456

A última princesa - Galaxy Craze

  • Upload
    lice

  • View
    283

  • Download
    15

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

www.princexml.com
Prince - Personal Edition
This document was created with Prince, a great way of getting web content onto paper.

Prólogo

O DIA COMECOU COMO UM SONHOVÍVIDO E BELO. ERA UM DAQUELESraros dias em que o sol tinha saído e sua luzestava suave e morna, com um tom de am-arelo vivo. Estávamos no jardim, apenasminha mãe e eu. Mary tinha saído compapai, mas, como minha mãe estava grávidade oito meses e sentindo-se muito cansada,fiquei para lhe fazer companhia.

— Oh! — minha mãe colocou as mãos nabarriga.

Tínhamos preparado um piquenique comtapetinhos de bambu, uma toalha de mesaxadrez verde-limão, e alguns travesseirospara nos recostar.

— Acho que seu irmão está querendo sejuntar a nós.

Eu estava estendendo a mão para tocar naenorme barriga dela e sentir meu irmão semexer quando escutamos a voz de Rupert,nosso mordomo, nos chamando. Era umaentrega.

Em pé à porta estava um lindo rapaz decabelo cacheado e dourado. Ele trazia nasmãos uma cesta de frutas frescas e maduras.Frutas que eu nunca tinha visto: pêssegos eameixas, damascos e maçãs, morangosvermelho-escuros. Eu não comia frutasdesde os Dezessete Dias.

— Quem mandou isso? — perguntouminha mãe, sem conseguir tirar os olhos dopresente.

O rapaz sorriu ao entregar-lhe a cesta,mostrando dentes perfeitamente brancos. Eume lembro de tê-los achado parecidos complástico.

— Vida longa à rainha — o rapaz disse, eminha mãe sorriu quando ele se afastou. Elasempre ficava envergonhada com essa frase.

4/456

Colocamos a cesta sobre a toalha lá fora enos sentamos na grama verde-esmeralda.

Minha mãe colocou a mão dentro da cestae pegou um pêssego perfeito. Levou-o até onariz e fechou os olhos ao inspirar o perfumeda fruta.

— Olha, tem um cartão aqui dentro — eudisse, pegando um pequeno bilhete em meioà pilha de morangos e lendo-o em voz alta.

Para a Família Real e o novo bebê.Deliciem-se.

C. H.

— Quem é C.H.? — minha mãe perguntou.Ignorei a pergunta, distraída com as

frutas, me perguntando o que experimentarprimeiro: uma ameixa? Um morango?

Minha mãe abriu a boca e mordeu opêssego. Uma gota de sumo rolou peloqueixo dela.

— Oh, é delicioso. É a coisa mais deliciosaque já experimentei — ela deu outra

5/456

mordida, e o sorriso sereno dela se transfor-mou em um esgar de preocupação. Minhamãe tirou uma coisa da língua e colocou-a napalma da mão. — Mas pêssegos não têm se-mente — ela disse.

Eu me inclinei para a frente e olhei para amão dela: lá estava uma minúscula estrela demetal.

O rosto da minha mãe perdeu a cor e elacaiu para trás, em cima do cobertor, as mãosagarrando a grama e as unhas cravando aterra. Em meio à brisa, ouvi um somrascante.

Foi o último suspiro dela.

6/456

1

CUIDADOSAMENTE, SOLTEI ACORRENTE DOURADA DO PESCOÇO,deixando o peso do relicário de ouro galêscair na palma da minha mão. Era fim deagosto, mas estava frio dentro das grossasparedes de pedra do castelo. Mesmo no ver-ão, uma brisa atravessava os quartos comoum fantasma solitário.

Eu abri o relicário e olhei para o retratoem miniatura da minha mãe, depois parameu reflexo no vidro da janela, então denovo para o relicário, até meus olhos ficaremembaçados. Nós duas tínhamos o mesmo ca-belo escuro e os mesmos olhos azuis-claros.

Será que eu ficaria parecida com ela quandocrescesse? Fechei os olhos, tentando sentiros braços dela em volta de mim, ouvir o somda voz dela nos meus ouvidos, e sentir ocheiro do óleo de rosas que ela passava nospulsos todas as manhãs. Mas hoje as lem-branças não estavam surgindo com muitaclareza. Fechei o relicário e enxuguei aslágrimas.

Cornelius Hollister, o homem que matouminha mãe, nunca foi preso. Ele assombravameus sonhos. Seu cabelo louro, seus olhosazuis intensos e seus dentes brancos e bril-hantes me seguiam por ruas escuras quandoeu dormia. Às vezes eu sonhava que omatava com várias facadas no coração eacordava ensopada de suor, os punhos cerra-dos com força. Depois me encolhia toda echorava por tudo que tinha perdido, e peloque tinha descoberto haver dentro de mimnesses sonhos.

8/456

Do lado de fora do Castelo de Balmoral,um véu cinzento de chuva caía sobre a pais-agem árida. A cor da chuva tinha mudadodepois dos Dezessete Dias. Não era maislímpida e suave como lágrimas. Era cinza, àsvezes tão escura quanto fuligem. E extrema-mente fria.

Fiquei observando os soldados se movi-mentando no pátio, e gotas pingavam doscasacos pretos, pesados de chuva, que es-tavam usando. Do pescoço deles pendiamcintos de munição quase vazios, cuida-dosamente protegidos da chuva. Nem umcartucho podia ser desperdiçado, uma vezque as munições estavam em falta. Assimcomo os sacos de farinha, os potes de aveia,as cobras e os pombos salgados na nossadespensa — nada podia ser desperdiçado.Tudo era escasso.

Uma poeira grossa rodopiava no ar, mar-cando o céu como uma ferida. Há seis anos,tudo havia mudado. Por dezessete dias

9/456

seguidos, o mundo foi castigado por terre-motos que partiram a terra, e por furacões,tornados e tsunamis violentos. Vulcões en-traram em erupção, enchendo o céu comuma fumaça inflamável que bloqueou o sol ecobriu os campos com estranhas cinzasarroxeadas que sufocaram as plantações.

Os cientistas disseram que isso foi uma co-incidência catastrófica. Os fanáticos, que foiato de um Deus vingativo, nos punindo portermos poluído o universo Dele. Mas euapenas me lembrava daquilo como uma dasúltimas vezes que minha mãe esteve comigo.Passamos aqueles dezessete dias no abrigoantibombas que havia embaixo do Palácio deBuckingham, junto com assessores do gov-erno e funcionários do palácio, nos ab-raçando bem apertado enquanto o mundo sedespedaçava à nossa volta. Só minha mãe semantinha calma. Ela passou o tempo todoem movimento, distribuindo cobertores e

10/456

sopa enlatada, e dizendo para todos, com suavoz suave, que tudo ia ficar bem.

Quando finalmente voltamos à superfície,tudo tinha mudado.

O que eu mais sentia falta era da luz. O solfraquinho do começo da manhã, o esplendorde uma tarde de verão, o brilho das luzinhasde Natal — até mesmo o brilho suave de umalâmpada. Tínhamos emergido da escuridão,em meio a fumaça e cinzas, para um mundoem chamas.

Senti uma coisa molhada na mão e, ao ol-har para baixo, vi Bella, minha cadela, meencarando com seus olhos grandes e escuros.Eu a tinha encontrado junto com Polly, filhada nossa empregada e minha melhor amiga,tremendo embaixo da cobertura do jardimquando era apenas um filhote. Juntas, lhedemos leite em uma mamadeira de boneca ecuidamos dela até que estivesse saudável.

— Deixe-me adivinhar: você quer sair parapassear. Mesmo com essa chuva toda? —

11/456

minha voz ressoou baixinho debaixo do tetoalto do quarto.

Bella abanou o rabo, alegre, e olhou paracima, esperançosa.

— Está bem, só um minuto. Primeiro pre-ciso arrumar o quarto, senão Mary vai meencher a paciência.

Bella latiu, como se tivesse entendido.Minha mala estava aberta em cima da camade dossel, sob a sombra do tecido de laisebranco. Era nosso último dia na Escócia.Iríamos pegar o trem para Londres naquelatarde para chegar em casa a tempo de ir aoBaile das Rosas no dia seguinte. O Baile Anu-al das Rosas marcava a tradicional aberturados Escritórios do Governo e do Parlamentodepois do recesso de verão, e meu paisempre fazia um discurso nesse evento.Apesar de detestar ter de ir embora da Escó-cia, eu estava pronta para vê-lo de novo. Estefoi o primeiro verão em que meu pai nãopassou pelo menos uma parte das férias

12/456

conosco. Ele nos mandava bilhetes pelos fun-cionários dizendo que estava ocupado comos projetos de reconstrução e que viria nosvisitar assim que pudesse, mas nunca veio.

Depois do assassinato da minha mãe, meupai se retirou do mundo. Um dia, logo depoisdo ocorrido, eu o encontrei sozinho no es-critório no meio da noite. Sem ao menos sevirar para me olhar ele disse: “Eu queria tercomido aquele pêssego. Deveria ter sido eu.Aquele veneno era para mim”.

Peguei a escova de cabelo na cômoda, aescova de dentes, o pijama e o livro que es-tava lendo, e rapidamente os joguei na mala.Não estava exatamente arrumada, mas es-tava bom o suficiente.

Bella latiu impacientemente perto daporta. “Estou indo.” Peguei a capa de chuvaque estava pendurada no cabide da parede,enfiei os pés em umas galochas amarelo vivoe corri para o corredor.

13/456

Bati fraquinho na porta de Jamie, mas aabri sem esperar resposta. Lá dentro, as cor-tinas estavam fechadas, e apenas uma linhanebulosa de luz se esgueirava por entre elas,iluminando o quarto escuro. O cheiro ad-stringente do remédio de Jamie pairava noar abafado. Um pequeno copo com xarope —que com sua cor vermelho-cereja fingia seralegre — estava intocado na mesa decabeceira, perto de uma tigela de mingau deaveia e de uma xícara de chá de camomilafrio. Já era meio-dia e ele ainda não tinha to-mado o remédio?

Jamie quase não tinha conseguido vir aomundo. Depois que nossa mãe foi envenen-ada, os médicos precisaram forçar o nasci-mento dele com uma cesariana. Ele sobre-viveu, mas teve o sangue contaminado peloveneno misterioso. E esse veneno ainda es-tava dentro dele, levando-o lentamente àmorte.

14/456

Nossa irmã, Mary, tinha feito Jamie ficarno quarto a maior parte do verão, todo agas-alhado contra a umidade e a garoa, para quenão corresse o risco de pegar um resfriado.Ela tinha a melhor das intenções, mas eusabia quanto ele ficava deprimido preso ládentro. Hoje era a última chance que Jamietinha de sair no ar fresco antes de voltar paraas ruas poluídas de Londres.

Aproximei-me da cama onde ele estavadormindo embaixo do cobertor. Eu detestavaacordá-lo, especialmente do que parecia serum sono tranquilo. O remédio o mantinhavivo, mas também lhe roubava energia eenevoava-lhe os pensamentos. E o pior detudo é que causava a Jamie pesadelosterríveis.

Gentilmente, puxei o edredom azul-clarocom estampa de planetas.

— Jamie? — sussurrei. Mas a cama estavavazia.

15/456

Eu já estava pronta para sair correndoquando avistei um pedaço do bloco de anot-ações do meu irmão, com capa preta ebranca marmorizada, escondido embaixo dotravesseiro. O livro em que Jamie desenhavadesenhos complexos de como ele imaginavater sido o mundo antes dos Dezessete Dias.Os animais eram grandes demais, os carrospareciam naves espaciais, e as cores estavamtodas erradas, mas eu e Mary nunca tivemoscoragem de lhe contar isso. E daí que eleimaginava o mundo de antes como sendo umlugar maravilhoso e impossível? Não eracomo se algum dia ele fosse conseguir vê-lo.Virei a página do bloco de anotações parauma página em que ele tinha escrito mais re-centemente, e meu coração começou a batermais rápido.

31 de agosto

Ontem à noite vi dois empregados con-versando na cozinha. Como eles

16/456

mencionaram meu nome, parei para ouvir.Sei que não devia fazer isso. Eles falavamsobre como meu pai e minha irmã estãopreocupados comigo. Como é difícil e caroconseguir encontrar meu remédio agora.Que era possível fazer muito pelo povousando o petróleo e a munição que estãousando para trocar pelo meu remédio. Elesdisseram também que sou um fardo paraminha família.

Eu sou doente e inútil. Os médicos dizemque não vou viver mais muito tempomesmo. Não quero ficar aqui. Não queromais ser um fardo.

17/456

2

CORRI PELOS LONGOS CORREDORESATÉ A ESCADA DOS fundos, com Bella meseguindo de perto. Desci a escada de pedraaos pulos, três ou quatro degraus de cadavez, segurando no corrimão com uma dasmãos para conseguir algum equilíbrio.

As galochas afundavam na lama enquantoeu corria pelo caminho tortuoso que levavaao estábulo. Apenas três cavalos estavam láfora no pasto, e a égua de Jamie, Luna, nãoestava lá. Rapidamente, abri o portão demadeira que dava para o campo.

— Jasper! Rápido, rápido.

Não havia tempo para me importar comselas ou rédeas, mas eu cavalgava em Jaspersem sela desde que aprendi a andar. Subi nolombo dele e virei-o para o bosque. Estáva-mos quase fora do portão quando vi umcardigã verde-claro pendurado em uma es-taca. Era de Jamie. Ele devia ter deixadopara trás quando a chuva parou. Imediata-mente senti uma onda de alívio. Ele nãotinha saído há muito tempo, e, na velha elenta Luna, não poderia estar muito longe.

Se Jamie estava no bosque, eu iria precisarde uma arma. Os Andarilhos podiam estar lá.Então peguei a única coisa que consegui en-contrar: uma faca velha com um caboquebrado revestido de couro. Eu poderiaarremessá-la, ou, se viesse a precisar, usá-lapara lutar. Depois dos Dezessete Dias, semtelefones, computadores ou televisões, Marye eu nos divertíamos brincando de luta comas espadas reais. O Mestre de Armas Realnos dava aulas, ensinando-nos a cortar,

19/456

estocar e esquivar. Mary e eu lutávamos es-grima uma contra a outra, apostandopequenos luxos que ainda tínhamos domundo anterior aos Dezessete Dias: um ped-aço de chocolate ou de chiclete de menta.Mais tarde, quando as porções de comida doGoverno acabaram, levávamos lanças e facaspara os bosques em volta de Balmoral ecaçávamos cobras, pombos e algumas outrascriaturas que haviam sobrado. Fiquei sur-presa ao descobrir que tinha uma pontariaboa, ao contrário de Mary, que nunca con-seguiu pegar o jeito de arremessar uma faca.

— Bella, vem! — segurei o suéter para elafarejar. Bella conseguia distinguir quasequalquer cheiro que lhe fosse mostrado.Polly e eu a treinamos durante um verão,escondendo coisas na floresta — um brin-quedo, uma camiseta, um sapato velho — erecompensando-a com biscoitos quando elaas encontrava. Bella farejou o suéter de cimaa baixo. — Vá buscar — eu disse com firmeza.

20/456

Ela abaixou o focinho, quase encostando-ona terra e, depois de alguns segundos, partiucorrendo na direção dos campos.

A terra marrom ficava remexida sob nósenquanto Jasper galopava atrás de Bella.Debrucei-me sobre ele e coloquei os braçosem volta do seu pescoço, fechando os olhos.Os Dezessete Dias tinham transformado afloresta encharcada de sol da minha infânciaem um lugar escuro e confuso. A maior partedos animais silvestres morreu com a destru-ição, ou foram depois caçados pelos Andaril-hos até a extinção. Apenas as minhocas, assanguessugas e as cobras sobraram. O chãoestava coberto de árvores apodrecidas enodosas que se espalhavam em todas asdireções como mãos gigantes.

Puxei Jasper para que ele parasse no topoda montanha, vasculhando o bosque atrás desinais dos Andarilhos — fumaça, fogueiras,marcas de túmulos. Ou pior: os corações daspresas, humanas e animais, enfiados em

21/456

estacas de madeira cravadas no chão. OsAndarilhos tinham se unido depois dosDezessete Dias, quando as cercas elétricaspararam de funcionar nas prisões e os presosconseguiram escapar. Eles se instalaram nafloresta, comendo tudo que conseguiammatar. Como a maior parte dos animaisselvagens estava morta, eles caçavam hu-manos. É possível detectar um acampamentode Andarilhos pelo cheiro doce e enjoativo decarne humana sendo assada.

Senti algo me roçando a testa e olhei paracima. Era uma corda puída, pendurada emum galho alto. A base estava amarrada àárvore e um pedaço de rede estava pen-durado em um galho. Uma armadilha. Passeio dedo na borda da corda, procurando pega-das. Lá estavam elas, delineadas claramentena lama.

— Vá! — gritei para Jasper, tentando nãopensar em Jamie preso em uma armadilhacomo aquela. Bella corria pela trilha dos

22/456

lenhadores, ao longo da encosta damontanha. Finalmente, avistei a pequena sil-hueta do meu irmão debruçado sobre Luna,cavalgando cada vez mais para dentro dobosque.

— Jamie — gritei, mesmo sabendo que osAndarilhos poderiam nos escutar. — Jamie,pare! — ele parou, mas não se virou. Apequena mochila que trazia nos ombros es-tava tão cheia que estava quase arrebent-ando, e eu me perguntei o que Jamie tinhaempacotado para levar para o mundo lá fora.Um travesseiro? Uma lanterna? Aticei Jaspere rapidamente alcançamos meu irmão eLuna.

Apeei do cavalo e arrisquei me aproximar.— Jamie — eu disse calmamente. — Por fa-

vor, volte para casa.Ele se virou para me olhar. Olheiras escur-

as, como se tivessem sido causadas por so-cos, se espalhavam embaixo dos seus fundosolhos azuis. A pele de Jamie estava branca

23/456

como papel, e na luz fraca da floresta, eleparecia quase translúcido.

— Eu não quero mais ser um fardo — eledisse simplesmente, a voz tão fraca quequase não dava para ouvir.

Então dei um passo e me aproximei.— Você não pode nos deixar — minhas pa-

lavras pareciam esquisitas e vazias, mesmopara mim. — Você não pode desistir epronto.

— Você não sabe como é — ele disse. —Você nunca vai entender.

— Você está certo, eu não posso mesmoentender — engoli o choro. Eu não fazia ideiado quanto ele sofria a cada dia. — Mas penseem toda dor que você vai causar em todomundo se nos deixar. Pense em papai, emMary. Por favor, fique... por mim — e estendia mão.

Jamie desceu do cavalo e deu um passo naminha direção. Com o canto dos olhos, viuma nuvem de fumaça ao longe, subindo

24/456

acima das árvores. Fiquei tensa e pressioneium dedo contra os lábios, mostrando-lhe quedeveria ficar quieto.

Então ouvi um intenso murmúrio de vozesmasculinas. Um zumbido estranho. O somde um motor sendo ligado. Jamie olhou paramim com os olhos arregalados.

— O que é isso? — ele sussurrou.Balancei a cabeça e segurei na mão dele.

Ele não sabia sobre os Andarilhos; Mary e eutínhamos tentado protegê-lo dos pioreshorrores do mundo. Corremos para a pedrade granito na borda da clareira e engatin-hamos lá para baixo, nos escondendo atrásdela. Eu segurava Bella no colo, prendendo ofocinho dela com as duas mãos para impedi-la de latir. Bastava um som e seríamos pegos.As orelhas de Jasper se levantaram como seestivesse sentindo o perigo. Ele e Lunatrotaram para o bosque e desapareceram danossa vista bem a tempo.

25/456

Um bando de homens entrou na clareira aapenas alguns metros de nós. Eles estavamvestidos com uniformes de prisão, de corcinza e gastos, e tinham as palavras“SegMáx” tatuadas grosseiramente com le-tras negras na testa. Alguns tinham armas. Amaioria carregava armas improvisadas: gan-chos, correntes, tesouras de jardineiro, cas-setetes, canos cortados e com pontas afiadas,e o que parecia ser um aparador de cercaviva, cuja lâmina girava ameaçadoramente.Dois homens carregavam um galho grosso.Um saco vermelho, encharcado de sangue,pendia dele.

Tentei cobrir os olhos de Jamie com asmãos, mas sabia que ele tinha visto. Eletinha visto o pior da humanidade. Não ol-hem para cá, não olhem para cá, eu pensavadesesperada. Se os Andarilhos dessem umasegunda olhada para a pedra, iriam percebersombras e viriam até nós. E então poder-íamos nos considerar mortos.

26/456

Tentei segurar Bella perto de mim, mas elafez força e conseguiu se desvencilhar, entãocorreu na direção dos homens, latindo agres-sivamente. Eu queria chamá-la de volta, masmordi tanto os lábios que senti gosto desangue.

Os dois homens segurando a trouxa en-sanguentada pararam e colocaram o galhono chão. Um deles deu um passo à frente,apontando a pistola para a escuridão dafloresta circundante.

— Quem está aí? — ele gritou.Eu me espremi ainda mais contra a pedra,

prendendo a respiração.— Para de se assustar com nada — o se-

gundo homem disse. — É só um cachorroselvagem. Um vira-latas velho e sujo.

O homem com a arma se virou para Bella.Ele não tinha um olho, e uma placa de metalcobria a órbita vazia.

— Vamos, os outros já estão lá na frente —o segundo homem reclamou. — Não

27/456

desperdiça bala com um cachorro magrelo epegajoso. Tem outras coisas pra gente comer— o primeiro homem abaixou a arma comum suspiro. Eles levantaram o galho, colo-caram a carga ensanguentada sobre os om-bros e começaram a se afastar.

Jamie e eu, abraçados e tremendo, esper-amos embaixo da pedra. Quando finalmentesenti o cheiro doce e enjoativo de algo quei-mando, eu sabia que já podíamos sair dali.

28/456

3

O SOL ESTAVA FINALMENTECOMEÇANDO A SURGIR ATRÁS de umapesada camada de nuvens quando voltamospara o Castelo de Balmoral.

— Eliza! Jamie! — a voz inconfundível deMary ressoou no ar parado.

— Você não pode contar para ela — euvoltei a pedir a meu irmão. — Vocêprometeu.

— Eu sei — ele respondeu com a voztrêmula.

— Jamie, preciso que você saiba de umacoisa — eu disse isso puxando as rédeas deLuna para mim, para ficarmos lado a lado. —

Você tem que entender que antes as pessoasnão se comiam. Antes dos Dezessete Dias,não existia isso de Andarilhos. Você precisaacreditar que as coisas vão melhorar — eupensei nele sozinho naquele bosque. — Vocêsabe que existem pessoas boas no mundo.Este é o nosso lado. Se desistirmos, se fugir-mos, as pessoas más ganharão.

Jamie concordou com a cabeça, os olhosarregalados. Mary galopou na nossa direção,puxando as rédeas firmemente para fazer ocavalo parar de repente. Seu cabelo longo elouro caía no rosto, e sua pele cor de marfimestava corada por causa do vento e doexercício.

— Onde vocês estavam? — ela gritou, ol-hando para mim e para Jamie. — Estive pro-curando vocês por toda parte. O último trempartirá em uma hora. Vocês esqueceram quevamos voltar hoje?

— Mary, eu...

30/456

— Jamie! Você sabe que não pode sair doquarto — ela disse, ignorando meusprotestos. — Você precisa se cuidar!

Mary olhou novamente para mim, os olhosapertados.

— Como você pôde deixar isso acontecer?— Eu sei, é culpa minha — eu disse, lut-

ando contra a vontade de desmoronar e con-tar para ela tudo o que tinha acontecido. — Agente queria ter um último dia legal...

— Não, a culpa é minha — Jamie inter-rompeu. — Eu implorei para Eliza me deixarcavalgar.

— Enquanto eu limpava e arrumava tudo,como sempre — Mary retrucou. — Esperoque não tenham ido para perto do bosque.

— Claro que não! Só até o campo — eu de-testava quando mentia para Mary, mas àsvezes não tinha escolha.

Mary me olhou e suavemente começou arelaxar a expressão do rosto.

31/456

— Você sabe como é difícil para mim tersempre que cuidar de vocês?

— Você não é nossa mãe! — eu disse comraiva, e imediatamente me arrependi.

— Alguém tem que ser a mãe aqui — Maryrespondeu baixinho. Eu queria pedir descul-pas, mas ela já estava se afastando com ocavalo.

Ao voltar para o castelo, avistei George,nosso zelador. Ele tinha destrancado asportas de aço da cabana de jardinagem e re-tirado a corrente grossa de metal que asmantinha fechadas. Os tanques de com-bustível ficavam ali, guardados por cãespastores, tão protegidos quanto era possívelsem eletricidade.

O jipe preto que sempre nos levava à es-tação estava estacionado ao lado da cabana.Vi George virar o resto do cano de gasolinadentro do tanque, com um olhar sombrio norosto. Mesmo de onde eu estava, dava paraouvir o lento pinga-pinga da gasolina.

32/456

— Está acabando?George virou-se para mim, e eu percebi

pela primeira vez como ele tinha envelhecidodurante o verão. Havia um buraco nasbochechas dele e ele tinha um olhar preocu-pado, que não costumava estar ali.

— Eles devem terminar de consertar asplataformas em breve — George disse, o quenós dois sabíamos que era mentira.

— A gente pode ir a cavalo. Eles não pre-cisam de combustível.

Eu estava tentando fazer uma piada, masGeorge não riu.

— Temos o suficiente para esta viagem. Asestradas estão perigosas demais para irmosem uma carruagem aberta, arriscando quenos roubem os cavalos.

Olhei para o jipe. Ele era feito de aço evidros a prova de balas, mas George tinhaacrescentado uma camada extra de aço àsjanelas. Armaduras de metal agora protegi-am os pneus, e pontas afiadas tinham sido

33/456

soldadas no teto e nas laterais do automóvel.Ele também havia lixado o W de Windsor.Sem aquilo, percebi que ninguém nos recon-heceria. Desde a morte da minha mãe, meupai não nos deixava aparecer em públiconem que circulassem retratos da realeza. Sónossos nomes eram reconhecíveis.

— Isso é por causa dos Andarilhos?— Os Andarilhos não andam pelas

estradas.— Então para que tudo isso?— Apenas proteção extra. Não deixe sua

linda cabecinha se preocupar com isso — Ge-orge respondeu, virando-se de costas paramim para derramar o resto do combustívelno tanque do jipe.

Ignorei o comentário, pois sabia que elenão queria me ofender, e continuei: — Quemestava na cozinha ontem à noite? Já bemtarde?

George olhou para mim, curioso.— Por quê?

34/456

— Algum funcionário disse que Jamie eraum fardo. E ele ouviu a pessoa falando isso.Descubra quem foi. Por favor — eu acres-centei, no tom mais educado e de princesaque podia. — Ouvir isso acabou com ele.

A porta do meu quarto rangeu quando eu aabri. A garota sentada na minha escrivan-inha se virou e os olhos azuis dela se ar-regalaram de surpresa.

— Eliza! — Polly deu um pulo da cadeira,segurando um pedaço de papel atrás das cos-tas. — Achei que você estava andando acavalo — a voz dela falhava por tentar segur-ar as lágrimas.

— Qual é o problema? — perguntei, an-dando na direção dela. A mão de Polly es-tremeceu e ela continuou escondendo o pa-pel de mim.

— Nada — ela forçou um sorriso. — Eu sóestava escrevendo um bilhete de despedidapara você. Ainda não terminei.

35/456

— Vou sentir tanta saudade de você, Polly— segurei minha melhor amiga em um ab-raço apertado, piscando rápido para tambémtentar segurar as lágrimas.

Ouvimos passos se aproximando da portae Clara entrou.

— Eliza, querida, está na hora — ela traziauma cesta cheia de comida e um cobertor. —Fiz sanduíches para você comer no trem.

Eu me aproximei para dar um grande ab-raço na mãe de Polly. Ela era como uma se-gunda mãe para mim desde que a minhatinha morrido. Envolta nos braços de Clara,com a lã áspera do suéter dela me arran-hando a bochecha, eu me sentia segura.

— Eliza! Vem logo! — ouvi a voz de Mary ládo pátio. Polly e eu reviramos os olhos; entãopegamos minha bagagem e corremos escadaabaixo, começando a rir.

No pátio, Mary estava em pé, parada aolado de uma das portas do jipe, batendo o péimpacientemente. Fiquei surpresa ao ver que

36/456

Eoghan, nosso cavalariço, estava no bancoda frente, ao lado de George.

— Por que ele está indo conosco? Não es-tamos levando cavalos — sussurrei paraMary enquanto escorregava pelo banco detrás para me sentar ao lado de Jamie.

— Eu pedi que Eoghan nos acompanhasse— Mary murmurou de volta, e fiquei aindamais surpresa ao ver que ela estava corando.— Precisamos de ajuda para carregar abagagem.

Abstive-me de mencionar que sempre nosviramos bem apenas com George. Recostei-me no banco, fechando os olhos diante dabarulheira e dos engasgos do motor, que es-tava protestando contra o combustívelaguado. George tinha misturado óleo demilho na gasolina para fazê-la durar mais.Bella pulou do meu lado e eu lhe alisei o peloescuro e macio.

— Espere! — ouvi batidas na porta, abri osolhos e vi Polly correndo ao lado do carro,

37/456

acenando para mim. Rapidamente abaixei ovidro e ela jogou um envelope branco nomeu colo.

— Eu quase esqueci — ela falou, arfante —de lhe entregar isto.

Segurei o envelope junto ao peito.— Vou ler no trem! Tchau, Polly! — Eu

virei e acenei para minha amiga pelo vidrotraseiro do jipe, enquanto ela ficava cada vezmenor até desaparecer na neblina.

38/456

4

DEPOIS DOS DEZESSETE DIAS, MEU PAIMANDOU TRAZER um antigo trem vitori-ano, a vapor, dos túneis subterrâneos, ondeera exposto como peça de museu. Quando euera bem pequena, nós fomos lá uma vez,para conhecê-lo: lembro-me de perseguirMary em meio aos assentos de veludo ver-melho e de beber chá no vagão-restaurantede paredes escuras. Agora, como era o únicotrem do país que funcionava a carvão, ele eratambém, por consequência, o único que fun-cionava. Alguns vagões eram abertos parapassageiros, mas a principal utilidade dessetrem era transportar caixas pesadas de

carvão, pedaços de metal, vidro quebrado emadeira — qualquer coisa que pudesse serderretida ou soldada para virar algo útil — devolta para Londres.

Caminhamos até os lindos vagões do velhotrem, que estava escondido atrás de cercasde arame farpado. Homens empoleirados noalto das cercas, usando máscaras de malha eapontando armas para a multidão, se-guravam uma espécie de arpão com três gan-chos para içar qualquer passageiro clandes-tino. Inúmeras pessoas se empurravam naplataforma. Algumas tinham passagens; out-ras tentavam trocar comida enlatada, carneseca, e até comida fresca ou luvas, por umassento.

— Apenas portadores de bilhetes! — o con-dutor gritava para a multidão. — Clandesti-nos serão retirados imediatamente! — eu se-gurei firme na mão de Jamie enquanto Ge-orge e Eoghan nos puxavam até o Comparti-mento Real.

40/456

Estávamos todos quietos quando o trem seafastou da estação. Jamie desenhou bonecosno vidro embaçado da janela, e depois osapagou com a manga do casaco. Bella estavaencolhida aos meus pés, enrolada no cober-tor dela. Eu olhava as cidades abandonadaspelas quais íamos passando. O sol se pondolançou sombras assustadoras em um antigoparquinho: as correntes do balanço enferru-jado tinham sido cortadas e provavelmentetransformadas em armas, ou usadas pelosAndarilhos para amarrar suas presas.Estremeci, pensando em quão perto doperigo eu e Jamie tínhamos chegado.

A certa altura, a lua apareceu no céu, masmesmo a lua era diferente depois dos Dezes-sete Dias: meio acinzentada e manchada,como se também estivesse coberta pelas cin-zas finas que tinham caído sobre tudo. Jamieuma vez me perguntou se a lua estava doentecomo ele.

41/456

O vagão foi ficando escuro. Mary pegou aluz de carvão: cinzas de carvão comprimidasdentro de uma lâmpada com vidro resistenteao calor. Lentamente, o montinho ficou azul,depois vermelho, lançando uma luz douradasobre nós. Ela pegou dois vestidos de festa eum kit de costura da mala dela. Jamie pegouum livro de palavras cruzadas e uma caixa delápis de cor, e começou a fazer desenhos detrens coloridos e fumegantes. Eu olhei paraos dois vestidos no colo de Mary. Um era corde vinho, com pedrinhas de cristal costura-das em volta do decote; o outro era umvestido simples de seda cor de pêssego, comum babado nas mangas.

— Qual você vai usar? — perguntei, per-cebendo que não tinha nem começado apensar no baile do dia seguinte.

— O vermelho — Mary respondeu. —Estou consertando esse aqui para você. Vaicombinar perfeitamente com seus olhos.

— Obrigada, Mary — eu disse suavemente.

42/456

— Foi da mamãe, então vai ficar bem emvocê.

Eu não disse nada: apenas fiquei as-sistindo aos cuidadosos movimentos daagulha de Mary. Tempos atrás, tínhamostoda uma equipe de costureiras reais, masMary teve de aprender muita coisa desde osDezessete Dias.

— Eu o encontrei no quarto de vestir. Vocêse lembra que ela costumava nos deixar brin-car de fantasia lá dentro? Esse foi o vestidoque ela usou na noite em que conheceupapai.

Eu pensei em um dos quartos do Paláciode Buckingham, cheio de vestidos quehaviam pertencido a antigas rainhas eprincesas. Os magníficos vestidos brancos decasamento que as princesas Diana e Katehaviam usado, e o manto forrado de pele quea rainha Elizabeth usou no dia em que foicoroada. Mas não me lembrava da históriado vestido pêssego.

43/456

Fiz força para sorrir, mas, por dentro, eusofria. Mary tinha muito mais da nossa mãenela do que eu jamais teria, e Jamie nãotinha absolutamente nada.

Jamie tirou os olhos do caderno. Osgrandes olhos azuis dele pulavam ansio-samente de Mary para mim.

— Vocês acham que papai vai ficar feliz emnos ver?

— Claro que vai — Mary respondeu emtom de bronca. — Como é que você faz umapergunta dessas?

Jamie deu de ombros.— Porque ele nunca veio nos ver. Ele está

longe desde junho.Mary tirou gentilmente o cabelo de Jamie

da testa.— Papai tem estado muito ocupado com o

trabalho neste verão. Precisou se reunir como Primeiro-Ministro quase todos os dias —ela explicou.

44/456

— Papai alguma vez explicou o por quê,exatamente? — eu perguntei.

Mary balançou a cabeça em uma negativa.— Projetos de reconstrução, imagino —

Fios do cabelo longo e louro da minha irmãtinham se soltado do rabo de cavalo que elaostentava e agora estavam em volta do rostodela, caindo-lhe sobre os ombros e a blusacor de creme. Nossa mãe costumava dizerque Mary nasceu com rosas nas bochechas,mas não pude deixar de notar como ela an-dava pálida nos últimos dias.

Ficamos em silêncio enquanto comíamosos sanduíches que Clara havia preparado edividíamos uma jarra de água do poço.Estava fria e fresca. Assim como a gasolina, opoço era guardado dia e noite. Água limpaera bastante difícil de achar agora, uma mer-cadoria muito preciosa.

Virei-me para olhar por uma janela do tr-em enquanto passávamos pelos arredores deuma cidade litorânea chamada Callington.

45/456

Os prédios tinham desmoronado como umapilha de blocos de montar. Pedaços dosescombros flutuavam como moscas mortassobre a água. Um outdoor apagado e descas-cado estava rabiscado com as palavras ANOVA GUARDA ESTÁ CRESCENDO es-critas em tinta preta.

Eu me arrepiei com as palavrasameaçadoras, sem ter certeza do que queri-am dizer.

— Mary, o que é isso? — eu perguntei.— O quê, Eliza? — mas quando ela se virou

para olhar, já tínhamos passado pelooutdoor.

O trem balançava ritmicamente sobre ostrilhos, e logo Jamie adormeceu entre nósduas. Eu o cobri até o queixo com umcobertor.

— Ele parece tão em paz quando estádormindo!

Mary concordou com um aceno de cabeçae colocou a mão em uma das bochechas dele.

46/456

— É a única hora em que não sente dor.Segurei a respiração. Eu me perguntava se

ela suspeitava do que tinha acontecidonaquela tarde. Eu queria muito contar paraminha irmã, mas ela já tinha coisas demaiscom que se preocupar.

— Eu também estou ficando com sono —Mary abriu outro cobertor de lã xadrez e secobriu. Então apaguei a lamparina de carvãoe deitei a cabeça em um travesseiro.

— Eliza? — Mary sussurrou, e meu coraçãoparou de bater por um segundo. Eu tinhacerteza de que ela ia me perguntar sobre oque tinha acontecido. — Você acha que ovestido vermelho é escuro demais para meutom de pele?

Olhei para cima, para o teto escuro, lut-ando contra uma estranha vontade de rir.Por que estávamos dando uma festa en-quanto bandos de criminosos devastavamnossas terras? As rosas nem cresciam mais.Mas eu sabia que o Baile das Rosas era o

47/456

último fio de tradição a que o Parlamento seagarraria. Como a linha na agulha de Mary,desesperadoramente tentando consertar osburacos.

— Mary, você sabe que você ficaria lindamesmo usando um saco de batatas.

Eu estava prestes a fechar os olhos quandouma explosão laranja surgiu no céu, deixan-do pequenos traços de fogo em seu rastro.Sentei, observando ansiosamente para veronde ia cair. Um lampejo de luz passou pelajanela do trem, mas depois desapareceu emum instante. O céu ficou negro de novo. Abola de sol tinha apagado e caído na terra.

O clarão tinha sumido, mas eu não con-seguia tirar os olhos dos campos escuros. Euobservava, esperava, só para o caso de outradaquelas explosões aparecer no céu. Essasbolas de sol — pedaços do sol que sesoltavam na direção da Terra — vinhamcaindo do céu desde os Dezessete Dias. Nin-guém sabia exatamente o que causava tal

48/456

fenômeno, mas se uma pessoa fosse pegapela chuva de fogo, morreria.

Mesmo depois de toda a destruição queocorrera na época dos Dezessete Dias, tín-hamos ficado esperançosos. Ainda haviaeletricidade graças aos geradores que meupai disponibilizara para uso de hospitais,corpos de bombeiros e delegacias. O zum-bido dos geradores era estranhamente recon-fortante — era o som da reconstrução, do atode juntar os cacos. Os níveis de água tinhamsido destruídos, o sol estava escondido atrásde uma nuvem de cinzas, mas, enquantoconseguisse ouvir os geradores, eu tinha es-peranças de que tudo, de alguma forma,ficaria bem.

Só que a Inglaterra estava completamentesozinha.

Meu pai tinha mandado o Queen Mary, onavio de guerra de oito mil toneladas daMarinha inglesa, buscar notícias do resto domundo. A Terra tinha silenciado, deitando-

49/456

se em meio à bagunça daqueles dias comouma criança exausta depois de um ataque debirra, mas os oceanos ainda estavamfuriosos. Queen Mary só conseguiu entrarpoucos quilômetros mar adentro: o oceano oengoliu inteiro. Não havia combustível sufi-ciente para mandar outro e ninguém haviarespondido a nenhuma das nossas transmis-sões de rádio. Talvez fôssemos os únicossobreviventes.

Coloquei a mão no vidro da janela, aindaquente por conta da passagem tão próximada bola de sol. O vagão de repente parecia in-suportavelmente frio. Eu tremia apesar docasaco, então coloquei as mãos nos bolsos.Foi aí que senti a ponta afiada de um envel-ope. Eu tinha me esquecido da carta de Polly.Abri-a com um sorriso nos lábios e comecei alê-la:

Minha querida Eliza,Sinto tanto por ter que lhe contar isto.

Você é minha melhor amiga, e se algo

50/456

acontecesse a você, eu nunca mais me sen-tiria inteira de novo.

Você se lembra do meu tio, aquele quetrabalhava em uma fábrica de metais antesde a eletricidade acabar? Noite passada, elebateu na nossa porta com a esposa e o bebêdeles. E os dois disseram que tiveram sortede escapar de um assalto no distrito LS12em Manchester, um arrastão liderado porum grupo que se autodenomina NovaGuarda. Eles tinham armas e munição, e es-tavam atirando em todos que resistiam. Afamília do meu tio conseguiu escapar paraoutro bairro por túneis subterrâneos. Elestiveram sorte.

Meu tio disse que essa Nova Guarda jáocupou vários bairros de Londres. Eles sãoliderados por Cornelius Hollister, que desejamatar toda a sua família e se tornar rei.

Por favor, tome cuidado, Eliza. Sua vidacorre perigo.Polly

51/456

Ao terminar de ler a carta, minhas mãostremiam. Sob a luz fraca da lamparina decarvão, olhei para meus irmãos, quedormiam pesadamente.

Foi quando me ocorreu que por todo o ver-ão eu não tinha tido nenhuma notícia domundo lá fora. Em geral, os funcionários nosdavam notícias de Londres quando traziamcartas do nosso pai, mas este ano foi Claraquem sempre nos entregou a correspondên-cia. Lembrei de uma vez em que entrei na co-zinha e a encontrei com a orelha colada norádio, que ela desligou assim que me viu,dizendo que só conseguia encontrar estática.

Eu me afundei no assento do trem, ol-hando a noite escura lá fora. Eu me pergun-tava quanto meu pai sabia do plano de Cor-nelius Hollister e quanto estava tentandoesconder de nós. Talvez essa fosse a razão deele ter ficado em Londres o verão inteiro.

Quando a luz do sol começou a atravessara neblina, Londres apareceu: os lindos

52/456

pináculos da Catedral de Westminster; a afi-ada e brilhante Torre de Aço, a prisão de se-gurança máxima que se erguia acima detudo; e a London Eye, que ainda se mantinhafirme contra a linha do horizonte, congelada,como os ponteiros do Big Ben. Quando osdesastres dos Dezessete Dias atingiram Lon-dres sete anos atrás, o relógio parou às onzee quinze e nunca mais foi ajustado. Paramim, ele parecia normal, como sempre foi.Mas, enquanto o trem se aproximava da cid-ade, fiquei pensando em quão pouco eu en-tendia sobre qualquer coisa.

53/456

5

NA SEMIESCURIDÃO DAS PRIMEIRASHORAS DA MANHÃ, seguimos os guardaspela estação Paddington, desviando dasgotas de chuva gelada que jorravam pelo tetoquebrado. Passando pelas bilheterias, emque tábuas de madeira fechavam as janelas,pelos trabalhadores descarregando carvão emadeira de vagões de carga, e pela mulher decabelo branco na deserta área das lanchon-etes vendendo xícaras de chá de umachaleira de alumínio. A poeira que caía doteto pousava na nossa cabeça como neve.

Fora da estação, o ar da manhã já estavaespesso com a fuligem cinza. As ruas

pareciam assustadoramente desertas. Semluz artificial, era impossível para qualquerpessoa começar a trabalhar até o meio damanhã. Nosso Aston Martin preto era oúnico carro na rua, apesar de haver várioscavalos, a maioria amarrada a carruagens oua carroças grosseiras. Alguns poucos cid-adãos mais ricos que podiam ter um par decavalos os tinham acorrentado pelas selas acaminhonetes de metal. Os animais tinhamuma aparência horrível: olhos arregalados etristes, e corpos muito magros. Pensei emJasper, bem alimentado e livre para correrpelos campos da Escócia, e me senti culpada.

— As galerias estão transbordando — Maryreclamou ao entrar no carro.

Só pude balançar a cabeça enquantopartíamos em direção ao palácio. Eu se-gurava a carta de Polly no bolso. Ruas alaga-das eram o menor dos nossos problemas.

Quando atravessamos os portões do Palá-cio de Buckingham, os guardas estavam em

55/456

alerta e nos saudaram. Eles ainda usavam ostradicionais chapéus pretos e casacos ver-melhos com botões brilhantes de cobre. Opalácio em si não havia mudado muito,apesar de a fachada de tijolo e pedra calcáriaestar escurecida pelo ar sujo, e de a maiorparte das janelas ter sido fechada com tábuaspara não deixar o frio entrar. Nós moráva-mos em uma pequena área do palácio. Oresto estava fechado para conservar luz e cal-or, itens preciosos naqueles dias. Havia tãopouco óleo sobrando nos nossos tanques queo guardávamos somente para os dias maisfrios.

Dentro do grande hall na Asa Leste, nossopai estava nos esperando, ladeado por doissoldados portando espadas. Por mais anim-ada que eu estivesse de encontrá-lo, fiqueiimóvel ao ver os guardas. Eles nunca ficavamlá dentro antes.

— Mary, Eliza, Jamie! — nosso pai noschamou com sua voz grave e os braços

56/456

abertos. Corri até ele e enterrei o rosto nosuéter macio que ele estava usando, respir-ando aquele familiar cheiro de especiarias.Queria ficar nos braços do meu pai, dormirali mesmo, e nunca mais ir embora, mas emvez disso me afastei e procurei a carta nomeu bolso.

— Pai — eu disse baixinho. — Preciso falarcom você em particular.

— Em particular?— Sim — eu sussurrei no ouvido dele. —

Polly disse...— Eliza — meu pai me interrompeu, a voz

contida. — Agora não é hora.Ele me deu as costas para falar com Mary e

Jamie com uma voz excessivamente alegre.— Me contem tudo sobre o verão de vocês.

Vocês nadaram? Andaram a cavalo? Asamoras brotaram este ano? — ele levantouJamie no alto, como um avião, e o som darisada do meu irmão encheu a sala. Percebique aquela era a primeira vez que eu o ouvia

57/456

rir desde que tínhamos ido para Balmoral,três meses atrás.

Mas logo a risada de Jamie se transformouem uma tosse profunda e rascante. Meu pai oabraçou e começou a dar tapinhas nas costasdele.

— Estou bem, pai — Jamie conseguiu falar,tentando segurar o próximo acesso de tosse.

— Vamos pegar um remédio para vocêagora mesmo — meu pai disse, pegandoJamie no colo e se dirigindo pelo corredoraté o médico do palácio, sem sequer olharpara trás, para mim e Mary. O som áspero datosse do nosso irmão ecoava pelo corredoratrás deles.

Estendi a mão e segurei na de Mary,forçando um sorriso e afundando a carta denovo no bolso.

— Vamos para o salão de festas — eu sug-eri —, ajudar a arrumá-lo para hoje à noite eexperimentar nossos vestidos. Deixo você ar-rumar meu cabelo e fazer minha maquiagem

58/456

do jeito que você quiser — eu detestava mearrumar e Mary sabia disso. Ela sorriu emmeio às lágrimas e apertou minha mão emresposta.

— Vamos nos divertir — ela disse, e rimosenquanto chutávamos os sapatos para longee corríamos pelos corredores do palácio,escorregando por conta das meias em con-tato com o frio chão de mármore.

O salão de festas sempre foi meu lugar fa-vorito em todo o palácio — especialmente oteto pintado à mão, com seus anjos e nuvensfofinhas e estrelas prateadas e brilhantes.Quando eu era pequena, costumava levarmeu cobertor e meu travesseiro para lá ànoite, deitar no chão e ficar olhando para ele.Eu gostava de imaginar que estava flutuandonas nuvens, voando de uma estrela paraoutra. Depois que minha mãe morreu, come-cei a imaginar que aquele teto era o paraíso eque eu podia ir ali para visitá-la.

59/456

Bailes sempre foram a especialidade deMary, mas eu tinha uma queda secreta peloBaile das Rosas. Antes dos Dezessete Dias,rosas brancas e vermelhas eram entreguesem caixas grandes de madeira no dia dobaile. Centenas e centenas de rosas, tantasque o perfume delas enchia o palácio inteiroe podia ser sentido nas ruas em volta. Masdesde então, tínhamos de nos virar com asrosas frágeis que haviam sido preservadas.Elas não tinham perfume e eram da cor desangue seco; não tinham aquela cor fresca depétalas com vida. Papai e Mary insistiam emmantê-las por causa da tradição, mas eramtão feias que me dava vontade de chorar. Eupreferiria não ter rosas no baile a ter aquelascoisas horrorosas e sem vida.

Mary e eu entramos no salão de festas epercebi com alívio que as rosas ainda nãotinham sido trazidas do celeiro.

60/456

Duas empregadas, Margaret e Lucille,usando uniformes preto e branco, se aproxi-maram de nós.

— Bom dia, princesa Mary, princesa Eliza.Bem-vindas de volta — disseram enquanto asabraçávamos.

— Está lindo! — Mary foi saltitando até apista de dança e rodopiou sobre as meias, osbraços abertos como asas. — Queremosajudar. O que podemos fazer?

Margaret tirou do bolso do avental umalonga lista escrita à mão. Antigamente, nin-guém nos deixaria sequer ver o salão de fest-as durante a preparação, e muito menosaceitaria nossa ajuda. Mas Margaret bal-ançou a cabeça e disse: — Bom, paracomeçar, a prataria precisa ser polida, e osguardanapos, dobrados.

Olhei para onde Rupert, nosso mordomo,estava: em cima de uma escada, acendendocada uma das velas brancas do enorme lustrede cristal pendurado no centro do teto. O

61/456

lustre tinha caído no chão durante os Dezes-sete Dias e muitos cristais tinham sequebrado, mas, quando estava aceso, nãodava para perceber.

Então olhei para a prataria já dispostasobre a mesa e comecei a lustrá-la, enquantoa chuva dançava nos vidros jateados dasjanelas.

— Princesas! A que devo a honra da vossacompanhia — nosso pai provocou quandoMary e eu entramos na sala de jantar umahora depois. Ele estava sentado à cabeceirada enorme mesa de quase quatro metros decomprimento, erguendo uma taça de vinhotinto para nos saudar. — Estou muito feliz devocês estarem aqui para nosso almoçocomemorativo.

— O que estamos comemorando? — euperguntei rapidamente. Meu coraçãocomeçou a bater mais rápido. Será que Cor-nelius Hollister tinha sido capturado?

62/456

Meu pai pareceu perplexo, ainda segur-ando a taça no ar.

— Estamos comemorando o fato de estar-mos juntos em família novamente.

Concordei com a cabeça e escorreguei amão para dentro do bolso, segurando a carta,enquanto meu pai dava um longo gole novinho.

— Eliza, querida. Você não vai se juntar anós?

Olhei para Mary e Jamie e depois parabaixo, para a mesa, que estava posta comminha louça favorita, cada peça pintada àmão com um pássaro diferente em vermelho,dourado e amarelo. Em uma travessa tinhapão preto e queijo fatiado, um pouco demanteiga e quatro potes de sopa de legumes.A comida parecia deliciosa, mas eu sabia quenão conseguiria comer nada enquanto nãomostrasse a carta para ele.

— Não — eu respondi, ouvindo minha voztremer. Eu raramente me abria com ele e

63/456

ainda mais raramente o desobedecia. Ele erameu pai, mas também era o rei da Inglaterra.— Pai, isso é importante.

Ele grunhiu de raiva, jogando o guard-anapo na mesa enquanto afastava a cadeira eandava na minha direção. Caminhei até ocorredor, fora do alcance das pessoas na salade jantar.

— Qual é o problema? — ele perguntou se-camente. Pequenas gotas de suor se form-aram na testa dele e ele as limpou com amanga do casaco. Entreguei a carta para meupai e fiquei observando-o enquanto a lia,com um ódio evidente no rosto.

— Bom, é verdade? — eu perguntei, semconseguir esconder a impaciência na voz.

Ele dobrou a carta acompanhando as mar-cas de dobras que já tinham sido feitas.

— Polly sempre teve muita imaginação —ele disse com desdém. — Você se lembra queela costumava fazê-la passar horas no

64/456

bosque esperando por duendes e fadas dasflores? Agora vamos, a sopa está esfriando.

Estendi a mão e o segurei pela manga docasaco.

— Você não respondeu à minha pergunta:existe alguma verdade nisso que a Pollyescreveu?

— Eliza — ele começou a falar com a vozbaixa e comedida. Olhou por sobre meus om-bros para Jamie e Mary, sentados na pontamais distante da mesa na sala de jantar,longe demais para escutarem. — Não vamosfalar sobre isso agora. Vamos aproveitar queestamos juntos como uma família de novo.

— Pai! Por favor. Eu quero saber.— Algumas pessoas reportaram terem

visto Cornelius Hollister, sim. Mas não há oque temer — ele colocou a mão no meu om-bro, tentando me confortar. — Estamos bemprotegidos. Não há como ele se aproximar danossa família de novo.

— Mas...

65/456

— Chega disso!Dei um passo para sair do caminho dele,

deixando meu pai passar tempestuosamentepor mim. Mary e Jamie levantaram os olhoslá do outro lado da sala.

— Agora venha e se junte a nós para o al-moço — meu pai ordenou enquanto afastavaminha cadeira da mesa para eu me sentar.

Olhei para o chão. Uma mistura de ver-gonha e raiva fez meu queixo tremer.

Então levantei o olhar.— Não estou com fome — anunciei e me

virei, dando as costas para ele. Senti meusolhos se encherem de lágrimas enquanto cor-ria pelo corredor, orgulhosa demais para vol-tar agora. Corri até chegar ao meu quarto,onde fechei as cortinas e me encolhi nacama. Só então me permiti chorar. Choreipelo verão sem meu pai, pelo bilhete horrívelque Jamie tinha deixado no diário, pelafamília de Polly, pela minha família, por todo

66/456

aquele sofrimento e destruição. Chorei atépegar no sono de pura exaustão.

O som de alguém batendo na porta meacordou.

— Eliza? — Mary entrou e se sentou aomeu lado na cama. — Trouxe isto para você— ela colocou um prato de comida no meucolo. — O baile começa em uma hora. Vocêprecisa comer alguma coisa e se vestir.

Mary estava pronta: usava o vestidovermelho-escuro com renda antiga nabainha. O cabelo dela estava preso em umcoque alto, trançado com uma tiara dediamantes no topo da cabeça. Ela realmenteparecia uma princesa.

— Jamie está bem? — eu perguntei.Ela balançou a cabeça lentamente.— Ele não pode descer para o baile. A febre

está alta de novo e a tosse está muito forte.Eu me sentia tão mal por Jamie; ele ia per-

der mais um pedaço da vida dele, sozinho no

67/456

quarto enquanto a festa acontecia láembaixo.

— Eu sei que você está brava com papai.Mas, por favor, tente fazer com que esteevento seja legal. Eu deixei seu vestido pen-durado no armário — Mary se virou parasair.

— Espere — eu pedi, e ela parou na porta.— Você pode me ajudar a me arrumar?

68/456

6

A ORQUESTRA TOCAVA UMA VALSAENQUANTO A PROCISSÃO de convidadosentrava pela galeria leste. Este salão de festasera a maior sala em toda Londres, e, mesmoagora, entrar naquele espaço enorme mefazia sentir como se estivesse encolhendo,como em Alice no País das Maravilhas.

Mary e eu descemos a escada principalpara dar pessoalmente as boas-vindas aosnossos convidados. Como ditava a tradição,ficávamos no salão principal sob o teto fol-heado a ouro, cumprimentando cada convid-ado com um sorriso e uma reverênciaeducada.

Até que finalmente chegou a hora dadança escocesa, uma tradição do Baile dasRosas que vinha desde a rainha Elizabeth I.Os homens deveriam chamar seus amoressecretos para dançar e assim lhes fazer acorte.

Eu me afundei graciosamente no sofábranco adamascado ao lado de Lady EleanorBlume, que era muito velhinha e tinhacochilado com a cabeça apoiada na bengala,e fiquei assistindo a um jovem bonito seaproximar de Mary para dançar. Ela colocoua mão na palma aberta da mão dele commaestria, e os dois deslizaram para o centroda sala.

Toquei no delicado bordado da bainha domeu vestido, imaginando a noite em quemeus pais se conheceram e pensando noamor verdadeiro e duradouro que viveram.Olhei para todos os meninos e homens nasala, mas não conseguia me imaginar meapaixonando por nenhum deles.

70/456

— Mas por que uma menina linda comovocê está sentada sozinha nesse baile? —Meu pai estava em pé na minha frente, bar-beado e com o cabelo penteado para trás. —Pode me dar a honra dessa dança, minhaquerida Eliza?

Olhei para ele e respondi: — Ainda estoubrava com você.

— Me desculpe — ele disse simplesmente.— Eu devia ter explicado o que de fato estavaacontecendo no início do verão. Eu nuncadeixarei ninguém machucar esta família denovo — Ele fixou o olhar no meu e estendeuos braços novamente. — Então, pode me dara honra dessa dança?

— Pai — eu suspirei —, você sabe que eudanço muito mal. Meus pés se atrapalham.

— Eu sou o rei da Inglaterra e ordeno quevocê se apoie nos meus pés — ele disse demaneira solene e piscou para mim.

Resmunguei, mas me levantei e segurei namão dele. E coloquei meus pés em cima dos

71/456

sapatos pretos e lustrosos que ele estavausando.

— Você é mais pesada do que eu me lem-brava — ele provocou.

— Isso foi ideia sua — encostei a cabeça nopeito do meu pai e fechei os olhos, enquantoele se esforçava para mexer os pés sob meupeso. Finalmente ri e saí de cima dos pésdele, tentando seguir-lhe os passos.

Meu pai me girou para fora e depois paradentro de novo, fazendo a sala toda rodarvertiginosamente. Os outros pares passavamrodopiando à nossa volta, com vestidos debaile de todas as cores — vermelho, verde,dourado — girando como um bando de pás-saros exóticos. Pensei nas festas que cos-tumávamos fazer no palácio quando minhamãe era viva. Mary e eu nos escondíamos at-rás dos vasos de plantas, roubando doces efofocando sobre quem estava usando ovestido mais bonito. Se estivéssemos as-sistindo ao baile desta noite, eu pensei,

72/456

admirando a maneira como o vestido develudo ressaltava a cor dos lábios ebochechas de Mary, ela teria ganhado.

De repente, um caco de vidro caiu no chão,vindo da janela. Depois outro, e mais outro— uma sinfonia de vidro quebrado ex-plodindo no ar. A música parou e as pessoasque estavam dançando congelaram. Meu paisegurou minha mão enquanto olhávamoscom um silêncio de estupefação para asjanelas quebradas lá em cima. Parecia, emum primeiro momento, um artifíciofantástico da festa: pedaços de vidro bril-hando como diamantes enquanto caíam docéu.

Depois começou o pânico e a gritaria. Ochão do salão de festas estava coberto de ca-cos de vidro, alguns sujos de sangue. Eusabia que tinha cortado o braço, mas ignorei.

— Mary! — eu gritei, tentando abrir cam-inho em meio ao caos.

73/456

Os guardas do palácio entraram montadosem cavalos e eu suspirei aliviada. Masquando eles começaram a revirar as mesas eas cadeiras, e a colocar fogo nas cortinas,percebi com um sobressalto que aqueles nãoeram os guardas que me protegeram a vidainteira. Eram impostores.

— Mary! — gritei de novo, mas, como asala estava tomada por gritos, os meus nãoeram ouvidos.

Meu pai me empurrou contra uma parede.— Fique aqui — ele me ordenou com

firmeza.Os homens nos cavalos, que estavam lá do

outro lado do salão, partiram para cima dele,atropelando quem estivesse no caminho.Uma senhora idosa gemia caída no chão, ocabelo branco manchado de sangue porcausa de um corte na têmpora. Eu assistiaterrorizada a meu pai ficar na frente de umdos cavalos em disparada e tentar tomar as

74/456

rédeas do cavaleiro antes que ele matasseaquela senhora pisoteada.

— Por que vocês estão fazendo isso?! — eugritei para o salão todo ouvir.

Um guarda subitamente virou o cavalo naminha direção, me encostando ainda maiscontra a parede.

— O que você disse?Olhei para cima e vi um par de frios olhos

azuis. Eu o reconheci imediatamente: ocabelo louro-claro e os dentes brancos e bril-hantes — aquele era o rosto que me davapesadelos. O homem que havia matadominha mãe. Cornelius Hollister.

Ele vinha nos observando. Esperando. Ede repente minha raiva superou qualquermedo que eu pudesse estar sentindo no mo-mento. Se ele ia me matar, eu queria que merespondesse primeiro.

— Por que vocês estão fazendo isso com agente? — eu repeti bem alto, porém maiscalmamente dessa vez.

75/456

Ele se virou, olhando lá para trás, para seuexército, como se estivesse buscando umaresposta.

— Porque vocês representam uma era queprecisa chegar ao fim. Porque, enquanto aInglaterra está passando fome, vocês estãodando um baile — ele respondeu enquantodescia do cavalo. Esforcei-me para não re-cuar enquanto ele se aproximava. Então Hol-lister sacou uma arma e encostou-a no meupeito.

Senti o metal gelado através da seda dovestido. Não ousei desviar meus olhos dosdele. Tudo de que ele precisava era fazer ummovimento simples com o dedo indicador eeu estaria morta.

— Sinto muito, princesa Eliza — ele disse,mas não parecia ser verdade, pois disse issoenquanto engatilhava o martelo da pistola.Então fechei os olhos, travei o corpo, cerreias mãos e esperei ele atirar.

76/456

— Abaixe essa arma agora — era a voz domeu pai. Ele estava imóvel, apontando umaarma dourada, fina como um lápis, para Hol-lister. E, sem nenhum aviso, puxou o gatilho.Como se tudo estivesse em câmera lenta, abala bateu no colete a prova de balas de Hol-lister, fazendo um som sibilante enquantocaía no chão. Eu olhei, confusa, para a balainútil, caída no chão como uma moeda per-dida. Hollister não se machucou. Mas, no ex-ato momento em que se distraiu, meu paicorreu até mim. E pude sentir por um últimoe breve momento a segurança dos braçosdele. Então Hollister nos viu, e os olhos friose azuis dele eram apenas rasgos raivosos.

— Não! — eu berrei enquanto ele puxava ogatilho. A bala entrou pelas costas do meupai e saiu pelo peito. Ele caiu no chão e ocorpo dele foi ficando flácido.

— Papai! — eu gritei, me agachando e tent-ando apertar inutilmente as mãos contra a

77/456

flor de sangue que já manchava a camisabranca do fraque que ele estava usando.

— Eu... eu sinto muito — ele murmuroucom a voz trêmula. Ainda tentou me es-tender a mão, mas ela caiu de lado e o corpodele ficou imóvel. E eu soube que, naquelemomento, meu pai tinha ido embora.

Tudo à minha volta, o caos, o barulho, asbrigas, tudo se dissolveu enquanto eu olhavapara ele em um torpor de incredulidade. Umpar de mãos me agarrou pelos ombros, melevantando e me levando para longe dele,mas eu tentava me soltar.

— Eliza! Vamos! — a voz de Mary me acor-dou do meu transe. Ela costurou comdestreza um caminho através da confusãoaté a passagem de serviço escondida atrás daescada dos fundos.

Enquanto corríamos para nos salvar emmeio à chuva de balas que voavam pelo salãode festas, me arrisquei a olhar para trás umaúltima vez. O corpo do nosso pai estava no

78/456

chão, e o sangue dele se esvaía tão vermelhoquanto as rosas espalhadas pelo salão.

79/456

7

MARY SE ATRAPALHOU COM OFERROLHO DA ESCADA DE serviço porcausa das mãos trêmulas. Eu cobri osouvidos, tentando bloquear os gritos e o somdos tiros e dos cascos dos cavalos. Final-mente, ela empurrou a porta, entrou cor-rendo e me puxou bruscamente atrás dela.

Eu a segui pela escada estreita, segurandofirme meu vestido para não tropeçar. Marycorria de maneira decidida, e os passosfirmes e rápidos da minha irmã me diziam oque eu ainda me recusava a encarar: elaagora era rainha da Inglaterra.

Ao atingir o topo da escada, chegamos aum longo corredor com tapetes persas e mol-duras de madeira escura, no qual uma fileirade velas iluminava nosso caminho. Em al-gum lugar do enorme labirinto de corredoresimaginei poder ouvir o exército de Hollisterse aproximando.

Em uma porta logo à nossa frente haviauma placa pendurada e ornada com umafaixa de blocos coloridos como o arco-íris eamarrados um no outro. Nela lia-se “Quartode Jamie”. Arranquei a placa e o barbante separtiu na minha mão. Os blocos caíram nochão. Eu tinha ajudado Jamie a fazer essaplaca quando ele tinha 4 anos. Lembro-mede nós dois sentados na frente da lareira, to-mando chocolate quente com mel, enquantocosturávamos os blocos uns nos outros.Mesmo isso tendo acontecido depois dosDezessete Dias, de repente essa memóriaparecia ser de muito antes — de tantos anos

81/456

atrás que era de um tempo impossível de serlembrado.

Mary passou voando por mim e abriu aporta com um empurrão. O quarto estava emsilêncio, as cortinas azul-claras balançavamcom o vento. Sob a luz fraca, Mary e eu cam-inhamos até a cama de Jamie. A colcha es-tava puxada de lado e a cama, vazia. Tudoque havia lá era o amado ursinho Padding-ton do nosso irmão.

— Eles o levaram! — a voz de Mary tremeude pânico. Fiquei olhando incrédula para acama vazia. Mary estendeu a mão para pegaro ursinho caolho.

Eu queria conseguir sentir alguma coisa.Até chorar teria sido um alívio.

— Qual é o problema?No meio da minha onda de tristeza eu de-

via estar imaginando a voz do meu irmão.Levantei a cabeça. Na luz nebulosa, vi Jamiede pé na minha frente, vestindo um pijama

82/456

listrado de azul e branco, o cabelo todobagunçado.

— Jamie? — Minha voz fraquejou ao pro-nunciar o nome dele. — É você?

— Quem mais poderia ser?— Jamie! — Mary exclamou, lágrimas

escorrendo-lhe pelo rosto. — Onde você es-tava? Você não estava na cama. A genteachou que... — ela parecia estar dando umabronca nele e Jamie deu um passo para trás,assustado.

— Eu peguei no sono no banco da janela —ele começou a explicar.

— Ah, Jamie, aconteceu uma coisa horrível— Mary estendeu-lhe a mão e ele correu paranos abraçar. Jamie tinha cheiro de xampupara criança e de remédio para tosse.

O som de passos pesados ecoava nocorredor lá fora.

— O que está acontecendo? — Jamie per-guntou, olhando assustado para Mary e paramim.

83/456

— Shhh — Mary pressionou um dedo con-tra os lábios. Era possível ver sombras semexendo pela fresta de luz que passava porbaixo da porta do quarto.

— Eles estão bem aqui fora — eu sussurrei.Então peguei a cadeira da escrivaninha deJamie e a coloquei firmemente embaixo damaçaneta. Eu sabia que isso não era sufi-ciente para detê-los, mas iria no mínimoretardá-los.

— Mary? — Jamie olhou para nossa irmã,os olhos piscando de medo.

— A gente explica tudo mais tarde — eudisse para ele, surpresa com minha vozcalma. — Agora precisamos encontrar umjeito de sair daqui — tentei vasculhar oquarto mentalmente. Chamas vermelhas eviolentas dançavam do lado de fora dajanela, e suas pontas ondulavam como mãostentando me agarrar. Tentei olhar atravésdas labaredas para o pátio lá embaixo, ondeos verdadeiros guardas reais lutavam contra

84/456

os impostores. Balas e lanças riscavam o ar.Corpos de soldados mortos amontoavam-seno chão de paralelepípedos.

Sem aviso prévio, uma lâmina de machadoatravessou a porta do quarto. A cadeira queeu tinha colocado embaixo da maçaneta sequebrou em pequenos pedaços que caíramno chão como palitos de dentes.

Mary gritou, segurando Jamie nos braçosenquanto outra machadada despedaçava amadeira da porta. A lâmina de aço brilhavasob a luz.

— O armário de guerra! — sussurrei comurgência. Como eu não tinha pensado nissoantes?

Os olhos de Jamie se iluminaram.— Ele leva aos túneis subterrâneos. Po-

demos escapar por lá! — a passagem antiganão era usada desde a Segunda GuerraMundial.

Mary pegou a colcha e vários suéteres deJamie. Nós nos agachamos para entrar no

85/456

armário dele, tateando a madeira do fundona escuridão, procurando a maçanetaescondida.

— Achei — Jamie gritou, animado. Apesardo medo, senti meu peito se encher deorgulho.

A porta escondida se abriu e revelou umpequeno elevador de tração projetado paranos levar até os túneis de segurança lá em-baixo. Nós três mal cabíamos no pequenocompartimento, mesmo sentados encol-hidos, os joelhos colados no peito. Estendi amão para acionar o mecanismo.

— Meu remédio — Jamie disse de repente.Minha mão segurou firme nas cordas.

Jamie não sobreviveria muito tempo sem ele.Mary abriu a passagem mais uma vez evoltou para o quarto. Já fora do elevador,fiquei espiando pela fresta da porta doarmário.

— Eles não entraram ainda — eu disse, ocoração disparado.

86/456

Jamie correu para fora antes que eupudesse impedi-lo.

— Eu pego. Eu sei onde está.— Vão logo. Por favor, vão logo — eu sus-

surrei para eles.Assim que Jamie voltou para o quarto

escuro, ouvimos o som alto de uma pancada.Os soldados tinham finalmente quebrado aporta. Voltei para perto do elevador, espi-ando o que acontecia pela abertura da portado armário.

Mary segurou na mão de Jamie e, deforma protetora, puxou-o para trás dela. Agrande porta de carvalho tinha desabado nochão, levando com ela as luminárias. Quatroguardas entraram e agarraram os dois.

Mary chutou e bateu, lutando contra osguardas com toda a força que tinha. Masquando outro homem agarrou Jamie e ojogou no chão, pressionando uma espadacontra a garganta dele, ela parou de resistir.Mas, antes de se virar cuidadosamente para

87/456

os guardas, Mary arriscou uma única olhadasignificativa, por sobre os ombros, como sequisesse que eu entendesse as intençõesdela. Eu sabia o que ela queria: que eu es-capasse. Olhei para o elevador. Se eu ficasse,seria feita refém junto com meus irmãos.Mas como eu podia ir embora?

— Onde está a outra? — um dos guardas,que parecia ser o líder, berrou para Mary.Ela permaneceu em silêncio, mordendo oslábios. — Responda! — ao ver que ela não iriadizer nada, o homem ergueu o punho eacertou-a no rosto. Sangue espirrou da bocade Mary.

— Vasculhem o quarto — o líder mandou,olhando para um guarda mais jovem que es-tava de pé na porta. Este começou a reviraras coisas de Jamie, mexendo nos cobertorese espiando embaixo da cama.

— Comece pelos armários — o guarda maisvelho ordenou de forma ríspida.

88/456

Dei um passo para trás, tentando meesconder no meio das roupas penduradas.Não dava tempo de entrar de novo no el-evador. Procurei silenciosamente por algoque pudesse usar como arma, mas tudo queconsegui encontrar foi um sapato.

O jovem guarda abriu a porta do armário eafastou casacos e roupas. Os cabides de met-al tilintavam uns contra os outros, as roupasbalançavam. E então ele me viu.

O rapaz parou por um momento, a mão naarma, enquanto nos encarávamos. O cabelolouro sujo caía-lhe na testa em cachos ba-gunçados, e seus olhos verdes brilhavam.Prendi a respiração.

Ele abaixou a arma e deu um passo paratrás.

— Está vazio — ouvi o jovem guarda dizerpara os outros. Ele fechou a porta do armárioe me deixou cercada pela escuridão outravez. — Chequem a escada dos fundos.

89/456

Ouvi o som dos passos pesados dos guar-das no corredor quando saíram correndo doquarto.

Sentada dentro do armário, petrificada,me perguntei: Ele tinha me visto ou não?

Ao sair do armário, tropecei, confusa. Oquarto de Jamie estava rapidamente se en-chendo de fumaça negra. Labaredas foramlevadas para dentro pela brisa, dando inícioa pequenos focos de incêndio.

— Mary! Jamie! — eu gritei, andando peloquarto cheio de fumaça. Eu ainda estavaagarrada a um dos suéteres de Jamie, quecoloquei sobre a boca para proteger os pul-mões. Em apenas alguns segundos o fogo sealastrou para a cama do meu irmão, para ocarpete e para as almofadas de pelúcia nochão. As chamas atingiram meu cabelo.Abafei-as com o suéter, mas as pontas domeu cabelo ficaram chamuscadas.

90/456

— Mary! Jamie! — eu gritei de novo, mas oúnico som que ouvia era o das chamas es-talando enquanto engoliam o quarto.

Eles tinham ido embora e eu não tinhaoutra alternativa a não ser ir também.

Corri de novo para o armário. O ar estavamais limpo lá dentro, e eu o respirei longa esofregamente enquanto entrava no elevadore puxava a alavanca.

Ao chegar lá embaixo, saí aos tropeços doelevador e comecei a correr pelo túnel, meuspés afundando em poças de água. Estava tãoescuro que mais de uma vez quase dei decara com uma parede, derrapando frenetica-mente para parar. Teias de aranhas atingiammeu rosto e morcegos agitavam as asas àminha volta. Então senti cheiro de fumaça ecomecei a entrar em pânico. Aqueles túneisnão eram usados há mais de cem anos.

Depois, um ínfimo fio de luz apareceu aolonge, mas começou a ficar cada vez maior

91/456

até eu perceber que era um pequeno retân-gulo de metal: a escotilha de saída.

Alcancei o trinco, pressionando a mãocontra a superfície de metal. Mas ele estavaemperrado, enferrujado depois de décadassem uso. Dei alguns passos para trás, junt-ando toda a força que ainda tinha para correre jogar o peso do meu corpo contra aquelaabertura. A escotilha se abriu e eu saí para anoite.

Respirei fundo em busca de ar fresco, masnão havia. O ar estava abafado e pesado comfumaça. Eu me virei para o palácio e vi queas chamas escalavam a fachada de pedracomo vinhas. Os soldados de Hollister es-tavam espalhados pelo campo, destruindotudo que viam, e atirando nas pessoas quetentavam fugir.

Examinei o jardim procurando um jeito deescapar. Meus olhos pararam nos canteirosde rosas que eu tinha plantado com minhamãe e que desde os Dezessete Dias estavam

92/456

sempre enlameados e vazios. Um som pipo-cou no ar como um tiro. Todos os vidros dasjanelas do palácio estavam explodindo.Abaixei-me e cobri a cabeça com as mãos en-quanto cacos transparentes caíam sobre mimcomo granizo afiado. E, de repente, tropeceiem algo e caí para a frente. Deitada atraves-sada na passarela estava uma pequena equente montanha de pelos.

— Bella! — eu gritei, tocando-a no peito.Haviam cortado-lhe a garganta e a respir-ação dela estava superficial e lenta.

Bella olhou para mim. Ela tentou farejarminha mão enquanto eu olhava para os ol-hos grandes e castanhos da minha cadela.

— Sinto muito — eu falei, impotente.Deitei a cabeça no chão úmido ao lado deBella, e coloquei os braços em volta dela. Apoça de sangue se espalhava pelas pedras. —Sinto muito não ter conseguido proteger vo-cê — eu senti os últimos e difíceis suspiros

93/456

dela. Olhei para cima, para as estrelas quasesem brilho e para a mancha que era a lua.

Ouvi os passos pesados e as vozes ásperasdos guardas vasculhando o jardim dopalácio.

Que eles me peguem, pensei, que mematem aqui. Minha mãe estava morta. Meupai tinha sido assassinado. Meus irmãos es-tavam possivelmente mortos. Até minha ca-chorra eles levaram de mim. Todos que euamava tinham ido embora. O peso da dorcaiu sobre mim como um cobertor dechumbo. Fechei os olhos e continuei deitadaao lado de Bella, esperando eles me encon-trarem e me matarem também.

Mas em vez do cano gelado de uma armaou da lâmina afiada de uma espada, de re-pente senti algo macio, uma asa se es-fregando no meu rosto. Toquei-o, pensandoque eu já devia estar morta e que já estavacom minha mãe novamente. Então ouvi umassobio suave e abri os olhos. Empoleirado

94/456

nos restos queimados do roseiral estava umpequeno pássaro.

— Blue? — eu sussurrei, ainda achandoque estava imaginando coisas.

Ele assobiou de volta e depois saiu voandopela noite no céu cheio de fumaça.

Blue era um gaio azul bebê que, contra to-das as probabilidades, tinha sobrevivido aosDezessete Dias. Mary e eu o ouvimos chilreare o encontramos ainda vivo, cercado peloscorpos mortos dos outros pássaros e pelocorpo aberto da mãe dele, pousado protet-oramente sobre o ninho. Eu o peguei e oaqueci com as mãos — e ele estava tão as-sustado que o coração batia muito rápidodentro do seu corpo pequenino.

Fiz um ninho de palha e desenterrei min-hocas do jardim, que esmagava e dava paraele várias vezes por dia. Deixei-o em segur-ança dentro de uma pequena caixinha demadeira para que ficasse mais forte. Até queum dia, enquanto eu o segurava, ele abriu as

95/456

asas e voou para longe das minhas mãos. Elepareceu tão feliz! Quase surpreso de ter asase poder voar.

Ao pensar na felicidade de Bluedescobrindo que podia voar, alguma coisadentro de mim me fez ficar de pé. Levantei-me, meio entorpecida, e fui até o buraco deuma das últimas três árvores que ainda haviano jardim.

Um grupo de soldados corria pelo gra-mado e passou pelo lugar onde eu havia es-tado segundos antes, pisando no pequenocorpo de Bella. Eles carregavam tochas, e asbotas cheias de espetos de metal que es-tavam usando brilhavam sob a luz daschamas. Na entrada do palácio, outrosoldado abriu fogo contra uma mulher quecorria tentando se salvar. Ela caiu no chãocom um gemido trêmulo. Era Margaret, umade nossas empregadas. Gritei por dentro,cerrando os punhos com tanta força que

96/456

cravei as unhas na palma das mãos até sairsangue.

Queria fechar os olhos, mas me recusei adesviar o olhar. Soldados ainda saqueavam opalácio, levando armas, comida, tudo o queconseguiam carregar. Eles tinham até encon-trado os últimos tanques de óleo. Os ser-viçais do palácio, os convidados, todos quenão tinham sido mortos, estavam sendo am-arrados e vendados, e depois jogados nofundo de caminhões cobertos com lonapreta. Os gritos aterrorizados dos prisioneir-os se espalhavam pelo ar da noite. Os solda-dos os ignoravam e enchiam os tanques doscaminhões com o óleo que haviamdescoberto. As palavras rabiscadas nas lat-erais dos automóveis brilhavam sob a luz daschamas dançantes: O NOVO REGENTECHEGOU.

Os caminhões saíram pelos portões, comos soldados montados a cavalo seguindo deperto. Depois eu vi Hollister: o cabelo louro

97/456

brilhando, uma das mãos erguida em sinalde vitória enquanto se afastava dos destroçosqueimados da minha casa.

Eu estava viva. Minha vida tinha sidopoupada, e só podia ser por uma razão.

Eu tinha de matar Cornelius Hollister.

98/456

8

MEUS PULMÕES DOÍAM ENQUANTO EUCAMINHAVA PELA estrada deserta.

Eu tinha perdido os soldados de vista hor-as atrás, mas, apesar da exaustão, con-tinuava seguindo firme e em frente. Eu tinhasaído correndo do palácio atrás doscaminhões, perseguindo-os rua após rua, asluzes traseiras ficando cada vez mais apaga-das enquanto eu ia ficando para trás. Agorasentia os pés doerem, as sapatilhas de sedarasgadas e em farrapos. Mas eu precisavacontinuar. Mantive-me na estrada seguindona mesma direção em que tinha visto oscaminhões pela última vez. De vez em

quando, sentia cheiro de diesel e sabia queestava no caminho certo. Ninguém maistinha carros além da Família Real — e, agora,de Cornelius Hollister.

Eu não fazia ideia de quanto tinha camin-hado, apenas me guiava pelo rio Tâmisa.Apesar de cheirar a salmoura e a lixo, apresença familiar dele, sempre como umasombra negra à minha esquerda, era estran-hamente reconfortante. Eu sabia, por contada posição do rio, que estava indo para osudoeste.

Olhei para os subúrbios desolados à minhavolta. Nenhuma pessoa à vista, nenhuma luznas ruas. Um bando de ratos cruzou a rua emdebandada e desapareceu em um bueiro. Eutremi. Meu vestido pêssego praticamentenão oferecia nenhuma proteção contra osventos cortantes que vinham do rio. Eu es-tava congelando; tinha perdido o suéter deJamie em algum momento da minha fuga.Jamie. Meus joelhos cederam quando pensei

100/456

na expressão no rosto do meu irmão quandoo levaram. Mas balancei a cabeça, tentandoexpulsar essa lembrança. Eu não podiapensar sobre a noite passada, não ainda —porque, quando me lembrava, quando en-carava o fato de que meu pai tinha morrido eque meus irmãos tinham sido capturados, eusofria, mas não podia fazer isso agora. Eunão podia parar.

Ouvi um ruído de pneus atrás de mim. Pormeio segundo me permiti pensar que era oExército Real vindo me resgatar, mas eusabia que isso não era possível. Não existiamais Exército Real. Então corri para o acost-amento da estrada, me escondendo na en-trada escura de um prédio recoberto portábuas de madeira, torcendo para não servista.

Um caminhão se arrastou pela estrada,indo na mesma direção que eu. E estava graf-itado com a mesma mensagem que eu havia

101/456

visto antes: A NOVA GUARDA ESTÁSURGINDO.

Comecei a correr atrás dele, mas diminuí opasso depois de poucos minutos. Se eupudesse seguir um desses caminhões, ele melevaria ao acampamento de Cornelius Hol-lister. Mas eu nunca ia conseguiracompanhá-los a pé.

Da próxima vez, eu estaria preparada.Um bando de pombos voou para o oeste

sobre o rio Tâmisa. Uma rajada de vento meatingiu com tanta força que precisei me se-gurar no pilar de aço embaixo da ponte, pro-tegendo os olhos das cinzas que eram sopra-das. Depois, tão rápido quanto surgiu, ovento se foi. O ar estava parado de novo.

O vento trouxe o cheiro pútrido e podre delixo. Lutei contra o impulso de tampar o nar-iz e, em vez disso, me dirigi para o rio. Bar-cos de lixo costumavam navegar peloTâmisa; a pilha de lixo talvez tivesse algousável, afinal, eu não podia aparecer no

102/456

acampamento da Nova Guarda com umvestido de festa. Eu tremia enquanto camin-hava pelas margens do rio. Mais ao longe av-istei o barco vermelho e preto, abandonado ejogado para a margem por uma tempestade.As pilhas de lixo amontoavam-se nas lateraisdo rio, os sacos de plástico preto rasgados.Apesar da luz fraca, vi a silhueta de pessoasandando pelas pilhas, pegando o que fossepossível. Eram os Coletores: os sem-teto quesobreviviam catando os lamentáveis restosdos tempos antigos. A cada ano havia menoslixo aproveitável. O que aconteceria quandonão houvesse mais nada digno de salvar?

Eu nunca tinha visto Coletores antes. Sóapareciam quando caía a noite.

Esperei, agachada, observando-os. Eutremia descontroladamente sob o vestidofino e úmido: a pele dos meus braços pareciagelo, e meus dedos estavam dormentes. Eunão podia ficar assim. Não havia saída a nãoser juntar-me a eles. Dirigi-me

103/456

cuidadosamente para o barco, mas semprealerta para o caso de precisar voltar para aestrada.

Sob a névoa que subia do rio, os Coletorescatavam nas pilhas de lixo. Eles erammagros, mas pareciam perigosos, como setivessem sido desenhados a navalha. Várioshomens carregavam pedaços de cano nosombros tensos, prontos para bater em al-guém a qualquer momento. Pedaços de lixovoavam em volta deles, e uma cadeira deplástico voou com uma rajada de vento, indopousar no rio.

— Alguém está vindo — uma menina ex-clamou, e todos os Coletores viraram acabeça, os olhos escuros me analisando. Umamulher mais velha, com olhos cansados, le-vantou ameaçadoramente o cano que se-gurava. Não pude deixar de perceber que elatinha feito buracos na ponta dos sapatos, deforma que os dedões coubessem. Imagino

104/456

que um sapato pequeno demais era melhordo que nenhum sapato.

— Eu não quero problemas — falei alto, asmãos para cima. Uma menina de cabelolouro, quase branco, levou uma das mãos àscostas e puxou uma barra de ferro que tinhatido uma das pontas afiada. Ela apontou abarra, como uma lança, diretamente parameu peito.

Dei um passo para trás.— Por favor — implorei —, só estou pro-

curando roupas. Alguma coisa que meesquente.

A menina olhou para o homem de cabeloprateado em busca de aprovação. Ele entãobalançou a cabeça lentamente.

— Cinco minutos — disse o líder. — Esta énossa área e não gostamos de invasores —eles se viraram como se fossem uma só pess-oa e se afastaram de mim.

Tremendo de forma incontrolável, tenteipeneirar pelos sacos plásticos que estavam

105/456

molhados, rasgados e cobertos de fuligem.Mesmo no frio, o cheiro era enjoativo.Agachei-me e comecei a procurar: pegueiuma garrafa quebrada, caixas de bebida,potes de plástico, caixas de suco, um laptopquebrado com um líquido marrom ácido dabateria pingando da estrutura prateada comose fosse sangue. Tudo estava encharcado,coberto de mofo, decadente. Olhei derrotadapara as pilhas de lixo.

Envolvi meu corpo com os braços congela-dos na tentativa de me aquecer. Minhasmãos estavam tão frias que eu não conseguiaabri-las ou fechá-las para continuarprocurando.

— Você está tremendo. Seus lábios estãoazuis — ouvi uma voz dizer.

Olhei para cima e vi a menina loura com abarra de ferro. Ela trazia algo nas mãos.

— Tome, pegue isto — E jogou um montede roupas aos meus pés.

106/456

Tentei agradecer, mas meus lábios es-tavam congelados demais para falar. Tateeirapidamente a pilha de roupas: vesti umsuéter de lã e pulei dentro de umas calças dehomem que iam até o chão.

— Obrigada — eu disse, tentando falar comos lábios adormecidos. — Por favor, umaoutra coisa. Os caminhões que passam poraqui... com as pichações. Você os viu? Sabepara onde vão?

Ela balançou a cabeça, me olhandopensativamente.

— Eles passam a intervalos de poucas hor-as pela estrada que há atrás desse muro.Quando ouvir os caminhões, esconda-se.Eles a levam se a virem. E se a levarem, vocênão volta mais — ela começou a se virar parair embora.

— Espere! — eu gritei. — Por favor, espere— Levei a mão ao pescoço para sentir o toquefrio do relicário. Eu tinha me esquecido detirá-lo. A foto da minha mãe e a inscrição

107/456

com meu nome, Elizabeth, me entregariamna hora. Levei as mãos à nuca para abrir ofecho. Deixando-o cair na palma da minhamão, eu o abri para olhar pela última vez afoto da minha mãe. Mais um adeus que euestava sendo forçada a dizer muito antes deestar pronta para isso. — Por favor, tomeconta dele — eu disse, entregando o relicáriopara a menina. O ouro brilhou sob a luzfraca.

Ela olhou para o colar em choque, como senunca tivesse visto nada tão lindo. Depoisbalançou a cabeça.

— Boa sorte — a menina disse, e, sem maisuma palavra, começou a correr pelasmontanhas de lixo na direção dos outros Co-letores, que esperavam por ela.

Quando levantei a mão para dar adeus,ouvi o som de um motor. Escalei o muro eme encolhi de forma meio improvisada, tent-ando parecer menor e chamar o mínimo deatenção possível. O caminhão estava se

108/456

aproximando pela minha esquerda, car-regado de farinha de trigo e alimentos. Ia seruma aterrissagem fácil.

Então segurei a respiração, esperando atéo caminhão ficar bem embaixo de mim, epulei.

109/456

9

SENTEI NA CAÇAMBA DO CAMINHÃO,ME APOIANDO ENTRE um saco de farinhade trigo e um barril de algum líquido que jor-rava para lá e para cá. Meu coração estavadisparado. Eu não sabia que tipo de barulhomeu pouso tinha feito, mas o motorista nãotinha encostado o carro e sequer diminuído avelocidade. Depois de alguns minutos mesenti segura o suficiente para tentar dar umaespiada e reconhecer a redondeza.

Lá na frente, iluminado contra o céu queamanhecia, surgia o contorno de um paláciocom torres. O reflexo de luzes de carvão

brilhava nas janelas da construção. Eu a re-conheci imediatamente: Hampton Court.

Eu me lembrava daquele palácio comosendo a residência de Henrique VIII e de to-das as esposas dele, uma atração turísticaantes dos Dezessete Dias. Mary e eucostumávamos visitá-lo com nossas gov-ernantas, Rita e Nora, quando éramospequenas. Nós navegávamos pela cidade noBarco Real, seguindo as margens verdes dorio e acenando para quem nos observava en-quanto passávamos. Era o que mais gostáva-mos de fazer no verão. Nós nos vestíamoscom vestidos brancos e chapéus de palha deabas largas. E o palácio era fechado para opúblico, a fim de que pudéssemos ficar nojardim tomando chá gelado com bolinhos.

Quando passamos pelo portão da frente,me escondi embaixo de um saco de farinha.Mesmo que o exército de Hollister estivesseprecisando de novos recrutas, eu duvidavaque eles iriam gostar de descobrir um

111/456

passageiro clandestino no caminhão demantimentos.

O caminhão diminuiu a velocidade eparou. Esperei ouvir os passos do motoristadesaparecem na direção da entrada, mas emvez disso ouvi-o se aproximar dos fundos doveículo. Segurei a respiração.

— O que temos aqui? — um homem comcabelo sujo e cacheado e um nariz tortoafastou os sacos para o lado, revelando meuesconderijo. Ele sorriu para mim com a bocacheia de dentes quebrados.

— Estou aqui para me alistar no exército —eu disse, forçando a voz para parecer maisforte, dura e neutra.

— Na caçamba de um veículo de serviçosalimentares? Isso me parece mais roubo.

— Por favor — eu implorei rapidamente. —Está frio aqui fora e eu estava caminhandodesde Londres. Pode checar: não toquei emnada.

112/456

O guarda me olhou de uma maneira es-tranha. Percebi o olhar dele percorrendomeu rosto, meu peito e minhas pernas.Congelei. Será que ele tinha me reconhecido?

— Bom, você está com sorte — ele falou. —Não existe alistamento aos domingos. Emgeral, você teria que voltar amanhã de man-hã. Mas, como sou o oficial que recruta, voualistá-la agora mesmo. Vai ser nossopequeno segredo.

— Obrigada — eu disse, firmando a voz.Ele fez um gesto para eu acompanhá-lo, e euo segui por um caminho que passava pelaantiga portaria, onde um cartaz sobre a portadizia NOVOS RECRUTAS.

— É aqui? — eu perguntei, parando emfrente à porta.

— O alistamento fora de hora é por aqui,um pouco mais à frente — ele então apontoupara a frente, mas tudo que pude ver foi umcampo deserto. De repente, senti a mão deleno meu ombro.

113/456

— Então, qual é seu nome, hein?Meu coração começou a acelerar. No palá-

cio, ninguém ousaria me tocar assim. Mas eunão fazia ideia se aquele era um comporta-mento normal. Sorri discretamente e dei umpasso para trás, escapando do alcance dele.

— Você é bem bonita — ele continuouavançando na minha direção, me encostandocontra a parede. Senti a mão dele no meupeito e tentei me contorcer para me afastar.

— Por favor — eu pedi, mas ele se inclinou,chegando ainda mais perto, e pressionou aboca contra a minha. Então gritei: — Saia decima de mim! — tentei bater no peito dele,lembrando-me do que o Mestre de ArmasReal tinha nos ensinado sobre como nos de-fender quando estivéssemos desarmados,mas quanto mais eu me esforçava, maisaquele guarda apertava os dedos no meupescoço. Eu não conseguia respirar. Bati naparede, torcendo para alguém me ouvir, mas

114/456

meus punhos mal fizeram barulho contra aspedras espessas.

— Cale a boca! — ele sibilou, cobrindominha boca com a mão. Tentei chutá-lo, masele pressionou o joelho contra meu es-tômago, me prendendo ainda mais contra aparede, enquanto tentava desastradamenteabrir minha camisa. A outra mão apertavaminha garganta com tanta força que comeceia ver pontinhos luminosos. Eu ia desmaiar.

— Solte a garota. Agora — eu ouvi a voz deuma menina que parecia vir de muito longe.

A mão do homem afrouxou no meupescoço e eu arfei, respirando de forma curtae rápida para recuperar o fôlego. Lenta-mente, meus olhos começaram a focar. Oguarda estava parado, as mãos erguidas, en-quanto uma menina segurando uma espadacorria na nossa direção. Ele se afastou commedo.

— Me entregue sua sevilhana — elagrunhiu.

115/456

— Portia, eu...— Isto é intolerável — a menina deu uma

estocada no homem e arrancou o distintivodele. — Me entregue a sevilhana — o guardatirou relutantemente a arma do cinto.

— Agora deixe o acampamento ou eumesma castrarei você.

— Mas...— Vá! — ela gritou, levantando a arma en-

quanto o guarda se virava e corria na direçãodo bosque.

— Obrigada — eu disse, me encostando naparede para me apoiar.

A menina se virou e fixou os olhos verdesem mim, me encarando duramente.

— Quem é você? — ela vociferou.Eu gaguejei o primeiro nome que me veio

à cabeça.— P-Polly McGregor — quando as palavras

deixaram meus lábios, rezei em silêncio paraque Polly ainda estivesse bem na Escócia.

116/456

Tentei ver melhor minha salvadora. Elaera alta e bonita de uma maneira incomum:tinha as maçãs do rosto proeminentes ecabelo louro-escuro comprido caindo nascostas. Apesar de aparentar ser apenas cercade um ano mais velha do que eu, ela tinhauma autoconfiança de aço, o que a faziaparecer mais velha. Perguntei-me queposição ela ocuparia no exército. Ela pareciaestar acima do meu agressor: onde ele tinhaum distintivo no uniforme, ela ostentavauma medalha dourada. Os olhos amendoa-dos dela me examinaram de cima a baixo.

— Você sabe que não há alistamento hoje.— Sim — eu murmurei em resposta. — Foi

isso que ele disse, e aí...— Não se preocupe com ele — ela vocifer-

ou. — Ele não vai ousar voltar aqui. E seousar, vou usá-lo para praticar tiro ao alvo —ela sorriu, os dentes brilhando peri-gosamente, o que sugeria que não estava

117/456

brincando. — Agora, de onde você é, PollyMcGrecor?

— Escócia.— Escócia? Engraçado, você não tem

sotaque escocês.Eu me aprumei.— É porque cresci em Londres. Só me

mudei para a Escócia com dez anos.— E para que você serve exatamente? —

ela perguntou.Fiquei olhando para ela.— Quero dizer — ela continuou —, por que

eu deveria abrir uma exceção e deixá-la sealistar hoje? Que habilidades você tem? Oueu só vou poder lhe dar a missão de limparlatrinas?

— Eu sei cavalgar e atirar com pistola. Soubastante boa com espadas também — euacrescentei. Quanto mais acesso a armas eutivesse, melhor.

Ela me encarou de novo. Sustentei-lhe oolhar sem piscar.

118/456

— Certo — ela disse finalmente. — Você vaificar no meu esquadrão... por enquanto. Evamos ver se você é boa mesmo. Eu sou Por-tia, aliás — ela acrescentou. — Sargento,Divisão das Garotas, Seção Nove — e dizendoisso deu meia-volta e eu corri para segui-la.

— Ah, e Polly? — ela acrescentou por sobreo ombro, sem nem se importar de olhar paramim. — Não apronte uma dessas de novo.Fique fora de perigo ou haverá consequên-cias. Eu mesma tomarei conta disso.

Eu balancei a cabeça, sem ousar falar.— Bem-vinda à Nova Guarda.

119/456

10

O ACAMPAMENTO DAS GAROTAS DASEÇÃO NOVE ERA NO terceiro andar, emuma sala comprida com uma fileira dejanelas altas que davam para o pátio. O pisoantigo de Hampton Court estava arranhado;os retratos, grafitados e rasgados. Olhei parafora — até os jardins haviam sido destruídos,e as banheiras de pássaros, quebradas.

— Esta é Polly — Portia anunciou para asvinte e poucas meninas no dormitório.Esperei que me apresentasse a cada uma,mas ela não o fez. — Você pode ficar comaquela cama — ela me disse, apontando parao canto. — E fique com isto — Portia jogou

um saco bege de lavanderia bem cheio naminha direção.

Dei uma olhada rápida no que havia ládentro: um uniforme, meias de lã marrom eum par de botas. Nenhuma arma. Na ver-dade, percebi que Portia parecia ser a únicacom uma arma.

Ajeitei-me na estreita cama de metal queme foi designada e olhei em volta. A maioriadas garotas estava no chão, reunidas em umcírculo, jogando cartas. No bolo: um brincode argola prateado, um aparelho de barbearcom cabo de plástico rosa, uma bala e umboné vermelho com orelhas felpudas.

No beliche ao meu lado, estava sentadauma menininha indiana, traçando com odedo um desenho imaginário no cobertor delã verde-ervilha.

— Eu sou Polly — eu me apresentei.Ela olhou para mim, surpresa.— Vashti — ela respondeu.

121/456

— Você está aqui há muito tempo? — euperguntei.

— Não muito — ela respondeutimidamente.

O rosto de Vashti era delicado. Ela tinhagrandes olhos castanhos, e suas mãos e de-dos eram muito finos.

— Como? Quero dizer... por que você veiopara cá?

Os olhos castanhos da menina se ench-eram de lágrimas e imediatamente me arre-pendi de ter perguntado.

— Sinto muito — eu disse. E coloqueiminha mão sobre a dela.

Dei uma olhada para as meninas jogandobaralho, preocupada que pudessem nosouvir.

— Vashti — eu continuei baixinho. — Vocêsabe em que parte do palácio mora CorneliusHollister?

Ela balançou a cabeça rapidamente, emsinal negativo.

122/456

— Você sabe como eu posso descobrir?Ela me encarou com os olhos arregalados e

se inclinou para sussurrar no meu ouvido: —Se não quiser problemas, não faça perguntas.

Vashti olhou para as outras meninas, ab-sortas no jogo, e depois de novo para mim.Ela levantou o cabelo que lhe cobria opescoço, revelando uma cicatriz horrível.Partindo do pescoço e descendo até as costashavia quatro linhas ensanguentadas eescuras.

Eu engasguei.— Quem fez isso com você?Ela ergueu um pouco o queixo, apontando

para as meninas sentadas em círculo nochão.

— Elas fizeram isso com um garfo.Fiquei olhando para as garotas,

imaginando-as segurando Vashti no chão,golpeando o pescoço dela com um garfo erasgando-lhe a pele.

123/456

— Quem são elas? — eu pergunteibaixinho.

— Além de Portia, claro, você precisa real-mente ficar atenta à June — Vashti fez umgesto indicando uma menina pálida e alta,que tinha os olhos adornados com grossos eescuros círculos de lápis de olho, e engoliuem seco, nervosa, antes de continuar — e àTub. Ela é a segunda no comando.

Ao lado de Portia, na cabeceira do círculo,estava sentada uma menina morena comcara de brava. Os braços enormes e musculo-sos dela eram cobertos por tatuagens quepareciam ter sido esculpidas por ela mesmacom uma faca. Ela olhava em volta com ol-hos duros e escuros. Foi quando bateram naporta do quarto.

— Sargento? — uma menina mais velhachamou. Ela usava a mesma medalhadourada que Portia, mas parecia claramenteintimidada por ela. — Luzes apagadas emdez minutos. E não se esqueçam de apagar

124/456

todas as velas e lamparinas — ela acres-centou de maneira tímida, olhando para avela que bruxuleava no centro do jogo debaralho.

— Obrigada, Sarah — Portia sorriu deforma afetada. Assim que Sarah desapareceuda porta, Portia começou a bater palmas. —Vocês ouviram, meninas. Hora de ir para acama! — enquanto olhava todo mundo sedeitar, ela puxou para si, com uma risada, apilha de objetos apostados durante o jogo.

Assim que todas estavam acomodadas,Portia se dirigiu à porta.

— Boa noite. Durmam bem. Não deixem obicho-papão pegar vocês — ela disse cantaro-lando, depois soprou a vela e saiu para ocorredor. O quarto ficou escuro. A única luzfraquinha que ainda havia vinha da lua, quebrilhava por trás das nuvens cinzentas. Ovento sibilava contra os vidros altos dasjanelas.

125/456

— Vashti — eu chamei, prendendo a res-piração. — A Portia não dorme conosco?

— Portia? Aqui? — ela suspirou com umcalafrio, como se só esse pensamento já aapavorasse. — Não. Ela dorme com as outrascomandantes no andar de cima.

Virei para olhar para a janela, na esper-ança de dormir, mas havia um som vindo láde fora. Ouvi-o com atenção. Sob as rajadasde vento e o barulho dos vidros, sob os ped-aços de conversa sussurrada, ouvi o som degritos humanos.

Levantei e me sentei na cama, alarmada.— O que é isso?— O que é o quê? — a garota chamada Tub

perguntou.— Esses gritos — eu respondi.— Ah, são só os prisioneiros nos Campos

da Morte — ela disse. — Você vai se acos-tumar logo, logo. Agora chega de falatório ouvou reportá-la — olhei para o teto, o coraçãodisparado, enquanto pensava nas cicatrizes

126/456

nas costas de Vashti. Fique calma. Não façaperguntas. Seja paciente. Recitei mental-mente essas palavras várias, como ummantra.

Dava para sentir as molas de metal do meucolchão e o cheiro de mofo do cobertor. Vireide lado, cobrindo a orelha com a mão. Osgritos agonizantes ecoavam na minhacabeça, transformando-se em uma horríveltrilha sonora para as imagens que eu nãoconseguia parar de me lembrar: Jamie eMary capturados pelos soldados de Hollister;o peito do meu pai encharcado de sangue en-quanto ele morria deitado no chão do salãode festas; minha mãe com as costas arquea-das, arfante, enquanto o pêssego envenenadocaía da mão dela; os rostos assombrosos evazios dos Coletores no rio; e os horríveisdentes amarelos do soldado que me atacaraatrás da portaria.

127/456

Travei os dentes e enterrei a cabeça notravesseiro para que ninguém me ouvissechorar.

Quando meus soluços finalmente pararame minha respiração acalmou, me senti es-tranhamente separada de mim, como se umaparede de ferro estivesse surgindo, prote-gendo meu eu verdadeiro do eu que agorairia enfrentar o mundo.

Quando senti que estava caindo no sono,apenas uma palavra ecoava na minha cabeça.Vingança.

128/456

11

FOMOS ACORDADAS NO MEIO DANOITE. DO LADO DE FORA das janelasaltas e retangulares o céu estava preto comocarvão. Dei um pulo na cama, em pânico esuando. Alarmes soavam por todo o palácio eas pesadas passadas dos soldados ressoavampelos corredores e escada abaixo, ecoandonas paredes espessas de pedra. Aindasonolenta, meus olhos se adaptavam lenta-mente à escuridão, mas eu conseguia perce-ber a silhueta das meninas do quartelvestindo os uniformes com rapidez.

— Rápido, vista-se — Vashti disse.— O que está acontecendo? — eu pergun-

tei, confusa.

— É a Noite da Morte — Vashti respondeu,apertando o cadarço das botas. Enquantodava os nós, pude ver que as mãos delatremiam.

— Noite da Morte? — eu engasguei ao pro-nunciar essas palavras.

Ela se sentou ao meu lado.— Eles pegam os prisioneiros capturados

nos assaltos noturnos e fazem pares com ossoldados da Nova Guarda. Depois, lutamoscom eles até a morte. É um treinamento deguerra.

No escuro, tentei olhar para os olhoscastanhos de Vashti, absorvendo as palavrasdela. Depois ouvi a voz de Portia nos cham-ando da porta.

— Estejam no pátio em dez minutos para oTeste de Patente.

— Corra — Vashti disse de novo, tocandono meu ombro. — Você precisa colocar seuuniforme.

130/456

A noite estava fria e escura. Fiquei pertode Vashti, seguindo as longas filas de solda-dos do palácio para a área externa. Ao longe,as chamas das tochas iluminavam o pátiomurado, lançando sombras bruxuleantes efumaça. As chamas pulavam loucamentecom o vento, e pedaços de fogo se soltavam emorriam no ar.

— Para o pátio externo — um soldadochamou, e as tropas marcharam em fila parao que antes foram fontes e gramados com ar-bustos aparados. Sob a luz das tochas ar-dentes, olhei para os guardas patrulhando oscorredores entre as torres e a torre de obser-vação que dava para os pátios. Sob a fumaçaque saía das lamparinas de carvão, guardascaminhavam para cima e para baixo, vigi-ando a área.

A multidão de soldados reunida no pátioassistia a tudo com ansiosa expectativa. Umcaminhão a diesel roncou ao longe, e o brilhodos faróis lançava uma luz no chão

131/456

pavimentado de pedra. As palavras pintadasem preto na lateral do caminhão, como umcartaz gigante, diziam: UMA NOVAGUARDA PARA NOVOS TEMPOS.

Um silêncio se espalhou pela multidãoquando um soldado se aproximou da traseirado caminhão. Os guardas se afastaram en-quanto ele tirava lá de dentro um prisioneiroencapuzado e o empurrava bruscamente,para que ficasse sob o brilho dos faróis.

As mãos dos prisioneiros estavam algema-das às costas; os pés deles também estavamalgemados; e a cabeça de todos estavacoberta com um saco de tecido preto em quehavia pequenos buracos na altura dos olhos.Um soldado corpulento e de cara avermel-hada usou o cano da arma para empurrarpara o centro do pátio o prisioneiro quetinha sido tirado do caminhão.

Vashti se virou para mim, sussurrando nomeu ouvido.

132/456

— Esse é o Sargento Fax. Um dos guardasmais cruéis.

— Novos recrutas serão chamados aleat-oriamente para lutar com os prisioneiros —Portia disse ao passar pela Divisão dasGarotas.

Ela tinha a postura ereta, o rosto durocomo pedra, os olhos verdes capturando aluz, e o rosto bonito e bem esculpido con-trastando com o do prisioneiro que tremia,aterrorizado, no meio do pátio. O longo ca-belo de Portia estava bem preso em um rabode cavalo baixo. E ela trazia ao lado do corpouma espada embainhada.

— Soldado Thomas Cutter — ela falou altopara a multidão, lendo o nome de um pedaçode papel. Um menino deu um passo à frente.Ele parecia ter uns 15 anos. O cabelo escuroestava cortado bem rente ao couro cabeludo,e ele ostentava uma espada e a sevilhana, osímbolo da Nova Guarda, desenhados nacabeça. Os olhos castanhos refletiram a luz

133/456

do caminhão e um sorriso largo irrompeu norosto dele. O menino parecia ansioso paralutar. Portia sorriu-lhe de volta e escolheuuma arma de uma pilha.

— Escolha uma com dois gumes — disse ojovem soldado.

Portia puxou uma espada com dois gumesreluzentes e finos.

— Ele é das forças de Resistência — ela in-formou o soldado. — Faça-o sofrer.

A multidão de soldados encorajava o men-ino. O barulho era ensurdecedor. O pri-sioneiro mascarado foi empurrado e ficou dejoelhos, impotente, esperando o oponente.Portia se aproximou do soldado e entregou-lhe a espada.

— Tire a máscara dele — ela ordenou parao Sargento Fax, que arrancou o capuz pretodo prisioneiro, revelando-lhe o rosto. O pri-sioneiro era um homem de trinta e poucosanos, com cabelo castanho na altura dos om-bros e uma barba esparsa. Os olhos

134/456

apavorados do homem percorriam o pátio, egritos de “Mata!” ecoavam pelo jardim.Roupas esfarrapadas pendiam do seu corpomagro como se fossem um esqueleto, e feri-das abertas cobriam-lhe a pele.

As algemas que lhe prendiam mãos e pésforam tiradas, e o Sargento Fax entregou-lheuma espada, cega e inexpressiva se com-parada à do soldado. O peso da arma arriouos braços do prisioneiro. Uma fúria ferozparecia crescer nos olhos do jovem soldado.Ele levantou a espada, ganhando aceleraçãoe força, e a desceu na direção do pescoço domembro da Resistência. Em um movimentodesesperado, o homem juntou toda a forçaque ainda tinha e brandiu a espada que se-gurava com dificuldade na tentativa de blo-quear o golpe de Cutter.

Mas isso apenas enfureceu ainda mais osoldado, que deu um passo para a frente e,sem dar ao prisioneiro chance de se defend-er, afundou a longa espada no abdome do

135/456

homem desamparado. Então Cutter soltou opunho da espada, deixando-a atravessada nocorpo do prisioneiro. A multidão urrava en-quanto o homem moribundo cambaleavapara trás, as mãos em volta da lâmina, tent-ando inutilmente estancar o sangue que jor-rava da ferida.

Levei as mãos aos ouvidos, tentando aba-far o barulho ensurdecedor da multidão, masa voz estridente de Portia atravessou obarulho.

— Nova Recruta Polly. Divisão dasGarotas, Seção Nove.

Olhei para ela, chocada. Vashti olhou paramim. Balancei a cabeça.

— Não posso.— Você precisa ir — ela disse, apertando

meu pulso. — Se não for, vão mandá-la paraos campos de trabalho forçado. Acredite emmim: você não quer ir para lá, algemada,apanhando dos soldados. Eles vão forçar vo-cê a construir as câmaras da morte.

136/456

Dei um passo para a frente, aterrorizada.Enquanto o primeiro prisioneiro ainda agon-izava, o Sargento Fax tirou outro encapuzadodo caminhão. Portia me deu minha arma:uma espada média com apenas um gume.Segurei firmemente o cabo de couro en-quanto o Sargento Fax arrastava o segundoprisioneiro na minha direção. À minha volta,ouvia os soldados da Nova Guarda entoando“Mata! Mata!”.

Por baixo do capuz preto que lhe cobria orosto, eu podia ver que o prisioneiro era umhomem — alto e musculoso, não era magroou coberto de feridas como o anterior. Ediferentemente do primeiro prisioneiro, queagora estava caído diante da multidão, estenão estava magro de fome ou doente por tersido torturado nos Campos da Morte. Ele de-via ter sido capturado há pouco tempo.

No pulso do homem havia uma tatuagemda bandeira da Grã-Bretanha, com as palav-ras LIBERDADE OU MORTE escritas

137/456

embaixo. Eu me virei para olhar os rostosescuros e borrados na multidão, quegritavam “Luta! Luta!”. As tochas soltavamnuvens espessas de fumaça negra no arnoturno. No canto do pátio, o primeiro pri-sioneiro finalmente tinha caído de vez, masos dedos e os olhos dele ainda se mexiam.

— Conheça seu oponente — o Sargento Faxsoltou uma risada ao tirar o capuz doprisioneiro.

Eu o encarei. Ele me encarou de volta. Eletinha a estrutura física de um soldado: eramusculoso e forte, tinha cabelo castanhocortado curto e barba, levemente grisalha,por fazer. Percebi que os olhos dele eramgentis.

Os guardas tiraram as algemas de suasmãos e pés. E lhe deram uma espada curta ecega. Encaramo-nos. Eu me perguntei sehavia um jeito de fazê-lo saber que eu estavado lado dele, que estava ali para combater aNova Guarda, não para lutar com ele. Tentei

138/456

fazer contato visual. Dei um passo à frentepara me aproximar.

E depois vi a espada dele descer. Levanteia minha, detendo o golpe com um bloqueioalto e desviando-o com um bloqueio baixo.Lembrei-me rapidamente do que o Mestre deArmas Real tinha me ensinado: bloqueiocurto, deixar a espada inclinada, usar toda aforça, peso e velocidade do corpo em cadamovimento.

Os olhos do prisioneiro demonstravam fe-rocidade enquanto ele golpeava. Ele queriame destruir. Ele tinha visto a Nova Guardainvadir seu bairro, assassinar e capturar seusamigos e família. Os olhos do homem fo-caram em mim, então ele ergueu a espada eatacou. Eu recuei, bloqueando os golpes dele,nossas espadas batendo ensurdecedora-mente uma na outra, o peso dos golpes deleme empurrando para trás.

Eu bloqueava o mais rápido que podia,mas a espada dele continuava vindo na

139/456

minha direção como um borrão de aço. Semaviso prévio, a lâmina passou pelo meu om-bro, cortando a fina tela do uniforme, massem atingir minha pele. Antes mesmo de eutirar os olhos do corte, a espada dele arran-hou os nós dos meus dedos como mil cortesde papel. Sangue escorreu pelo meu pulso.Senti o sangue quente pingando do meubraço. Com o canto dos olhos, vi o SargentoFax observando tudo de forma ameaçadora.

Lembrei-me de um truque que o Mestre deArmas Real tinha nos ensinado: telegrafar.Olhei para a direita. Ele levantou a espadapara bloquear. Mas em vez de erguer aminha, golpeei-o por baixo. Ele gritou deraiva e de dor, olhando para o próprio pulso.Sangue apareceu onde minha espada tinhacortado a pele dele. Então bloqueei a mão-guia do prisioneiro com minha espada e meposicionei atrás dele. Ele virou a cabeça rapi-damente, mas, antes que pudesse me blo-quear, encostei a lâmina no pescoço dele.

140/456

Se o homem se movesse sequer um milí-metro agora, a espada afiada lhe cortaria agarganta. O prisioneiro engoliu em seco.Pude sentir o corpo dele tremendo de medo,e suor começou a se formar na testa dele e aencharcar-lhe a roupa. Não pude evitar olharpara a tatuagem que ele tinha no pulso: abandeira da Grã-Bretanha agora brilhavacom as gotas de sangue.

— Corte a cabeça dele! — um soldado grit-ou. Então os outros começaram a bradar altotambém, no começo meio desencontrado,mas depois todos no mesmo ritmo. — Corte agarganta dele! Faça-o sangrar!

Ainda segurando a espada no pescoço doprisioneiro e protegida pelos urros dos solda-dos, sussurrei no ouvido dele: — Você lutoupela Resistência?

— Sim, e vou lutar até a morte — elerespondeu.

Ele se virou para tentar me golpear, minhaespada lhe arranhando a pele.

141/456

Cheguei mais perto: — Largue sua armaagora e eu não mato você.

Ele inclinou a cabeça, incrédulo, mas, semnenhuma outra opção, deixou a espada cairno chão. Ainda mantendo minha espada nopescoço dele, me inclinei para pegar a dele.Eu tinha ganhado. Afastei-me do prisioneirocom as duas armas na mão. Achei que a mul-tidão iria me aplaudir, mas eles ficaram emsilêncio. Percorri o pátio com os olhos. Ossoldados me olharam de volta.

O Sargento Fax apareceu e ordenou: —Acabe com ele!

Olhei nos olhos do prisioneiro e depoispara o Sargento Fax, que, antes que eupudesse recusar, segurou-o pelo cabelo comuma mão e meu pulso com a espada com aoutra, forçando-me a golpear. A força dapancada cortou as artérias do pescoço do pri-sioneiro e sangue jorrou da ferida como umdilúvio. Cambaleei para trás, tentandolimpar freneticamente o sangue daquele

142/456

homem dos olhos. Tudo que eu via eravermelho.

— Se hesitar no campo de batalha, vocêacabará morta — o Sargento Fax gritou naminha cara. Depois, vendo a tatuagem dabandeira britânica no braço direito do pri-sioneiro, ele pegou a própria espada e, pis-ando no cotovelo do homem com sua botapreta pesada, decepou o pulso tatuado. Ten-tei não olhar para a mão desmembrada lar-gada no chão de concreto. Com a ponta daespada, o Sargento Fax levantou-a no ar en-quanto os soldados aplaudiam.

143/456

12

CAMBALEEI DE VOLTA PARA A FILA, OSANGUE FRESCO pingando da espada queainda tinha em mãos. Imagens grotescas sur-giam na minha cabeça; levei uma mão àboca. Eu podia ver o sangue jorrando daferida daquele homem. Podia sentir a mãodo Sargento Fax sobre a minha, guiando aespada pelo pescoço do prisioneiro, a carnecedendo quando a lâmina cortou-lhe a peledelicada.

A multidão já estava aplaudindo a próximaluta, distraída demais para prestar atençãoem mim. Fui empurrando e abrindo caminhocegamente entre eles, as mãos tremendo.

Cambaleei até uma área vazia, em quehavia uma passagem que levava aos claus-tros. Estátuas de leões, corvos, cavalos, gár-gulas e dragões cobriam as paredes. Eu podiasentir na boca o gosto metálico do sangue doprisioneiro. Esforcei-me para vomitar, maseu não tinha nada no estômago.

Fechei os olhos e larguei o corpo no chão,abraçando os joelhos contra o peito e tre-mendo incontrolavelmente. Eu tinhaacabado com uma vida inocente. Do outrolado do pátio esquerdo, vi uma banheira depássaros despedaçada, feita de pedra, fun-cionando com água da chuva. Levantei-mecom esforço, me afastando da passagem quelevava aos claustros. A escuridão do céunoturno estava lentamente dando lugar aoutra manhã cinzenta. Consegui chegar àfonte e joguei minha espada lá dentro. De-pois, coloquei as mãos em concha na águagelada da chuva, e lavei o sangue dos olhos e

145/456

da boca. A água caía das minhas mãos emcorrentes cor-de-rosa.

Fiquei olhando para as enormes paredesde tijolo vermelho que me cercavam, analis-ando os restos de estátuas que havia nojardim, quando me dei conta de que estavasozinha. Eu estava sozinha e de posse deuma arma mortal. Enfiei a lâmina na água,observando o sangue se diluir. Eu odiavaCornelius Hollister e o exército dele mais quequalquer sentimento ou medo que tivessepela minha vida. Agora que eu era de fatouma assassina, era hora de encontrar ohomem que eu tinha vindo matar.

Examinei o vasto complexo do palácio.Havia luzes acesas no andar de cima da torreprincipal. Legiões de tropas patrulhavam afortaleza. Olhei lá para cima, para as janelasacesas. Será que Cornelius Hollister estavamorando ali? Na torre principal ele estariaprotegido, mas ainda poderia observar a mo-vimentação do exército. De todos os lugares

146/456

de Londres, se instalar no meio do complexoque abrigava o exército dele fazia sentido, e,dentro do complexo, só a torre principal lhetraria segurança. Mas não seria fácil chegarlá.

Entrei silenciosamente nos claustros, pis-ando devagar e parando a cada poucos met-ros para ouvir o que acontecia em volta. Eumantinha a espada empunhada enquantocaminhava pelas passagens abobadadas.

De repente, um estrondo ecoou pelo palá-cio, assim como o som dos soldados grit-ando. Reconheci a voz do Sargento Faxsoando como um megafone: — Três pri-sioneiros escaparam do tribunal. Mandemtodas as tropas para o portão. Repito. Trêsprisioneiros escaparam. Dois soldados foramferidos. Aumentem a segurança dos portõesimediatamente.

Ao ouvir isso, me abaixei atrás de um pilare aguardei na sombra, mal respirando, prat-icamente congelada.

147/456

Seguindo as ordens que lhes tinham sidodadas, os soldados, de armas em punho, al-guns a cavalo, outros a pé, saíram em dis-parada para vasculhar a área. Espiei emvolta, observando-os. Eles batiam as botaspretas com pontas de metal que usavam comforça no chão, e esse som ecoava pelo pátioenquanto eles passavam voando por mim.

À minha esquerda, as portas de ferro datorre principal ficaram abertas. Um únicoguarda continuava sozinho lá fora, enquantoos outros procuravam os prisioneiros quetinham escapado. O rosto pálido do rapaz es-tava iluminado pelas chamas das tochas. Eleera jovem, 14 anos, talvez, e segurava o riflebem perto do corpo, caminhandonervosamente de um lado para o outro.

Procurei no chão alguma coisa para ar-remessar. Meus dedos encontraram um ped-aço de tijolo que tinha caído das muralhas dopalácio. Escondida no estreito vão do batentede uma janela, arremessei o tijolo na

148/456

escuridão, mirando longe no lado direito dosoldado.

O som assustou o menino. Ele levantou aarma.

— Quem está aí? — a voz dele estavatrêmula de medo.

Encontrei um segundo tijolo e atirei-oainda mais longe. Ele hesitou antes de mirara arma na escuridão, depois deu alguns pas-sos para a frente, se afastando da entrada.

— Quem está aí? — ele perguntou de novopara o vazio.

Saí correndo do meu esconderijo nadireção da larga porta de ferro e me vi dentrode uma sala cavernosa cheia de containersde metal. Abaixei-me atrás deles, esperandopara ver se tinha sido vista. Enquanto meusolhos se ajustavam ao brilho fraco da luz quevinha dos andares de cima, percebi que es-tava dentro de uma espécie de armazém. Osrótulos pintados com spray nas laterais doscontainers diziam ZYKLON B, CIANETO,

149/456

HCN. Um cheiro forte de gasolina vinha dedois tanques de metal. Caixas de madeiraetiquetadas com códigos numéricos guar-davam jipes e caminhões do exército des-montados. Estocados lá dentro havia tam-bém geradores e armas antiquadas, canhões,flechas de fogo, escudos, armaduras eespadas.

Espremendo-me entre as caixas,aproximei-me de uma caixa com o rótuloARMAS DE FOGO. Tentei abri-la, esperandoencontrar uma arma, mas a tampa estavatrancada e as laterais tinham sido soldadas.Ouvi um zumbido vindo de cima e olhei, as-sustada. Era o murmúrio de vozes. Senti meucoração bater mais rápido enquanto eu subiaas escadas correndo e me abaixava para meesconder na plataforma escura.

Segui o som das vozes até ver um fio de luzfluorescente escapando de uma porta. En-costei na parede e desembainhei a espadaenquanto caminhava lentamente. Dentro da

150/456

câmara cavernosa os generais do exército deHollister estavam sentados de costas para aporta e em volta de uma longa e pesada mesade carvalho. Plantas, mapas e diagramascobriam as paredes da sala.

— Os planos para a construção dos acam-pamentos de F a J no Campo Onze estãoprontos — um soldado mais jovem comu-nicou. Ele estava em pé na frente da sala,apontando para os diagramas. — Temos umalocalização para a Coroa Real. Um dos mon-arquistas torturados confessou — arrisqueiolhar para dentro da sala, vasculhando asfileiras de combatentes da Nova Guarda embusca de Hollister.

— Sabia que conseguiríamos uma respostacom a melhoria das técnicas de interrogação— um segundo soldado, mulher, disse.

— Extraordinária melhoria das técnicasde interrogação — comentou outra pessoa,rindo.

151/456

Encostei de novo na parede. Uma luzbruxuleou no andar de cima. Para chegar lá,eu teria de passar na frente daquela porta.Olhando novamente dentro da sala com ocanto dos olhos, esperei até que o jovemsoldado virasse de costas, então passeivoando pela porta o mais rápido possível. Osom de metal batendo em metal reverberoupelo corredor quando a lâmina da minha es-pada bateu no corrimão da escada. Eucongelei. Uma onda de medo me invadiu.

— Quem está aí? — o soldado que estavamostrando os diagramas apareceu na porta.— O que você está fazendo aqui? Oficiais nãoautorizados não são permitidos na torre — avoz dele era firme e raivosa.

Apenas balancei a cabeça, sem conseguirfalar.

— Responda! — ele ordenou.Desesperadamente, tentei pensar em uma

desculpa. — Sinto muito. Estou perdida, sóestava tentando achar meu quarto —

152/456

assustada, dei um passo para trás, para forada luz, mantendo os olhos baixos. Dei umaolhada no rosto dele e nossos olhos se encon-traram. Naquele instante, o reconheci:cabelo louro-escuro, olhos verdes profundos,maçãs do rosto proeminentes. Ele era oguarda que tinha me deixado no armáriodurante a invasão do Palácio deBuckingham.

— Você se perdeu na torre? — ele me enca-rou, desconfiado. Será que ele também tinhame reconhecido? Da última vez que ele tinhame visto eu estava usando maquiagem e umlindo vestido de baile. Agora meu cabelo emeu rosto estavam sujos e eu usava o uni-forme do exército de Hollister. Este era o úl-timo lugar em que ele esperaria me encon-trar, pois, até onde ele sabia, eu tinha sidoqueimada no Palácio de Buckingham.

— Sim. Hoje é meu primeiro dia aqui —gaguejei, sem esconder o medo na voz. Se elepudesse ver como eu estava com medo,

153/456

talvez acreditasse que eu realmente era umanova recruta completamente perdida.

O jovem soldado deu um passo à frente.Olhei para ele com olhos arregalados e cerreias mãos para impedir que tremessem. Omedo me revirava o estômago. Será que eudeveria tentar correr? Olhei para trás,medindo a distância do corrimão para o an-dar de baixo. Eu podia pular. Mas aterrissarnas pedras podia me fazer quebrar otornozelo, ou até mesmo as pernas.

— Desta vez é um aviso — ele disse comraiva. — Não quero nunca mais vê-la ondenão deveria estar. Entendeu?

— Sim — eu respondi, e balancei a cabeçade forma cordata.

Os olhos dele recaíram sobre meu rostooutra vez, e um leve franzir surgiu nas suassobrancelhas.

— Guardas — ele chamou. — Acompan-hem a nova recruta de volta para a divisãodela.

154/456

— Sim, Sargento Wesley — os soldadosdisseram, correndo na minha direção.

Antes que os guardas me levassem em-bora, sussurrei baixinho: — Obrigada. —Como o rosto do Sargento Wesley estava en-coberto pela sombra, apenas o brilho dosseus olhos verdes estava visível. Ele ficouparado no corredor, sozinho, meobservando.

155/456

13

— LEVANTEM, LEVANTEM! — GRITOUTUB. TODO MUNDO resmungou. Ainda es-tava escuro lá fora — e era pelo menos umahora antes do horário que normalmenteacordávamos. — A última a chegar lá em-baixo vai ter que me dar sua comida! — elaacrescentou. De repente, o dormitório virouuma comoção: todas as meninas saltaram dacama, se vestindo depressa e correndo para asala de jantar. Eu desci as escadas, dois de-graus de cada vez, com os cadarçosdesamarrados.

Quando recebi meu mingau, comi rapida-mente, segurando a tigela perto da boca eprotegendo-a com o corpo, como todas as

outras faziam. Mesmo depois de terminar,meu estômago ainda doía de fome. Eu estavano exército há semanas agora. O treinamentoera diário e ia do amanhecer ao anoitecer.Depois vinham os serviços domésticos, que,para mim e para as garotas do meu quarto,significava limpeza geral depois do jantar. Amovimentação constante quase não medeixava tempo para pensar em Hollister,muito menos para procurá-lo. Eu começavaa me perguntar se ele estava mesmo lá. Aofim de cada dia, eu estava tão cansada quecaía logo em um sono profundo, os músculosdoendo de tanto exercício. Meus últimospensamentos eram sempre meus irmãos. Eume perguntava onde os corpos deles teriamsido enterrados, ou se eles tinham sidomandados para os Campos da Morte, onde,dizia-se, os prisioneiros eram obrigados acavar o próprio túmulo.

Estava terminando de tomar meu cháaguado quando Tub reapareceu e nos levou

157/456

para fora. Encontramo-nos com os garotosnas imediações da floresta. As árvores aindaestavam lá, mas agora eram esqueletosqueimados e apodrecidos; apenas galhos nuse casca.

Ficamos lá, parados na escuridão, antes deo dia amanhecer, enquanto Portia, Tub eJune entregavam a cada uma de nós umasevilhana de titânio — munição era algovalioso demais para que nos deixassem usararmas de fogo — e um copo de metal vazio,para o caso de encontrarmos água potável.

— Para vocês, novatos na caça — Portiaanunciou, claramente apreciando seu papelde líder —, deixem que eu lhes lembre deuma coisa: este exército é grande e precisa decomida. Assim, caçar essa comida é tarefa devocês — ela parou por um momento para ol-har para os soldados reunidos; os olhos delase demoraram um pouco mais em mim.

— Quem voltar de mãos vazias vai recebero dobro de serviços domésticos. O novo

158/456

soldado com o maior número de caças serápromovido uma patente — Portia fez umapausa para deixar que absorvêssemos a in-formação. — Se alguém roubar uma arma oucaça dos colegas, será punido. Esta é a regramais importante: vocês devem caçar suapresa sozinhos. Não é permitido dividir, tro-car, nem subornar. Entenderam? — todomundo aquiesceu. Vi o Sargento Wesleycaminhando pela Divisão dos Garotos comuma jarra de água fresca. Ele colocou a águanos copos de todos os meninos, lembrando-os de beber tudo. Eu imediatamente baixei acabeça.

— E, finalmente — Portia continuou —, medeixem dar algumas dicas que vão aumentarsuas chances de sobrevivência. Não há nen-hum animal a temer a não ser as cobras dospântanos. Então, desde que evitem áreaspantanosas, vocês provavelmente estarãobem. Quase todos os ursos morreram de

159/456

fome. A única preocupação real de vocês sãoos Andarilhos.

Um suspiro de preocupação espalhou-sepela multidão.

— Relaxem — Tub interrompeu, rindo doóbvio pavor de todos. — Ninguém foi com-ido... até agora.

— Nós nos encontramos aqui de volta aopôr do sol — Portia continuou sem se intim-idar. — Boa sorte.

Um por um, ela prosseguiu chamando osnomes dos novos recrutas, que entãocolocavam a mão em um saco de tecido etiravam pedaços de papel numerados. Onúmero indicava quantos passos a pessoatinha de dar para longe do grupo antes decomeçar a caçar. O meu era 574.

Coloquei o número no bolso e olhei para afloresta, me perguntando quão longe 574passos iriam me levar. Vashti apertou minhamão e sussurrou: — Boa sorte.

160/456

Tub ria baixinho ao começar a contagembem devagar e em voz alta. Eu olhei para ochão enlameado e depois para a frente, paraas árvores. Todas pareciam iguais por quilô-metros sem fim: desfolhadas, os troncospodres e com as cascas úmidas demais paraqueimar. Arrisquei olhar para trás, por sobreo ombro, e vi o Sargento Wesley me observ-ando. Virei rapidamente a cabeça, asbochechas queimando, e meu rosto empali-decendo enquanto eu caminhava na direçãoda floresta morta.

Contei os passos em voz alta enquantocaminhava, a voz de Tub ficando cada vezmais distante até que só havia o som dosmeus passos e da minha respiração. Asárvores pareciam ameaçadoras: os troncoscontorcidos se esticando para me agarrar.Olhei para a sevilhana, impressionada de vercomo ela era perfeitamente fina e afiada.Cornelius Hollister a tinha inventado, umtipo mortal de espada que conseguia cortar

161/456

até ossos. Fiz uma pausa, virando-a de ladopara me olhar no reflexo da lâmina. Tudoque eu via refletido era desprovido de cor.Céu cinza, árvores cinza — até meus olhospareciam cinza.

Minhas botas faziam barulho quando eupisava na lama e esmagava as folhas caídasno chão, pulando sobre as largas raízes deárvores que a chuva tinha deixado nuas.Cogumelos nasciam em todos os lugares,pequenos e brancos com as pontas vermel-has. Passei a mão sobre eles, procurandoalgo comestível, mas aqueles cogumelos, as-sim como todas as coisas na floresta, sólevariam à morte. Considerei colher alguns eusá-los para envenenar Hollister, mas decidinão fazê-lo. Eu sequer sabia onde ele estava,mas, quando soubesse, iria matá-lo comminhas próprias mãos.

Parei para examinar o musgo que cobria acasca de uma árvore: ele era macio e tinhaum tom verde-esmeralda. Arranquei um

162/456

pedaço e mastiguei-o lentamente. Tinhagosto de terra e de grama, mas era limpo e eusabia que não ia me matar. Continuei a an-dar até que tropecei em algo escondido pelasfolhas. Ao olhar para baixo, vi um pedaço detecido preso em uma pedra. Estava marrompor causa da lama, mas ainda dava para ver aestampa do tecido: xadrez quadriculado, dotipo que usávamos para fazer piqueniques.Minha respiração falhou e meus olhos seanuviaram. Pisquei várias vezes para limparas lágrimas, me segurando ao muro de açoque havia erguido dentro de mim, lutandocontra a fagulha do meu eu verdadeiro queameaçava surgir. Não restou nada daquelavida, pensei com raiva. Não haveria maispiqueniques com cobertores quadriculados.

Mesmo assim, peguei um pedaço daqueletecido e o coloquei no meu saco de caça.

Continuei em frente, passando por umaárea de carvalhos queimados, quando ouvium farfalhar atrás de mim. Congelei,

163/456

estendendo com cuidado a mão para a sevil-hana, pronta para atacar, quando senti umafigura indistinguível se aproximar. Eu mevirei e parei.

O Sargento Wesley apontava uma armapara mim.

— Baixe sua arma — ele disse calmamente.— Eu abaixo a minha se você guardar a sua

— eu retruquei de maneira desafiadora, ol-hando para ele por sobre a lâmina da minhaarma. Se chegasse a esse ponto, eu provavel-mente conseguiria cortar a jugular dele antesque ele atirasse.

— Eu não aceito ordens — ele disse, mascolocou a arma de volta no coldre. — Sua vez.

Minha mão começou a tremer enquantoeu mantinha a sevilhana em posição de de-fesa. E se ele estivesse me seguindo? Seráque ele tinha descoberto quem eu era e tinhavindo me matar? Será que tinha se lembradode ter me visto no armário naquela noite?

164/456

— O que você está fazendo aqui? — euperguntei.

— Vim ajudar — ele respondeu friamente.A expressão no rosto do Sargento Wesley eratão indecifrável que eu não fazia ideia se de-via acreditar nele ou não. — É difícil achar al-guma coisa por aqui... a não ser que vocêsaiba onde procurar.

Hesitei, baixando por fim a sevilhana.— Você veio me ajudar? Por quê? — eu

perguntei, desconfiada.Ele não respondeu à minha pergunta.— Vamos. Precisamos seguir em frente.

Fizemos barulho nessa área e assustamostoda a caça.

Assim que disse isso, um vento frio bal-ançou as árvores e o céu ficou escuro. O Sar-gento Wesley parou, olhou para as nuvensnegras e franziu as sobrancelhas.

— Estou sentindo cheiro de fumaça — eledisse com calma. Fumaça era o primeiro sin-al de um acampamento de Andarilhos.

165/456

Aspirei o ar.— Não é fumaça de madeira — eu disse.

Mas também não tinha o cheiro penetrante,doce e enjoativo da fumaça dos Andarilhos.

De repente parou de ventar. O ar tornou-se quente e parado, como se estivéssemos emuma sala totalmente fechada, sem circulaçãode ar.

— Ah, meu Deus — o Sargento Wesleydisse em tom de lamento, e nós dois nosdemos conta ao mesmo tempo do que estavaacontecendo. — Corra! — ele gritou.

Saímos em disparada quando um raio,como a mão branca de um esqueleto, acertouo chão bem perto de onde estivéramos para-dos. E então tudo pareceu explodir.

Em um momento eu estava deitada sobrea base de uma árvore, meio tonta por causada explosão. Em seguida, o Sargento Wesleyestava ao meu lado, me pegando no colo eme colocando sobre os ombros.

166/456

— Não desmaie! — ele ordenou. Lutei parapermanecer consciente enquanto o céu bril-hava em tons de vermelho e depois de lar-anja. Uma chama enorme, do tamanho deuma casa, atravessou o céu, e uma brasamenor, do tamanho de uma bola de beisebol,veio girando e arranhou o braço esquerdo dosoldado. Ela queimou o tecido resistente aofogo, transformando-o em uma massa pretade lava que derreteu na pele dele. O SargentoWesley me largou e se jogou no chão, rolan-do de um lado para o outro a fim de apagar ofogo da jaqueta.

Respirei fundo, sabendo que ia precisarcorrer, e estendi a mão para ajudá-lo a ficarem pé.

— Tem uma caverna de pedras lá em cima!— ele gritou para mim acima do urro do fogono céu.

— A gente devia descer a montanha! — eusugeri aos berros.

167/456

— Eu conheço esse bosque — ele insistiu.— Siga-me.

Subir a montanha no meio dos raios iacontra tudo o que eu julgava certo, mas en-goli meus protestos e o segui.

Nós nos agachamos para entrar na cavernabem quando uma segunda bola de fogoapareceu, girando em espiral na nossadireção. Toda a encosta da montanha tremeucom o impacto. Eu me arrastei um poucoalém da boca da caverna, tentando recuperaro fôlego, mas, agora que estava a salvo, nãoconseguia desviar os olhos do que estavaacontecendo do lado de fora.

O céu estava iluminado por um milhão depontos de luz, que brilhavam e caíam nochão como uma chuva grossa. Eu não viatanta luz assim desde os Dezessete Dias.

— Que lindo — eu comentei baixinho, ad-mirada. Eram como pequenas estrelas. Comofogos de artifício.

168/456

— Lindo, mas perigoso — o Sargento Wes-ley concordou, e o olhar dele se demorou emmim mais tempo do que o necessário. Asfaíscas continuavam a cair do céu, ficandocada vez menores e mais espaçadas, até quealgumas começaram a ficar do tamanho dachama de um fósforo.

Permanecemos em completo silêncio. Ten-tei evitar olhar para a arma do SargentoWesley. Ele a mantinha segura no coldre,mas minha sevilhana tinha entortado com ocalor; era completamente inútil agora. Se elequisesse me matar, eu não teria comoimpedi-lo.

Houve um momento de quietude no céu.Depois, tão rápido quanto começou, o fogodesapareceu e a chuva caiu. Uma chuva fortee cinza, que transformava a florestaqueimada em cinza molhada. A chuva caíaem gotas do tamanho de granizos, golpeandoa terra.

169/456

— Se não fosse por tanta chuva, aInglaterra estaria pegando fogo — o SargentoWesley disse ao tirar o casaco, estremecendoao puxar o tecido onde a bola de fogo havialhe atingido o braço e deixado umaqueimadura em tom de vermelho vivo.

Lembrei-me do tecido xadrez que tinhaencontrado. Então tirei-o da sacola e o se-gurei do lado de fora, debaixo da chuva fria.

— Tome — eu me inclinei para a frente. OSargento Wesley esticou o braço, mas per-cebi que segurou na arma com a outra mãoquando me aproximei. Enrolei o tecido frioem volta da queimadura. Ele cerrou osdentes, mas não falou nada. Quando virei obraço dele para dar um nó no tecido, percebialgo no seu antebraço: a espada e sevilhanacruzadas, o símbolo da Nova Guarda.

Apertei o nó rapidamente, os olhos baixos.— Obrigado — ele disse.— Não foi nada — eu respondi rapida-

mente. — Você também me ajudou.

170/456

Ficamos em silêncio novamente, observ-ando a chuva. Quando ela diminuiu etornou-se uma neblina fina, saímos dacaverna.

O Sargento Wesley caminhava na frente,em silêncio, em meio às árvores caídas. O archeirava a chuva e a madeira queimada. —Tenha cuidado — ele me avisou quando pas-samos a caminhar próximo à beira de umpenhasco.

— Estou bem — eu protestei, apesar dofato de que olhar para baixo me deixava umpouco tonta.

— Aqui — ele disse, me estendendo a mão.Relutantemente, peguei na mão dele. Os de-dos do jovem soldado envolveram os meus eele me guiou com cuidado para longe dopenhasco, me segurando firme enquantodescíamos.

Quando estávamos a salvo longe do pen-hasco, ele afrouxou a mão e eu me afastei.Um corvo solitário voou sobre nós, cruzando

171/456

o céu cinzento. Era a primeira coisa viva queeu via desde que entrara na floresta. Assisti-mos ao pássaro circular preguiçosamenteentre os galhos altos de uma árvore. O Sar-gento Wesley sacou a arma e mirou direta-mente nele. Mas em vez de atirar, abaixou aarma de novo.

— Por que você não o matou? — euperguntei.

— Ele está circulando em volta do ninho —ele murmurou em resposta. — Está levandocomida para os filhotes — olhei para ele, sur-presa. — Quer dizer, precisamos que essespássaros cresçam para, um dia, viraremcomida também. Acharemos outra coisa.

Continuamos a caminhar, descendo o de-clive da montanha sob a luz cinza do meio-dia. Era estranho como a bola de sol tinhasurgido e ido embora rápido. Perguntei-mese algum dos outros soldados tinha sido pegopor ela e o que teria acontecido comigo se euestivesse sozinha.

172/456

De repente, o Sargento Wesley agarroumeu braço e pressionou um dedo contra oslábios. Parei para prestar atenção e depoisouvi também: o som de passos leves vindo detrás das árvores. Ele me puxou para trásdele, a arma em punho, pronto para tirar.

Uma raposa apareceu, seguida por seu fil-hote. Eles estavam tão lindos, tão paradin-hos, olhando para nós com uma mistura decuriosidade e medo! Uma vez, quando eu es-tava caminhando sozinha pelas florestas daEscócia, uma raposa ficou me seguido,mordiscando os arbustos. Elas eram tãoraras que eu as considerava um pequeno sin-al de sorte.

O Sargento Wesley virou-se para mim.— Não vejo uma raposa desde os meus 6

ou 7 anos.Balancei a cabeça concordando.— Pensei que estavam todas mortas.— Talvez elas estivessem só se escondendo

— ele comentou.

173/456

— A tempestade de fogo provavelmente asfez sair das tocas — eu completei.

Ele largou a arma no chão e se ajoelhou,estendendo a mão com a palma virada paracima, sussurrando para as raposas não teremmedo.

Ajoelhei-me perto dele. Na minha sacola,eu ainda tinha um pouco de comida que re-cebera como almoço naquela manhã. Partium pedaço da batata, colocando-a no chãocomo uma oferta de paz para os animais.

A raposa mãe caminhou devagar na nossadireção, o filhote seguindo-a de perto. Elespararam a poucos metros de distância, nosespiando com cautela.

— Está tudo bem — eu disse com uma vozsuave, jogando a batata na direção deles. Osdois deviam estar morrendo de fome, porquecomeram imediatamente. Quando termin-aram, se aproximaram, sempre se movi-mentando de forma lenta e silenciosa.

174/456

Estendi a mão e toquei na cabeça do fil-hote. Ele se inclinou e se aconchegou napalma da minha mão. Eu ri, passando a mãono pelo vermelho e áspero entre suas orelhasenquanto ele virava a cabeça de lado comoum gato, gostando de ser coçado.

Olhei para o Sargento Wesley, sem acred-itar que eles tinham chegado tão perto ecomido das nossas mãos com tanta confi-ança. Pela primeira vez desde a morte domeu pai, senti algo parecido com esperança.

Então um brilho atravessou o ar. A mãeraposa ficou parada, os olhos arregaladosfixos em mim. Antes que eu tivesse tempo dereagir, uma segunda flecha levou o filhote aochão, que caiu morto ao lado do corpo damãe.

— Na mosca!Em pé, atrás de uma árvore velha e

apodrecida, estava Portia, que baixou suaarma.

175/456

14

PORTIA CAMINHOU NA NOSSA DIREÇÃOCARREGANDO O ARCO ao lado do corpo.Ela sorria.

— Desculpe atrapalhar o passeiozinho eco-lógico de vocês, mas sempre quis ter uma es-tola de raposa.

Olhei para o corpo das raposas. Os olhosdos animais, ainda abertos, estavam agoravitrificados, e as flechas cor de prata, espeta-das em seus pequenos corpos. Apenas um se-gundo atrás eles estavam vivos e faziamparte do mundo.

— Por que você fez isso? — o SargentoWesley perguntou com raiva.

— Sobrevivência do mais forte — Portiapuxou as flechas do corpo das raposas. Entãolimpou o sangue nas calças de cavalgar,soltando um suspiro. — O bebê é provavel-mente pequeno demais para uma estola, maseu não podia deixá-lo sem a mamãe, não é?Que criança quer viver sem a mãe?

O Sargento Wesley a encarou, os olhosapertados de raiva.

— Isso não era necessário, Portia.— Nada é necessário — ela riu. — Aliás, o

que você está fazendo com minha nova re-cruta? — ela perguntou enquanto se viravapara mim e erguia o arco em um único movi-mento. A próxima coisa que vi foi Portia mir-ando diretamente no meio da minha testa.Segurei a respiração, de repente me sentindocongelada no lugar onde estava. — E você,novata? Achei que a tinha mandado ficarlonge de problemas. — Olhei para os olhosduros de Portia enquanto ela fazia umapausa para criar um efeito dramático. —

177/456

Talvez eu poupe a ambas o esforço e atireagora. Um acidente rotineiro de caça.

— Chega — o Sargento Wesley ordenou. —Você sabe que não pode fazer isso.

Ela suspirou, soprando a franja para cimaenquanto baixava o arco.

— Relaxe, Wes. Você costumava ter sensode humor.

— Por que você veio para cá? Você está meseguindo? — o Sargento Wesley perguntou,os lábios tensos.

Ela parou, depois sorriu, mostrando todosos dentes perfeitos e brancos.

— Não seja convencido. Eu não estavaseguindo você, estava seguindo as raposas.

— Bom, então — ele disse com raiva —, senão se importar de levar as carcaças comvocê...

Portia pegou as raposas mortas pelosrabos, colocou-as no saco de caça e jogou osaco no ombro.

178/456

— Vejo você no quarto, Polly — ela acres-centou, me olhando pela última vez.

O Sargento Wesley ficou olhando fixa-mente para o bosque, observando-a, até quePortia desapareceu de vista.

Começou a ventar. As cinzas giravamcomo fantasmas escuros que apareciam e de-pois sumiam. O céu estava cinzento e paradocomo o metal de uma arma.

Finalmente, ele falou.— Sinto muito pela Portia. Ela não foi

sempre assim. Ela era... — ele fez uma pausa,procurando a palavra certa. — Diferente.

— Você parece conhecê-la há muito tempo— eu disse, tentando falar com cuidado.

— É, conheço. E não deixei de ter esper-ança de que a Portia antiga volte.

Eu sabia como ele se sentia. Desejando,esperando.

— Entendo — eu disse.O Sargento Wesley me olhou como se est-

ivesse esperando que eu continuasse.

179/456

— O meu irmão era... doente — eu contin-uei, de maneira vaga. — Eu costumavamanter a esperança de que ele iria melhorar.Mesmo não havendo cura para ele, eu aindatinha esperança — lembrei-me de como eutinha certeza de que um dia Jamie iria correre brincar como um menino normal.

O Sargento Wesley continuou me olhando,mas agora de uma forma mais penetrante,com uma expressão de preocupação norosto. Ele abriu a boca para falar algumacoisa, mas depois desistiu.

— O que foi? — eu perguntei.Ele balançou a cabeça.— Nada. Está ficando tarde. Precisamos

voltar.Ele me guiou rapidamente pelo bosque,

seguindo uma trilha que eu jamais encon-traria sozinha. Estava quase completamenteescuro quando vimos as chamas da fogueirano acampamento subindo entre as árvores e

180/456

sentimos o cheiro da fumaça preenchendo oar.

— Aqui — ele disse e me deu um pomboem que havia atirado no caminho de volta. —Lembre-se das regras.

— Obrigada, Sargento.— Por favor — ele disse. — Me chama de

Wesley. E não foi nada. Agora é melhor vocêseguir sozinha daqui.

Ele deu meia-volta e eu segui em frente,cambaleando, para o acampamento, ondeTub estava checando as caças que todomundo havia trazido. Entreguei a ela opombo que Wesley tinha me dado. Quandome viram, as outras meninas ficaram cala-das. Tub olhou para Portia, e depois de novopara mim.

— Você matou um pombo? — Portia per-guntou, apertando os olhos.

Fiz que sim com a cabeça.— Ou Wesley matou para você? — ela disse

com um ar de zombaria.

181/456

— Aqui, pegue — eu disse em sinal dederrota, jogando o pássaro morto para ela,que o pegou com um olhar de surpresa. —Pode ficar. Não estou com fome.

Mais tarde naquela noite, me vi de pé noquarto das garotas olhando para minhacama. Os corpos das duas raposas estavamlá, e o sangue de suas feridas manchava ocobertor verde-escuro.

— Um presentinho — uma voz, vinda detrás de mim, cortou o silêncio. Eu girei noscalcanhares e deparei com Portia e Tub.

— Você sabe costurar? — Portia perguntoucom um sorriso afetado. — Estou procurandoalguém para fazer minha estola de raposa.

— E uma jaqueta para mim — Tubacrescentou.

Levei uma mão à boca, passando mal. Araposa mãe e seu bebê estavam mortos edeitados na minha cama. Dos corpos de am-bos saía um cheiro azedo, e pequenas moscaslhes rodeavam as orelhas e os olhos.

182/456

Joguei as carcaças fora, mas o cheiro damorte persistiu, ressurgindo à minha voltavárias vezes durante a noite.

183/456

15

FIQUEI OLHANDO PARA O CAMPOQUANDO OS CAMINHÕES nos levarampela estrada suja que saía do palácio.Disseram-nos que participaríamos de um as-salto em uma cidade chamada Mulberry.Não fiz nenhuma pergunta. Tinha aprendidoa lição. Fazia três dias que Portia colocara asraposas mortas na minha cama, e, desde en-tão, eu vinha tentado me manter fora docaminho dela a maior parte do tempo. Omantra que eu tinha inventado para mim naminha primeira noite havia se tornado maisimportante do que nunca. Fique calma. Nãofaça perguntas. Seja paciente. Mas eusempre sentia os olhos dela sobre mim.

A lua estava clara, então pude ver edifíciossem janela rodeados por cercas de aramefarpado. Virei-me para o soldado ao meulado. Ele tinha olhos castanhos-claros e pare-cia ter por volta de 15 anos.

— Você sabe para que servem esses edifí-cios? — eu perguntei baixinho para ele.

O menino deu uma espiada.— Não sei — ele deu de ombros. — Nunca

os tinha visto.Ao lado de cada edifício, um fosso gigante

havia sido cavado na terra e preenchido comterra solta. Apertei o rosto contra o vidro.Saindo da terra, pensei ter visto uma mãohumana.

Apoiei a testa nos joelhos, me sentindo en-joada de pavor. Ali devia ser onde enter-ravam os corpos dos prisioneiros. Será queos corpos dos meus irmãos tinham sidojogados naquela pilha imunda? Será queaquela mão era de Mary ou de Jamie?

185/456

Os caminhões seguiram por muitos quilô-metros de autoestradas destruídas, o motorroncando, e depois por ruas estreitas do in-terior cercadas dos dois lados por sebes altasdemais. De repente, os caminhões pararamcom um solavanco, nos jogando para afrente.

Lá fora havia uma pequena casa caiadacom um telhado de palha parecendo umchapéu marrom. A luz de velas bruxuleavanas janelas da casa de campo. Um caminhode pedrinhas passava pela treliça do jardimda frente e ia até uma porta abobadada. Ojardim era perfeitamente aparado e haviauma banheira de pássaros feita de pedra.Quando vi a caixa de correios vermelha naporta, soube exatamente onde estávamos.

O Sargento Fax ordenou que saíssemosdos caminhões, depois seguiu com pressapelo caminho que cruzava o jardim. Ele abriua porta da casa com um chute, fazendo-a

186/456

bater na parede, e ordenou às tropas quemarchassem lá para dentro.

Forcei-me a seguir em frente, esquerda,direita, esquerda, direita, passando pelasoleira da casa das mulheres que me cri-aram. A primeira coisa que senti foi o cheirode chá, torradas e pudim de tapioca.Lembrou-me da minha infância. Entramosem uma sala de estar aconchegante, ondeduas velhas senhoras estavam sentadas di-ante de uma pequena lareira. Uma gatacinza, aninhada no braço da cadeira de umadas mulheres, olhou para cima.

Apesar de não vê-las há muitos anos, re-conheci Nora e Rita imediatamente. Não queelas fossem me reconhecer agora, usando ouniforme da Nova Guarda e com o rostocheio de raiva e medo. Meu coração batialentamente. Elas já tinham me dado banho,me alimentado, e lido histórias para eudormir. Agora aqui estava eu, apontandouma arma para elas.

187/456

O rosto das duas senhoras demonstrouconfusão quando olharam para cima, os liv-ros ainda abertos no colo.

— Viemos buscar a Coroa Real — rugiu oSargento Fax, o pescoço grosso pulsando. —Sabemos que ela está escondida aqui.

A faca que eu empunhava escorregou meiocentímetro quando minha cabeça começou agirar. Será que a Coroa Real poderia de fatoestar aqui? E, se estivesse, quem teria dadoessa informação para a Nova Guarda? A ún-ica pessoa que poderia saber disso era Mary,e ela nunca colocaria Nora e Rita em perigo.A não ser que não tivesse outra saída. Virei orosto, pois o pensamento de Mary e Jamieestarem vivos, mas estarem sendo brutal-mente torturados, era demais para euaguentar.

Surpreendentemente, Rita sorriu para oSargento Fax, depois para os soldados quecercavam a sala. Ela usava um conjunto desuéter e calças lilás. Uma bengala esculpida

188/456

em madeira estava encostada no braço dosofá. Havia fotos emolduradas de amigos eparentes penduradas nas paredes. Reconheciuma foto minha e de Mary em um pique-nique na lagoa do Hyde Park.

Postei-me atrás da fileira de soldados, paraque elas tivessem menos chance de me ver.Baixei os olhos e fiquei encarando o tapeteoval.

— Sinto muito, senhor, mas não posso lhedar a coroa de Windsor — Rita disse calma-mente. — Eu não a tenho, e, mesmo que ativesse, ela não é minha para que eu possadar.

— Não sei se você me ouviu corretamente— o Sargento Fax rosnou, e as palavras lhesaíam da boca pesadas como tijolos. — Eudisse: me entregue.

Rita deu um sorriso sereno e continuouparada, as mãos magrinhas entrelaçadas àfrente do corpo. Nora olhou para ela comuma expressão preocupada.

189/456

— É bem possível que você é que nãotenha entendido minha resposta. Eu me des-culpei por não poder lhe dar a coroa. Masposso lhe oferecer uma boa xícara de chá. Eacabei de fazer uma fornada de bolinhos decheddar.

Risinhos abafados encheram a sala. Pudever que até mesmo Wesley, parado à porta,tentava não rir.

Ouviu-se um tiro e depois um grito. O Sar-gento Fax atirou no gato aninhado no braçoda cadeira de Nora. Havia sangue salpicadopor todo o rosto e mãos da velha senhora.Senti meu estômago revirar.

— Chega de conversa! Me dê as joiasagora! Ou você vai acabar como o gato.

Nora começou a tremer de maneira incon-trolável. Sem pensar, abri caminho entre aspessoas para ajudá-la, mas Wesley me segur-ou pelo pulso, fazendo-me parar.

190/456

— Não se mexa — ele ordenou com sua vozde sargento, e eu respirei fundo para meacalmar.

Rita olhou para o Sargento Fax, a lareiraqueimando silenciosamente atrás dela.

Nora olhou para Rita. Toda a cor do rostodela havia sumido, e lágrimas escorriam-lhepelas bochechas.

— Por favor, Rita, entregue a coroa paraeles — Nora disse suavemente. Mas Ritaparecia não poder se mover. Ficou lá sen-tada, na cadeira, observando o gato sangraraté morrer.

Então, sem dizer nada, Rita fez o que Norapediu. Ela caminhou, como se estivesse emtranse, até o quarto, onde ouvimos o som deum cofre sendo aberto. Um momento depois,ela voltou segurando uma caixa de madeiraentalhada com uma fechadura prateada.Quase soltei uma gargalhada: o símbolo dogoverno do meu pai tinha sido escondido emuma pequena casinha de madeira com

191/456

apenas duas senhoras protegendo-o.Perguntei-me se meu pai tinha transferido asjoias para cá ao perceber quão poderoso Cor-nelius Hollister estava se tornando, imagin-ando que ninguém iria pensar em procurá-las aqui.

O Sargento Fax arrancou a caixa das mãosdela, pegando a chave e destrancando-a. Elevasculhou todos os compartimentos, retir-ando de lá o tesouro maior: a coroa decoroação dos Windsor, da qual Hollister pre-cisaria para se autoproclamar rei.

Mas antes ele precisaria acabar com alinha sucessória dos Windsor.

Assim, o Sargento Fax levantou a arma emirou na cabeça de Nora, que fechou osolhos.

— Adeus, Rita — ela sussurrou. A pele daspálpebras da velha senhora era tão fina e en-rugada quanto um lenço de papel.

Imaginei-me sacando a faca do cinto ecortando o grosso pescoço do Sargento Fax.

192/456

Enquanto ele morria, eu diria para ele queseu líder, Cornelius Hollister, nunca usariaaquela coroa, que ela nunca pertenceria aele.

— Pare! — uma voz disse com firmeza e oSargento Fax virou a cabeça para olhar. Wes-ley empurrou a multidão de soldados brusca-mente. O Sargento Fax abaixou a arma, ol-hando para ele.

— Não vamos gastar balas com elas, Fax.Já conseguimos o que viemos buscar.

Depois de uma longa e tensa pausa, o Sar-gento Fax concordou e os soldados se vir-aram para sair em fila da casa, seguindo aliderança de Wesley.

As tropas marcharam porta afora, batendoos pés com força pelo caminho sinuoso depedrinhas. Eu marchei junto, seguindo-os,quando alguém me segurou pelo ombro.

O Sargento Fax apontou para uma pinturaa óleo, de uma cachoeira e de um bosqueverde e exuberante pendurada na parede.

193/456

— Pegue aquele quadro.— Eu? — eu perguntei estupidamente.— Sim, você! — o rosto vermelho dele es-

tava muito perto. Tanto que dava para sentira saliva dele respingando na minhabochecha; tremi de nojo.

— Sim, senhor — eu concordei, fazendocontinência.

Virei-me na direção do quadro. Com ocanto dos olhos, pude ver Nora, ainda sen-tada na cadeira, como se tivesse sido trans-formada em uma estátua de mármore.

Senti os olhos dela em mim enquanto at-ravessava a sala até a parede atrás do sofá.Os tons verdes e azuis do quadro entraramem foco e pude perceber que se tratava dasárvores antigas e largas e da cachoeira ondepraticávamos mergulho na Escócia. Oquadro parecia ganhar vida, e, enquanto oolhava, eu sentia a brisa, o cheiro da grama,e ouvia o barulho da água caindo e das

194/456

nossas vozes enquanto nadávamos e mergul-hávamos do penhasco.

— Apresse-se! — o Sargento Fax gritoupara mim. Então tirei o quadro do ganchoenquanto as tropas reviravam outras partesda casa, pegando mesas, cadeiras, pratos,qualquer coisa que pudessem carregar.

Virei-me novamente, desta vez ficando decostas para a parede e de frente para Nora.Ela me olhou com curiosidade, como se re-conhecesse algo, uma parte de mim, mas nãoconseguisse identificar o quê.

— Sinto muito — eu murmurei, espiandopara ter certeza de que o Sargento Fax nãoestava ouvindo, então saí rapidamente.

Dentro do caminhão, os soldados abriamgarrafas de bebidas que tinham roubado.Cantavam o hino da Nova Guarda e recon-tavam momentos de cercos e de outros as-saltos dos quais tinham participado, en-quanto passavam as garrafas de um para ooutro, brindando, como se roubar de

195/456

velhinhas desarmadas fosse um ato heroico.Recusando o uísque quando me foi ofere-cido, dei uma última olhada para trás. Apequena casa com uma fumacinha finasaindo da chaminé parecia uma ilustraçãosaída de um livro infantil.

Enterrei as unhas na palma das mãos sópara me lembrar de que ainda conseguiasentir alguma coisa. Eu tinha feito mal àsmulheres mais gentis do mundo, mulheresque foram como segundas mães para meusirmãos e para mim depois que nossa mãemorreu.

O caminhão chacoalhava pelas estradaspoeirentas. A lua estava fraca no céu; as es-trelas tinham sumido. Quilômetros e quilô-metros de campos se estendiam ao longecomo o mar. Eu me sentia oca e vazia, in-capaz até de chorar.

Um barulho me arrancou do meudevaneio. Olhei para cima e vi Wesley desliz-ar para o assento ao meu lado.

196/456

— Polly — ele disse com uma certaaspereza na voz.

— O que você quer? — eu perguntei furi-osamente, me virando para esconder as lá-grimas que ameaçavam escorrer dos meusolhos.

— Eu não deveria precisar impedir vocêhoje à noite. Você não sabe como é perigosodesobedecer a um oficial?

Ouvi minha respiração ao inspirar e sentiro ar frio e úmido da noite dentro dos pul-mões. Por que eu choraria agora? Depois detudo que aconteceu esta noite, por queagora? Senti-me a ponto de me entregar,mas cerrei os punhos e prendi a respiração,relembrando de como eu odiava todo mundona Nova Guarda.

— Não posso acreditar no que eles fizeramcom... — Me segurei antes de dizer o nomedas velhas senhoras. — Quem o Sargento Faxpensa que é para tratar as pessoas assim,

197/456

matando animais de estimação e pegando ascoisas delas? — Eu tremia de desgosto.

Wesley percorreu o caminhão com os ol-hos para ter certeza de que ninguém estavaouvindo nossa conversa. Ele colocou umbraço sobre meus ombros, me segurandocom firmeza.

— Polly, se você der um passo em falso,sua cabeça vai rolar. Você não vê isso? Estoutentando ajudar você — ele sussurrouquando os caminhões pararam.

Desembarcamos diante dos portões dopalácio, onde Portia, Tub e alguns dos ofici-ais de patente mais alta estavam esperandopara acompanhar a descarga dos itens maisvaliosos que trazíamos da casa. Wesleycumprimentou os oficiais com um aceno decabeça e se dirigiu para o esquadrão dele, afim de levar os soldados para os alojamentos.Já era hora de dormir. Mas Portia ficouparada, me encarando, os olhos como sefossem flechas. Ela parecia a coruja que se

198/456

aninha em um galho e fica parada como umaestátua, espreitando a presa.

199/456

16

QUANDO ENTREI NO DORMITÓRIO,LOGO VI QUE ALGO ESTAVA errado. Todasas garotas, menos Vashti, estavam reunidasem um círculo no centro do quarto, mas nãohavia cartas à vista. O ar parecia espesso porconta de uma estranha sensação de espera.

— Eu estou realmente começando a meperguntar sobre você — Portia anunciou,falando lentamente, como se cada palavrafosse um doce que ela queria saborear. —Você ainda não começou minha estola de ra-posa. Na verdade, acho que você nem sabecosturar. Você não sabe limpar. Seu sotaquevem e vai, de escocês para o de um membroda aristocracia londrina — ela disse a última

frase fazendo uma imitação aguda da minhavoz e todo mundo riu. Depois a voz delabaixou uma oitava. — Honestamente, não seio que o Sargento Wesley vê em você. Ele játinha se envolvido com recrutas antes, masnão assim.

Continuei parada, sem sequer mudar opeso do corpo de perna ou tirar, por um se-gundo que fosse, os olhos de Portia. Meucoração batia forte.

Tub tomou partido de Portia.— Você é uma espiã da Resistência?Portia revirou os olhos e então andou para

a frente, a fim de me segurar o queixo, gir-ando meu rosto de forma a me obrigar aolhá-la nos olhos.

— Duvido que ela seja esperta o suficientepara ser uma espiã. Isso é só uma meninaidiota que nem sequer consegue seguir or-dens simples — todo mundo riu de novo. Elachegou mais perto, segurando meu queixocom mais força, e se inclinando para

201/456

sussurrar algo no meu ouvido, de forma quesó eu pudesse ouvir. — Me diga: por que vocêestá aqui?

— Estou aqui para lutar pela Nova Guarda— eu respondi alto.

— Está mesmo? Então por que você hesit-ou quando esteve face a face com um mem-bro da Resistência na Noite da Morte? Você épró-Resistência ou só é covarde mesmo?

— Estou aqui para lutar pela Nova Guarda— eu repeti, meu rosto como se fosse depedra, impassível.

Portia soltou meu queixo.— Então prove.Dei um passo para trás.— O quê?— Prove! — ela repetiu.Portia puxou a manga direita do uniforme.

No antebraço pálido dela havia a tatuagemde uma sevilhana e de uma espada cruzadas.Antes que eu soubesse o que estava aconte-cendo, Tub e June me seguraram pelos

202/456

braços. June enfiou o joelho nas minhas cos-tas. Portia ficou ao lado dela, segurandomeus pulsos e amarrando-os bem apertadocom uma corda.

Elas me levaram para o banheiro. En-quanto Portia pegava uma longa tesoura deuma prateleira, me senti perdendo o chãosob os pés.

Ela segurou minha nuca. Eu não emiti umúnico som — não ia dar esse gostinho a elas.Senti a lâmina gelada da tesoura no meucouro cabeludo e ouvi o som de corte, depoisvi mechas do meu cabelo caindo como chuvano chão do banheiro.

Portia me empurrou para a frente de umespelho.

— O que você acha?Meu cabelo havia sido cortado bem rente.

Tão rente que meu couro cabeludo aparecia.Tub e June se contorceram de tanto rir, se-

gurando a barriga, o rosto vermelho.

203/456

— O Sargento Wesley certamente não vaimais flertar com você — June zombou.

Quando me olhei no espelho, o que maisme chocou não foi o cabelo curto demais,cortado de qualquer jeito, mas a desolaçãoestampada nos meus olhos. Eu era uma som-bra do que fora um dia.

— Adorei — eu disse, me virando para Por-tia e para as outras. — Estava querendomesmo cortar o cabelo.

Mas meu sarcasmo só a enfureceu. O rostobonito de Portia tornou-se contorcido evermelho.

— Ainda não terminei — ela retrucou. —June, segure ela no chão.

June me jogou no chão e acabei batendo aparte de trás da cabeça no mármore. Ela mesegurava pelos ombros enquanto Tub sen-tava nas minhas pernas. Com o peso dasduas, era impossível me mexer. Eu chutava eme contorcia selvagemente, mas então Junepuxou sua sevilhana e a colocou no meu

204/456

peito, de forma que, se eu me mexesse umcentímetro sequer, a lâmina cortaria minhapele. Cerrei os punhos.

Com o canto dos olhos, vi Portia em pé aolado do caldeirão de água que ficava em cimado carvão. Ela estava abrindo um cabide dearame com as mãos para que ficasse reto.Então colocou-o sobre o carvão em brasa.

— Por favor, me larguem — eu implorei,odiando o som desesperado da minha voz,mas sem conseguir me segurar. — Por favor,me soltem.

— Segurem ela! — Portia gritou. Ela olhavapara os carvões incandescentes de forma as-sustadora. As chamas refletiam nas pupilasescuras dos olhos dela. Portia sorriu para aschamas, aproveitando o momento.

Não nos meus olhos, eu rezei. Não deixeela me cegar.

Ela tirou o arame em brasa do fogo,segurando-o na frente do meu rosto.

205/456

— Fique parada — ela ordenou. — Se euestragar, vou ter que fazer de novo.

Então ela se abaixou do meu lado, segur-ando o arame vermelho e brilhante na mão.

Primeiro senti o calor, como quando seaproxima um dedo no fogo. Depois, quandoPortia pressionou o arame quente contraminha bochecha, senti o ardor. Meu corpo securvou para cima com a dor. Eu me contor-cia para me libertar, o que apenas fez comque Tub batesse minha cabeça no chão. Ador da queimadura fisgava todo meu corpocomo nada que eu tivesse sentido antes. Al-guém gritou, provavelmente eu. O banheiroficou vermelho, depois preto. O último somque ouvi foi o eco das risadas das garotas.

206/456

17

FOI A DOR QUE ME ACORDOU.Encolhendo-me diante da sensação de

agulhas quentes furando a pele embaixo domeu olho direito, pressionei a bochecha con-tra o chão frio de mármore, mas isso nãochegou a aliviar. Respirei profunda e tremu-lamente, tentando reunir forças, os olhosainda fechados. Tentando me equilibrar,fiquei em pé e me segurei na pia.

Embaixo do meu olho direito a pele estavainchada, bolhas formando uma imagem im-perfeita de uma sevilhana e de uma espadacruzadas.

Elas tinham me marcado com o símboloda Nova Guarda.

Toquei na pele queimada e em carne viva,e mordi os lábios com força para segurar umgrito de dor.

Mesmo sozinha no banheiro, eu não podiadeixar Portia ganhar. Não iria mostrar a ela afraqueza que ela queria ver em mim.

Arrumei-me como pude na pia. Eu precis-ava partir naquela mesma noite. Se continu-asse lá para tentar realizar aquela missão im-possível, acabaria morta. Alcancei a porta,mas ela não abria. Estava trancada.

Respirando fundo na tentativa de lutarcontra meu pânico crescente, olhei em voltapara ver se havia como escapar. Eu não tinhacerteza de quanto tempo havia estado incon-sciente, mas sabia que Portia acabariavoltando. Havia uma pequena janela re-donda na parede virada para o sul que davapara o topo das árvores, mas era de vidro es-pesso misturado com uma tela de metal.Estávamos no terceiro andar. Se eu pulasse,teria muita sorte de sobreviver à queda.

208/456

Tirei desajeitadamente o caldeirão do fogoe bati com ele no vidro, tremendo e segur-ando a respiração por conta do barulho queecoou no banheiro. Como ninguém apareceu,bati de novo, e de novo, até que o vidrogrosso se despedaçou e caiu no chão, rest-ando apenas a tela de arame.

Então comecei a arrancar o arame atéfazer um buraco grande o bastante para eupassar. No parapeito, me segurando na es-quadria de pedra com as mãos nuas emachucadas, parei e olhei para baixo, calcu-lando a queda. O ar estava parado. A noiteescura cobria todo o céu como uma piscinade tinta: não havia nenhuma estrela à vista.A única luz visível vinha de uma fileira detochas cujas chamas balançavam sob a janela— os soldados em patrulha. Recuei um pou-co, me escondendo nas sombras, sentindo-me tonta e enjoada de dor e de medo.

Notei um som de água pingando à minhaesquerda. Olhei naquela direção e vi o brilho

209/456

de um cano de cobre escondido embaixo deuma grande forração de videiras. Ele tinhasido instalado recentemente, a fim de coletara água da chuva que empoçava no telhadopara bebermos. Eu duvidava que o canofosse forte o suficiente para me aguentar,mas era melhor que nada. Assim, inclinei-mepara fora, tanto que quase caí. As videiras es-tavam fora do meu alcance.

Respirei fundo, tentando calcular a distân-cia. Depois, em um único movimento, solteia esquadria e pulei da janela.

Escorreguei rapidamente, ignorando a dornos dedos ainda incrustados com pedaços devidro e de arame, até que consegui me segur-ar nas vinhas. Meus pés se debatiam contra aparede enquanto eu tentava encontrar umapoio. Por fim, consegui me apoiar naspedras ásperas e nas vinhas, fazendo um es-forço enorme para não gritar de dor.

Então, centímetro por centímetro, deslizeiao longo do cano como os bombeiros fazem,

210/456

até que finalmente senti o chão embaixo demim.

Pressionei as costas contra o muro dopalácio, olhando nas duas direções. Na som-bra, a cerca de arame farpado se erguia portrês metros à minha frente. Não havia jeitode pular as concertinas farpadas localizadasem cima da cerca sem me cortar toda, e eunão tinha como cavar para passar por baixodela. Eu precisava fugir pelo bosque. Assim,amarrei novamente os cadarços das botas edisparei na direção das árvores nuas, quefuncionavam como um muro de sólidaescuridão.

Eu já estava quase do outro lado do campoquando uma figura se materializou na minhafrente, me derrubando no chão.

— Mãos nas costas! — berrou uma duravoz masculina. Minha queimadura, queainda latejava, foi pressionada dol-orosamente contra a terra quando o soldadocolocou o pé no meu pescoço, me forçando a

211/456

ficar no chão. Outro soldado se aproximoucom uma tocha acesa e amarrou minhasmãos atrás das costas. Estremeci quandosenti a corda encostar nas palmas feridas dasminhas mãos, mas tentei ficar completa-mente parada.

O primeiro soldado, um sargento, mevirou de costas de forma grosseira, a fim deolhar para meu rosto.

— Qual é o seu nome? — ele perguntou.— Uma fugitiva — o jovem soldado disse,

torcendo meus pulsos até doer. Eu não dissenada.

— Levante-se — o sargento vociferou.Então me ergueu com força e me empurroupara que eu começasse a andar. Eles me cu-tucavam com as sevilhanas que empun-havam e me tangiam em direção ao campodestruído que levava aos Campos da Morte.Os sons que me assombraram — os gritos ag-onizantes de dor e o chacoalhar das algemas— ficavam cada vez mais altos. Quando nos

212/456

aproximamos do portão, vi uma longa fila depessoas arrastando os pés pelo campo,algemadas pelos tornozelos. Um soldado en-tregava para cada uma delas uma pá.

Por que eles não usam as pás comoarmas?, eu pensei. Mas os prisioneiros erampele e osso, e, em desespero, arrastavam aspás atrás de si. Não havia espírito de lutadentro deles.

— Comecem a cavar! — um soldado gritou,caminhando atrás deles e batendo na cabeçados mais lentos com o cabo da sua sevilhana.O som do metal contra o crânio deles ecoavana noite. Eu observava horrorizada enquantoo soldado colocava os prisioneiros em fila eatirava na cabeça deles, um após o outro.Eles caíam nos buracos vazios como dominóshumanos.

Levei a mão à boca quando a ficha final-mente caiu: aqueles homens tinham sidoforçados a cavar o próprio túmulo. Assim

213/456

que eu atravessasse o portão, nunca maissairia dali.

Outro soldado montava guarda no portãodo Campo da Morte. Pisquei várias vezes porconta da luz súbita da lanterna de carvão,certa de que meus olhos estavam me en-ganando. Era Wesley. Os olhos dele encon-traram os meus, mas ele rapidamente desvi-ou o olhar.

— Barth e Harbor — ele falou para os ho-mens. — Vocês não deveriam estar de guardano portão?

— Temos uma fugitiva — o Sargento Barthrespondeu.

— Passe ela para cá — Wesley ordenou,sem sequer olhar para mim. — E voltem paraseus postos agora mesmo.

— Sim, senhor! — os dois soldados osaudaram e se viraram para correr de voltapara o campo.

Quando eles foram embora, Wesley soltoulevemente a mão que me segurava pelos

214/456

ombros e me virou de frente para ele. Olheipara o chão, mas senti meus olhos quei-mando como o arame do cabide de roupas.Nunca tinha sentido tanta vergonha — domeu rosto, das minhas decisões, de como eutinha sido estúpida ao achar que poderia iraté lá e matar Cornelius Hollister. Em vezdisso, eu tinha sido marcada com o símbolodele.

— Quem fez isso com você? — ele pergun-tou baixinho. — Foi Portia?

Eu não disse nada. Lágrimas brotaram dosmeus olhos, borrando-me a visão.

— Ande rápido e não diga nada — Wesleyme ordenou e me empurrou para a frente. Acerca de aço do Campo da Morte se erguia àluz da lua. Parei e me virei para olhar paraele.

— Como você pode conviver consigomesmo lutando por este exército? — eu per-guntei com a voz trêmula, olhando

215/456

profundamente para os olhos de Wesley. —Se você vai me matar, ande logo e me mateagora.

Ele me empurrou novamente para afrente.

— Você não me ouviu? — ele sussurrou. —Eu disse para você não falar nada. Continueandando — a luz da lua batia nas proemin-entes maçãs do rosto de Wesley e acendiamas olheiras fundas dos olhos dele.

Já havíamos passado pelo Campo daMorte e agora caminhávamos por um campoescuro na direção de um edifício de tijolossem janelas.

— Para onde você está me levando? — euperguntei entre dentes.

Wesley me puxou e começou a desamarrara corda que me prendia os pulsos.

— Você não vai me levar para o Campo daMorte? — minha voz denunciava minhaconfusão.

216/456

Ele tirou uma segunda arma do uniforme ea colocou na palma da minha mão.

— Você sabe atirar?— Sei.— Está carregada. Não a solte nunca. Se

nos separarmos, se os Andarilhos a pegarem,atire neles. Não hesite, ou eles a matarãoprimeiro.

Aquiesci mecanicamente e envolvi os de-dos no cabo, tremendo de dor ao colocar odedo no gatilho para experimentar.

— Vou levar você para um lugar seguro,mas temos que atravessar o bosque parachegar lá — continuou Wesley. — E precis-amos ficar quietos e ser cuidadosos. Se mepegarem ajudando você, nós dois seremosmortos.

Levantei os olhos para olhá-lo. Queria con-fiar em Wesley, mas e se tudo não passassede uma armadilha elaborada?

— Por que você está me ajudando? — euperguntei.

217/456

Ele olhou para os Campos da Morte lálonge.

— Você não é a única pessoa aqui com al-guma coisa a esconder, Eliza.

218/456

18

O SOM DO MEU NOME VERDADEIRO MEFEZ CONGELAR. UMA coruja piou lá emcima, aninhada como uma estátua no galhode uma árvore. Tudo estava em câmeralenta, como se o tempo tivesse desacelerado.

— Você sabe quem eu sou — eu disse, masminha voz era quase inaudível. O ar noturnodeixava minha pele fria. Estava tão escuroque eu mal podia ver Wesley parado naminha frente.

— Sim — ele respondeu.— Alguém mais sabe?— Não que eu saiba.Dei um passo para trás.

— Como? Onde...? — balancei a cabeçaantes de fazer a pergunta que me perseguiahá semanas: — Por que você me deixou es-capar naquela noite no palácio?

Ele também balançou a cabeça, como seesperasse a pergunta.

— Eu olhei para seus olhos e... não con-segui fazer aquilo — Wesley fez uma pausa,procurando as palavras. — Por favor, confieem mim.

Pensei nas vezes em que ele tinha ficadosozinho comigo, com uma arma em punhoenquanto eu estava desarmada. Se elequisesse me matar, já o teria feito. Final-mente concordei.

— Para onde vamos? — eu perguntei,ainda tonta, enquanto caminhávamos juntosem direção ao centro do campo.

— Você vai ver — ele respondeu demaneira sombria.

Dentro do edifício de concreto e sem janelas,os cavalos de guerra de Cornelius Hollister se

220/456

debatiam atrás das largas portas das baias.Eles eram pelo menos uma cabeça mais altosdo que os cavalos normais e tinham os olhosinjetados de sangue, cheios de ódio. Os cas-cos de aço dos animais coiceavam o chãoraivosamente. Eles davam cabeçadas comtanta força nas portas das baias que algunsestavam com a pele em carne viva e parte doosso aparecendo.

Wesley selou uma égua preta e branca en-quanto eu me escondia na sombra do umbralda porta, de guarda. As selas e as rédeasficavam penduradas em suportes nasparedes, e eram tão grossas que pareciammais armaduras do que acessórios de cava-laria. Pensei em Jasper e senti um calafrio.Estas criaturas tinham sido criadas para aguerra, tinham sofrido maus-tratos desdeque nasceram. Elas eram máquinas de ódio edestruição.

221/456

Observei Wesley colocar um freio cheio depontas na boca da égua e reprimi um grito deprotesto.

— Você não pode usar isso! — eu sussurreialto. — Vai machucá-la!

— Eu sei — ele balançou a cabeçatristemente. — Mas eles não obedecem aosfreios normais — e, dizendo isso, puxou o an-imal gigante de dentro da baia e levou-o atéo pátio. Então me pegou no colo e me colo-cou sobre a sela. — O nome dela é Calígula —Wesley disse. — Ela é uma das mais rápidas.

Wesley também montou na égua e se aco-modou na minha frente. Calígula disparoude repente, galopando pelos campos. Segureiapertado na cintura dele.

Enquanto adentrávamos o bosque,Calígula começou a desacelerar e passoupara um trote largo, transpondo com facilid-ade raízes e troncos de árvore caídos nochão. Os sons noturnos da floresta preen-chiam o silêncio que havia se formado entre

222/456

nós. Um grupo de morcegos passou voando egritando, como uma pequena tempestade es-cura, acima de nós.

Depois do que pareceu uma hora, Calígulafinalmente passou a trotar, escolhendo ocaminho com cuidado pelas margens de umlago prateado e brilhante. Wesley franziu asobrancelha, confuso. — Estranho — elemurmurou. — Nunca vi esse lago antes.

— Ele se parece com um lago onde cos-tumávamos nadar na Escócia — eu falei,pensando no lugar onde Mary, Polly e eu tín-hamos passado muitos dias despreocupadosde verão. Fazíamos piquenique, jogávamosdiversos jogos e mergulhávamos de um galhoalto de árvore que se debruçava sobre a água.Jamie ficava sentado contando o placar dosnossos mergulhos, envolto por um cobertor,porque sentia frio mesmo no verão.

— Vamos parar aqui — Wesley falou. —Precisamos de água mesmo — ele apeou eamarrou as rédeas de Calígula em um galho.

223/456

— E devíamos colocar um pouco de água nasua queimadura — ele acrescentou, descendona direção do lago.

Uma ondulação na água se formou e de-pois desapareceu antes que eu pudesse tercerteza de tê-la visto. Teria sido um peixe?Eu não via um peixe vivo há anos. Eu podiapescá-lo com um arpão e cozinhá-lo em umafogueira. George, o pai de Polly, tinha me en-sinado a alancear salmão quando eu erapequena. Segui Wesley, também descendona direção da água, prestando atenção paraver se outra ondulação aparecia. Enquantome aproximava, vi que a água tinha um tomprateado estranho, bonito, que refletia a luzcomo se o brilho viesse lá de dentro.

Wesley se ajoelhou e pegou água para be-ber com as mãos em concha. De repente,percebi por que a água tinha um brilhoprateado.

Por uma fração de segundos considereideixá-lo beber aquela água. Um gole era

224/456

mais do que necessário para envenená-lo, eeu ainda não sabia se podia confiar nele oupara onde ele estava me levando.

— Espere. Pare — eu gritei no último mo-mento. — É uma piscina de mercúrio! Vocêvai morrer se beber. Não devíamos sequerestar respirando tão perto disso.

Wesley se afastou rapidamente, os olhosarregalados encarando o veneno prateado. Àmargem do lago vi o que não tinha percebidoantes: os corpos mortos e deformados de cri-aturas marinhas flutuando na parte maisrasa. Peixes com barbatanas onde deviam es-tar os olhos, sapos sem pernas e enguias comcabeças nos dois lados do corpo.

Ergui a cabeça e olhei para a floresta dooutro lado. Escondida entre as videiras su-perabundantes havia uma estrutura de ci-mento com um logo enorme da CX: ali ficavauma das inúmeras fábricas da Chemex, ondetudo, desde xampu e fertilizante a Nuvens daMorte, tinha sido manufaturado antes dos

225/456

Dezessete Dias. No rastro da destruição, osprodutos químicos mortais da fábrica tinhamvazado e envenenado a terra em um raio dequilômetros.

— Eu estava pensando que essa era a águamais bonita que eu já tinha visto — Wesleydisse, a voz trêmula. — Eu a teria bebido sevocê não tivesse me avisado — ele olhou paramim. — Obrigado.

— Claro — eu respondi, envergonhada porter considerado deixá-lo beber aquilo. —Obrigada por... — eu queria dizer pouparminha vida, mas, em vez disso, disse: — pormanter meu segredo.

Olhei para o lago. Wesley tinha razão. Eraa água mais bonita que eu já tinha visto.Bonita, mas mortal. Como tanta coisa nomundo.

Meu rosto ainda doía, mas agora eramminhas mãos que estavam latejando de umamaneira insuportável. O sangue escorrialentamente de lugares onde pequenos cacos

226/456

de vidro e pedaços de metal tinham per-furado a pele. Já estávamos cavalgando hápelo menos uma hora desde a piscina demercúrio. Eu esperava que não precisásse-mos ir ainda mais longe.

— Estamos quase lá — disse Wesley, re-spondendo ao pensamento que eu não tinhaverbalizado. Ele se inclinou para a esquerdae abriu caminho entre um grande monte dearbustos, revelando uma passagem estreitaentre as paredes formadas pelas videiras.Calígula passou com cuidado, a respiraçãoformando pequenas nuvens de fumaça no argelado.

Em uma clareira mais à frente havia umacasa de pedra com telhado de palha. Omusgo cobria as paredes externas, a pinturaestava descascada em vários pontos daparede da frente, e as esquadrias de ferro dasjanelas estavam cobertas de teias de aranha evideiras.

227/456

— Alguém... mora aqui? — eu pergunteibaixinho. Eu tinha ouvido dizer que osAndarilhos tinham uma casa isolada e escuraonde mantinham os prisioneiros vivos, tran-cafiados, à espera de serem comidos, comouma geladeira humana.

— Não tem ninguém aqui. É seguro —Wesley me assegurou. Mas segurei a armacom firmeza, ignorando a dor na mão, en-quanto ele amarrava Calígula em uma estacae tirava um balde de água de um poço depedra e dava para ela.

— Como você sabia da existência dessacasa? Como você pode ter certeza de que nin-guém está escondido aí dentro?

— Ninguém mais sabe que essa casa existe— e, dizendo isso, tirou uma chave do bolso edestrancou a porta da frente. Entrei atrásdele, hesitante.

O ar da casa estava frio e parado, echeirava a mofo e a terra molhada. Eu estavaem pé em uma pequena sala de estar, onde

228/456

uma namoradeira com uma estampa des-botada de rosas e duas cadeiras de palha es-tavam de frente para uma lareira de pedra.Wesley se abaixou para acender uma velaque estava na mesa de centro. Algumas pou-cas mariposas marrons circularam em voltada luz, voando perigosamente perto demaisda chama.

— Vou acender a lareira — ele anunciou. —Está frio aqui.

Eu mantinha as mãos à frente do corpo,nervosa por estar na floresta à noite. Olheipara a janela e para a porta. O vidro dasjanelas podia ser facilmente quebrado, e aporta podia ser despedaçada com algunspoucos golpes de machado. Eu ainda se-gurava a arma com mão firme, quase comoum consolo, da mesma maneira que uma cri-ança seguraria a mão da mãe.

— Pode soltar a arma — Wesley fez umgesto apontando para minha mão. — Nãovou machucar você.

229/456

Hesitei por um momento, mas depoiscoloquei o revólver sobre a mesa.

— Eu sei — E percebi que acreditava nisso.Estava segura ali com ele. — Eu estava pre-ocupada que os Andarilhos aparecessem.

Wesley me olhou de maneira pensativa,como se estivesse considerando se eu estavafalando a verdade ou não.

— Eles não vão aparecer. Prometo — entãosentei na namoradeira gasta, olhando emvolta, à procura de alguma pista sobre ondeestávamos. Vigas de alegres cerejeiras at-ravessavam o teto baixo e um tapete ovalquentinho cobria o chão.

Nas janelas estavam penduradas cortinasempoeiradas, de um tom de café amarelopálido e com acabamento de renda. Dentrodo círculo de luz da vela, vi a estampa depequenos botões de rosa na toalha de mesa.

— De quem era essa casa? — perguntei.— Da minha mãe — Wesley respondeu en-

quanto alimentava o fogo com galhos e

230/456

gravetos. Esperei que ele continuasse, masem vez disso ele olhou para minhas mãos. —Você devia lavar esses cortes. Vou esquentarum pouco de água. Vá olhar no armário dacozinha para ver se tem sal.

Quando voltei para a sala de estar segur-ando um pote de sal, Wesley tinha tiradooutro balde de água do poço e estava es-quentando a água em uma panela. Sombraslançadas pelas chamas vermelhas e amarelasdançavam pela sala. Apesar de estar claroque a casa não era usada há anos, ela pareciaque tinha vida e era amada.

— Você leu os livros de Pedro, o Coelho,quando era criança? — eu perguntei. — Éisso que este lugar me lembra: a toca dosCoelhos.

— Fico feliz — ele sorriu, e percebi queaquela era a primeira vez que eu o via sorrir.

— Você fica diferente quando sorri — eudisse suavemente.

231/456

Os olhos de Wesley cruzaram com osmeus, se fixaram por um momento e depoisolharam para baixo, para minhas mãos en-sanguentadas. — Venha cá — ele fez umgesto para que eu me sentasse no tapete nafrente da lareira.

— Vai arder, mas é o único jeito de limparessas feridas — ele jogou sal na água quentee se ajoelhou atrás de mim, inclinando-separa segurar meus pulsos e colocá-los lenta-mente dentro da panela. Engasguei com ochoque. Fechei os olhos e tentei aguentar ador. Enquanto a água limpa ficava vermelhacom sangue e pedaços de vidro e metalcomeçavam a se soltar da minha pele, come-cei a ficar intensamente consciente dapresença de Wesley, ainda ajoelhado atrás demim, a respiração dele me fazendo cócegasna orelha.

Então ele se levantou abruptamente.— Fique aqui. Vou ver se consigo achar al-

guma coisa para a gente comer.

232/456

Depois de procurar um pouco, Wesleyvoltou com várias latas de sopa de vegetais.

— Estão vencidas, mas devem estar boasainda — ele disse baixinho e afastou um pou-co a panela para colocar a sopa sobre o fogo.Quando as sopas esquentaram, ele as despe-jou em duas tigelas de madeira. Enrolei asmãos em bandagens improvisadas que elehavia feito com tiras de lençol, me sentindoesperançosa ao ver as feridas tão limpas, etomei um gole do caldo fervente direto datigela. Já me sentia mais forte.

Wesley colocou outra panela de água comsal para esquentar. Quando estava quase fer-vendo, ele jogou lá dentro outra tira delençol.

— Pronto — ele disse. — Agora aqueimadura.

Ele se inclinou e limpou minha bochechacom o tecido morno, tocando-a suavemente.

— Não posso acreditar que Portia tenhafeito isso — ele disse baixinho.

233/456

Fiz uma pausa e depois falei de forma im-parcial: — Vocês já estiveram juntos, não é?

Wesley começou a rir, uma risada triste eamarga, então balançou a cabeça e me enca-rou com honestidade.

— Portia e eu nunca estivemos juntos —ele disse lentamente. — Ela é minha irmã,Eliza.

Fiquei boquiaberta com a revelação. Pen-sei rapidamente nos olhos verde-escuros, nocabelo louro-escuro, nas maçãs saltadas dorosto. Não pude acreditar que não tinha per-cebido isso antes.

— Mas você é tão... diferente.Ele encostou o pano quente de novo no

meu rosto.— Éramos inseparáveis quando crianças.

Mas, depois que nossa mãe morreu, Portiamudou.

Olhei em volta e uma onda de com-preensão tomou conta de mim. Aquela casa

234/456

era a última coisa que Wesley tinha da mãedele.

— Sinto muito — eu consegui dizer.— Portia achou que nossa mãe nos aban-

donou. Mas ela não fez isso. Ela nunca nosdeixaria — a expressão dele ficou mais dura.— Meu pai a matou e fez parecer suicídio.

Eu piscava os olhos com rapidez, es-pantada com a honestidade dele. Não con-seguia imaginar como tudo aquilo deveria tersido horrível, realmente impensável: saberque seu pai matou sua mãe. Wesley virou decostas para mim, cerrando os punhos comtanta força que, quando abriu as mãos, aspalmas estavam cheias de pontinhos desangue.

— Mas por quê? — eu sussurrei, sem con-seguir me refrear.

— Ela... descobriu coisas sobre ele — elecomeçou a cutucar o fogo, as brasas vermel-has pulando de forma violenta. — Eu venhoaqui às vezes, para pensar e ficar sozinho.

235/456

Portia nunca vem. Não sei nem se ela se lem-bra de que esta casa existe. Sinto muito — elese interrompeu. — Não devia estar lhe cont-ando isso.

— Fico feliz de que tenha contado — colo-quei a mão sobre a dele. Eu reconhecia emWesley a mesma tristeza que eu sentia. Otipo de tristeza que aparece quando você écriança e se assenta para sempre, nunca maisindo embora.

— Você contou isso para alguém? — euperguntei baixinho.

— Não, nem mesmo para Portia. Se meupai fosse preso, nós teríamos ficado total-mente sozinhos. Eu quis poupá-la da dor.Mas... — A voz dele foi se perdendo e eleficou olhando o fogo.

— Sinto muito — eu disse de novo. — Deveter sido uma escolha terrível.

— Você sabe o que é mais estranho? — avoz de Wesley soava amarga. — Ainda amomeu pai, mesmo sabendo o que ele fez. E, ao

236/456

mesmo tempo, o odeio, por quem ele é e peloque fez com Portia.

Eu não disse nada.— Eu sofri muito com a perda da minha

mãe, mas foi pior para Portia. Ela achou quenossa mãe não a amava o suficiente paraviver por ela e cuidar dela. Então foi até oceleiro, onde havia uma família de coelhin-hos de que minha mãe estava cuidando, equebrou o pescoço de todos eles. Esse foi ocomeço da nova Portia — Wesley apertou asmãos. — Ela tinha 8 anos.

Fiquei sentada em silêncio, olhando para alareira e pensando nos meus irmãos.Perguntei-me mais uma vez onde eles estari-am enterrados. Será que já estavam no céucom nossos pais? Enquanto eu pensava emtudo que minha família tinha passado, toda ador, luto e medo, a vontade de machucar ohomem que tinha feito aquilo cresceu nova-mente em mim.

237/456

— Você sabe onde Cornelius Hollister es-tá? Você sabe onde posso encontrá-lo?

Wesley me olhou duramente.— Ele está na Torre de Londres. Por quê?— Ele matou minha mãe e meu pai — eu

disse suavemente —, e provavelmente meuirmão e minha irmã. Ele tirou de mim todosque eu amo.

Wesley baixou o olhar e fixou-o nas pró-prias mãos, um ar sombrio no rosto.

— Você entende quantos soldados o pro-tegem? Quantas armas eles têm?

— Sim — balancei a cabeça. — Sei que voumorrer se tentar. Estou preparada para isso.

— Você não entende? — ele exclamou, umafrustração súbita na voz. — Ele quer destruirtoda a sua família! Se você morrer, ele final-mente vai poder ser coroado rei.

— Não é isso que você quer? — eu me sen-tei ereta e afastei o pano que Wesley aindapressionava contra minha bochecha. — Não

238/456

me esqueci de que estamos em lados opostossó porque você me salvou a vida.

— Não estamos em lados opostos — eleprotestou com a voz baixa.

— Enquanto você estiver no exército deHollister, estaremos em lados opostos.

— Eu não tive escolha!— Sempre há escolha! — eu balancei a

cabeça. — Agora eu entendo como é sentirfrio e fome. Mas, se não acredita na causadele, você não tinha como arranjar um outrocaminho para você e para Portia?

— Não é isso, você não... — ele se inter-rompeu. — Por favor, apenas me prometaque você não vai fugir para nenhuma missãosuicida.

Meus olhos encontraram os dele, e destavez não desviei o olhar. Em vez disso, fiqueiestudando-o sob a luz fraca da lareira. Algotinha mudado. A dura máscara de soldadotinha sumido, revelando um menino triste esolitário. Olhei para os cachos macios do

239/456

cabelo de Wesley brilhando como ouroescuro, os olhos verdes e cintilantes, os om-bros largos.

Eu devia parecer tão feia para ele, o cabeloraspado mostrando o couro cabeludo e aferida vermelha no rosto. Cobri o rosto comas mãos.

— Pare! — eu disse. — Eu não...— Eliza — ele interrompeu. Então pegou

minhas mãos, tirando-as gentilmente domeu rosto, e ergueu meu queixo para me ol-har na luz bruxuleante.

— Você é linda.Ele se aproximou. Senti a respiração suave

e quente de Wesley nos meus lábios. E entãonossos lábios se encontraram. A mão dele semoveu, insegura, da minha bochecha para anuca, os dedos repousando suavemente nacavidade do meu pescoço e encostando nalinha do cabelo.

Ele hesitou por um momento, e eu sabiaque estava me dando uma chance de me

240/456

afastar. Respondi me inclinando para maisperto dele, abrindo a boca para beijá-lo devolta, consumida por uma fome estranha edesassossegada. Naquele momento, tudo su-miu. A marca na minha bochecha, o símboloda Nova Guarda, o conhecimento de queCornelius Hollister morava na Torre de Lon-dres corroendo o fundo da minha mente.Tudo que importava era que estávamos ali,caindo sobre as almofadas, nos beijando en-quanto o fogo esfriava lentamente.

Wesley me puxou para os braços dele, meenvolvendo em um casulo de calor. — Estátarde — ele disse. — Você devia dormir umpouco. Fique com o quarto. Eu posso dormiraqui — ele disse isso fazendo um gesto nadireção do sofá.

Concordei com a cabeça, mas não queriaque ele me largasse.

— Vem comigo? — eu perguntei.Ele ficou de pé e me levou para o quarto.

Eu deitei embaixo das cobertas, ainda de

241/456

uniforme, puxando-o para que se deitassecomigo. Ele colocou a lanterna na mesa decabeceira, virando o pavio para baixo, entãoo quarto ficou escuro. Ele passou os braçosprotetoramente em volta da minha cinturaenquanto se ajeitava. A pele de Wesley tinhaum cheiro doce e fresco, como água. Fecheios olhos, fingindo por um momento queaquilo podia durar, que podíamos ficarsempre daquele jeito: juntos no calordaquela casinha no meio de uma florestaenvenenada.

242/456

19

LEVANTEI ASSUSTADA E ME SENTEI NACAMA, ARFANDO DE falta de ar. O pesade-lo já tinha passado, mas alguns fragmentosperduravam, girando nos cantos da minhacabeça. Mary e Jamie presos em uma cela deaço enquanto homens com casacos brancosvinham torturá-los. Eu correndo loucamentepor um labirinto, ouvindo os dois, mas semconseguir encontrá-los.

Era madrugada alta e Wesley aindadormia ao meu lado. A cabeça dele estavadeitada no travesseiro que estávamos di-vidindo, o cabelo ondulado caindo-lhe natesta, brilhando como prata fina sob a luz dalua. Inclinei-me para beijá-lo na bochecha.

— Adeus — eu sussurrei.Senti o ardor de súbitas lágrimas brotando

enquanto me afastava da cama, torcendodesesperadoramente para que ele não acor-dasse, para que eu ficasse livre para me lem-brar dele daquele jeito.

Algumas brasas ainda brilhavam nalareira. Tateei no escuro em busca da vela,que acendi em uma brasa quase apagada.Com a luz da vela, calcei apressadamente asbotas e abotoei o casaco do uniforme. A armaestava na mesa de centro redonda, onde eu atinha deixado. Enfiei-a no bolso.

Olhei para trás, pela porta do quarto, umaúltima vez. Eu estava colocando Wesley emperigo ao deixá-lo lá sem um cavalo. Mas eletinha uma arma para protegê-lo, além deconhecer bem a floresta. Quando acordasse,o sol já teria nascido e ele estaria em sufi-ciente segurança para caminhar de voltapara o acampamento.

244/456

O ar da madrugada estava frio e úmido.Antes de sair, beijei a parede perto da porta.Era uma superstição que eu tinha herdadoda minha avó: ela sempre dizia que, se vocêbeija a porta antes de sair, isso lhe asseguraum retorno seguro. E eu esperava, contra to-das as probabilidades, que um dia eupudesse voltar àquela casa com Wesley.

Olhei para a noite fria e escura, procur-ando pelo menos uma estrela para me guiar,mas não havia nenhuma. Calígula, ainda am-arrada à estaca, estava dormindo em pé: umasombra escura contra um céu ainda maisescuro. Olhei amedrontada para o corpoenorme daquele animal e arranquei um pun-hado de grama do chão.

— Calígula? Tome, garota — eu murmurei,oferecendo-lhe a grama e depois esticando amão para fazer carinho no nariz dela. Aosentir o toque da minha mão, ela empinou,me deu um coice e bufou, mostrando osdentes. Dei um pulo para o lado. Tentando se

245/456

libertar, ela puxava bruscamente as rédeaspresas na estaca, e a corrente em volta dopescoço dela começou a chacoalhar.

Respirei fundo. Eu andava a cavalo desdeque aprendera a andar, mas nunca tinhavisto um animal assim, criado para adestruição.

— Shhhh — eu sussurrei enquanto esticavaa mão para segurar as rédeas, puxando-asfirmemente para olhá-la nos olhos.

Calígula parou e, por um momento, acheique tinha me conectado com ela. Mas depoisela puxou as rédeas tão rapidamente que elasescaparam das minhas mãos, e o couro, aoroçar nas bandagens, reabriu as feridas.

Encarei os olhos escuros do animal. Wes-ley tinha conseguido controlá-la usando puraforça física, mas eu não tinha forças. Assim,fui falando com ela, usando um tom de vozbaixo e calmo, enquanto esticava a mão egentilmente soltava o cabresto de trás das

246/456

orelhas dela. Ela cuspiu o freio e me olhoucom uma expressão quase curiosa.

— Agora somos só eu e você, Calígula — eumurmurei. — Você pode me ajudar a chegara Londres?

Ela continuou completamente parada, pis-cando para mim enquanto eu montava nascostas dela, usando a estaca como calço.

Sem as rédeas, enlacei as mãos na crina daégua. Esperava que meu peso fosse suficientepara guiá-la. No momento em que ela mesentiu sobre as costas, começou a correr, mejogando para trás na sela.

Não estávamos galopando há muito tempoquando o que restava do sol subiu no leste,criando silhuetas dos galhos nus das árvoresem uma área de cinza mais claro no meio daespessa escuridão. Era tudo de que eu precis-ava por ora. Endireitando-me na sela, cu-tuquei levemente o cavalo de guerra com aperna esquerda, fazendo Calígula se mover

247/456

para a direita, na direção da faixa cinza nohorizonte.

Algum tempo depois, trotamos até a beirade uma estrada. Fiz Calígula parar, aper-tando os olhos para ler os sinais de grafite aolonge, já meio apagados. Esta era a via ex-pressa para Londres, mas cavalgar em umarua tão aberta não era seguro. O exército deHollister patrulhava a rodovia, capturandoviajantes solitários ou fugitivos das cidadessaqueadas.

Tentei não olhar para os carros espalhadosao longo da rodovia, para os esqueletosapodrecidos sentados nos assentos de mo-torista, os pequenos corpos das crianças en-colhidos nos bancos de trás. Aquelas pessoasestavam dirigindo quando os Dezessete Diascomeçaram. Elas não tiveram nenhumachance.

De repente, ouvi o som do ronco de ummotor não muito longe. Apeei rápido deCalígula e a puxei de volta para o meio das

248/456

árvores, espiando para ver o que e quem es-tava se aproximando. Ao longe, lá embaixona estrada comprida, apareceu uma nuvemde cavaleiros. Calígula relinchou baixinho,sentindo meu medo, e eu fiz carinho no pelodela, pedindo-lhe que ficasse em silêncio.Eram centenas de homens. O exército eraum borrão cinza em cima de cavalos deguerra, cavalos que traziam provisões eacompanhavam caminhões de óleo diesel.Guardas armados estavam sentados no topodos caminhões, com sevilhanas e armasapontadas em todas as direções. Quando oscaminhões passaram, ouvi os terríveis gritosdos prisioneiros lá dentro, se debatendo con-tra as laterais de metal dos veículos, tent-ando escapar ao destino que os aguardavanos Campos da Morte.

Quando eles passaram e a estrada ficouvazia de novo, encostei a cabeça por um mo-mento no pescoço de Calígula, respirando ocheiro quentinho de cavalo que ela tinha.

249/456

Fragmentos da noite que eu havia passadocom Wesley passavam pela minha cabeça: otoque dos lábios dele, o calor dos seus braçosem volta de mim, o som baixo da voz dele.Por alguma razão, apesar de tais lembrançasjá parecerem distantes, elas me davam aforça de que eu precisava naquele momento.Elas me davam esperança de que o amorainda existia naquele mundo sombrio, e quecontinuaria existindo mesmo depois que eume fosse.

Toquei na arma que tinha no bolso,checando para ter certeza de que ela aindaestava lá. Como a floresta era mais segura, omelhor a fazer era seguir na direção da es-trada, mas cavalgando pela margem dafloresta, perto das árvores mais nuas. Deixeia égua pastar mais um pouco, depois monteinela.

— Para Londres! — eu disse. As orelhasdela se inclinaram para trás por um segundo,

250/456

quase como se tivesse entendido, em seguidaela disparou.

Nuvens de fuligem e cinzas se espalhavamcomo um véu sobre a cidade. Um grandebando de pombos revoava. Cavalguei pelodistrito NW30. O som dos cascos de Calígulaecoava pelas ruas desertas. Pelo silêncio epelas janelas escuras dava para saber que odistrito já tinha sido invadido pelo exércitode Hollister: as pessoas deveriam ter sidocapturadas e as casas delas, saqueadas.Continuei seguindo pela sombra enquantopassávamos por fileiras sem fim de casasincendiadas.

Pregado em uma porta de loja coberta detábuas estava o pôster de uma jovem de ca-belos castanhos. Ela usava um vestido demarinheiro, as mãos educadamente cruzadassobre o colo, e o cabelo sedoso caindo abaixodo ombro. Ela tinha pele pálida e bochechasrosadas.

251/456

PROCURADA VIVA

ELIZA WINDSOR

PEÇA SUA RECOMPENSA

Aproximei-me do pôster, observando osolhos acesos e esperançosos da menina.Aquela foto tinha sido tirada há alguns anos,em uma sessão privada para meu pai; nósnão distribuíamos fotos da realeza desde amorte da minha mãe. Meu pai achava queimpedir o público de ter acesso ao nossorosto nos manteria seguros; além do mais,não havia dinheiro para imprimir fotografiasem larga escala. Analisei o pôster. A pessoafeliz e protegida nele retratada não parecianem um pouco comigo. Eles estavam procur-ando uma menina que não existia mais.

— Socorro! Alguém me ajude, por favor! —os gritos agudos de uma mulher vinham deum parque ali perto. Hesitei, querendo

252/456

intervir, mas desesperada para chegar àTorre. — Por favor, não! — ela gritava, e de-pois, com uma voz ainda mais estridente: —Socorro!

Cutuquei Calígula, incitando-a para quefosse em frente. Saquei minha arma quandonos aproximamos do parque. Eu tinha aomenos de tentar.

Enquanto chegava mais perto, os gritospararam. Um silêncio frio e vazio preencheuo ar. Puxei Calígula de volta, relutante ementrar no parque. Pensar no que poderia teracontecido com aquela mulher me deixavaenjoada. Eu poderia tê-la ajudado, mas haviachegado tarde demais.

Mesmo durante os Dezessete Dias, Lon-dres tinha equipes de emergência paraajudar quem precisava. Agora tudo — polí-cia, bombeiros, hospitais — tinha acabado.

Cavalguei pela noite. Finalmente, as torressombrias da Torre de Londres apareceramno horizonte. Erguida sobre elas, como uma

253/456

faca rasgando o céu, estava a Torre de Aço: aprisão sem janelas que antes era protegidapor uma corrente elétrica forte o suficientepara matar quem nela encostasse. Mas essacorrente, assim como todos os outros sistem-as que proporcionavam ordem, tinha sidoextintos. Enquanto me aproximava, vi umafila de soldados de Hollister guardando atorre, todos de pé em volta do fosso e em-punhando sevilhanas. Em algum lugardaquele prédio estava Cornelius Hollister.

Alcançamos o fosso que cercava a Torre eabriguei Calígula sob a escuridão de umapassagem. Eu não tinha como amarrá-la,mas livrei-a da sela e esfreguei-lhe rapida-mente as costas com um pedaço de pano.Franzi o nariz quando senti o cheiro ruimque vinha da água estagnada do fosso.Ofereci à égua algumas plantas e coloquei orestante em uma pilha.

— Por favor, Calígula, fique aqui — eudisse. — Preciso de você — olhei nos olhos

254/456

dela, pedindo-lhe que não fosse embora. Eleseram grandes e marrons, e agora não es-tavam mais vermelhos de ódio.

Respirei fundo e puxei para baixo ochapéu usado pelo exército de Hollister, afim de fazer sombra nos meus olhos. Ajeiteimeu uniforme, abotoei o casaco e dei nós du-plos nos cadarços das botas. Olhei para baixoe vi meu reflexo na água do rio. Aqueimadura vermelha no meu rosto brilhavae latejava sob a luz fraca. Passei os dedos naparede, sujando as pontas de fuligem eesfregando-a em volta da cicatriz, o que mefez estremecer de dor. Agora ela estava suja eescura, como um machucado.

Agora eu parecia um deles.

255/456

20

NUVENS ESCURAS DE FULIGEMATRAVESSAVAM O CÉU DA cidade. O diavirava noite. Um som de manivela vinha daparte de trás da torre. A ponte levadiça es-tava sendo baixada e os guardas estavamtrocando de posições — bem no horário.Agachei-me, pronta para correr, alongando,com um sorriso amargo, os músculosdoloridos.

Eu tinha passado o dia examinando minu-ciosamente a Torre, e agora conhecia cadacentímetro do terreno, do fosso e do muroem volta da construção. Tinha decorado oshorários da ponte levadiça. Se eu me apres-sasse, alcançaria os soldados que estavam

prestes a entrar na Torre e me juntaria a eles,entrando despercebida, em seguida, na co-zinha. De lá eu seguiria o jantar de Hollisteraté o quarto dele, cuja localização poderia sersecreta mesmo para os súditos, mas os ron-cos do meu estômago me lembravam que to-do mundo precisa comer.

Disparei na direção do muro que circun-dava a Torre, me mantendo abaixada e confi-ando na escuridão para me esconder. Pareipor um momento à sombra do muro para re-cuperar o fôlego e limpar o suor da testa.Duas filas de guardas marchavam firm-emente em direção à ponte levadiça. Quandoo último soldado passou, entrei na fila atrásdele, mantendo a cabeça baixa e seguindo oritmo dos pés dele.

Estremeci quando atravessamos a pontelevadiça que levava à Torre. Desde que a vis-itara quando era pequena, sempre tiveramuito medo dela. A guilhotina, as marcas napedra onde a lâmina tinha batido diversas

257/456

vezes, as manchas de sangue que ainda exis-tiam depois de centenas de anos de chuva.Eu pensava nas câmaras de tortura, ondeprisioneiros inocentes sofreram — e aindasofriam. E me perguntava se eles gritavam,sem serem ouvidos nem respondidos, comoa mulher no parque. Eu sabia que os gritosdela iriam assombrar meus sonhos e me darpesadelos.

Já lá dentro, encontrar a cozinha foi fácil:só precisei seguir o cheiro de comida e a filade soldados famintos. Mantendo os olhossempre baixos, entrei no fim da fila, me mis-turando com os outros ao passar por umaentrada de pedra. Apertei a arma escondidadentro do casaco. Nos corredores escuros daTorre de Aço, um sino bateu e uma voz sooulá de cima: — Hora de alimentar osprisioneiros.

A fila de soldados se encaminhou parauma cozinha úmida, localizada em umcalabouço. Panelas de ferro borbulhavam

258/456

sobre o fogo. Lá dentro, vários cozinheiroscortavam a cabeça e o rabo de ratos eratazanas, de cobras de esgoto e de sapos.Em seguida, tiravam a pele dos animais ejogavam as carcaças nas panelas. Uma gaiolano chão, perto do fogo, estava cheia de ratosque corriam de um lado para o outro, em umesforço frenético para escapar do mesmodestino.

Olhei para o outro lado da cozinha, ondeum banquete estava sendo preparado. Lá,grandes pratos de frutas e queijos, pães saí-dos do forno e uma torre de trufas de chocol-ate estavam dispostos em brilhantesbandejas de prata. Garrafas de champanhegelavam em baldes de gelo. Eu não tinhaideia que comidas assim ainda existiam.Quase fiquei tonta. Tudo que eu havia com-ido até aquele momento tinha sido um pun-hado de ervas e metade de um biscoito ven-cido que encontrara no bolso do casaco.Tudo aquilo era para Hollister? Então me

259/456

lembrei do que ele me dissera antes de matarmeu pai: Porque a Inglaterra está passandofome e vocês estão dando um baile. Vendoaquele banquete, eu o odiei mais do quenunca.

— Pare de olhar. Isso só vai fazer sua bocaencher de água — a garota perto de mimfalou.

Balancei a cabeça, concordando, e olheidiretamente para a frente, onde uma senhorade cabelos brancos e de sobrancelhas tam-bém brancas e grossas mexia as panelas comuma colher enorme.

— Encham as tigelas! Horário de ali-mentação das celas 1 a 9! — ela gritou. Quaseengasguei ao vê-la abrir o topo da gaiola deratos e colocar o braço fino como um gravetolá dentro. Rapidamente, como se estivessearrancando uma maçã de uma árvore, elapuxou pelo rabo um rato que se contorcia e ojogou na panela borbulhante com pelo etudo.

260/456

Mantendo o mesmo ritmo dos soldados àminha frente, eu copiava cada movimentodeles: peguei a bandeja, enchi um copo comágua cinzenta e uma tigela com uma colherde ensopado de inseto e rato. Mantive orosto neutro, duro, desviando os olhos do pée da cabeça de rato dentro da tigela que es-tava na minha bandeja. Os soldados fizeramfila para subir a escada. Segurei a bandejanas mãos, caminhando trêmula atrás damenina à minha frente.

Ela fez uma pausa, olhando para a direita epara a esquerda, procurando uma chance defofocar. Então colocou os lábios perto daminha orelha. O hálito dela era azedo.

— Se quiser um pouco das coisas boas, falecomigo depois — ela disse, se fazendo de im-portante. — Eu posso ajudá-la a conseguir...por um preço — ela sorriu, mostrando osdentes amarelados.

Meus olhos se focaram na bandeja que elacarregava: em vez de uma tigela de ensopado

261/456

como o resto de nós, a bandeja dela continhauma linda xícara de chá cor-de-rosa comuma mistura de ervas: botões de rosa,lavanda, anis, e uma flor amarela que nãoconsegui identificar.

— Esse chá tem um cheiro gostoso — eudisse baixinho, enquanto me perguntava porque a bandeja daquela menina era diferente.Será que ela tinha a missão de servirHollister?

— Pode ter um cheiro gostoso, mas é mor-tal. É chá para Sua Alteza Real — ela dissesarcasticamente, depois cuspiu nas pedraspara dar ênfase: — A rainha.

Quase larguei minha bandeja com o susto.Mary estava viva.

— Dizem que esse chá a deixa mais fraca —a garota continuou falando com um sorriso.— Ela tem lutado demais, ouvi dizer, masisso dá uma boa acalmada nela.

262/456

— E se ela não beber? — perguntei deforma apática, tentando esconder o horrorda minha voz.

— Ah, ela bebe sim. Se ela não beber,chicoteiam o principezinho — a meninagargalhou.

Tentei rir com ela, mas tudo que conseguifoi uma tosse seca. Minha cabeça zunia en-quanto eu tentava me recobrar. Jamie eMary estavam vivos e presos na Torre! Eu iater de voltar para acabar com Hollister de-pois. Tentei me recompor enquanto pensavanos meus irmãos, aprisionados, precisandode mim. Eu não podia esperar nem mais umsegundo para vê-los.

Derrubei o ensopado da minha bandeja,deixando-o escorrer por toda a escada.

— Ooops! — eu exclamei. — Sou tãodesastrada!

A garota revirou os olhos.— É melhor você limpar essa bagunça

antes que a senhora Caldwell veja — ela

263/456

disse, me dando as costas e continuando asubir a escada.

Esperei alguns instantes antes de colocar abandeja no chão e seguir a garota por umaescada em caracol de metal. As paredes eramde aço, e meu reflexo nelas, uma sombra bor-rada e escura. Havia celas em todos os an-dares, gradeadas com barras dispostas acada dois centímetros, lotadas de prisioneir-os doentes e moribundos. A maior partedeles se lamuriava ou implorava por água.Os que ficavam quietos me entristeciam maisainda.

Enquanto caminhava pé ante pé atrás dagarota carregando a xícara cor-de-rosa, eusentia o ódio por Cornelius Hollister gan-hando forças dentro de mim, como um nó dearame farpado me cortando por dentro. A es-cada em caracol continuava para cima,elevando-se na torre estreita até que final-mente chegou ao fim. Só havia uma cela notopo.

264/456

Parei no andar de baixo e esperei até ver agarota descer de novo a escada, a bandejavazia dessa vez. Mantive-me na sombra atéos passos dela ecoarem vários níveis abaixode mim. Depois me virei e subi, o coraçãobatendo cada vez mais rápido, e parei dianteda cela.

Pelo estreito buraco entre as barras demetal, espiei lá dentro. Jamie estava deitadoem um pequeno leito; Mary estava sentadaao lado dele, de costas para mim. Foi sóquando ouvi a voz dela gentilmente encora-jando Jamie a comer que soube que estavana cela certa. Minha irmã estava irrecon-hecível: magra e ossuda como uma velhasenhora. Os bolsos marcavam o vestido ver-melho, desbotado e puído. Percebi de re-pente que era o mesmo que ela estavausando no Baile das Rosas.

Mary apoiava a cabeça de Jamie no braço,tentando alimentá-lo com a colher. Fiquei láparada, me esforçando para segurar as

265/456

lágrimas e dizer alguma coisa, mas não con-seguia emitir nenhum som. Olhei em volta,para o resto da cela. Havia uma pequenamesa de madeira com um baralho, um bulede chá e uma xícara. Perto do bule estava umguardanapo amassado manchado devermelho.

Pressionei o nariz no pequeno espaçoentre as barras, observando Mary afastar orosto de Jamie e cobrir a boca com a mão —uma tosse profunda sacudiu-lhe todo ocorpo. Então ela se levantou devagar,apoiando-se na parede, a outra mão aindasobre a boca. Ela estava se movimentandocomo nossa avó antes de morrer.

Mary pegou o guardanapo manchado devermelho da mesa e limpou o sangue da bocacom ele. Pude ver que ela estava tentandoescondê-lo de Jamie.

— Mary, Jamie — eu engasguei, falandoesbaforida.

266/456

Mary virou o rosto para olhar para mim,uma expressão hostil no rosto, então percebique ela não tinha me reconhecido. De re-pente, me senti muito constrangida e enver-gonhada, por conta do rosto marcado e docabelo cortado como que por um açougueiro.

— Mary — eu sussurrei. — Sou eu, Eliza.Os olhos dela se acenderam, e todo seu

rosto se iluminou com incredulidade.— Pensávamos que você estava morta —

ela disse com a voz áspera, e lágrimascomeçaram a escorrer-lhe pelo rosto. Tenteiencostar nela enfiando meus dedos no es-paço entre as barras, mas tudo que conseguifoi inserir meu dedo mindinho. Mary o aper-tou com força e o beijou.

Jamie se aproximou da grade e, com aponta do meu dedo, consegui tocá-lo norosto. O corpinho dele não era mais do queum esqueleto. Tentei esconder o choque es-tampado no meu rosto, mas eu podia ver queele não estava bem.

267/456

— Eles têm dado o remédio para ele? — euperguntei para minha irmã.

Mary balançou a cabeça negativamente.Fiquei surpresa de que Jamie tivesse

durado tanto tempo sem ele.Ele me encarou em silêncio, os olhos azuis

vazios dentro das órbitas.Tirei a arma do casaco.— Mary — eu disse rapidamente —, pegue

essa arma. A próxima vez que a guardatrouxer a comida de vocês, mate-a. Pegue asroupas e as armas dela e fujam.

— Eliza — Mary balançou a cabeça. — Aarma não vai passar pela grade.

Percebi horrorizada que ela estava certa. Aúnica abertura, a portinha para a comida, es-tava trancada, e não havia outro jeito de pas-sar a arma pelas frestas estreitas entre asgrades.

Mary me observou com uma expressãopreocupada enquanto eu tentava frenetica-mente enfiar a arma pelo buraco. Minha

268/456

esperança era que, se eu conseguisse virá-lana posição certa, caberia.

— Não tem jeito — ela balançou a cabeça.— Já tentamos de tudo.

— Alguém está vindo — disse Jamie, os ol-hos arregalados de preocupação.

Lá de baixo vinha o som de passos contra oaço.

— Eliza, corra! Se esconda! — Mary sus-surrou, em pânico.

— Não! Não vou deixá-los de novo — e,dizendo isso, me virei e fiquei a postos, se-gurando a arma na minha frente. Se eu iamorrer, eu o faria lutando pela vida dosmeus irmãos.

— Eliza! — Mary cochichou. — Vá embora!Você não vai resolver nada assim. Você atépode matar esses guardas, mas nós vamoscontinuar presos aqui.

Eu a ignorei.Então Mary, juntando toda a força que

ainda tinha, se levantou, mantendo a postura

269/456

ereta. Ela sempre fora autoritária, mas, sequisesse, conseguia ser particularmenteassustadora.

— Como sua rainha, eu lhe ordeno!Olhei para ela, incrédula.— Mary... — eu comecei a falar.— Não há tempo, Eliza — ela retrucou. —

Eu ordeno — ela disse de novo. — Não possoassistir à sua morte.

Eu aquiesci, o coração tão cheio de amor etristeza que parecia que ia explodir. Enfiei aarma no bolso e, em seguida, um guardachegou ao topo da escada.

Girei nos calcanhares e disparei pelocorredor.

— Peguem ela! — ele gritou enquanto cor-ria atrás de mim. — Por aqui! Ela está fu-gindo por aqui!

Com a esperança de despistá-los, me viperdida em um labirinto de celas e passagensrecobertas de aço, mas os passos pesados meseguiam a cada curva que eu fazia. Cada

270/456

passagem claustrofóbica parecia igual às an-teriores: as paredes refletiam minha imagemcomo um borrão enquanto eu corria,seguindo sempre em frente. Prisioneirosraquíticos me olhavam com olhos dementespela tortura e pelo isolamento dentro dasjaulas. As vozes dos guardas se multi-plicavam atrás de mim, vindo de todas asdireções, ressoando nos corredores de metal.

Então, o corredor chegou a um beco semsaída.

Parei e olhei em volta freneticamente.Estava presa. Tateei as paredes procurandoum jeito de fugir, até que senti um vento frio.Olhei para cima e vi no teto uma estreitaporta de alçapão. Era alto, mas eu não tinhaoutra escolha. Agachei-me para tomar im-pulso e saltei na direção daquele alçapão.

Consegui me segurar na beira da aberturacom uma das mãos, mas minha arma acaboucaindo no chão. Amaldiçoei-me por não a tercolocado de volta dentro do bolso com zíper

271/456

da jaqueta. Fiquei olhando para baixo, meperguntando se devia voltar para pegá-la,quando ouvi passos no fim do corredor.

Com a ajuda da outra mão, tomei impulsopara chegar ao telhado. Meus braçostremiam por conta da força que eu tinhafeito. A porta era estreita e eu mal passavapela abertura. Uma das pontas de aço engan-chou nas minhas costas e cortou meu casacocomo uma faca. A dor era intensa, mas con-tinuei em frente. Se eu mal passava pelaabertura, ela também seria pequena demaispara um guarda passar. Eu tinha pelo menosum minuto de vantagem até eles chegaremao telhado pela escada.

— Eliza?Dei meia-volta.Wesley correu até mim, me abraçando por

um segundo antes de me afastar de novopara me olhar nos olhos. Como ele tinhachegado até lá?

272/456

— Eu sabia que você ia fazer isso. Eu pedipara você me prometer — ele parecia tãotriste que senti uma dor no coração por tertraído a confiança dele. — Não temos muitotempo. Você precisa se esconder. Agora!

Olhei em volta. Não havia nada no tel-hado. Não tinha lugar nenhum para eu meesconder.

— Wesley, eles estão vivos — eu disse coma voz embargada. — Por favor, me ajude aresgatar Mary e Jamie — eu tinha chegadotão perto que não podia desistir agora. MasWesley não estava me ouvindo. Ele estavapreocupado em abrir a porta do andar inferi-or que dava para o telhado.

— Não consegui encontrá-la aqui! Temcerteza de que ela não está no nível 59? — euouvi um dos guardas falando.

Abaixei-me, desejando descobrir umafenda ou um canto escuro qualquer em quepudesse me esconder; desejando tambémainda estar com minha arma. Dúzias de

273/456

guardas irromperam no telhado, mas meusolhos focaram apenas em um deles.

— Ora, acredito que ela esteja bem aqui —falou de maneira arrastada uma voz que euconhecia muito bem. Cornelius Hollister mecumprimentou com um sorriso maligno,caminhando na minha direção com a len-tidão de um predador. — Eliza Windsor —ele disse.

Instintivamente, dei um passo para trás,cegada por uma lanterna apontada direta-mente para meus olhos.

— Não se mexa! — Portia gritou. — Ou euatiro bem entre seus olhos. E, acredite, vougostar de fazer isso.

Apertei os olhos para conseguir enxergaralém da luz. Cornelius Hollister estava naminha frente, com Portia ao lado dele apont-ando uma arma para mim. Ousei dar outropasso para trás, para longe deles e da arma.A parte de trás dos meus joelhos bateu comforça em alguma coisa. Um corrimão.

274/456

— Devo matá-la? — Portia perguntou, ol-hando para Hollister.

— Não, Portia! — Wesley caminhou rápidoaté ela, pegando na arma que a irmã empun-hava. — Ela vale mais viva — ele continuou,em tom áspero. — Ela conhece segredos, in-formações vitais de que precisamos.

Procurei no rosto de Wesley algum tipo deemoção, mas ele estava escondido nasombra.

— Seu irmão está certo — Hollister concor-dou. — Obrigado por trazê-la até mim. Eununca a teria reconhecido sozinho: dis-farçada e feia desse jeito — Portia riu altocom o comentário. Hollister colocou umbraço em volta de Wesley, afagando-lhe o ca-belo de maneira afetuosa. Segurei no cor-rimão atrás de mim ao finalmente entender.

Cornelius Hollister era pai de Wesley ePortia.

Foi isso que Wesley tentou me contar nacasa de campo quando disse que não tivera

275/456

escolha a não ser se alistar na Nova Guarda.Cornelius Hollister era o homem que tinhamatado a mãe deles porque ela haviadescoberto a verdade sobre ele. Olhandopara os três agora, juntos, me senti enjoada.

Eu tinha beijado Wesley. Confiado nele.Talvez eu até tivesse sentido, bem lá nofundo, que o amava. O filho do homem quetinha matado meus pais na minha frente eaprisionado meus irmãos. O inimigo.

Senti o corrimão atrás de mim. Eu estavana beira do telhado.

O sorriso de Hollister brilhou na luzquando ele caminhou na minha direção.Com o canto dos olhos, vi a água escura cin-tilando lá embaixo. Segurei no corrimão coma mão direita, inclinando-me para trás.

Ele estava bem na minha frente.— Finalmente, peguei a última.Hollister esticou a mão e senti a ponta dos

dedos dele encostar em mim. Fechei os olhos

276/456

e me inclinei ainda mais para trás, me atir-ando da beira do telhado.

277/456

21

CONCRETO OU FACA? ESSAS ERAM ASPALAVRAS QUE piscavam na minha cabeçaenquanto eu me aproximava rapidamente daágua. Quando eu e Mary ficamos mais velhase mais ousadas em nossos mergulhos, nosgraduamos do galho da árvore perto do lagopara despenhadeiros mais altos. A intensid-ade da dor depende da maneira como semergulha: entrando como uma faca na água,sem problemas. Mas quando se mergulha dojeito errado, a água pode ser tão dura quantoconcreto.

Eu fui caindo, girando no ar, por todo ocomprimento da Torre. A água estava a cercade três metros de distância quando me

ajeitei, estendendo os braços à frente docorpo, esticando-o, e encostando bem oqueixo no pescoço. Mas a velocidade daqueda me fez girar mais uma vez, e meus pésacabaram atingindo a água primeiro, o queme levou direto para o fundo lamacento dofosso.

A água era completamente escura. Eu nãoconseguia ver a superfície. Entrei em pânicoe meus pulmões começaram a queimar porcausa da falta de ar. Alguma coisa parecidacom uma mão molhada encostou na minhabochecha e eu gritei — ou tentei gritar,porque minha boca se encheu de água. Co-bras de esgoto! Comecei a chutar frenetica-mente, batendo os braços na água parachegar à superfície.

Eu estava ofegante ao chegar à superfície,sorvendo o ar como uma pessoa faminta de-vora um prato de comida. Nadei até abeirada do fosso, apertando as mãos contraas pedras do muro, procurando alguma

279/456

coisa, qualquer coisa, em que me segurar,mas o muro era todo coberto com um musgoverde-claro que fazia meus dedosescorregarem.

Atravessei a água, chutando e batendofreneticamente nas cobras de esgoto. Umadelas se aproximou rápido e me mordeu nopescoço. Cobras de esgoto eram comosanguessugas: para se alimentar, agarravam-se à pele da vítima e lhe sugavam o sangue.Meu grito ecoou pelo fosso enquanto euatirava a cobra para longe de mim.

A ponte levadiça baixou sobre o fosso esoldados correram para atravessá-la, asarmas apontadas para mim. Olhei em voltaem pânico, ainda lutando contra as cobras deesgoto. O único lugar em que eu podia meesconder era embaixo da ponte, mas seria sóuma questão de tempo até eles perceberem.

Eu precisava lhes dar o que eles queriam.Assim, balancei os braços, batendo-os acimada cabeça, e afundei. Depois, apareci na

280/456

superfície de novo, sem fôlego, e afundeinovamente. Então fechei os olhos com força,segurei a respiração, mergulhei no fundoescuro do fosso e esperei. Meus pulmõespareciam que iam explodir enquanto eu medeixava levar para o fundo, sem me mexerpara que a superfície da água ficasse parada.

Finalmente, comecei a nadar com cuidadona direção do corrimão enferrujado da pontelevadiça. Ao chegar embaixo da ponte, pudesubir à superfície para respirar.

Segurei no corrimão, tremendo demaneira incontrolável. Por sorte, o grupo eratão barulhento que não podia me ouvir ar-fando, tentando recuperar o fôlego. Eu es-tava fora da vista deles e segura, mas porpouco tempo. Um feixe de luz riscou a água.Vinha das tochas dos guardas.

— Onde ela está? — uma voz gritou. — Elase afogou? Levantem a ponte!

Ouvi barulho de metal quando a rodacomeçou a girar. Mal tive tempo de pensar.

281/456

Minhas roupas pareciam feitas de chumbo eeu tinha certeza de que estava perdendosangue pelos cortes nas costas, onde oalçapão que me levou ao telhado da Torrehavia me arranhado. Eu me sentia mais ex-austa do que jamais me sentira antes. Meucoração estava partido ao me lembrar deWesley, em pé, ao lado do pai maligno, e deMary e Jamie, que agora provavelmente seri-am mortos por minha causa. Uma parte demim só queria afundar naquele fosso. Ima-ginei a sensação de paz, mesmo na água no-jenta, de flutuar sem peso.

Foi então que, em um flash de luz, vi umburaco no muro, embaixo da borda escura daponte. Estiquei a mão na direção dele, masescorreguei. A ponte começou a ser le-vantada — eles iriam me ver a qualquer in-stante. Juntando o resto das forças que aindatinha, me estiquei e entrei no buraco — umtúnel, na verdade — no exato momento emque a ponte foi erguida por completo.

282/456

— Encontrem-na! Eu a quero viva! — a vozdistintamente sinistra de Hollister coman-dava os guardas. — Entrem nos barcos agoramesmo!

A luz das lanternas atravessava a água en-quanto os guardas pulavam nos barcos aremo. Onde vai dar esse túnel? Será queconsigo chegar do outro lado sem serdescoberta?, eu pensava.

— Ela não está aqui, senhor — um dosguardas berrou. — Ela deve ter se afogado.

— Toquem fogo no fosso! — Hollister grit-ou. — Isso vai fazê-la aparecer!

Os guardas, então, de maneira obediente,começaram a derramar gasolina na água. Ocheiro nocivo do combustível, que flutuavaem poças oleosas, me alcançou no túnel. Al-guém, provavelmente Hollister, jogou lá decima, dentro da água, uma tocha acesa. Agasolina pegou fogo em uma explosão dechamas como uma flor, e línguas vermelhas

283/456

percorreram a superfície do fosso em todasas direções.

O túnel era tão estreito que me vi forçada adeitar de bruços para poder deslizar por ele.O ar lá dentro estava espesso por causa dafumaça. Puxei a camisa para cima, cobrindoo nariz e a boca para conseguir respirar. Eume arrastava o mais rápido que podia, paralonge da fumaça e das chamas, para a pro-fundeza do túnel escuro.

Finalmente, a escuridão do túnel começou adiminuir, então me arrastei os últimos met-ros até chegar ao fim dele. Fui parar na rua,arranhando as mãos ao tocar no asfalto. O archeirava a fumaça e eu ainda podia ouvir asvozes dos soldados comemorando. Encosteia cabeça no asfalto e fiquei deitada lá, ex-austa demais para me mexer. As roupas gela-das e molhadas grudavam no meu corpo.Uma sensação de ardência se espalhava pelasferidas nas minhas costas, mas nada era

284/456

mais doloroso do que o fato de eu estar lásem meus irmãos.

Da minha esquerda veio o barulho de umacorrente e o que parecia ser um rosnadobaixo. Dei um pulo, olhando em volta na es-curidão. Dois olhos grandes e brilhantes meolharam de volta.

— Calígula? — eu perguntei, sem conseguiracreditar que ela tinha me encontrado. Aégua me cutucou com o nariz, os cascosbatendo no asfalto, me pedindo paralevantar.

Lentamente, com a cabeça latejando,fiquei de pé. Estremeci ao subir nas costassem sela dela. Mas, para minha surpresa, elaficou parada.

— Por favor, Calígula, me leve para casa —eu disse com uma voz entrecortada. — Leve-me para a Escócia.

O som dos cascos da égua batendo no as-falto ao começar a trotar me confortou.Quando achei que estávamos a uma

285/456

distância segura, olhei para trás, por sobre oombro. Atrás de mim se erguia a Torre,ainda cercada de chamas vermelhas. Os gri-tos dos soldados pareciam ficar ainda maisaltos sob o fogo que subia do fosso.

Toquei as pontas dos meus dedos destruí-dos com os lábios e soprei um beijo paraMary e Jamie.

— Vou voltar para buscar vocês — eu pro-meti, à beira das lágrimas.

286/456

22

AS ROUPAS MOLHADAS CONGELAVAMNO MEU CORPO E EU tremia de frio. Min-has costas latejavam de dor. A rua à frenteentrava e saía de foco. Tentei visualizar ummapa para a Escócia que costumava ficar noescritório do meu pai. Estive lá várias vezesna vida, mas tudo de que conseguia me lem-brar eram linhas sinuosas em uma molduraornamentada e de cor marrom.

Olhei para o céu procurando a EstrelaPolar. E lá estava ela, onde sempre estivera.Era reconfortante pensar que, mesmo com omundo tendo mudado tanto, as estrelasainda eram as mesmas. Se eu usasse o céucomo guia, tinha esperanças de achar o

caminho para a antiga via expressa — e de lápara a Escócia.

— Vai ser uma longa viagem — eu dissepara Calígula, alisando-lhe o pescoço.

Enquanto seguíamos nosso caminho, ovento levantava pedaços de lixo que voavamna nossa direção: um guarda-chuvaquebrado girando perigosamente; pedaçossujos de papel. As cinzas faziam meus olhosarder. Calígula disparou pelas estradasesburacadas, levando-nos para fora da cid-ade. Passamos por casas nos subúrbios deLondres, shoppings cinzentos e abandon-ados, e por estacionamentos que mais pare-ciam cemitérios, cheios de carros enferruja-dos que abrigavam os corpos de motoristasmortos há muito tempo.

Uma placa desbotada de estrada diziaESCÓCIA: 610 QUILÔMETROS. Rios de lá-grimas quentes pingavam dos meus olhos.As estrelas riscavam o céu e deixavamrastros borrados. Eu continuava repassando

288/456

mentalmente, várias e várias vezes, os event-os da noite. Não podia acreditar que tinhaencontrado Mary e Jamie só para fracassarcom eles. Não podia acreditar que o homemque eu vinha fantasiando matar era o pai deWesley. Minha cabeça girava pensandonisso. E eu piscava sem parar na noite friaenquanto o vento me chicoteava.

O frio se instalou nos meus ossos e come-cei a tremer de maneira tão violenta que nãoconseguia ficar ereta. Cutuquei Calígula paraque entrasse na floresta que margeava a es-trada. Eu precisava descansar.

Minhas pernas estavam tão trêmulas que,ao desmontar, acabei caindo de joelhos nochão frio. Círculos luminosos dançavam di-ante dos meus olhos. Eu não sabia quãolonge estávamos da via expressa, mas rezeiem silêncio para que estivéssemos longe osuficiente. Encolhi-me sobre uma pilha degravetos e raízes de árvores, tentando tirar ocasaco gelado da Nova Guarda. Ele estava

289/456

tão molhado que ia me fazer mais mal do quebem. Tentei esquentar os dedos congeladoscom minha respiração, juntando as mãos emconcha diante da boca. Calígula dobrou aspatas dianteiras e deitou-se ao meu lado.Aninhei-me ao lado da égua, grata pelo calordo corpo dela. Finalmente, felizmente,adormeci.

Abri os olhos de uma só vez. Algo estava semexendo entre os galhos.

Escutei com cuidado, já completamenteacordada. Eu não tinha certeza de quantotempo havia dormido, mas o céu ainda es-tava escuro.

Fiquei deitada sem me mexer, esperandoque o que quer que fosse se movesse denovo. Como eu tinha passado bastantetempo nos bosques da Escócia, era capaz dereconhecer o som de certas criaturas. Ratos eesquilos se moviam com rapidez, correndode um esconderijo para o outro. Certa vez,sentada sob uma árvore com Bella, fiquei

290/456

observando um urso marrom caminharpreguiçosamente pela floresta: os passos deleeram lentos e ressonantes. Mas os passosque ouvia agora não eram delicados como osde um esquilo nem pesados como os de umurso: eram inegavelmente humanos.

Enfiei-me embaixo de Calígula, o corpo gi-gante da égua levantando e abaixando a cadarespiração. O som dos passos estava a apen-as alguns metros de distância.

— Sinto cheiro de cavalo — um homemdisse.

— Sinto cheiro de humano — um segundohomem disse, e a voz dele era mais áspera eprofunda que a do primeiro.

Fiquei parada, praticamente imóvel. Se euficasse quieta o suficiente, talvez eles seguis-sem em frente.

Os passos se aproximaram. Senti o coraçãode Calígula começar a disparar, mas ela con-tinuou parada, percebendo meu medo.

291/456

Escutei os homens se afastarem e arrisqueiolhar para cima, por trás da égua, tentandodeterminar onde eles estavam. Sem fazernenhum som, rolei para o lado.

Fazia silêncio na floresta. Soltei um sus-piro de alívio.

— Essa caça é minha! — o homem de vozgrave gritou de repente, bem perto de mim.Olhei para cima e o vi de pé sobre mim, se-gurando um machado. Gritei, gelada demedo, sem conseguir tirar os olhos dalâmina brilhante.

No exato momento em que ele começou adescer o machado, Calígula se empinou,soltando um enorme rugido, tão alto que po-dia ter vindo de um bando de leões.

— Que diabos é isso? — o homem camba-leou para trás, com medo, largando omachado no chão. Calígula se jogou sobre elee, com uma cabeçada, arremessou-o comforça contra uma árvore. O pescoço dohomem girou em um ângulo nada natural e o

292/456

corpo mole dele caiu no chão. Eu observava atudo impressionada. Nunca tinha visto umcavalo de guerra atacando alguém.

Saindo da escuridão, o segundo homemme atacou.

Os olhos selvagens dele brilharam en-quanto ele abria a boca, revelando, em vez dedentes, pregos de metal aparafusados nasgengivas. Pregos para mastigar carne hu-mana. Então estiquei a mão para pegar omachado caído no chão e o acertei duasvezes, sem parar para pensar.

A lâmina atingiu-o de lado, e o corpo sujodo homem despencou pesadamente sobremim. Uma poça de sangue morno escoava dopeito dele, manchando-me o ombro. Tirei-ode cima de mim e fiquei parada por um mo-mento, em estado de choque, olhando para ocorpo daquele homem.

— Calígula — eu chamei, dando um passohesitante à frente. Nem sinal dela. Então me

293/456

encostei em um tronco de árvore, sem forçassequer para pensar para onde ir.

Depois ouvi os cascos da égua em meio àsárvores, correndo na minha direção.

— Boa menina — eu murmurei quando elase aproximou.

Segurei no pescoço de Calígula paramontá-la, sabendo que não teria mais comodormir naquela noite. Em seguida, saímosem disparada.

294/456

23

ALCANÇAMOS UMA CIDADE PEQUENA EQUIETA BEM QUANDO o céu começou amudar para um tom mais claro de cinza.Puxei gentilmente a crina de Calígula, sinal-izando que diminuísse o passo, enquanto ob-servava a fila de pequenas lojas: umapadaria, uma alfaiataria, uma loja de de-partamentos. Uma igreja branca de madeiracom a torre do sino apontando para o céucomo mãos em oração. A cidade era um oás-is, aparentemente intocada pela destruiçãode Cornelius Hollister.

As ruas estavam silenciosas. As janelas dascasas com tetos de palha, escuras. Com oshabitantes do vilarejo ainda dormindo, me

senti segura para levar a égua até um poçoem uma montanha, de onde era possível vero centro da cidade. Baixei o balde paraenchê-lo de água fresca. Eu estava com sede,mas deixei-a beber primeiro. Calígula estavacorrendo há horas e o pelo dela estava úmidode suor.

Quando ela terminou, puxei um segundobalde de água para mim, e bebi sofrega-mente. Tinha um gosto tão puro. Emseguida, me larguei no chão, as pernastrêmulas pelo esforço de cavalgar por tantotempo. As feridas nas minhas costas late-javam e havia marcas vermelhas nos meusbraços. Virei-me de lado, puxando a camisapara cima para tentar ver a fonte daquelador, então engasguei: eu tinha um corte pro-fundo por todo o comprimento da minhacoluna. Lembrando-me das instruções deWesley para limpar qualquer ferida antesque infectasse, mergulhei o balde mais umavez no poço e deixei a água fria lavar minhas

296/456

feridas. Eu iria precisar de mais cuidados,mas eu sabia que a mãe de Polly teria algumunguento em casa se eu ao menos con-seguisse chegar até Balmoral.

Lembrei-me da primeira vez que vi Polly.Mary e eu estávamos caminhando nafloresta, procurando amoras, quando vimosuma menina magra, de aparência suja, vindona nossa direção. Ela carregava duas cestascheias de frutinhas maduras.

— Onde você conseguiu isso? — Mary per-guntou, e pude ver que ela estava preocu-pada que a menina não tivesse deixado nadapara nós.

— Eu achei — Polly respondeu com umsorriso contagiante, mostrando um buracoentre os dois dentes da frente. Ela tinha ca-belo liso, castanho-avermelhado, olhosverdes e redondos, e sardas salpicadas portodo o nariz.

— Bom, meu pai é dono de todas estas ter-ras, então, tecnicamente, elas nos pertencem

297/456

— Mary disse, utilizando sua voz com enton-ação da classe A.

O rosto da menina se anuviou enquantoela olhava com tristeza para as cestas cheiasde frutas.

— Minha mãe ia fazer geleia.— Não se preocupe — eu disse rapida-

mente, olhando duro para Mary. — Vocêpode ficar com elas. É só nos contar onde asencontrou.

Então Polly nos levou para um lugarsecreto. Nós a seguimos e passamos porbaixo de galhos rasteiros de macieiras, cam-inhando com dificuldade por um riacho friocomo gelo, até que ela afastou alguns galhoscheio de espinhos, revelando um pomar deamoras perfeitamente maduras.

Passamos a tarde colhendo e comendoamoras. Depois minha irmã e eu a seguimosde volta até a casa dela, onde a mãe de Pollynos mostrou como transformar as frutas emgeleia. Desse dia em diante, nós três sempre

298/456

passávamos os verões juntas, e durante o anoletivo mantínhamos contato através decartas semanais, e, ocasionalmente, da trocade alguns pequenos pacotes. Tais lembrançaspareciam ter acontecido há milhões de anos.

A luz fraca do sol surgiu por uma frestanas nuvens, iluminando a cidade lá embaixoe me despertando daquela viagem ao pas-sado. Uma por uma, as janelas das casascomeçaram a se iluminar com a luz de lam-parinas. Dois homens empurraram um car-rinho com mercadorias para o mercado napraça. Por mais que fosse reconfortante estarem um vilarejo intocado por Hollister, eu es-tava perdendo as forças e meu ferimentoprecisava ser tratado.

— Pronta, Calígula? — eu perguntei.A égua olhou para cima, tirando os olhos

do balde, e se aproximou de mim. Tenteimontá-la, mas não consegui. Virei o balde deágua de cabeça para baixo e usei-o como umdegrau para me ajudar a subir no animal.

299/456

Quando me mexia, a dor nas costas se irra-diava para o peito e as costelas. Tentei nãopensar nisso.

Calígula trotava de maneira lenta e firmeestrada acima, saindo do vilarejo rumo àsmontanhas, passando por campos áridos eárvores esqueléticas. Ouvi o som dos passar-inhos à nossa volta, mas eles não eram osmesmos passarinhos com os quais eu tinhacrescido. Pássaros canoros, gaios e pardaisnão existiam já há muito tempo. As ruas es-tavam cobertas pelos corpos deles depois dosDezessete Dias. Só os pássaros que se ali-mentavam de carcaça sobreviveram: corvos,pombos e urubus.

Continuamos por horas, e a cada sol-avanco do caminho eu sentia uma dor pro-funda nas costas. Até que finalmente recon-heci um desvio na estrada. Estávamos a unstrês ou quatro quilômetros de distância.Logo eu veria a casa de pedras quadradascom persianas verde-escuras onde Polly

300/456

morava com a família. Visualizei os cachor-ros dela, deitados nos degraus do jardim dafrente, onde a mãe plantava rosas e narcisos.

— É logo ali! — eu gritei, e Calígula, secontagiando com meu entusiasmo, disparou.Meus olhos procuraram avidamente amontanha, mas tudo que restava do lugaronde tinha sido a casa de Polly eram asfundações, negras e queimadas pelo fogo, e achaminé de tijolos coberta de cinzas.

Eu estava chocada demais para chorar.Chocada demais para sentir qualquer coisa anão ser um grande vazio. Soube da verdadeinstintivamente: a Nova Guarda tinha vindome procurar e matado Polly e a família dela.Mais três pessoas, que eu amava de coração,tinham perdido a vida por minha causa.

O Castelo de Balmoral continuava de pé lána frente, os muros chamuscados e cobertosde fuligem.

Lembranças flutuavam na minha mente:Mary e eu, crianças, correndo lá para dentro

301/456

com nossos vestidos de verão para encontrarnossos pais; brincando de pega-pega noscorredores sombrios; pescando no rio comPolly e o pai dela. Fechei os olhos, tentandobloquear essas imagens. Como a vida de to-dos nós podia ter mudado desse jeito? E tãosubitamente?

Eu precisava checar os estábulos, apesarde temer o que poderia encontrar. Preparei-me para o pior, mas de algum jeito encontreiforças para encorajar Calígula a seguir emfrente, passando pela grama alta, pela lateraldo castelo, e depois por um caminho lama-cento até os estábulos. Olhei para as janelasda construção quando passamos. Não haviacavalos lá dentro. O pasto também estavavazio. Será que os animais tinham sidoroubados ou apenas sortudos o bastante paraescapar?

— Jasper — eu chamei, tentando assobiar,mas sem sucesso. Respirei fundo e tentei denovo, olhando para o campo e desejando que

302/456

Jasper aparecesse, caminhando na minhadireção, em resposta ao meu chamado. Olheilá longe, até onde meus olhos conseguiam al-cançar, onde a grama e o céu se tornavamuma coisa só. Nada de Jasper. Nada de Polly.

Não havia sobrado nada.Desmontei pesadamente e deixei Calígula

pastar à vontade no campo.— Você está livre agora — eu sussurrei

para ela. A égua ergueu a cabeça e os olhoslargos dela encontraram os meus. Então elame empurrou levemente com o focinho. —Ninguém nunca mais vai colocar um freiocom espetos na sua boca de novo. Estecampo é seu. Você pode correr quanto quiser— eu disse e encostei minha testa na dela. —Espero que você tenha uma vida melhoraqui.

Tirei a mão do pescoço de Calígula e mevirei para caminhar lentamente até o castelo.A trilha lamacenta virou um caminho de ar-dósia, que terminava em degraus largos que

303/456

levavam às portas duplas da entrada dafrente. As portas estavam fechadas.

Olhando para trás uma última vez, vi queCalígula tinha me seguido e estava me obser-vando da estradinha.

— Vá! — fiquei surpresa em sentir o rostomolhado de lágrimas. Acenei para ela, mas aégua continuou lá parada, olhando paramim.O ar dentro do corredor de pedras era ex-tremamente frio. Estilhaços de vidroquebrado cobriam o chão, brilhando comogelo sob a luz fraca que atravessava asjanelas. O grande lustre que há séculos ficavapendurado na entrada do castelo estavacaído no chão de mármore, despedaçado emmilhões de pedaços. Os quadros da realezatinham sido rasgados na altura da gargantados retratados: meus ancestrais estavam coma cabeça decepada. Os vasos, as obras dearte, os espelhos, as pinturas — tudodestruído. Pelo menos a antiga e linda

304/456

escada ainda estava de pé, apesar de tambémostentar marcas, como se fossem cicatrizesde queimaduras.

Eu queria checar a casa inteira para ver sehavia sobrado alguma coisa, mas estava tre-mendo e me sentindo febril. Uma onda decalor passava por mim só para me deixarsentindo ainda mais gelada. Minhas pernaspareciam pesadas demais quando segurei nocorrimão, me forçando dolorosamente es-cada acima. Parecia que alguém estava es-fregando uma faca nas minhas costas, efiquei pensando no que as garotas tinhamfeito com Vashti.

Segurei no corrimão chamuscado para meapoiar melhor. Tudo o que eu queria eradeitar no meu quarto, na minha cama. Esseera o único pensamento que ocupava meucérebro febril. E assim eu continuava, passoa passo. O chão parecia se mover sob meuspés, o que me deixava desorientada. Eu mesentia como um navio à deriva no mar bravo.

305/456

Quando finalmente cheguei à porta domeu quarto, eu estava de quatro. O armáriotinha sido derrubado, a madeira escura,quebrada em pedaços espalhados pelo ta-pete, e os lençóis, jogados no chão. Mas acama redonda de cachorro de Bella estava lána canto, ainda marcada com a forma dela, eminha cama de dossel estava quase intacta.Mesmo depois de todos os acontecimentos,aquele quarto me fazia sentir em casa. Difer-entemente da minha mãe e do meu pai, queagora eram apenas lembranças, aquele es-paço, aquela casa, iriam continuar, e sobre-viveriam a todos nós. Talvez algum dia outramenina usasse meus vestidos e abrisse acaixa de joias que eu tinha desde os 6 anos eficasse olhando a bailarina lá dentro girar.

Minha cabeça de repente parecia pesada de-mais e eu não conseguia mais me manter empé. Assim, deitei no chão de madeira, ol-hando para minha cama, desejando terforças para andar até lá. Com a luz das

306/456

janelas de cima, eu podia ver as feridas nomeu braço mais claramente. Linhas vermel-has e bolhosas como uma queimadura se es-palhavam em uma linha. Infecção. Fechei osolhos enquanto mergulhava em um sono va-cilante, cheio de furiosos pesadelos.

Acordei, e no meu estado de delírio, penseiter ouvido vozes e o som de passos nocorredor. A porta do meu quarto rangeu e seabriu. Eu não sabia como Cornelius Hollisterjá tinha me achado, mas naquele momento amorte era bem-vinda. Continuei deitada,sem conseguir me mexer, os olhos fechados.

— Eliza, é você?Meus olhos se abriram e foquei no rosto da

pessoa em pé na minha frente. O cabelo lisoe longo, as inúmeras sardas, os olhos verdese redondos arregalados de surpresa.

— Polly — eu falei, a respiração pesada.

307/456

24

EU FLUTUAVA ENTRE A CONSCIÊNCIA EA INCONSCIÊNCIA, ardendo em febre. Al-guém me levou para minha cama e me davacolheradas de água. No começo, pensei quePolly e eu estávamos dançando na chuva,com a língua de fora para beber as gotas deágua. Depois vi o rosto dela flutuando sobremim, franzindo as sobrancelhas, e melembrei.

Também havia uma mulher de voz doce emãos gentis. Ela apoiava minha cabeça nocolo dela, tentando me dar sopa, mas eu nãoconseguia engolir. Então um homem apare-ceu, vestido com um casaco escuro e car-regando uma pequena caixa de remédios. Ele

se sentou ao meu lado na cama e tirou minhatemperatura embaixo do braço, do jeito queminha mãe fazia quando eu era criança.

— Quarenta e um — a voz dele pareciagrave. — Precisamos de um antibiótico paracombater a infecção.

— Devemos levá-la? — Polly perguntou, avoz cheia de preocupação.

— Ela está doente demais para sair daqui— o médico disse.

Um grupo se juntou em torno dele falandobaixo e de forma solene. Com a Nova Guardatomando conta das farmácias e dos hospi-tais, o médico não conseguia os remédios deque precisava para me ajudar. Vi Polly correrpara fora do quarto, mas depois desmaiei.

O delírio era uma fuga muito bem-vinda.Minha mente se abarrotava com lembrançasfelizes e tão vívidas que eu podia ouvir deverdade a voz da minha mãe e sentir o per-fume do óleo de rosas que ela costumavausar. Eu sentia o pelo macio de Bella, assim

309/456

como o focinho molhado e frio dela. Mas,quando a tremedeira voltava, voltavam tam-bém os pesadelos: Mary, um esqueleto entreas grades; Jamie morrendo sozinho em umleito de prisão; a imobilidade nos olhos domeu pai enquanto ele sangrava até a morteno chão do salão de festas.

Acordei gritando, tentando me levantar.— Está tudo bem, Eliza — Polly dizia en-

quanto comprimia um pano úmido na minhatesta. O quarto entrou em foco e deitei denovo no travesseiro, sentindo o som das bati-das do meu coração nos ouvidos.

— O que o médico disse? — eu perguntei.Como ela não respondeu, eu sabia que não

tinham encontrado nenhum antibiótico.— Estamos fazendo o possível. Fui ao mer-

cado hoje de manhã — eu podia ver pelo tomde voz de Polly que ela estava começando achorar. — O senhor Seabrook, o antigoquímico, disse que talvez soubesse ondeachar. Vou voltar lá amanhã de manhã.

310/456

Mamãe está na cidade, batendo de porta emporta, perguntando se alguém tem algumresto nas caixas de remédio.

Aquiesci, mas mesmo o menor dos movi-mentos fazia minha cabeça doer. Ninguémteria nenhum remédio sobrando.

— Hollister ocupou os hospitais?— Sim — Polly concordou de forma solene.

— Tinha até alguns dos soldados deles napraça do mercado hoje. Um deles me seguiu.

— Não podemos lutar contra eles — con-segui falar com a voz entrecortada. — Elestêm armas e munição... — depois astremedeiras recomeçaram e me forçaram adeitar de novo. Eu não conseguia falar entreos dentes rangendo.

Polly me olhou, lutando para esconder apreocupação, mas franzindo o nariz, comosempre acontecia quando ela ia chorar. Elapuxou o cobertor até meu queixo e se deitouao meu lado, colocando os braços à minhavolta para me esquentar.

311/456

A porta se abriu e o médico apareceu. —Ela precisa descansar, Polly — ele arepreendeu gentilmente, então ela se levan-tou e se afastou.

O médico se aproximou de mim com umagarrafa de remédio cor de âmbar que fez oscalafrios pararem e me permitiu dormir.Senti as mãos dele me segurando pelo queixoenquanto abria minha boca para jogar oxarope adstringente direto na minha gar-ganta. Um peso se abateu sobre mim, mecobrindo como um cobertor. Tentei deses-peradamente chamar Polly, mas a escuridãome dominou.

Quando acordei, os pais de Polly e omédico estavam sentados em volta da minhacama. Clara segurou minhas mãos nas dela,apertando-as suavemente, como minha mãefazia. Ela me lançou um olhar triste, os olhosvermelhos de tanto chorar.

— Como você está se sentindo, Eliza? — omédico perguntou.

312/456

Tentei responder, mas mal conseguia abrira boca. Entrei em pânico e fiquei olhando domédico para Clara e depois para George, queestava sentado com as mãos entrelaçadas nocolo, olhando para o chão.

— O tétano faz os maxilares travarem — omédico explicou quando tentei falar de novo.

— Sinto muito, Eliza — Clara disse, se in-clinando na minha direção. — Não encon-tramos nenhum remédio. Olhamos em todosos lugares e perguntamos para todo mundo.George cavalgou durante dias pelas cidades evilarejos aqui em volta, mas ninguém temmais nada — as lágrimas enchiam-lhe os ol-hos enquanto ela falava. Eu sabia, sem ela terde dizer mais nenhuma palavra, que eles tin-ham vindo para me dizer que eu estavamorrendo.

— A infecção se espalhou — o médicodisse.

Eu teria dado uma gargalhada se pudesseabrir a boca. Eu tinha pulado do telhado da

313/456

Torre de Aço, me defendido de cobras de es-goto, me arrastado por um túnel com fogoatrás de mim, e cavalgado quase quinhentosquilômetros sem sela. No entanto, umaportinha de alçapão de metal infectada comtétano é que iria me matar.

— Me enterrem ao lado da minha mãe —eu tentei dizer. Queria ser enrolada em mus-selina e colocada na terra ao lado da minhamãe. Imaginei nossos ossos se tocando naterra, o mais próximo que chegaríamos denos dar as mãos outra vez.

Fechei os olhos, me preparando para umanova leva de calafrios. O xarope que omédico me deu para dormir tinha diminuídoa dor, mas me deixara sem conseguir comer,e eu sentia meus ossos contra o colchão. Umraio de sol brilhava através das cortinas delaise que enfeitavam meu quarto desde queeu era criança.

— Talvez ela esteja com sede — Clara disseenquanto se sentava atrás de mim na cama,

314/456

deitando minha cabeça nos braços dela. Elame alimentou a colheradas, alternando águae chá de camomila. Eu sentia o chá pingar dagarganta para meu estômago vazio.

— O dia está bonito — eu disse o maisclaramente possível, mas as palavras eramincompreensíveis e soavam como balbucios.Mas Clara me entendeu.

— O dia está bonito — ela concordou.Clara deixou a janela aberta quando eles

saíram do quarto, permitindo que o ar frioentrasse. O cheiro era quase de mar, porcausa da umidade do orvalho e do calor dosol. Inspirei lentamente pelo nariz. Eu tinharespirado aquele ar toda a minha vida, massó agora apreciava quão doce ele era. Talvezestivesse delirando, mas eu quase podia sen-tir um leve aroma de flores. Isso me fez lem-brar da estampa de rosas na casa de Wesley,onde nos sentamos e nos beijamos à luz develas. Assim que a imagem me veio à mente,

315/456

tentei afastá-la; eu não queria passar minhasúltimas horas de vida pensando nele.

Então apaguei de novo, meio sonhando,meio rezando por Mary e Jamie. Eu esperavaque a morte deles nas mãos de Hollisterfosse o mais indolor e rápida possível. Eurezava para que Polly e a família dela nuncasofressem por terem me ajudado. E tambémrezava para alguém matar Hollister, ou parauma bola de sol gigante cair sobre ele e o ex-ército dele, queimando todos. Eu não podiamorrer em paz sabendo que ele ainda estavavivo.

Algum tempo depois, senti a mão fria dePolly na minha testa.

— Está tudo bem, Eliza — ela murmurou.— Polly, você tem sido a melhor amiga do

mundo — eu fazia força para as palavras saír-em por entre minha boca cerrada. — Eu teamo muito.

Em seguida, fechei os olhos, satisfeita commeu último adeus.

316/456

25

NÃO CONSEGUI DORMIR. TREMENDOCOM OS ARREPIOS E A febre, fiquei deit-ada na cama, os olhos abertos, mas sem vernada. As faixas de luz acinzentada embaixoda janela me diziam que eu tinha sobrevividoa mais um dia.

O som alto de batidas na porta ressooupelo castelo.

Polly estava deitada ao meu lado, o braçoapoiado na minha cintura. Ela se levantou deuma só vez e olhou em volta do quarto. Amãe dela, que estava cochilando na poltrona,acordou em pânico com o susto.

— Quem estaria na porta a essa hora danoite? — Clara perguntou assustada.

Ela afastou um pouco a cortina da janelapara poder espiar lá fora.

— Sim? Quem está aí? — ela perguntou. —Olá? — não houve resposta, apenas o somcada vez mais distante de cascos de cavaloecoando pelo caminho de pedra.

— É melhor eu ir lá embaixo olhar — Ge-orge disse. A voz dele parecia cansada,abatida.

— Vou com você — Polly se ofereceu, masapertei a mão dela. Queria que ela ficasse.Estava com medo de ficar sozinha, de morrersozinha. Polly entendeu e deitou de novo aomeu lado.

Alguns minutos depois, George entrou noquarto novamente.

— Alguém deixou este pacote do lado defora da porta — ele disse sem fôlego, segur-ando uma embalagem na frente do corpo.

— O que é? — Clara perguntou, pegando avela da minha mesa de cabeceira para exam-inar o pacote. Era um embrulho pequeno,

318/456

envolto em papel marrom e amarrado comum barbante. Pude ouvir o farfalhar do papelsendo desembrulhado e depois o silêncioquando ela segurou o conteúdo sob a luzbruxuleante da vela. Abri os olhos, fazendoforça para enxergar. Na mão de Clara estavao que parecia ser um frasco de vidro.

— O que diz aí, mãe? — Polly perguntouansiosamente.

— Penicilina... tome três vezes ao dia porquatro semanas.

— Remédio? — Polly perguntou, excitada,se aproximando do embrulho. — É remédio!Alguém da cidade deve ter encontrado!

— Deixaram algum bilhete? — Claraperguntou.

Polly olhou dentro do pacote.— Não — ela respondeu.Clara parecia desconfiada.— Talvez tenha sido o senhor Seabrook.

Ele estava tentando achar um pouco hoje demanhã.

319/456

— Agora não é hora de nos preocuparmoscom isso — George disse com urgência navoz. — Precisamos agir rápido. Amassar aspílulas e misturá-las com leite, ou Eliza nãovai conseguir engolir.

Polly sentou-se ao meu lado, me levant-ando para que eu ficasse sentada enquanto opai dela me dava colheradas de leite comgosto amargo. Depois de alguns dias semcomer, até o leite parecia difícil de engolir.Polly viu que eu estava tendo dificuldades epingou algumas gotas de água na minhaboca, o que ajudou um pouco.

— Antibióticos têm uma data de validadecurta — George disse enquanto colocavamais leite na colher. — Vamos rezar para quenão seja tarde para esse remédio funcionar.

No começo, o médico vinha me ver três vezesao dia. Ele me dava os comprimidos aoamanhecer, ao meio-dia e à noite. E todas asvezes que tirava minha temperatura, um sor-riso se formava no rosto dele, quase sempre

320/456

austero. Os tremores diminuíram, assimcomo o suor. Os músculos das mandíbulas fi-nalmente se soltaram, então pude voltar afalar. As linhas vermelhas de infecção que seespalhavam pelos meus braços e costas fo-ram desaparecendo até se transformarem emcicatrizes bem claras.

Quando eu estava já há uma semana semfebre, o médico começou a me visitar diasim, dia não, para se certificar de que eu es-tava conseguindo me alimentar. Ele disseque eu havia perdido quase um quarto domeu peso. Meus músculos ainda estavam tãofracos que eu não podia andar sozinha, sob orisco de cair.

Polly estava sempre ao meu lado. Ela metrazia bandejas de comida, mingau com melque o pai dela pegava diretamente da col-meia, e leite da vaca leiteira deles. Na horado almoço, fazia um caldo com o que con-seguisse encontrar, uma cenoura ou umabatata, e servia com um prato pequeno de

321/456

amoras. Eu ainda não tinha muito apetite,mas me forçava a comer por causa dela. Pollyparecia feliz toda vez que eu lhe devolvia umprato vazio. E aos poucos, por partes, come-cei a contar a ela o que tinha acontecidodesde que havíamos nos despedido no verãoanterior. Eu ainda não tinha lhe contadosobre Wesley — as lembranças dele aindaeram doloridas demais. E me perguntava sealgum dia contaria.

— É a pior sensação do mundo, Polly — eudisse. Eu estava me sentindo muito melhorfisicamente, mas não conseguia parar depensar naquela noite na Torre. — Eu estavatão perto deles... Nós nos demos as mãos at-ravés das grades da cela, mas depois tive quedeixá-los. Às vezes acho que eu deveria terficado. Pelo menos teríamos morridojuntos...

— Não, Eliza! — Polly disse duramente. —Pare de falar assim. Você fez o melhor que

322/456

pôde para salvá-los e nós vamos tentar denovo.

— É perigoso demais — eu comecei a argu-mentar, balançando a cabeça, mas ela mecortou.

— As forças de Resistência estão se junt-ando por aqui há algum tempo. Não é ummovimento muito grande, mas cresce a cadadia. Nem todo mundo acredita no que Cor-nelius Hollister diz — Polly fez uma pausa,então voltou a falar com a voz bem baixa. —Na noite em que as tropas de Hollister quei-maram nossa casa, ele estava junto, jogandogasolina em tudo. Por sorte, tínhamos sidoavisados pelo vigia da cidade e escapamosantes de eles chegarem.

— E eles nunca voltaram desde então? —eu perguntei.

— Não... pelo menos ainda não.— Bom, tenho certeza de que vão voltar em

breve, especialmente se descobrirem que es-tou aqui.

323/456

Polly concordou.— É por isso que precisamos ter certeza de

que eles não vão descobrir.— As tropas de Resistência têm armas?

Munição?Polly balançou a cabeça afirmativamente.— Temos um pouco, mas precisamos de

mais. Temos pouca munição. Mas o mais im-portante é que as pessoas estão se juntando.O ferreiro da cidade está fazendo espadas eoutras armas com base em modelos mediev-ais. As pessoas estão tentando tudo quepodem.

— A Nova Guarda tem armas e sevilhanas,depósitos de munição, cavalos de guerra euniformes — eu disse com desânimo. — Nãosei como teremos chance contra eles — orosto de Polly murchou ao me ouvir dizendoisso. Eu não queria destruir as esperançasdela, mas minha amiga precisava saber o queas forças de Resistência iriam encontrar. —Nosso maior problema é o tamanho do

324/456

exército de Hollister. Você sabe que ele in-vade e assalta as cidades e vilarejos e levaprisioneiros com ele, mas também obriga ho-mens e mulheres a trabalhar para ele. Se osprisioneiros se recusam, são mandados paraos Campos da Morte, onde trabalham aténão servirem para mais nada. E aí... — euparei, me lembrando do que tinha vistonaquela noite pavorosa, e estremeci. — Elessão forçados a cavar as próprias covas e en-tão são executados.

Polly parecia aterrorizada.— Você precisa descansar — ela disse rapi-

damente. — Toda essa conversa sobre Cam-pos da Morte não está ajudando você amelhorar.

Recostei-me nos travesseiros enquanto elasaía do meu quarto nas pontas dos pés, silen-ciosamente. Polly tinha razão: eu precisavame concentrar em ganhar forças de novo. Aluz do anoitecer era filtrada pelos painéis dajanela, que deixavam uma sombra lilás

325/456

atingir a cama. Eu sabia que deveria me sen-tir grata por estar viva, mas agora tinha umasensação de peso enorme dentro de mim.Tantas coisas tinham dado errado; tudo queeu tinha tentado fazer havia falhado. Fiqueiolhando para o teto rachado. Quando eu eramais nova, via aquelas linhas sinuosas e ima-ginava um coelho, uma lua, casas, árvores.Mas agora só via rachaduras.

326/456

26

FAZIA ALGUMAS SEMANAS QUETÍNHAMOS RECEBIDO A misteriosadoação de penicilina e eu estava finalmenteme sentindo eu mesma. De certa maneira,parecia que eu estava aproveitando só maisum verão. Polly e eu passávamos os dias jun-tas enquanto eu tentava recobrar minhasforças. Caminhávamos pelas redondezasdurante o dia e, à noite, líamos perto dalareira. Mas meus pensamentos ao acordarvoltavam sempre para Mary e Jamie apri-sionados na Torre. Eu esperava que elesainda estivessem vivos e sem dor.

Certa manhã, descemos para o café damanhã e encontramos Clara e George à

mesa, bebendo chá e comendo pedaços aque-cidos de pão marrom cobertos com framboe-sas amassadas. Clara estava cortando umamistura de cenouras e batatas de aparênciaenvelhecida e jogando-as em uma panelagrande para fazer um ensopado.

— Como podemos esperar que as tropassobrevivam com isso? — ela perguntoudesanimada.

George balançou a cabeça, concordando,sem sequer tirar os olhos do rifle antigo queestava tentando consertar. Aquela arma cos-tumava ficar pendurada na parede do es-critório do meu pai como decoração; vê-laagora me enchia de uma tristeza profunda.Eu sentia muita falta dele.

Sentei-me perto da lareira enquanto Pollyfervia água para fazer chá. Olhei em volta,observando as pilhas de pratos, os sacosvazios de farinha e de açúcar, os armáriostambém vazios. A cozinha sempre tinha sidoa minha parte favorita do castelo. Era tão

328/456

aconchegante; não importava a época doano, sempre tinha algo no fogo. Eu cos-tumava pensar que, se o castelo fosse umcorpo, a cozinha seria o coração.

— Como você está se sentindo hoje? —Clara me perguntou com cuidado.

— Melhor, eu acho — eu respondi. O fogoda lareira às minhas costas dava umasensação gostosa. Girei os ombros e alongueio pescoço. Meus músculos ainda estavamfracos, mas não doíam mais.

Clara ergueu os olhos, buscando o olhar domarido, e fez um gesto com a cabeça paraele.

— Eliza — George falou, colocando namesa as ferramentas que estava usando paraconsertar o rifle. — Precisamos falar comvocê.

— Estávamos esperando você se sentirmelhor — Clara interrompeu. Ela olhava deforma hesitante ora para o marido, ora paramim. — Parte meu coração dizer isso, mas

329/456

não achamos que seja seguro você ficar maistempo conosco. Estivemos procurando umafamília para abrigá-la, pessoas com as quaisachamos que você estará segura.

— Uma família para me abrigar? — eu per-guntei, sentindo um buraco na boca doestômago.

— O senhor e a senhora Keats, no País deGales. Eles são velhos amigos do seu pai.Você deve se lembrar deles. Eles cos-tumavam visitar sua família em Londresquando você era pequena.

— Estou indo embora? Vocês vão me man-dar para o País de Gales? — eu olhei paraClara, depois para George. — Por favor — euimplorei. — Aqui é minha casa. É tudo o queme resta do meu passado.

Clara balançou a cabeça, desolada.— Eliza, sei que isso é difícil, mas é a mel-

hor maneira de mantê-la em segurançaagora. Se Cornelius Hollister a capturar ematar, a linha de sucessão dos Windsor

330/456

estará acabada e ele conseguirá se proclamarrei. Não podemos deixar isso acontecer.

Meu coração parou de bater por um in-stante quando percebi o que ela estava quer-endo dizer.

— Você está dizendo... — eu engoli em seco— ... que Mary e Jamie já estão mortos?

— Não, não. Não temos nenhuma notícia.Até que fiquemos sabendo do pior, vamospensar no melhor. Tenho certeza de que elesainda estão vivos. Mas precisamos mantervocê em segurança — Clara sorriu e apertoumeus ombros em sinal de apoio, mas eusabia que ela estava me dizendo o que euqueria ouvir, não a verdade. — O generalWallace vai levá-la até o País de Galesescoltada por tropas da Resistência para umaproteção extra.

— Não posso ficar correndo de um ladopara o outro, me escondendo — eu protestei,enquanto uma lágrima escorregava pelo meunariz e pingava na mesa de madeira. — Já

331/456

perdi tanta coisa. Este lugar é meu único elocom o passado.

— Você tem sua vida! — George exclamou.— E é isso que estamos tentando proteger —ele fez uma pausa e voltou a falar de maneiramais gentil: — Seu pai era um homem bom.Ele nos tratava bem, como parte da família.Prometi-lhe que faria tudo que pudesse paraproteger vocês, e é isso que estou fazendoagora.

Clara esticou a mão para segurar a minha.— Não é seguro para você continuar aqui,

Eliza. Assim como não é seguro para nósabrigá-la. Eles vão voltar procurando você.

Aquiesci. Claro que ela estava certa. Se aNova Guarda me encontrasse lá, Polly e afamília dela certamente seriam mortos. Eunão podia deixar que arriscassem a vida pormim.

— Quando tenho que partir? — euperguntei.

332/456

Um silêncio se fez entre Clara e George en-quanto eles se olhavam. Por fim, Georgedisse: — O general Wallace vai levar você ho-je, depois que escurecer. Achamos mais se-guro você viajar à noite.

— Hoje à noite — eu repeti pesadamente.— Tudo bem. Vocês têm razão, é o melhor afazer.

Polly me abraçou, mas isso só fez eu mesentir pior. Forcei-me a beber o chá e a ter-minar meu pedaço de pão torrado, pensandoem quão difícil era para mim me despedirdela de novo. Será que algum dia eu ia podervoltar para os lugares que conhecia e para aspessoas que amava? Ou eu teria de viver noexílio para sempre?

Quando terminei, fiquei de pé e leveiminha caneca até o balde de água para lavar.— Vou subir e embalar algumas coisas para aviagem.

— Vou com você — Polly disse, se levant-ando da mesa.

333/456

— Acho que quero ficar um pouco sozinha,se você não se importar — eu pedi.

Enquanto eu subia as escadas, me pegueipensando em quando eu e Mary éramos cri-anças e colhíamos dentes-de-leão nasmontanhas. Soprávamos as sementes novento e ficávamos vendo-as voar para longe.Pensei na minha família, desaparecendocomo as sementes. Agora eu era a próxima air.

O chão de pedra ecoava atrás de mim en-quanto eu dava uma última caminhada pelocastelo, dando um adeus silencioso a cadaum dos cômodos. Eu disse adeus para a salaazul-clara, com uma cornija de mármore emvolta da ladeira, onde costumávamos pen-durar nossas meias de Natal; para o quartode bebê, onde percebemos pela primeira vezquão doente Jamie sempre seria; para a salaonde os cavalheiros fumavam e bebiam, comseus escuros painéis de madeira; e para asala de chá das damas, com sua moldura

334/456

branca que sempre me lembrou um bolo decasamento. E, finalmente, fui até o escritóriodo meu pai.

Quando abri a porta, pude ver a poeira nasfaixas de luz do sol, que vinham das janelas ebatiam no chão, nos grossos tapetes ori-entais. A escrivaninha do meu pai con-tinuava no lugar de sempre, a cadeira pux-ada para trás como se ele tivesse acabado dese levantar para sair.

Meu pai adorava antiguidades. Vi suacoleção de pequenos carros de corrida, umacâmera de couro perto de uma caixa fechadade rolos de filme, uma coleção de telefonescelulares e de fitas cassete antigas, e umaoutra de soldados de brinquedo de metal.Mary e eu costumávamos fazer troça dele, re-virando os olhos e chamando-o deantiquado.

O cheiro da sala era uma mistura de pedraantiga, tabaco e madeira, um cheiro que eusempre iria associar ao meu pai. Meus olhos

335/456

arderam. Eu jamais tinha entrado naquelasala sem ele. Fiquei me perguntando se eleestava me vendo agora; se sabia como eusentia falta e precisava dele.

Beijei uma das paredes do escritório evoltei para a escada. Ainda havia uma levebrisa soprando nos corredores.

— Eliza — Polly estava de pé na porta domeu quarto. Eu não estava arrumando amala, estava só olhando pela janela, para onada. — O sol saiu — ela disse titubeante. —Quer ir lá fora? Talvez você se sinta melhor.

Encostei no parapeito da janela, olhandopara a tinta lascada.

— Está bem.Lá fora, o sol aquecia as ruas lamacentas.

Caminhávamos devagar, em silêncio, por umcaminho que costumava ser uma estradaonde passavam carros. Passamos pelo querestou do pomar de maçãs: árvores nuas evazias, e galhos que, contra o céu, pareciamesqueletos. Apesar de não haver maçãs lá

336/456

desde os Dezessete Dias, o perfume da frutaresistia, como um fantasma teimoso.

— Polly — eu disse, parando no meio docaminho. Crescendo no meio de um pedaçode terra ao lado da estrada havia umapequena árvore. Um delicado e maciotronco, com dois galhos fininhos brotando,nos quais pequenas folhas em formato deamêndoa estavam se formando.

Polly se agachou ao meu lado com uma ex-pressão de espanto no rosto e no olhar. Sentimeus olhos se encherem de lágrimas. Lágri-mas de esperança.

Depois dos Dezessete Dias, muitas espé-cies de plantas haviam sido extintas. Issomexeu muito com minha mãe. Ela sempreteve um carinho especial por plantas e flores.No dia em que ela morreu, durante nossopiquenique no jardim, ela disse: — Esperoque algum dia folhas verdes voltem aomundo. E que ainda estejamos vivos paraver.

337/456

Isso foi uma das últimas coisas que ela medisse.

Sorri por um momento, feliz por ver queminha mãe tinha realizado o desejo dela.Mas então pensei em Mary e Jamie, e meusorriso desapareceu. Eles provavelmentenunca conseguiriam ver as folhas novas.Como se adivinhasse meus pensamentos,Polly estendeu a mão para segurar e apertara minha.

Foi aí que ouvimos um som estranho aolonge, como o barulho de rodas de carros, sóque ninguém nas redondezas tinha com-bustível para dirigir um automóvel. Polly eeu congelamos, olhando uma para a outra,assustadas.

O barulho foi ficando cada vez mais alto emais perto. Não era um caminhão, percebi,quando um grupo de cavalos virou na curvalá na frente: era um esquadrão de soldadosde Hollister.

338/456

Observamos, incrédulas, a fila aparente-mente interminável de homens e mulheresuniformizados, armados com sevilhanas,cavalgando pelas estradas sinuosas docampo. Como se moviam em perfeita sinto-nia, pareciam uma cobra verde gigante.Aqueles soldados não eram os novos recrutasque eu tinha visto no campo de treinamento:eles formavam um exército de verdade, comcavalos, armas novas e uniformes limpos. Acor desapareceu do rosto de Polly.

— Eles vão esmagar as forças de Resistên-cia em um segundo — ela disse, ainda ol-hando para a frente, com uma expressão demedo e admiração no rosto.

Antes que eu soubesse o que estavaacontecendo, Polly pulou na minha frente eme empurrou para trás, para uma área ondehavia um roseiral. Eu tropecei nos arbustos,nos gravetos e no emaranhado de galhos quefaziam com que fosse quase impossível semexer. Pensei que Polly fosse se esconder lá

339/456

comigo, mas ela ficou parada na lateral daestrada, olhando para a frente, como se nadaestivesse acontecendo. Três dos cavaleiros sesepararam do resto do grupo e vieram nanossa direção.

— Polly, venha para cá — eu sussurrei, masela fez um gesto para que eu ficasse quieta.Os cavalos estavam se aproximando. Entãome agachei no espaço entre os galhos maisbaixos, segurando-os com tanta força que osnós dos meus dedos ficaram brancos. Por fa-vor, não machuquem ela; por favor, nãomachuquem ela, eu pedia mentalmente.Talvez eles passassem direto, pensando quePolly era só uma menina do interior indopara casa.

O som dos cavalos diminuiu e eu vi que ossoldados não iriam passar direto. Eu não po-dia ver o rosto deles, apenas as patas muscu-losas e os cascos com espetos de metal doscavalos de guerra. Polly ficou parada. Eu sóconseguia ver as pernas finas, a parte de trás

340/456

dos shorts e a mão tremendo de nervoso daminha amiga, que segurava alguns gravetosatrás das costas.

— Você mora aqui? — eu ouvi um dos ca-valeiros perguntar.

— Sim — Polly respondeu humildemente.— Moro rua acima, em Balmoral. Só estavajuntando gravetos para o fogo da cozinha.

— Fale alto e claro quando nos dirigirmosa você, menina! — um segundo soldado ber-rou. — Você tem alguma informação sobre oparadeiro da princesa Eliza?

Polly ficou em silêncio.— Responda agora! — gritou o soldado

raivoso, erguendo a sevilhana. Rapidamentee sem aviso prévio, ele abaixou o braço,batendo no rosto dela com o lado plano dalâmina. Polly cambaleou para trás com aforça da pancada e caiu no chão, poucos met-ros à minha frente. Ela ficou lá sentada,apertando a mão contra a bochecha e ol-hando para eles, ainda sem dizer nada.

341/456

— Chega — ordenou outro soldado. Perdi arespiração ao ouvir aquela voz. Ele falava demaneira muito mais gentil. — Você viu ou es-cutou qualquer informação a respeito de El-iza Windsor?

Fiz um esforço para não sair de onde es-tava e olhar para Wesley. Queria ver o rostodele uma última vez sob a luz do sol e per-guntar por que ele não havia me contado averdade sobre quem era. Perguntar por que,lá no telhado, ele ficara ao lado do pai dele,quando podia ter ficado do meu.

Polly se ergueu. De onde eu estava, pudever que as mãos dela estavam arranhadas esangrando por causa da queda.

— Se puder nos fornecer qualquer pistaque nos ajude a encontrá-la, você será re-compensada por Cornelius Hollister comdinheiro ou comida, o que você preferir —Wesley disse.

Polly aquiesceu.

342/456

— Isso foi um sim? — o primeiro soldadoperguntou com voz severa.

— Sim — Polly respondeu baixinho.— Sim, você sabe onde a princesa está? —

o cavaleiro perguntou. O cavalo dele semexeu e ele deu um puxão nas rédeas paraacalmá-lo. — Fale logo! Não temos o diainteiro.

A mão de Polly tremia incontrolavelmenteenquanto ela gaguejava: — Eliza Windsor,princesa da Inglaterra...

Eu prendi a respiração, a ponto de afastaros arbustos e me entregar.

— ... está enterrada ao lado da mãe dela,no Cemitério Real de Londres.

Um silêncio caiu sobre os cavaleiros, comose tivessem ficado chocados com a inform-ação. O único som que se ouvia era o tilintardos freios dos cavalos quando eles mudavamo peso do corpo.

— Ela está morta? — perguntou o soldado,como se estivesse desapontado com a ideia.

343/456

— Nós queremos ela viva. Como você sabedisso? Você tem certeza?

— Sim — Polly murmurou, olhando parabaixo. — Ela morreu por causa de uma in-fecção. Tétano. O corpo dela foi encontradona estrada para Balmoral. Acho que ela quer-ia vir morrer aqui. Meu pai foi um dos ho-mens que ajudou a carregar o corpo delapara Londres para o enterro. Ele disse queela era só pele e osso, e que estava quase ir-reconhecível — Polly disse com a voz baixa etriste.

Os cavalos batiam nervosamente no chão,levantando poeira na estrada. Eu podia ouviros cavaleiros conversando entre si, mas Wes-ley permaneceu calado.

— Bom, não há necessidade de continuar-mos por aqui, então — o soldado disse porfim, com um tom de voz neutro. — Já leva-mos do castelo tudo que valia a pena, entãovamos voltar para a Divisão Oito para oataque a Newcastle.

344/456

Ouvi os cavalos dando meia-volta. O somdo tropel indo na direção da Estrada doNorte diminuía aos poucos.

— Polly! — eu me desvencilhei dos galhos ecorri para ela, jogando meus braços em voltada minha amiga. — Obrigada! Você foi tãocorajosa! Você me salvou — Olhei para amarca vermelha no rosto dela, onde osoldado a tinha atingido. O rosto de Polly es-tava pálido, e pude ver que ela estavaabalada.

Nós nos encostamos na parede de pedraspor um minuto, a fim de reorganizarmosnossos pensamentos.

— Aquele soldado, o de cabelo louro — eucomecei a dizer, passando distraidamente odedo sobre a fina cicatriz no meu braço etentando fazer minha voz soar casual. — Elepareceu chateado quando você disse que eutinha morrido?

Polly me olhou de uma maneira estranha.

345/456

— Eliza — ela disse lentamente —, ele es-tava aqui para capturar você.

— Certo — eu fiquei surpresa com a súbitapontada de dor que senti. — Claro — e,dizendo isso, me levantei, caminhando parame afastar de Polly e esconder as súbitas lá-grimas que surgiam nos meus olhos. Eu de-testava perceber que apenas o fato de ouvir avoz dele, de saber que ele estava por perto,pudesse me fazer chorar. Depois de tudo queaconteceu, eu me odiava por ainda me im-portar se os sentimentos dele por mim eramverdadeiros ou não.

— Você está bem? — Polly perguntou, seaproximando.

Virei-me para ela e fiz que sim com acabeça, piscando rápido para afastar aslágrimas.

— Não quero ir embora — eu disse comsinceridade.

Polly abaixou o olhar.— Eu também não quero que você vá.

346/456

— Detesto fugir sabendo que há umachance de meus irmãos estarem vivos, deeles poderem ser salvos.

— Entendo — Polly concordou. — Mas vo-cê vai ter que confiar no meu pai, vai ter queconfiar em mim, quando dizemos que fare-mos tudo o que pudermos para salvar a vidadeles. Mas primeiro precisamos salvar a sua.

Então ouvimos um barulho atrás de nós,vindo da floresta. Abaixamo-nos atrás domuro, apertando as mãos uma da outra en-quanto esperávamos, ouvindo passos pesad-os se aproximarem e depois pararem. Emseguida, ouvimos o som alto de galhos sendoarrancados e esmagados.

Lentamente, levantei alguns poucos centí-metros, espiando por cima do muro.Pastando nas árvores ao lado do bosque es-tava um cavalo alto, branco e preto.

— Calígula!Pulei o muro e corri na direção dela. En-

quanto acariciava a crina embaraçada da

347/456

égua, senti uma única lágrima de alegriaescorrer pela minha bochecha. Contra toda alógica, ela tinha ficado por perto, como se es-tivesse me esperando. Hoje eu não iria em-bora sozinha de Balmoral: levaria Calígulacomigo para o País de Gales e para o quemais viesse pela frente.

348/456

27

QUANDO POLLY E EU NOSAPROXIMAMOS DO CASTELOMONTADAS em Calígula, vimos algumascentenas de homens e mulheres de pé dolado de fora. Puxei a égua para que elaparasse.

Aquelas pessoas eram soldados e faziamparte das tropas que o pai de Polly tinha ar-regimentado nas cidades vizinhas. Algunsempunhavam armas confeccionadas pelosferreiros, como Polly havia mencionado.Outros seguravam arcos feitos em casa, alémde flechas e espadas. Todos usavam as pró-prias roupas, diferentemente dos uniformescom brilhantes botões de bronze que a Nova

Guarda ostentava. Meu coração se apertouquando constatei quão poucos eles eram. Océu estava escurecendo e o ar estava úmidocom a chuva que estava por vir. Aquela seriaminha última hora em casa.

Pensei na longa viagem noite adentro até oPaís de Gales. As estradas seriam arriscadas:haveria bandidos, Andarilhos e, o pior detudo, o exército de Hollister. Não haviagarantia nenhuma de que chegaríamos vivosao nosso destino. Mas pelo menos eu tinhaCalígula comigo.

De pé nos degraus do castelo, acima damultidão, estava o general Wallace. Ele tinhaenvelhecido rápido desde o último jantar deEstado no palácio de Buckingham, no anoanterior. A queda do governo e a morte dorei tinham claramente pesado para ele,deixando-lhe o cabelo cinza-prateado e ol-heiras escuras sob os olhos.

Quando nos viu chegando, o general deuum passo à frente para nos receber.

350/456

— Princesa — ele disse, fazendo uma re-verência. — Sinto muito.

Clara apareceu ao lado dele, e eu rapida-mente desci de Calígula para correr nadireção dela. Meu coração disparou.

— Sente muito? — eu perguntei, a vozentrecortada.

Clara me puxou para perto dela, me ab-raçando. As lágrimas da mãe de Polly caíamno meu cabelo e nas minhas costas.

— Eles acabaram de anunciar... Saiu no rá-dio... — ela cobriu o rosto e se inclinou, en-gasgando de tanto soluçar, enquanto Georgecorria para ela, ainda segurando um rádiocom uma antena inclinada, de aparênciadesgastada.

— Cornelius Hollister anunciou a execuçãodos seus irmãos — ele disse de forma solene— para este domingo de manhã.

— Não posso acreditar que vivi paratestemunhar isso — o general disse baixinhopara si. — O fim da casa de Windsor — uma

351/456

única lágrima escapou dos olhos dele. Todosos soldados da Resistência estavam chor-ando ou gritando, agitando os braços — to-dos menos eu.

Fiquei parada, em estado de choque, atrásde Calígula, olhando para o rádio em totalincredulidade. Lágrimas, gritos — qualquercoisa teria sido melhor do que ficar aliparada, congelada, imaginando minha irmãe meu irmãozinho com nós em volta dopescoço, seus corpos flácidos penduradoscontra o horizonte de Londres enquanto mil-hares de pessoas assistiam.

Polly se aproximou e me abraçouapertado.

— A culpa é minha — ela disse chorando.— Eu disse a eles que você estava morta.Pensei que eles iam nos deixar em paz, massó piorei tudo...

— Você só estava tentando me ajudar.Você não sabia o que ia acontecer — eu

352/456

segurei o corpo trêmulo de Polly, tentandoreconfortá-la.

Continuei a olhar para o rádio, ouvindo olocutor listar todas as vilas, vilarejos e cid-ades que o exército de Hollister tinha con-quistado. Clara e George olharam para Pollye fizeram um gesto para que ela me levassepara a lateral do castelo. Clara me entregouuma pequena bolsa com algumas coisas quetinha embalado para minha viagem: roupasquentes e sanduíches para mim e para ogeneral.

— Eliza — George começou a dizer —, sóestamos fazendo isso pela sua segurança.

Aquiesci.— Já está quase de noite — Polly disse em

meio às lágrimas.Clara colocou as mãos nos meus ombros.— Eles vão ter comida e roupas para você

lá. As coisas estão melhores no País de Gales.Balancei a cabeça, mordendo os lábios. Ol-

hei para cima e vi o general caminhando na

353/456

minha direção, usando um uniforme do ex-ército e puxando o cavalo dele pelas rédeas.Ele carregava duas armas.

— Sinto muito — ele me disse. — Estivepresente nos batizados de vocês três. Seu paiera um bom homem, princesa, e foi umahonra servi-lo — ele balançou a cabeça lenta-mente, olhando para cima, para o céu que es-curecia. — Devemos ir. Temos um longocaminho pela frente.

Concordei de novo. Queria dizer algumacoisa, mas minha voz estava presa nagarganta.

Polly me abraçou com tanta força quecambaleei para trás. Clara e George deramadeus em seguida, mas eu não podia olhá-losnos olhos. As duas pessoas de quem eu maisqueria me despedir nem sequer estavam ali.E até que eu chegasse ao País de Gales, elasestariam mortas.

354/456

Montei em Calígula. Do alto da égua pudever que as tropas de Resistência pareciam es-tar debandando.

— O que eles vão fazer agora? — eu per-guntei para o general.

— Eles vão se entregar. Estas pessoas têmcrianças pequenas e pais idosos de quemprecisam cuidar. Elas não querem sacrificara própria vida se não há chance — ele olhoupara mim com tristeza. — Sinto muito ascoisas terem chegado a esse ponto, princesa.Nunca pensei que um dia veria a Inglaterraser tomada por um ditador, nem mesmo nosmeus piores pesadelos.

Olhei para o exército debandando: homense mulheres choravam, se abraçavam e se des-pediam. Aquela era a última esperança daInglaterra, e agora tudo tinha acabado. Euestava vendo o fim antes mesmo de elechegar. Estávamos nos rendendo ao reino deterror de Cornelius Hollister.

355/456

Segurei Calígula com firmeza, piscandorápido para segurar as lágrimas. Eu entendiaa escolha deles. Por que eles arriscariam aprópria vida se eu não estava arriscando aminha? Por mais que quisessem umaInglaterra livre, eles queriam mais aindaficar vivos. Passar a vida ao lado das pessoasque amavam, ao lado da família. Aquilo era oque eu mais queria no mundo também. E, noentanto, tinha uma voz dentro de mim quegritava: Não acabou. Não ainda.

Olhei para os olhos cansados do general.— Com todo o respeito, general, não posso

seguir suas ordens. Não vou para o País deGales. Vou ficar, e vou lutar, mesmo que issosignifique que serei a única a fazê-lo.

Polly se engasgou. Uma lenta onda de pre-ocupação se espalhou pelo rosto do general.

— Eliza, você precisa ir! — Clara protestou.— É o único jeito de você estar segura.

— Eu não tenho que fazer nada! — eugritei. Lembrei-me de Mary me

356/456

confrontando na Torre de Aço, tomando umadecisão difícil quando eu não tive capacidadede tomá-la. — Meus irmãos estão presos, oque faz de mim a realeza operante. Nãoaceito ordens de ninguém. Agora, vocês po-dem se juntar a mim na minha luta ou serender a Hollister.

Antes que qualquer pessoa pudesse pro-ferir qualquer palavra, apertei as costelas deCalígula e ela começou a trotar na direçãodos soldados. Endireitei o corpo, jogando osombros para trás, e olhei para o exército,bloqueando-lhes a passagem antes que de-bandassem por completo.

— Por favor! Esperem! Eu sei que os riscossão grandes, mas, por favor, por favor, nãodesistam agora.

A multidão começou a cochichar entre sienquanto eu me aproximava. Os sussurros emurmúrios aumentaram rapidamente devolume.

357/456

— É Eliza Windsor! — uma das mulheresgritou, apontando para mim do meio damultidão.

— A princesa!— Ela está viva!— Sim, estou viva — eu gritei —, e não vou

ficar sentada assistindo ao meu amado paísser destruído. Se vocês quiserem lutar, eutambém quero!

Troquei olhares com várias pessoas namultidão: uma mãe com uma menininha nocolo, um pai com dois garotos.

— Peço desculpas a todas as pessoas naInglaterra que passaram fome enquanto tín-hamos comida extra no palácio. Nósdeveríamos tê-los convidado a entrar, dever-íamos ter dividido cada pedaço do alimentoque possuíamos com vocês — eu engoli emseco, fazendo uma pausa enquanto meus ol-hos percorriam os rostos daquelas pessoas.— Por favor, perdoem minha família. E meperdoem também. Eu nunca soube o que era

358/456

passar fome, não ter onde dormir, estar soz-inha, mas agora eu sei, e vou lutar para tercerteza de que nenhum dos cidadãos daInglaterra tenha que ficar sem comida ou ab-rigo novamente.

A multidão ficou em silêncio. Meus olhospulavam nervosamente de rosto em rosto.Agora que não estava mais falando, podiaouvir as batidas do meu coração.

— Eu ainda quero lutar contra eles — umvelho fazendeiro gritou. — Eles queimaramminha casa enquanto minha mulher dormialá dentro. Ela morreu.

Mais pessoas começaram a partilharhistórias sobre pilhagens e assassinatoscometidos pelo exército de Hollister, até queo exército inteiro parecia estar gritando.

— Se a princesa vai se juntar às tropas — ogeneral disse, se aproximando montado nocavalo dele —, então eu também vou!

O exército rugiu em aprovação, brandindoalto as armas que ainda seguravam.

359/456

— Podemos ser poucos, nossas armas po-dem ser velhas, mas temos a verdade e abondade ao nosso lado — eu gritei. — E odesejo de viver em um mundo melhor. Quemquiser se unir a nós, pegue suas armas e nosencontre aqui ao raiar do sol. Depois seguire-mos para Newcastle!

360/456

28

O CÉU AO AMANHECER ESTAVA CINZA.ENQUANTO NOS preparávamos para abatalha, os soldados se despediam dos entesqueridos. Uma mãe chorosa dava adeus àfilha pequena. Um pai velhinho dava sua facade caça para o filho adolescente.

Fiquei feliz ao ver Eoghan, nosso antigocavalariço. A mulher dele tinha morridomuitos anos atrás, deixando-o com dois fil-hos pequenos. Mas, apesar de também medoer vê-lo deixar os filhos sob os cuidados daavó enquanto arriscava a vida em umabatalha, eu ficava agradecida a cada rosto fa-miliar que se juntava à minha luta.

Uma pequena figura montada em umaégua ruiva trotou até mim.

— O que você está fazendo aqui, Polly? —eu perguntei.

— Eu vou com você — ela respondeu.— Polly...— O país também é meu, Eliza. Eu quero

lutar — e, dizendo isso, Polly se juntou àlinha de frente das tropas, onde ficavam oshomens mais fortes. Não consegui esconderminha preocupação. Ela era tão pequena!Uma pitada de menina cavalgando em umaégua frágil. Respirei fundo, olhando para océu. Por favor, mantenha-a em segurança,eu pedi. Por favor, mantenha todos nós emsegurança.

O ar fresco da manhã soprou sobre nós en-quanto cavalgávamos no lusco-fusco damanhã rumo a Newcastle. A cidade tinha omaior número de minas de carvão em fun-cionamento no país, e possuía um estratégicoporto fluvial. Sem ela, o general explicou,

362/456

seria muito difícil para Hollister conquistar onorte.

Nós sabíamos que o exército dele eragrande, mas tínhamos o elemento surpresa anosso favor. Eles não podiam imaginarquanto nosso exército tinha crescido, quan-tos recrutas novos tinham se voluntariadonaquele amanhecer do lado de fora dosportões do castelo, ansiosos por se unirem àluta. Ainda assim, enquanto olhava por sobreo ombro para as tropas a cavalo, eu desejavaque tivéssemos mais homens e mulheres aonosso lado.

Calígula tomou a frente, com o generallogo atrás de nós. Ele tinha mapeado o cam-inho com os lugares e vilarejos com estala-gens ou poços onde poderíamos parar paradescansar e dar de beber para os cavalos. Pormais que o tempo tivesse sido bom durante odia, a noite estava fria, e a temperatura iabaixando rapidamente à medida que o sol sepunha.

363/456

Eu sabia que estaríamos em menornúmero, mas tinha fé nas táticas do general.Ele estava mandando tropas de guerrilha nafrente, a fim de emboscarem a primeira linhade defesa da Nova Guarda, na expectativa deenfraquecer significativamente as forças deHollister antes da batalha em Newcastle.

Enquanto saíamos de um túnel perto dacidade de Baddoch, vimos um bando de ca-valeiros na estrada. Puxei as rédeas deCalígula com firmeza e todos atrás de mimdiminuíram a velocidade.

— O que está acontecendo? — eu pergunteipara Eoghan, que tinha parado ao meu lado.

— Não sei, mas esteja preparada para lutar— ele apertou os olhos, tentando enxergaralgo na escuridão. Tudo o que dava para verna estrada à nossa frente eram as chamasamarelas nas lamparinas dos cavaleiros.

— Preparar armas — o general ordenou, eo ar se encheu com o som de armas sendoengatilhadas, espadas, desembainhadas, e de

364/456

flechas sendo colocadas nos arcos. Segureifirme na minha espada.

O meu forte era cavalgar, mas, ao ter deencarar uma estrada bloqueada por homensa cavalo, eu não tinha certeza sobre que tát-ica usar. Nossas tropas deveriam ir com tudopara cima deles? Ou deveríamos usar umaabordagem mais pacífica?

Eoghan se movimentava lentamente àminha esquerda, a arma em punho. — Estouna sua cobertura — ele disse, virando-se paramim.

— Também estou na sua — eu disse,apesar de estar preocupada.

Quando nos aproximamos do grandegrupo de cavaleiros, me preparei mental-mente para o pior.

— Um tiro, um movimento ofensivo, e par-timos para cima — o general disse com vozbaixa.

— Espere atrás de nós — Eoghan me in-struiu, e eu segurei as rédeas de Calígula,

365/456

deixando ele e o general saírem na frente, nadireção das luzes.

— Quem está aí? — o general perguntoucom um traço de preocupação na voz.

— Viemos nos juntar às tropas de Res-istência — uma figura respondeu. Olhei bemna escuridão e vi um homem barbadomontado em um cavalo escuro.

— Vocês estão aqui para se juntar à Res-istência? — o general perguntou. — Estãoarmados?

— Juntamos o que pudemos — o homemrespondeu. — Alguns de nós têm armas. Emgeral, temos cassetetes de metal e algunscanos de chumbo.

Resolvi tomar à frente e acolher o grupo denovos recrutas.

— Agradecemos toda e qualquer ajuda. Porfavor, juntem-se a nós.

As tropas comemoraram alto enquanto osnovos recrutas se juntavam às nossas fileiras.Levei Calígula para circular em volta do

366/456

grupo, procurando Polly. Queria ver a ex-pressão no rosto dela. Com a chegada dosnovos voluntários, nosso exército haviaquase duplicado de tamanho.

Ela estava no meio de uma multidão.Calígula abriu caminho facilmente entre aspessoas e pude levar minha amiga para afrente comigo, inclinando-me para abraçá-lae sentindo de novo como ela era pequenina.As costelas de Polly apareciam sob a camisaque ela estava usando. Ao ver isso, me veio àmente a imagem horrível de uma sevilhanaatingindo-a, e desejei ter algum tipo de ar-madura para ela.

George cavalgava ao lado da filha.— Olhe tudo isso, pai — ela comentou com

um sorriso orgulhoso nos lábios. Ele sorriude volta, mas era um sorriso fraco, em quedemonstrava claramente estar preocupadocom o fato de Polly e eu estarmos no meio docombate.

367/456

— Quietos, por favor — o general pediu.Então o silêncio caiu sobre todos. — Quemnão tiver armas nem cavalos — ele continuou—, pode se juntar às tropas de guerrilha, cujamissão é distrair e dividir o inimigo damaneira que puderem. As armas de vocêsserão qualquer coisa que encontrarem: cor-das, pedras, sevilhanas roubadas. Mas maisdo que tudo: seus cérebros. Nós apreciamoscada um de vocês, mas essa é uma tarefaperigosa e quero que vocês saibam dos riscosantes de decidirem realmente se juntar anós. Ao contrário de Hollister, não forçamosninguém a entrar para nosso exército.

Outra onda de aplausos e comemoraçõescontaminava o grupo a cada homem e mulh-er que se juntava a nós.

Quando chegamos à região sul, o mesmoacontecia em cada cidade e vilarejo de quenos aproximávamos. Do antigo posto do ex-ército de Blackburn vieram grupos de cen-tenas, talvez mil voluntários, todos

368/456

montados a cavalo e armados. Na cidade deClavern, a maioria era jovem ou velha de-mais para lutar, mas eles ficaram ao lado daestrada para nos entregar pacotes de comida,cantis de água e nos incentivar a seguir emfrente. Novos recrutas, em grupos de dois,quatro ou vinte pessoas, apareciam noscentros das cidades, nas bifurcações das es-tradas, nos cruzamentos e embaixo depontes. E os números do nosso exércitocomeçaram a crescer.

Na terceira manhã, os arcos de metal daponte de Tyne — uma proeza da engenhariaque, contra todas as expectativas, sobre-vivera aos Dezessete Dias — já eram visíveisna luz suave e acinzentada. Tínhamoschegado a Newcastle. Olhei por sobre o om-bro para os homens e mulheres determina-dos e unidos por uma única causa e me per-guntei se estávamos marchando para amorte.

369/456

Assim que nossos batedores inspecionaram apaisagem em volta e as estradas que levavamaté a cidade na direção do exército de Hol-lister, o general Wallace anunciou que nosdividiríamos em quatro grupos. Iríamos cer-car a cidade por todos os lados e atacar deuma só vez, ao soar de um sinal. — Espadasna mão e armas engatilhadas — ele disse. —Agora mexam-se. Rápido. A surpresa é nossamaior vantagem!

Não por acidente, Eoghan ficou no mesmogrupo que Polly e eu. Subimos a colina dolado de fora da cidade rapidamente, equando chegamos ao topo, Eoghan me pas-sou um par de binóculos. Pude ver os solda-dos de Hollister, a maioria ainda dormindo,mas alguns já começando a acender o fogopara preparar o café da manhã. Eles estavamdesarmados, e os cavalos, ainda amarrados.Calígula se movia nervosamente embaixo demim, e eu sabia que ela sentia que a hora dabatalha estava se aproximando.

370/456

— Shhhh — eu sussurrei para ela,passando-lhe a mão no pescoço para acalmá-la.

E então soou o sinal. Era hora de ir.Respirei fundo. Soltei as rédeas da égua e

empunhei a espada com firmeza. Eoghan fezum sinal com a cabeça e disparamos como sefôssemos um só. Senti de repente que eufazia parte de algo muito maior que eu, comose estivesse sendo levada por uma maréforte. Eu vi o choque — e o medo — no rostodos nossos inimigos enquanto eles corriampara procurar as armas antes que nossatropa varresse o acampamento deles comouma onda.

Alguns acharam rifles e começaram a atir-ar. Uma bala passou cortando o ar, errandominha cabeça por milímetros e quase mecortando a orelha. Abaixei a cabeça,encostando-a na crina de Calígula. Os cascosdela eram um borrão. Quando nossas tropas

371/456

se chocaram com as de Hollister, tudo virouum caos.

Calígula e eu nos movíamos como se fôsse-mos um único ser. Depois da nossa longajornada para a Escócia, em que a cavalgueisem sela, ela estava tão atenta aos meus mín-imos movimentos e mudanças de peso quetudo que eu precisava fazer era pensar emalgo que ela parecia entender o que eu quer-ia. Ela sabia quando girar e quando parar,deixando-me livre para me concentrar na es-pada na minha mão direita.

Eu golpeava e bloqueava, sempre con-sciente de Eoghan à minha esquerda e dePolly à minha direita. Eoghan era um trunfoincrível. Ele estava roubando as armas damaioria dos soldados que matava, acumu-lando para nós uma grande coleção de sevil-hanas e pistolas.

Olhei na direção das tendas, onde o exér-cito de Hollister estava no meio do caos. Amaior parte dos cavalos de guerra ainda

372/456

estava amarrada — os soldados não deviamter tido tempo de selá-los com toda aquelaarmadura complicada e apetrechos de metal.Eu queria soltá-los. Isso iria destruir a cava-laria de Hollister. Além disso, aqueles ani-mais mereciam viver como Calígula: livres esem dor.

Calígula parecia relutante em se mover nadireção deles, mas ela fez o que eu queria ese aproximou do local onde os animais es-tavam enfileirados. Inclinei-me e puxei es-taca por estaca, arrancando-as da terra comoraízes entranhadas. Os cavalos grunhiram ecorreram em todas as direções. Um deles, to-do branco e com olhos vermelhos raivosos,se virou e topou com um soldado segurandoarreios e correndo na sua direção. O animalo pisoteou até a morte.

Nesse momento, um dos soldados seaproximou de mim com uma arma na mão.Ele a levantou e pude ver que mirava direta-mente na minha testa. Agarrei a espada, mas

373/456

sabia que estaria morta antes de acertá-lo,pois ele já estava perto demais.

Tudo aconteceu ao mesmo tempo: eleatirou enquanto Calígula virava de costaspara coiceá-lo. Ela se movimentou rápido,derrubando o soldado, enquanto o tiro faziaum barulho em algum lugar atrás da minhacabeça. O homem caído, meio dobrado sobresi mesmo, parecia ainda estar respirando.Ainda montada em Calígula, dei meia-volta eretornei à batalha, incapaz de me forçar aacabar com ele.

Meus olhos encontraram os de Polly. Elaparecia tão pequena e indefesa em cima daégua ruiva e alta! Onde estava Eoghan?Então a vi se inclinar, ajudando alguém quetinha caído no chão, ficando completamenteindefesa. Percebi que era George. Ele tinhasido ferido. Corri com Calígula na direçãodela, a espada em riste.

Mas outro cavaleiro também estava cor-rendo na direção de Polly. Ele se aproximou

374/456

por trás dela, mirando a sevilhana na partede trás da cabeça dela.

— Polly! — eu gritei, mas ela não me ouviu.Disparei na direção dela, atingindo inimigosà esquerda e à direita, tentando abrir cam-inho no meio da batalha. Tudo em que euconseguia pensar era em chegar até minhaamiga.

Bem a tempo, consegui saltar na frentedela e bloquear o ataque do cavaleiro. Eleficou tentando me acertar, mas eu revidavatodos os golpes, alimentada por um feroz in-stinto protetor. Até que um dos meus golpeso atingiu com tanta forca que ele tomboupara trás, caindo do cavalo.

Olhei para Polly. Ela estava puxando o paipara a própria sela, completamente alheia aoque tinha acabado de acontecer. Mesmo nomeio de tudo aquilo, senti uma pontada detristeza e inveja. Eu queria poder ter feito omesmo pelo meu pai quando ele caiu san-grando no chão.

375/456

Era meio-dia quando a Nova Guarda bateuem retirada, fugindo para as estradas emdireção a Londres. As forças de Resistênciatinham sofrido alguns ferimentos, maspouquíssimas baixas. Exaustos, mas anima-dos, seguimos também para Londres, a fimde lutar a próxima batalha.

Cavalgávamos devagar pelos caminhossinuosos e estreitos da floresta, evitando arodovia. A cada pequena cidade por quepassávamos, grupos de pessoas acenavampara nós, nos encorajando. Rumores sobrenossa vitória já tinham se espalhado. Ondequer que fôssemos, as pessoas nos ofereciamcomida, cobertores e alimento para oscavalos.

Em um vilarejo, sentamo-nos no gramadodo lado de fora de uma taverna, cercados porum murmúrio de animação, enquanto odono do estabelecimento nos oferecia coposde água e de cerveja gelada. Apesar de euquerer me unir às celebrações, um peso no

376/456

coração me impedia: eu não conseguia melivrar da imagem de cordas sendo colocadasno pescoço dos meus irmãos. Estávamos naquarta-feira. Em poucos dias eles estariammortos e Cornelius Hollister se coroaria rei.

Senti alguém me tocar no ombro. Era umamenininha de uns 5 ou 6 anos. Ela estava de-scalça e usava um sujo vestido branco deverão.

— Princesa Eliza? — ela disse fazendo umareverência, segurando os dois lados dovestido enquanto baixava a cabeça. O cabelolouro dela era tão fino que os raios do solpassavam através dele. — Para você — eladisse, tirando uma pequena caixa azul-mar-inho do bolso e estendendo-a para mim.

Consegui dar um sorriso fraco.— Obrigada.Com outra reverência, ela se afastou, desa-

parecendo na multidão.Olhei para a caixinha, segurando-a com a

ponta dos dedos. Minha curiosidade venceu

377/456

e eu abri a caixa. Era um relicário, e eu en-gasguei quando a luz iluminou o ouro. Pare-cia idêntico ao que eu tinha usado a maiorparte da minha vida. Com dedos trêmulos,eu o abri. Eu não ousava ter esperançasquanto ao que iria encontrar dentro dele.

Uma lágrima brotou nos meus olhos eescorregou pelas minhas bochechas. Eu con-hecia aquela foto bem demais. O cabelolongo e escuro, os melancólicos olhos azuis-claros. Era minha mãe.

Levantei o olhar em busca da garota, paraperguntar onde ela tinha conseguido aquilo,mas ela havia sumido. Era impossível — ummilagre, na verdade — pensar que meu rel-icário tinha sido trocado pelos Coletores e re-feito o caminho para o interior da Escócia ede volta para mim. Como? Mas quando opendurei no pescoço, enfiando-o cuida-dosamente por baixo da camisa, comecei asentir leves pontadas de esperança. Se a fotoda minha mãe, contra todas as expectativas,

378/456

havia conseguido encontrar o caminho devolta para mim, então talvez minha famíliatambém pudesse encontrar o caminho devolta para casa.

Cavalgamos dia e noite, e cada vez maisvoluntários por toda a Escócia se juntavam anós. Rumores sobre a execução em breve dosmeus irmãos e sobre nossa recente vitóriatinham se espalhado rapidamente. Quandoalcançamos os arredores de Londres nasexta-feira à noite, tínhamos ganhado o re-forço de milhares de homens e mulheres.Possuíamos, finalmente, um exército deverdade.

Ao contornarmos o sopé de umamontanha, olhei para trás, para a fila de ca-valeiros atrás de mim, tão longa que desa-parecia ao longe. Pela primeira vez, acrediteique podíamos ter uma chance na luta.

379/456

29

A NOITE ESTAVA BEM ESCURA. A LUACOBERTA DE NUVENS ameaçava chuva.Um vento forte e excessivamente friosoprava do norte. Bem longe, sobre asmontanhas, riscos de fogo acendiam o céu edesapareciam ao atingir o chão. Cavalgamospor caminhos estreitos da floresta até que ogeneral nos levou a uma clareira deserta,onde havia apenas casas queimadas e aban-donadas. Fios elétricos soltos, agora inofens-ivos, se agitavam nas rajadas de vento. Nósdesmontamos e levamos os cavalos por umaporta do que parecia ter sido uma casa detijolos.

Na parede de entrada, uma fileira de gan-chos, cada um deles etiquetado com o nomede uma criança, pendia de uma fileira denichos de madeira. Percebi que estávamosem uma escola abandonada. Os banheiroseram baixos e pequenos, as lousas estavamcobertas de poeira, e filas de pequenascarteiras e cadeiras estavam quebradas etombadas. Atrás da escola havia um jardimcercado, onde as tropas de guerrilha e desolo montaram tendas de dormir e deenfermaria.

Uma tenda branca se destacava: era ondeClara cuidava dos feridos. O pior era umhomem que havia sido atingido por umasevilhana. Ele estava deitado na tenda,rangendo os dentes, enquanto Clara extraía aarma suja de sangue do abdome dele.

Nós nos juntamos na tenda principal, ondecanecas com água quente e algumas poucasfolhas de chá eram distribuídas. O generalWallace estava sentado ao lado do rádio. A

381/456

animação de antes havia virado exaustão eeu tinha medo do que ia ouvir. Uma nova vozsurgiu das ondas do rádio, uma voz que ime-diatamente reconheci como sendo de Cor-nelius Hollister.

— Nossas perdas recentes na Batalha deNewcastle não vão nos derrotar. A execuçãodos Windsor remanescentes acontecerácomo planejada, no domingo de manhã,seguida pela minha imediata coroação comorei da Inglaterra.

Um silêncio repleto de medo caiu sobre astropas de Resistência ao ouvir aquelas palav-ras. Até mesmo a voz de Hollister soava ma-ligna e ameaçadora.

O general Wallace rapidamente desligou orádio.

— Não o deixem assustar vocês. Nósvencemos a batalha em Newcastle e amanhãfaremos o mesmo. Vamos marchar para Lon-dres juntos e atacar a Torre. Mas agora pre-cisamos descansar.

382/456

Os soldados se recolheram na área dedormir, onde tiraram as botas e checaram asarmas, escondendo-as embaixo das cobertas.Deitei ao lado de Polly em uma lona, apoi-ando a cabeça no ombro dela. Era uma noitefria, mas a tenda estava quente com o calordas pessoas e das fogueiras que aindaqueimavam em volta do acampamento. Logoos soldados pararam de se mexer e passarama respirar pesadamente.

— Você deve ter tanto orgulho do seu pai— eu disse para Polly. — Ele ajudou acomeçar todo esse exército da Resistência.

— Tenho sim — ela respondeu meiosonolenta. — E tenho orgulho de você tam-bém, Eliza. Você podia estar dormindo emuma cama de verdade agora, sob um teto deverdade, a salvo. Você podia ter ido para oPaís de Gales. Mas você escolheu ficar elutar.

Olhei para cima, para o céu sem estrelas,pensando em Mary e em Jamie. Meu maior

383/456

medo era que chegássemos tarde demaispara salvá-los.

— Eu queria que o povo britânico tivessemais orgulho do meu pai — sussurrei. Eununca tinha falado em voz alta aquelas pa-lavras antes, e senti uma dor no coração aodizê-las. — Eu queria que eu mesma tivessemais orgulho do meu pai. O legado dele foium país destruído. Mesmo que a Inglaterrasobreviva a tudo isso, ele sempre será lem-brado como o rei que quase nos fez perdertudo — então me lembrei de uma noite na úl-tima primavera, durante uma reunião noPalácio de Buckingham com todos os chefesde governo. Mary e eu estávamos servindoaperitivos e taças de vinho tinto e branco,brincando de anfitriãs. Era o que a gentemais gostava de fazer nas festas do palácio.Uma discussão irrompeu entre o primeiro-ministro, Charles Bellson, e meu pai. Oprimeiro-ministro estava tentando avisá-lode um “problema crescente”, enquanto meu

384/456

pai se manteve sentado no sofá, fumandocharuto e bebericando vinho vintage. “Isso éum absurdo. Vamos mudar de assunto”, meupai disse.

O primeiro-ministro estava tentandoconvencê-lo a entregar a última parte dasterras em torno de Balmoral. Papaicostumava chamá-las de “o Bosque deMary”. Diziam que havia petróleo e cádmiono solo, mas que a floresta seria arruinadano processo de extração. Meu pai se levan-tou, quase com lágrimas nos olhos. O bosqueera uma das últimas propriedades particu-lares da Família Real. Não pertenciam aoEstado inglês. E entregá-las seria admitir aderrota. Meu pai não estava disposto a fazeraquilo. Ele se virou para o primeiro-ministroe disse: “Por favor, você está estragando afesta.”

Polly apertou minha mão.— Ele era um homem bom e gentil. Só não

queria começar uma guerra. E os Dezessete

385/456

Dias não tiveram nada a ver com ele. Ele nãofazia ideia do que iria acontecer — ninguémfazia.

— Eu sei — eu disse. Talvez ele não tivessesido o melhor rei, pensei, mas era um bomhomem e um bom pai. Não são apenassoldados que morrem nas guerras, ele cos-tumava dizer, os civis também morrem. Cri-anças, mães, pais, avós. Não existia umaguerra segura, e por isso talvez ele nuncatenha começado uma contra Cornelius Hol-lister. — Mas eu queria que minha famíliativesse feito mais.

— Vocês farão — Polly murmurou. — Maryvai ser uma ótima rainha, e você é a melhorprincesa que este país já viu. Agora durmaum pouco. Precisamos estar de pé daqui apoucas horas — e dizendo isso ela virou delado, puxando os cobertores até o queixo.Logo ouvi o som constante e baixo da respir-ação dela.

386/456

Eu me sentia exausta, meu corpo estavapesado como chumbo, mas quando fechavaos olhos me descobria incapaz de dormir. Aexecução dos meus irmãos aconteceria emquestão de horas. Peguei o suéter que estavausando como travesseiro e amarrei as botas,me mexendo com cuidado para não acordarPolly. Andei na ponta dos pés até a porta.Cada um daqueles homens e mulheres tinhaum coração batendo no peito. Cada um delesera mãe ou pai de alguém, irmã ou irmão,filha ou filho. E cada um deles era amadoprofundamente do jeito que eu amava Marye Jamie.

Caminhei rápido na direção do ar frio danoite, respirando profundamente, com es-perança de tirar a preocupação da cabeça. Abatalha, a invasão da Torre de Aço, deixarnossas tropas vivas, tirar Mary e Jamie de lá.Tínhamos vencido a Batalha de Newcastle,mas eu sabia que as forças verdadeiras deHollister estavam nos esperando em

387/456

Londres. Cobri o rosto com as mãos, tent-ando chorar. Eu precisava de algum tipo dealívio.

Vi um brilho no escuro, a chama de umfósforo se mexendo para acender uma tocha.O rosto de Eoghan apareceu na escuridão.

— Você está bem? — ele perguntou, vir-ando a cabeça para mim.

Fiquei feliz em vê-lo.— Estou bem — eu respondi, tremendo por

causa do ar frio da noite. — Não consigodormir, só isso.

— Tome — Eoghan colocou o casaco delesobre meus ombros. — Isto vai esquentá-la.

Senti o toque quente e tranquilizador damão dele através do tecido do casaco, e ele sesentou ao meu lado no muro quebrado depedras.

— Acordou preocupada? — Eoghan con-tinuou falando. — Isso acontece toda horacomigo.

388/456

Olhei para ele. Os olhos castanhos deEoghan brilhavam com a luz dançante datocha.

— Entendo agora por que meu pai nuncaquis começar uma guerra — eu disse suave-mente. — Pessoas vão ser mortas amanhã.Pessoas que são amadas, respeitadas e ne-cessárias. Por minha causa.

Eoghan desviou o olhar.— Quando eu era jovem, minha mãe me

mandou para a escola dominical. Eles nosensinaram sobre Céu e Inferno — ele fechoumais a jaqueta; sua respiração era visível noar frio da noite. — Mas quando meu filhonasceu, ele veio ao mundo muito doente. Osmédicos disseram que ele não sobreviveria.Eu o segurei nos braços, apenas rezandopara que vivesse. Pela primeira semana euquase não o larguei. Ele era tão pequeno! Eume lembro de pensar que tipo de mundo éesse onde você pode amar tanto alguém sópara perdê-lo para sempre. Foi quando

389/456

percebi que o Céu não existe em outro lugar,nem o Inferno. É tudo aqui na Terra. Nósvivemos os dois, bem aqui, uns com os out-ros. Só que às vezes temos que passar peloInferno para chegar ao Céu.

Os olhos dele brilharam na luz do fogo.— Estamos todos aqui porque queremos

estar. Cada um desses homens e mulheressabe dos riscos e está disposto a morrer poruma causa. Pela sua causa. Tenha fé nas suastropas, tenha fé no seu país. E, mais do quetudo: tenha fé em você mesma — Eoghan fezuma pausa. — Sei que você pode não ter féneste momento. Mas, até que recobre a sua,acredite em mim quando digo que sei que es-tamos fazendo a coisa certa.

390/456

30

O CÉU E O CONCRETO CINZA SECONFUNDIAM NA ESCURIDÃO do fim damadrugada, quando cavalgávamos silen-ciosamente rumo a Londres. Ao longe, aTorre de Aço se erguia no horizonte da cid-ade. O general nos fez parar, esforçando-separa ver pelos binóculos o que tínhamos àfrente na estrada que levava à Torre.

— As estradas parecem limpas — ele disse,a testa franzida com ceticismo. — As forçasde Hollister parecem ter ido para o sul. Elesestão lutando contra um outro grupo de tro-pas de Resistência que está vindo de lá.

Olhei para Eoghan e Polly. Eles pareciamvisivelmente aliviados ao descobrir que não

estávamos sozinhos. O general tinha ouvidono rádio que batalhas tinham sido travadasno sul por outras forças de Resistência, e queo exército de Hollister tinha sofrido perdasconsideráveis. Eu me sentia esperançosa,mas sabia que não podia subestimar Corneli-us Hollister.

O general reuniu as tropas, dando as últi-mas instruções para a batalha.

— Vamos nos dividir em dois grupos. Euvou liderar a cavalaria para a Torre e a in-fantaria vai lutar contra as tropas ao sul.

Olhei para trás, para os milhares de solda-dos que se espalhavam como um mar. ATorre estava tão perto! Tínhamos chegadotão longe!

— Eu fico com você — Eoghan disse paramim.

— Tudo limpo! — os soldados que estavamde vigia gritaram enquanto cavalgavam nanossa direção.

392/456

O general olhou em volta. Eu esperava an-siosamente, tentando ler a expressão norosto dele, mas o general parecia, mais doque qualquer outra coisa, exausto.

— Atacar a Torre! — ele finalmente gritou.A brigada de cavalos atravessou o Tâmisa.

As estradas estavam limpas, então caval-gamos sem encontrar oposição na direção daTower Bridge. Quando chegamos à Torre,encontramos a ponte levadiça abaixada.Diminuí o passo de Calígula. A cavalaria jáestava atravessando, seguindo o comando dogeneral de invadir a Torre Branca primeiro.Eoghan desapareceu lá dentro, seguido porPolly e George, que foram os primeiros aentrar.

— Esperem! — eu gritei para as tropas. Aponte nunca era deixada abaixada. Algumacoisa estava errada. — Voltem! Voltem!

Mas era tarde demais. Minha voz se per-deu em meio ao som do galope dos cavalos

393/456

atravessando a ponte que rangia. Voltar nãoera mais uma opção.

— Calígula, em frente — e dizendo isso acutuquei na altura das costelas. Ela sentiumeu medo de atravessar a ponte, mas seguiuem frente, com cautela.

De repente, a ponte começou a se mexersob nossos pés. Dentro da Torre, alarmesecoaram, sinalizando que a ponte estavasendo içada. Calígula tentou manter o passo,mas a ponte estava levantando rapidamentee ela escorregou para trás.

Larguei as rédeas, segurando no pescoçode Calígula, confiando completamente nela.A égua dobrou as patas dianteiras e dis-parou, as patas de trás esticadas enquantoela pulava, atravessando o buraco que sealargava a cada momento. Ela aterrissoupesadamente nas patas da frente e deslizoupela rampa que o outro lado da ponteformou.

394/456

Cavalgamos pelos portões abertos, pas-samos pela Torre do Sino, pela Torre Branca,e entramos na Torre Verde, o jardim internocercado onde, ao longo da história, a aristo-cracia tinha sido executada. Ouvi um somalto. Olhei para trás e vi os portões, con-hecidos como Portões dos Traidores, sefechando atrás de nós. Estávamos presosdentro daqueles muros.

Aproximei-me do general Wallace. Ele es-tava olhando freneticamente de um ladopara o outro da Torre, para os portões fecha-dos. Eu sabia o que ele estava pensando. Pre-cisávamos de mais tropas para ganhar e,para sairmos vivos de lá, precisávamos deuma rota de fuga. Sem aviso, os homens deHollister nos atacaram, vindos de todas asdireções.

Desembainhei minha espada enquantouma menina mascarada e de armadura,montada em um cavalo, se aproximou parame atacar. Ela não tinha uma sevilhana, mas

395/456

desferiu um golpe com uma espada longa apoucos centímetros do meu pescoço.Calígula se virou e passou correndo por ela.Então um violento som de trovão e umachuva repentina transformaram o pátio emum lamaçal. A chuva caía pesada, como umvéu, tornando difícil distinguir amigos deinimigos.

Os feridos caíam dos cavalos e corriampara se abrigar dentro da Torre, o que eraum erro fatal: eles nunca conseguiriam sairde lá. Ouvi alguém gritando à minha direita.Quando olhei, vi a garota de armadura vindode novo na minha direção, o cabelo lourosaindo por baixo do elmo. Portia. Ergui aespada, segurando-a com as duas mãos.Calígula deu um giro. Então fiquei de pé nosestribos e baixei a espada com força no om-bro de Portia. A pancada mal a intimidou:ela se recuperou, levantou a espada e veio naminha direção outra vez.

396/456

Polly apareceu do meu lado, batendo emPortia. A pequena égua ruiva da minhaamiga não era páreo para o cavalo de guerrade Portia, mas, como tinha o elemento sur-presa a seu favor, acabou desequilibrando afilha de Hollister. Os olhos de Portia se ar-regalaram, em choque, e ela acabou caindodo cavalo.

— Polly! — eu gritei. Ela sorriu para mim,e o rosto todo dela se iluminou de prazer.Então se virou para voltar para a batalha noexato momento em que uma adaga cruzou oar e se cravou nas costas dela. Dor e sustobrotaram do rosto da minha amiga. Ela es-tendeu a mão lentamente para trás, ap-alpando a adaga. As pálpebras de Polly trem-eram e se fecharam enquanto ela caía nochão.

Vi o sorriso triunfante de Portia, que es-tava agachada no chão lamacento. Não pareipara pensar. Um som alto de campainha meatingiu os ouvidos, ou talvez fosse o rugido

397/456

de Calígula enquanto abria caminho eatacava Portia em cheio. Com os olhos turvospelo ódio, eu a golpeei com a espada, massem ter certeza de tê-la acertado. Mas, comum grito de dor, Portia recuou, cambaleandopara trás como um caranguejo. Ela olhoupara mim quando alcançou uma área para seproteger.

Eu não tinha tempo de persegui-la. Salteide Calígula e corri até Polly. Ela estava deit-ada na lama, em um dos cantos do campo debatalha, os olhos ainda fechados. A cor tinhadesaparecido por completo do seu rosto elábios. Ajoelhei-me ao seu lado e coloquei acabeça dela no meu colo. A pele de Polly es-tava fria e molhada de chuva. A adaga lhetinha atravessado as costelas do lado direitodo corpo. Eu a retirei com cuidado. O sanguejorrava e se misturava à água da chuva.

— Continue respirando — eu disse, segur-ando as mãos dela nas minhas. — Continuerespirando, Polly, por favor!

398/456

Gritei por ajuda, berrando debaixo dachuva, em meio àquele mar de cavalos e cor-pos, com lama espirrando por todos os lados,e espadas e correntes cortando o ar. Mas nin-guém veio. A chuva caía com mais forçaagora, batendo na terra como balas de re-vólver. Puxei Polly para longe da confusão,para um canto escuro.

Ela emitia um som áspero quando res-pirava. Eu não podia deixá-la ir. Não podiadeixá-la morrer.

— Polly — eu tentei esquentar as mãosdela nas minhas. — Por favor, tente... tenterespirar. Eu sei que é doloroso, mas vou ar-ranjar ajuda para você — então corri pelocampo enlameado e encharcado de chuva,procurando algum de nossos soldados.

— Eliza! — Eoghan se colocou entre mim eum soldado que empunhava uma correntecheia de espetos. A corrente não me acertoupor pouco, mas atingiu as costas de Eoghan,arremessando-o para a frente. Ele agarrou

399/456

na crina do cavalo e atirou no soldado com aoutra mão.

— Polly está muito ferida! Precisamos tirá-la daqui — Eoghan se virou ao ouvir minhaspalavras e me seguiu para o lugar onde Pollyestava deitada. Ela ainda respirava, mas osom áspero da respiração tinha piorado. Ol-hei para o campo de batalha, aliviada de verque os portões tinham sido quebrados eabertos.

— Ajude-me a colocá-la em cima deCalígula — eu disse.

— Eu a levo — Eoghan disse isso enquantocolocava Polly na frente dele na sela. — Vocêsegue a gente.

Do outro lado do campo, o generalchamava as tropas para baterem em retirada.Qualquer um que conseguisse escapar fugiupelos portões. O chão estava coberto de cor-pos de homens e mulheres, as roupas en-sopadas de chuva e sujas de lama. Era im-possível discernir nossos soldados dos do

400/456

inimigo. Largados no chão e mutilados, to-dos pareciam iguais.

Cavalguei atrás de Eoghan na direção doportão. Calígula patinava na lama, a crina es-cura encharcada. Senti que ela tremia e sabiaque estava com frio e cansada, mas pres-sionei os calcanhares nas costelas da égua,incitando-a a seguir em frente.

— Vamos lá, garota — eu murmurei paraela. A qualquer momento o exército de Hol-lister iria levantar a ponte levadiça.

Balas e lanças passaram voando por nósna chuva que nos cercava. Então ouvi otilintar de correntes que denunciava que aponte estava sendo içada.

— Corra, Calígula! — eu gritei. Estávamosmuito perto, a poucos metros de distância.Calígula se preparou para pular, mas sua pa-ta posterior esquerda se movia de maneiraestranha. Olhei para trás e vi um longo corteatravessando o flanco da égua. Eu sabia queClara poderia cuidar daquela ferida quando

401/456

voltássemos para o acampamento, entãocontinuei forçando-a a seguir em frente.

Mas no exato momento em que ela puloupara atravessar a ponte, um cavaleiro vooupela chuva, nos derrubando de volta paradentro da Torre. Calígula soltou um rugido.Olhei e vi uma lança cravada no flanco jámachucado dela.

O cavaleiro veio então na minha direção.Eu vi o cabelo louro, os dentes retos, e erguia espada para golpeá-lo. Ele bloqueou meuataque e, de alguma maneira, conseguiu tirara espada da minha mão. A próxima coisa quevi foi que eu estava no chão, a lâmina dele naminha garganta.

— Quero você viva — Cornelius Hollisterarfou através dos dentes brancos ebrilhantes.

402/456

31

— TRANQUEM-NA NO CALABOUÇO —HOLLISTER ORDENOU para seus homens.Os guardas me agarraram grosseiramente,amarrando minhas mãos atrás das costas eprendendo meus pés com correntes. Entãome arrastaram pelo campo de batalha de-baixo da chuva torrencial. A última coisa quevi quando me puxaram para a Torre Brancafoi Calígula atravessando os portões já quasefechados, a lança ainda cravada no flanco.

A porta foi fechada e as grades de ferrobateram no chão de pedras úmido. Eu estavasozinha no calabouço: uma sala de pedra,com seis metros de altura e sem janelas.

— Ela não vai conseguir escapar desta vez— um dos guardas disse para outro enquantoo som dos passos deles se afastava pelocorredor.

Agarrei as grades e as sacudi em deses-pero, gritando até ficar rouca, mas as barrasde ferro eram sólidas, e ninguém veio emmeu auxílio. Finalmente, desabei no chãoúmido, exausta. Eu me sentia oca, vazia de-mais até para chorar. Mary e Jamie iriammorrer em breve. Saber que eu tinha falhadode novo me atingiu como um soco. Tudo queeu queria àquela altura era me despedirdeles.

Eu me encolhi e deitei de lado, tremendode frio, e tirei o relicário do pescoço. En-quanto olhava para a foto da minha mãe,pensei no que Eoghan estava tentando mefalar sobre fé. Ele queria que eu acreditasseem alguma coisa. Eu acredito em váriascoisas, pensei com um sorriso amargo. Euacreditava que iria morrer amanhã.

404/456

Acreditava que Cornelius Hollister era mau.E acreditava que nunca mais veria meusirmãos de novo.

Eu não tinha certeza de quanto tempotinha se passado quando ouvi barulho dechaves e de passos pesados se aproximandoda minha cela. Levantei-me depressa, aper-tando o rosto contra as grades para tentarenxergar na escuridão. A pequena chamaamarela de uma vela balançava pelocorredor, ficando cada vez mais perto.

— Olá? — eu chamei. — Olá? — não me im-portava quem era. Não me importava se al-guém estava vindo me matar. Apenas mesentia aliviada de saber que veria outra pess-oa antes de tudo terminar. Quem quer quefosse.

O rosto de um guarda, iluminado pelafraca luz da vela, apareceu diante das grades.Era um homem mais velho, o cabelo grisalhoe um rosto duro cheio de rugas. Sem falarnada, ele destravou uma pequena abertura

405/456

entre as grades e me passou uma bandejacom pão e um copo de água.

Depois pigarreou e, mantendo os olhosbaixos, leu alto de um pedaço de papel.

— Vim como enviado oficial de CorneliusHollister para informá-la que amanhã demanhã você será executada ao lado de MaryWindsor e James Windsor. Vim perguntar sevocê tem algum último pedido — a velaclareou o rosto do homem.

— Rupert? — eu perguntei, hesitante. — Évocê?

Ele não disse nada, mantendo os olhosfixos no papel que tinha nas mãos.

— Rupert — eu disse de novo, agora tendoa certeza de que era nosso mordomo, umhomem que conheci por toda a minha vida.— Você não me reconhece?

— Sinto muito — ele disse por fim, levant-ando os olhos para encontrar os meus. — Nanoite em que assaltaram o palácio, elesmataram meu filho mais novo na minha

406/456

frente. Disseram que, se eu resistisse, iammatar minha filha também.

— Eles mataram Spencer? — ele era sóuma criança, menor ainda do que Jamie. Osdois brincavam juntos nos jardins do palácio,cavando a terra para encontrar minhocas efazendo corrida de lesmas na sombra dopomar.

— Sua família foi tão boa para mim. Euqueria... Eu queria poder... — ele balançou acabeça, a voz entrecortada.

— Rupert, você pode me levar até meusirmãos? Por favor? Só quero me despedirdeles.

Rupert olhou para mim através dasgrades. A luz da vela bruxuleava nas cinzasparedes de pedra. Ele balançou a cabeça neg-ativamente e começou a se afastar.

— Sinto muito — eu disse de forma suave.Fiquei olhando para as costas dele. — Sintomuito que ajudar minha família tenhacustado a sua.

407/456

Ele parou por um momento, então se viroupara mim.

— Eu posso tentar, princesa — ele dissepor fim. — Não posso prometer nada, masexistem outros como eu, que se mantêm leaisao rei e ao governo livre.

— Por favor, sim. Por favor, tente — eu im-plorei, minha voz falhando. — Obrigada,Rupert.

Ele destrancou a porta e me levou pelotúnel úmido e labiríntico que levava à TorreBranca e finalmente à Torre de Aço, ondetrês guardas armados vigiavam a entrada.Eles olharam para mim, surpresos.

— Senhores — Rupert disse quando nosaproximamos dos homens. — Eu precisofalar com você por um momento — os doisguardas mais jovens olharam para o guardamais velho, que parecia estar no comando.Ele balançou a cabeça em sinal de con-cordância, e Rupert se inclinou paracochichar-lhe algo no ouvido. O homem

408/456

balançou a cabeça de novo, lentamente. Pen-sei ter visto pena nos olhos dele.

— Eliza Windsor vai vir comigo — a voz dohomem era gentil, mas não era firme porconta da idade.

Os outros dois se afastaram enquanto oguarda me levava pela escada para o topo datorre. Lembrei-me da última vez que tinhasubido aquelas escadas, quando passeiescondida atrás da menina que levava chápara Mary. Eu estava cheia de esperança naépoca, e de certeza de que libertaria Mary eJamie, e de que todos nós ficaríamos livres.Como eu tinha sido boba em pensar que umamenina como eu podia ser mais esperta queum ditador sádico e seu exército de milharesde soldados.

Nossos passos ecoavam na escada de met-al enquanto subíamos cada vez mais paracima. Todas as outras celas pelas quais pas-samos, celas que um dia estiveram abarrota-das, agora estavam vazias. Cornelius

409/456

Hollister já tinha executado os outros pri-sioneiros. Ele estava nos deixando por úl-timo. Sombriamente imaginei como elemataria primeiro Jamie, depois eu, e por fim,em um grand finale, ele mataria Mary, a ver-dadeira rainha da Inglaterra.

Depois ele iria subir na Torre Verde e colo-car a Coroa Real sobre a cabeça, então iria le-vantar os braços e se autoproclamar rei daInglaterra, enquanto nosso sangue realpingava no cadafalso da Torre Verde.

410/456

32

A VELA DO GUARDA JÁ TINHAQUEIMADO QUASE ATÉ O PAVIO quandofinalmente chegamos à cela de Mary e Jamie.Eles estavam sentados juntos à pequenamesa, com um prato de comida na frentedeles, mas não estavam comendo. Em umato de generosidade irônica, o prato estavacheio de coisas luxuosas: queijos, frutas epão macio. Aquela era a última refeiçãodeles.

Parei por um momento no topo da escada,observando-os, incrédula. Talvez fosse umtruque da luz, mas Jamie parecia... saudável.As bochechas dele, que há algumas semanasestavam fundas e secas, agora apareciam

redondas e cheias. O cabelo estava grosso ebrilhante. E ele estava sentado ereto, con-versando animadamente com Mary à mesa.

— Você se lembra de quando papai nos le-vou para pescar, para tentar pegar um peixepara o jantar? E tudo que pescamos foramvairões? — Jamie disse entre risadas.

Mary olhou para cima, os olhos cintilantes.Ela parecia melhor também, como se est-ivesse dormindo bem.

— E aquela vez que você queria um car-rinho de natal? Eliza e eu o colocamos dentrode vinte caixas e você ficou desembalandouma por uma.

— O carrinho ainda está na prateleira domeu quarto... — a voz de Jamie se perdeu. —O que você acha que aconteceu com nossacasa? Você acha que atearam fogo no paláciotodo?

— Lembranças boas. Apenas lembrançasboas — Mary disse para Jamie, como uma

412/456

professora fala para um aluno, segurando amão dele.

Não pude deixar de sorrir. Mesmo na úl-tima noite da nossa vida, Mary ainda era aprotetora, autoritária e carinhosa irmã maisvelha, sempre determinada a separar o bemdo mal. É por isso que ela teria sido umagrande rainha. No reino dela, Mary daria umjeito de restaurar as plantações, reconstruiras cidades, e de consertar tudo que estivessequebrado.

Quando me virei para o guarda, pude vê-loenxugando uma lágrima. Então ele abriu aporta da cela para me deixar entrar.

Mary e Jamie ergueram a cabeça, os olhosarregalados de surpresa.

— Eliza?— Vou deixar vocês ficarem um tempo soz-

inhos. Deus os abençoe — o guarda pareciaquerer dizer mais alguma coisa. Ele hesitou,como se estivesse considerando deixar a celaaberta, nos dando uma chance de escapar.

413/456

Mas depois girou a chave com um suspiro e oferrolho deslizou, trancando a porta como decostume.

Mary me olhou espantada.— Pensamos que você estivesse morta.Jamie correu para meus braços, me

fazendo cambalear para trás, então caímosjuntos no chão. Mary se aproximou e tam-bém nos abraçou.

— Mary, Jamie — eu disse, meus olhos semovendo rapidamente de um para o outro.— O que aconteceu? — estendi a mão paratocar no rosto e no cabelo de Jamie, maravil-hada. A pele dele parecia quente, não fria eúmida como normalmente estava. — Vocêsparecem tão saudáveis!

Mary e Jamie se entreolharam em silêncio.— O quê? — eu perguntei. — O que foi?Mary colocou o dedo sobre os lábios, in-

dicando que eu deveria ficar quieta. Então foiaté a porta da cela e espiou lá fora. O guarda

414/456

não estava muito longe, mas estava de costaspara nós.

— Nós prometemos não contar a ninguém— minha irmã confidenciou.

— Ele disse que seria morto se alguémdescobrisse — Jamie disse.

— Quem seria morto? — eu questionei.Jamie foi até o fino colchão no chão e

puxou um pedaço de musselina que tinhaganhado como cobertor. Em seguida, colo-cou a mão embaixo do colchão e puxou umvidro cor de âmbar, cheio de pequenas pílu-las brancas.

Então colocou o vidro na minha mão.— É um antídoto para o veneno da estrela

negra.Estrela negra. Era o que tinha envenenado

minha mãe quando ela estava grávida deJamie. Olhei para a garrafa, incrédula. Portodos aqueles anos havia um remédio paraaquilo e não sabíamos. Na etiqueta, empequenas letras, estava escrito Laboratórios

415/456

C.H. Claro que de Cornelius Hollister: ohomem que havia inventado a estrela negratambém tinha conseguido obter a cura paraela.

— Quem deu isso para vocês? — euperguntei.

— Um dos soldados.— Qual deles?— Ele nunca nos disse o nome dele —

Mary respondeu. — Não era um dos soldadosde sempre. Ele veio aqui só uma vez, paranos dar o remédio.

— Você se lembra de como ele era? — euperguntei, ansiosa.

— Estava escuro demais para conseguir-mos ver. Ele trouxe à noite, enquanto estáva-mos dormindo. Apenas ouvi alguma coisacair pela abertura da porta.

Eu olhei para a garrafa.— Por que ele daria a cura para vocês

quando sabia que vocês iam morrer de

416/456

qualquer jeito? — eu disse alto, e imediata-mente me arrependi.

— Eliza! — Mary disse em um sussurro ás-pero. Os olhos dela pousaram em Jamie, fi-nalmente saudável, mas sem poder viverpara aproveitar.

— Bom, é verdade — eu concordei, impot-ente, apertando o rosto com as mãos. Pelaprimeira vez na vida Jamie estava saudável.E agora estávamos todos os três juntos, maspela manhã iríamos morrer todos juntostambém.

— Sinto muito — eu gaguejei. — É queparece tão injusto. Tão cruel — eu pareiantes de falar mais.

Mary mordeu o lábio superior, um hábitoque tinha quando estava nervosa ou tent-ando tomar uma decisão.

— Eliza, o que aconteceu? Ouvimos umdos soldados dizer que você tinha escapadoda Torre, mas depois disseram que vocêtinha morrido.

417/456

Sentei-me entre eles na cama, os três demãos dadas. Eles escutavam atentamenteenquanto eu contava sobre o mergulho dotopo da Torre — Mary gritou ao ouvir isso —;o cavalgar para o norte com Calígula; sobre oexército de Resistência; e sobre marchar devolta a Londres. Por fim, lhes contei a re-speito do nosso fracassado ataque à Torrenaquela manhã.

— A última coisa que vi foi Calígula es-capando quando os portões se fecharam. Eespero que Polly sobreviva — eu disse, aper-tando a mão de Mary.

A chama da vela apagou e a cela ficou es-cura. De longe escutávamos o eco do som depassos patrulhando a Torre. Jamie colocou acabeça no meu ombro e eu fechei os olhos,sentindo o cheiro do cabelo dele. Senti meuslábios tremerem, meus olhos se encherem delágrimas, mas me forcei a pensar em coisasboas.

418/456

— Você acha que existe um Céu? — Jamieperguntou, a vozinha dele flutuando naescuridão.

Fiquei parada, com medo de responder,porque não tinha certeza.

— Sim, Jamie — Mary respondeu. — Eamanhã vamos ver mamãe e papai.

— E Bella — eu acrescentei. — Ela vai latirno exato segundo em que vir você.

Jamie deu uma risada. Rir da nossa pró-pria morte parecia estranho, mas era tudoque podíamos fazer. As mãos de Jamie es-tavam entrelaçadas nas minhas costas, e eupodia sentir o constante subir e descer dopeito dele, no ritmo da respiração. Olhei parao outro lado para ver se Mary estava dor-mindo. Os olhos dela estavam fechados, aboca levemente aberta, enquanto ela res-pirava suavemente. Mesmo dormindo, elatinha uma expressão de compostura edignidade.

419/456

Inclinei-me, dando um beijo na testa deMary, depois em Jamie. Agora eu estava fi-nalmente livre para chorar. Então escondi orosto no cobertor para abafar os soluços.

Costumávamos fazer nossas preces todasas noites quando éramos mais novos, e agorame vi fazendo o mesmo de novo.

— Deus abençoe as pessoas que vou deixarpara trás: Polly, George, Clara... — enquantoeu falava, pensava nos corpos empilhados nopátio. — Por favor, Deus, permita queEoghan veja os filhos de novo. Permita quePolly viva. E que os pais dela encontrem se-gurança. Por favor, cuide do general e de to-dos os soldados. Querido Deus, nos deixejuntos no Céu, com nossa mãe e nosso pai. Eobrigada pela vida que tive. Amém.

420/456

33

NOSSOS OLHOS FORAM VENDADOS.NÃO CHEGUEI A VER O rosto dos soldadosque vieram nos buscar; apenas ouvi as vozesdeles. Enquanto nos preparavam para nossaexecução, percebi que não eram maus nemduros, apenas eficientes.

Um dos homens, com uma voz baixa emãos que cheiravam a cigarro, disse paraficarmos com as mãos atrás das costas.Quando me amarrou os pulsos, a mão deleparecia uma lixa.

Ouvimos o barulho de chaves e da porta dacela se abrindo.

— Mary, Elizabeth, James — disse ohomem, nos colocando em fila por idade.

Marchamos em seguida pelo corredor edescemos a escada em espiral. O guarda se-gurava meus pulsos tão apertado que come-cei a não sentir mais os dedos.

— Cuidado, Jamie — eu sussurrei. Eu es-tava prestes a lembrá-lo de sempre segurarno corrimão quando me lembrei de que asmãos dele também estavam amarradas.

Como não podia ver nada, eu dava passospequenos. Então me veio a nítida lembrançade uma vez em que Bella, ainda filhote, saiupara buscar um graveto em cima de umapoça congelada. Eu fui na ponta dos pés,caminhando sobre o gelo, para pegá-la. E amaneira como eu andava agora, como se est-ivesse com medo de que o chão se partisseembaixo de mim, me lembrou da formacomo caminhei sobre a água congeladanaquele dia.

Ouvi Mary na minha frente. Mesmo agora,ela se movia com os passos elegantes efirmes de uma rainha. De todos nós, ela

422/456

tinha a visão mais clara do próprio futuro eda vida que agora era forçada a abrir mão.Lembrei-me de quantas vezes ela costumavadizer: “Quando eu casar”; “Quando eu forrainha”; “Quando eu tiver filhos”. Ela tinhauma lista com os nomes de menino de quemais gostava, e outra com nomes de menina.Hoje, ela não iria gritar nem perder a com-postura. Ela permaneceria forte. Morrer deforma graciosa não foi exatamente algo quenos ensinaram nas nossas aulas de etiqueta,mas Mary tinha vivido como uma rainha pordezoito anos, e eu tinha certeza de que elamorreria como uma.

Perguntei-me o que diriam de nós um dia,quando as crianças chegassem ao nossocapítulo dos livros de história. Seríamosmesmo os últimos da linhagem da ver-dadeira monarquia britânica?

Ao pé da escada, o ar tinha cheiro de pedrae de chuva fria. As portas se abriram e senti oalívio do ar fresco no rosto. Senti também

423/456

uma gota de chuva na bochecha, depoisoutra na testa.

Meu estômago se revirou com um medorepentino. Aquela era a última vez que eusentiria os cheiros e as sensações do começoda manhã, ou a chuva no rosto. Depois detudo o que tinha acontecido, tudo o que eutinha sofrido e pelo que tinha lutado, eu nãopodia acreditar que tinha chegado a esse fi-nal: uma caminhada no escuro. Qual tinhasido o sentido da minha vida tão curta? Eutinha sido uma filha, uma irmã e uma amiga.Era suficiente? Minha mãe sempre dizia quea coisa mais importante na vida era amar eser amado. Eu tinha feito as duas coisas.

— Venha comigo — senti um dos guardasme empurrar para a frente.

— Espere — Então tirei os sapatos parasentir a grama cheia de orvalho, que pareciamacia, mas pinicava ao mesmo tempo. Euprecisava sentir a grama sob os pés uma úl-tima vez.

424/456

— Eu quero correr — Jamie disse, a vozdele se elevando esperançosamente. — Porfavor.

— Não é permitido correr — o guarda re-spondeu com severidade.

— Por favor, deixe — Mary implorou. —Ele foi doente a vida inteira... Até agora.

Ouvi o segundo guarda sussurrar algumacoisa para o primeiro. Queria poder ver orosto deles.

— Tudo bem — o primeiro guarda concor-dou relutantemente. — Três minutos. Vamostirar sua venda para que não tropece — eleacrescentou de forma áspera.

Eu não podia ver Jamie, mas ouvia os pésdele batendo no chão e a alegria na sua vozenquanto ele gritava, feliz. Emocionados, ossoldados o deixaram brincar por bem maisque três minutos. E por uma vez na vida,Jamie pôde correr do lado de fora de casa,como um garoto normal, enquanto a chuva

425/456

caía mais forte. Até que no relógio da Torresoou a hora da nossa execução.

— Retirem as vendas deles — disse alguém, eimediatamente reconheci a voz de CorneliusHollister.

Quando tiraram minha venda, olhei emvolta da Torre Verde, que estava quase ex-plodindo de tanta gente: o exército de Hol-lister. Vi alguns rostos familiares: Portia eTub, vestidas para a ocasião. O Sargento Fax,o peito estufado de uma satisfação ambi-ciosa. E em pé, de uniforme, no meio dalinha de frente dos soldados, Wesley. Deixeimeus olhos repousarem nele. Eu tinha cer-teza de que ele, com vergonha, iria virar orosto, mas Wesley sustentou meu olhar sempiscar. Lembrei-me do jeito carinhoso comque ele me ajudou a cuidar das minhas feri-das na casinha da floresta, da sensaçãogostosa de ter os braços dele em volta demim. E, naquele momento, eu soube quenosso momento juntos tinha sido

426/456

verdadeiro. Eu não me arrependia. Ele nas-ceu na família dele, assim como eu nasci naminha, e, no fim das contas, merecia que euo perdoasse.

Guardas nos levaram para ocuparmos nos-sos lugares no patíbulo. Três cordas com nósespessos estavam penduradas na nossafrente, balançando suavemente com a brisa.Um homem usando uma máscara e umacapa estava ao lado da plataforma, perto deuma manivela. O chão de madeira embaixodos meus pés parecia oco. Olhei para baixo evi que era a porta de um alçapão. Um cavaloe um carrinho de madeira velho estavam am-arrados na estrutura. Em alguns minutos elelevaria nossos corpos sem vida para ocemitério.

Hollister virou-se para a multidão,erguendo as mãos para pedir silêncio en-quanto listava as acusações contra nós. Apar-entemente, éramos culpados de traição, cer-ceamento da liberdade... Enquanto ele falava

427/456

com o exército, eu me desliguei do que eledizia e passei a observá-lo com mais atenção.Ele estava vestido com um uniforme escurode comandante, adornado com medalhasque tinha concedido a si mesmo. Ele sorriacom aquele sorriso branco, de dentes pon-tudos, que não havia mudado desde que en-tregara a fruta fatal para minha mãe. O rostode Hollister tinha envelhecido, ficado en-rugado. O cabelo tinha ficado levementegrisalho nas têmporas, mas o sorriso era omesmo, e os olhos azuis resplandeciam desatisfação.

— Curvem a cabeça e façam as últimaspreces — ele ordenou. Por mais que euquisesse lhes sussurrar um último adeus, nãoachava que aguentaria olhar para meusirmãos agora. Assim, mantive os olhos aten-tos e voltados para a frente, ignorando o es-cárnio da multidão.

Uma revoada de corvos circulou em voltada forca. Havia uma lenda que dizia que, se

428/456

os corvos deixassem a Torre, a coroa cairia ea Inglaterra cairia com ela. Mas eles não es-tavam voando para longe: estavam sobre-voando a multidão, se aninhando nos telha-dos e corrimãos como espectadores nos mel-hores assentos da plateia.

Quando o carrasco colocou as cordas nosnossos pescoços, Mary se recusou a baixar acabeça ou a rezar. Ela olhou para a frente, oqueixo erguido e os olhos firmes. Nem umalágrima caiu dos olhos dela. Lá de longe, eladevia parecer forte, mas eu podia senti-latremendo do meu lado.

Jamie baixou a cabeça.— Mamãe, papai, não posso esperar para

vê-los no Céu, onde seremos felizes e saudá-veis, e onde estaremos seguros... — lágrimasrolaram pelas bochechas do meu irmão e semisturaram com a chuva que caía à nossavolta.

O carrasco colocou as mãos, protegidascom luvas pretas, sobre a manivela. As

429/456

cordas se retesaram, puxando-nos pelopescoço. Fiquei na ponta dos pés, na esper-ança de que isso aliviasse a dor furiosa queeu sentia em todos os nervos do corpo. Aqualquer momento agora, o alçapão se abri-ria e tudo ficaria escuro.

Em seguida, vi um flash vermelho e penseique já estava morrendo. Mas percebi quemeus pés ainda estavam em cima do alçapão.Ouvi um homem urrar em agonia e abri osolhos. O carrasco estava caído com a cara nalama, uma dúzia de flechas cravadas nas cos-tas dele como se ele fosse uma almofada dealfinetes humana.

E então Wesley estava no patíbulo, me le-vantando para afrouxar a corda enquanto atirava do meu pescoço. Cambaleei para afrente, minha visão embaralhada com pontospretos. Ele começou a desamarrar meuspulsos, mas eu o empurrei, fazendo um gestoem silêncio na direção de Mary e Jamie. Eleprecisava salvá-los primeiro.

430/456

Neste exato momento, Hollister alcançavaa manivela, tendo o destino dos meus irmãosmais uma vez nas mãos dele.

431/456

34

WESLEY SE ATIROU SOBRE AMANIVELA. HESITEI ENTRE Mary e Jam-ie, incerta do que fazer primeiro. Minha hes-itação durou menos de um segundo, masparecia uma eternidade. Jamie olhou paramim, os olhos arregalados de pavor, quandoMary chamou minha atenção.

— Salve Jamie! — ela gritou, acabandocom meu transe. Corri para meu irmão,levantando-o para afrouxar-lhe o nó emvolta do pescoço. Meus dedos, trêmulos, tra-balhavam de forma atrapalhada, enquantoeu me esforçava para afrouxar o nó. Queriater uma faca para cortar aquilo de uma vez.Dei uma espiada para onde Hollister e

Wesley lutavam pelo controle da manivela.Wesley usava toda a força que tinha contra opai, a fim de impedir que a manivela fosseabaixada.

Finalmente consegui afrouxar o nó nopescoço de Jamie e então corri para Mary. Amanivela subiu e desceu um pouco, e a cordapuxou um pouco mais o pescoço dela. Orosto de Mary mudou para um tomvermelho-escuro enquanto ela ofegava, tent-ando respirar. Estava chegando perto delaquando alguém me segurou pelas costas, mederrubou no chão e pisou no meu estômagocom uma bota pesada. Era o Sargento Fax,que tinha os lábios virados para baixo, emuma careta raivosa.

— Mate-a! — Hollister gritou para Fax, ar-fante, enquanto continuava a lutar comWesley.

— Com prazer — Fax sorriu, esticando amão para pegar a sevilhana. Tentei me sol-tar, mas a bota dele e todo o peso do seu

433/456

corpo me prendiam no chão e eu não podiaescapar. Assim que ele ergueu a sevilhana,um corvo deu um mergulho e bateu as asasna cara dele. — O que... — o Sargento Faxcambaleou para trás, caindo da plataforma, eme levou com ele.

Rolei para longe quando caímos e ouvi oexército irromper com um rugido súbito.

As forças de Resistência tinham chegado.O general Wallace destruiu os portões da

frente e marchava com a cavalaria para den-tro da Torre Verde, enquanto os soldados deinfantaria escalavam os muros pelo lado defora, usando cordas e picaretas.

Tentei subir novamente a escada dopatíbulo, tentando enxergar alguma coisa emmeio à chuva que agora caía forte, mas Faxestava logo atrás de mim. Wesley e Hollisterainda lutavam do outro lado da plataforma.O corpo do carrasco tinha sido jogado longe.Corri até ele, procurando uma sevilhana,

434/456

mas tudo que achei foi uma faca curta. Ia terde servir.

Virei-me bem a tempo de bloquear umataque selvagem de Fax. Arrisquei olhar paraMary. Uma flecha estava cravada na lateraldo corpo dela, e sangue escorria do seuvestido vermelho. Jamie estava se es-forçando para ajudá-la, mas ele não con-seguia levantar o corpo já flácido dela o sufi-ciente para soltar o nó. Ela está morta, pen-sei. Mary está morta.

Continuei lutando com Fax, meus múscu-los se esforçando para empurrar a faca con-tra a sevilhana, que era muito mais potente.Com o canto dos olhos, vi um soldado de ca-belo escuro, a cavalo, se afastar um poucodas forças de Resistência e voltar. Quandoele se aproximou mais um pouco, percebique era Eoghan. Ele pulou do cavalo para opatíbulo e cortou a corda de Mary com umúnico golpe. Naquele momento, juntei todasas minhas forças para empurrar o Sargento

435/456

Fax, então me virei e subi correndo as esca-das da plataforma.

Mary estava caída no chão. Ela estavatotalmente parada, o rosto branco como pa-pel. Jamie sentou-se ao meu lado e segurou amão fria de Mary nas dele.

— Ela está respirando? — eu gritei.Eoghan segurou Mary nos braços. Ele en-

costou a ponta dos dedos na garganta dela,procurando sua pulsação. A chuva con-tinuava caindo pesada à nossa volta, nos at-ingindo como milhões de balas. Haviasangue na lateral do corpo de Mary, de ondea flecha agora saía em um ângulo estranho.Eu podia ver que ela ainda estava respir-ando, mas era uma respiração muito fraca.

Eoghan puxou a flecha com cuidado, de-pois arrancou um pedaço de tecido da pró-pria camisa e amarrou-o bem apertado emvolta do ferimento dela. Eu olhei para o te-cido desesperada: já estava manchado desangue.

436/456

— Vou levá-la até Clara — Eoghan disse.Então montou novamente no cavalo e se in-clinou para pegá-la nos braços. A cabeça delatombou para trás, depois para a frente denovo, como a de uma boneca de pano.Eoghan envolveu o peito dela firmementecom um braço enquanto segurava as rédeascom a mão livre, partindo em disparada pelocampo de batalha encharcado na direção doportão.

Jamie e eu descemos correndo do patíbuloe nos escondemos atrás do carrinho que jádeveria ter sido carregado com nossos corpossem vida. Tudo que eu tinha era a faca, e,apesar de me garantir com ela, não podia ar-riscar a vida de Jamie. Era mais seguro nosescondermos.

O chão era uma lama só e o barulho dachuva abafava os sons da batalha. Enquantoo exército de Hollister lutava contra a res-istência na Torre Verde, Wesley lutava con-tra o pai ao lado do patíbulo.

437/456

— Você sabe qual é a pena para traição —Hollister rosnou, apontando a espada para agarganta do filho.

— Eu não sou traidor — Wesley respondeucom raiva. — Foi você quem traiu aInglaterra. Você é um assassino, e agora aspessoas não têm mais medo de você. Vocêpode me matar, mas é tarde demais. O povovai continuar a lutar e vai derrotar você.

— É o guarda que me deu o antídoto —Jamie sussurrou, apontando para Wesley. —Eu me lembro da voz dele.

A mão de Hollister tremia de raiva en-quanto ele brandia a espada com toda a forçacontra o filho, golpeando-o sem descanso.Wesley deu um passo para atrás, bloqueandoos ataques com a sevilhana. Seu pai estocounovamente, cortando a mão de Wesley, quedeixou a sevilhana cair no chão.

Apertei a mão de Jamie, mas ele me em-purrou, correndo do nosso esconderijo paraa frente do patíbulo.

438/456

— Jamie, não! — eu gritei, mas ele já tinhacorrido para onde a sevilhana de Wesleytinha caído. Ele a pegou e correu para ooutro lado da plataforma. Eu corri atrás dele.

— Nunca pensei que ia ter que matar meupróprio filho — Hollister falou, mas nãoparecia triste.

Neste exato momento, Jamie apareceu at-rás de Hollister e jogou a sevilhana paraWesley. Em um só movimento, ele pegou aarma, chicoteando-a no ar para desarmarHollister. De repente, Wesley encostou asevilhana na garganta do pai, imprensando-ocontra o patíbulo.

— Vá em frente — rosnou Hollister. — Ouvocê não tem coragem de terminar o quecomeçou?

Wesley deu um passo atrás, mas mantevea arma na mesma posição. — Essa escolha éde Eliza — ele disse, surpreendentementecalmo. — Ela é quem merece vingar a mortedos pais.

439/456

Engoli o medo, pegando a espada de Hol-lister do chão e tentando mantê-la firme,apesar das minhas mãos trêmulas. Então en-costei a ponta da espada no coração dele. Eutinha fantasiado sobre aquela vingança portanto tempo, a raiva borbulhando dentro demim de maneira tão intensa, que achava queia explodir com ela. Mas agora que o mo-mento finalmente tinha chegado, eu me sen-tia enganada. Matá-lo não iria trazer meuspais de volta. Gente demais já tinha morridonaquela guerra.

Baixei a espada.— Amarrem ele — eu ordenei, e quatro dos

soldados do general apareceram para alge-mar as mãos e os pés de Hollister. Eu nãotirava meus olhos dos dele. — Você pode pas-sar o resto da vida no topo da Torre,pensando nas pessoas que matou.

O general levou Hollister embora, nadireção da Torre de Aço, exatamente quandoo último soldado do exército inimigo

440/456

escapava pelo portão. Também vi Portia fu-gindo, o cabelo louro flutuando no ar en-quanto ela passava pelo portão, seguida porum Sargento Fax coberto de sangue.

A chuva continuava a cair na Torre Verde,agora deserta. Duas cordas vazias ainda pen-diam da forca, balançando ao sabor do vento.Então observei os corvos aninhados nos es-pigões do telhado, aconchegados em ninhosde gravetos e palha. Eu não podia acreditar.Tinha acabado. Depois de tantos meses, detanto sangue derramado, e de tantas mortese dor no coração, tinha acabado.

Wesley segurou minha mão.— Sinto muito — ele começou a dizer de-

vagar. — Quando acordei naquela manhã e vique você tinha sumido, eu sabia exatamentepara onde você tinha ido. Voltei para o acam-pamento para buscar um cavalo e Portia meseguiu. Acho que ela suspeitava do que es-tava acontecendo — ele fez uma pausa, ol-hando para baixo, com tristeza. — E depois

441/456

vi você no telhado... eu nunca quis que aquiloacontecesse.

— Eu sei — eu disse, e estremeci, não sei sede frio, de alívio, ou por causa de algumaoutra coisa completamente diferente. — Seidisso agora.

Wesley me abraçou e, como não meafastei, ele tocou seus lábios nos meus. Sentiuma coisa vibrante, uma espiral de fogo den-tro de mim, que me mantinha aquecidaapesar da tempestade fria como gelo.

Então senti alguém me puxando pelamanga. Um Jamie ensopado estava paradotimidamente do nosso lado.

— Eliza, a gente pode sair da chuva? — eleperguntou, cobrindo os olhos para protegê-los das gotas.

Wesley pousou as mãos na minha cinturae eu estiquei a mão para Jamie, abraçando-lhe os ombros. Olhei para o céu, a chuvacaindo nos meus olhos. — Obrigada — eu

442/456

sussurrei para quem quer que estivesseouvindo.

Estávamos vivos.

443/456

Epílogo

ERA UM DIA PERFEITO DE VERÃO.CHUMAÇOS DE NUVENS cruzavam o céuazul-claro enquanto uma leve brisa soprava agrama sob a luz quente do sol. Havia umfestival de rua acontecendo na praça do vil-arejo para celebrar a coroação de Mary eagradecer ao povo de Balmoral por suaajuda. Havia também quadrilhas, mastrosenfeitados para as crianças, jogos e brin-cadeiras, e um palhaço malabarista, além deviolinistas e de escoceses tocando gaitas defoles. Cavalos e burros de crinas penteadas etrançadas com fitas douradas estavam à dis-posição para serem montados pelas criançasda cidade. Sorri ao ver Calígula, uma cabeçamais alta do que os outros cavalos, car-regando três crianças nas costas e

aguentando pacientemente várias outras quelhe penteavam o rabo. A igreja tinha sidopintada desde que o exército de Hollistertentara queimá-la, e ela brilhava de tãobranca sob o sol.

Tendas tinham sido armadas na praçapara o caso de chuva, mas não havia chancede isso acontecer. Fileiras de longas mesas seespalhavam, cobertas com tortas e bolinhoscaseiros, pães recém-saídos do forno, quei-jos, cidra gelada, e outras delícias há muitoesquecidas. Pessoas viajaram quilômetrospara participar da festa.

Em seu primeiro ato como rainha, Marydoou as terras reais para os fazendeirosbritânicos. Por toda a Inglaterra, safras fres-cas foram plantadas para alimentar a nação.As massas não estavam mais passando fome.E o mais importante: Cornelius Hollister es-tava seguramente preso na Torre de Aço, e oexército dele havia debandado.

445/456

Mary recebia seu povo de braços abertos.A ferida provocada pela flechada ainda lhecausava dor, e, apesar de ela tentar disfarçar,às vezes eu a via estremecer, antes de se poli-ciar e disfarçar com um sorriso gracioso.Eoghan estava constantemente ao lado dela,o cabelo escuro e trajando um terno de verãoazul-marinho. Os dois filhinhos dele brin-cavam nos mastros enquanto ele e Maryobservavam.

Depois da prisão de Hollister, Wesley e euhavíamos ido até a casa onde Nora e Ritamoravam. Nós as encontramos cansadas emagrinhas, meros esqueletos do que tinhamsido, vivendo de ervas e dos enlatados quetinham armazenado. Então decidimos trazê-las para Balmoral, onde foram instaladas napequena casinha de jardinagem: uma casanova, livre das lembranças que lhes traziampesadelos desde aquela noite. Mas nuncalhes contei que eu tinha participado daqueleassalto.

446/456

Eu estava em uma área ensolarada no gra-mado vendo Wesley e Jamie jogarem futebol.Jamie finalmente estava aprendendo ostruques do jogo que antes nunca pôde jogar.Minha visão ficou turva com lágrimas en-quanto ele ria e corria, chutando a bola livre-mente. Por que será que cenas felizes agoraenchiam meus olhos de lágrimas? Mas eunão queria chorar. Assim, me levantei e medirigi para as mesas repletas de comida.

Polly, Clara e George estavam reunidos emvolta do general Wallace, que contava nova-mente histórias sobre os aviões de guerra emque voara muitos anos atrás. Clara estavasentada bebendo um copo de limonada. Elausava um vestido novo, que ela mesma tinhacosturado. Eu reconheci o tecido: pequenasflores roxas contra o fundo azul. Aquilo játinha sido a cortina do quarto de Polly.

Polly se aproximou. Ela tinha prendido ocabelo no alto e usava um vestido branco eamarelo que já tinha sido de Mary.

447/456

— Você está bonita — eu disse.— Você também — Polly retrucou.Meu cabelo tinha crescido até um pouco

abaixo das orelhas, e a cicatriz no rosto es-tava desaparecendo.

— Você viu aquele bolo de chocolate?Estou morrendo por um pedaço.

Peguei na mão dela.— Vamos pegar um pedaço — então cam-

inhamos até a mesa, olhando embasbacadaspara o bolo redondo de três andares. Eu nãoconseguia me lembrar da última vez em quetinha comido chocolate. Aquilo era umararidade.

Quando cortamos uma fatia para dividir,vi um garotinho carregando uma tigelabranca e azul cheia de morangos. Ele pareciater 5 ou 6 anos e vestia um macacão.

— Dá só uma olhada nesses morangos! —Polly gritou, a boca cheia de bolo. — Ondevocê os encontrou? — ela perguntou para o

448/456

menino, olhando embasbacada para a tigelacomo se olhasse para uma linda obra de arte.

A cor vermelha vibrante das frutas e obrilho delas era de encher a boca de água —mas também havia algo estranho nelas. Eupeguei um, depois outro, e depois um ter-ceiro. Cada morango era exatamente igual,como se tivessem sido feitos com um molde.

Polly colocou um morango nos lábios,prestes a mordê-lo.

— Polly, espere! Não! — eu gritei, der-rubando o morango das mãos dela. Um tomde rosa manchou-lhe os lábios.

— O que foi? — ela gritou, assustada com opânico que viu nos meus olhos.

Então peguei rapidamente um guardanapoe limpei o sumo dos lábios dela, como umamãe faria com uma criança. Em seguida, abria fruta no meio com os dedos. Lá dentro es-tava cheio de pequenas estrelas de metal.Deixei o morango cair no chão, me virandopara correr atrás do menino. Percorri a

449/456

grama superlotada, procurando o azul domacacão dele, o cabelo louro quase branco,mas não o vi entre as pessoas dançando,bebendo e tocando música. O sol bateu nomeu rosto e protegi os olhos, mas sabia quenão iria encontrar mais nenhum sinal dele.

O menino tinha desaparecido.

450/456

GALAXY CRAZE e? a autora de dois ro-mances: Tiger, Tiger e By The Shore, que foifinalista para o Pre?mio Art Seidenbaum doLos Angeles Times, como Estreia na Fic-c?a?o, e venceu o Betty Trask Award naInglaterra, sua terra natal. Ela mora emNorthampton, nos EUA, com seu marido,dois filhos e esta? trabalhando na seque?nciade A u?ltima princesa, que deve ser lanc?adana primavera de 2013 nos Estados Unidos, eno Brasil pela Editora iD.Saiba mais no nosso site:www.editoraid.com.br

Para Rowan

E para meus editores, Joelle Hobeika eCindy Eagan

Título original: The Last Princess© 2012 by Alloy Entertainment and

Galaxy Craze.Publicado mediante acordo com a

Rights People, Londres.Todos os direitos reservados.

1ª edição digital 2012ISBN 978-85-16-08580-3Arte da capa: Steve Stone

Design da capa: Elizabeth H. ClarkTradução: Tatiana Maciel

Reprodução proibida. Art. 184 doCódigo Penal e Lei 9.610 de 19 de

fevereiro de 1998. Todos os direitosreservados.

Editora Moderna Ltda.Rua Padre Adelino, 758 - Belenzinho

São Paulo - SP - Brasil - CEP03303-904

Atendimento: tel. (11) 2790 1258 efax (11) 2790 1393

www.editoraid.com.br

454/456

@Created by PDF to ePub