia, suas mosespalmadas para o fogo que ardia no centro do Salo da Sabedoria. Osolhos da jovem se abriram num timo e, ento, a pura essnciaflamejante percorreu todo o seu corpo, disparando uma esfera de chamasna direo do fogo central, iluminando ainda mais todo o lugar.

    No sabia que havia estudado antes o caminho da chama, Deora... a mestra percebeu que a jovem havia exigido muito de si, pois suavacomo se o fogo ainda ardesse com toda a fora dentro dela. Por queno me contou?

    A jovem no respondeu de imediato, recuperando lentamente as forasenquanto a transpirao diminua pouco a pouco.

    Eu... procurou se equilibrar, ainda sentada. Eu no haviaestudado nada. Apenas segui o caminho que pedia para percorrer.

    Mirhaanna levantou-se, estendendo a mo para a jovem, dizendo:Nunca vi tamanho poder em uma aclita. O caminho da chama

    normalmente s compreendido por precursores, mas mesmo assim nodetm tanto poder mstico como o que desmonstrou...

    No creio que realmente tenha entendido todo o significado docaminho da chama. tentou se erguer. Pude seguir o caminho queleva a minha pira primordial, mas no sei se poderei repetir o feito. Agirno o mesmo que saber como agir.

    Talvez precise de algo para focar sua mente e ordenar os passos queh de seguir, Deora.

    Um objeto?Algo assim. respondeu Mirhaanna. Continuaremos os estudos

    at que o dia se finde, mas, ao partir, leve sua espada. Quando chegar omomento certo, saiba us-la no caminho da chama...

    E no Salo da Sabedoria permaneceram as duas, at que o sol deixasse

  • de ser visto no horizonte, dedicando-se aos estudos. Quando a mestraestava certa de que somente a experincia de vida poderia aprimorar otalento descoberto na jovem, elas se dirigiram ao salo comunal parajantar.

    Tudo j est preparado. disse Mirhaanna, quando retornaram aosaposentos da aclita. Sua mochila de viagem tem aquilo que julgamosnecessrio, mas estar levando tambm alguns baronatos de ouro,suficientes para umas duas noites em uma estalagem. Contudo,recomendo: guarde as moedas para que pague ao capito do navio que alevar ao Grande Continente, pois acredito que no seu desejotrabalhar como marinheira para custear seu transporte sobre as ondas.

    Enquanto Mirhaanna falava, Deora conferia o contedo de sua mochila.Satisfeita, novamente atou o n do cordel de couro e a levou s costas.

    Sim, Mirhaanna, tudo est aqui. Acredito que eu possa partir agora.Tem certeza? a mestra olhava para a parede norte do quarto, um

    singelo sorriso em sua face.A jovem volveu os olhos para acompanhar o pensamento de Mirhaanna,

    contemplando a parede por no mais que um instante.Sim, a espada! Quase a deixo aqui... e caminhou at l, donde a

    retirou, guardando-a junto cintura em uma simples bainha de couro.Agora sei que est preparada, criana. a mestra abraou a jovem.

    Tenha cuidado l fora.Eu no a desapontarei. Deora retribuiu o sincero abrao, sentindo

    o calor de sua amada mestra percorrer seu corpo. Esteja certa de queretornarei com o Elmo de Ametista... E, por falar nisso, o Grande Mestreno respondeu quando o questionei sobre a importncia de tal item oumesmo da misso...

    S poder retornar se tiver o Elmo de Ametista em mos, criana. Osportes de Piros permanecero fechados at que sua misso se cumpra...Mesmo que leve dias, anos, ou nunca termine...

    Eu voltarei. Juro pela chama que arde no centro do Salo daSabedoria.

    Mas o silncio era tudo o que lhes restava naquele momento e nele sedeixaram envolver, at mesmo livrando-se do doce abrao fraterno emque estavam. Entendiam a magnitude da tarefa imposta a Deora etambm sabiam que no poderiam se demorar mais. Sem palavraalguma, a jovem apagou as chamas dos castiais que iluminavam seuquarto e principiaram a descer as escadas.

    Nos portes de Piros, onde a jornada de Deora pelo Elmo de Ametistase iniciaria, Hanvor as aguardava, trajando o manto cerimonial ecarregando o medalho de Grande Mestre da Ordem Vermelha. Eleaguardou at que as duas se despedissem como verdadeiras irms na

  • chama o faziam e, pronto a dizer adeus a Deora, entregou-lhe uma tochapara iluminar o caminho.

    Que tenhas a sabedoria que te faas recordar de onde vieste, a forapara seguires adiante e a prudncia para saberes quando fores longedemais. Vai, aclita, com as bnos da Ordem Vermelha.

    Enquanto Hanvor retornava para seus afazeres, Deora partia, sozinha,j sentindo saudades da torre que havia se tornado seu lar. Mas, naquelanoite, no havia lua alguma, e nem mesmo as estrelas ousavam semostrar. Assim, ningum pde observar que, nos olhos de Mirhaanna e desua aluna, lgrimas furtivas rolavam, pois o elo que as unia jamais seriadissipado. Sentiam isso a cada passo que as separava, sem que umapudesse intervir no destino da outra. Quando a luz da tocha de Deoradesapareceu em meio escurido, Mirhaanna enxugou suas lgrimas ecerrou os portes de Piros, que jamais seriam abertos a sua alunanovamente, a no ser que trouxesse consigo o Elmo de Ametista.

    Mas Deora no se incomodava com as lgrimas que lhe emolduravam aface, deixando ao vento noturno o trabalho de sec-las. Novamente sesentia como na noite em que fora acolhida pela Ordem Vermelha, dandopassos em direo ao desconhecido, confiando apenas no destino que osdeuses lhe reservaram.

    Isso lhe deu foras para caminhar um pouco mais, ao ponto de,somente ao chegar a uma curva da trilha que levava a Mitarna, montarsua pequena barraca e acender uma fogueira nessa primeira noite dejornada, com certeza a mais difcil.

    Tentando se concentrar em pequenos estudos, seus olhosacompanharam o crepitar da chama que ardia em meio s ervas quehavia colocado com a madeira. A fumaa perfumada atingiu seus sentidose se sentiu mais calma, relaxando o corpo e a mente, apenas observandoo trmulo fogo em seu vagar, sem conseguir dele se evadir...

    Quando os primeiros raios de sol tocaram seu rosto, ela acordou. Afogueira h muito havia se extinguido e a primeira noite de jornada setornava apenas uma fugaz recordao. A jovem pegou suas coisas e, nose dando ao trabalho de sequer olhar na direo de Piros, ao longe emsuas lembranas, voltou a caminhar.

    Era o mesmo caminho que havia trilhado para atingir a torre ao lado deMirhaanna, mas a direo era oposta. As rvores pareciam diferentes, aspedras se mostravam distintas, porm, algo dentro da jovem lhe diziaque eram as mesmas era ela quem havia mudado. E muitas mudanasocorreram, mais do que ousava recordar, mas em seu meditar silencioso,a cada passo dado, seu destino tornava-se mais prximo, mesmo notendo ideia alguma de quanto tempo seria necessrio para alcan-lo.

    Com o fim da tarde se aproximando, as primeiras casas de Mitarna

  • comearam a despontar ao longe e mesmo alguns rolos de fumaa cinzapodiam ser vistos em sua marcha vertical rumo aos cus. Deora, contudo,no queria atravessar toda a vila para chegar a um ancoradouro qualquere passou a seguir para o oeste, diretamente na direo da praia.

    Ao ter a branca areia sob seus ps, a jovem foi imediatamente brindadapelo alaranjado sol poente refletindo na gua e banhando sua face. Antetal viso, pausou por um momento, contemplando o encanto natural,como se por um instante desejasse somente no ter de deixar jamaisaquele lugar. Mas assim como o sol seguia seu rumo para dar espao escurido, Deora continuou a caminhar, deixando para trs a lembranada paisagem enquanto o vento fazia sua capa rubra tremular.

    O crepsculo encenava seu ltimo ato quando a jovem aclita avistouuma embarcao suficientemente robusta, ainda que no muito grande,capaz de, em sua opinio, cruzar os mares rumo ao Grande Continente.Caminhando em direo nau, atravessando o pequeno ancoradouro demadeira gasta que guinchava ao suportar seus passos, a jovem chamou aateno do vigia:

    Quem se aproxima?Deora ajeitou a capa rubra e olhou para cima, procurando vislumbrar a

    fisionomia de quem a interpelava, mas a ltima rstia de luz do solteimava se projetar em sua face, ofuscando-a momentaneamente. Aindaassim, mesmo com uma das mos bloqueando os raios avermelhados, omximo que pde perceber foi uma imberbe figura envolta em um gibode peles que parecia proteger adequadamente dos ventos.

    Procuro transporte para o Grande Continente. disse ela. Possofalar com teu capito?

    Com um aceno, o vigia badalou um pequeno sino por duas vezesenquanto fazia um sinal para Deora, pedindo que aguardasse. Masmesmo essa espera foi pouca, pois logo surgiu um homem que a convidoua bordo, indicando a prancha.

    Tinha cerca de quarenta anos de idade, ou assim diziam seus grisalhosfios de cabelo, e trajava uma camisa de algodo cru coberta por umaloriga de couro e calas largas. Sem muita reverncia, ele esticou a moe a ajudou a cruzar a madeira bamba que servia de ponte entre oancoradouro e seu navio.

    Perdoa meus modos, jovem, mas sou um homem acostumado aobalanar das ondas, portanto irei direto ao assunto. Uma mulher numanau traz azar e, uma vez que tenhas embarcado, terei j infortnios naprxima vez que eu zarpar. Isso significa que bom ter dinheiro parapagar por tua viagem, seja l at onde formos ns, porque no pretendote ver deixar este convs sem que tambm enfrentes a mesma m sortede minha tripulao.

  • Deora parou ainda na beirada do convs, equilibrando-se sem muitadificuldade, largando a mo que lhe era estendida.

    Sois um bruto, capito, se for esse mesmo o teu posto. Antes de crerser eu a origem de qualquer azar, acredito te faltar a coragem para seguirat onde pretendo ir.

    Ante tais palavras, o vigia se inclinou para ouvir mais de perto, assimcomo dois marinheiros que surgiram de lugar algum. Pelo que sabiam, osinfortnios j estavam comeando.

    Ora, jovem! Quem tu pensas que s para falar assim comigo?E quem preciso ser para responder de igual maneira? desafiou.O homem teve a face tomada pela ira, mas inexplicavelmente irrompeu

    em uma gargalhada mpar. Com um sorriso amarelo, abriu caminho,dizendo:

    Seja bem-vinda a bordo do Constelao, jovem. Sou JeremiahPadron, capito desta nau. Tu s espirituosa e, com certeza, merecesnavegar conosco... Se tiveres dinheiro, claro.

    Compreendendo que suas moedas falariam mais alto de qualquermaneira, Deora retirou alguns baronatos de ouro de sua bolsa e asofereceu.

    Acredito serem suficientes para uma viagem ao Grande Continente,atravessando o rio Medial. Isso se tiveres coragem de me deixar naregio de Amtal.

    Mas... o capito arregalou os olhos. certo que a jovem, cujonome ainda no me foi revelado, no se dirige cidade maldita, no?

    Foi a vez de Deora sorrir.Visitarei algumas runas prximas. e ofereceu outra moeda ao

    capito. O silncio acerca da jornada tambm est sendo pago,compreendes?

    Com um olhar curioso, o capito Padron aceitou a ltima moeda,guiando Deora para o que se tornaria seu alojamento pelos prximosdias.

    Nada ser dito, jovem inominada. Tens a minha palavra.E fechou a porta.Deora s voltou a pisar no convs dias depois, preferindo fazer suas

    frugais refeies a ss, abrigada dos ventos do mar. A tripulao, sob asordens do capito, no a interrompeu em nenhum momento, parecendo-lhes que nem ao menos estava a bordo. De fato, para surpresa docapito, a suposta m sorte jamais ocorreu, sendo essa uma das maistranquilas viagens martimas feitas. Assim, foi com certo pesar que eleviu a jovem desembarcar, sem nem ao menos ter sabido o seu nome.

    Deixando o Constelao para trs, Deora ainda verificou uma vez maisseus pertences antes de continuar. Todavia, no era a incerteza da

  • jornada que a fazia parar ou mesmo a prudncia em excesso, mas sim oque se erguia diante de seus olhos: como se protegesse a regio dacidade maldita, a mata surgia abruptamente feito um escudo quaseintransponvel. Era um aviso silencioso dos perigos lendrios aliescondidos.

    A aclita desembainhou a espada, julgando que assim estaria maispreparada, e adentrou a mata fechada, quase que se esgueirando aopassar por duas rvores muito prximas. Aquilo tudo era apertado,escuro, pesado, quase um mundo parte, onde nem a luz do sol ousavaentrar. E l estava ela, sozinha, em sua primeira jornada a mando doGrande Mestre, sem Mirhaanna para gui-la, sem ningum paracompartilhar os estudos.

    Cada passo a fazia se sentir como que tragada pela escurido da mata,na certeza de que, se olhasse para trs, no seria capaz de identificar ocaminho pelo qual acabara de passar. No muito longe, as rvores eramcomo carrancas que a observavam. Mas, ao se aproximar, Deora nadaidentificava na casca grossa e antiga, fazendo-a crer que sua imaginaoestava lhe pregando peas. Ainda assim, em respeito a essas mesmasrvores, a jovem no ousava atear fogo em tocha alguma, temendo serculpada de um imprudent