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A UNIDADE TRANSCENDENTE DAS RELIGIões Tradução de Pedro de Freitas Leal PUBLICAÇõES DOM QUIXOTE LISBOA 1991 Schuon, Frithjof, 1907 A Unidade Transcendente das Religiões Publicações Dom Quixote, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 116 - 2.' 1098 Lisboa Codex - Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor Título original: De Punité transcendente des refigions 1.0 edição: Julho de 1991 Depósito legal n.I 47 820191 Fotocomposição: FOTOCOMPOGRAFICA, LDA. Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa e Filhos, Lda Digitalização Mediateca da Caixa Geral de Depósitos Uso exclusivo para os seus utentes deficientes visuais íNDICE Prefácio......................................................... 11 1 - Das dimensões conceptuais................................ 17 II - A limitação do exoterismo................................ 23 III - Transcendência e universalidade do esoterismo............ 45 IV -'A questão das formas de arte.............................. 69 V - Dos limites da expansão religiosa......................... 83 VI - O aspecto ternário do monoteísmo.......................... 97 VII - Cristianismo e islão....................................... 105 VIII - Natureza particular e universalidade da tradição cristã... 121 IX - Ser homem é conhecer...................................... 143 *O Espírito sopra aonde quer: e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai; assim é todo aquele que nasceu do Espírito (João, III, 8)+

a unidade transcendente das religiões

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A UNIDADE TRANSCENDENTE DAS RELIGIões

Tradução de Pedro de Freitas Leal PUBLICAÇõES DOM QUIXOTE LISBOA 1991 Schuon, Frithjof, 1907 A Unidade Transcendente das Religiões Publicações Dom Quixote, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 116 - 2.' 1098 Lisboa Codex - Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

Título original: De Punité transcendente des refigions 1.0 edição: Julho de 1991 Depósito legal n.I 47 820191 Fotocomposição: FOTOCOMPOGRAFICA, LDA.Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa e Filhos, Lda

DigitalizaçãoMediateca da Caixa Geral de DepósitosUso exclusivo para os seus utentes deficientes visuais

íNDICE

Prefácio......................................................... 11 1 - Das dimensões conceptuais................................ 17 II - A limitação do exoterismo................................ 23 III - Transcendência e universalidade do esoterismo............ 45 IV -'A questão das formas de arte.............................. 69 V - Dos limites da expansão religiosa......................... 83 VI - O aspecto ternário do monoteísmo.......................... 97VII - Cristianismo e islão....................................... 105VIII - Natureza particular e universalidade da tradição cristã... 121 IX - Ser homem é conhecer...................................... 143

*O Espírito sopra aonde quer:e ouves a sua voz, mas não sabesde onde vem nem para onde vai;assim é todo aquele que nasceudo Espírito (João, III, 8)+ PREFACIO s considerações deste livro procedemde uma doutrina que não é filosófica, mas sim metafísica. Tal distinçãopoderá parecer ilegítima aos olhos de quem engloba a metafísica dentroda filosofia. Mas, se já em Aristóteles e nos seus continuadores escolásticos encontramos tal assimilação, isso apenas demonstra que toda a filosofia tem limitações que, mesmo nos casos mais benignos como o que acabamos de citar, excluem uma apreciação perfeitamente adequada da

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metafísica. Esta possui, na verdade, um carácter transcendente, que a torna independente de qualquer parecer humano. Para melhor definirmos adiferença que existe entre os dois modos de pensar, diríamos que a filosofia procede da razão, como faculdade individual, enquanto a metafísica sereporta em exclusivo ao Intelecto. Este último, foi mestre Eckhart quemmelhor o definiu: *Existe na alma algo de incriado e de incriável; se a alma toda fosse isso, seria então incriada e incriável, e isso é o Intelecto.+Achamos no esoterismo, muçulmano uma definição análoga, mas aindamais concisa e mais rica em valor simbólico: *O sufi (ou seja: o homemidentificado com o Intelecto) não foi criado.+ Se o conhecimento puramente intelectual ultrapassa, por definição, o indivíduo; se esse conhecimento tem uma essência supra-individual, universal oudivina, que procede da Inteligência pura - isto é, directa e não-discursivaconclui-se que tal conhecimento não só ultrapassa o raciocínio, mastambém ultrapassa a própria fé, no sentido vulgar do termo. Por outras Frithjof Schuon

palavras, o conhecimento intelectual ultrapassa o conhecimento especificamente teológico, já de si incomparavelmente superior ao conhecimentofilosófico, nacionalista, pois ele, como o conhecimento metafísico, emanade Deus e não do homem. Só que, enquanto a metafísica procede toda elada intuição intelectual, a religião procede da Revelação. Esta é a Palavrade Deus que se dirige às Suas criaturas, enquanto a intuição intelectual éparticipação indirecta e activa no Conhecimento Divino, não participaçãoindirecta e passiva como no caso da fé. Por outras palavras, diríamos quena intuição intelectual não é o indivíduo enquanto tal que conhece, massim o indivíduo na sua essência, indistinto do seu Princípio Divino. Assim, também a certeza metafísica é absoluta em razão da identidade entreconhecedor e conhecido, no Intelecto. Se nos é permitido um exemplo deordem sensível para ilustrara diferença entre o conhecimento metafísico, eo teológico, podemos dizer que o primeiro - a que chamaremos *esotérico+ por se manifestar mediante um simbolismo religioso - tem consciência da essência incolor da luz e do seu carácter de pura luminosidade.Uma crença religiosa admitirá, pelo contrário, que a luz é vermelha e nãoverde, enquanto qualquer outra afirmará o oposto: ambas terão razão aodistinguirem as trevas da luz, mas não ao identificarem a luz com esta ouaquela cor. Queremos mostrar, através deste exemplo tão rudimentar, queo ponto de vista teológico ou dogmático, pelo simples facto de se fundarnuma revelação e não num conhecimento acessível a todos - facto aliásimpensável em termos da grande colectividade humana -, confunde necessariamente o símbolo ou a forma com a Verdade nua e supraformal,enquanto a metafísica - a que so a título provisório poderemos chamar*ponto de vista+ - pode servir-se do -mesmo símbolo ou forma como simples meio de expressão, sem ignorar o que nele há de relativo. E por essemotivo que todas as grandes religiões, intrinsecamente ortodoxas, podem,

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através dos seus dogmas, ritos e outros símbolos, servir de meio de expressão de toda a Verdade directamente conhecida pelo olho do Intelecto,aquele órgão espiritual a que o esoterismo muçulmano chama *o olho docoração+. Acabámos de afirmar que a religião traduz as verdades metafísicas ouuniversais em linguagem dogmática. Ora, se o dogma já não é acessível atodos na sua Verdade intrínseca, pois só o, Intelecto a ela pode directa 12 A Unidade Transcendente das Religiões

mente aceder, também não o é mais pela fé, único modo de participaçãopossível, para a maioria dos homens, nas verdades divinas. Quanto ao conhecimento intelectual que, como vimos, não procede nem de uma crençanem de um raciocínio, ele é superior ao dogma, no sentido em que, semnunca o contrariar, penetra na sua dimensão interior, ou seja, a Verdadeinfinita que domina todas as formas. Para sermos totalmente claros, insistiremos ainda em que o modo racional de conhecimento jamais ultrapassa o domínio das generalidades, nunca chegando a atingir qualquer verdade transcendente. Pode, porém, servir de modo de expressão a um conhecimento supra-racional, como foi ocaso da antologia aristotélica e escolástica, mas sempre ocorrerá em detrimento da integridade intelectual da doutrina. Alguns talvez objectem quea metafísica mais pura se distingue por vezes pouco da filosofia; que, como esta, faz recurso a argumentos e parece chegar a conclusões. Mas talsemelhança só se apoia no facto de que todo o conceito, desde que é expresso, se reveste forçosamente dos modos do pensamento humano, que éracional e dialéctico. O que distingue aqui essencialmente a proposiçãometafísica da proposição filosófica é que a primeira e simbólica e descritiva - no sentido em que se serve dos modos racionais como de símbolospara descrever ou traduzir conhecimentos que comportam mais certeza doque qualquer outro conhecimento de ordem sensível -, enquanto a filosofia, a que não foi em vão que se chamou ancilla theologiae, nunca émais do que aquilo que exprime. No facto de a filosofia raciocinar pararesolver uma dúvida vê-se que o seu ponto de partida é uma dúvida queela quer ultrapassar; enquanto o ponto de partida do enunciado metafísicoé sempre essencialmente uma evidência ou uma certeza que se pretendecomunicar, aos que sejam aptos a recebê-la, por meios simbólicos ou dialécticos capazes de actualizar neles o conhecimento latente que inconscientemente, diríamos *eternamente+, trazem em si. Tomemos a ideia de Deus, a título de exemplo dos três modos de pensamento que já abordámos. O conhecimento filosófico, quando não negapura e simplesmente a Deus - o que equivaleria a dar a este termo umsentido que ele não tem -, tenta demonstrar Deus servindo-se de todo otipo de argumentos: por outras palavras, este conhecimento tenta provartanto a *existência+ como a *inexistência+ de Deus, como se a razão, que 13 Frithjof Schuon

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não é fonte mas apenas intermediária do conhecimento transcendente, pudesse demonstrar fosse o que fosse; aliás, tal pretensão à autonomia darazão, em domínios onde só a intuição intelectual ou a revelação podemser fonte de saber, caracteriza o conhecimento filosófico, pondo a descoberto toda a sua insuficiência. Quanto ao conhecimento teológico, ele nãose preocupa em demonstrar Deus - permite mesmo que se admita quetal é impossível -, mas funda-se na crença; diga-se de passagem que a fénão se reduz, de modo algum, à simples crença, ou Cristo não teria faladoda *fé que desloca montanhas+, já que a crença religiosa não tem essa virtude. Enfim, metafisicamente, não se tratará mais de uma *prova+ ou deuma *crença+, mas só de evidência directa, intelectual, que implica certeza absoluta, mas que, no estado actual da humanidade, não é acessível senão ' a uma elite espiritual cada vez mais restrita. Ora a religião, independentemente da sua natureza e das veleidades dos seus representantes, quepodem não ter disto consciência, contém e transmite, sob o véu dos seussímbolos dogmáticos e rituais, o Conhecimento puramente intelectual, como referimos acima. Contudo, poderíamos justamente perguntar por que razões, humanas ecósmicas, é que verdades, a que chamamos *esotéricas+ num sentido muito geral, são trazidas à luz e explicitadas, precisamente, na nossa épocatão pouco dada à especulação. Há aí, com efeito, algo de anormal, nãotanto no facto de se exporem as verdades, mas sim dadas as condições gerais da nossa época que, marcando o fim de um grande período cíclico o fim de um mahâ-yuga segundo a cosmologia hindu -, deverá recapitular ou manifestar de novo, de uma maneira ou de outra, tudo o que estásuposto nesse ciclo. Como diz o adágio: *os extremos tocam-se+. De modo que coisas, que são anormais por si mesmas, podem tornar-se necessárias devido às referidas condições. Dum ponto de vista mais individual,o da simples oportunidade, concordaríamos que a barafunda espiritual danossa época atingiu um grau tão elevado que os inconvenientes que, emprincípio, podem resultar, para alguns, do contacto com as verdades a quealudimos, se acham compensados pelas vantagens que outros poderão recolher das ditas verdades. Por outro lado, o termo *esoterismo+ é frequentemente usurpado para esconder ideias tão pouco espirituais quantoperigosas, e o que conhecemos das doutrinas esotéricas é muitas vezes 14 A Unidade Transcendente das Religiões

plagiado e deformado (para além de a incompatibilidade exterior, de bomgrado amplíficada, das diversas formas tradicionais lançar o maior descrédito na mente de muitos dos nossos contemporâneos, sobre qualquer tradição, religiosa ou outra), de modo que não há somente vantagem, masaté obrigação de definir o que e e o que não e o verdadeiro esoterismo ede explicar em que consiste a profunda e eterna solidariedade de todas asformas do espírito. Para regressarmos ao tema principal, que nos propomos tratar neste livro, insistiremos em que a unidade das religiões não só é irrealizável no

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plano exterior, o das formas, como não deve mesmo ser realizada - supondo que isso fosse possível neste plano - sem que as formas reveladasse vejam desprovidas de razão suficiente; afirmar que são reveladas é dizer que são desejadas pelo Verbo Divino. Se falamos de *unidade transcendente+, queremos com isso dizer que a unidade das formas religiosasse deve realizar de maneira puramente interior e espiritual, sem traição dequalquer das formas particulares. O antagonismo entre estas formas constitui tanto uma ameaça à Verdade una e universal quanto o antagonismoentre as cores opostas ameaça a transmissão da luz una e incolor, para retomarmos a imagem de ainda há pouco. E, assim como toda a cor, pelasua negação da obscuridade e pela sua afirmação da luz, permite reencontrar o raio que a toma visível e remontá-lo até à sua fonte luminosa, assimtoda a forma, símbolo, religião ou dogma, pela sua negação do erro e asua afirmação da Verdade, permite remontar o raio da Revelação, quenão é outro senão o do Intelecto, até à sua fonte divina. DAS DIMENSões CONCEPTUAIS

compreensão verdadeira e integralde uma ideia ultrapassa em muito o primeiro assenso de inteligência quese impõe em todo e qualquer acto de compreensão. Ora, se é verdade quea evidência que uma ideia nos fornece é, à sua maneira, uma compreensão, não se esgota aí toda a extensão nem toda a perfeição do entendimento, pois tal forma de evidência é para nós, sobretudo, sinal de umaaptidão para compreender integralmente tal ideia. Uma verdade pode,com efeito, ser entendida em diversos graus e segundo diversas dimensõesconceptuais: portanto, segundo um sem-fim de modalidades, correspondentes aos aspectos, numericamente indefinidos, da verdade, ou seja, todos os seus aspectos possíveis. Tal forma de encarar a ideia leva-nos, emsuma, ao problema da realização espiritual, cujas expressões doutrinaisilustram bem a indefinição dimensional da concepção teórica. A filosofia, no que tem delimitador - e é isso, aliás, que constitui oseu carácter específico -, funda-se na ignorância sistemática do que acabámos de enunciar. Por outras palavras, ignora o que seria a sua-próprianegação. Por isso, recorre a esquemas mentais que, na sua pretensão àuniversalidade, crê serem absolutos quando, do ponto de vista da realizaçãoespiritual, não passam de objectos puramente virtuais ou potenciais não utilizados, dado o caso de as ideias serem verdadeiras. Mas quandoisso não se verifica, como acontece geralmente na filosofia moderna, taisesquemas reduzem-se a artifícios inutilizáveis do ponto de vista especulativo,portanto desprovidos de todo o valor real. Quanto às ideias verdadeiras - isto é, as que sugerem, de forma mais ou menos implícita, aspectosda Verdade total e, consequentemente, a própria Verdade -, elas são,desse modo, chaves intelectuais e não têm qualquer outra razão de ser:são o que só o pensamento metafísico é capaz de atingir. Pelo contrário,

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quer na filosofia quer na teologia em sentido comum, existe uma ignorância respeitante não apenas à natureza das ideias, que se crê terem sido integralmente entendidas, mas sobretudo à teoria enquanto tal: a compreensão teórica, com efeito, é transitória por definição e a suadelimitação será aliás, sempre, mais ou menos aproximada. A compreensão puramente teorizante de uma ideia - compreensão assim definida devido ao princípio limitador que a paralisa - poderia muitobem ser caracterizada pelo termo *dogmatismo+. Com efeito, o dogma religioso representa - não em si mesmo, mas enquanto é suposto excluiroutras formas conceptuais - uma ideia concebida dentro do princípio teorizante, havendo-se tal forma exclusiva tornado um dos aspectos do pensamento religioso enquanto tal. Um dogma religioso deixa, porém, de serlimitado, desde que é entendido segundo a sua verdade interna, de ordemuniversal, sendo isso, aliás, o que se passa em todo o esoterismo. Por outro lado, mesmo no esoterismo, como em toda a doutrina metafísica, asideias formuladas podem, por sua vez, ser entendidas dentro do princípiodogmatizante ou teorizante, resultando daí uma situação perfeitamenteanáloga à do dogmatismo religioso, a que nos acabámos de referir. Insistamos ainda, a propósito, que o dogma religioso não é, de maneiraalguma, um dogma em si mesmo. Só o é por ser entendido como tal, devido a uma confusão entre a idéia e a forma que ela reveste. Por outro lado, a dogmatização exterior de verdades universais é perfeitamente justificada, visto que tais verdades ou ideias, havendo de ser o fundamento deuma tradição, devem estar ao alcance de todos, a um grau qualquer.O dogmatismo, pelo contrário, não é a simples enunciarão de uma ideia,nem a atribuição de uma forma à intuição espiritual; é, antes, uma interpretação que, longe de ascender à Verdade informal e total, parte de umadas formas da Verdade, paralisando-a, negando-lhe as suas potencialidades intelectuais e atribuindo-lhe um carácter absoluto que só a Verdademesma pode ter. 18 A Unidade Transcendente das Religiões O dogmatismo revela-se não só na sua inaptidão para conceber a ilimitação interna ou implícita do símbolo - aquela universalidade que resolvetodas as oposições exteriores -, mas também na sua incapacidade em reconhecer o elo interior que une duas verdades aparentemente contraditórias, fazendo delas dois aspectos complementares de uma só e mesma verdade. Também nos poderíamos exprimir da seguinte forma: aquele queparticipa do Conhecimento Universal contempla duas verdades aparentemente contraditórias como se considerasse dois pontos, situados num só emesmo círculo, o qual, unindo-os pela sua continuidade, os conseguissereduzir à unidade. Se esses pontos se acham afastados, opostos, portanto,um ao outro, existe contradição; esta é levada ao seu limite quando osdois pontos estiverem em duas extremidades, a todo o diâmetro da circunferência; mas uma tão extrema oposição ou contradição só se manifestaporque isola do círculo os pontos em causa, fazendo abstracção dele, como se não existisse. Podemos concluir que, se a afirmação dogmatizante

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- que se confunde com a sua forma, sem admitir qualquer outra - écomparável a um ponto que contradiz, por definição, todos os pontos,o enunciado especulativo, pelo contrário, será comparável a um elementodo círculo que, pela forma que lhe é própria, aponta para a sua continuidade lógica e ontológica, logo, o círculo inteiro, ou, por transposição analógica, toda a Verdade. Esta comparação traduzirá talvez melhor aquiloque separa a afirmação dogmatizante do enunciado especulativo. A contradição exterior e intencional dos enunciados especulativos podeaparecer não apenas numa só forma logicamente paradoxal, como é o caso do Aham Brahmâsmi (*Eu sou Brahma+) védico - a definição vedântica do yogi - ou do Anal-Haqq (*Eu sou a Verdade+) hafiajiano ou aindadas palavras de Cristo a respeito da sua divindade. Mas, com mais razãoainda, entre formulações diversas, onde cada uma pode ser logicamentehomogénea em si mesma. Isto acontece em todas as Escrituras Sagradas,nomeadamente no Alcorão. Recordemos apenas a aparente contradiçãoque existe entre as afirmações feitas sobre a predestinação e o livre arbítrio, que só se contradizem por exprimirem aspectos opostos da mesmarealidade. Mas existem teorias que, traduzindo a mais estrita ortodoxia,apresentam contradições exteriores, pela diversidade dos respectivos pontos de vista, que não foram escolhidos arbitrária e artificialmente, mas ad 19 Frithjof Schuon

quiridos espontaneamente, graças a uma verdadeira originalidade intelectual. Para voltar ao que dizíamos sobre a compreensão das ideias, podemoscomparar uma noção teórica com a visão de um objecto: da mesma formaque a visão não revela todos os aspectos possíveis - a natureza integral- do objecto, cujo conhecimento perfeito mais não é do que a nossaidentidade com ele, também a noção teórica não corresponde à verdadeintegral, da qual representa forçosamente um só aspecto, seja ele essencial ou não'. Neste exemplo, o erro seria a visão inadequada do objecto,enquanto a concepção dogmatizante se poderia comparar à visão exclusivade uma só faceta do objecto, supondo-se com isso a imobilidade do sujeito vidente. Quanto à concepção especulativa, intelectualmente ilimitada,ela seria aqui comparável ao conjunto indefinido das diversas visões doobjecto em causa, visões que pressuporiam a faculdade de deslocamentoou de mudança de ponto de vista do sujeito, portanto um certo modo deidentidade com as dimensões do espaço, que revelam precisamente a natureza integral do objecto, pelo menos no respeitante à forma, que é oque está em jogo neste exemplo. O movimento no espaço é, com efeito,uma participação activa nas possibilidades deste, enquanto a extensão estática no espaço - a forma do nosso corpo, por exemplo - é uma participação passiva nestas mesmas possibilidades. Destas considerações, podemos facilmente passar a um plano superior e falar de um *espaçointelectual+ - toda a possibilidade cognitiva que, no fundo, não é maisdo que a Omnisciência Divina - e das *dimensões intelectuais+ - as mo

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' Num tratado contra a filosofia nacionalista, Algazel fala de uns cegos que, não tendoqualquer conhecimento, nem mesmo teórico, do elefante, se encontram um dia na presença deste animal, pondo-se a tactear as diversas partes do seu corpo. Ora, cada umimagina o animal segundo as partes que tocou: para o primeiro cego, que apalpou a pata, o elefante parecia uma coluna; para o segundo, que tocou um dos dentes, o elefanteassemelhava-se a uma estaca, e assim por diante. Através desta parábola, Algazel pretende demonstrar o erro que consiste em querer encerrar o universal em visões fragmentárias, em aspectos ou pontos de vista isolados e exclusivos. Shri Râmakrishna retoma a mesma parábola para mostrar a insuficiência do exclusivismo dogmático no queeste tem de negativo. Poderíamos, contudo, expressar a mesma ideia servindo-nos deuma imagem ainda mais adequada: a de um objecto qualquer que, para uns, *é+ talforma, para outros, *é+ tal matéria, para terceiros *é+ tal número ou tal peso, e assimpor diante. 20 A Unidade Transcendente das Religiões

divindades *eternas+ desta Omnisciência. E o Conhecimento pelo Intelectonão é mais do que a participação perfeita do sujeito nestas modalidades,o que, no mundo físico, é bem representado pelo movimento. Falando dacompreensão das ideias, podemos portanto distinguir uma compreensãodogmatizante - comparável à visão que parte de um só ponto de vistae uma compreensão integral, especulativa, comparável à série indefinidade visões do objecto, possibilitadas por modificações indefinidamentemúltiplas na perspectivação do mesmo. E, assim como, no caso do olhoque se desloca, as diferentes visões de um objecto se encontram ligadaspor perfeita continuidade que representa, de algum modo, a realidadedeterminante do objecto assim os diversos aspectos de uma verdade,por muito contraditórios que possam parecer, contendo implicitamente toda uma infinidade de aspectos possíveis, mais não fazem do que descrevera Verdade Integral que os ultrapassa e determina. Repetiremos o que dissemos acima: a afirmação dogmatizante corresponde a um ponto que, como tal, contradiz, por definição, qualquer outro ponto; enquanto o enunciado especulativo, elo contrário, é sempre concebido como um

pelemento do círculo que, pela sua forma, indica a continuidade que lhe éprópria e, assim, o círculo inteiro, a verdade total. Daí resulta que, em termos de doutrina especulativa, é o ponto de vistapor um lado e o aspecto por outro que determinam a forma da afirmação,enquanto, em termos dogmatistas, esta se confunde com um ponto de vista e com um aspecto determinado, excluindo por isso mesmo todos os outros pontos de vista e

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aspectos igualmente possíveis. Os Anjos são inteligências limitadas a tal ou tal aspecto da Divindade; um estado angélico é, por consequência, uma espécie de ponto de vista transcendente. Aliás, a *intelectualidade+ dos animais e das espécies periféricas do estado terrestre, por exemploa das plantas, corresponde cosmologicamente - num plano muito inferior - à intelectualidade angélica: o que distingue uma de outra espécie vegetal mais não é do que omodo da sua *inteligência+. Por outras palavras, é a forma ou natureza integral de umaplanta que revela o estado - eminentemente passivo - de contemplação ou de conhecimento da sua espécie; dizemos *da sua espécie+, pois, isoladamente tomada, umaplanta não constitui um indivíduo. Recorde-se aqui que o Intelecto - diferente da razão, que não passa de uma faculdade especificamente humana, e da inteligência, quernossa quer de outros seres é de ordem universal e acha-se em tudo o que existe, dequalquer ordem que seja.' 21

A LIMITAÇÃO DO EXOTERISMO

ponto de vista exotérico, que pelo menos no que tem de exclusivo face às realidades superiores - só existe nas tradições monoteístas, é no fundo, apenas, o do interesse individualmais elevado, ou seja, estende-se a todo o ciclo de existência do indivíduoe não se limita simplesmente à vida terrestre. A verdade exotérica ou religiosa acha-se assim limitada por definição, e isso deve-se à limitação dasua finalidade, sem que essa restrição chegue a ameaçar a interpretaçãoesotérica de que a mesma verdade é susceptível graças à universalidade doseu simbolismo, ou antes, graças à dupla natureza, *interior+ e *exterior+,da própria Revelação. Por consequência, o dogma é simultaneamenteuma ideia limitada e um símbolo ilimitado. Para darmos um exemplo, diríamos que o dogma da unicidade da Igreja de Deus deve excluir a existência-de outras formas de tradição ortodoxa, porque a ideia da universalidade das tradições não só é inútil para a salvação como pode atéprejudicá-la, pois levaria os que não conseguem elevar-se acima desteponto de vista individual, quase inevitavelmente, a um indiferentismo religioso e à negligência dos seus deveres cujo cumprimento é precisamente acondição principal da salvação. Por outro lado, esta mesma ideia de universalidade das tradições - ideia quase indispensável ao caminho da Verdade total e desinteressada - não se acha menos simbólica e metafisicamente presente na definição dogmática ou teológica da Igreja ou doCorpo Místico de Cristo. Ou ainda, para usar a linguagem das duas outras

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c,

F -. Frithiof Schuon

religiões nionoteístas, o judaísmo e o islão, é respectivamente na concepção de *Povo Eleito+, Israel, e de *Submissão+, El-Islâm, que se achasimbolizada dogmaticamente a ortodoxia universal, a Sanâtana-Dharmados hindus. Não seria necessário dizer que a limitação *exterior+ do dogma, limitação que lhe confere precisamente o seu carácter dogmático, é perfeitamente legítima, já que o ponto de vista individual, a que esta limitaçãocorresponde, é uma realidade no seu próprio nível de existência. É graçasa esta realidade relativa que o ponto de vista individual - não no quetem de negativo em função de uma perspectiva superior, mas no que temde limitado pela sua própria natureza - pode e deve integrar-se, de qualquer modo, em todas as vias de finalidade transcendente. Desta forma,o exoterismo, ou antes, a forma enquanto tal, não implicará mais umaperspectiva intelectualmente restrita, mas desempenhará o papel de ummeio espiritual acessório, sem que a transcendência da doutrina esotéricaseja por isso afectada, não lhe sendo imposta qualquer limitação por razões de oportunidade individual. Não é preciso confundir, com efeito,o papel do ponto de vista exotérico com o dos meios espirituais do exoterismo: o ponto de vista em questão é incompatível, numa mesma consciência, com o Conhecimento Esotérico que o dissolve para o reabsorverno centro de onde partiu; mas os meios exotéricos não continuam a sermenos utilizáveis, e são-no de dois modos diferentes, seja por transposição intelectual na ordem esotérica - e serão assim suportes de *actualização+ intelectual -, seja pela acção reguladora que exercem sobre a porção individual do ser. O aspecto exotérico de uma tradição é, pois, uma disposição providencial que, longe de ser censurável, é necessária, desde que a via esotérica,sobretudo nas condições actuais da humanidade terrestre, seja apenas aestrada de uma minoria e nada haja de melhor, para o comum dos mortais, do que a via ordinária da salvação. O que é condenável não é a existência do exoterismo, mas sim a sua prepotência autocrática - talvez devida, no mundo cristão, à estreita *precisão+ do espírito latino - que fazcom que muitos dos que estariam aptos para a via do Conhecimento Puronão só se detenham no aspecto exterior da tradição, mas cheguem mesmo

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a rejeitar o esoterismo que só conhecem através de preconceitos ou defor 24 A Unidade Transcendente das Religiões

mações. A menos que, não achando no exoterismo o que convém a suainteligência, não se desviem por doutrinas falsas e artificiais, onde pretendem encontrar o que aquele lhes não oferece e crê mesmo poder impedir-lho . O ponto de vista exotérico - desde que não mais animado pela presença interior do esoterismo de que é ao mesmo tempo radiação exterior eum véu - desemboca, com efeito, na sua própria negação, no sentido emque a religião, ao negar as realidades metafísicas e iniciáticas e ao fixar-senum dogmatismo literalista, gera inevitavelmente a descrença. A atrofiaprovocado nos dogmas pela privação da sua *dimensão interna+ recai sobre eles mesmos, do exterior, sob a forma de negações heréticas e ateias.

A presença do elemento esotérico numa religião de carácter especificamente semítico garante a esta um desenvolvimento normal e um máximode estabilidade; esse elemento não é aliás uma parte, mesmo interior, doexoterismo, representa pelo contrário uma dimensão quase independenteem relação a este último'. Desde que falte esta dimensão ou este elemento - o que só pode ser efeito de circunstâncias anormais, embora cosmologicamente necessárias -, o edifício tradicional fica abalado, acaba mesmo em parte por ruir, ficando reduzido ao que tem de mais exterior, ouseja, o literalismo e o sentimentalismo'. Por isso, os critérios mais reco1 Lembremo-nos da maldição de Cristo: *Ai de vós, doutores da Lei, pois roubastes achave do conhecimento; vós mesmos não entrastes e impedistes aqueles que entravam.+ (Luc.,11:52). No que toca a tradição islâmica, citemos a reflexão de um príncipe muçulmano da índia: *A maioria dos não-muçulmanos e mesmo muitos muçulmanos formados em ambiente e cultura europeia ignoram este elemento particular do islão que constitui o seuâmago e centro, que dá verdadeiramente vida e força às suas formas e acções exteriores e que, graças ao carácter universal do seu conteúdo, pode tomar por testemunhasos discípulos das demais religiões. + (Nawab A. Hydari Hydar Nawaz Jung Bahadur, noseu prefácio aos Studies in Tasawwuf de Khaja Khan.)' Daí a preponderância cada vez maior da *literatura+, em sentido pejorativo, sobre averdadeira intelectualidade, por um lado, e a verdadeira piedade, por outro. Daí também a importância exagerada que se dá a todo o tipo de actividades mais ou menos fúteis que sempre têm o cuidado de negligenciar o *único necessários. 25 Frithjof Schuon nhecíveis de um tal processo são, por um lado, o desconhecimento e mesmo a negação da exegese metafísica e iniciática, isto é, do sentido *místico+ das

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Escrituras - exegese que se acha intimamente conexa com toda a intelectualidade da forma tradicional em causa - e, por outro lado, a rejeição da arte sacra, ou seja, das formas inspiradas e simbólicas através das quais irradia esta intelectualidade, para assim se comunicar, por uma linguagem imediata e ilimitada, a todas as inteligências. Mas tudo isto talvez não baste para entendermos por que razão o exoterismo tem necessidade indirecta do esoterismo, não para poder subsistir - pois não está em causa o simples facto da sua subsistência nem a incorruptibilidade dos seus meios de graça -, mas para poder subsistir em condições normais. Ora a presença da *dimensão transcendentes no seio da forma tradicional fornece ao seu lado exotérico uma seiva vivificante de essência universal, *paraclética+, sem o que este mais não faria do que dobrar-se inteiramente sobre si mesmo, entregue aos seus recursos, por definição limitados, tornando-se um corpo maciço e opaco cuja densidade provoca fatalmente brechas, como o mostra a moderna história da cristandade. Por outras palavras, quando o exoterismo se priva das complexas e subtis interferências da dimensão transcendente, acaba por se ver esmagado pelas consequências exteriorizadas das suas próprias limitações, tornando-se estas, por as sim dizer, totais. Agora, se partimos da ideia de que os exoteristas não entendem o esoterismo e têm até o direito de o não entender - por exemplo, tomando-o como inexistente -, também devemos reconhecer-lhes o direito de condenarem certas manifestações de esoterismo com que parecem esbarrar no seu caminho e que provocam neles o *escândalo+, para usar a expressão do Evangelho. Mas como explicar que na maioria dos casos, se não em todos, os acusadores não usem de tal direito, antes procedam com iniquidade? Não é por certo a sua incompreensão mais ou menos natural nem a defesa do seu direito real, mas apenas a perfídia dos -seus meios que constitui neles um verdadeiro *pecado contra o Espírito'. Tal perfídia 'Assim, nem a incompreensão de tal autoridade religiosa nem um certo fundamento da sua acusação perdoam a iniquidade do processo intentado contra o sufi El-Hallâj, não menos do que a incompreensão dos judeus desculpou a iniquidade do processo contra Cristo. Muito analogamente, podemos interrogar-nos por que razão existe tanta estupidez e 26

00~ A Unidade Transcendente das Religiões

prova, -aliás, que as acusações que eles crêem dever formular só servem depretexto para alimentar um ódio instintivo contra tudo o que pareçaameaçar o seu equilíbrio superficial que, no fundo, não passa de uma forma de individualismo e, portanto, de ignorância.

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Lembramo-nos de ter ouvido um dia alguém dizer que *a metafísicanão é necessária à salvação+; ora isto é radicalmente falso quando aplicado em sentido genérico, pois o homem, que é metafísico por natureza e jádisso tomou consciência, não pode encontrar salvação na negação do queo atrai para Deus. Aliás, toda a vida espiritual deve fundar-se numa predisposição natural que determina o seu modo - a isso chamamos vocação. Nenhuma autoridade espiritual nos aconselharia a seguirmos umcaminho para o qual não somos feitos. É o que ensina, entre outras coisas, a parábola dos talentos; o mesmo sentido se acha ainda nas palavrasde São Tiago: *Quem tiver observado toda a Lei, se vier a faltar em umsó ponto, torna-se culpado de todos+ e *Aquele que, sabendo fazer o queé bem, não o faz, comete pecado+. Ora a essência da Lei, segundo as próprias palavras de Cristo, é o amor de Deus permeando todo o nosso ser,compreendida aí a inteligência, que é a sua parte central. Por outras palavras, como devemos amar a Deus com tudo aquilo que somos, devemosamá-lo também com a inteligência, que é o melhor de nós mesmos. Ninguém contestará que a inteligência não é um sentimento, mas infinitamente mais. É portanto óbvio que o termo *amor+, que as Escrituras usampara designar as relações entre o homem e Deus, acima de tudo, entre

má-fé nas polémicas religiosas, mesmo em homens que, de resto, são isentos. Indíciocerto de que, em muitas dessas polémicas, existe uma percentagem de *pecado contrao Espírito+. Ninguém é repreensível pelo simples facto de atacar, em nome da sua fé,uma tradição estranha, se o faz por simples ignorância. Mas quando não é assim, é culpado de blasfémia, pois - ao ultrajar a Verdade Divina numa forma que lhe é estranha - mais não faz do que aproveitar-se de uma ocasião para ofender a Deus sem problemas de consciência. É esse, no fundo, o segredo do zelo grosseiro e impurodaqueles que, em nome da sua convicção religiosa, consagram a vida a tornar odiosasas coisas sagradas, o que não poderiam fazer se não se servissem de métodos desprezíveis.

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"as Frithjof Schuon

Deus e o homem, não poderia ter um sentido puramente sentimental, designando somente um desejo de atracção. Por outro lado, se o amor é atendência de um ser para outro ser, com vista à sua união, é o Conhecimento que, por definição, realizará a união mais perfeita entre o homem

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e Deus, pois só ela faz apelo ao que, no homem, já é divino, a saber,o Intelecto. Este modo supremo do *amor de Deus+ é, pois, a possibilidade humana, de longe a mais elevada, à qual ninguém voluntariamente sepode subtrair sem *pecar contra o Espírito+. Pretender que a metafísica é,por si mesma e para todo o homem, uma coisa supérflua, de modo algumnecessária à salvação, equivale não apenas a desconhecer a sua natureza,mas também a negar, pura e simplesmente, o direito de existência aos homens que foram dotados por Deus d o dom da inteligência, a um grautranscendente. Poderíamos ainda observar o seguinte: a salvação é merecida pela acção, no sentido mais largo do termo, e isso explica como alguns chegam adepreciar a inteligência, que pode precisamente tornar a acção inútil e cujas possibilidades põem em evidência a relatividade do mérito e da perspectiva que a ele se refere. Por isso, o ponto de vista especificamente religioso tende a considerar a pura intelectualidade - que não distingue aliásquase nunca da simples nacionalidade - com mais ou menos oposta aoacto meritório e, por consequência, como perigosa para a salvação. É porisso que se atribui facilmente à inteligência um aspecto luciferiano e se fala de um *orgulho intelectual+ como se não houvesse contradição de termos. Por isso, também se exalta a *fé de criança+ ou a *fé do simples+,que nós certamente muito respeitamos quando é espontânea e natural,mas não quando teórica e afectada. Ouve-se formular com frequência a seguinte ideia: desde o momentoque a salvação implica um estado de perfeita beatitude e que a religiãonão exige outra coisa, porquê escolher a via que tem por fim a *deificação+? A esta objecção responderemos que a via esotérica não poderia ser,por definição, objecto de uma *escolha+ para os seus seguidores, pois nãoé o homem que a escolhe, mas ela que escolhe o homem. Por outras palavras, a questão da escolha não se põe, porque o finito não poderia escolher o Infinito: trata-se mais de uma questão de *vocação+ e os que são*chamados+, para empregar a expressão evangélica, não têm como se sub 28 A Unidade Transcendente das Religiões

trair a esse apelo, sob pena de *pecado contra o Espírito+, não mais doque um homem qualquer se poderia legitimamente subtrair às obrigaçõesda sua religião. Se é inadequado falarmos de escolha no que respeita ao Infinito, também o é falarmos de um desejo, pois no iniciado não se pode dizer quelhano desabo da ReaMade I)Mria,há @im uma tendência lógica e ontológica no sentido da sua Essência transcendente. Esta definição é de importância extrema.

A doutrina exotérica enquanto tal - ou seja, vista fora da influênciaespiritual que pode agir sobre as almas independentemente desta doutrina- não possui, de modo algum, certezas absolutas. Por isso, o conhecimento teológico não pode excluir de si mesmo a tentação da dúvida, nemmesmo nos grandes místicos; e quanto' às graças que podem intervir em

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semelhantes casos, estas não são consubstanciais à inteligência, de modoque a permanência daquela não depende de quem destas beneficia. Limitando-se a um ponto de vista relativo, o da salvação individual - pontode vista interesseiro que influencia o próprio conceito da Divindade numsentido restritivo -, a ideologia exotérica não dispõe de qualquer meiode prova ou de legitimarão doutrinal proporcional às suas exigências.O que é, com efeito, característico de toda a doutrina exotérica é a desproporção que existe entre as suas exigências dogmáticas e as suas garantias dialécticas: as suas exigências são absolutas, porque derivam de umQuerer Divino, portanto também de um Conhecimento Divino, enquantoas suas garantias são relativas, porque independentes desse Querer e fundadas, não nesse Conhecimento, mas num ponto de vista humano, o darazão e sentimento. Se, por exemplo, nos dirigíssemos aos brâmanes paraexigir deles o abandono total de uma tradição milenar, de cuja experiência espiritual inumeráveis gerações houvessem usufruído, que produziuflores de sabedoria e santidade até aos nossos dias, os argumentos que pudéssemos aduzir para justificarmos tão inaudita exigência não conteriamnada de logicamente concludente nem proporcionado à amplitude da exigência em questão. A razão que tiverem os brâmanes para permanecerem

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Num Frithjof Schuon

fiéis ao seu património espiritual serão, pois, infinitamente mais sólidaspara eles do que as razões pelas quais os queiramos levar a deixarem deser aquilo que são. A desproporção, do ponto de vista hindu, entre aimensa realidade da tradição bramânica e a insuficiência dos contra-argumentos religiosos é tal que isso deveria bastar para provar que, seDeus quisesse submeter o mundo inteiro a uma só religião, os argumentosdesta não seriam tão fracos, nem os de alguns ditos *infiéis+ seriam tãofortes. Por outras palavras, se Deus quisesse, de facto, uma só forma detradição, o poder persuasivo desta seria tal que nenhum homem, de boa-fé, se -poderia subtrair a ela. Aliás, o próprio termo *infiel+, aplicado acivilizações - com uma ou outra excepção - muito mais antigas do que acristã, civilizações que têm todos os direitos espirituais e históricos deignorar esta última, faz ainda pressentir, pela falta de lógica da sua ingénua pretensão, tudo o que há de abusivo nas reivindicações religiosas porreferência a outras formas de tradição ortodoxa. A exigência absoluta de crer em tal religião e não em outra não pode,

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com efeito, tentar justificar-se senão por meios eminentemente relativos:tentativas de provas filosófico-teológicas, históricas ou sentimentais. Ora,não existe qualquer prova em apoio de tais pretensões à verdade única eexclusiva; e todo o esforço de demonstração só se pode referir às disposições individuais de cada homem, as quais, reduzindo-se no fundo a umaquestão de credulidade, são disposições extremamente relativas. Toda aperspectiva exotérica pretende, por definição, ser a única verdadeira e@ legítima e isso porque o ponto de vista exotérico, visando apenas um interesse individual - a salvação -, não tem qualquer vantagem em conhecer a verdade das outras formas de tradição. Desinteressando-se da suaprópria verdade, desinteressa-se muito mais da dos outros, ou antes a nega, porque a noção de uma pluralidade de formas tradicionais pode prejudicar a simples busca da salvação individual. Isso põe precisamente a claroo carácter relativo da forma que, ela sim, é de uma necessidade absolutapara a salvação do indivíduo. Poderíamos contudo interrogar-nos por quemotivo as garantias, as provas de veracidade ou de credibilidade, que apolémica religiosa se esforça em produzir, não derivam espontaneamentedo Querer Divino, como no caso dos imperativos religiosos. É óbvio quea questão só tem sentido quando referida a verdades, pois não se iriam '30 A Unidade Transcendente das Religiões

demonstrar os erros. Ora, precisamente os argumentos da polémica religiosa não podem pertencer ao domínio intrínseco e positivo da fé. Umaideia cujo alcance é apenas extrínseco e negativo e que, no fundo, só resulta de indução - como a ideia da verdade e legitimidade exclusiva detal religião ou da falsidade e ilegitimidade de todas as outras - não poderia ser objecto de uma prova quer divina quer humana. No que respeitaaos dogmas verdadeiros - não derivados por indução, mas de alcance estritamente intrínseco -, se Deus não forneceu as provas teóricas da suaverdade é porque, em primeiro lugar, tais provas são inconcebíveis e inexistentes no plano em que o exoterismo se coloca, e exigi-Ias, como o fazem os não-crentes, seria uma contradição pura e simples. Em segundolugar, como veremos mais adiante, se tais provas existem, é num plano totalmente diferente, e a Revelação divina supõe-nas perfeitamente, semqualquer omissão. Em- terceiro lugar, para regressarmos ao plano exotérico, o único em que esta questão se pode colocar, a Revelação comporta,no seu essencial, uma inteligibilidade suficiente para poder servir de veículo à acção da graça' que é a única razão suficiente plenamente válidapara a adesão a uma religião. Se a graça for apenas concedida àqueles quedela não possuam o equivalente sob outra forma revelada, os dogmas perdem o seu poder persuasivo, demonstrativo, para os que possuem um talequivalente. Estes serão, por consequencial, *inconvertíveis+ - abstracçãofeita dos casos de conversão devidos à força sugestiva de um psiquismocolectivo, agindo a graça então a posterior - já que a influência espiri Um exemplo de conversão por influência espiritual ou graça, sem recurso a argumentos de ordem doutrinal, é-nos facultado pela conhecida história de Sundar

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Singli. Estesikh, de origem nobre e temperamento místico, mas sem grandes qualidades intelectuais, tinha jurado um ódio implacável não só contra os cristãos, mas contra o cristianismo e o Evangelho. Este ódio, graças à sua paradoxal coincidência com o carácternobre e místico de Sundar Singli, chocou com a influência espiritual de Cristo e tornou-se desesperante. Sobreveio, então, uma fulgurosa conversão provocado por uma visão.Ora, não houve qualquer intervenção da doutrina cristã e o convertido não tinha sequer em mente procurar a ortodoxia tradicional. O caso de São Paulo apresenta aliás,ainda que a um nível notavelmente superior quanto à personagem e circunstâncias, certa analogia *técnica+ com o exemplo citado. Em resumo, podemos afirmar que, quando um homem de natureza religiosa odeia e persegue uma religião, é porque está muito perto de se converter, ajudando-o para isso as circunstâncias. É o caso dos não-cristãos que se convertem ao cristianismo precisamente como adop 31 Frithjof Schuon

tual não terá poder sobre eles, da mesma forma que uma luz não podeiluminar outra luz. Isto é, pois, conforme ao Querer Divino, que revestiua Verdade una de diferentes formas, repartindo-as por diferentes humanidades, sendo cada uma simbolicamente a única que existe. E acrescentaremos que, se a relatividade extrínseca do exoterismo é conforme ao Querer Divino, que assim se afirma na própria natureza das coisas, é naturalque esta relatividade não possa ser abolida por um querer humano. Agora, se não existe qualquer prova rigorosa em apoio de uma pretensão exotérica à detenção exclusiva da verdade, não devemos ser levados acrer que a própria ortodoxia de uma forma tradicional não pode ser demonstrada? Essa seria uma conclusão artificial e, em qualquer caso, completamente errónea: pois toda a forma tradicional comporta uma provaabsoluta da sua verdade, portanto da sua ortodoxia. O que não pode serdemonstrado, à falta de prova absoluta, não é a verdade intrínseca - e,assim, a legitimidade tradicional de uma forma da Revelação Universal -,mas somente o facto hipotético de tal forma particular ser a única verdadeira e legítima. E, se isso não pode ser provado, é pela simples razão queisso é falso. Existem, pois, provas irrefutáveis da verdade de uma religião. Mas taisprovas - que são de ordem puramente espiritual -, sendo as únicas provas possíveis em apoio de uma verdade revelada, comportam ao mesmotempo a negação do exclusivismo pretensioso de cada forma. Por outraspalavras, quem quiser provar a verdade de uma religião, ou não tem provas - porque estas não existem -, ou tem provas que afirmam toda averdade religiosa sem excepção, qualquer que seja a forma que esta possaassumir.

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A pretensão exotérica à detenção exclusiva de uma verdade única, ouda Verdade sem epítetos, é pois um erro puro e simples. De facto, toda a

tam quaisquer formas da moderna civilizaçã o ocidental. O que, entre os Ocidentais, ésede de novidade, é, entre os outros, sede de mudança, poderíamos dizer, de renegação. Dos dois lados, a mesma tendência para realizar e esgotar possibilidades que a civilização tradicional havia excluído. 32

A Unidade Transcendente das Religiões

verdade expressa reveste necessariamente uma forma a da sua expressão - e é metafisicamente impossível que uma forma tenha um valor único por exclusão de outras formas: porque uma forma, por definição, nãopode ser única e exclusiva, não pode ser a única possibilidade de expressão do que ela exprime. Quem diz forma, diz especificarão ou distinção; e o específico só é concebível como modalidade de uma espécie,portanto de uma ordem que engloba um conjunto de modalidades análogas. O limitado, que o é por exclusão daquilo que os seus limites não contêm, compensa esta exclusão reafirmando-se ou repetindo-se fora dos seuslimites próprios, o que equivale a dizer que a existência de outras limitadas está, em rigor, implicado na própria definição do limitado. Pretenderque uma limitação - por exemplo, uma forma enquanto tal - seja únicae'

e incomparável no seu género, excluindo portanto a existência de modalidades que lhe são análogas, equivale a atribuir-lhe a unícidade da própriaExistência. Ora, ninguém poderá contestar que uma forma é sempre umalimitação e que uma religião é sempre e forçosamente uma forma - nãoobviamente pela sua verdade interna, que é de ordem universal, supraformal, mas pelo seu modo de expressão que, enquanto tal, não pode deixarde ser formal, portanto específico e limitado. Nunca é de mais repetirmosque uma forma é sempre uma modalidade de uma ordem de manifestaçãoformal, portanto distintiva ou múltipla, e por consequência, como atrásreferimos, uma modalidade entre outras, sendo apenas única a sua causasupraformal. E repita-se, pois não convém perder de vista, que a forma,pelo facto mesmo de ser limitada, deixa necessariamente algo fora dela,ou seja, tudo aquilo que os seus limites excluem; e esse algo, se pertenceà mesma ordem, é forçosamente análogo à forma em causa. Porque a distinção das formas compensasse por uma indistinção, uma identidade relativa, sem o que as formas seriam absolutamente distintas umas das outras,o que equivaleria a uma pluralidade de unicidades ou de Existências. Cada forma seria então uma espécie de divindade sem qualquer relação comoutras formas, o que é absurdo. A pretensão exotérica à detenção exclusiva da verdade esbarra, pois,como acabámos de ver, com a objecção axiomática de que não existe um

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facto único, pela simples razão que é rigorosamente impossível que um talfacto exista, sendo apenas única a própria unicidade e não sendo o facto a 33 Frithjof Schuon

unicidade em si. É o que ignora a ideologia *crente+ que, no fundo, nãopassa de uma confusão interesseira entre o formal e o universal. As ideiasque se afirmam numa forma religiosa, tais como a ideia do Verbo ou daUnidade Divina, não podem deixar de se afirmar, de uma forma ou deoutra, nas outras religiões. Do mesmo modo, os meios de graça ou de realização espiritual de que dispõe tal sacerdócio não podem deixar de encontrar equivalente noutras partes. E, acrescentemos, e precisamente namedida em que um meio de graça é importante ou indispensável, que elese acha necessariamente em todas as formas ortodoxas, de modo apropriado ao contexto respectivo. Podemos resumir as considerações precedentes nesta fórmula: a Verdade absoluta só se encontra além de todas as suas expressões possíveis. Asexpressões, enquanto tais, não pretendem ser atributos da Verdade.O afastamento relativo daquelas por referência a esta traduz-se na sua diferenciação e multiplicidade, que forçosamente as limitam.

A impossibilidade metafísica da detenção exclusiva da verdade, poruma qualquer forma doutrinal, pode ainda formular-se da seguinte maneira, à luz dos dados cosmológicos que permitem facilmente o recurso auma linguagem religiosa: não está em contradição com a natureza deDeus que este tenha permitido o declínio e, portanto, o fim de certas civilizações, depois de lhes ter proporcionado milénios de florescimento espiritual. Da mesma forma, o facto de toda a humanidade ter entrado numperíodo relativamente curto- de obscuridade, depois de milhares de anosde uma existência sã e equilibrada, continua a ser conforme ao *modo deagir+ de Deus. Pelo contrário, que Deus, querendo o bem da humanidade, tivesse permitido que a imensa maioria dos homens se corrompesse mesmo os mais dotados - desde há milénios, sem qualquer esperança,nas trevas de uma ignorância mortal, e que, desejando salvar a humanidade, tivesse escolhido um meio, material e psicologicamente tão ineficazcomo uma nova religião que, muito antes de se dirigir a todos os homens,não só assumisse um carácter muito local e particularizado, mas parcial 34 A Unidade Transcendente das Religiões

mente se corrompesse no seu meio de origem, ou, enfim, que Deus pudesse ter agido deste modo, eis uma conclusão abusiva que não tem emconta a natureza divina cuja essência é Bondade e Misericórdia. A natureza de Deus pode ser terrível, mas não é monstruosa. A teologia está longede o ignorar. Deus permitir que a cegueira humana provoque heresias noseio de civilizações tradicionais, isso é conforme às Leis Divinas que regem a criação inteira. Mas Deus permitir a uma religião, inventada por

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um homem, conquistar uma parte da humanidade e manter-se, durantemais de um milénio, na quarta parte do Globo habitado, enganando oamor, a fé e a esperança de uma legião de almas sinceras e fervorosas,também isso é contrário às Leis da Misericórdia Divina ou, por outras palavras, às da Possibilidade Universal. A Redenção é um acto eterno que -não podemos situar nem no temponem no espaço. O sacrifício de Cristo é disso manifestação ou realizaçãoparticular no plano humano. Os homens puderam e podem beneficiar daRedenção tanto antes como depois da vinda de Jesus Cristo, tanto foracomo dentro da Igreja visível. Se Cristo tivesse sido a única manifestação do Verbo, supondo que talunicidade de manifestação fosse possível, o seu nascimento teria tido como efeito reduzir num ápice o universo a cinzas.

Vimos acima que tudo o que se pode afirmar sobre os dogmas se deveaplicar igualmente aos meios de graça, como o são os sacramentos: se aEucaristia é um meio de graça *primordial+, e portanto indispensável, éporque emana de uma Realidade Universal, onde vai buscar toda a suarealidade. Mas se é assim, a Eucaristia, como qualquer outro meio de graça correspondente em outras formas tradicionais, não pode ser única, poisuma Realidade Universal não pode ter apenas uma manifestação, à exclusão de outras, sem o que não seria universal. Aos que objectam dizendoque esse rito se reporta a toda -a humanidade pela simples razão de que,segundo o Evangelho, deve ser levado a *todos os povos+, responderíamos que, no seu estado normal, pelo menos a partir de certa época cíclica, o mundo se compõe de várias humanidades distintas, que mais ou menos se ignoram, sendo - sob certos aspectos e em certos casos - a 35 Frithjof Schuon

delimitação exacta dessas humanidades uma questão bem complexa, devido à intervenção de muitas condições cíclicas excepcionais. Se sucedeu que grandes Profetas ou Avatâras, conhecendo o valor universal da Verdade, tivessem negado exteriormente tal ou tal forma de tradição, há que considerar, por um lado, a razão imediata de tal atitude e,por outro, o seu sentido simbólico, sobrepondo-se este àquela: se Abraão,Moisés e Cristo negaram os *paganismos+ do mundo que os cercava,é porque estes eram tradições que haviam perdido a sua razão de ser, sendo formas sem verdadeira vida espiritual e servindo por vezes de suporte ainfluências tenebrosas. Ora aquele que é *escolhido+, sendo ele mesmo otabernáculo vivo da Verdade, não tem de se compadecer de formas mortas, incapazes de desempenharem a sua primitiva função. Por outro lado, a atitude negativa dos arautos da Palavra de Deus é simbólica, e aíse acha o seu sentido mais profundo e mais perfeitamente verdadeiro.Pois se tal atitude não pode evidentemente referir-se aos núcleos esotéricos que sobreviveram no meio de civilizações gastas e vazias de espírito,ela é plenamente justificável quando aplicada a um facto humano comum

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- o da degenerescência ou *paganismo+ que se difunde no mundo inteiro. Para citar um exemplo análogo: se o islão teve de negar de certa maneira as formas monoteístas que o precederam, isso teve uma razão imediata na limitação formal dessas religiões. Está fora de dúvida que ojudaísmo já não podia servir de base tradicional à humanidade do Próximo Oriente, visto que a forma desta religião havia atingido um grau departicularização que a tornava inapta a expandir-se. E, quanto ao cristianismo, não só se particularizou muito rapidamente, em sentido análogo,sob a influência do mundo ocidental - talvez sobretudo do espírito roma' Algumas passagens do Novo Testamento demonstram que o *mundo+, para a tradição cristã, se identifica com o Império Romano, representando o domínio providencialde expansão e de vida para a civilização cristã. Foi assim que São Lucas pôde escrever- ou melhor, que o Espírito Santo pôde inspirar São Lucas a escrever - que *naqueles dias foi promulgado um edicto de César Augusto para que todo o universo fosse recenseado+, a que Dante faz alusão, no seu tratado sobre a monarquia, ao falar do *recenseamento do género humano+ (in illa singulari generis humani descriptione); e nomesmo tratado: *Por estas palavras podemos compreender claramente que a jurisdiçãouniversal do mundo pertencia aos Romarios+ e ainda: *Portanto afirmo que o povo romano... adquiriu... o império sobre todos os mortais.+ 36 A Unidade Transcendente das Religiões

no como também originou, na Arábia e em países adjacentes, todo otipo de desvios que arriscavam inundar o Próximo Oriente, e mesmo a índia, de muitas heresias bem distintas do cristianismo primitivo e ortodoxo. A Revelação islâmica, em virtude da autoridade divina inerente a toda aRevelação, tinha certamente o direito sagrado de pôr de lado os dogmascristãos, na medida em que estes dessem origem a desvios, que não passavam de verdades esotéricas vulgarizadas e não verdadeiramente adaptadas. Contudo, as passagens corânicas referentes a cristãos, judeus, sabeuse pagãos tinham sobretudo um valor simbólico que não visava atingir, demodo algum, a ortodoxia das tradições, servindo os respectivos nomesapenas para designar determinadas situações comuns da vida humana. Porexemplo, quando se afirma no Alcorão que Abraão não era judeu nemcristão, mas sim hanif (*ortodoxo+ por referência à Tradição Primordial),é evidente que os termos *judeu+ e *cristão+ só podem aplicar-se a atitudes espirituais genéricas, de que as limitações formais do judaísmo e docristianismo são apenas manifestações particulares, portanto exemplos.Falamos de *limitações formais+ e não, como é óbvio, do judaísmo e docristianismo em si mesmos, cuja ortodoxia não está em causa. Voltando àincompatibilidade relativa entre as formas religiosas - sobretudo algumasdelas -, acrescentaremos que é forçoso que umas, até certo ponto, interpretem

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mal as outras, porque a razão de ser de uma religião reside, pelosmenos num certo sentido, no que a distingue das demais. A ProvidênciaDivina não admite amálgama entre as formas reveladas desde que a humanidade se dividiu em *humanidades+ diferentes e se afastou da Tradição Primordial, a Tradição única possível. Assim, por exemplo, a má interpretação muçulmana do, dogma cristão da Santíssima Trindade éprovidencial, pois a doutrina encerrada neste dogma é essencial e exclusivamente esotérica e não susceptível de *exoterização+ em sentido específico: o islão devia portanto limitar a expansão deste dogma, o que não prejudicou de modo algum a, presença, no islamismo, da verdade universalexpressa pelo dogma em questão. Por outro lado, não será talvez inútilprecisar aqui que a divinização de Jesus e de Maria, atribuída indirectamente aos cristãos pelo Alcorão, dá lugar a uma *Trindade+ que, de resto, este Livro não identifica, em lugar nenhum, com a da doutrina cristã,mas que não menos repousa em realidades como em primeiro lugar a da 37

Iz@ Frithjof Schon

concepção da *Mãe de Deus+ *Corredentora+ doutrina não exotéricaque, enquanto tal, não podia encontrar lugar na perspectiva religiosa doislão - e em seguida a do marianismo de facto que, do ponto de vista islâmico, constitui uma usurparão parcial do culto devido a Deus. Existiu,em algumas seitas do Oriente, certa mariolatria, contra a qual o islão tevede reagir tanto mais violentamente quanto ela se situava muito perto dopaganismo árabe. Mas, por outro lado, segundo o sufi Abd-el-Kati^m el-Jili, a *Trindade+ mencionada no Alcorão é susceptível de uma interpretação esotérica - os gnósticos concebiam, com efeito, o Espírito Santocomo *Mãe Divina+ - e só então a exoterização ou alteração deste sentido é censurada não só aos cristãos ortodoxos como aos hereges adoradores da Virgem. De outro ponto de vista, podemos afirmar - e a própriaexistência dos referidos hereges o atesta - que a *Trindade corânica+corresponde no fundo àquilo em que os dogmas cristãos - por inevitávelerro de adaptação - se teriam tornado num meio árabe para o qual nãohaviam sido feitos. Agora, no que respeita ao dogma da Santíssima Trindade, tal como o entende a ortodoxia cristã, a sua rejeição pelo islão émotivada, para além das razões de oportunidade tradicional, por uma razão de ordem metafísica: é que a teologia cristã entende por Espírito Santo não apenas uma Realidade puramente principial, metacósmica, divina,mas também o reflexo directo desta Realidade na ordem manifesta, cósmica, criada. Na verdade, o Espírito Santo, segundo a definição da teologia, compreende, para além da ordem principial ou divina, o cume oucentro luminoso da Criação total ou, por outras palavras, Ele abarca amanifestação informal. Esta é, para falar em termos hindus, o reflexo directo e central do Princípio Criador, Purusha, na Substância Cósmica,

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Prakriti; tal reflexo, que é a Inteligência Divina manifesta, Buddhi - nosufismo Er-Rúh e El-Aql, ou ainda os quatro Arcanjos que, análogos aosDevas e aos seus Shaktis, representam outros tantos aspectos ou funçõesdesta Inteligência -, tal reflexo, como dizíamos, é o Espírito Santo namedida em que ilumina, inspira e santifica o homem. Quando a teologiaidentifica este reflexo com Deus, tem razão no sentido em que Buddhi ouEr-Rúh - o Metatron da Cabala - *é+ Deus na sua relação essencial,portanto *vertical+, ou seja, no sentido em que um reflexo é *essencialmente+ idêntico à sua causa. Quando pelo contrário a mesma teologia dis 38 A Unidade Transcendente das Religiões

tingue os Arcanjos de Deus-Espírito Santo, vendo neles apenas criaturas,tem ainda razão na medida em que distingue o Espírito Santo, reflectidona Criação, do seu Protótipo principial e divino. Mas é inconsequente aoignorar que os Arcanjos são aspectos ou funções deste centro. supremo daCriação, que é o Espírito Santo enquanto Paracleto. Não é possível, doponto de vista teológico, admitir, por um lado, a diferença entre um Espírito Santo divino, principial, metacósmico, e um Espírito Santo manifestoou cósmico, portanto *criado+, e, por outro, a identificação deste últimocom os Arcanjos. O ponto de vista teológico não pode, com efeito, acumular duas perspectivas diferentes em um só dogma, de onde a divergência entre o cristianismo e o islão: para este último, a *divinização+ cristãdo Intelecto Cósmico é o mesmo que pôr em *pé de igualdades (shirk)com Deus algo que é *criado+, mesmo sendo a manifestação informal, angélica, paradisíaca, paraclética. Fora esta questão do Espírito Santo, o islão não se oporia à ideia de que existe na Unidade Divina um aspecto ternário. O que rejeita é a ideia de que Deus é exclusiva e absolutamenteuma Trindade, pois isso, do ponto de vista muçulmano, é atribuir a Deusuma relatividade ou atribuir-lhe um aspecto relativo de modo absoluto. Quando afirmarmos que uma forma religiosa é feita, se não para tal raça, pelo menos para uma colectividade humana determinada por condições particulares - condições que podem ser, como no mundo muçulmano, de natureza bem complexa -, não negamos o facto de os cristãos seacharem entre quase todos os povos. Para compreendermos a necessidadede uma forma tradicional, não se trata de sabermos se há ou não, no seioda colectividade para a qual esta forma foi feita, indivíduos ou grupos susceptíveis de se adaptarem a tiffia outra forma - o que nunca se poderiadiscutir -, mas unicamente de sabermos se a colectividade total poderiahabituar-se a isso. Por exemplo, para poder pôr em dúvida a legitimidadedo islão, não basta verificar que há árabes cristãos, pois a única questãoque se coloca é a de saber no que se tornaria um cristianismo professadopela colectividade árabe no seu todo. Todas estas considerações ajudarão a compreender que a Divindademanifesta a Sua Pessoalidade através de tal ou tal Revelação e a Sua Suprema Impessoalidade através da diversidade de formas do Seu Verbo. 39

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Frithjof Schuon Chamámos a atenção, mais acima, para o facto de, no estado normal dahumanidade, esta se compor de vários mundos distintos. Ora, alguns obJectarão sem dúvida que Cristo jamais mencionou tal delimitação do mundo, nem mesmo a existência de um esoterismo, ao que responderemosque também não explicou aos judeus como deveriam interpretar as suaspalavras, que todavia os escandalizavam. De resto, o esoterismo dirige-seprecisamente àqueles que têm ouvidos para ouvir+ e que, por isso, nãotêm minimamente necessidade dos esclarecimentos ou provas que podemdesejar aqueles para quem o esoterismo não se dirige. Os ensinamentosque Cristo quis reservar para os seus discípulos, ou para alguns deles, nãotiveram de ser explicitados nos Evangelhos, pois estão neles implícitos deforma sintética e simbólica, a única que as Escrituras Sagradas admitem.Por outro lado, Cristo, na sua qualidade de Encarnação Divina, falava necessariamente de modo absoluto, devido a uma certa subjectivação doAbsoluto, que é própria dos Homens de Deus e sobre a qual não -nos podemos alargar neste momento.' Não tinha, pois, de atender a contingências fora do domínio da sua missão, para especificar que existem mundostradicionais *sãos+ - para nos servirmos de termos do Evangelho - paraalém do mundo *doente+ a que a sua mensagem se dirigia. Também nãohavia de explicar que, ao designar-se como *o Caminho, a Verdade e aVida+, em sentido absoluto, principal, não queria desse modo limitar amanifestação universal do Verbo; afirmava, sim, a sua identidade essencial com este último, cuja vida cósmica vivia de modo subjectivo.' Daí, a Renê Guérion explica esta *subjectivação+ nos seguintes termos: *A vida de algunsseres, na sua aparência individual, apresenta factos correspondentes aos da ordem cósmica, sendo aquela, de algum modo, do ponto de vista exterior, imagem ou reproduçãodestes. Mas, do ponto de vista interior, a relação é inversa, pois, sendo estes seres realmente o Mahâ-Purusha, os factos cósmicos são realmente modelados sobre a sua vida,ou, mais exactamente, sobre aquilo de que a sua vida é expansão directa, sendo os factos cósmicos por si mesmos apenas expressão por reflexo.+ (Études traditionnelles,Março 1939.) Citemos o adágio sufi: *Ninguém pode encontrar Allâh sem antes ter encontrado oProfeta+. Ou seja: ninguém chega a Deus sem ser através do Seu Verbo, qualquer queseja o modo de revelação deste último. Ou ainda, num sentido mais especificamenteiniciático: ninguém alcança o *Si+ divino senão através da perfeição do *Eu+ humano.Importa sublinhar que, quando se diz *Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida+, isso éuma verdade absoluta para o Verbo Divino (*o Cristo+) e relativa para a sua

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manifes 40 A Unidade Transcendente das Religiões

impossibilidade de um taX ser se considerar a si mesmo do simples pontode vista das existências relativas, embora este ponto de vista se ache compreendido em toda a natureza humana e se deva afirmar com incidência.Mas isso em nada contribui para a perspectiva especificamente exotérica. 'Para voltarmos às considerações precedentes, teremos ainda de dizerque, desde a expansão dos Ocidentais pelo mundo, a compreensão doexoterismo se tornou um facto importante que evitava comprometer a religião cristã aos olhos de quem pensasse que. tudo fora desta religião nãopassava de um triste paganismo. Não se poderia censurar ao ensinamentode Cristo uma qualquer omissão, pois ele dirigiu-se à Igreja e não aomundo moderno, que vai buscar o que tem à ruptura com essa Igreja,a sua infidelidade a Cristo. Todavia, o Evangelho contém algumas alusõesaos limites da missão de Cristo e à existência de mundos tradicionais não-assimiláveis ao paganismo: *Não são os sãos que necessitam de médico,mas sim os doentes+, e ainda: *Pois não vim chamar os justos, mas sim ospecadores+ (Mat.,9:12-13) e, por fim, estes versículos que põem em evidência o que é o paganismo: *Não vos preocupeis, portanto, dizendo:Que comeremos ou que beberemos ou de que nos vestiremos? Pois são osGentios (os *pagãos+) que buscam todas estas coisas+ (Mat.,6:31-32).' Poderíamos citar, no mesmo sentido, as seguintes palavras: *Em verdade vosdigo, nem mesmo em Israel encontrei uma fé tão grande. É por isso quevos digo que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar nobanquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino dos Céus, enquanto os filhos do Reino (Israel, a Igreja) serão lançados às trevas exteriores+(Mat.,8:10-12) e: *Quem não é contra nós, é por nós+ (Marc.,9:40). Dissemos acima que Cristo, na sua qualidade de Encarnação divina econforme à essência universal do seu ensinamento, falava sempre de modo absoluto, isto é, identificando simbolicamente certos factos com osprincípios que eles traduzem e sem nunca se colocar no ponto de vista daquele para quem os factos apresentam algum interesse em si mesmos .2 po_

tação humana (*Jesus+). Uma verdade absoluta não se pode limitar a um ser relativo.Jesus é Deus, mas Deus não é Jesus. O cristianismo é divino, mas Deus não é cristão.' De facto, o paganismo antigo, incluindo o dos Árabes, caracterizava-se pelo seu materialismo prático, não sendo possível em boa-fé apontar o mesmo defeito às tradiçõesorientais que se conservaram até aos nossos dias.Na linguagem de Cristo, a destruição de Jerusalém identifica-se simbolicamente com 41

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Friffijof Schuon

demos ilustrar uma tal atitude com o exemplo seguinte: quando falamosdo Sol, quem vai pensar que o artigo definido colocado antes da palavra*Sol+ implica a negação da existência, no espaço, de quaisquer outrossóis? O que permite falarmos no Sol, sem especificarmos que se trata deum entre outros sóis, é precisamente o facto de, para o nosso mundo,o nosso Sol ser *o Sol+ e só a esse título reflectir a Unicidade Divina.Ora, a razão suficiente de uma Encarnação Divina é o carácter de unicidade que a Encarnação recebe do que ela encarna e não o carácter de facto que ela necessariamente recebe da manifestação?

o julgamento final, o que é bem característico do modo de ver sintético e, poderíamosdizer, *essencial+ ou *absoluto+ do Homem-Deus. O mesmo vale para as suas profecias sobre a descida do Espírito Santo: englobam simultaneamente - mas não ininteligivelmente - todos os modos de manifestação paraclética, donde nomeadamente a doprofeta Maomé, que foi a própria personificação do Paracleto ou sua manifestação cíclica. Aliás, o Alcorão é chamado uma *descida+ (tanzil), como o é a epifania do Espírito Santo no Pentecostes. Poderíamos chamar ainda a atenção para o facto de que, sea segunda vinda de Cristo, no fim do nosso ciclo, tiver para os homens um alcance universal, no sentido de que não mais se referirá a *uma humanidades na comum acçãotradicional do termo, mas sim ao género humano como a um todo, o próprio Paracleto, na sua grande epifania, deverá manifestar esta universalidade por antecipação, pelomenos em relação ao mundo cristão, e é por isso que a manifestação cíclica do Paracleto, ou a sua *personificação+ em Maomé, teve de acontecer fora da cristandade, quebrando assim uma certa limitação *particularista+.' Foi o que Cristo quis dizer ao afirmar que *só Deus é bom+. Implicando o, termo*bom+ todos os sentidos positivos possíveis, portanto toda a Qualidade Divina, devemos igualmente entender aqui que *só Deus é único+, o que se conjuga com a afirmação doutrinal do islão: *Não há outra divindade (ou realidade) senão (só) Deus (a Realidade). *A quem quiser confirmar a legitimidade de tal interpretação das Escrituras,responderemos com mestre Eckhart que *o Espírito Santo ensina toda a verdade. Há,de facto, um sentido literal que o autor tem em vista. Mas, como Deus é o Autor daSagrada Escritura, todo o sentido verdadeiro é ao mesmo tempo sentido literal. Poistudo o que é verdadeiro provém da própria Verdade, está nela contido, dela deriva e é

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por ela desejado+. Citemos igualmente esta passagem de Dante por referência ao mesmo assunto: *As Escrituras podem ser entendidas e devem ser expostas segundo quatrosentidos. Um é chamado literal... O quarto é chamado anagógico, ou seja, que ultrapassa o sentido (sovrasenso). É o que acontece quando se expõe espiritualmente umaEscritura que, sendo verdadeira em sentido literal, significa além disso as coisas superiores da Glória Eterna, como podemos ver no Salmo do Profeta onde se diz que,quando o Povo de Israel saiu do Egipto, a Judeia se tornou santa e livre. Embora sejaclaramente verdade que assim foi segundo a letra, o que se entende espiritualmente 42 A Unidade Transcendente das Religiões As relações entre o exoterismo e o esoterismo reduzem-se, em últimaanálise, às que existem entre a *forma+ e o *espírito+, presentes em todoo enunciado e em todo o símbolo. Tais relações devem evidentementeexistir no interior do próprio esoterismo e podemos afirmar que só a autoridade espiritual se coloca ao nível da Verdade nua e integral. O *espírito+, ou seja, o conteúdo supraformal da forma, que é a *letra+, manifestasempre uma tendência a quebrar as limitações formais e a pôr-se, por consequência, em contradição aparente com estas: é assim que podemos considerar toda a readaptação tradicional, portanto toda a Revelação, comofazendo as funções de esoterismo face à forma tradicional precedente, demodo que, para citar um exemplo, o cristianismo é esotérico por referência à forma judaica e o islamismo por referência às formas judaica e cristã, o que, bem entendido, só vale do ponto de vista particular em queaqui nos colocamos e seria totalmente falso se o entendêssemos literalmente. Aliás, se o islamismo se distingue, pela sua forma, das duas outrastradições monoteístas - enquanto é formalmente limitado -, estas comportam igualmente um aspecto de esoterismo em relação àquele e a mesma reversibilidade de relação existe entre o cristianismo e o judaísmo,embora a relação que indicámos antes seja mais directa que a segunda,desde o momento que foi o islamismo quem quebrou, em nome do *espírito+, as *formas+ precedentes e que foi o cristianismo quem desempenhou a mesma função face ao judaísmo e não inversamente. Mas para voltarmos à consideração puramente principal das relações entre a forma e oespírito, nada faríamos de melhor do que citar, a título de ilustração, umapassagem do Tratado da Unidade (Risâ1at-el-Ahadiyah) atribuído a Mohyiddin ibn Arabi, mostrando precisamente esta função esotérica que consiste em *quebrar a forma em-nome do espírito+, como dizíamos mais acima. Esta passagem é a seguinte: *A maioria dos iniciados diz que oconhecimento de Allâh vem na sequência da extinção da existência (fanâel-wujúd) e da extinção desta extinção (fanâ el-fanâ). Ora, esta opinião étotalmente falsa... O conhecimento não exige a extinção da existência (do

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eu) ou a extinção desta extinção. Pois as coisas não têm existência algumae o que não existe não pode deixar de existiras Ora, as ideias fundamentaisnão é menos verdade, ou seja, que quando a alma sai do pecado, ela se torna santa elivre, no seu poder.+ (Convívio, 11, l.) 43 Frithiof Schuon

tais que Ibn Arabi rejeita, de resto com intenção puramente especulativaou metódica, são contudo aceites por aqueles mesmos que consideram IbriArabi como o maior dos mestres. E, de modo análogo, todas as formasexotéricas são *ultrapassadas+ ou *quebradas+, portanto *negadas+ emcerto sentido pelo esoterismo que é o primeiro a reconhecer a perfeita legitimidade de todas as formas de Revelação e que é também o único a poder reconhecer tal legitimidade. *O Espírito sopra aonde quer+ - e, em razão da sua universalidade,ele quebra a forma. Contudo, é obrigado a revestir-se dela no plano formal. *Se queres atingir o núcleo+, afirma mestre Eckhart, *quebra primeiroa casca.+

44 TRANSCENDENCIA E UNIVERSALIDADE DO ESOTERISMO

Antes de entrármos propriamente namatéria, pareceu-nos indispensável darmos alguns esclarecimentos sobre asexpressões mais exteriores do esoterismo, embora tivéssemos preferido deixar de lado este aspecto contingente da questão para nos atermos unicamente ao essencial. Mas como algumas contingências podem dar origem a contestações de princípio, vemo-nos forçados a debatê-las um pouco, ainda quedemorando nisso o menos possível. Com efeito, poderiam surgir dificuldades pelo facto de, ao sabermos que oesoterismo é - por definição e natureza - reservado a uma elite intelectualforçosamente restrita, constatarmos que as organizaçêos iniciáticas desdesempre contaram com um número de membros relativamente elevado. Foiesse, por exemplo, o caso dos pitagóricos e continua a ser a fortiori o das ordens iniciáticas que, apesar do seu declínio, ainda subsistem nos nossos dias,como acontece com as confrarias muçulmanas. Tratando-se de organizaçõesmuito fechadas, serão quase sempre ramos ou núcleos de confrarias maisvastas, e não confrarias no seu todo, salvo excepções sempre possíveis em

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condições particulares. A explicação desta participação mais ou menos popular no que a tradição comporta de mais interior - e, como tal, de mais subtil - é que o esoterismo deve integrar-se para poder existir num dado mundo ou numa modalidade desse mundo, o que põe inevitavelmente em causaelementos muito numerosos da sociedade. Daí que, em tais confrarias, hajaa distinção entre círculos interiores e exteriores, sendo os membros destes úl 45 Frithjof Schuon

timos quase impedidos de tomar consciência do verdadeiro carácter da organização a que pertencem, dentro de certo grau, considerando-a simplesmente como uma forma da tradição exterior, a única que lhes é viável. Pararetomarmos o exemplo das confrarias muçulmanas, é o que explica a distinção entre o membro que tem simplesmente o grau de mutabârik (*abençoado+ ou *iniciado+), quase não saindo da perspectiva exotérica que se propõeviver intensamente, e o membro de elite que tem o grau de sâlik (*viajante+)e que segue o caminho traçado pela tradição iniciática. É verdade que, nosnossos dias, os verdadeiros sâlikún (*viajantes+) que se acham em númeroreduzidíssimo, enquanto os mutabârikún (*abençoados+) são muito numerosos dentro das confrarias, contribuindo para abafar a verdadeira espiritualidade, através de incompreensões múltiplas. Em qualquer dos casos, os mutabârikân, mesmo quando ignorantes da realidade transcendente da suaconfraria, não deixam, em condições normais, de tirar grande proveito dabarakah (*bênção+ ou *influência espiritual+) que os cerca e protege, na medida do seu fervor. Pois, a expansão de graças no seio do esoterismo, pelaprópria universalidade deste, atinge todos os graus da civilização tradicionale não se detém no limite das formas, tal como a luz, que é incolor, não deixade penetrar num corpo transparente só por ele ser colorido. Contudo, esta participação do povo - homens que representam a médiada colectividade - na espiritualidade da elite não se explica unicamente porrazões de oportunidade, mas também, e sobretudo, pela lei da polaridade ouda compensação segundo a qual *os extremos tocam-se+, e por isso se dizque *a voz do povo é a Voz de Deus+ (Vox populi, Vox Dei). O povo, enquanto portador inconsciente e passivo dos símbolos, é como que a periferiaou o reflexo passivo-feminino da elite, que possui e transmite, ela sim, osmesmos símbolos de modo activo e consciente. Isso explica também a curiosa e quase paradoxal afinidade entre o povo e a elite. Por exemplo, o taoísmo é esotérico e popular, enquanto o confucionismo é simultaneamente exotérico e mais ou menos aristocrático e letrado, ou, dando ainda outroexemplo, as confrarias sufi sempre tiveram, a par da sua faceta elitista, umaconotação popular correlativa. Isso porque o povo não tem somente umafunção periférica, mas também uma função de totalidade, correspondendoesta analogicamente ao centro. Poderíamos dizer que as funções intelectuaisdo povo são o artesanato e o folclore, representando o primeiro o método 46 A Unidade Transcendente das Religiões

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ou a realização, e o segundo a doutrina. O povo reflecte assim passiva e colectivamente a função essencialmente da elite, ou seja, a transmissão do aspecto propriamente intelectual da tradição, aspecto cujas vestes são o simbolismo em todas as suas formas. Um outro ponto que devemos elucidar, antes de entrarmos mais directamente na matéria, é o da universalidade das tradições, ideia que, sendo deordem ainda muito exterior, está sujeita a todo o tipo de contingências históricas e geográficas, embora haja quem não hesite em duvidar da sua existência. Assim, ouvimos contestar em algum lado que o sufismo admite estaideia. Mohyiddin ibn Arabi tê-la-ia negado, pois foi ele quem escreveu que oislão é o eixo das outras religiões. Ora, toda a forma de tradição é superioràs outras de uma certa maneira, e tal maneira define mesmo a razão suficiente dessa forma. É sempre essa maneira que aquele que fala em nome dasua religião tem em vista. O que conta, no reconhecimento das outras formas de tradição, é o facto - exotericamente inconcebível - deste reconhecimento, e não o modo ou o grau do mesmo. O Alcorão oferece aliás o protótipo desta maneira de viver: por um lado, afirma que todos os Profetas sãoiguais e, por outro, diz que uns são superiores aos outros, o que significa, segundo o comentário de lbn Arabi, que cada Profeta é superior aos outrospor uma particularidade que lhe é própria, portanto de uma certa maneira.Ibn Arabi era de cultura muçulmana e devia a sua realização espiritual à barakah islâmica e aos mestres do sufismo, numa palavra, à forma islâmica: teve, portanto, de adoptar este ponto de vista, que esclarece como uma formacomporta certa superioridade face às outras formas. Se tal superioridade relativa não existisse, os hindus que se tomaram muçulmanos no decurso dosséculos jamais teriam tido qualquer razão positiva para agir desse modo.O facto de o islão constituir a última forma do Sanâtana-Marma neste mahâ-yuga - para falar em termos hindus - implica que esta forma possuiuma certa superioridade contingente sobre as formas precedentes. Do mesmo modo, o facto de o hinduísmo ser a forma de tradição mais antiga actualmente viva implica que possui certa superioridade ou *centralidade+ em relação às formas posteriores. Não há aí qualquer contradição, pois as maneirasde ver são diferentes de um lado e de outro. Igualmente, o facto de São Bernardo ter pregado as Cruzadas, ignorandoa verdadeira natureza do islão, em nada contradiz o seu conhecimento esoté 47 Frithjof Schuon

rico. Não se trata de sabermos se São Bernardo entendia ou não o islão, massim de sabermos se, em caso de contacto directo e seguido com esta formade Revelação, ele a teria entendido como a entendeu a elite dos Templários,quando colocada nas condições requeridos. A espiritualidade de um homemnão pode depender de conhecimentos históricos ou geográficos ou de outrosconhecimentos *científicos+ da mesma ordem. Podemos assim afirmar que o'universalismo dos esoteristas é virtual quanto às suas aplicações possíveis eque não se torna efectivo sem que as circunstâncias o permitam ou imponham uma aplicação determinada. Por outras palavras, só através do contacto com outra

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civilização é que este universalismo se actualiza. Mas não existeaí qualquer lei rigorosa, e os factores que determinarão em tal esoterista aaceitação de tal forma estranha podem ser muito diferentes consoante os casos. Não é evidentemente possível definir com exactidão o que constitui umcontacto com uma forma estranha, ou seja, o que é suficiente para determinar a compreensão de uma tal forma'. Podemos também chamar a atenção para os espirituais que o sufismo designa pelo termoAfrad (*isolados+, sina. Fard): estes, sempre raros por definição, caracterizam-se por possuírem a iniciação efectiva de uma maneira espontânea e sem que tenham de ser iniciadosde forma ritual. Ora, tais homens, por terem obtido o Conhecimento sem exercício nemestudo, podem ignorar as coisas de que pessoalmente não necessitam. Não tendo sido iniciados, não importa que saibam o que significa a iniciação em sentido técnico. Por isso, falam ao jeito dos homens da *Idade de Ouro+ - época em que a iniciação ainda não eranecessária - mais do que à maneira dos instrutores espirituais da Idade de Ferro. De resto, não tendo seguido um cantinho de realização, não podem assumir o papel de mestresespirituais. Da mesma forma, se Shú Râmakrislina não previu o desvio da sua linhagem espiritual,foi porque, ignorando o espírito ocidental moderno, lhe era impossível interpretar certasvisões num sentido que não fosse simplesmente o hindu. Acrescentemos aliás que o referido desvio, de natureza doutrinal e de inspiração ocidental moderna, não desfez o efeito dagraça de Shri Râmakrishna, mas a esta se somou como simples e supérflua *decoração+,portanto como um nada espiritual. Por outras palavras, o facto de a bhakti do santo ter sido transformada numa pseudo-jnâna de estilo filosófico-religioso, portanto europeia, emnada impediu a influência espiritual de ser aquilo que é. Do mesmo modo, se Shri Rãmakrishna queria no fundo difundir a sua bhakti, de acordo com certas condições particulares de fim cíclico, isso é independente das formas que pôde assumir o zelo de alguns dosseus discípulos. Esta vontade de se entregar totalmente assemelha aliás o santo de Dakshineshwar à família espiritual de Cristo, de modo que tudo o que pode ser dito da naturezaparticular da radiação crística pode também aplicar-se à radiação do Paramahanua: E a 48 A Unidade Transcendente das Religiões Devemos agora responder mais explicitamente à questão de quais asprincipais verdades que o exoterista deve ignorar, sem ter expressamentede as negar'. Ora, entre os conceitos inacessíveis ao exoterismo, o maisimportante é talvez, pelo menos em certo sentido, o da gradação da Realidade

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Universal: a Realidade afirma-se por graus, sem deixar de ser una,achando-se os graus inferiores desta afirmação absorvidos nos graus superiores, por integrarão ou síntese metafísica. É a doutrina da ilusão cósmicaluz brilhou nas trevas, e as trevas não a compreenderam.1 *O formalismo, instituição do homem médio, permite a este atingir a universalidade... É justamente ele que é objecto da shari'ah ou lei sagrada do islamismo... O homem médio estabelece em redor de cada um uma espécie de neutralidade que garantetodas as individualidades, obrigando-as a trabalhar para todos... O islão como religiãoé a via da unidade e da totalidade. O seu dogma fundamental chama-se Et-Tawhide, isto é, a unidade ou a acção de unir. Como religião universal, supõe graus, mas cada umdesses graus é verdadeiramente o islão, ou seja, não importa que aspecto do islão revela os mesmos princípios. As suas fórmulas são extremamente simples, mas o númerodas suas formas é incalculável. Quanto mais numerosas as formas, mais perfeita é a lei.É-se muçulmano quando se segue o destino, ou seja, a razão de ser... A sentença excathedra do mufti tem de ser clara, compreensível a todos, mesmo a um negro iletrado.Ele não tem o direito de se pronunciar sobre outra coisa que não seja um lugar-comumda vida prática. Não o faz nunca, aliás, tanto mais que pode iludir questões que nãopertencem à sua competência. É a clara e conhecida limitação entre as questões sufitase charaítas que permite ao islão ser esotérico e exotérico sem nunca se contradizer.É por isso que nunca há conflitos sérios entre a ciência e a fé nos muçulmanos que entendem a sua religião. A fórmula de Et-Tawhid ou do Monoteísmo é o lugar-comumcharaíta. O alcance que se dá a esta fórmula é uma questão puramente pessoal, poisderiva do sufismo. Todas as deduções que se possam fazer desta fórmula são mais oumenos boas, desde momento que não destruam o sentido literal, Pois então estaremosa destruir a unidade islâmica, ou seja, a sua universalidade, a sua faculdade em seadaptar e convir a todas as mentalidades, circunstâncias e épocas. O formalismo é rigoroso. Não existe superstição, mas sim uma linguagem universal. Como a universalidadeé o princípio e a razão de ser do islão e como, por outro lado, a linguagem é o meio decomunicação entre os seres dotados de razão, segue-se que as fórmulas exotéricas

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sãotão importantes no organismo religioso como as artérias no corpo físico... A vida não éde modo algum divisível. O que a faz parecer assim é o facto de ela ser susceptível degradação. Quanto mais a vida do eu se identifica com a vida do não-eu, tanto mais intensamente se vive. A transfusão do eu em não-eu faz-se pelo dom mais ou menos ritual, consciente ou voluntário. Facilmente se compreende que a arte de dar é o principal arcano da Grande Obra+ (Abul-Hadi, *L'Universalité en 'Islam+, em Le Voiled'Isis, Janeiro de 1934). 49 Frithjof Schuon

ca: o mundo não e apenas mais ou menos imperfeito ou efémero, e simdesprovido de existência face à Realidade absoluta, pois a realidade domundo limitaria a de Deus, o único que *é+. Mas o Ser em si, que maisnão é do que o Deus pessoal, é por sua vez ultrapassado pela Divindadeimpessoal ou suprapessoal, o Não-Ser, de que o Deus pessoal ou o Ser éapenas uma primeira determinação a partir da qual se desenvolvem todasas determinações secundárias que constituem a Existência Cósmica. Ora,o exoterismo não pode admitir nem a irrealidade do mundo nem a realidade exclusiva do Princípio Divino nem sobretudo a transcendência doNão-Ser em relação ao Ser, que é Deus. Por outras palavras, o ponto devista exotérico não pode aceitar a transcendência da Suprema Impessoalidade Divina de que Deus é a afirmação pessoal. Estas verdades são muitoelevadas e, por isso, muito subtis e complexas para o simples entendimento racional. Tornam-se de difícil acesso a uma maioria e pouco susceptíveis de formulação dogmática. Outra ideia que o exoterismo não admite éa da imanência do Intelecto em todos os seres, Intelecto esse que mestreEckhart definia como *incriado e incriável+'. Esta verdade não se podeevidentemente integrar na perspectiva exotérica, não mais que a ideia darealização metafísica pela qual o homem toma consciência do que na realidade jamais deixou de ser, a saber: a identidade essencial como o Princípio Divino, o único que é real. O exoterismo, por seu lado, vê-se obri Sabe-se que alguns textos eckhartianos, que ultrapassam o ponto de vista teológico, escapando assim ao controlo das autoridades religiosas, foram por esta condenados. Se esteveredicto podia ser, de algum modo, legítimo por razões de oportunidade, não o era certamente pela sua forma; e, por um curioso feed-back, João XX11, que emitiu essa bula, foiobriga o por sua vez a retractar-se de uma opinião que ele mesmo avia prega na sua autoridade ameaçada. Eckhart só se retractou por uma questão de princípio, porsimples obediência e antes ainda de conhecer a decisão papal. Por isso, os seus discípulosnão fizeram muito caso da referida bula, e achamos oportuno acrescentar que um deles, o

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beato Henrique Suso, teve uma visão, depois da morte de Eckhart, do *Bem-AventuradoMestre, transformado em Deus, em superabundante magnificência.+' O sufi Yahya Mu'adh Er~Râzi afirma que *o Paraíso é a prisão do sábio assim como omundo é a prisão do crente+. Por outras palavras, a manifestação universal (el-khalq,ou o samsâra hindu), com o seu Centro Beatífico (Es-Samawât, ou o Brahma-loka),é metafisicamente uma (aparente) limitação (da Realidade não-manifesta: A11^ Brahma), tal como a manifestação formal é uma limitação (da Realidade informal, mas ainda manifesta: Es-Samawât, Brahma-loka) do ponto de vista individual ou esoterista. 50

A Unidade Transcendente das Religiões gado a manter a distinção entre o Senhor e o seu servo, para já não falarmos das acusações de panteísmo que os profanos fazem à ideia Meta física da identidade essencial, que os dispensa aliás de qualquer esforço dee compreensão Na verdade, o panteísmo consiste na admissão de uma continuidade entre o Infinito e o finito, que não pode ser concebida sem primeiro admitir mos uma identidade substancial entre o Princípio Ontológico - presente em todo o teísmo - e a ordem manifesta, concepção que pressupõe uma ideia substancial, portanto falsa, do Ser; ou, então, sem confundirmos a identidade essencial da manifestação e do Ser com uma identidade substancial. É nisso, e só nisso, que consiste o panteísmo. Mas parece que algumas inteligências são irremediavelmente refractárias a uma verdade tão simples; a menos que alguma paixão ou interesse as leve a agarrarem-se a um i instrumento de polémica tão cómodo como o termo panteísmo, que permite lançar uma dúvida geral sobre certas doutrinas consideradas incómodas sem que alguém se dê ao trabalho de as examinar em si mesmas'. De qualquer modo, uma tal formulação é excepcional; o esoterismo está normalmente implícito e não explícito, isto é, a sua expressão normal tem o seu ponto de partida nos símbolos da Escritura, de modo que, para retomarmos o exemplo do sufismo, falamos de *Paraíso+ servindo-nos da terminologia corâníca, para designar estados que se situam - como o *Paraíso da Essência+ (Jannat edh-Dhât) @ para além de toda a realidade cósmica e, mais ainda, de toda a determinação individual. Se, portanto,*//* aquele sufi fala do *Paraíso+ como sendo a *prisão do iniciado+, aborda-o do ponto de vista ordinário e cósmico, que é o da perspectiva religiosa, e é obrigado a fazê-lo quando quer pôr em evidência a diferença essencial entre as vias *individual+ e *universal+ ou *cósmica+ e *metacósmica+. Não podemos, pois, esquecer que o *Reino dos Céus+ do Evangelho, tal como o *Paraíso+ (@ànnah) do Alcorão, não designa apenas estados condicionados, mas também aspectos do 1ncondiciõnado de que tais estados são apenas os reflexos cósmicos mais directos. Para voltarmos à citação de Yahya Mu'adh Er-Râzi, encontramos nas sentenças conde nadas de mestre Eckhart um ensamento análogo: *Os que não procuram nem a fortuna, nem as honras, nem a

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utilidade, nem a devoção interior, nem a santidade, nem a recom pensa, nem o reino dos Céus, mas a tudo renunciam, mesmo ao que lhes pertence, é em tais homens que Deus é glorificados - Esta sentença, como a de Er-Râzi, não exprime outra coisa senão a negação metafísica da individualidade na realização da União. O *panteísmo+ é o grande recurso de todos os que querem sem esforço iludir o esote rismo e pensam entender por exemplo um texto metafísico ou iniciático só porque co nhecem gramaticalmente a lingua em que está escrito. Em geral, que dizer do vazio das 51 Frithjof Schuon

Mesmo que a ideia de Deus mais não fosse do que uma concepção daSubstância Universal (matéria-prima) e o Princípio Ontológico estivesseassim fora de causa, a acusação de panteísmo seria ainda injustificada, visto que a matéria-prima permaneceria sempre transcendente e virgem porreferência às suas produções. Se Deus é concebido como a Unidade Primordial, a Essência Pura, nada lhe pode ser substancialmente idêntico.Mas, ao qualificar-se como panteísta o conceito da identidade essencial,nega-se ao mesmo tempo relatividade às coisas, atribuindo-se-lhes umarealidade autónoma em relação ao Ser ou à Existência, como se houvesseduas realidades essencialmente distintas, duas Unidades ou Unicidades.A consequência fatal de um semelhante raciocínio é o materialismo puroe simples, pois desde que a manifestação deixa de ser concebida como essencialmente idêntica ao Princípio, a admissão lógica desse Princípio torna-se uma mera questão de credulidade. E, se tal sentimentalismo vai àfalência, deixa de haver razão para admitirmos a existência de algo queultrapassa a manifestação, mais particularmente a manifestação sensível. Mas voltemos à Impessoalidade Divina. Em rigor, esta é sobretudo umaNão-Pessoalidade: não é pessoal nem impessoal, mas suprapessoal. Noentanto, não há que entendermos o termo *Impessoalidade+ no sentidode uma privação, pois trata-se aqui, pelo contrário, da Plenitude, da flimitação absoluta, por nada determinada, nem mesmo por si própria. É aPessoalidade que, por referência à Impessoalidade, é um tipo de privaçãoou *determinação privativas, e não o inverso. Entendemos aqui por *Pessoalidade+ apenas o *Deus Pessoal+ ou *Ego Divino+ - se assim se podefalar -, e não o Si, que é o Princípio transcendente do Eu e a que, semrestrições, poderíamos chamar Pessoalidade por referência à individualidade. O que aqui distinguimos é, pois, a *Pessoa Divina+, Protótipo principal da individualidade, e, por outro lado, a Impessoalidade, que é a Esdissertações que pretendem fazer das doutrinas sagradas um tema de estudo profano,como se não existissem conhecimentos não acessíveis a certas pessoas e como se bastasse ter estado na escola para entender a mais venerável sabedoria, ainda melhor do queos sábios a entenderam? Pois se são *especialistas+ e *críticos+, nada está fora do seu

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,alcance. É uma atitude que mais parece com a de crianças que, tendo encontrado livrospara adultos, os julgassem segundo a sua ignorância, o seu capricho ou a sua preguiça. 52 A Unidade Transcendente das Religiões

sência infinita dessa Pessoa. Tal distinção entre Pessoa Divina - quemanifesta um querer particular, num mundo simbólico único - e Realidade Divina Impessoal - que, pelo contrário, manifesta a Vontade Divinaessencial e universal através das formas do Querer Divino particular oupessoal, por vezes em aparente contradição com ele - é absolutamentefundamental no esoterismo, não só pela importância que assume na doutrina metafisica, mas porque explica a eventual antinomia entre os domínios exotérico e esotérico. Por exemplo, na pessoa do rei Salomão, há quedistinguir o seu conhecimento esotérico - referente ao que chamámos a*Impessoalidade divina+ - e a sua ortodoxia exotérica, a sua conformidade ao Querer da *Pessoa Divina+. Não foi contra tal Querer, mas em virtude desse conhecimento, que o grande edificador do Templo de YHWHreconheceu a Divindade em outras formas reveladas, ainda que decaídas.Não foi a sua degradação nem o seu *paganismo+ que o Rei-Profeta abraçou, mas sim a sua pureza primitiva, reconhecível através do simbolismo;de modo que se pode dizer que as aceitou através do véu da sua degradação. Não será, aliás, a insistência, feita no Livro da Sabedoria, sobre avaidade da idolatria, um desmentido da interpretação exotérica formuladano Livro dos Reis? Seja como for, o Rei-Proféta, ainda que situado paraalém das formas, havia de sofrer as consequências do que o seu universalismo tinha de contraditório no plano formal. Afirmando essencialmenteuma forma - o monoteísmo judaico - e fazendo-o no modo eminentemente formal do simbolismo histórico - preso, por definição, aos acontecimentos -, a Bíblia teve de censurar a atitude de Salomão, pois estacontradizia visivelmente a manifestação pessoal da Divindade. Mas, aomesmo tempo, fez constar que a infracção não comprometeu a pessoamesma do Sábio!. A atitude *irregular+ de Salomão atraiu sobre o seu

1 Assim, o Alcorão afirma que *Salornão não era um ímpio+ (ou *herege+: mâ kafaraSulaymân; súrat el-baqarah, 102) e exalta-o nestes termos: *Que servo excelente foi Salornão! Na verdade, ele estava (no seu espírito) constantemente virado para AIlâh+ (oscomentadores acrescentam: *glorificando-o e louvando-o sem cessar+; sârat çad, 30).Todavia o Alcorão faz alusões a uma prova enviada a Salornão por Deus, depois deuma oração de arrependimento do Rei-Profeta e enfim a resposta divina (ibid., 34-36).Ora, o comentário desta passagem enigmática concorda simbolicamente com a

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narração do Livro dos Reis, pois refere que uma das esposas de Salornão adorou um ídolocontra sua vontade e no seu próprio palácio. Salomão perdeu o anel, e com ele o reino 53

X Frithjof Schon

Reino o cisma político: Esta, a única sanção reportada pela Escritura,punição desproporcionada se o Rei-Profeta houvesse praticado um politeísmo verdadeiro, o que não foi, de modo algum, o caso. A sanção mencionada refere-se exactamente à *irregularidade+ e não a mais do que isso. Por esse motivo, a memória de Salomão permaneceu venerada não sóno judaísmo, nomeadamente na Cabala, mas também no islão charaíta esufi. Quanto ao cristianismo, são conhecidos os Comentários que o Cântico dos Cânticos inspirou a São Gregório de Nissa, a Teodoreto e a SãoBernardo, entre outros. Ora, se a antinomia entre as duas grandes *dimensões+ da tradição surge já na própria Bíblia, que é todavia um livrosagrado, é porque o modo de expressão deste Livro, como a própria forma do judaísmo, dá preponderância ao ponto de vista exotérico, quase diríamos *social+, e até *político+ - embora não em sentido profano. Nocristianismo, a relação é inversa. E no islamismo, síntese dos gênios judaico e cristão, as duas *dimensões+ tradicionais aparecem em equilíbrio:por isso, o Alcorão só considera Salomão (Seyidnâ Sulaymân) sob umprisma esotérico e na sua dignidade de Profeta'. Mencionemos, por fim,

por uns dias, encontrando em seguida o anel e recuperando assim o reino. Depois, pediu a Deus que lhe perdoasse e obteve dele um poder maior e mais maravilhoso do quedantes. O livro sagrado do islão enuncia a impecabilidade dos Profetas nos seguintes termos:*Eles não O (Allâh) precedem pela palavra (não são os primeiros a falar) e agem segundo o Seu mandamentos (súrat el-anbiyah, 27). O que equivale a afirmar que os Profetas não falam sem inspiração e não agem sem ordem divina. Ora, tal impecabilidadesó é compatível com as *acções imperfeitas+ (dhunúb) dos Profetas em virtude da verdade metafísica das duas Realidades Divinas, uma pessoal e a outra impessoal, cujasmanifestações podem contradizer-se de facto nos grandes homens espirituais, mas

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nunca no comum dos mortais. O termo dhanb tem igualmente o sentido de *pecado+, sobretudo *pecado por inadvertências, mas sobretudo e originariamente *imperfeição naacçao+ ou *imperfeição resultante de uma acção+. E por isso que só se usa o termodhanb quando se trata de Profetas, e não o termo ithm, que significa exclusivamente*pecado+ com carácter intencional. Se quiséssemos encontrar uma contradição entre aimpecabilidade dos Profetas e a imperfeição extrínseca de algumas das suas acções, deveríamos igualmente considerar incompatíveis a perfeição de Cristo e a sua palavra sobre a sua natureza humana: *Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.+Esta palavra responde também à questão por que David e Salomão não previram umcerto conflito entre tal grau da Lei Universal. É porque a natureza individual sempreguarda certos *pontos cegos+ cuja presença entra na própria definição dessa natureza. 54 A Unidade Transcendente das Religiõesuma passagem da Bíblia onde YHWH ordena ao profeta Natan que leve aDavid as seguintes palavras: *Quando os teus dias se cumprirem e foresdeitado com os teus pais, enaltecerei a tua posteridade depois de ti, aquele (Salornão) que sairá das tuas entranhas, e conformarei a sua realeza.Será ele quem construirá uma casa para o Meu Nome e eu confirmarei para sempre o trono do seu reino. Serei para ele um pai, e ele para Mim umfilho. Se praticar o mal, castigá-lo-eí com verga de homens e golpes de filhos de homens. Mas a minha graça jamais se retirará dele, como a retireide Saul, que fiz sair de diante de ti+ (11 Sam.,7:12-15). Um exemplo muito análogo é o de David, a quem o Alcorão reconheceigualmente a dignidade de Profeta e que os cristãos veneram como umdos maiores santos da Antiga Aliança. Parece-nos evidente que um santonão pode cometer os pecados - não queremos dizer: praticar as acções-de que se acusa David. O que é preciso entender é que a transgressão,que a Bíblia do ponto de vista legal atribui ao Santo Rei, só surge em função da perspectiva essencialmente moral, portanto exotérica, que predomina neste livro sagrado - o que explica aliás a atitude de São Paulo,e do cristianismo em geral, para com o judaísmo, que permite encarar oponto de vista cristão como eminentemente *interior+; enquanto a impecabilidade dos Profetas, afirmada entre outros pelo Alcorão, é uma realidade mais profunda da que o ponto de vista moral consegue alcançar.Esotericamente, a vontade de David em desposar Betsabé não podia seruma transgressão, pois a dignidade de Profeta só se concede a homens livres de paixões, quaisquer que sejam as aparências. O que é preciso discernir, antes de mais, na relação entre David e Betsabé é uma afinidadeou complementaridade cósmica e providencial cujo fruto e justificação foi

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Salornão, aquele que *YHWH-amou+ (11 Sam., 12:24). A vinda deste seEsta limitação necessária de toda a substância individual não ameaça, de modo algum,a realidade espiritual à qual esta substância se acha unida de modo, por assim dizer,*acidental+. Pois não existe medida cormun entre o individual e o espiritual, que é simplesmente o divino. Citemos, para terminar, esta palavra do califa Ali, representante por excelência doesoterismo no islão: *A quem vier a contar a história de David como a contam os contadores de histórias (isto é, segundo uma interpretação exotérica ou profana), dareicento e sessenta chicotadas e isso será a punição dos que proferirem falso testemunhocontra os Profetas.+ 55 Frithiof Schuon

gundo Rei-Profeta foi como que uma conformação divina e uma bênçãoda união entre David e Betsabé, pois Deus não sanciona nem recompensaum pecado. Sgundo Mohyiddin ibn Arabi, Salomão foi para David muitomais do que uma recompensa: *Salomão era o dom de Allâh a David,conforme a Palavra divina: E fizemos dom a David de Salomão (Alcorão,súrat çad, 30). Ora, recebe-se um presente por favor, não como recompensa de um mérito. É por isso que Salomão é a graça superabundante, ea prova evidente, e o golpe aterradoras (Fuçúç el-hikam, Kalimah sulaymâniyah). Mas consideremos agora a narrativa no que diz respeito a Uriaso Heteu: de novo, a atitude de David não deverá ser julgada do ponto devista moral, pois - já sem falarmos no que a morte heróica representavapara um guerreiro e, tratando-se de uma Guerra Santa como a dos Israelitas, tal morte assumia carácter sacrificial imediato - o móbil desta atitude só podia ser uma intuição profética. Contudo, a escolha de Betsabé e acondenação de Urias à morte, ainda que cosmológica e providencialmentejustificados, chocavam com o Princípio exotérico. E David - continuandoa desfrutar, pelo nascimento de Salomão, do que a sua atitude tinha de intrinsecamente legítimo - teve de suportar as consequências deste choque.Ora disto encontramos eco nos Salmos, Palavra de Deus e prova de queDavid era Profeta: as acções de David, se comportam um aspecto negativo numa dimensão exterior, não constituem porém pecados em si mesmas; poderíamos mesmo dizer que Deus as inspirou tendo em vista a Revelação dos Salmos que deveriam cantar, de um canto divino e imortal,não apenas os sofrimentos e a glória da alma, sedenta de Deus, mas também os sofrimentos e a glória do Messias. A atitude de David não foi evidentemente contrária ao Querer Divino, pois Deus não só *perdoou+ aDavid - para usar o termo algo antropomórfico da Bíblia -, como nãolhe retirou de imediato Betsabé, causa e objecto do pecado, antes confirmou a união dos dois, fazendo-lhes dom de Salornão. E, se em David, como em Salomão, a

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irregularidade exterior - simplesmente extrínseca de certas acções provocou uma reacção, importa reconhecer que esta se limita estritamente ao domínio dos factos terrestres. Este dois aspectos um exterior ou negativo, outro interior ou positivo - da história da mulher de Urias manifestam-se ainda em dois factos: primeiro, na morte doseu primogénito e, depois, na vida, grandeza e glória do seu segundo filho, aquele que *YHWH amou+. 56 A Unidade Transcendente das Religiões Esta digressão pareceu-nos necessária para ajudar a entender que osdois domínios, exotérico e esotéríco, são profundamente distintos em natureza e que qualquer incompatibilidade só pode derivar do primeiro enunca do segundo, que se encontra além das oposições, porque além dasformas. Existe um dito sufi que esclarece com tanta limpidez quanta concisão as diferenças de ponto de vista entre as duas grandes vias: *A viaexotérica é: eu e Tu. A via esotérica é: eu sou Tu e Tu és eu. O Conhecimento esotérico é: nem eu nem Tu, mas Ele.+ O exoterismo funda-se, porassim dizer, no dualismo *criatura-Criador+ ao qual atribui uma realidadeabsoluta, como se a realidade divina, que é metafisicamente única, nãoabsorvesse ou anulasse a realidade da criatura, portanto toda a realidaderelativa e aparentemente extradivina. Se é verdade que o esoterismo admite a distinção entre o eu individual e o Si universal ou divino, só o fazprovisoria e metodicamente, não em sentido absoluto. Partindo desta dualidade, que corresponde a uma realidade relativa, chega a ultrapassá-lametafisicamente, o que seria impossível para o exoterismo, cuja limitaçãoconsiste precisamente em atribuir uma realidade absoluta ao que é contingente. Chegamos assim à própria definição da perspectiva exotérica: duafismo irredutível e procura exclusiva de salvação individual - dualismoque implica que Deus seja considerado apenas sob o ângulo das suas relações com o criado, e não na sua Realidade total e infinita, a sua Impessoalidade que aniquila toda a realidade aparentemente distinta dele. Não é o dualismo dogmático que é em si mesmo censurável - Pois corresponde ao ponto de vista individual em que a religião se coloca -, massim as induções que implicam a atribuição de uma realidade absoluta aorelativo. Metafisicamente, a realidade humana reduz-se à Realidade Divina e é, em si mesma, apenas'ilusória. Teologicamente, a Realidade Divinareduz-se aparentemente à realidade humana, no sentido em que não a ultrapassa em qualidade existencial, mas só em qualidade causal.

A perspectiva das doutrinas esotéricas manifesta-se de maneira particularmente clara no seu modo de encarar aquilo a que ordinariamente chamamos o mal. Atribuiu-se-lhes muitas vezes a negação pura e simples do 57 Frithjof Schon mal, mas tal interpretação é rudimentar e imperfeita. A diferença entre'as

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concepções religiosa e metafisica do mal não consiste no facto de uma ser falsa e a outra verdadeira, mas simplesmente em a primeira ser parcial e individual, enquanto a segunda é integral e universal. O mal ou o Diabo na perspectiva religiosa só corresponde por consequência a uma visão par cial e não é de modo algum equivalente à força cósmica negativa aborda da pelas doutrinas metafisicas e que a doutrina hindu designa pelo termo camas: se camas não é o Diabo - mas mais propriamente o derniurgo co mo a força que dá consistência à manifestação cósmica, atraindo-a para baixo e afastando-a do Princípio-Origem -, a verdade é que o Diabo é uma forma de camas, considerada unicamente nas suas relações com a al ma humana. Sendo o homem um ser individual consciente, a força cósmi ca, em contacto com ele, assume necessariamente uma feição individual, consciente e pessoal. Fora da esfera humana, esta mesma força poderá to mar aspectos perfeitamente impessoais e neutros, por exemplo, quando se manifesta como peso físico ou densidade material, ou sob a aparência de um animal hediondo ou de um metal vulgar e pesado como o chumbo. Mas a perspectiva religiosa, por definição, só se ocupa do homem e não vê a cosmologia senão em função dele. É escusado, pois, criticar esta4 perspectiva por encarar camas de forma personificada, ou seja, naquilo que atinge precisamente o mundo do homem. Se, portanto, o esoterismo parece negar a existência do mal, não é que ignore ou se recuse a admitir a natureza das coisas tais quais são na realidade. Pelo contrário, penetra -as inteiramente, e é por isso que lhe é impossível isolar da realidade um ou outro dos seus aspectos, encarando um deles do ponto de vista exclusi vo do interesse individual humano. É demasiado evidente que a tendência cósmica de que o Diabo é a personificação quase humana não é um *mal+, pois é esta tendência que condensa os corpos materiais e, se por absurdo desaparecesse, todos os corpos ou compostos físicos e psíquicos instantaneamente se volatilizariam. Mesmo o objecto mais sagrado neces sita desta força para poder existir materialmente. Ninguém ousaria, por exemplo, afirmar que a lei física que condensa a matéria de uma hóstia é uma força diabólica ou um mal de qualquer espécie. Ora,.é devido ao carác ter *neutro+ - sem distinção de *bem+ e *mal+ - da tendência demiúrgica que as doutrinas esotéricas, reportando todas as coisas à sua realidade essen cial, parecem negar aquilo a que chamamos humanamente o mal. 58 A Unidade Transcendente das Religiões Poderíamos todavia perguntar-nos que consequências implica para oiniciado uma tal concepção *não-moral+ - embora não *imoral+ - do*mal+. A isso, responderemos que, na consciência e na vida do iniciado,a ideia de pecado dá lugar ao conceito de dissipação - ou seja, tudo o que écontrário à concentração espiritual, digamos, à unidade. Trata-se sobretudode uma diferença de princípio e de método, que não intervém do mesmomodo em todos os indivíduos. Aliás, o que moralmente é pecado é, do ponto de vista iniciático, quase sempre dissipação. Tal concentração - ou tendência à unidade (tawhid) - exprime-se, no islão exotérico, no acto de fé naUnidade de Deus: a maior transgressão consiste em associar outras divindades a A11^ o que para o iniciado (o faqir) tem um alcance universal, poistoda a afinnação individual traz consigo a mácula de uma falsa divindade.

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E se, do ponto de vista religioso, o maior mérito consiste em professar sinceramente a Unidade Divina, para o faqir trata-se de realizá-la de um modoespiritual, portanto num sentido que abarca todas as dimensões do universo,e isso precisamente pela concentração de todo o seu ser na única RealidadeDivina. Para tornar mais clara a analogia entre pecado e dissipação, diríamos, por exemplo, que a leitura de um bom livro jamais será considerada noexoterismo como um acto repreensível, mas poderá sê-lo no esoterismo, casose trate de uma distracção ou sempre que esta leve a melhor sobre a utilidade. Inversamente, algo sempre considerado pela moral religiosa como tentação, como via para o pecado e, portanto, começo deste, poderá no esoterismo desempenhar um papel totalmente oposto, não sendo uma dissipação*pecadora+, mas pelo contrário um factor de concentração em virtude da inteligibilidade imediata do seu simbolismo. Há mesmo casos, por exemplo notantrismo ou em alguns cultos da Antiguidade, em que coisas por si mesmaspecaminosas - não apenas contra a moral religiosa, mas contra as leis da civilização em que se produzem - servem de suporte para a intelecção, o quepressupõe uma forte predominância do elemento contemplativo sobre o elemento passional. Ora, uma moral religiosa nunca existe só para os contemplativos, mas sim para todos os homens. Ter-se-á entendido que não se trata, de modo algum, de depreciar amoral, que é uma instituição divina. Mas o facto de ser divina não impedeque seja limitada. Não percamos de vista que, na . maioria dos casos, asleis morais, fora do seu domínio ordinário, se tornam símbolos e veículos 59 Frithjof Schuon

de conhecimento. Toda a virtude traz a marca de uma conformidade à *atitude divina+, portanto um modo indirecto, como que existencial, de conhecimento de Deus. O que equivale a dizer que, se podemos descortinar um objecto pela sua simples visão, a Deus só podemos conhecê-Lo pelo *ser+.Para conhecer a Deus, é preciso assemelhar-se-Lhe, ou seja, conformar onosso microcosmo ao Metacosmo, Divino - e assim também ao macrocosmo - como o ensina expressamente a doutrina hesiciasta. Dito isso, há quesublinhar com veemência que a amoralidade da posição espiritual é uma supramoralidade mais do que uma não-moralidade. A moral, no sentido maislato do termo, é ao seu nível o reflexo da verdadeira espiritualidade e deveser integrada, com as verdades ou erros parciais, no ser total. Por outras palavras, do mesmo modo que o homem mais santo não está totalmente dispensado de agir neste mundo, pois dispõe de um corpo físico que a isso oobriga, também não está nunca totalmente liberto da distinção entre *bem+e *mal+, a forçosamente em toda a acção. ja que esta se insinu Poder-se-iam, se não definir, pelo menos descrever as duas grandes dimensões tradicionais - o exoterismo e o esoterismo - caracterizando aprimeira com o auxilio dos termos *moral, acção, mérito, graça+; a segunda com a ajuda dos termos *simbolismo, concentração, conhecimento,

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identidades. Donde: o homem passional aproximar-se-á de Deus atravésda acção, cujo suporte é uma moral; o homem contemplativo unir-se-á àsua Essência Divina através da concentração cujo suporte é um simbolismo que, naturalmente, não exclui a atitude precedente dentro dosSmitesque lhe são próprios. A moral é um princípio de acção, portanto, de mérito, enquanto o simbolismo é um suporte de contemplação e um meio deintelecção. O mérito, que se adquire por um modo de acção, tem comofim a graça de Deus, enquanto o objectivo da intelecção, se é que a podemos dissociar deste, é a união ou identidade com o que nunca deixámosde ser na nossa Essência existencial ou intelectual. Por outras palavras, o fimsupremo é a reintegração do homem na Divindade, do contingente no Absoluto, do finito no Infinito. A moral, em si mesma, não tem sentido fora dodomínio restrito da acção e do mérito, e não atinge portanto, de modoalgum, realidades como o simbolismo, a contemplação, a intelecção, aidentidade pelo Conhecimento. Quanto ao *moralismo+, que, não podemos confundir com a moral, ele não passa de uma tendência a substituirqualquer outro ponto de vista pelo da simples moralidade. Daí resulta, 60 A Unidade Transcendente das Religiões

pelo menos no cristianismo, uma espécie de finca-pé ou suspeita contratudo o que tem um carácter agradável e o erro de crer que todas as coisas agradáveis são apenas agradáveis e nada mais. Esquece-se que aqualidade positiva, e portanto o valor simbólico e espiritual, de umacoisa agradável pode, no caso do verdadeiro contemplativo, compensaro inconveniente do deleite momentâneo da natureza humana, pois todaa qualidade positiva se identifica essencialmente - mas não existencialmente - com uma qualidade ou perfeição divina, que é o seu protótipoeterno e infinito. Se pode haver, nas considerações precedentes, algumaaparência de contradição, esta deve-se ao facto de termos encarado amoral, e, por um lado, em si mesma, como oportunidade social óu psicológica, por outro, como elemento simbólico, na sua qualidade de suporte da intelecção. Neste último contexto, a oposição entre moral esimbolismo ou intelectualidade já não faz evidentemente sentido. Agora, quanto ao problema da existência do mal, o ponto de vista religioso só nos fornece respostas indirectas e'evasivas@ ao afirmar que a Vontade divina é insondável e que todo o mal acabará, um dia, por ser vencido pelo bem. Ora, esta segunda afirmação não explica o mal. E, quanto à'primeira, dizer que IYeus é insondável significa que nós não podemos résolver qualquer aparência de contradição nos Seus *modos de agir+. Esotericamente, o problema do mal reduz-se a duas questões: a primeira, porque motivo o criado implica necessariamente imperfeição? A segunda, porque razão existe o criado? -A primeira destas questões é preciso responderque, se não houvesse imperfeição no criado, nada o poderia distinguir doCriador. Ou, por outras palavras, aquele não -seria efeito ou manifestação,mas sim Causa ou Princípio. E, à segunda questão, responderemos que aCriação ou manifestação está rigorosamente imphcada na infinitude do Princípio,

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no sentido em que aquela é um aspecto ou consequência deste, o queequivale a dizer que, se o mundo não existisse, o Infinito não seria o Infinito, pois, para ser o que é, o Infinito deve negar-se aparente e simbolicamente a Si mesmo, e é o que acontece com a manifestação universal. O mundonão pode não existir, pois é um aspecto possível, portanto necessário, da necessidade absoluta do Ser; a imperfeição também não pode não existir, poisé um aspecto da própria existência do mundo; esta acha-se rigorosamenteimplicado na infinidade do Princípio Divino e também a existência domal está implicado na existência do mundo. Deus é Todo-Bondade e o 61 Frithjof Schwn

mundo é disso imagem. Mas como a imagem não pode ser, por definição,aquilo que representa, o mundo tem de ser limitado por referência à Bondade Divina, donde se explica a imperfeição na existência. As imperfei-'ções por consequência mais não são do que rupturas na imagem da Perfeição Total da Divindade. Evidentemente não provêm dessa Perfeição, masdo carácter necessariamente relativo ou secundário da imagem. A manifestação implica por definição a imperfeição, como o Infinito implica pordefinição a manifestação: esta tríade *Infinito, manifestação, imperfeição+co nstitui a fórmula explicativa de tudo o que o espírito humano pode encontrar de problemático nas vicissicutes da existência. Quando somos capazes de ver com o olho do Intelecto as causas metafisicas de toda a aparência, deixamos de nos fixar em contradições insolúveis, comoforçosamente acontece na perspectiva exotérica, cujo antropomorfismo éincapaz de abranger todos os aspectos da Realidade Universal.

Um outro exemplo de impotência do espírito humano face aos seus próprios recursos é o problema da predestinação. Esta ideia não traduz outracoisa, na linguagem da ignorância humana, senão o Conhecimento Divinoque engloba, na sua perfeita simultaneidade, todas as possibilidades semqualquer restrição. Por outras palavras, se Deus é omnisciente, conheceas coisas futuras, ou antes, as que assim o parecem aos seres limitados pelo tempo: se Deus não conhecesse essas coisas, não seria omnisciente.Desde momento que as conhece, elas aparecem como predestinadas porreferência ao indivíduo. A vontade individual é livre na medida em que éreal, Se não fosse, em algum grau e de alguma maneira, livre, seria irrealidade pura e simples, portanto, coisa nenhuma. E, de facto, aos olhos daLiberdade Absoluta, não passa disso, ou seja, ela não existe de modo algum. Contudo, do ponto de vista individual, o do ser humano, a vontadeé real e é-o na medida em que este participa da Liberdade Divina, de onde a liberdade individual tira toda a sua realidade, em virtude da sua relação causal. Daí resulta que a liberdade, como toda a qualidade positiva, édivina enquanto tal e humana enquanto não perfeitamente ela mesma,assim como um reflexo do Sol é idêntico a este não como reflexo mas enquanto luz, sendo a luz una e indivisível na sua essência. 62

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A Unidade Transcendente das Religiões Poderíamos exprimir a relação metafisica entre a predestinação e a liberdade comparando esta a um líquido que penetra todas às sinuosidadesde um recipiente, sendo este a predestinação: o movimento do líquidoequivale ao exercício livre da nossa vontade. Se não podemos querer outra coisa senão o que nos é predestinado, isso não impede a nossa vontadede ser aquilo que é, ou seja, uma participação relativamente real no seuprotótipo universal. E é precisamente tal participação que faz com que experimentemos e vivamos a nossa vontade como livre. A vida do homem - e, por extensão, todo o ciclo individual, de que a vida e a condição de homem mais não são do que modalidades - está, de facto, contida no Intelecto Divino como um todo finito, ou seja, como umapossibilidade determinada que, sendo aquilo que é, não é em nenhum dosseus aspectos outra coisa senão ela mesma, pois uma possibilidade mais nãoé do que uma expressão da absoluta necessidade do Ser. Daí deriva a unidade ou homogeneidade de tudo o que é possível, de tudo o que não pode nãoser. Dizer que um ciclo individual está definitivamente incluído no IntelectoDivino equivale a afirmar que uma possibilidade está incluída na Possibilidade Total, e é esta verdade que fornece a resposta mais decisiva à questão dapredestinação. A vontade individual aparece então como um processo querealiza, de modo sucessivo, o encadeamento necessário das modalidades dasua possibilidade inicial, simbolicamente descrita ou recapitulada. Tambémpodemos dizer que, sendo a possibilidade de um ser uma possibilidade demanifestação, o processo cíclico desse ser é o conjunto dos aspectos da suamanifestação e, portanto, da sua possibilidade; o ser mais não faz do quemanifestar em diferido, por meio da sua vontade, a sua manifestação cósmica e simultânea. Por outras palavras, o indivíduo retraça de uma maneiraanalítica a sua possibilidade sintética e primordial, que encontra o seu lugarinexpugnável, porque necessário, na hierarquia das possibilidades. E a necessidade de cada possibilidade é metafisicamente fundada, como vimos, naabsoluta necessidade da Possibilidade Divina Total.

Para concebermos a universalidade do esoterismo, que não é mais doque a da prática metafísica, importa acima de tudo entendermos que o I1,1 63 Frithjof Schon meio ou órgão do Conhecimento metafísico é ele mesmo de ordem uni versal, e não de ordem individual como a razão. Por consequência, esse meio ou órgão, que é o Intelecto, deve encontrar-se em todos os esca Iões da natureza e não apenas no homem como é o caso do pensamento discursivo. Se quisermos responder agora à questão de como o Intelec to se manifesta nos reinos periféricos da natureza, há que recorrermos a considerações algo complexas para quem não tiver o hábito das espe culações metafísicas e cosmológicas. O que vamos explicar é, em si, uma verdade fundamental e evidente. Diríamos pois que, num estado periférico de existência, na medida em que ele se encontra afastado do estado central do mundo

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ao qual estes dois estados pertencem - e o estado humano, como qualquer outro estado análogo, é central em re lação aos outros estados periféricos, terrestres ou não, portanto, nãoA, somente em relação aos estados animais, vegetais e minerais, mas tam bém aos estados angélicos, donde a adoração de Adão pelos anjos no Alcorão - na medida, dizíamos, em que num estado periférico, o Inte lecto se confunde com o seu conteúdo - uma planta não sabe o que quer, nem progride em conhecimento, achando-se passivamente ligada e identificado com o conhecimento que lhe é imposto por natureza e determina essencialmente a sua forma. Por outras palavras, a forma de um ser periférico - um animal, um vegetal, um mineral - revela tudo o que esse ser conhece e identifica-se de algum modo com esse conheci mento. Poderíamos portanto dizer que a forma de um tal ser define o seu estado ou sonho contemplativo. O que distingue os seres, à medida que eles em estados cada vez mais passivos ou inconscientes, é o seu modo de conhecimento ou a sua inteligência. Humanamente falando, seria absurdo afirmar que o ouro é mais inteligente do que o cobre e que o chumbo é pouco inteligente. Mas, metafisicamente, não haveria nisso nada de anormal: o ouro representa um estado de conhecimento solar, e é isso que permite que o associemos às influências espirituais, conferindo-lhe assim um carácter eminentemente sagrado. O objecto do conhecimento ou da inteligência é sempre e por definição o Princí pio Dívino e não pode deixar de o ser, pois é metafisicamente a única Realidade. Mas esse objecto ou conteúdo pode mudar de forma, con 64 A Unidade Transcendente das Religiões

soante os modos e graus indefinidamente diversos da Inteligência reflectida nas criaturas. Acrescente-se ainda que o mundo manifesto, ou criado,possui uma dupla raiz: a Existência e a Inteligência, a que correspondemanalogicamente, nos corpos ígneos, o calor e a luz. Ora, todo o ser revelaestes dois aspectos ao nível da realidade contingente. O que diferencia osseres são os seus modos ou graus de Inteligência. Mas o que os une, entresi, e a sua Existência que é a mesma em todos. A relação inverte-se quando deixamos de olhar para a continuidade cósmica e *horizontal+ dos elementos do mundo manifesto e observamos a sua relação *vertical+ com oPrincípio Transcendente: o que une o ser, e mais particularmente o espiritual *realizado+, ao seu Princípio Divino, é o Intelecto. O que separa omundo - o microcosmo - desse Princípio é a Existência. No homem, ainteligência é interior, e a existência, exterior. Como esta última não coniporta em si qualquer diferenciação, os homens formam apenas uma só espécie, mas as diferenças de tipos e de espiritualidade são extremas. No serde um reino periférico, pelo contrário, é a existência que é quase interior,pois a sua indiferenciação não aparece em primeiro plano, e a inteligênciaou modo de intelecção é exterior, aparecendo a sua diferenciação nas próprias formas, donde a indefinida diversidade de espécies em todos essesreinos. Também poderíamos dizer que o homem é, por definição primordial, puro conhecimento, e o mineral, pura existência. O diamante, que seacha no topo do reino mineral, integra na sua existência ou manifestação,de modo passivo e inconsciente, a inteligência em si, donde a sua dureza,

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transparência e luminosidade. O homem espíritualizado, que se encontrano cume da espécie humana, integra no seu conhecimento, de modo activo e consciente, a existência: total, donde a sua universalidade.

A negação exotérica da presença, virtual ou actualizada, do Intelectoincriado no ser criado, está bem patente no erro que exclui, fora da Revelação, qualquer conhecimento sobrenatural possível. Ora, é arbitrário pretender que não temos neste mundo qualquer conhecimento imediato deDeus ou que é impossível que tenhamos algum. É o mesmo oportunismoque, por um lado, nega a realidade do Intelecto e, por outro, nega aos 65 Frithjof Schuon que dela usufruem a possibilidade de conhecerem o que ela os deixa co nhecer. E isso porque, em primeiro lugar, a participação directa no que poderíamos chamar a *faculdade paraclética+ não é acessível a todos, pelo menos de facto; e, em segundo lugar, porque a doutrina do Intelecto in criado presente na criatura seria prejudicial à fé do homem simples, pois choca com a noção de mérito. O que o ponto de vista exotérico não pode admitir, nem no islão nem no cristianismo nem no judaísmo, é a existên cia *natural+ de uma faculdade *sobrenatural+ que o dogma cristão toda via prevê para a pessoa de Cristo. Parece esquecer que a distinção entre natural e sobrenatural não é absoluta - a não ser no sentido do *relativa112 mente absoluto+ - e que o sobrenatural pode também ser chamado natu ral por agir segundo certas leis.'Também o natural não está desprovido deA carácter sobrenatural, na medida em que manifesta a Realidade Divina, sem a qual a natureza não passaria de um puro nada. Dizer que o Conhe cimento sobrenatural de Deus, isto é, a visão beatifica no Além, é um co nhecimento puro da Essência Divina, de que goza a alma individual, equi vale a dizer que o Conhecimento Absoluto pode ser objecto de um ser relativo como tal, quando na verdade esse Conhecimento, sendo absoluto, não e mais do que o Absoluto que se conhece a Si mesmo. Ora se o Inte lecto, sobrenaturalmente presente no homem, pode fazer o homem parti cipar do Conhecimento que a Divindade tem de Si mesma, isso acontece graças a certas leis a que o sobrenatural, por assim dizer, livremente obe dece, em virtude das suas possibilidades. Ou ainda, se o sobrenatural difere do natural em grau eminente obedece, ele também, ou antes ele em pri meiro lugar, a Leis imutáveis. O Conhecimento é essencialmente santo - e, se assim não fosse, como poderia Dante ter falado da *venerável autoridades do Filósofo? -, de uma santidade que é propriamente *paraclética+: *Conhecer-Te é a justi ça perfeita+ - diz o Livro da Sabedoria (15:3) - *e conhecer o Teu Po der é a raiz da imortalidades. Esta sentença é de uma extrema riqueza doutrinal, pois trata-se de uma das mais claras e explícitas formulações da realização pelo Conhecimento, ou seja, precisamente, da via intelectual que conduz à santidade *paraclética+. Em outras sentenças, igualmente excelentes, o mesmo livro de Salomão enuncia as virtudes da pura intelec tualidade, essência de toda a espiritualidade. Este texto deixa aliás trans 66

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A Unidade Transcendente das Religiões

parecer de maneira notável, para além da maravilhosa precisão metafisicae iniciática das suas fórmulas, a unidade universal da Verdade, e isso pelaprópria linguagem que lembra em parte as Escrituras da índia, em parteas do taoísmo: *Nela (Sabedoria), com efeito, existe um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, imaterial, activo, penetrante, sem mancha, infalível, impassível, bondoso, sagaz, ilimitado, benfeitor, filantrópico, imutável, seguro, tranquilo, todo-poderoso, vigilante, penetrando todos osespíritos, os inteligentes, os puros e os mais subtis. Porque a Sabedoria émais ágil que todo o movimento. Penetra e introduz-se em toda a partegraças à sua pureza. Ele é o sopro do Poder de Deus, pura emanação daGlória do Omnipotente. Por isso, nenhuma mancha a pode atingir. Ela éo resplendor da Luz eterna, o espelho imaculado da acção de Deus e aimagem da Sua bondade. Sendo única, tudo pode. Permanecendo a mesma, tudo renova. Difundindo-se de idade em idade pelas almas santas, fazdelas amigos de Deus e profetas. Deus, na verdade, só ama quem vivecom a Sabedoria. Pois Ela é mais bela do que o Sol e do que a disposiçãodas estrelas. Comparada à luz, leva a melhor sobre ela. Pois a luz dá lugarà noite, mas o mal não prevalece contra a Sabedoria. A Sabedoria chegavelozmente de um canto ao outro do mundo, e tudo dispõe com doçura+(Livro da Sabedoria, 7:22-30). Falta prevenirmo-nos contra uma objecção frequentemente formulada:há quem acuse de orgulho a inteligência transcendente, consciente de simesma, como se, por existirem estúpidos que se crêem inteligentes, se devesse impedir os sábios desabarem o que sabem. O orgulho, *intelectual+ou outro, só é possível no ignorante que não sabe que, ele mesmo, nada é.Assim, também a humildade, na acepção psicológica do termo, só faz sentido a quem crê ser aquilo que não é. Os que querem explicar tudo o queos ultrapassa pelo orgulho, que no seu espírito corresponde ao panteísmo,ignoram que, se Deus criou tais almas para ser conhecido e realizado porelas e nelas, os homens nada têm a ver com isso nem podem alterar coisaalguma. A Sabedoria existe porque corresponde a uma possibilidade: a damanifestação humana da Ciência Divina. *Ela é o sopro do Poder de Deus, pura emanação da Glória do Omnipotente. Por isso, nada de maculado cai sobre ela... A luz'dá lugar à noite, mas o mal não prevalece contra a Sabedoria.+ 67

N IV A QUESTÃO DAS FORMAS DE ARTE

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deria alguém admirar-se de nos verfxtratar um tema que não so parece não ter qualquer relação com os temasdos capítulos precedentes, mas que em si mesmo parece não ter senãouma importância muito secundária. De facto, se nos propusemos examinar aqui esta questão das formas de arte é precisamente porque está longede poder ser negligenciada, apresentando relações estreitas com realidades com que deparamos neste livro de um modo geral. Antes de mais, temos de elucidar uma questão terminológica: ao falarmos de *formas dearte+, e não simplesmente de *formas+, queremos especificar que não setrata de formas *abstractas+, mas sim de coisas sensíveis por definição. Seevitamos falar de *formas artísticas+, é porque a isso se associa correntemente a ideia de luxo, de algo supérfluo, que é exactamente o contráriodo que temos aqui. No nosso 6entido, a expressão *formas de arte+ é umpleonasmo, pois é impossível dissociar tradicionalmente a forma da arte,sendo esta última o princípio de manifestação daquela. Tivemos porem deempregar este pleonasmo pelas razões que acabámos de referir. O que é preciso saber, para entendermos a importância das formas, éque a forma sensível é a que corresponde simbolicamente, de modo maisdirecto, ao Intelecto. Isso em razão da analogia inversa que existe entre asordens principial e manifesta.' Assim, as realidades mais elevadas mani*A arte+ - diz São Tomás de Aquino - *está associada ao conhecimento.+ 69 Frithjof Schuon

festam-se de forma mais patente no seu mais distante reflexo, ou seja, naordem sensível ou material; é esse aliás o sentido mais profundo do adágio: *os extremos tocam-se+. Pelo mesmo motivo, a Revelação desce aocorpo e não apenas à alma dos Profetas, o que pressupõe de resto aperfeição física desse corpo.' As formas sensíveis correspondem pois,exactamente, a intelecções e, por essa mesma razão, a arte tradicionalpossui regras que aplicam ao domínio das formas as leis cósmicas e osprincípios universais que, sob o seu aspecto exterior mais genérico, revelam o estilo de uma civilização, exprimindo este o seu modo de intelectualidade. Quando tal arte deixa de ser tradicional e se torna humana, individual, arbitrária, é infalivelmente sinal, e causa, de um declínio espiritualque, aos olhos de quem sabe *discernir os espíritos+ e ser imparcial, se exprime pelo carácter mais ou menos incoerente, espiritualmente insignificante, quase ininteligível, das formas? Para evitar qualquer objecção, im Renê Guénon (Les Deux Nuits, em Études traditionnelles, Abril e Maio 1939), falando da laylat el-qadr, noite da *descida+ (tanzil) do Alcorão, chama a atenção para ofacto de *essa noite, segundo o comentário de Mohyiddin ibri Arabi, se identificar com

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o próprio corpo do Profeta. O que é particularmente notório é que a *revelação+ sejarecebida não no plano mental, mas no corpo do ser que é *enviado+ a anunciar o Princípio: E o Verbo se fez carne, como diz o Evangelho (came, e não mente), é a expressão própria da tradição cristã daquilo que representa laylat el-qadr na tradição islâmica+. Esta verdade está em estreita conexão com a relação que encontramos entre asformas e as intelecções.' Fazemos aqui alusão ao declínio de certos ramos da arte religiosa desde a época gótica, sobretudo tardia, e de toda a arte ocidental a partir do Renascimento. A arte cristã(a arquitectura, a escultura, a pintura, a ourivesaria litúrgica, etc.), que era uma artesacra, simbólica, espiritual, acabou por ceder perante a invasão da arte neo-clássica enaturalista, individualista e sentimental. Tal arte, que nada tem de *milagroso+ - nãoimporta o que digam os defensores do *milagre grego+ -, é totalmente inapta a transmitir as intuições intelectuais e já só responde às aspirações psíquicas colectivas. É também o que há de mais contrário à contemplação intelectual, entregando-se exclusivamente ao sentimentalismo. Este vai-se aliás degradando à medida que se adapta àsnecessidades das massas, para acabar numa vulgaridade patética e adocicada. É curiosoverificar que parece nunca nos termos dado conta de quanto esta barbárie de formas,que atingiu o seu auge de profunda e miserável fanfarronada no estilo Luís XV, contribuiu - e contribui ainda - para afastar da Igreja tantas almas, e não das piores. Estassentem-se verdadeiramente sufocados por um ambiente que já não permite à sua inteligência respirar.Notemos a propósito que as relações históricas entre o acabamento da nova basílica 70 A Unidade Transcendente das Religiões

porta referir aqui que, nas civilizações intelectualmente sãs, por exemploa cristandade medieval, a espiritualidade se afirma muitas vezes através deuma indiferença em relação às formas e por vezes através de uma tendência a desviar-se delas, como o mostra o exemplo de São Bernardo proscrevendo as imagens nos mosteiros, o que não significa a aceitação da barbárie e da feiura, assim como a pobreza não significa a posse de muitascoisas ignóbeis. Mas, num mundo em que a arte tradicional morreu, emque a forma se vê invadida por tudo o que é contrário à espiritualidade eonde quase toda a expressão formal se acha corrompida na sua raiz, a regularidade tradicional das formas reveste uma importância espiritual muito

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particular, que lhe era originariamente alheia, pois a ausência de espíríto nas formas era então algo de inexistente e inconcebível. O que dissemos da qualidade intelectual das formas sensíveis não nosdeve levar a esquecer que, quanto mais remontamos às origens de umatradição, menos as formas aparecem em estado de desenvolvimento.A pseudoforma, a forma arbitrária, está sempre excluída; mas a forma enquanto tal pode também estar ausente, pelo menos em dominios periféricos. Pelo contrário, quanto mais nos aproximamos do fim de um cicio tradicional, mais o formalismo adquire importância,' mesmo do ponto devista artístico, pois as formas tornam-se então canais quase indispensáveispara a actualizarão do depósito espiritual da tradição. O que nunca devemos esquecer e que a ausencia do aspecto formal não equivale, de modoalgum, à presença do informe e vice-versa; o informe e o bárbaro nãoatingirão nunca a majestosa beleza do vazio, pense o que pensar quemjustifica as deficiências de um sistema como sinal de superioridade.' Esta

de São Pedro em Roma - em estilo renascença, portanto exibicionista, antiespirituale, *humano+, se quisermos - e a origem da Reforma são factos que estão infelizmentelonge de ser fortuitos.1 É o que ignoram alguns movimentos pseudo-hindus, de origem indiana ou não, quevão para além das formas sagradas do hinduísmo, pensando representar a sua essênciamais pura. Na verdade, é inútil conferir a um homem um meio espiritual sem lhe darantecipadamente uma mentalidade que se harmonize com esse meio, isso independentemente da vincularão obrigatória a uma linhagem iniciática. Uma realização espiritualé inconcebível fora do clima psicológico apropriado, isto é, conforme ao ambiente tradicíonal do meio espiritual em questão.1 Alguns crêem poder afirmar que o cristianismo, achando-se para além das formas,não se pode identificar com uma civilização determinada. É compreensível querermo 71 Frithiof Schon

lei da compensação, em virtude da qual certas relações de proporcionalidade, do princípio ao fim de um ciclo, são alvo de uma intervenção maisou menos acusada, faz-se sentir aliás a todos os níveis. Assim, chegou aténós esta palavra (hadith) do profeta Maomé: *Nos primeiros tempos doislão, quem omitir um décimo da Lei está condenado. Mas, nos últimostempos, quem puser em prática um décimo da Lei será salvo.+ A relação analógica entre as intelecções e as formas materiais explicacomo o esoterismo se pode implantar a nível profissional, nomeadamentena arquitectura. As catedrais, que os iniciados cristãos deixaram após sidão o testemunho mais explícito e vigoroso da elevação espiritual da

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Idade Média.' Tocamos aqui num ponto muito importante da questãoque nos ocupa: o da acção do esoterismo sobre o exoterismo, atravésdas formas sensíveis, cuja produção é precisamente apanágio da iniciação artesanal. Através destas formas, que graças ao seu simbolismo setornam veículos da doutrina tradicional numa linguagem imediata euniversal, o esoterismo infunde no domínio propriamente exotérico datradição uma qualidade intelectual e, desse modo, um equilíbrio, cuja ausencia levaria à dissolução de toda a civilização, como aconteceu no mundo cristão. O abandono da arte sacra roubou ao esoterismo o seu meio deacção mais directo. A tradição exterior insistiu cada vez mais no que temde particular, de limitador. Enfim, a ausência da corrente de universalidade , que havia vitalizado e estabilizado a civilização religiosa através,da linguagem das formas, provocou reacções em sentido inverso. As limitaçõesformais, em vez de se compensarem e estabilizarem por acção supraformal do esoterismo, suscitaram, pela sua opacidade e massa, negações infraformais, provenientes do arbitrário individual que, longe de ser umaforma da verdade, não passa de um caos informe de opiniões e fantasias. Para voltarmos à ideia inicial, acrescentaremos que a Beleza de Deuscorresponde a uma realidade mais profunda do que a Sua Bondade. Issotalvez surpreenda à primeira vista, mas recordemo-nos da lei metafisicaem virtude da qual a analogia entre as ordens principial e manifesta é in-nos consolar da perda da civilização cristã, incluindo a sua arte, mas a opinião queacabamos de citar não passa também de uma brincadeira de mau gosto. Perante uma catedral, sentimo-nos realmente no centro do mundo. Perante uma igreja, de estilo renascença, barroco ou rococó, apenas nos sentimos na Europa. 72 A Unidade Transcendente das Religiões

versa: o que é principialmente grande é manifestamente pequeno, o que éinterior no Princípio aparecerá como exterior na manifestação, e vice-versa. Ora, é graças a esta analogia inversa que a beleza no homem é exterior, e a bondade, interior - pelo menos no uso ordinário dos termos-, contrariamente ao que acontece na ordem principial onde a bondade écomo que expressão da beleza.

Muitas vezes nos admiramos de os povos orientais, mesmo os que têmfama de veia artística, carecerem quase sempre de discernimento estéticoem relação ao que vem do Ocidente. Todas as coisas feias, produzidas porum mundo cada vez mais desprovido de espiritualidade, expandem-se comincrível facilidade no Oriente, não só sob a pressão de factores político-econômicos, o que nada teria de surpreendente, mas sobretudo pelo livreconsentimento daqueles que aparentemente haviam criado um mundo debeleza, uma civilização onde todas as expressões, mesmo as mais modestas, traziam a marca de um mesmo gênio. Desde o começo da infiltraçãoocidental pudemos ver com surpresa os objectos de arte mais perfeitoslado a lado com as piores trivialidades de fabrico industrial. Tais contradições

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desconcertantes não só se produziram entre os ob ectos de arte, masem quase tudo, abstraindo o facto de, numa civilização normal, tudo oque é feito pelo homem pertencer ao domínio da arte, pelo menos em algum sentido. A resposta a este paradoxo é contudo muito simples e já aesboçámos acima: e que precisamente as formas, até as mais ínfimas, sósão obra humana de modo secundário. Elas derivam da mesma fonte supra-humana donde provém tQda a tradição, o que equivale a dizer que oartista, que vive num mundo tradicional sem rupturas, trabalha sob a disciplina ou inspiração de um gênio que o ultrapassa. Ele é no fundo apenasinstrumento deste, quanto mais não seja pela sua qualificação artesanal.' *Uma coisa não é apenas o que é para os sentidos, mas também o que representa. Osobjectos, naturais ou artificiais, não são ... 'símbolos' arbitrários de tal realidade diferente e superior. São sim ... a manifestação efectiva dessa realidade: a águia ou o leão,por exemplo, não são tanto um símbolo ou uma imagem do Sol, são antes o Sol sobuma das suas aparências (sendo a forma essencial mais importante do que a naturezaem que se manifesta). Da mesma forma, toda a casa é o mundo em efígie e todo o altar 73 Frithjof Schuon

Daqui se deduz que, na produção de tais formas de arte, o gosto índividual desempenha apenas um papel muito apagado e nada é quando o indivíduo se vê perante uma forma estranha ao espírito da sua própria tradição. É o que acontece entre povos estranhos à civilização europeia, noreferente às formas de importação ocidental. Para que isso suceda, é porémnecessário que o povo, que aceita tais misturas, não tenha plenamente consciência do seu próprio gênio espiritual ou, por outras palavras, já não esteja à altura das formas de que ainda se faz rodear e no meio das quais vive. Isso prova que esse povo já sofreu um certo declínio e, por isso, aceitaas feiuras modernas com tanto maior facilidade quanto elas respondem apossibilidades inferiores que ele procura realizar espontaneamente, nãoimporta como, talvez de modo inconsciente. Por isso, a pressa irracionalcom que um grande número de orientais, sem dúvida a imensa maioria,aceita tudo o que há de mais incompatível com o espírito da sua tradiçãoexplica-se talvez pelo fascínio que exerce sobre o homem ordinário algoque responde a uma possibilidade ainda não esgotada, e tal possibilidadeé, nesse caso, simplesmente a do arbitrário ou a da ausência de princípios.Mesmo sem querer generalizar esta explicação do que parece ser umacompleta falta de gosto, existe um facto que é absolutamente certo: muitos orientais já não entendem o sentido das formas que eles próprios herdaram, com toda a tradição, dos seus antepassados. Tudo o que acabámosde dizer vale em primeira linha e a fortiori para os Ocidentais que, depois

1

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está situado no centro da Terra ... (Ananda K. Coomaraswamy,'*Sobre a MentalidadePrimitiva+ em Études traditionnelles, Ag.-Set.-Out. 1939). No sentido mais lato - implicando nisso tudo o que é de ordem exterior e formal, portanto a Jortiori tudo o quede algum modo pertence ao domínio ritual -, só a arte tradicional, transmitida com epela tradição, pode garantir a correspondência analógica adequada entre as ordens divina e cósmica, por um lado, e a ordem humana e artística, por outro. Daí resulta queo artista tradicional não se detenha a imitar pura e simplesmente a natureza, mas *imi.te a natureza no seu modo de agir+ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, 1, q. 117,a. 1). É claro que o artista não pode improvisar, com os seus meios individuais, uma taloperaçao propriamente cosmológica. É a conformidade perfeita e adequada do artistaa este *modo de agir+, subordinada às regras da tradição, que faz a obra-prima ser oque é. Essa conformidade pressupõe essencialmente um conhecimento, seja pessoal,directo ou activo, seja herdado, indirecto e passivo, sendo este último o caso dos artesãosque, inconscientes enquanto indivíduos do conteúdo metafisico das formas que aprenderam a fabricar, não conseguem resistir à influência corrosiva do Ocidente moderno. 74 A Unidade Transcendente das Religiões

de terem criado - não dizemos *inventado+ - uma arte tradicional perfeita, a renegaram perante os vestígios da arte individualista e vazia dosGreco-Rbmanos, desembocando finalmente no caos artístico do mundomoderno. Sabemos que quem não quer reconhecer a ininteligibilidade oua feiura do mundo actual emprega de bom grado o termo *estética+com uma nuance pejorativa muito próxima da dos termos *pitoresco+ e*romântico+ - para, à partida, não ter de se preocupar com as formas ese fechar mais à vontade no sistema da sua própria barbárie. Uma tal atitude nada tem de surpreendente vinda de um modernista convicto, mas éilógica, para não dizer miserável, para quem se reclama da civilização cristã. Pois reduzir a linguagem espontânea da arte cristã - a que não poderíamos censurar a beleza - a uma mundana questão de *gosto+, como sea arte medieval pudesse ser produto de um capricho, equivale a admitirque a marca dada pelo gênio do cristianismo a todas as suas expressões directas e indirectas não foi senão uma contingência sem referência a essegênio e sem intenções serias ou se deveu a qualquer tipo de inferioridademental. Pois *só o espírito conta+, segundo a ideia de alguns ignorantes

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imbuídos de puritanismo hipócrita, iconoclasta, impotente e blasfemo,que preferem pronunciar a palavra *espinito+ a reconhecerem o que é, defacto, o espírito. Para entendermos melhor as causas do declínio da arte no Ocidente, háque termos presente que, na mentalidade europeia, existe um certo idealismo, perigoso, nada estranho a este declínio, nem ao da civilização ocidental no seu todo. Esse idealismo encontrou a sua expressão mais brilhante e inteligente em certas formas da arte gótica onde predomina umdinamismo que parece querer roubar à pedra o seu peso real. Quanto àarte bizantina e românica - e também certa arte gótica que desta conservou o poder estático -, trata-se de uma arte essencialmente intelectual,portanto realista. A arte gótica flamejante, por muito apaixonada, é contudo ainda arte tradicional - excepção feita da escultura e da pintura jámuito decadentes - ou, mais exactamente, o canto do cisne deste tipo dearte. A partir do Renascimento, verdadeira vingança póstuma da Antiguidade Clássica, o idealismo europeu debruçou-se sobre os sarcófagos desenterrados da civilização greco-romana. Neste gesto de suicídio, pôs-seao serviço de um individualismo em que creu descobrir o seu próprio gé 75 Frithjof Schon

nio, para, através de uma série de etapas, acabar nas suas afirmações maisgrosseiras e quiméricas. Houve aqui aliás um duplo suicídio: em primeirolugar, o abandono da arte medieval, ou simplesmente da arte cristã, e emsegundo, a adopção das formas greco-romanas. Ao adoptá-las, intoxicouo mundo cristão do veneno da sua própria decadência. Há todavia queresponder a uma objecção muito possível: não era a arte dos primeiroscristãos precisamente a arte romana? A tal há que responder que o verdadeiro começo da arte cristã são os símbolos inscritos nas catacumbas e nãoas formas que os cristãos, muitos deles de cultura romana, foram provisoriamente buscar à decadência clássica. O cristianismo foi chamado a substituir a decadência por uma arte saída espontaneamente de um genio espiritual original. Se, de facto, certas influências romanas persistiram na artecristã, foi em pormenores mais ou menos superficiais. Dissemos mais acima que o idealismo europeu se enfeudou no individualismo para descer por fim às formas mais grosseiras deste último.Quanto ao que o Ocidente acha de grosseiro nas outras civilizações, issosão quase sempre aspectos mais ou menos periféricos de um realismo despido de véus ilusórios e hipócritas. Importa todavia não perder de vistaque o idealismo não é mau em si mesmo, pois encontra o seu lugar namentalidade do herói, sempre inclinado à sublimação. O que é mau, e aomesmo tempo especificamente ocidental, é a introdução desta mentalidade em todos os domínios, mesmo aqueles a que deveria ter sido alheia.Foi este idealismo desnorteado, tão frágil e tão perigoso, que o islão quisevitar a todo o custo com a sua preocupação de equilíbrio e estabilidade- ou realismo -, tendo em conta as possibilidades restritas da época cíclica, já muito distante das origens. Daí aquele aspecto terra-a-terra queos cristãos crêem dever censurar à civilização muçulmana.

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Para darmos uma ideia dos princípios da arte tradicional, assinalaremosalguns dos mais gerais e rudimentares: é preciso antes de mais que a obraseja conforme ao uso a que é destinada e traduza esta conformidade. Seexiste um simbolismo acrescentado, é preciso que este seja conforme aosimbolismo inerente ao objecto. Não deve haver conflito entre o essencial 76 A Unidade Transcendente das Religiões

e o acessório, mas sim harmonia hierárquica, que resulta aliás da purezado simbolismo. É preciso que o tratamento da matéria seja conforme a essa matéria, como por seu lado a matéria deve ser conforme ao empregodo objecto. É preciso enfim que o objecto não dê a ilusão de ser outracoisa senão aquilo que é, transmitindo a desagradável sensação de inutilidade que, quando é a finalidade da obra - como é o caso de toda a arteclássica -, se torna com efeito na marca de uma inutilidade demasiadoreal. As grandes inovações da arte naturalista reduzem-se em suma a outras tantas violações de princípios da arte normal: em primeiro lugar, noque se refere à escultura, violação da matéria inerte, seja da pedra, dometal ou da madeira, e, em segundo lugar, no que se refere à pintura,violação da superfície plana. No primeiro caso, trata-se a matéria inertecomo se dotada de vida, quando ela é essencialmente estática, só permitindo, por isso, a representação de corpos imóveis ou de fases essenciais eesquemáticas do movimento - não de movimentos arbitrários, acidentaisou quase instantâneos. No segundo caso, o da pintura, trata-se a superfície plana como se fosse um espaço de três dimensões, e isso tanto nos escorços como nas sombras. É claro que tais regras não são ditadas por simples razões de ordem estética. Trata-se sim de aplicações de leis cósmicas e divinas. A beleza seráo resultado necessário disso mesmo. Quanto à beleza na arte naturalista,ela não reside na obra enquanto tal, mas só no objecto dessa obra, enquanto na arte simbólica e tradicional é a obra em si que é,bela, seja abstracta ou vá buscar a beleza em maior ou menor grau a um modelo da natureza. Nada saberia exprimir melhor o que acabámos de dizer do que acomparação da arte grega dita clássica com a arte egípcia: a beleza destaúltima não está apenas no objecto representado, mas simultaneamente e afortiori na obra'enquanto tal, ou seja, na realidade interna que a obra manifesta. Que a arte naturalista tenha podido por vezes exprimir uma nobreza de sentimentos ou uma inteligência vigorosa é demasiado evidente eexplica-se por razões cosmológicas cuja ausência seria inconcebível, masisso é totalmente independente da arte enquanto tal. De facto, nenhumvalor individual 'oderia compensar a falsificação desta.

p A maioria dos modernos, que crêem compreender a arte, estão convencidos de que a arte bizantina ou românica não tem qualquer superioridade 77

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Frithjof Schuon

sobre a arte moderna e que uma Virgem bizantina ou românica não se parece mais com Maria do que as imagens naturalistas. A resposta, porém, éfácil: a Virgem bizantina - que tradicionalmente remonta a São Lucas eaos Anjos - está infinitamente mais perto da verdade de Maria do que aimagem naturalista, que é forçosamente sempre a de outra mulher. Pois,das duas, uma: ou se apresenta da Virgem uma imagem fisicamente muitosemelhante, sendo para isso necessário que o pintor tenha visto a Senhora, condição que evidentemente não pode ser preenchida e portanto apintura naturalista perde toda a legitimidade, ou se apresenta da Virgemum símbolo perfeitamente adequado e a questão da parecença física, semestar absolutamente excluída, não se coloca prioritariamente. É esta segunda solução, a única sensata, que os ícones realizam: o que não exprimem pela parecença física, exprimem-no pela linguagem abstracta, masimediata, do simbolismo, feita ao mesmo tempo de precisão e de imponderáveis. O ícone transmite assim, pela força beatifica inerente ao seu carácter sacramental, a santidade da Virgem, a sua realidade interior e arealidade universal de que a própria Virgem é expressão. O icone, ao consentir num estado contemplativo e numa realidade metafisica, torna-se suporte de intelecção, enquanto a imagem naturalista não transmite, paraalém da sua mentira evidente e inevitável, senão o facto de que Maria erauma mulher. Poderia acontecer que, num ícone, as proporções e as formas do rosto fossem as mesmas da própria Senhora, mas tal parecetiça, sese produzisse realmente, seria independente do simbolismo da imagem eapenas consequência de uma inspiração particular, sem dúvida ignoradado próprio artista. A arte naturalista teria certa legitimidade se servisse parareter as feições dos Santos, já que a contemplação dos Santos (o darshan doshindus) é ajuda preciosa na via espiritual, sendo a sua aparência externacomo que o perfume da sua espiritualidade. Todavia, essa função limitadade um naturalismo parcial e disciplinado corresponde a uma possibilidademuito precária. Mas voltemos à qualidade simbólica e espiritual do ícone. A percepçãode semelhante qualidade é fruto de inteligência contemplativa e de *ciência sagrada+. Para legitimar o naturalismo, é certamente falso pretenderque o povo tenha necessidade de uma arte acessível, pois não foi o *povo+quem fez o Renascimento, e a arte deste, como toda a *grande arte+ que 78 A Unidade Transcendente das Religiões

daí derivou, é pelo contrário um desafio à piedade do simples. O ideal artístico da Renascença e de toda a arte moderna está pois muito longe daquilo de que o povo necessita e, de resto, quase todas as Virgens milagrosas para as quais o povo aflui são bizààtinas ou românicas. Quem ousariadizer que a cor negra de algumas delas corresponde ao gosto popular oulhe é particularmente acessível? Aliás, as Virgens feitas pelo povo, quando não danificados pela, influência da arte acadêmica, são objectivamente

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mais verdadeiras do que as desta última. Admitindo mesmo que as multidões precisem de imagens ocas e insensatas, será que as necessidades daelite não têm direito à existência? Pelo que precede, já respondemos implicitamente à questão se a arte sedestina à elite intelectual em exclusivo ou se tem também algo a transmitirao homem de inteligência média. Esta questão resolve-se por si mesmatendo em conta a universalidade de todo o simbolismo, que faz com que aarte sacra - para além de verdades metafisicas e factos da história sagrada - não só comunique estados espirituais, mas também atitudes psíquicas acessíveis a qualquer pessoa. Em linguagem moderna, diríamos queesta arte é, a um tempo, profunda e ingénua. Ora, esta simultânea profundidade e ingenuidade são precisamente caracteres muito notórios daarte sacra. A ingenuidade, a candura, longe de serem uma inferioridadeespontânea ou afectada, revelam o estado normal da alma hum@na, sejado homem médio ou superior. Pelo contrário, a aparente inteligência donaturalismo, a sua habilidade quase satânica para reprimir a natureza, nãotransmitindo senão as aparências e as emoções, só pode corresponder auma mentalidade deformada, desviada da simplicidade, da inocência primordial. É claro que uma tal deformação, feita de superficialidade intelectual e de virtuosidade mental, é incompatível com o espírito da tradição, não encontrando por isso lugar na civilização fiel a esse espírito. Se,portanto, a arte sacra se dirige à inteligência contemplativa, ela orienta-seigualmente para a sensibilidade humana normal. Só essa arte parece possuir uma linguagem universal e nenhuma melhor do que ela pode voltar-seao mesmo tempo para a elite e para o povo. No que se refere ao aspectoaparentemente infantil da mentalidade tradicional, pensemos nas exortações de Cristo a sermos *corno crianças+ e *sim les como pombas+, palapvras que, seja qual for o seu sentido espiritual, correspondem evidentemente também a realidades psicológicas. 79 Frithjof Schuon Os Padres do séc. viii, muito diferentes da autoridade religiosa dossécs. xv e xvi - que traíram a arte cristã, abandonando-a à impura paixãodos mundanos e à ignorante imaginação dos profanos -, tinham plena consciência da santidade de todos os modos de expressão tradicional. Por isso,estipularam, no segundo Concílio de Niceia, que *só a arte (a perfeiçãointegral do trabalho) é do pintor; a ordenação (ou seja, a escolha do tema) ea disposição (o tratamento do tema do ponto de vista simbólico, assim comotecnico e material) cabem aos Padres+ (Non est pictoris - ejus enim sola arsest - verum ordinaúo et disposiüo Patrum nostrorum), o que significa pôr toda a iniciativa artística sob a autoridade directa e activa dos chefes espirituaisda cristandade. Assim sendo, como explicar que na maioria dos meios religiosos se verifique, desde há séculos, uma lamentável incompreensão paracom tudo o que, sendo de ordem artística, é na opinião desses apenas algode *exterior+? Admitindo a priori a eliminação da influência esotérica, existeantes de mais uma perspectiva religiosa que tende a identificar-se com o ponto de vista moral que só aprecia o mérito e crê dever ignorar a qualidade

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santificante do conhecimento intelectual e, assim, o valor dos suportes desseconhecimento. Ora a perfeição da forma sensível não é moralmente *meritóna+ - não mais do que a intelecção que esta forma reflecte e transmite - eé lógico que a forma simbólica, quando já não compreendida, seja relegadapara segundo plano para ser substituída por uma forma que fala não já à inteligência, mas só à imaginação sentimental, própria a inspirar o acto meritório no homem limitado. Este modo de especular sobre as reacções com auxílio de meios superficiais e grosseiros revelar-se-á em última análise -ilusório,pois na verdade nada melhor do que uma arte sacra para influenciar as disposições profundas da alma. A arte profana, mesmo quando dotada de certaeficácia psicológica em almas pouco inteligentes, esgota os seus meios superficiais e grosseiros, acabando por provocar as reacções de desprezo já nossasconhecidas, que são como que o ricochete do desprezo que a arte profanamanifestou inicialmente perante a arte sacra'. É de experiência corrente que

' Da mesma forma, a hostilidade dos esoteristas perante tudo o que ultrapasse o, seumodo de ver traz consigo um exoterismo sempre mais duro, que não pode não sofrerrupturas. Mas, uma vez perdida a *porosidade espiritual+ da tradição - a imanênciana substância do exoterismo de uma dimensão transcendente que compensa tal durezaas ditas rupturas não podem senão produzir-se a partir de baixo: é a substituiçãodos mestres do esoterismo medieval pelos protagonistas da descrença moderna. so A Unidade Transcendente das Religiões

nada poderia fornecer ao ateísmo um alimento mais imediatamente tangível do que a hipocrisia das imagens religiosas. O que se destina a estimular nos crentes a piedade, confirma nos descrentes a impiedade. Ora, épreciso reconhecer que a arte sacra não tem de modo algum o carácter deuma espada de dois gumes, pois, sendo mais abstracta, dá menos azo areacções psicológicas hostis. Independentemente das especulações que fazemsupor nas massas uma necessidade de imagens ininteligíveis e radicalme ' ntefalseados, as elites existem e têm necessidade de outra coisa. A linguagemque lhes convém é a que evoca, não coisas humanas e comezinhas, mas asprofundezas divinas. Ora, tal linguagem não pode emanar do simples gosto profano, nem do gênio, mas procede essencialmente da tradição, o queimplica que a obra de arte seja executada por um artista santificado ou*em estado de graça +. Além de servir para instrução e edificação superficial das massas, o ícone, como o yantra hindu e qualquer outro símbolovisível, estabelece uma ponte do sensível ao espiritual: *Pelo aspecto visível+ - diz São João Damasceno - *o nosso pensamento deve ser arrastado num élan

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espiritual e subir à invisível majestade de Deus.+ Mas voltemos aos erros do naturalismo: a arte, desde que não determinada, iluminada, guiada pela espiritualidade, encontra-se à mercêdos recursos individuais e puramente psicológicos do artista, acabandotais recursos por se esgotar devido à miopia do principio naturalista quepretende um decalque da natureza visível. Chegado ao ponto morto doseu próprio aviltamento, o naturalismo gerará inevitavelmente as mons-truosidades do *surrealísmo+. Este não passa do cadáver em decomposição da arte e é sobretudo um *infra-realismo+. É na verdade a conclusãosatânica do luciferianismo naturalista. O naturalismo é verdadeiramenteluciferiano ao querer imitar as criações de Deus, sem falar da sua afirmação do psiquico em detrimento do espiritual ou do invidual em detrimento'do universal, do facto bruto em detrimento do símbolo. Normalmente ohomem deve imitar o acto criador, não a coisa criada. É o que faz a arte,simbolista. Daí resultam *criações+ que, longe de copiarem as de Deus, Os pintores de ícones eram monges que, antes de se pôrem ao trabalho, se preparavam através de jejuns, oração, confissão e comunhão. Chegavam mesmo a misturar astintas com água benta e o pó das relíquias, o que não seria possível se o ícone não tivesse um carácter verdadeiramente sacramental. 81 Frithjof Schon

reflectem-nas em conformidade com uma analogia real, revelando o aspecto transcendente das coisas. É nisso que consiste a razão suficiente daarte, abstracção feita da utilidade prática dos seus objectos. Existe aí umainversão metafísica, uma relação que já assinalámos: para Deus, a criaturareflecte um aspecto exteriorizado de si mesmo; para o artista, a obra reflecte pelo contrário uma realidade *interior+ de que ele é apenas um aspecto exterior. Deus cria a sua própria imagem, enquanto o homem molda de certa maneira a sua própria essência, pelo menos simbolicamente.No plano principal, o interior manifesta-se pelo exterior; no plano manifesto, o exterior molda o interior. Ora a razão suficiente de toda a artetradicional é que a obra seja em certo sentido mais do que o artista' e reconduza este, pelo mistério da criação artística, às margens da sua própriaessência divina.

É o que explica o perigo que havia, entre os Semitas, de pintarem sobretudo esculpirem a figura de seres vivos. Se o hindu e o Oriental adoravam a Realidade Divina atravês de um símbolo e sabemos que um símbolo é, na perspectiva da realidade essencial, aquilo mesmo que simboliza -, o Semita era

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levado a divinizar o próprio símbolo.A proibição da arte plástica e pictórica entre os povos semíticos tinha certamente a intenção de impedir o desvio naturalista, perigo muito real entre homens cuja mentalidade é mais individualista e sentimental. 82

v DOS LImites DA EXPANSÃO RELIGIOSA

epois desta digressão, voltemos aosaspectos mais directos da questão da unidade das formas religiosas: propomo-nos agora mostrar como a universalidade simbólica de cada umadessas formas im líca limitações da universalidade em sentido absoluto.Afirmações verdadeiras, tendo por objecto factos sagrados e verdadestranscendentes como a pessoa de Cristo, podem com efeito tornar-se maisou menos falsas quando artificialmente retiradas do seu enquadramentoprovidencial; este é, para o cristianismo, o mundo ocidental, onde Cristoé *a Vida+, com artigo definido e sem epítetos. Este enquadramento foiquebrado pela desordem moderna, havendo-se *a humanidades alargadoexteriormente de modo artificial e quantitativo. Daí resultou que umaparte não quis aceitar outros *Cristos+ e outra parte negou a Jesus qualquer qualidade crística. Foi cojno se, perante a descoberta de outros sistemas solares, uns defendessem que só existe um sol - o nosso -, enquanto outros negassem a existência de qualquer sol, por nenhum deles terdireito à exclusividade. Ora a verdade situa-se entre ambas as teses:o nosso sol é, de facto, *o Sol+; mas só é único por referência ao sistemade que é o centro. Como existem muitos sistemas solares, há muitos sóis,o que não impede que cada um seja único por definição. O Sol, o leão,a águia, o girassol, o mel, o âmbar, o ouro são várias manifestações naturais do princípio solar, cada uma única e simbolicamente absoluta na suaordem. Ao deixarem de ser únicas - porque subtraídas aos limites das res 83 Frithjof Schuon

pectivas ordens que as transformavam em sistemas fechados ou microcos~mos - e ao manifestar-se o que nessa unicidade há de relativo - nempor isso tais manifestações perdem a sua identificação com o princípio solar, embora revestindo modos apropriados às possibilidades de cada ordem. Seria falso afirmar que Cristo não é *o Filho de Deus+ mas apenas*um Filho de Deus+, pois o Verbo é único e cada uma das suas manifestações reflecte, em essência, a divina unicidade. Algumas passagens do Novo Testamento permitem entrever que o*mundo+ de que Cristo é *o sol+ se identifica com o Império Romano querepresentava o domínio providencial de expansão e de vida para a civilização cristã: quando, nestes textos, se fala de *todos os povos debaixo do

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céu+ (Act.,2:541), trata-se com efeito apenas dos povos conhecidos domundo romano'. Do mesmo modo, quando se diz que *não existe debaixodo céu outro Nome pelo qual os homens possam ser salvos+ (Act., 4:12),não há razão para admitir que esse *céu+ deva ser interpretado de mododiverso. A menos que se entenda o nome de *Jesus+ como designaçãosimbólica do próprio Verbo, o que equivale a dizer que no mundo existeum só Nome, o do Verbo, pelo qual os homens podem ser salvos, qualquer que seja a manifestação divina que esse nome particularmente designe ou, por outras palavras, qualquer que seja a forma particular desse Nome eterno: *Jesus+, *Buda+ ou outro. Tais considerações levantam um problema que não podemos aqui silenciar: será então a actividade dos missionários, que trabalham fora dos li Ao falar de *judeus piedosos de todos os povos debaixo do céu+, a Escritura não temcertamente em vista os Japoneses ou os Peruanos, embora pertençam também a estemundo terrestre *debaixo do céu+. O rilesmo texto precisa aliás mais longe o que era,para os autores neotestamentários, este conjunto de *todos os povos debaixo do céu+:*Nós, partos e medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e-da Capadócia, do Ponto, da Asia (Menor), da Frígia, da Panfilia, do Egipto e das regiões da Líbiaem direcção a Grene, nós, peregrinos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los proclamar nas nossas línguas os prodígios de Deus.+ (Act.,2:541).A mesma concepção necessariamente restrita do mundo geográfico e étnico acha-se implicada nestas palavras de São Paulo: *Antes de mais, dou graças a Deus por JesusCristo por vós todos (da Igreja de Roma); pois a vossa fé é conhecida no Mundo inteiro+. Ora, é evidente que o autor não quis dizer que a fé da primitiva Igreja de Romaera conhecida entre todos os povos que, segundo os conhecimentos geográficos actuais,fazem parte do *mundo inteiro+. 84 A Unidade Transcendente das Religiões

in tes normais do cristianismo, inteiramente ilegítima? A isso há que responder que, embora beneficiando materialmente de circunstânciasanormais pelo facto de a expansão ocidental se ter devido à superioridadematerial resultante do actual desvio, os missionários trilham uma vidaque tem, pelo menos em princípio, um carácter sacrificial. Por consequência, a realidade subjectiva dessa via conservará sempre o seu sentidomístico, independentemente da realidade objectiva da acção missionárioenquanto tal. O factor positivo, que esta actividade vai buscar à sua raizevangélica, não pode desaparecer totalmente, pois os limites do mundocristão foram ultrapassados - o que já havia acontecido antes da era moderna em

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condições bem diferentes e excepcionais - e foram invadidosmundos que não precisavam de ser convertidos, já que, não sendo *cristãos+ em Jesus Cristo, eram-no no Cristo universal, que é o Verbo inspirador de toda a Revelação. Mas esse aspecto positivo da acção missionáriosó se manifestará no mundo objectivo em casos mais ou menos pontuais,seja porque a graça que emana de um santo ou de uma relíquia ultrapassauma influência espiritual autóctone, seja porque a religião cristã se adaptamelhor à mentalidade particular de certos indivíduos, o que faz supor queestes não compreenderam a própria tradição ou que o cristianismo corresponde melhor às suas aspirações, espirituais ou não. A maior parte destasreflexões vale também, como é óbvio, em sentido inverso e em benefíciodas tradições não-cristãs, com a diferença de, nesse caso, as conversõesserem muito mais raras, por razões que em nada abonam o Ocidente: emprimeiro lugar, porque os Orientais não têm colónias nem *protectorados+ no Ocidente nem mantêm aí missões poderosamente protegidas; emsegundo, porque os Ocidentais são mais propensos à descrença pura esimples do que a uma espiritualidade que lhes é estranha'. As reservasque se podem formular, quanto à acção missionário, não se referem porcerto à evangelização enquanto tal - embora esta tenha sofrido certa diminuição e declínio devido às circunstâncias anormais já por nós assinaladas -, mas apenas à sua solidariedade activa com a moderna barbárieocidental. Aproveitaremos a ocasião para notar que, na época em que se iniciou a Todavia, desde meados do séc. xx, verificamos que um número crescente de ocidentais se vira para formas de espiritualidade oriental, sejam elas falsas ou verdadeiras. 85 Frithjof Schuon

expansão a oriente, já estas paragens haviam entrado em profunda decadência, por certo não comparável ao declínio ocidental moderno cujoprincípio é inverso daquele. De facto, enquanto o declínio oriental é pássivo, como o de um organismo físico desgostado pela idade, o declíniomoderno é activo, voluntário, cerebral. Isso dá ao Ocidental a ilusão deuma superioridade que - se efectivamente existe a nível psicológico, graças à divergência de modos que acabámos de referir - não deixa de sermuito relativa e tanto mais ilusória quanto se reduz a nada perante a superioridade espiritual do Oriente. Poderíamos também dizer que a decadência deste é toda feita de *inércia+, enquanto a do Ocidente se edificasobre o *erro+. Só a predominância do elemento passional os torna solidários, e é aliás tal predominância que caracteriza a *idade sombria+ emque o mundo se acha mergulhado e cujo aparecimento foi previsto por todas as doutrinas sagradas. Se a diferença no modo de declínio explica, emparte, o desprezo que muitos ocidentais sentem por certos orientais muitas vezes mais do que um simples preconceito, tornando-se um ódio àstradições orientais - e, em parte, a admiração cega que muitos orientais

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sentem por alguns aspectos positivos de mentalidade ocidental, é claroque o desprezo que o velho Oriente sente pelo Ocidente moderno temuma razão não apenas psicológica - relativa e discutível -, mas total,porque fundada em razões espirituais decisivas. Aos olhos de um Oriente,fiel ao seu espírito, o *progresso+ dos Ocidentais será sempre um círculovicioso tentando em vão eliminar misérias inevitáveis ao preço do que pode dar sentido à vida. Mas voltemos à questão missionário: o facto de a passagem de uma aoutra forma tradicional poder ser legítima não impede que, em certos casos, possa haver verdadeira apostasia. É apóstata quem muda de formatradicional sem razão válida. Pelo contrário, quando existe *conversão+de uma a outra tradição ortodoxa, as razões invocados têm pelo menoscerto valor subjectivo. Podemos passar de uma a outra forma tradicionalsem nos termos propriamente *convertido+, apenas por razões de oportunidade esotérica ou espiritual. Nesse caso, as razões que determinarão apassagem serão objectiva e subjectivamente válidas, ou antes, deixaremosde,poder falar de razões verdadeiramente subjectivas. Vimos que a atitude do exoterismo face às formas religiosas que lhe são 86 A Unidade Transcendente das Religiões

estranhas é determinada por dois factores, um positivo, outro negativo,o primeiro referente ao carácter de unícidade inerente a toda a Revelaçãoe o segundo à consequencia extrínseca dessa unicidade, a rejeição de um*paganismo+ particular. Por exemplo, no que se refere ao cristianismo,bastará situá-lo nos seus normais limites de expansão - que jamais haveria transposto, salvo raras excepções, não fosse o desvio moderno - paraentender que esses dois factores já não são literalmente aplicáveis fora dosseus limites naturais, devendo pelo contrário ser universalizados, transpostos para o plano da Tradição Primordial que permanece viva em todas asformas ortodoxas. Por outras palavras, é preciso entender que cada formatradicional estranha pode reivindicar semelhante unicidade e a negação deum *paganismo+. É como dizer que, pela sua ortodoxia intrínseca, cadauma é forma daquilo a que poderíamos chamar, em linguagem cristã,a *Igreja Eterna+. Nunca será de mais insistirmos no facto de o sentido literal ser, por definição, um sentido limitado, que se detém nos confins do domínio particular a que se aplica, segundo intenção divina - situando-se o critériodesta, em condições normais, na natureza das coisas -, quando só o sentido puramente espiritual pode reivindicar um alcance absoluto. A exortação de *ensinar a todas as nações+ não constitui excepção, assim comooutras expressões onde se torna patente a limitação natural da literalidade, sem dúvida porque não existe interesse em conferir a essas um sentidoincondicionado. Recordemo-nos, por exemplo, da proibição de matar, daordem de dar a face esquerda, de não *multiplicar as palavras ao rezar+ou de não nos preocuparmos com o dia de amanhã. O Divino Meste jamais explicitou

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os limites em@que tais ordens são válidas, de modo quelogicamente lhes poderíamos conferir um alcance incondicional, comose faz para a ordem de *ensinar a todas as nações+. Importa porém acrescentar que o sentido directamente literal se acha presente, em certa medida, não apenas na ordem de pregar as naçoes, mas também nas outras palavras de Cristo, a que fizemos alusão. Tudo consiste em sabermos poreste sentido no seu devido lugar, sem excluirmos outros sentidos possíveis.Se é verdade que a ordem de ensinar a todas as nações não se pode limitar, de modo absoluto, ao propósito de constituir o mundo cristão, masdeve poder implicar a pregação entre todos os povos alcançáveis, é tam 87

N Frithjof Schuon

bém verdade que a ordem de dar a face esquerda se pode igualmente entender de modo literal em certos casos de disciplina espiritual. Mas é claroque esta última interpretação será tão secundária quanto é a interpretaçãoliteral de pregar a todos os povos. Para definirmos claramente a diferençaentre os sentidos directo e indirecto desta exortação, recordaremos o quejá acima deixámos entrever: ou seja, que, no primeiro caso, o fim é sobretudo objectivo, pois trata-se de constituir o mundo cristão, enquanto nosegundo caso, o da pregação entre povos de civilização estranha, o fim ésobretudo subjectivo e espiritual, levando o plano interior a melhor sobreo plano exterior, que não é mais do que um suporte da realização sacrificial. Poderia alguém objectar citando as palavras de Cristo: *Este Evangelho do Reino será pregado em todo o mundo, para servir de testemunho atodas as nações. Então virá o fim+. Ao que responderemos que, se tal palavra se refere ao mundo inteiro e não apenas ao Ocidente, é porque nãose trata de uma ordem, mas sim de uma profecia que se reporta a condições cíclicas em que a separação entre os diferentes mundos tradicionaisserá abolida. Significa, por outras palavras, que *Cristo+ - que para oshindus é o Kalki-Avatâra e para os budistas o Bodhisattwa-Maitreya restaurará a TradiçãoTrimordial. Dissemos mais acima que a ordem dada por Cristo aos Apóstolos serestringia aos limites providenciais do mundo romano. É claro que umatal limitação não é particular ao cristianismo: a expansão muçulmana, porexemplo, detém-se forçosamente em fronteiras análogas, e isso pelas mesmas razoes. O princípio, que colocou os politeístas árabes perante a alternativa islão ou morte, foi tão logo abandonado, mal as fronteiras da Arábia se viram ultrapassadas. Assim, os hindus, que não são propriamente*monoteístas+', foram governados por muçulmanos durante vários séculos, sem que estes tivessem aplicado, depois das suas conquistas, a alter Os monoteístas são as *gentes do Livro+ (ahl el-Kitâb), ou seja, os judeus e os cristãos, que receberam revelações de espírito abraâmico. Parece-nos quase supérfluoacrescentar que os hindus, se não são monoteístas em sentido especificamente semítico

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também não são politeístas, pois a consciência da Unidade metafísica através da multi'plicidade indefinida das formas é precisamente uma das características mais evidentesdo seu espírito. 88 A Unidade Transcendente das Religiões

nativa dantes imposta aos árabes pagãos. Um outro exemplo é o da delimitação tradicional do mundo hindu. Contudo, a reivindicação deuniversalidade por parte do hinduísino, conforme ao carácter metafisico econtemplativo desta tradição, é repleta de uma serenidade que não se encontra nas religiões semíticas. A concepção de Sanâtana-Narma, *Leieterna+ ou *primordial+, é estática, e não dinâmica, sendo uma constatação de factos, e não uma aspiração, como o é a correspondente concepçãosemítica: esta parte da ideia de que é preciso levar aos homens de Fé verdadeira que eles ainda'não possuem, enquanto, segundo a concepção hindu, a tradição bramânica é a Verdade e a Lei Original que os estrangeirosperderam, conservando dela apenas vestígios, tendo-a alterado ou mesmosubstituído pelo erro. É todavia inútil convertê-los porque, mesmo decaídos do Sanâtana-Dharma, nem por isso se deixam de salvar, achando-seapenas em condições espirituais menos favoráveis do que os hindus. Esteponto de vista não proíbe que *bárbaros+ sejam Yogis ou Avatâras-, e éum facto que os hindus veneram indiferentemente santos muçulmanos,budistas ou cristãos, sem o que a expressão Mlechha-Avatâra (*descida divina entre os bárbaros+) não teria sentido -, mas a santidade ocorreráSem dúvida muito mais raramente nos não-hindus do que no seio do Sanâtana-Dharma, cujo último refúgio é a terra sagrada da índia'. Poderíamos igualmente interrogar-nos se a penetração do islão em terras da índia não deveria ser vista como uma usurparão tradicionalmenteilegítima, podendo a mesma questão estender-se as partes da China e daInsulíndia que se vieram a tornar muçulmanas. Para responder a estaquestão, há que nos determos em considerações que parecerão talvez algolongínquas, mas que são aqui indispensáveis. Antes de mais, é preciso terem conta o seguinte: se o hinduísmo, no que respeita a sua vida espiritual,sempre se adaptou às condições cíclicas com que teve de se defrontar nodecurso da sua existência histórica, nem sempre porém conservou o carác Existiu, no Sul da índia, um *intocável+ que foi um Avatâra de Shiva: o grande mestre espiritual Tiruvalltivar, o *divino+, cuja memória é ainda venerada na região e quenos deixou um livro inspirado, o Kural. O equivalente da concepção hindu do Sanâtana-Dharma encontra-se nas passagenscorânicas que afirmam que não existe povo a que Deus não tivesse suscitado um Profeta; a afirmação exotérica segundo a qual todos os povos teriam rejeitado ou esquecidoa Revelação que respectivamente lhes dizia respeito não poderia fundar-se no

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Alcorão. 89

kI, Frithjof Schon

ter *primordial+ que lhe é próprio; nomeadamente, na @sua estrutura formal, apesar das modificações secundárias que sobrevieram por força dascircunstâncias, como por exemplo a fragmentação quase indefinida dascastas. Ora, tal primordialidade, plena de serenidade contemplativa, deulugar, a partir de certo *mornento+ cíclico, a uma maior preponderânciado elemento passional na mentalidade genérica, segundo a lei do declínioque rege todo o ciclo da humanidade terrestre. O hinduísmo acabou porperder em actualidade e em vitalidade, à medida que se afastou das origens, e nem as reformulações espirituais, como a eclosão das vias tântricase bhákticas, nem as readaptações sociais, como a já aludida fragmentaçãodas castas, bastaram para eliminar a desproporção entre a primordialidadeinerente à tradição e uma mentalidade sempre mais passional'. Contudo,a substituição do hinduísmo por outra forma tradicional, mais adaptada às

' Um dos sinais deste obscurecimento parece ser a interpretação literal dos textos simbólicos sobre a transmigração que. deram origem à teoria da reencarnação. O mesmo literalismo, aplicado às imagens sagradas, gerou uma idolatria de facto. Sem este aspecto real de paganismo, patente no culto de muitos hindus de casta baixa, o islão nãopoderia ter causado uma fenda tão profunda na realidade indiana. Se, para defender ainterpretação reencarnacionista das Escrituras hindus, há quem se reporte ao sentido literal dos textos, tudo deveria então interpretar-se de modo literal, chegando-se assim aum antropomorfismo grosseiro e a uma adoração grosseira e monstruosa da naturezasensível, quer se trate de elementos, animais ou objectos. O facto de muitos hindus interpretarem actualmente à letra o simbolismo de transmigraçao só prova o declípio intelectual próprio de kali-yuga e previsto nas Escrituras. Aliás, já nem nas religiões ocidentais os textos sobre a vida depois da morte são entendidos literalmente. O fogo doInferno não é um fogo físico, o seio de Abraão não é o seu seio corporal, o banquetede que Cristo fala não é constituído de alimentos terrestres, ainda que o sentido literaltenha também os seus direitos, sobretudo no Alcorão. Por outro lado, se a reencarnação fosse uma realidade, todas as doutrinas monoteístas seriam falsas, pois nunca situam os estados póstumos neste mundo. Mas todas estas considerações são vãs se pensarmos na impossibilidade metafísica da reencarnação. Mesmo admitindo que uinmestre espiritual hindu possa fazer sua uma interpretação literalista das

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Escrituras, noque diz respeito a uma questão cosmológica como a da transmigração, isso nada provacontra a sua espiritualidade, pois podemos conceber nele uma sabedoria que nada tema ver com realidades puramente cósmicas, consistindo numa visão puramente sintéticae interior da Realidade Divina; o caso seria diferente num mestre espiritual cuja vocação consistisse em expor ou comentar uma doutrina especificamente cosmológica, mastal vocação é quase de excluir na nossa época, devido às leis espirituais que a regem noquadro de uma tradição determinada. 90 A Unidade Transcendente das Religiões

condições particulares da segunda metade do kali-yuga, não chegou a estar em causa; o mundo hindu, no seu conjunto, não tem necessidade detransformações drásticas, já que a Revelação de Manu Vaivaswata conserva suficiente actualidade e vitalidade para justificar a persistência de umacivilização. Em qualquer dos casos, há que reconhecer que se produziuuma situação paradoxal no hinduísmo, que poderíamos caracterizar dizendo que ele é vivo e actual no seu conjunto, mas não em alguns aspectossecundários. Cada um destes aspectos teve a suas consequências no mundo exterior: consequência da vitalidade do hinduísmo foi a resistência invencível que ele opôs ao budismo e ao islão; consequência do seu enfraquecimento foi precisamente a vaga budista, que apenas passou por ele,e o alastramento e estabilização da civilização islâmica em solo indiano. Mas a presença do islão na índia não se explica unicamente pelo factode, sendo a mais jovem das grandes Revelações', estar melhor adaptadado que o hinduísmo às condições gerais deste último milénio da *idadesombria+ - tendo em maior conta o elemento passional nas almasmas ta mbém pela seguinte razão: o declínio cíclico traz consigo um obscurecimento geral, a par de um aumento mais ou menos considerável daspopulações, sobretudo as suas camadas inferiores. Ora, tal declínio é assistido por uma força cósmica compensadora que actua no interior da colectividade social a fim de restaurar, pelo menos simbolicamente, a suaqualidade primitiva. Em primeiro lugar, a colectividade será como queatravessada por excepções, paralelamente ao seu crescimento quantitativo, como se o elemento qualitativo (ou *sáttwico+, do Ser puro) nela contido se concentrasse para compensar, em casos especiais, a dilatação quantitativa. Em segundo lugar, os'meios espirituais tomam-se de mais fácil acessopara quem for qualificado e tiver aspirações sérias; isso, por uma lei cósmica da compensação que intervém, já que o ciclo humano, para o qual ascastas são válidas, chega ao fim. Por isso, a referida compensação tendenão apenas a restaurar, simbolicamente e dentro de certos limites, aquilo O islão é a última Revelação deste ciclo da humanidade terrestre, como o

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hinduísmorepresenta a Tradição Primordial, sem se identificar com ela pura e simplesmente, sendo apenas o seu ramo mais directo. Existe, portanto, entre estas duas formas tradicionais uma relação cíclica ou cósmica que, como tal, nada tem de fortuita. 91 Frithjof Schuon que as castas eram na sua origem, mas o que era a humanidade antes da constituição das castas. Todas estas considerações permitirão entrever qual o papel positivo e providencial do islão na índia: em primeiro lugar, absorver os elementos que, pelo facto das novas condições cíclicas já refe ridas, não encontram *o seu lugar+ na tradição hindu - pensemos aqui particularmente em elementos das castas superiores, os Dwijas; em segun do lugar, absorver os elementos de elite das castas inferiores, assim reabi litadas numa espécie de indiferencíação primordial. O islão, com a simplicidade sintética da sua forma e meios espirituais, é um instrumentoN@ providencialmente apto a preencher rupturas que se produzam em civili zações mais antigas e arcaicas ou a captar e neutralizar, pela sua presença, germes de subversão de que essas civilizações sejam portadoras nas di tas rupturas. Ora foi sob esse aspecto - e apenas esse - que certas ci vilizações entraram parcialmente no dominio providencial de expansão islâmica. Para não negligenciarmos nenhum aspecto desta questão, precisaremos ainda estas considerações do seguinte modo, mesmo que nos tenhamos de repetir um pouco: a possibilidade bramânica deve manifestar-se, em todas as castas e entre os próprios Shúdras, não apenas de maneira analógica, como sempre foi o caso, mas de maneira directa, e isso porque de *par te+, que inicialmente era, a casta inferior tornou-se um *todo+, nos finais do ciclo, sendo esse todo comparável a uma totalidade social: os elemen tos superiores dessa totalidade serão, de algum modo, *excepções nor mais+. Por outras palavras, o estado actual das castas parece copiar, sim bolicamente e em certa medida, a indistinção primordial, sendo as diferenças intelectuais entre as castas cada vez mais diminutas. As castas inferiores, tornando-se muito numerosas, representam de facto todo um povo, comportando por consequência todas as possibilidades humanas, enquanto as castas superiores, que não se multiplicaram nas mesmas pro porções, sofreram um declínio tanto mais sensível quanto *a corrupção do melhor é a pior+ (corruptio oprimi péssima). Sublinhemos todavia, para evitar qualquer equívoco, que os elementos de elite das castas inferiores conservam, do ponto de vista colectivo e hereditário, o seu carácter de *excepções que confirmam a regra+, não podendo por isso misturar-se le gitimamente com as castas superiores, o que não os impede de modo al 92 A Unidade Transcendente das Religiões

gum de serem individualmente aptos a vias reservadas normalmente àscastas nobres. Assim, o sistema de castas, que foi durante milénios um

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factor de equilíbrio, manifesta forçosamente certas rupturas no fim do mahâ-yuga, à semelhança dos desequilíbrios no ambiente terrestre. Ouantoao aspecto positivo que estas rupturas implicam, ele tem origem na mesma lei cósmica de compensação que tinha em vista Ibri Arabi quando afirmava,de acordo com diversos ditos do Profeta, que no fim dos tempos aschamas do Inferno esfriariam. É ainda a mesma lei que faz dizer ao Profeta que, no fim do mundo, se salvará quem cumprir um décimo do que oislão exigia de início. Tudo o que acabámos de expor não só diz respeitoàs castas hindus, mas também à humanidade no seu todo. Por outro lado,quanto às rupturas na estrutura exterior do hinduísmo, em todas as formas tradicionais encontramos factos análogos, em um ou outro grau. No que diz respeito à analogia funcional entre budismo e islamismo porreferência ao fiínduísmo - tendo ambas as tradições o mesmo papel negativo e positivo face a este último -, os budistas mahâyânistas ou hinayânistas têm dela plena consciência, pois vêem nas invasões muçulmanas, sofridas pelos hindus, o castigo pelas perseguições que eles mesmostiveram de sofrer por parte dos hindus.

Depois desta digressão, indispensável para mostrar um aspecto importante da expansão muçulmana, voltamos a uma questão mais fundamental, a da dualidade de sentido inerente às exortações divinas quando referidas às coisas humanas. Tal dualidade acha-se prefigurada no próprionome de *Jesus Cristo+: *Jes'us+ - como *Gáutama+ e *Maomé+ - indica o que há de limitado e relativo na manifestação do Espírito, e designao suporte desta manifestação; *Cristo+ - como *Buda+ ou *Rassul AIlah+ (Apóstolo de Deus) - indica a realidade universal da manifestação,ou seja, o Verbo enquanto tal. Embora a teologia não se coloque numaperspectiva capaz de esgotar as suas consequências, tal dualidade de aspectos volta a encontrar-se na distinção entre a *natureza humana+ e a*natureza divina+ de Cristo. Ora, se os Apóstolos concebiam Cristo e a sua missão em sentido abso 93 Frithjof Schuon

luto, isso não se devia a limitações de tipo intelectual: de facto, no mundoromano, Cristo e a sua Igreja tinham um carácter único, portantosrelativamente absoluto+. Esta expressão, que parece ser e é logicamente umacontradição de termos, corresponde todavia a uma realidade: o Absolutodeve reflectir-se *corno tal+ no relativo; e esse reflexo será, por referênciaàs outras relatividades, *relativamente absoluto+. A diferença entre doiserros será sempre relativa por referência à sua falsidade, sendo uma simplesmente mais falsa - ou menos falsa - do que a outra. A diferença entre o erro e a verdade será, pelo contrário, absoluta, mas apenas de modorelativo, sem sair das relatividades, pois o erro não poderia ser absolutamente independente da verdade, não sendo mais do que uma negaçãomais ou menos confessada da mesma. Por outras palavras, o erro, nada

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tendo de positivo, não poderia opor-se à verdade de igual para igual ecom plena autonomia. Isto permite entender porque não poderia haver aíum *absolutamente relativo+: esse seria o nada, e o nada nada é de modoalgum. Dizíamos que Cristo e a sua Igreja tinham um carácter único, *relativamente absoluto+, no mundo romano. Por outras palavras, a unicidade principal, metafísica e simbólica de Cristo, da Redenção, da Igreja, exprimiu-se necessariamente numa unicidade de facto a nível terrestre. Se osApóstolos não explicitaram os limites metafisicos que todo o facto naturalmente supõe e a experiência os levou a descorarem o sentido da universalidade tradicional, isso não significa que a sua Ciência espiritual não englobasse, no estado principal, o conhecimento dessa universalidade, aindaque não-actualizado quanto às suas aplicações a contingências determinadas. Da mesma forma, o olho que vê um círculo vê todas as outras formas, ainda que actualmente ausentes e mesmo que a visão se exerça apenas sobre esse círculo. A questão do que teriam dito os Apóstolos, ou opróprio Cristo, se tivessem encontrado um ser como Buda é perfeitamenteinútil, pois esse tipo de coisas jamais acontece por ser contrário às leiscósmicas. Dificilmente teremos ouvido falar de encontros entre grandessantos pertencentes a civilizações diferentes. Os Apóstolos eram, no seumundo, um grupo único. Mesmo admitindo, no seu raio de acção, a presença de iniciados assénicos, pitagóricos ou outros, a luz de tão pequenasminorias acabaria por se diluir na radiação de luz crística. Além disso, osApóstolos não teriam de se preocupar com estes *homens rectos+, pois 94 A Unidade Transcendente das Religiões

disse Jesus: *Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores+ (Mat.,9:13).De um ponto de vista algo diferente, mas respeitando o mesmo princípioda delimitação tradicional, notaremos que São Paulo que, no cristianismo,foi o artesão primordial da expansão, como Omar o será mais tarde no isIão, evitará penetrar no domínio providencial desta última forma da Revelação, segundo uma passagem muito enigmática dos Actos dos Apóstolos(16:6-8). Sem insistirmos no facto de os limites da expansão desconhecerem por certo o rigor das fronteiras políticas - as objecções fáceis, queprevimos, não voltem no terreno em que se situa o nosso pensamentolimitar-nos-emos a notar que a vinda do Apóstolo dos Gentios para ocidente tem um valor simbólico, mais por referência ao islão do que por referência à delimitação do mundo cristão. Por outro lado, o modo comoeste episódio foi relatado mencionando a intervenção do Espírito Santoe do *Espírito de Jestis+ e passando em silêncio as causas destas inspirações - não permite admitir que a abstenção de pregar a volta brusca doApóstolo só tivesse sucedido por motivos exteriores, sem alcance principíaI, nem permite comparar este episódio a uma qualquer peripécia dasviagens apostólicas'. Por fim, o facto de a província onde ocorreu esta intervenção do Espírito ser chamada *Asia+ acrescenta-se ainda ao caráctersimbólico das ditas circunstâncias.

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Permita-se-nos notar que, se nos referimos a exemplos concretos em vez de conjecturarmos sobre princípios e generalidades, nunca é com a intenção de convencer, masunicamente para revelar alguns aspectos da realidade a quem assim os quiser entender.É só para esses que escrevemos, recusando-nos desde já a polémicas que não teriam interesse nem para os nossos eventuais contraditores nem, sobretudo, para nós mesmos.Devemos igualmente acrescentar que não é como historiadores que abordamos os factos, citados a título de exemplo, visto que eles não interessam em si mesmos, mas apenas na medida em que podem ajudar à compreensão de verdades transcendentes, verdades essas jamais à mercê dos factos. 95 vi O ASPECTO TERNáRIO DO Monoteísmo

unidade transcendente das formasreligiosas revela-se de forma particularmente instrutiva na relação recíproca entre as três grandes religiões ditas monoteístas e isso porque só estasfazem questão em se apresentar como exoterismos inconciliáveis. Mas,antes de mais, há que estabelecermos uma clara distinção entre aquilo aque poderíamos chamar *verdade simbólicas e *verdade objectivas. Citaremos, a título de exemplo, os argumentos do cristianismo e do budismono referente às formas tradicionais que, de algum modo, lhes deram origem, a saber: o judaísmo e o hinduísmo, respectivamente. Tais argumentos são simbolicamente verdadeiros, pois as formas abandonadas não sãovistas em si mesmas, na sua verdade intrínseca, mas unicamente nos seusaspectos contingentes e negativos, produtos de um declínio parcial. A reJeição dos Vedas corresponde, portanto, a uma verdade quando esta Escritura é tida exclusivamente como símbolo de uma erudição estéril, muitocomum no tempo de Buda, tal como a rejeição paulina da Lei judaica éplenamente justificado quando não passa de um formalismo farisaico semvida espiritual própria. Se uma nova Revelação tem autoridade para depreciar valores tradicionais de origem mais remota é por ser independentee não fazer uso dos mesmos, já que, possuindo o equivalente desses valores, se basta totalmente a si mesma. Esta verdade aplica-se ainda ao foro interno de uma mesma forma tradicional, por exemplo, à antinomia entre as Igrejas Grega e Latina: o *cisma+ 97. Frithjof Schuon

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é uma contingência que não pode afectar a realidade intrínseca e essencialdas Igrejas. O cisma entre Igrejas, como o cisma entre muçulmanos, que originou a corrente chiita, não depende apenas de vontades individuais: tem aver com a própria natureza da religião que exteriormente, e não interiormente, divide. O espírito da religião pode exigir adaptações diversas, massempre ortodoxas, de acordo com contingências étnicas ou outras. O mesmonão acontece com as heresias, que dividem a religião por dentro e por forasem poderem realmente dividi-Ia, pois o erro não é parte da verdadee que, não apenas são incompatíveis, no plano formal, com outros aspectosde uma mesma verdade, mas são em si mesmas falsas. Consideremos agora a questão da homogeneidade espiritual e cíclicadas religiões no seu conjunto: o monoteísmo - que engloba as religiões judaica, cristã e islâmica, ou seja, as religiões de espírito semítico - funda-seessencialmente na concepção dogmática da Unidade (ou Não-Dualidade) divina. Ao dizermos que esta concepção é dogmática, especificamos que elaexclui qualquer outro ponto de vista, sem o que se tornaria impossível a aplicação exotérica que dá aos dognias toda a sua razão de ser. Vimos que é estarestrição, tão necessária à vitalidade das formas religiosas, que subjaz à limitação inerente ao ponto de vista exotérico enquanto tal. Por outras palavras,este caracteriza-se precisamente pela incompatibilidade entre concepções dotadas de formas aparentemente opostas, quando nas doutrinas puramentemetafisicas ou iniciáticas os enunciados aparentemente contraditórios não seexcluem nem se perturbam entre si'.

1 A unilateralidade com que certos factos das Escrituras são interpretados pelos exoteristas prova que o interesse que aqueles têm não é alheio às suas especulações limitadoras, como mostrámos no capítulo sobre o exoterismo. Na verdade, a interpretação esotérica de uma Revelação é admitida pelo exoterismo, sempre que tal interpretaçãosirva para o confirmar, e é arbitrariamente omitida quando susceptível de prejudicar odogmatismo exterior por detrás do qual se esconde um individualismo sentimental: assim, há quem se sirva da verdade crística, que pela sua forma é um esoterismo judaico,para condenar o formalismo excessivo do judaísmo; mas não faz a aplicação universaldessa verdade, projectando luz sobre toda a forma sem excepção, incluindo a sua. Segundo a Epístola de São Paulo aos Romanos (3:27 - 4:17), o homem é justificado pelafé, e não pelas obras; para a Epístola Católica de São Tiago (2:14-26), o homem é justificado pelas obras e não apenas pela fé. Ambos citam Abraão como exemplo. Ora, seesses dois textos pertencessem a religiões diferentes, ou a dois ramos reciprocamente*cismáticos+ de uma mesma religião, não há dúvida de que os teólogos de cada uma

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98 A Unidade Transcendente das Religiões Esta tradição monoteísta pertencia originariamente a todo o ramo nómada do grupo semítico, saído de Abraão, e que se subdividia em doisgrupos, o de Isaac e o de Ismael. Só a partir de Moisés o monoteísmo setorna realmente judaico. Moisés foi chamado a dar ao monoteísmo umforte contributo, associando-o de algum modo ao povo@ de Israel, que setornava assim seu guardião, enquanto a tradição abraâmica se ia obscurecendo entre os ismaelitas. Mas tal gesto, por muito necessário e providencial, conduziu fatalmente a uma restrição da forma exterior, devido à tendência particularista inerente a cada povo. Podemos dizer que o judaísmoanexou o monoteísmo, tornando-o coisa de Israel, fazendo com que a herança de Abraão se tornasse, desde então, inseparável de qualquer adaptação secundária, de qualquer consequência ri tual ou social implicado naLei mosaica. O monoteísmo, canalizado e cristalizado no judaísmo, adquiriu, assim,um carácter histórico, embora não em sentido exclusivamente genérico eexterior, o que seria incompatível com o carácter sagrado de Israel. Foiesta absorção da tradição primitiva por parte do povo judeu que permitiudistinguir exteriormente o monoteísmo mosaico do dos Patriarcas, semque tal distinção atingisse a esfera doutrinal. Esse carácter histórico do judaísmo teve como consequência natural a ideia messiânica, não inerenteao monoteísmo primitivo, mas ligada, enquanto tal, ao mosaísmo. Estas reflexões sobre o monoteísmo original, a sua adaptação por Moisés, a sua anexação pelo judaísmo e a sua concretizarão em ideia messiânica bastarão para passarmos à consideração do papel orgânico do cristianismo dentro do ciclo monoteísta. Diríamos que o cristianismo absorveu,na afirmação messiânica, toda a herança doutrinal do monoteísmo, e fê-lode pleno direito, sendo ele o legítimo ponto de chegada da forma judaica.

delas se afadigariam em demonstrar a incompatibilidade destes textos. Mas como estespertencem a uma única e mesma religião, os esforços tendem pelo contrário a demonstrar a sua perfeita compatibilidade. Porque não aceitar então as Revelações diferentesdaquela a que se adere? *Deus não pode côntradizer-se+, dirão, ainda que isso nãopasse de uma petição de princípio. Ora, das duas uma: ou admitimos que Deus se contradiz, e não aceitamos nenhuma Revelação; ou admitimos, por impossibilidade cóntrária, que há em Deus aparências de contradição, mas aí já não temos o direito de rejeitar uma Revelação estranha pela simples razão de ela ser, à primeira vista,contraditória por referência à Revelação que admitimos a priori. 99 Frithjof Schwn

O Messias, pelo facto de realizar na sua pessoa a Vontade Divina que originou o

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monoteísmo, vai necessariamente além da forma que não lhe permite realizar plenamente a sua missão. Para dissolver uma forma transitória, é preciso que, na sua qualidade de Messias, goze eminentemente daautoridade inerente à tradição de que se faz última palavra. Por issoé mais do que Moisés e anterior a Abraão: tais afirmações do Evangelhodemonstram uma identidade *de força maior+ entre o Messias e Deus,que permitem entender que um cristianismo que negue a divindade deCristo nega a sua própria razão de ser. Afirmámos que a pessoa *avatática+ do Messias absorveu inteiramentea doutrina monoteísta, o que significa que Cristo devia ser não apenas otermo do judaísmo histórico, mas o ponto de apoio do nionoteísmo e otemplo da Presença Divina. Esta extrema positividade histórica de Cristoarrastou consigo uma limitação da forma tradicional, como acontecera nojudaísmo, onde Israel tinha o papel preponderante que deveria mais tardecaber ao Messias, papel forçosamente restritivo e limitador da realizaçãodo nionoteísmo inte ral. Aqui intervém o islão, cuja posição e significado9no ciclo monoteísta nos falta ainda precisar'. Antes de abordarmos este assunto, consideremos ainda um outro aspecto da questão que acabámos de tratar. O Evangelho refere esta palavra deCristo: *A Lei e os Profetas vão até João. Depois de João, é anunciado oReino de Deus, e cada um se esforça por entrar nele+ (Luc.,15:16)., Alémdisso, o Evangelho refere que, no momento da morte de Cristo, o véu dotemplo se rasgou de alto a baixo, facto que, como a palavra acima citada,indica que a chegada de Cristo pôs fim ao mosaísmo. Ora, poderíamosobjectar que o mosaísmo, enquanto Palavra Divina, não é susceptível de

1 A perspectiva que acabámos de enunciar poderia lembrar a descrita por Joaquim deFiori que atribuía a cada pessoa da Santíssima Trindade uma preponderância particularem cada divisão do ciclo tradicional na perspectiva cristã: o Pai dominava a Antiga Lei,o Filho a Nova Lei e o Espírito Santo a última fase do ciclo cristão que começava comas novas ordens monásticas fundadas por São Francisco e São Domingos. Podemos detectar facilmente a assimetria destas correspondências: o autor desta teoria devia ignorar, real ou formalmente, o islão, que corresponde, segundo o dogma islâmico, ao reino do Paracleto. Mas não é menos verdade que a épocaque Joaquim de Fiori colocavasob a especia1,ipúu@Ucia do Espírito Santo, conheceu no Ocidente uma renovação espiritual. -x P, PA 100 A Unidade Transcendente das Religiões

anulação, pois *a nossa Torah é para a eternidade: nada lhe podemos somar ou

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subtrair+ (Maimónides). Como conciliar então a abolição do mosaísmo, ou do ciclo glorioso da sua existência terrestre, com a *eternidadeda Revelação mosaica? Há, antes de mais, que entendermos que esta abolição, se é real na ordem que lhe cabe, não deixa por isso de ser relativa;mas a realidade intrínseca do mosaísmo é absoluta, porque divina. É essaqualidade divina que necessariamente se opõe à supressão de uma Revelação, pelo menos por tanto tempo quanto a forma doutrínal e ritual destapermanecer intacta - o que era o caso do mosaísmo, sem o qual Cristonão se teria podido conformar a ele.' A abolição do mosaísmo, levada acabo por Cristo, remonta a um Querer Divino; a permanência intangíveldo mosaísmo é todavia de ordem mais profunda, no sentido que remontaà própria essência divina, de que este Querer é apenas uma manifestaçãoparticular - tal como a vaga é manifestação particular da água de quenão pode modificar a natureza. O Querer Divino, manifestado por Cristo,só podia afectar um modo particular do mosaísmo e não a sua qualidade Importa notar que o declínio do esoterismo judaico na época de Cristo - Nicodemos,doutor em Israel, ignorava o mistério da ressurreição! - permitia ver o mosaísmo nasua totalidade, e por referência à Nova Revelação, como um exoterismo exclusivo emaciço, visão essa de valor acidental e provisório, porque limitada à origem do cristianismo. Em todo o caso, a Lei mosaica não devia condicionar o acesso aos novos Misté~rios como faria um exoterismo por referência a um esoterismo, de que é complemento.Mas foi um outro exoterismo que se constituiu para a nova religião, com vicissitudes deadaptação e interferências que continuaram durante séculos. Paralelamente, por seu Iado, o judaísmo reconstituía e readaptava o seu exoterismo no novo ciclo da sua história, a diáspora; e parece que houve aí um processo de algum modo correlativo ao docristianismo, precisamente graças ao amplo influxo de espiritualidade que representavaa manifestação do Verbo crístico. Todos os elementos vizinhos dessa manifestação sofreram directa ou indirectamente, aberta ou encobertamente, a sua influência, e foi assim que se deu, no primeiro século do ciclo cristão, por um lado, o desaparecimentodos antigos mistérios, uma parte dos quais foi absorvida pelo esoterismo cristão, e poroutro lado, uma irradiação de forças espirituais nas tradições mediterrânicas, porexemplo, no neoplatonismo. No que se refere ao judaísmo, existiu até aos nossos dias,e existe sem dúvida ainda hoje, uma verdadeira tradição esotérica, não importa aépoca exacta em que se operou essa transformação depois da manifestação de Cristo

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e do começo do novo ciclo tradicional, a diáspora, e qual tenha sido mais tarde opapel aparentemente análogo do islão face ao judaísmo, assim como face ao cristianismo. 101

IL Frithjof Schon

*eterna+. Portanto, embora a presença real (Shekhinah) já não habite noSanto dos Santos no Templo de Jerusalém, a Divina Presença permanecesempre em Israel, não já como um fogo ininterruptojocalizado num santuário, mas como uma pedra ardente que, sem manifestar o fogo de modoconstante, o contém virtualmente, podendo manifestá-lo em certos períodos ou ocasiões.

No judaísmo e no cristianismo, o monoteísmo conheceu duas expressoes antagónicas, que o islão, antagónico por referência a estas formas, dealgum modo recapitulou, harmonizando o antagonismo judaico-cristão numa síntese que marcou o termo de expansão e realização integral do monoteísmo. Isso acha-se expresso no facto de o islão ser o número 3 destacorrente tradicional, ou seja, representar o número da harmonia, enquanto o cristianismo, o número 2, o da alternativa, não se basta a si mesmo,devendo ou ser reconduzido à unidade, por absorção de um dos seus termos pelo outro, ou recriar a unidade, pela produção de uma unidade nova. O modo de realização da unidade é precisamente o islão, que resolveo antagonismo judaico-cristão de que, em parte, surgiu e que, em parte,anula, por redução ao monoteísmo puro de Abraão. Poderíamos comparar o islão a um judaísmo que não rejeitou o cristianismo ou a um cristianismo que não renegou o judaísmo. Mas se, por ser produto de ambos, asua atitude pode ser caracterizada deste modo, o islão coloca-se porém fora da dualidade ao rejeitar por um lado o *desenvolvimento+ judaico epor outro a *transgressão+ cristã, pondo em relevo não o povo judaico oua pessoa de Cristo, mas a afirmação fundamental do monoteísmo, a Unidade de Deus. Para ultrapassar o messianismo foi preciso que o islão secolocasse num ponto de vista diferente deste, e o reduzisse, para o integrar, ao seu próprio ponto de vista, donde se explica a integrarão de Cristo na linhagem dos Profetas, de Adão a Maomé. É claro que o islão, como as duas religiões precedentes, nasceu por intervenção directa daVontade Divina, da qual surgiu o monoteísmo, e que o Profeta reflectia averdade messiânica essencial, inerente ao monoteísmo original ou abraâmico. O islão pode ser considerado como uma *reacção+ abraâmica à ane 102 A Unidade Transcendente das Religiões

xação do monoteismo por Israel, por um lado, e pelo Messias, por outro.Se metafisicamente estes dois pontos de vista não se excluem de modo algum, o

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dogmatismo não pode entendê-los simultaneamente nem afirmá-los senão por dogmas antagónicos que dividem o aspecto exterior do monoteísmo integral. Se o judaísmo e o cristianismo representam, em certa medida, umafrente única face ao islão, o cristianismo e o islão opõem-se por seu lado aojudaísmo, pela sua tendência à plena realização da doutrina monoteísta. Masvimos que essa tendência foi limitada, na forma cristã, pela preponderânciada ideia messiânica, que é secundária para o monoteísmo puro. O elementolegislativo do judaísmo foi quebrado por uma *exteriorização+, necessária elegítima, das concepções esotéricas, e absorvido pelo *Além+, de acordocom a fórmula: O meu reino não é deste mundo. A ordem social foi substituída pela ordem espiritual, sendo os sacramentos da Igreja a legislaçãocorrespondente a esta ordem. Mas como a legislação espiritual não responde às exigências sociais, houve que recorrer a elementos de legislaçãoheterogéneos, o que gerou um dualismo cultural nefasto para o mundocristão. O islão restabeleceu uma legislação sagrada para *este mundo+,juntando-se assim ao judaísmo, sem deixar de reafirmar a universalidadeque o cristianismo antes dele havia reposto ao quebrar a casca da Lei mosaica. Também poderíamos dizer que o equilíbrio entre os dois aspectos divinos, Rigor e Clemência, constituiu a essência da Revelação maometana,que nisso se harmonizou com a Revelação abraâmica. Se a Revelação crística afirma a sua superioridade face à Revelação mosaica, é porque a Clemência é principal e ontologicamente *anterior+ ao Rigor, como o confirma a inscrição do Trono de A11âh: *Na verdade, a Minha Clemênciaprecedeu a Minha Cólera+ (Inna Rahmati sabagat Ghadabi). O monoteísmo revelado a Abraão possuía em perfeito equilíbrio o esoterismo e oexoterismo, primordialmente indistintos nas religiões de cepo semítico.Com Moisés, é o exoterismo que, por assim dizer, se torna tradição, determinando a forma desta, sem prejudicar a sua essência. Com Cristo,é inversamente o esoterismo que se torna tradição. Com Maomé, o equílíbrio inicial é restabelecido e o ciclo da Revelação monoteísta encerrado.Tais alternâncias na Revelação integral do monoteísmo procedem da sua 103 Frithjof Schon

própria natureza, não sendo exclusivamente imputáveis às vicissitudes dacontingência. Sendo a *letra+ e o *espírito+ sinteticamente entendidos nomonoteísmo integral ou abraâmico, deveriam cristalizar-se sucessivamenteao longo da Revelação monoteísta, devendo o abraamismo manifestar oequilíbrio indiferenciado do *espírito+ e da *letra+; o mosaísmo, a *letra+;o cristianismo, o *espírito+; e o islão, o equili 'brio diferenciado destes doisaspectos da Revelação. Toda a religião é forçosamente uma adaptação, uma limitação. Se issovale para as tradições puramente metafisicas, vale muito mais para os dogmatismos que representam adaptações a mentalidades mais limitadas.'Tais limitações não devem encontrar-se, de algum modo, nas origens das

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formas tradicionais; manifestam-se, antes, no decurso do seu desenvolvimento, tornando-se mais notórias no fim e concorrendo para esse fim. Setais limitações são necessárias para a vitalidade das religiões, nem por issodeixam de ser limitações com todas as consequencias. As heterodoxias sãoconsequência indirecta desta necessidade de restringir a amplitude da forma tradicional, limitando-a, à medida que se avança para a idade sombria.E não pode ser de outra maneira, mesmo para os símbolos sagrados, poissó a Essência infinita, eterna e informal, é pura e inviolável, devendo asua transcendência manifestar-se na dissolução das formas e na sua irradiação através das mesmas.

Se temos fundamentos para afirmar que a mentalidade dos povos ocidentais, incluindo os do Próximo Oriente, tem qualquer coisa de mais limitado que a da maioria dospovos orientais, isso deve-se a uma certa intrusão, nos Ocidentais, do elemento passional na esfera da inteligência, donde a sua propensão a ver as coisas criadas sob um único aspecto, a do *facto bruto+, e a sua inaptidão à contemplação intuitiva das essênciascósmicas e universais que se insinuam nas formas. E o que explica a necessidade de umteísmo abstracto que se deve acautelar perante o perigo de idolatria, assim como depanteísmo. Trata-se de uma mentalidade que se expande, há já vários séculos e por razões cíclicas, cada vez mais entre todos os povos, que permite entender por um lado afacilidade relativa das conversões religiosas de povos de civilização não-doginática, mitológica ou metafísica, e por outro lado o carácter providencial da expansão muçulmana nessas civilizações. 104 Vil

CRISTIANISMO E ISLÃO

mos que, de entre as religiões quedão testemunho mais ou menos directo da Verdade primordial, o cristianismo e o islão representam, dentro da herança espiritual dessa Verdade,dois pontos de vista diferentes. Isso levanta-nos a questão do que é, em simesmo, um ponto de vista. Nada mais simples do que considerá-lo ao nível da visão física, em que o ponto de vista determina uma perspectivacoordenada e necessária, onde tudo muda de figura segundo a posiçãode quem vê, ainda que os elementos da visão sejam os mesmos - os

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olhos, a luz, as cores, as formas, as proporções, a situação no espaço. Altera-se o ponto de partida da visão, não a visão em si mesma. Se admitimos isso no mundo físico, que é reflexo das realidades espirituais, comopodemos negar a existência ou preexistência de semelhantes relações emtais realidades? O olho é o coração, o órgão da Revelação; o Sol, Princípio Divino, o dispensador da'luz; a luz, o Intelecto; os objectos, as Realidades ou Essências Divinas. Mas se nada nos impede de mudar de pontode vista, a nível físico, o mesmo não se passa naquele plano espiritual queultrapassa o indivíduo, tornando a sua vontade determinada e passiva. Para entendermos um ponto de vista espiritual ou religioso, não basta anossa boa intenção em estabelecermos correspondências entre elementosreligiosos extremamente comparáveis. Tal poderia tornar-se uma síntesesuperficial e pouco útil, mesmo se as comparações têm legitimidade quando não tomadas como ponto de partida e antepostas a uma análise da 105 Frithjof Schuon

constituição interna das religiões. Para chegar ao ponto de vista religioso,há que entrever a unidade em que todos os seus elementos constitutivos seacham necessariamente coordenados. Tal unidade é a do ponto de vistaespiritual, em si mesmo, que é germe da Revelação. A causa primeira daRevelação não é, de modo algum, assimilável a um ponto de vista, tal como a luz nada significa para a situação espacial do olho. Mas o que constitui toda a Revelação é precisamente o encontro entre a única Luz e umaordem contingente e limitada que representa como que um plano de refracção espiritual fora do qual não há Revelação. Antes de considerarmos a relação que existe entre cristianismo e islamismo, seria oportuno notarmos que o espírito ocidental é quase todo deessência cristã no que tem de verdadeiramente positivo. Não está no poder do homem desfazer-se de uma hereditariedade tão profunda, servindo-se de meros artifícios ideológicos. A sua inteligência exerce-se segundohábitos seculares, mesmo quando inventa erros. Não podemos esquecer asua formação intelectual e mental, por muito diminuída que seja. Se assimé e se algo do ponto de vista tradicional subsiste inconscientemente emquem pensa ter-se libertado de todos os seus elos ou, por imparcialidade,se coloca fora do ponto de vista cristão, como podemos esperar que elementos de outra religião sejam interpretados no seu verdadeiro sentido?Não é flagrante que opiniões correntes sobre o islamismo sejam sensivelmente as mesmas na maior parte dos Ocidentais, digam-se cristãos ou segabem de já não o serem? Nem os próprios erros filosóficos seriam concebíveis se não representassem a negação de certas verdades e tais negaçõesnão fossem reacções directas ou indirectas a limitações formais da religião. Por aí se vê que nenhum erro, seja qual for a sua natureza, pode aspirar a uma perfeita independência face à concepção tradicional que rejeita ou desfigura. Uma religião é comparável a um organismo vivo, que se desenvolve segundo leis necessárias e precisas. Poderíamos, portanto, chamar-lhe umorganismo espiritual, ou social no seu aspecto mais exterior; mas sempre

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um organismo, e não uma construção de convenções arbitrárias. Não podemos, pois, legitimamente considerar os elementos constitutivos de umareligião fora da sua unidade interna, como se fossem factos sem importância. Esse erro é frequentemente cometido, mesmo pelos mais imparciais, 106 A Unidade Transcendente das Religiões

ao estabelecerem correspondências externas sem terem em conta que oelemento tradicional é determinado pelo ponto de partida da religião integral e um mesmo elemento, personagem ou livro, pode ter significados diferentes de uma religião para outra. Ilustrámos tais observações, considerando paralelamente elementos fundamentais das tradições cristã e muçulmana. A incompreensão habitual erecíproca dos representantes das duas religiões revela-se nos mais ínfimospormenores, como ao chamar *maometano+ a um muçulmano, transposição imprópria da apelidarão de *cristão+. Se esta última convém perfeitamente,aos fiéi; da religião que, fundada por Cristo, o perpetua na Eucaristia e no Corpo Místico, não é correcta quando aplicada aos islamitas,cuja fé não assenta imediatamente no Profeta, mas sim no Alcorão, afirmação da Unidade Divina, que não consiste numa perpetuação de Maomé, mas na conformidade ritual e espiritual do homem e da sociedade àLei corânica, à Unidade. Por outro lado, o termo árabe mushrikún,*aqueles que associam (falsas divindades a Deus)+, referido aos cristãos,esquece que o cristianismo apenas não repousa imediatamente na ideia deUnidade, já que o seu fundamento é essencialmente o mistério de Cristo,mas sendo mushrikún um termo sagrado - no seu sentido corânico - éevidentemente o suporte de uma verdade que ultrapassa o facto históricoda religião cristã. Os factos têm aliás no islão um papel muito menos relevante do que no cristianismo, cuja base é essencialmente um facto, e nãouma ideia, como acontece no islão. É aí que se manifesta, em suma, a divergência fundamental entre as duas formas tradicionais. Para o cristão,tudo gira em torno da Encarnação e na Redenção. Cristo absorve tudomesmo a ideia de Princípio Divino, que aparece sob um aspecto trinitário,e de humanidade, que se torna seu Corpo Místico ou Igreja militante, padecente e triunfante. Para o muçulmano, tudo se centra em A11^ o Princípio Divino visto no Seu aspecto de Unidade' e Transcendência, e naconformidade, no abandono a ele: el-Islâm. No centro da doutrina cristãestá o Homem-Deus: o homem universalizado é o Filho, a segunda Pessoada Santíssima Trindade. Deus individualizado é Cristo Jesus. O islão nãoatribui tal importância ao intermediário. Não é ele que absorve tudo: só a Afirma-se expressamente, neste credo islâmico, que é o Fikh el-akbar de Abu Hanifa,que Allâh não é um em sentido numérico, mas por não ter quem se lhe compare. 107

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119 Frithjof Schuon

concepção monoteísta da Divindade está no centro da doutrina islâmica ea comanda inteiramente. A importância dada pelo islão à ideia de Unidade pode parecer, doponto de vista cristão, supérflua e estéril, ou mesmo um pleonasmo datradição judaico-cristã. Esquece-se que a espontaneidade e a vitalidade dareligião islâmica não pode ser efeito de um empréstimo e que a originalidade intelectual dos muçulmanos só pode provir de uma Revelação. Se noislão a ideia de Unidade é suporte da espiritualidade e, em certa medida,de aplicação social, o mesmo não se passa com o cristianismo: o seu pontocentral, como já dissemos, é a doutrina da Encarnação e da Redenção,concebida de modo universal na Santíssima Trindade, não tendo aplicaçãohumana a não ser nos Sacramentos e na participação no Corpo Místico deCristo. O cristianismo, tanto quanto a história nos permite julgar, jamaisteve uma aplicação social no sentido pleno do termo. Nunca integrou emsi inteiramente a sociedade dos homens. Colocou-se, como Igreja, acimados homens, sem os envolver nem lhes atribuir funções que lhes permitissem participar mais directamente na sua vida interna. Não consagrou osfactos humanos de modo suficiente. Deixou os elementos laicos fora de si,reservando-lhes uma participação mais o menos passiva na tradição. É assim que se apresenta a organização do mundo cristão segundo a perspectiva muçulmana. No islão, cada homem é padre de si mesmo, pelo simplesfacto de ser muçulmano. É o patriarca, o imâm ou o califa da sua família.Esta é reflexo de toda a sociedade islâmica. O homem é uma unidade,ima em do Criador, de quem é *vigário+ (khalifah) na Terra. Não poderia9portanto ser leigo. Também a família é una: uma sociedade dentro da sociedade, um bloco impenetráveV, à semelhança do homem responsável esubmisso, o muslim, e do mundo muçulmano, que é de uma homogeneidade e estabilidade quase incorruptíveis. O homem, a família e a sociedade são forjados na ideia de Unidade como suas múltiplas adaptações. Sãounidades como Affih e a Sua Palavra, o Alcorão. Os cristãos não podem O símbolo supremo do islão, a ka'bah, é um bloco quadrado, exprimindo o númeroquatro, o da estabilidade. O muçulmano pode constituir família até quatro esposas: estas representam a substância da família, ou a própria substância social, e são excluídasda vida pública. O homem é, na sociedade islâmica, uma unidade fechada. A casa árabe é traçada segundo a mesma ideia: é quadrada, uniforme, fechada para o exterior,ornada no interior e aberta sobre um pátio. 108 A Unidade Transcendente das Religiões

reclamar-se da ideia de Unidade ao mesmo título que os muçulmanos.

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O conceito de Redenção não se associa necessariamente ao de UnidadeDivina. Poderia subsistir numa doutrina politeísta. A Unidade Divina,que o cristianismo teoricamente admite, não aparece nele como um elemento *dinâmico+. A santidade cristã, a participação perfeita no CorpoMístico de Cristo, só indirectamente procede desta ideia. Tal como a doutrina islâmica, a doutrina cristã parte de uma noção teísta, mas insiste expressamente no aspecto trinitário de Deus. É Ele quem encarna e resgatao mundo. É o Princípio que desce ao manifesto para restabelecer nele oequilíbrio interrompido. Na doutrina islâmica, Deus afirma-se pela Unidade. Ele não encarna por uma distinção intrínseca. Ele não resgata o mundo. Ele absorve-o pelo islão. Ele não desce ao manifesto, projecta-se nele, como o sol se projecta pela luz. É essa projecção que permite àhumanidade participar nele. Acontece que certos muçulmanos, para quem o Alcorão significa tantocomo Cristo para os cristãos, acusam estes de não possuírem um Livroequivalente ao seu, ou seja, um único compêndio doutrinal e legislativo,escrito na língua em que foi revelado. Na pluralidade dos Evangelhos edos textos neotestamentários vêem a marca de uma divisão, agravada pelofacto de esses escritos não se conservarem na língua em que Jesus falava,mas numa língua não-semítica, ou traduzidos desse para outro idioma,igualmente estranho aos povos saídos de Abraão, e apontam o facto deesses textos serem traduzidos para qualquer língua estrangeira. Posturatão confusa como censurar o Profeta por ser um simples mortal. De facto,se o Alcorão é Palavra Divina ' também Cristo, vivo na Eucaristia, é oVerbo Divino, e não o Novo Testamento. Este desempenha somente umafunção de suporte da mensagem divina, não sendo ele a mensagem em si.A lembrança, o exemplo e a intercessão -do Profeta estão subordinados aoLivro revelado. O islão é um bloco espiritual, religioso e social.' A Igreja é um centro,e não um bloco. O cristão leigo é, por definição, um ser periférico. O muçulmano, pelo seu carácter sacerdotal, é um ser central dentro da sua tra' Um bloco, imagem da unidade. A unidade é simples e, por consequência, indivisível.Como nota um antigo alto funcionário inglês no Egipto, *o islão não pode ser reformado. Um íslão reformado já não seria o islão. Seria outra coisa+. 109 Frithjof Schon

dição e pouco importa que esteja exteriormente separado da comunidadea que pertence. Ele é padre de si mesmo e unidade autónoma, pelo menos do ponto de vista religioso. Daí deriva a convicção profunda do muçulmano. A fé do cristão é de outra natureza: ela *atrai+ e *absorve+ a alma, mais do que a *engloba+ e *penetra+. O cristão, segundo o ponto devista muçulmano, só pelos Sacramentos se liga à tradição. Acha-se semprerelativamente excluído, conservando uma atitude de receptividade. NaCruz, seu símbolo supremo, os ramos afastam-se indefinidamente do centro, embora

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a ele sempre ligados. Na ka'bah, símbolo do islão, o todo reflecte-se na mais ínfima parte que, pela sua coesão interna, permaneceidêntica às restantes partes e à ka'bah em si mesma. As correspondência entre os elementos tradicionais acima referidos nãoexcluem outras de pontos de vista diferentes. Assim, a analogia entre oNovo Testamento e o Alcorão permanece real na sua ordem, tal comoCristo e o Profeta correspondem analogicamente um ao outro. Se negartais correspondências é afirmar que existem semelhanças desprovidas desentido, também proceder de modo exterior ou sincretista às mesmas,quase sempre em prejuizo de um dos elementos em presença, é tirar valorreal ao resultado de tais comparações. Existem, com efeito, dois tipos decorrespondências tradicionais: por um lado, as fundadas na natureza fenoinénica dos elementos; por outro, as derivadas da estrutura interna de cada religião. No primeiro sentido, será algo como um livro, um rito, umainstituição, uma personagem; no segundo, um ou outro significado orgânico dentro de uma tradição. É a analogia que existe entre os pontos de vista físico e espiritual: para o, primeiro, um objecto permanece sempre omesmo, podendo mudar de aspecto ou de importância segundo as váriasperspectivas - lei facilmente transponível para a ordem espiritual.

Importa precisar que, em todas estas considerações, abordamos exclusivamente as religiões enquanto tais, ou seja, enquanto organismos, nãonos referindo às suas possibilidades puramente espirituais, que são emprincípio idênticas. É evidente que aí não pode intervir qualquer questãode preferência. Se o islão, enquanto organismo tradicional, é mais homogéneo e mais intimamente coerente do que a forma cristã, esse é um fac 110 A Unidade Transcendente das Religiões

tor muito contingente. Note-se, por outro lado, que o carácter solar deCristo não confere ao cristianismo superioridade sobre o islamismo. Maistarde explicaremos porquê, limitando-nos agora a recordar que cada forma tradicional é necessariamente superior às outras, sob um aspecto determinado quanto à sua manifestação - não quan ' to à sua essência oupossibilidades espirituais. Aos que, para julgar a forma islâmica, se querem apoiar em comparações superficiais e forçosamente arbitrárias, partindo da forma cristã, diremos que o islão, por corresponder a uma possibilidade espiritual, tem tudo o que necessita para manifestar talpossibilidade. Do mesmo modo, o Profeta, longe de ter sido apenas umimitador imperfeito de Cristo, foi tudo o que devia ser para realizar a possibilidade espiritual representada pelo islão. Se o Profeta não é Cristo ouse aparece sob um aspecto mais humano, é porque a razão de ser do islamismo não assenta numa ideia crística ou *avatárica+, mas numa noçãoque deve mesmo excluir aquela. A ideia, realizada pelo islamismo e peloProfeta, é a da exclusiva Unidade Divina, cujo carácter de absoluta transcendência implica - para o mundo criado ou manifesto - um correlativoaspecto de imperfeição. Foi o que permitiu aos muçulmanos servirem-se,desde o início, de meios humanos como a guerra para constituir o seu

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mundo tradicional, enquanto para o cristianismo foi preciso uma distânciade séculos, desde os tempos apostólicos, para que se servisse do mesmomeio, tão indispensável na propagação da fé. As guerras, levadas a cabopelos Companheiros do Profeta, foram ordálios tendo em vista a elaboração ou cristalização dos aspectos formais de um mundo novo. O ódio nada tem a ver com isso e os santos homens, que assim combateram, longede lutarem contra indivíduospr interesses humanos, agiram dentro doespírito da Bhagavad-Gita: é Krishna quem incita Arjuna a combater; nãoa odiar nem a vencer, mas a cumprir o seu destino, como instrumento doplano divino, sem se apegar ao fruto das obras. Tal luta de pontos de vista, quando se constitui um mundo tradicional, reflecte a concorrênciaprincipal das possibilidades de manifestação que ocorre quando do caossurge um cosmos. Era da natureza do islão ou da sua missão colocar-se,desde início, em terreno político, no que respeita à sua afirmação exterior, o que teria sido não apenas contrário à natureza ou à missão do cristianismo primitivo, mas totalmente irrealizável num ambiente tão sólido e Frithjof Schuon tão estável como o Império Romano. Mas, desde que o cristianismo se tornou religião do Estado, não apenas pôde como teve de se colocar em terreno político, tal como fez o islamismo. As vicissitudes que se deram, no,islão, a partir da morte do Profeta, não são certamente imputáveis a uma insuficiência espiritual, são sim imperfeições inerentes à política enJ@ quanto tal. O facto de o islão se ter imposto exteriormente por meios hu manos tem como único fundamento o Querer Divino que não quis interfe rências esotéricas na estruturação terrestre da nova forma tradicional. Quanto à diferença entre Cristo e o Profeta, podemos adiantar que os grandes mestres espirituais, independentemente dos respectivos graus, manifestaram quer uma sublimação quer uma norma. A primeira, no caso de Buda ou de Cristo, como em todos os santos mon es ou eremitas; a se gunda, no caso de Abraão, de Moisés ou Maorné, como em todos os san tos que viveram no mundo, por exemplo os santos, monarcas ou guerrei ros. A atitude de uns corresponde à palavra de Cristo: *O Meu Reino não é deste mundo+; a atitude dos outros, à palavra: *Venha a nós o Vosso Reino+. Os que crêem deve negar ao Profeta do islão qualquer legitimidade, in vocando argumentos de ordem moral, esquecem-se de que a única ques tão que se coloca é saber se Maorné foi ou não inspirado por Deus, não se é comparável a Cristo ou se agiu de acordo com uma moral estabelecido. Quando se nos põe o problema de Deus ter permitido aos Hebreus,a poli gamia ou ordenado a Moisés que passasse o povo de Canaã ao fio da es pada, a questão da moralidade de tais modos de agir não se coloca de ma neira alguma. O que conta é exclusivamente a Vontade Divina, cujo fim é invariável, mas cujos meios ou modos variam em razão da Infinidade da sua Possibilidade ou, secundariamente, em razão da indefinida diversida de das contingências. Do outro lado cristão, censuram-se frequentemente ao Profeta factos como a destruição da tribo dos Coraiditas. Mas esquece -se que qualquer Profeta de Israel teria agido mais duramente do que ele. Seria bom lembrarmo-nos de como Samuel, por ordem de Deus, agiu pa ra com os Amalecitas e o seu rei. Tanto o caso dos Coraiditas como o dos Fariseus oferece um exemplo de *discernimento dos espíritos+, quase au tomático para quem em contacto com

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manifestações de Luz. Por muito neutro que possa parecer um indivíduo colocado no meio do caos ou da 112 A Unidade Transcendente das Religiões

indiferença de que o Próximo Oriente do tempo de Maomé fornece umaimagem bem característica - igual à de todos os meios em que se dá umareforma religiosa -, o seu estado de espírito actualiza-se espontaneamente perante a alternativa de contacto com a Luz. Isso explica por que motivo se abrem as portas do Inferno, sempre que as portas dos Céus se descerram para derramar a Revelação; também na ordem sensível, toda a luzprojecta uma sombra. Se Maomé fosse um falso profeta, não entendemos porque Cristo nãofalaria dele, como falou do Anticristo. Mas se é um verdadeiro Profeta, aspassagens sobre o Paracleto devem - não exclusivamente, mas eminentemente - respeitar-lhe, pois é impossível que Cristo, ao falar do futuro, tivesse passado em silêncio sobre um fenómeno de tais dimensões. É issotambém que exclui a priori que Cristo, nas suas predições, tenha podidoenglobar Maomé no número dos *falsos profetas+. Maomé não foi de modo algum, na história da nosssa era, um exemplo entre outros do gênero.Foi, pelo contrário, único e incomparável'. Se fosse um dos falsos profetas *Se a grandeza do desígnio, a exiguidade dos meios e a imensidão dos resultados sãoas três medidas do gênio humano, quem ousaria comparar um grande vulto da históriamoderna a Maomé? De entre estes, os mais famosos apenas moveram armas, leis e impérios. Se algo fundaram, foi poderios materiais que, multas vezes, desabaram antesdeles. Aquele moveu exércitos, legislações, impérios, povos, dinastias, milhões de homens, num terço do globo habitado. Moveu ainda ideias, crenças, almas. Fundou umanação espiritual sobre um livro, de que cada letra se tornou lei. Entre povos de todasas línguas e raças imprimiu com carácter indelével o ódio às falsas divindades e a paixão pelo Deus uno, imatería1.+ (Lamartine, Histoíre de la Turquie.) *A conquista árabe desencadeado simultaneamente sobre a Europa e a Asia não conhece precedentes. A rapidez dos seus sucessos é somente comparável àquela com quese constituíram os Impérios Mongóis de um Atila, ou mais tarde de um Gengiscão oude um Tamerlão. Estes, porém, foram muito efémeros, enquanto a conquista do islãofoi duradoura. Esta religião conta com fiéis em quase toda a parte onde se impôs desdeos primeiros califas. Foi um verdadeiro milagre a sua difusão fulminante, comparada àlenta progressão do cristianismos (H. Pirenne, Mahomet et Charlemagne.) *A força de nada serviu na propagação do Alcorão, pois os Arabes sempre concederam

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aos vencidos liberdade de religião. Se os povos cristãos se converteram à fé dosvencedores, foi porque os novos conquistadores se mostraram mais justos para comeles do que os antigos mestres e porque a nova religião era mais simples do que a quelhes havia sido ensinada até então... Longe de se impor pela força, o Alcorão difundiu-se pela persuasão... Só esta poderia levar povos que mais tarde venceram os Arabes, 113 Frithjof Schon

anunciados, ter-se-iam seguido outros e, nos nossos dias, haveria umagrande quantidade de falsas religiões posteriores a Cristo, comparáveis,pela sua importância e extensão, ao islamismo. A espiritualidade, patenteno islamismo, desde as origens até aos nossos dias, é um facto inegável:e *pelos seus frutos os reconhecereis+. Recordemo-nos aliás de que oProfeta deu testemunho, na sua própria doutrina, da segunda vinda deCristo, sem atribuir a si mesmo qualquer glória, que não seja a de últimoProfeta deste ciclo. E a história demonstra que falou verdade, pois nãohouve depois dele manifestação igual à sua. Enfim, é indispensável agora dizer algo sobre o modo como o islão encara a sexualidade: se a moral muçulmana difere da cristã - não quanto àGuerra Santa nem quanto à escravatura, mas só quanto à poligamia e aodivórcio' -, é porque deriva de um outro aspecto da Verdade Total.O cristianismo, como aliás o budismo, vê na sexualidade apenas o ladocarnal, substancial ou quantitativo. O islão, pelo contrário, à semelhançado judafsmo e da tradição hindu e chinesa - não de certas vias espirituaisque rejeitam o amor sexual por razões de método -, vê na sexualidade oaspecto essencial, qualitativo, cósmico; a santificarão confere ao sexo umaqualidade que ultrapassa a sua dimensão carnal, neutralizando-a ou mesmo abolindo-a, como no caso das cassandras e das sibilas, na Antiguidacomo os Turcos e os Mongóis, a adoptar o islamismo. Na índia, onde os Arabes não sechegaram a instalar, o Alcorão espalhou-se de tal modo que conta hoje (1884) commais de cinquenta milhões de adeptos. O seu número aumenta cada dia... A difusão doAlcorão na China não foi menos considerável. Embora os Arabes não hajam nuncaconquistado uma parcela mínima do império Celeste, os muçulmanos formam hoje aíuma população de mais de vinte milhões.+ (G. Le Bon, La Civilisation des Arabes.)1 A poligamia entre os povos do Médio Oriente - povos, por sinal, guerreiros - erafactor determinante para a subsistência das mulheres, quando os homens morriam dizimados pela guerra. A isso acrescia ainda a grande mortalidade infantil, de modo que apoligamia se impunha mesmo para a conservação da raça. O divórcio deve-se à separação entre ambos os sexos que não permite que os cônjuges se conheçam suficientemente bem antes do casamento. Tal separação justifica-se pelo

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temperamento sensual dosArabes e dos povos meridionais em geral. O que acabámos de dizer explica o uso dovéu por parte das muçulmanas e também o purdah das hindus de casta alta. O facto deo véu ser usado apenas no islão, a tradição mais tardia, e o purdah só tardiamente tersido instituído no hinduísmo mostra bem que tais medidas só se explicam pelas condições particulares do fim da *idade de ferro+. Pela mesma razão, as mulheres foram excluídas de certos ritos bramânicos a que primitivamente tinham acesso. 114 A Unidade Transcendente das Religiões

de, do Shri Chakra tântrico e de grandes mestre espirituais, de que convémcitar o exemplo de Salomão e Maomé. Por outras palavras, a sexualidadepode ter uma conotação de nobreza como de impureza, um sentido vertical como horizontal, para falarmos em simbolismo geométrico. A carne é,por si mesma, impura, quer haja ou não sexualidade, e o sexo, é nobre emsi mesmo, tanto na carne como fora dela. A nobreza na sexualidade deriva do seu Protótipo Divino: *Deus é Amor+. Em termos islâmicos, diríamos que *Deus é Unidade+, e que o amor, sendo um modo de união(tawhid), é conformidade à natureza divina. O amor pode santificar a carne, como a carne aviltar o amor. O islão insiste na primeira destas verdades, enquanto o cristianismo insistirá de preferência na segunda, exceptuando, como é óbvio, o Sacramento do Matrimónio, onde forçosa epontualmente ele se associa à perspectiva judaico-islâmica.

Propomo-nos agora mostrar em que consiste na verdade a diferença entre a manifestação crística e a inaornetana. Importa todavia sublinhar quetais diferenças dizem respeito apenas à manifestação dos homens de Deus,e não à sua realidade interior e divina que é idêntica, e que mestre Eckhart enuncia nestes termos: *Tudo o que a Sagrada Escritura afirma sobreCristo verifica-se igualmente, na totalidade, em todo o homem bom e divino+, ou seja, em todo o homem que possua a plenitude da realização espiritual, segundo a *amplitude+ e a *exaltação+. E Shri Râmakrishna:*No Absoluto, eu não sou, e tu não és, e Deus não é, porque Ele (o Absoluto) está além da palavra e do pensamento. Mas, enquanto existir algofora de mim, devo adorar Brafima, nos limites do mental, como algo forade mim+. Este ensinamento explica, por um lado, como Cristo foi capazde rezar sendo divino e, por outro, como o Profeta, manifestando-se expressamente como homem, pôde ser divino na sua realidade interior. Nesta ordem de ideias, devemos atender ao seguinte: o dogmatismo funda-seessencialmente num *facto+ a que atribui carácter absoluto; por exemplo,a perspectiva cristã assenta no estado espiritual supremo, realizado por

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Cristo e inacessível ao individualismo místico, mas atribui-o só a Cristo,donde a negação, pela teologia, da União metafisica ou da Visão beatífica 115 Frithjof Schuon

já nesta vida. O esoterismo, pela voz de mestre Eckhart, reconduz o Mistério da Encarnação à ordem das leis espirituais, atribuindo ao homemque atingiu a santidade suprema as características de Cristo, excepto amissão profética, ou antes, redentora. Um exemplo análogo é o de certossufis que reivindicam para alguns dos seus escritos inspiração idêntica à doAlcorão. Ora, tal grau de inspiração não é atribuído, no islão exotérico,senão ao Profeta, conforme a perspectiva dogmatista que sempre se fundanum *facto transcendentes que reivindica exclusivamente para tal ou talmanifestação do Verbo. Aludimos já ao facto de o Alcorão, que corresponde ao Cristo-Eucaristia, constituir a grande manifestação paraclética, a *descida+ (tanzio do Espírito Santo (Er-Rúh, designado pelo nome de Jibril na sua função reveladora). O papel do Profeta pode assim ser entendido comoanálogo ou simbolicamente idêntico ao da Virgem Santíssima, ela tambémreceptara do Verbo de Deus. E tal como a Vir em, fecundada pelo Espí9rito Santo, é *Corredentora+ e *Rainha do Céu+, criada antes de toda aCriação, também o Profeta, inspirado pelo mesmo Paracleto, é *Apóstolode Misericórdia+ (Rasúl Er-Rahmah) e *Senhor das duas existências+(Sayid el-kawnayn) - do *aquém+ e do *além+ -, criado antes de todosos seres. Esta *criação anterior+ significa que a Virgem e o Profeta encarnam uma realidade principal ou metacósmica'. Eles identificam-se -- noseu papel receptivo, não no seu Conhecimento Divino nem, no que respeita a Maorné, na sua função profética - com o aspecto passivo da Existência Universal (Prakriti, em árabe: El-Lawh el-mahfúzh, *a Mesa Guardada+). Por isso, a Virgem é *imaculada+, *Virgem+ do ponto de vistapuramente físico, e o Profeta é *iletrado+ (ummi), como o eram aliás osApóstolos, puros da mácula do saber humano ou de um saber humana A opinião que faz de Cristo a nona encarnação de Vishnu - a Mleccha-Avatâra, *descida divina entre (ou para) os Bárbaros+ - é de rejeitar, primeiro por uma razão defacto tradicional e depois por uma razão de princípio: Buda sempre foi considerado pelos hindus como um Avatâra, mas como o hinduísmo devia excluir o budismo, explicava-se a aparente heresia budista pela necessidade de abolir os sacrifícios sangrentos ede induzir em erro os homens corrompidos a fim de precipitar a chegada fatal do kali-yuga. Em segundo lugar, é impossível que um ser, que encontra o seu lugar *orgânico+no sistema hindu, pertença a um mundo que não é a índia, sobretudo um mundo tãodistante como o mundo judaico. 116 A Unidade Transcendente das Religiões

mente adquirido. Tal pureza é condição primordial para a recepção do

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Dom paraclétíco e, ainda na ordem espiritual, a castidade, a pobreza, ahumildade e outras formas de simplicidade ou unidade, indispensáveis para a recepção da Luz Divina. Para precisar ainda a relação de analogia entre a Virgem e o Profeta, acrescentaremos que este último, no estado emque se achava mergulhado ao receber as Revelações, podia ser directamente comparável à Virgem, carregando em si ou dando à luz o Menino-Deus. Mas, devido à sua função profética, Maorné realiza uma dimensãonova e activa, pela qual - ao proclamar os versos do Alcorão ou ao deixar o *Eu Divino+ falar pela sua boca - se identifica directamente comCristo, que é o que para o Profeta é a Revelação e de quem, por consequência, cada palavra é Palavra Divina. No Profeta, só as *palavtas doSantíssimo+ (ahâdith quddúsiyah) apresentam, fora do Alcorão, este carácter divino. As duas outras palavras têm um grau de inspiração secundário (nafath Er-Rúh, a Smriti hindu), como certas partes do Novo Testamento, nomeadamente as Epístolas'. Mas voltemos à *pureza+ doProfeta: encontramos nele o equivalente exacto da *Imaculada Concei~ção+. Segundo a narração tradicional, dois Anjos fenderam o peito domenino Maomé e lavaram-lhe, com neve, o *pecado original+, que apareceu sob a forma de uma mancha negra sobre o coração. Maomé, comoMaria ou a *natureza humana+ de Jesus, não é portanto um homem comum, e por isso se diz que *Maomé é um homem (simples), não como umhomem (vulgar), mas como uma jóia entre as pedras (vulgares)+ (Muhammadun basharun lã kal-bashari bal hua kal-yaqúti bayn al-hajar). O quenos faz pensar na fórmula da Ave-Maria: *Bendita sois entre as mulheres+, indicando que a Virgem, em si mesma e independentemente da acção do Espírito Santo, é uma *'jóia+ em relação às outras criaturas, portanto algo como uma *norma sublime+. Em certo sentido, a Virgem e o Profeta *encarnam+ o aspecto - ou o*pólo+ - passivo/*feminino+ da Existência Universal (Prakriti). Encarnam, por isso, a fortiori, o lado benéfico e misericordioso de Prakriti',o que explica a sua importante função *intercessora+ e os títulos como

Opinião do autor, não partilhada por nenhuma igreja cristã (N. do T.). A Kwan-Yin do budismo extremo-oriental, derivada do Bodhisattva Avalokiteshvara,o *Senhor de olhar misericordiosos

117

Il@ Frithjof Schuon

*Mãe de Misericórdia+ (Mater Misericordiae.), *Nossa Senhora do Perpétuo Socorro+ ou, no que respeita ao Profeta, *Chave da Misericórdia deDeus+ (Miftâh Rahmat Allâh), *Misericordioso+ (Rahim), *Curador+(Shafi'), *Consolador+ (Kâshif el-kurab), *O que tira os pecados+

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(Afuww) ou a *mais bela criação de Deus+. (Ajmalu khalq Allâh). Querelação existe entre a misericórdia, o perdão, o benefício e a ExistênciaUniversal? Sendo a Existência indiferenciada, virgem e pura, em relaçãoàs suas produções, é capaz de reabsorver na indiferenciação as qualidadesdiferenciadas das coisas. Por outras palavras, os desequilíbrios da manifestação podem sempre ser integrados no equilíbrio principal. Todo o *mal+provém de uma qualidade cósmica (guna), de uma ruptura no equilíbrio:com ' o a Existência traz em si todas as qualidades em equilíbrio indiferenciado, pode dissolver na sua infinidade todas as vicissitudes do mundo.A existência é realmente *Virgem+ e *Mãe+, já que, por um lado, nada adetermina, a não ser Deus, e, por outro, dá à luz o Universo manifesto:Maria é *Virgem-Mãe+ pelo Mistério da Encarnação. Maorné é *virgem+,*iletrado+, porque só de Deus recebe inspiração, nada recebendo dos homens; é *mãe+, pelo seu poder intercessor junto de Deus. As personificações, humanas ou angélicas, da divina Prakriti comportam essencialmenteaspectos de pureza e amor. Os aspectos de Graça ou de Misericórdia daDivindade, virginal e materna, explicam o gosto desta em se manifestarde modo sensível, sob a forma de uma aparição humana, acessível aos homens: as aparições da Virgem são conhecidas de todos no Ocidente, equanto às do Profeta, são frequentes e quase regulares entre os muçulmanos mais espiritualizados. Existem mesmo métodos para obter essa graça,que equivale, em suma, a uma concretizáção da visão beatífica'. O Profeta, não ocupando no Islão o lugar que Cristo ocupa no cristianismo, não tem uma situação menos central na perspectiva islâmica. Resta-nos precisar por que motivo pode e deve ser assim e de que maneira oislão integra, na sua perspectiva, a Cristo, reconhecendo-lhe, através do

1 Lembremo-nos a propósito das aparições da Shakti no hinduísmo - em Shri Râmakrishna e Shri Sâradâ Devi, por exemplo - ou a de Kwan-Yin ou Kwannon nas tradições do Extremo Oriente, por exemplo em Shonin Shinran, grande santo budista doJapão. Sabemos, por outro lado, que no judaísmo a Shekhinah aparece sob a forma deuma mulher bela e clemente. 118 A Unidade Transcendente das Religiões

nascimento virginal, o seu carácter solar: o Verbo, nesta perspectiva, nãose manifesta num homem isolado, mas sim na função profética - no sentido mais elevado do termo - e sobretudo nos Livros revelados. Ora,sendo real a função profética de Maomé, e o Alcorão uma verdadeira Revelação, os muçulmanos, que só admitem estes dois critérios, não vêemrazão para preferir Jesus a Maoiné. Dão, pelo contrário, ao último a precedência, pela simples razão que, sendo o último representante da funçãoprofética, recapitula e sintetiza todos os modos desta e fecha o ciclo damanifestação do Verbo, donde o nome de *Selo dos Profetas+ (Khâtam el-anbiyâ).

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É esta situação única que confere a Maomé a posição centralque o islamismo lhe reconhece e que permite chamar ao próprio Verbo,Luz maometana (Núr muhammadi). O facto de a perspectiva islâmica só encarar a Revelação enquanto tal enão os seus modos possíveis explica por que motivo esta perspectiva nãoatribui aos milagres de Cristo a importância que lhes atribui o cristianismo: de facto, todos os *Enviados+, incluindo Maoiné, fizeram milagres(mu'jizât)'; a diferença, neste aspecto, entre Cristo e os restantes *Enviados+ é que só em Cristo o milagre tem uma importância central e é operado por Deus *no+ suporte humano, e não apenas *através+ desse suporte.O papel do milagre em Cristo e no cristianismo explica-se pelo carácterparticular que constitui a razão de ser desta forma de Revelação e que explicaremos no capítulo seguinte. No que respeita ao ponto de vista islâmico, não são os milagres que importam acima de tudo, mas o carácter divino da missão do Enviado, independentemente do grau de importância queo milagre tenha nessa missão. Poderíamos dizer que a particularidade docristianismo é que este se funda no milagre, perpetuado na Eucaristia, enquanto o islão se funda numa ideia, apoiada em meios humanos, com a A maior parte dos arabistas, se não todos, deduz falsamente a partir de diversas passagens corânicas que o Profeta não teria feito qualquer milagre, o que é contrariadonão só pelos comentadores tradicionais do Alcorão, mas também pela Sunnah queconstitui o pilar da ortodoxia islâmica. Quanto ao carácter *avatárico+ do Profeta, para além dos critérios infalíveis de ordem mais profunda, ele evidencia-se a partir dos sinais que, segundo a Sunnah, precederam e acompanharam o seu nascimento, e que são iguais aos que a tradição faz constar a respeito de Cristo ou de Buda. 119 Frithjof Schuon

ajuda divina, perpetuando-se na Revelação corânica, onde a oração ritualé de algum modo a actualizarão incessantemente renovada. Já demos a entender mais acima que, na sua realidade interior, Maornése identifica com o Verbo, tal como Cristo e - fora da perspectiva especificamente dogmatista - todo o ser que atinge a plenitude da realizaçãometafisica. Donde, estes ahâdith: *Quem me viu, viu a Deus (no seu aspecto de verdade absoluta)+ (Man ra'âni faqad rã' al-Haqq), e: *Ele(Maomé) era Profeta (Verbo) quando Adão estava ainda entre a água e alama+ (Fakâna nabiyen wa Adamu baynal-mâ'i wat-tin), palavras que podemos comparar às de Cristo: *Eu e o Pai somos um só+, e: *Na verdade,antes de Abraão ser, Eu sou+.

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120 VIII NATUREZA PARTICULAR E UNIVERSALIDADE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

Aquilo que, à falta de melhor, somosobrigados a designar por exoterismo cristão não é estritamente análogoaos exoterismos judaico e muçulmano, tanto na origem como na estrutura. Enquanto estes foram instituídos como tais desde o princípio, fazendoparte da Revelação e aí se distinguindo claramente do elemento esotérico,o que viria a tornar-se o exoterismo cristão não aparece como tal na Revelação crística ou manifesta-se aí pontualmente. É verdade que os textos mais antigos, nomeadamente as Epístolas deSão Paulo, deixam entrever um modo exotéríco ou dogmatista. É o queacontece quando a relação hierárquica entre o esoterismo e exoterismocomo se apresenta como uma relação histórica entre a Nova e a AntigaAliança, identificando-se uma com a *letra que mata+ e a outra com o*espírito que dá vida'+. Tal distinção não tem em conta a realidade integral da Antiga Aliança, nem o que equivale à Nova Aliança que é apenasuma sua variante ou adaptação. Este exemplo mostra como o ponto devista dogmatista ou teológico', em vez de abranger integralmente a verda A interpretação exotérica desta expressão equivale a um verdadeiro suicídio, pois acaba por se voltar inevitavelmente contra o exoterismo que a anexou. Foi o que demonstrou a Reforma, que avidamente se apoderou de tal palavra (11 Cor., 3:6) para fazerdela a sua principal arma, usurpando assim o lugar que deveria normalmente pertencerao esoterismo. O cristianismo é herdeiro do judaísmo, cuja forma coincide com a origem deste ponto 121 Frithjof Schuon

de, escolhe, por razões de oportunidade, um só aspecto da mesma, atribuindo -lhe um carácter exclusivo e absoluto. Não devemos esquecer que,sem esse carácter do mático, a verdade religiosa seria ineficaz quanto ao9fim particular a que o seu ponto de vista se propõe em virtude das ditasrazões de oportunidade. Existe pois aqui uma dupla restrição da verdadepura: por um lado atribui-se a um aspecto da verdade o carácter de verdade integral; por outro, atribui-se ao relativo um carácter absoluto. Paraalém disso, tal perspectiva oportunista traz consigo a negação de tudo oque, não sendo acessível nem indispensável a todos sem distinção, ultrapassa a razão de ser do ponto de vista teológico, ficando fora deste, dondeas simplificações e sínteses simbólicas próprias ao exoterismo'. Mencione-se ainda, como característica destas doutrinas, a assimilação de factos históricos

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a verdades principais e as confusões inevit@eis que daí resultam:por exemplo, quando se afirma que todas as almas, de Adão aos defuntoscontemporâneos a Cristo, tiveram de esperar que este descesse aos Inferde vista. A sua presença no cristianismo primitivo em nada atingiu a essência iniciáticado mesmo. Afirma Orígenes que *há diversas formas de o Verbo se 'revelar aos seusdiscípulos, conformando-se ao grau de luz de cada um, segundo o grau do seu progresso na santidades (Contra Cels., 4:16) Assim, os exoteristas semíticos negam a transmigração da alma, e, por consequência,a existência de uma alma imortal nos animais, ou ainda, o fim cíclico total a que os hindus chamam mahâ-pralaya, fim que implica a aniquilação de toda a criação (samsâra).Tais verdades não são de modo algum indispensáveis à salvação e comportam mesmoalguns perigos para as mentalidades a que as doutrinas exotéricas se dirigem. Um exoterismo vê-se sempre forçado a passar em silêncio ou rejeitar elementos esotéricos incompatíveis com a sua forma dogmática. Todavia, para prevenir qualquer objecção contra os exemplos que acabámos de citar,devemos formular duas reservas: quanto à imortalidade da alma nos animais, a negaçãoteológica tem razão na medida em que um ser não pode com efeito alcançar a imortalidade quando sujeito ao estado animal, já que este, tal como o estado vegetal ou mineral, é periférico, e a imortalidade e a libertação não podem ser alcançados senão a partir de um estado central como o humano. Vê-se, por este exemplo, que uma negaçãoreligiosa do carácter dogmático nunca é desprovida de sentido. Por outro lado, no querespeita à negação da mahâ-pralaya, devemos acrescentar que esta não é estritamentedogmática e que o fim cíclico total, que completa uma *vida de Brahmâ+, se acha claramente atestado em fórmulas como as seguintes: *Pois, em verdade vos digo, mesmoque passem o Céu e a Terra, não passará um só iota nem um só traço da Lei antes quetudo se cumpra+ (Mat.,5:18). *Eles permanecerão aí (khâlidin) enquanto durarem os 122 A Unidade Transcendente das Religiões

nos para as poder libertar, confunde-se o Cristo histórico com o Cristocósmico e representasse uma função eterna do Verbo como um facto temporal por Jesus ter sido manifestação desse Verbo. O que é dizer que, nomundo em que esta manifestação se produziu, ele foi a encarnação únicado Verbo. Um outro exemplo é o da divergência entre cristãos e muçulmanos quanto à morte de Cristo: o Alcorão nega-a aparentemente, parano fundo afirmar que Cristo não foi morto - o que é evidente pela natureza divina do Homem-Deus e pela natureza humana que ressuscitou: os

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muçulmanos recusam-se a admitir a Redenção histórica e os factos quepara a cristandade são a únicia expressão terrestre da Redenção Universal,o que significa em última análise que Cristo não morreu para os *justos+,que são aqui os muçulmanos, que beneficiam de outra forma terrestre deRedenção una e eterna. Por outras palavras, se em princípio Cristo morreu por todos os homens - do mesmo modo que a Revelação islâmica sedirige em princípio a todos eles -, de facto só morreu pelos que beneficiam dos meios de graça que perpetuam a sua obra redentora'. Ora a distância tradicional do islão, em relação ao Mistério crístico, deve revestirexotericamente a forma de uma negação, tal como o exoterismo cristão

Céus e a Terra, a menos que o teu Senhor decida de ' outro modo+ (Alcorão, XI, 107).' Recordemos igualmente, nesta ordem de ideias, a frase de Santo Agostinho: *Aquiloa que hoje se chama religião cristã existià já entre os Antigos e jamais deixou de existirdesde as origens do gênero humano. Até que, vindo Cristo, se começou a chamar cristã à verdadeira religião que já existia antes+ (Retract., I, XIII, 3). Esta passagem foicomentada por sua vez pelo padre P.4. Jallabert no seu livro Le Catholicisme avant Jésus-Christ: *A religião católica mais não é do que a continuação da religião primitivarestaurada e generosamente enriquecido por aquele que conhecia a sua obra desde oprincípio. É o que explica que. o apóstolo São Paulo apenas se considerasse superioraos Gentios por conhecer Jesus crucificado. Com efeito, aos Gentios só faltava que adquirissem o conhecimento da Encarnação e da Redenção enquanto factos consumados.Pois já haviam recebido o depósito de todas as outras verdades... É oportuno notarque esta divina revelação, desfigurada pela idolatria, se conservou porém na sua pureza, e -talvez em toda a sua perfeição, nos antigos mistérios de Elêusis, de Leninos e deSamotrácia.+ Tal *conhecimento da Encarnação e da Rendenção+ implica, antes demais, o conhecimento da grande renovação operada por Cristo, de um meio de graçaque é, em si mesmo, eterno, como o é a Lei que Cristo veio cumprir e não abolir. Talmeio de graça é essencialmente sempre o mesmo e o único que existe, não importa asdiferenças de modo, dependentes dos meios étnicos e culturais em que se revela.A Eucaristia é uma realidade universal como o próprio Cristo. 123 Frithiof Schuon

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deve negar a possibilidade de salvação fora da Redenção operada por Jesus. Uma perspectiva religiosa, que pode ser contestada ab extra, ou seja,a partir de outra faceta da verdade, não é menos contestável ab intra,pois, podendo servir de meio de expressão da verdade total, é chave desta. Por isso nunca se deve perder de vista que as restrições inerentes aoponto de vista dogmático são, na sua devida ordem, conformes à BondadeDivina que impede os homens de se perderem, dando a todos o que lhes éacessível e indispensável, tendo sempre em conta as predisposições mentais da colectividade humana em causa'. Estas considerações permitem-nos compreender que tudo o que, naspalavras de Cristo e nos ensinamentos dos Apóstolos, parece contradizerou depreciar a Lei mosaica, mais não faz no fundo do que exprimir a superioridade do esoterismo sobre o exoterismo', não se pondo a priori noterreno da Lei', desde que tal relação hierárquica não seja concebida de É em sentido análogo que se afirma no islão que *a divergência dos exegetas é umabênção+ (ffitilâf el'ulamâ'i rahamah).' Isto é muito claro nas palavras de Cristo sobre São João Baptista: do ponto de vistaexotérico, é evidente que o Profeta mais próximo de Cristo-Deus é o maior dos homens, mas, por outro lado, o menor dos Bem-Aventurados no reino dos Céus é maiordo que qualquer ser humano na Terra, devido a essa proximidade de Deus. Metafisicamente, esta palavra enuncia a superioridade do principal sobre o manifesto e, iniciaticamente, a do esoterismo sobre o exoterismo, sendo São João Baptista considerado como o auge e o expoente deste último, o que aliás explica por que motivo o seu nome éidêntico ao de São João Evangelista, que representa o aspecto mais interior do cristianismo.' Encontramos em São Paulo esta passagem: *A circuncisão é útil se observares a Lei.Mas, se transgredires a Lei, a tua circuncisão torna-se incircuncisão. Ora se o incircunciso observar os preceitos da Lei, não será a sua incircuncisão considerada circuncisão?Muito mais o homem, incircunciso por nascimento, se observa a Lei, te julgará a ti quecom a letra (da Lei) e a circuncisão transgrides a Lei. Não é judeu o que o é exteriormente e não é circuncisão a que se manifesta na carne. Mas é judeu quem o é interiormente e é circuncisão a do coração, no espírito, e não na letra. Esse recebe o seu louvor, não dos homens, mas de Deus+ (Rom. 2:25-29). A mesma ideia volta a surgir, de forma mais concisa, na seguinte passagem do Alcorão: *E eles dizem: Tornai-vos judeus ou nazarenos, para que sejais guiados. Responde: Não, (nós seguimos) a via de Abraão que era puro (ou *primordial+, hanif) e quenão era dos que associam (criaturas a A11^ efeitos à Causa ou manifestações ao Princípio), - (Recebei) o baptismo de Allâh. (e não o dos homens). E quem

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baptiza melhor do que Allâh? É a ele que adoramos+ (Alcorão, súrat el-baqarah, 135 e 138). 124 A Unidade Transcendente das Religiões

modo dogmático. É evidente que os ensinamentos de Cristo ultrapassamportanto também a Lei e só assim se pode explicar a atitude de Cristo perante a lei do talião, a mulher adúltera e o divórcio. De facto, dar a faceesquerda a quem bate na direita não é algo que possa ser posto em práticapor uma colectividade social que tem em vista o seu equilíbrio', só fazendo sentido como atitude espiritual. Só o espiritual se acha decisivamentealém do encadeamento lógico das reacções individuais, pois para ele aparticipação nessas reacções equivale a um declínio,'pelo menos quandoenvolve a parte central ou alma do indivíduo, não como acto exterior eimpessoal de justiça da Lei mosaica. Quando o carácter impessoal da leido talião deixou de ser compreendido, e foi substituído pelas paixões,Cristo veio exprimir uma verdade espiritual que, limitando-se a condenara pretensão, parecia condenar a própria Lei. Isso é patente na respostaaos que se dispunham a apedrejar a mulher adúltera, os quais, em vez deagirem impessoalmente em nome da Lei, queriam agir pessoalmente emnome da sua hipocrisia. Cristo não se colocava, @pois, do lado da Lei, masdo das realidades interiores, suprassociais, espirituais, Foi esse também oseu ponto de vista na questão do divórcio. O que, no ensinamento deCristo, põe talvez mais claramente em evidência o carácter puramente espiritual, supra-social e extra moral da doutrina crística é a seguinte palavra: *Se alguém vem a mim sem odiar o seu pai e a sua inae, a sua esposae os seus filhos, os seus irmãos e as suas irmãs, e até a própria vida, nãopode ser meu discípulos (Luc.,14:26) É evidentemente impossível oporum tal ensinamento à Lei mosaica.

Tal *baptismo+ significa, do ponto de vista da ideia fundamental, o que São Paulo exprime por *circuncisão+. Isso é de tal modo verdade que os cristãos nunca fizeram dessa exortação de Cristouma obrigação legal, o que prova que ela não se situa no mesmo terreno da Lei judaicae não queria nem podia consequentemente substituí-Ia. Existe um hadith que demonstra a compatibilidade entre o ponto de vista espiritual,afirmado por Cristo, e o ponto de vista social, que é o da Lei mosaica: o primeiro Iadrão da comunidade muçulmana foi levado diante do Profeta para que a mão lhe fosseamputada segundo a Lei corânica. Mas o Profeta empalideceu. Perguntaram-lhe: *Tensalgo a objectar?+ Ele respondeu: *Como não teria algo a objectar! Deverei eu ajudarSatanás na inimizade contra os meus irmãos? Se quereis que Deus vos perdoe o vossopecado e o cubra, também vós deveis cobrir o pecado dos outros. Pois, quando o

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pecador for conduzido à presença do monarca, o castigo há-de cumprir-se.+ É 125 Frithjof Schon O cristianismo não tem portanto as características normais de um exoterismo instituído como tal, mas apresenta-se antes como uma espécie deexoterismo de facto, não de princípio. Aliás, mesmo sem recorrermos apassagens das Escrituras, o carácter essencialmente iniciático do cristianismo e sempre reconhecível em indícios de primeira ordem, como a doutrina da Santíssima Trindade, o Sacramento da Eucaristia e particularmenteo uso do vinho nesse ritual, assim como em expressões puramente esotéricas como *Filho de Deus+ e sobretudo *Mãe de Deus+. Se o exoterismose pode definir como *o que é indispensável e acessível a todos sem distinção', o cristianismo não poderia ser um exoterismo no sentido habitual dotermo, pois não é acessível a todos, embora de facto - em virtude da suaaplicação religiosa - a todos se imponha. É em suma essa inacessibilidade exotérica dos dogmas cristãos que exprimimos ao qualificá-los de *mistérios+, termo que só recebe sentido positivo na ordem iniciática, a quealiás pertence, mas que, aplicado de modo religioso, parece querer justificar ou velar o facto de os dogmas cristãos não possuírem qualquer evidência intelectual directa. Por exemplo, a Unidade Divina é uma evidênciaimediata, susceptível de formulação exotérica ou dogmática, pois tal evidência é, na sua expressão mais simples, acessível a todo o homem de espírito são. Pelo contrário, a Trindade, por corresponder a um ponto devista mais diferenciado e representar um desenvolvimento particular dadoutrina da Unidade, entre outros desenvolvimentos igualmente possíveis,não e, em rigor, susceptível de formulação exotérica, pela simples 'razãode uma concepção metafisica diferenciada ou derivada não ser acessível atodos. Aliás, a Trindade corresponde forçosamente a um ponto de vistamais relativo do que a Unidade, como a *Redenção+ é uma realidademais relativa do que a *Criação+. Qualquer pessoa normal pode conceber,a qualquer nível, a Unidade Divina, já que esta é o aspecto mais universale mais simples da Divindade. Pelo contrário, só compreende a Trindadequem compreende a Divindade ao mesmo tempo sob outros aspectos maisou menos relativos, ou seja, quem, por participação espiritual no IntelectoDivino, se sabe mover de algum modo na dimensão metafisica. Essa é porém uma possibilidade longe de ser acessível a todos, pelo menos no esta Definição dada por Guérion no seu artigo *Création et Manifestation+ (Études tradi'tionnelles, Out. 1937).

126 A Unidade Transcendente das Religiões

do actual da humanidade terrestre. Quando Santo Agostinho afirma que aTrindade é incompreensível, coloca-se necessariamente - sem dúvida devido aos hábitos do mundo romano - no ponto de vista racional, que é oindivíduo, e que, aplicado às verdades transcendentes, so gera a ignorancia. A

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luz da pura intelectualidade, só é absolutamente incompreensível oque não tem realidade, o nada identificado com o impossível que, nadasendo, não pode ser objecto de incompreensão. Poderíamos acrescentar que o carácter esotérico dos dogmas e dos sacramentos cristãos é a causa profunda da reacção islâmica contra o cristianismo. Ao misturar a haqiqah (Verdade Esotéríca) com a shari'ah (LeiExotérica), o cristianismo comportava - certos perigos de desequilíbrio quede facto se manifestaram no decurso dos séculos, contribuindo indirectamente para a terrível subversão que é o mundo moderno, segundo a palavra de Cristo: *Não deis coisas santas aos cães nem pérolas a porcos, paraque não as pisem e, voltando-se contra vós, vos agridam.+

Se o cristianismo confunde os dois domínios que deveriam estar separados, como confunde as duas Espécies eucarísticas que respectivamente osfiguram, perguntamos: teria podido ser de outra maneira, sendo tal confusão produto de erros individuais? Certamente que não. Mas é preciso dizer que a verdade interior ou esotérica por vezes se deve manifestar à luzdo dia, em virtude de uma possibilidade de manifestação espiritual quenão tem em conta as deficiências do meio humano. Por outras palavras,esta *confusão' é consequência negativa de algo que é, em si mesmo, positivo e que mais não é do que a própria manifestação crística. A ela se refere a palavra inspirada: *E a luz brilhou nas trevas, e as trevas não a A expressão mais geral desta *confusão+, a que também poderíamos chamar *vacilação+, é a mistura, nas Escrituras do Novo Testamento, dos dois graus de inspiração queos hindus designam respectivamente pelos termos Shruti e Smriti e os muçulmanos pelos termos nafath Er-Rúh e ilqâ Er-Rahmâniyah: este último termo, como o de Smitri,designa a inspiração derivada ou secundária, enquanto o primeiro, como o de Shruti, serefere à Revelação propriamente dita, ou seja, à Palavra Divina em sentido directo.Nas epístolas, tal mistura aparece mesmo explicitamente várias vezes. O sétimo capítulo da primeira epístola aos Coríntios é particularmente instrutivo a este propósito. 127 Frithjof Schon

compreenderam+. Cristo devia, por definição metafisica ou cosmológica,quebrar a casca que era a Lei mosaica, sem todavia a negar. Sendo elemesmo o núcleo vivo dessa casca, tinha todos os direitos do seu lado. Era,portanto, *mais verdadeiros do que aquela, que é um dos sentidos da suapalavra: *Antes de Abraão ser, Eu sou+. O facto de o esoterismo não sedirigir a toda a gente é comparável à luz que penetra certas matérias e nãooutras. Se esse por vezes se deve manifestar em pleno dia - como aconteceu com Cristo, e, em menor grau de universalidade, num El-HaIlâj é porque analogamente

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também o Sol tudo ilumina sem distinção. Portanto, se *a Luz brilha nas trevas+, em sentido principal ou universal, é porque manifesta uma das suas possibilidades: e uma possibilidade é por definição algo que não pode não ser, enquanto aspecto da absolutanecessidade do Princípio Divino. Estas considerações não devem fazer-nos perder de vista um aspectocomplementar da questão, mais contingente todavia que o primeiro: devehaver igualmente do lado humano, ou seja, no meio em que tal manifestação divina se produz, uma razão suficiente para essa produção. Ora, parao mundo a que a missão de Cristo se dirigia, tal manifestação desveladade verdades que normalmente deveriam permanecer encobertas - pelomenos, em certas condições de espaço e de tempo - era o único meiopossível de operar o ordenamento de que o mundo necessitava. Isto bastapara justificar o que, na radiação crística tal como a definimos, seria anormal, e legítimo em circunstâncias normais. Um tal desnudamento do *espírito+ escondido na *letra+ não poderia contudo abolir inteiramente certas leis inerentes a todo o esoterismo, sob pena de retirar a este a suaprópria natureza. Assim, Cristo *nada lhes dizia sem parábolas, para quese cumprisse a palavra do Profeta que diz: Abrirei a minha boca em parábolas, proferirei coisas escondidas desde a criação do mundo+ (Mat.,13:34-35). Apesar disso, um tal modo de radiação, sendo inevitável nestecaso particular, não deixa de ser uma *espada de dois gumes+. Mas há outro aspecto: a via crística, análoga nesse ponto às vias *bhákticas+ da índia a a certas vias budistas, é essencialmente uma *via de Graça+. Ora,nestes métodos, em razão da sua natureza específica, a distinção entre aspecto exterior e interior acha-se atenuada e por vezes ignorada, já que a 128 A Unidade Transcendente das Religiões

*Graça+, que é de ordem iniciática no seu núcleo ou essência, tende adar-se na maior medida possível, o que pode fazer devido à simplicidadee universalidade do seu simbolismo e meios. Também poderíamos dizerque, se a separação entre a *via do mérito+ e a *via do Conhecimento+ éforçosamente profunda por se referir respectivamente ao acto meritório eà contemplação intelectual, a *via da Graça+ ocupa, de certa maneira,uma posição intermédio, As aplicações interior e exterior associam-se aínuma mesma radiação de Misericórdia, de modo que surgem, no domínioda realização espiritual, mais diferenças de grau do que diferenças deprincípio. Toda, a inteligência e vontade pode participar, na medida dopossível, numa mesma e única Graça, o que faz pensar no Sol que a todossem distinção ilumina, agindo porém diferentemente sobre as diversas matérias. Abstraindo-se de que o desvelamento de verdades, que deveriam ter ficado encobertas, era o único meio possível para operar o reordenamentoespiritual de que o mundo ocidental necessitava, temos porém de acrescentar que esse modo tinha um carácter providencial face à evolução cíclica, achando-se compreendido no Plano Divino do desenvolvimento final

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de dado ciclo da humanidade. Poderíamos também reconhecer na desproporção entre a qualidade puramente espiritual do Dom crístico e o seumeio por demais heterogéneo de recepção o indício de um modo excepcional da Misericórdia Divina que se renova constantemente na criatura:Deus, para salvar *uma humanidades, consente em ser profanado. Poroutro lado, manifestando a Sua Impessoalidade, serve-se dessa profanaçãopois *é preciso que haja escândalos - para levar a cabo o fim do referido ciclo, fim tão necessário para esgotar as possibilidades que nele estãodadas, necessário ao equilíbrio e cumprimento da gloriosa radiação universal de Deus. O ponto de vista dogmatista, quando os não pode negar, é forçado aqualificar os actos aparentemente contraditórios da Divindade impessoalcomo *misteriosos+ e *insondáveis+, atribuindo naturalmente tais *mistérios+ ao Querer do Deus pessoal.

129 Frithjof Schuon A existência de um esoterismo cristão, ou antes, o carácter eminentemente esotérico do cristianismo primitivo, não ressalta apenas do NovoTestamento, onde certas palavras de Cristo não fazem qualquer sentido anível exotérico, nem se deduz apenas da natureza dos seus ritos - para sófalar do que, na Igreja Ocidental, nos é exteriormente acessível. Tambémo testemunho dos autores antigos dá prova disso. Assim, São Basílio, noseu Tratado sobre o Espírito Santo fala de uma *tradição tácita e místicamantida até aos nossos dias+ e de *uma instrução secreta que os nossosPais observaram sem discussão e que nós seguimos permanecendo na simplicidade do seu silêncio. Pois eles aprenderam quanto o silêncio foi necessáriopara guardar o respeito e a veneração devidos aos nossos santos mistérios.E, com efeito, não era conveniente divulgar por escrito uma doutrina contendo coisas que aos catecúmenos não é permitido contemplaras. *Só são aptos à salvação os espíritos deificados+ - afirma São Dinis,o pseudo-areopagita - *e a deificarão é a união e semelhança que nos esforçamos por ter com Deus... O que é uniforme e abundantemente repartido pelas Essências Bem-Aventuradas nos Céus a nós é transmitido emfragmentos e na multiplicidade dos símbolos por oráculos divinos. Pois estes são a base da nossa hierarquia. E por isto há que entender não só oque os nossos mestres inspirados nos deixaram nas Sagradas Letras e nosescritos teológicos, mas o que transmitiram aos seus discípulos por um ensinamento espiritual, quase celeste, iniciando-os espírito a espírito, de ' modo corporal, pois falavam, mas também de modo imaterial, pois não escreviam. Ora, devendo tais verdades ser traduzidos para uso da Igreja, osApóstolos expuseram-nas sob o véu dos símbolos e não na sua sublimenudez. Pois nem todos são santos e, como diz a Escritura, a Ciência não épara todos'.

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Permita-se-nos citar também um autor católico muito conhecido, Paul Vulhaud:*O processo de enunciarão dogmática foi durante os primeiros séculos o da Iniciaçãosucessiva. Existia, numa palavra, um esoterismo na religião cristã. Por muito que issodesagrade aos historiadores, encontramos incontestavelmente o vestígio da *lei do arcano+ nas origens da nossa religião... Para entender com clareza o ensinamento doutrinal da Revelação cristã, há que admitir um duplo grau na pregação evangélica. A leique mandava que os dognias só fossem revelados aos iniciados perpetuou-se por muitotempo, facto que impede os cegos ou refractários de negarem a sua existência. Sozómeno, um historiador, escreve a propósito do Concílio de Niceia que era sua intenção en 130 A Unidade Transcendente das Religiões Dissemos mais acima que o cristianismo representa uma *via de Graça+ou de *Amor+ (o bhakti-mârga dos hindus). Tal definição requer ainda algumas precisões de ordem geral que formularemos do seguindo modo: oque mais profundamente distingue a Nova Aliança da Antiga é que nestao aspecto divino de Rigor predominava, enquanto naquela é o aspecto deClemência que prevalece. Ora, a via de Clemência é em certo sentidomais fácil que a de Rigor, porque, sendo de ordem mais profunda, benefitrar no pormenor *para deixar à posteridade um monumento público de verdade+. Foiporém aconselhado a omitir *o que só os padres e os fiéis deveriam saber+. A *lei dosegredo+ perpetuou-se certamente em alguns lugares depois da divulgação universal dodogma conciliar... São Basílio, na sua obra Sobre a Fé Verdadeira e Piedosa, conta quese abstinha de se servir dos termos Trindade ou Consubstancialidade, que não seacham nas Escrituras, embora aí se encontrem as coisas que estes significam... Tertuliano, contra Praxeias, afirma que não é necessário falar claramente da Divindade de Jesus Cristo e que se deve chamar Deus ao Pai e Senhor ao Filho... Tais locuções habituais não parecerão indícios de uma convenção, já que esta forma de linguagemreticente se acha em todos os autores dos primeiros séculos, sendo de uso canónico?A disciplina primitiva do cristianismo comportava uma sessão de exame em que oscompetentes (os que pediam o Baptismo) eram admitidos à eleição. Tal sessão era chamada escrutínio. Traçava-se o sinal da cruz sobre as orelhas dos catecúmenos pronunciando-se as palavras de Jesus: Ephpheta, o que fazia com que a cerimônia se chamasseo *escrutínio da abertura das orelhas+. Os ouvidos eram abertos à recepção (cabâlâh),à tradição das verda6 divinas... O problema sinóptico-joânico... só se resolve

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recorrendo à existência do duplo ensinamento, exotérico e acroamático, histórico e teológico-místico... Existe uma teologia parabólica. Esta faz parte daquele património a queTeodoreto chama, no Prefácio do seu Comentário ao Cântico dos Cânticos, a *herançapaterna+, que significa a transmissão do sentido que se aplica à interpretação das Escrituras... O dogma, na sua parte divina, constituía a revelação reservada aos Iniciados,sob *a disciplina do arcano+. Tentzélio queria fazer remontar a origem desta *lei do segredo+ aos finais do séc. ii... Emnianuel ScheIstrate, bibliotecário do Vaticano, constatava-a com razão nos séculos apostólicos. Na verdade, o modo esotérico de transmissãodas verdades divinas e de interpretação dos textos existiu entre os judeus, entre os gentios, por fim também entre os cristãos... Se nos obstinarmos em não estudar os processos iniciáticos de Revelação, jamais chegaremos a ter uma assimilação inteligente esubjectiva do do ma. As litur ias antigas não são suficientemente consideradas e a pró 9 9pria erudição hebraica é absolutamente negligenciada... Os Apóstolos e os Padres conservaram em segredo e em silêncio a *Majestade dos Mistérios+; São Dinis, o Pseudo-Areopagita, buscou com afectação o emprego de termos obscuros. Como Cristo, quese autodesignava como *Filho do Homem+, ele chamou ao baptismo: a Iniciação àTeogénese... A disciplina do arcano era muito legítima. Os profetas e o próprio Cristo 131 Frithjof Schwn cia de uma Graça particular: é a *justificação pela Fé+ cujo *jugo é doce e o fardo, ligeiro+ e que torna inútil o *jugo do Céu+ da Lei mosaica. Esta *justificação pela Fé+ é, de resto, análoga à *libertação pelo Conhecimen to+, o que lhe confere o seu alcance esotérico, sendo tanto um quanto ou

não revelaram os divinos arcanos com clareza tal que se tornassem compreensíveis a to dos+ (Paul Vulliaud, Études d'Ésotérisme catholique). Por fim, permita-se-nos citar, a título documental e apesar da extensão do texto, um autor de princípios do séc. xix. *Nas origens, o cristianismo foi uma iniciação semelhante à dos pagãos. Falando desta religião, Clemente de Alexandria exclama: *ó mistérios verdadeiramente sagrados! ó pura luz! A luz incandescente perde o véu que cobre Deus e o Céu. Sou santo desde que iniciado. O próprio Senhor é o hierofante. Põe o seu selo no adepto que ilumina. E, para recompensar a sua fé, recomendado eternamente ao Pai. Eis as orgias dos meus mistérios. Vinde e recebemos vós também.+ Poderíamos tomar estas palavras por @im ples metáfora. Mas os factos provam que as devemos interpretar à letra. Os Evange lhos estão cheios de reticências calculadas,

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de alusões à iniciação cristã. Aí se lê: *Quem pode adivinhar, adivinhe. Quem tem ouvidos, ouça.+ Jesus, dirigindo-se às massas, emprega sempre parábolas: *Buscai e encontrareis. Batei e abrir-se-vos-á ... + As assembléias eram secretas, Só se era admitido em condições determinadas. Só se chegava ao pleno conhecimento da doutrina passando por três graus de instrução. Os iniciados eram por consequência divididos em três classes. A primeira era a dos,ouvin tes, a segunda a dos catecúmenos ou competentes, a terceira a dos fiéis. Os ouvintes eram uma espécie de noviços que eram preparados, através de certas práticas e instru ções, para receber a comunicação dos dogmas do cristianismo. Uma parte desses dog mas era revelada aos catecúmenos, que, depois das purificações ordenadas, recebiam o baptismo ou a iniciação da teogénese (geração divina), como lhe chama São Dinis na sua Hierarquia Eclesiástica. Tornavam-se desde então domésticos da fé e tinham acesso às igrejas. Para os fiéis, nada havia de secreto ou de escondido nos mistérios. Tudo se4 fazia na sua presença. Tudo podiam ver e ouvir. Tinham direito a assistir a toda a litur gia. Era-lhes prescrito que se examinassem atentamente para que não penetrasse ent re eles gente profana ou iniciados de grau inferior. E o sinal da cruz servia para se reco nhecerem uns aos outros. Os mistérios dividiam-se em duas partes. A primeira era cha mada a Missa dos Catecúmenos porque os membros dessa classe podiam assistir a ela. Compreendia tudo o que se diz desde o começo do ofício divino até à recitação do Cre do. A segunda chamava-se Missa dos Fiéis. Compreendia a preparação do sacrifício, o sacrifício em si, e a subsequente acção de graças. Quando começava essa missa, um diácono dizia em alta voz: *As coisas santas aos santos. Que os cães se retirem!+ Então 132 A Unidade Transcendente das Religiões

tra relativamente independentes da *Leí+, ou seja, das obras'. Com efeito, a Fé não é mais do que o modo *bháktico+ do Conhecimento e dacerteza intelectual, o que significa que ela é um acto passivo de inteligência, tendo por objecto não imediatamente a verdade enquanto tal, masum símbolo desta. Tal símbolo revela os seus segredos à medida que a Féaumenta, e esta só aumenta através de uma atitude confiante de certezaemocional, de um elemento de bhakú, que é amor. A Fé, sendo uma atitumandavam-se embora os catecúmenos e os penitentes - estes últimos eram fiéis que,tendo cometido falta grave, eram submetidos à expiação ordenada pela Igreja -, nãopodendo assistir à celebração, dos terríveis mistérios, como lhes chamava São João Crisóstomo. Os fiéis, uma vez sós, recitavam o Credo, para se assegurarem de que todosos assistentes tinham recebido a iniciação e que se podia falar diante deles abertamentee sem enigmas sobre os grandes mistérios da religião e sobretudo da Eucaristia.

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Mantinha-se a doutrina e a celebração deste Sacramento em segredo inviolável. E, se os doutores falavam deles nos seus sermões ou livros, só o faziam com grandes reservas, pormeias palavras, enigmaticamente. Quando Diocleciano ordenou aos cristãos que entregassem aos magistrados os seus livros sagrados, os que de entre eles, com medo damorte, obedeceram ao edicto imperial, foram expulsos da comunhão dos fiéis e considerados traidores e apostaras. Podemos ver em Santo Agostinho que dor sentiu então aIgreja ao ver as Sagradas Escrituras serem entregues às mãos dos infiéis. Aos olhos daIgreja, era uma horrível profanação que um homem não iniciado entrasse num temploe assistisse aos Sagrados Mistérios. São João Crisóstorno assinala um facto desse género ao papa Inocêncio 1. Soldados bárbaros haviam entrado na Igreja de Constantinoplana vigília de Páscoa. "As catecúmenas, que se haviam despido para serem baptizadas,foram obrigadas a fugir nuas com o medo. Esses bárbaros não lhes deram tempo de secobrirem. Entraram nos lugares onde se conservam com profundo respeito as coisassantas, e alguns deles, ainda não iniciados aos nossos mistérios, viram tudo o que aí havia de mais sagrado". O número de fiéis, que aumentava cada dia, levou a Igreja, noséc. vii, a instituir as ordens menores, entre as quais a dos porteiros, que sucederamaos diáconos e aos subdiáconos na função de guardar as portas das igrejas. Cerca doano 700, toda a gente foi admitida a assistir à liturgia. E, de todo o mistério que nosprimeiros tempos cercava o cerimonial sagrado, só se conservou o uso de recitar secretamente o Cânone da Missa. Contudo, no rito grego o oficiante celebra ainda hoje oofício divino por detrás de uma cortina, que só é aberta no momento da elevação. Mas,nesse momento, os assistentes devem prostrar-se ou inclinar-se de tal modo que nãopossam ver o Santíssimo Sacramento.+ (F.-T.-B. Claver, Histoire pittoresque de laFranc-Maçonnerie et des Sociétés secrètes anciennes et modernes.)' Uma diferença análoga à que opõe a *Fé+ e a *Lei+ encontra-se dentro do própriocampo iniciático: à *Fé+ correspondem aqui os diversos movimentos espirituais fundados na invocação do Nome Divino (o japa hindu, o buddhânusmriti, nien-fo ou nembut 133 Frithjof Schuon

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de contemplativa, tem como sujeito a inteligência. Pode-se pois dizer queé um Conhecimento virtual. Mas, como o seu modo é passivo, tal passividade deve ser compensada por uma atitude activa complementar, ou seja,por uma atitude voluntária cuja substância é precisamente a confiança e ofervor, graças aos quais a inteligência recebe certezas espirituais. A Fé é apriori uma disposição natural da alma para admitir o sobrenatural. É poisessencialmente uma intuição do sobrenatural, ocasionada pela Graça,

su budista e o dhikr muçulmano); um exemplo muito típico é o de Shri Chaitanya deitando fora todos os seus livros para se consagrar apenas à invocação *bliáktica+ deKrishna, atitude semelhante à dos cristãos que rejeitaram a *Lei+ e as *obras+ em nome da *Fé+ e do *Amor+. Da mesma forma, para citar um outro exemplo, as escolasbudistas japonesas Jôdo e Jôdo-Shinshu, cuja doutrina fundada nos sútras de Amithabaé análoga a certas doutrinas do budismo chinês e procede como estas do *voto originalde Amida+, rejeitam as meditações e,as austeridades das outras escolas budistas, praticando apenas a invocação do Nome sagrado Amida: o esforço ascético é substituído pela simples confiança na Graça do Buddha-Amida, que este concede na sua compaixão aquem o invoca, sem qualquer *mérito+ da parte do orante. *A invocação do Nome sagrado deve ser acompanhada de absoluta sinceridade de coração e da fé mais completana bondade de Amida que quis que todas as criaturas se salvassem. Amida, tendo piedade dos homens dos "Ultimos Tempos", permitiu que as virtudes e o saber fossemsubstituídos, para os livrar dos sofrimentos do mundo, pela fé no valor salvífico da suaGraça.+ *Somos iguais devido à nossa fé comum, à nossa confiança na Graça de Amida-Buddha.+ *Toda a criatura, por muito pecadora que seja, pode estar certa'da'suasalvação na luz de Amida e de obter um lugar na Terra eterna e imperecível da Felicidade, se simplesmente crer no Nome de Amida-Buddha e, abandonando as preocupações presentes e futuras deste mundo, se refugiar nas Mãos Libertadoras, tão misericordiosamente estendidas a toda a criatura, recitando o Seu Nome com toda asinceridade de coração.+ *Conhecenios o Nome de Amida pela pregação de Shâkya-Muni e sabemos que, nesse Nome, está a força do desejo de Amida em salvar toda acriatura. Escutar esse Nome, é escutar a voz da salvação, que diz: Tende confiança emmim e certamente vos salvarei, palavras que Amida nos dirige directamente. Este sentido acha-se presente no Nome de Amida. Enquanto todas as nossas outras

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acções sãomais ou menos manchadas de impureza, a repetição do Namu-Amida-Bu é um actoisento de qualquer impureza, pois não somos nós que o recitamos, mas o próprio Amida que, dando-nos o Seu Nome, no-lo faz repetiras *Quando a nossa fé na salvação deAmida desperta e se fortalece, o nosso destino é fixado: renascemos na Terra Pura,tornando-nos Budas. Então se diz que somos totalmente abarcados pela Luz de Amidae, vivendo sob a Sua direcção, cheia de amor, a nossa vida é preenchida por indescritível alegria, dom de Buddha+ (vide Les sectes bouddhiques japonaises por E. Steinilber 134 A Unidade Transcendente das Religiões

a actualizar através de uma atitude de fervorosa confiança'. Quando, pelaGraça, a Fé se completa, ela dissolve-se no Amor, que é Deus. É por issoque, do ponto de vista teológico, os Bem-Aventurados no Céu já não conservam a Fé, pois contemplam o seu objecto: Deus, que é Amor ou Beatitude. Acrescente-se que, do ponto de vista iniciático, tal visão pode e deve obter-se já nesta vida, como o ensina aliás a tradição hesicasta. Mas háoutro aspecto da Fé que convém aqui mencionar: referimo-nos à relação

-Oberlin e Kuni Matsuo). *O voto original de Amida é o de receber na sua Terra de felicidade quem quer que pronuncie o Seu Nome com confiança absoluta: felizes pois osque pronunciam o Seu Nome! Um homem pode ter fé, mas se não pronuncia o Nome,a sua fé de nada lhe servirá. Outro pode pronunciar o Nome pensando apenas em si,mas se a sua fé não é bastante profunda, o seu renascimento não ocorrerá. Mas o quecrê firmemente no renascimento como fim da nembutsu (invocação) e pronuncia o Nome, esse sem dúvida há-de renascer na Terra da recompensam (vide Essais sur leBouddhisme Zen, vol. 111, por Daisetz Teitaro Suzuki). Reconhece-se com facilidade aanalogia sobre a qual queríamos atrair as atenções: Amida mais não é do que o VerboDivino. Amida-Buddha pode pois transcrever-se, em termos cristãos, por *Deus Filho,Jesus Cristo+. O Nome de *Cristo Jesus+ equivale pois ao de Buddha Shâkya-Muni;o Nome salvífico de Amida corresponde exactamente à Eucaristia; e a invocação desseNome, à Comunhão. A distinção entre o jiriki (poder individual, ou seja, esforço emvista do mérito) e o tariki (*poder do outro+, ou seja, graça sem mérito) - sendo esteúltimo precisamente a via do Jôdo-Shinshu - é análoga à distinção paulina entre

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a*Lei+ e a *Fé+. Acrescentemos ainda que, se o cristianismo moderno sofre de certa regressão do elemento intelectual, é precisamente porque a sua espiritualidade originalera *bháktica+ e a exoterização da bhakti traz consigo inevitavelmente uma regressãoda intelectualidade em proveito do sentimentalismo.' A vida do grande bhakta Shri Râmakrishna oferece um exemplo bem instrutivo domodo *bháktico+ do Conhecimento: em vez de partir de um dado metafísico, que lhe teriapermitido entrever a vaidade das riquezas, como teria feito um jnânin, ele orou a Kâ1i para o fazer entender por revelação a identidade entre o outro e a argila: *Todas as manhãs,durante longos meses, segurei na inao uma moeda de ouro e um pedaço de argila, e repeti: O ouro é argila e a argila é ouro. Mas este pensamento não fazia em mim qualquer efeito espiritual. Nada vinha demonstrar-me a verdade de tal asserção. Ao fim de meses demeditação, estava eu sentado de manhãzinha, à beira do rio, suplicando à nossa Mãe queme concedesse luz quando, repentinamente, todo o universo me apareceu revestido de umvéu de ouro brilhante... Depois a paisagem tomou um tommais escuro, cor de argila castanha, mais bela do que o ouro. E enquanto tal visão se gravava profundamente na minhaalma, ouvi como que o rumor de mais de dez mil elefantes gritando aos meus ouvidos: Argila e ouro são o mesmo para ti. As minhas orações tinham sido ouvidas, e eu lançava paralonge, no Ganges, a moeda de ouro e o pedaço de argila.+ 135 Frithjof Schon

entre Fé e milagre, relação que explica a importância capital que este último desempenha não só em Cristo, mas também no cristianismo enquantotal. Contrariamente ao que acontece no islão, o milagre desempenha nocristianismo um papel Central, quase orgânico, que não deixa de ter relação com o carácter bhakti, próprio à via cristã. O milagre seria inexplicável.sem o papel que desempenha no domínio da Fé. Não tendo qualquervalor persuasivo em si mesmo, sem o que os milagres satânicos seriam critérios de.verdade, existe porém um extremo em relação a todos os outrosfactores que intervêm na Revelação crística. Por outras palavras, se os milagres de Cristo, dos Apóstolos e dos Santos são preciosos e veneráveis,e unicamente porque se acrescentam a outros critérios que permitem apriori atribuir a tais milagres o valor de *sinais+ divinos. A função essencial e primordial do milagre é desencadear, seja a graça da Fé - o quepressupõe no homem, tocado por essa graça, uma disposição natural,consciente ou inconsciente, para admitir o sobrenatural -, seja a perfeição de

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uma Fé já adquirida. Para precisar ainda melhor o papel do milagre não apenas no cristianismo mas em todas as formas religiosas - poisnenhuma delas ignora os factos milagrosos -, diremos que o milagre,abstraindo-nos da sua qualidade simbólica que o aparenta ao próprio objecto da Fé, está apto a suscitar uma intuição que será, na alma do crente,um elemento de certeza. Enfim, se o milagre desencadeia a Fé, esta podepor sua vez desencadear o milagre, que será assim uma confirmação dessa*Fé que desloca montanhas+. Tal relação recíproca mostra ainda que essesdois elementos se acham cosmologicamente associados e que a sua relaçãonada tem de arbitrário, estabelecendo o milagre um contacto imediato entre a Omnipotência Divina e o mundo, e a Fé, por sua vez, um contactoanálogo, mas passivo, entre o microcosmo e Deus. O simples raciocínio, amera operação discursava do mental, está tão longe da Fé como as leis na Citemos nesta ordem de ideias as reflexões de um teólogo ortodoxo: *Exprimindoo dogma uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável, deveser vivido por nós num processo, ao longo do qual, em vez de assimilarmos o mistério ao nosso modo de entender, há, pelo contrário, que aspirarmos a uma mudançaprofunda, a uma transformação interior do nosso espírito, para nos tornarmos aptosa experiência mistica+ (Viadimir Lossky, Essai sur Ia théologie mystique de VEglised'Orient). 136 A Unidade Transcendente das Religiões

turais o estão do milagre, enquanto o conhecimento intelectual é capaz dever milagre no natural, e inversamente. A Caridade, que é a maior das três virtudes teologais, comporta doisaspectos, um passivo e outro activo. O Amor espiritual é uma participação passiva em Deus, que é Amor infinito. Mas o amor será, pelo contrário, activo em relação às coisas criadas. O amor ao próximo, como expressão necessária do amor de Deus, e umcomplemento indispensável da Fé. Estes dois modos da Caridade acham-sepresentes no ensinamento evangélico de que só Deus é Beatitude e Realidade e o segundo a consciência de que o ego é apenas ilusório, identificando-se o *eu+ dos outros, na verdade, *comigo mesmo'+. Se deve amaro *próximo+ porque ele sou *eu+, isso significa que devo amar-me a priori, já que mais não sou do que o meu *próximo+. E, se me devo amar, seja em *mim mesmo+ seja no meu *próximo+, é porque Deus me ama edevo amar o que ele ama. E, se ele me ama, é porque ama a sua criaçãoou, por outras palavras, porque a própria Existência é Amor e o Amor écomo que o perfume do Criador inerente a toda a criatura. Tal como oAmor de Deus, a Caridade que tem como objecto as Perfeições divinas enão o nosso bem-estar, é o Conhecimento da única Realidade Divina naqual se dissolve a realidade aparente do criado - conhecimento que implica a

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identificação da alma com a sua Essência incriada', o que é aindaum aspecto do simbolismo do Amor -., também o amor ao próximo nofundo mais não é do que o conhecimento da indiferenciação do criado perante Deus. Antes de se passar do criado ao Criador, ou do manifesto aoPrincfpio, é necessário ter-se realizado a indiferenciação ou o *nada+ desse manifesto. É a isso que visa a moral de Cristo, não só pela indistinçãoque estabelece entre o *eu>; e o *não-eu+, mas também secundariamente

' Esta realização do *não-eu+ explica o papel importante que a humildade desempenhana espiritualidade cristã, a que corresponde na espiritualidade islâmica a *pobreza+(faqr) e na espiritualidade hindu a *infância+ (bâlya). Recordamo-nos aqui do simbolismo da infância nos ensinamentos de Cristo.2 *SOMOS totalmente transformados em Deus+ - afirma mestre Eckhart - *e mudados nele. Da mesma forma que, no sacramento, o pão se transforma em Corpo deCristo, também eu sou transformado nele, de modo que ele faz de mim o seu Seruno e não apenas uma semelhança. Pelo Deus vivo, é verdade que não há aí qualquer distinção.+ 137 Frithjof Schon

pela sua indiferença para com a justificação individual e o equilíbrio social. O cristianismo situa-se, pois, fora das *acções e reacções+ de ordemhumana. Não é primeiramente exotérico na sua definição. A caridadecristã não tem nem pode ter qualquer interesse no *bem-estar+ em si, poiso verdadeiro cristianismo, como toda a religião ortodoxa, cre que a unicaverdadeira felicidade de que pode usufruir a sociedade humana é o bem-estar espiritual, na presença do Santo: esse o fim de toda a civilização.Pois *grande número de sábios é a salvação da Terra+ (Sab.,6:24). Umaverdade que os moralistas ignoram é que quando a obra de caridade estáconcluída pelo amor de Deus, ou em virtude do conhecimento de que*eu+ sou o *próximo+ e que o *próximo+ é *eu mesmo+ -,conhecimentoque aliás implica esse amor -, a obra de caridade terá para o próximonão só o valor de uma beneficência exterior, mas também a de uma bênção. Pelo contrário, quando a caridade não é exercida nem por amor deDeus, nem em virtude do dito conhecimento, mas unicamente em vista dosimples *bem-estar+ humano, 'considerado como fim em si, a bênção inerente à verdadeira caridade não acompanha a aparente beneficência, nemem quem a exerce nem em quem a recebe.

A presença das ordens monásticas só se pode explicar pela existência deuma tradição iniciática, na Igreja do Ocidente, tal como n ' a 1grej a doOriente, tradição que remonta - confirmam-no São Bento e os hesicastas- aos Padres do Deserto, aos Apóstolos e a Cristo. O facto de o cenobitismo da Igreja Latina remontar às mesmas origens do da Igreja Grega formando este

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último, aliás, uma comunidade única e não várias ordensdistintas - prova precisamente que tanto o primeiro quanto o segundosão de essência esotérica. E, do mesmo modo, o eremitismo é considerado por ambas as partes como o expoente da perfeição espiritual - afirma-o São Bento explicitamente na sua Regra -, o que nos permite concluirque o desaparecimento dos eremitas marca o declínio do florescimentocrístico. A vida monástica, longe de constituir uma via que se basta a simesma, é designada na Regra de São Bento como *um começo de vidareligiosas. Para *o que apressa os seus passos na perfeição da vida monástica, existem os ensinamentos dos Santos Padres, cuja observância conduz 138 A Unidade Transcendente das Religiões

o homem ao fim supremo da religião'. Ora, são tais ensinamentos queconstituem a própria essência doutrinal do hesicasmo. O órgão do espírito, principal centro de vida espiritual, é o coração.Também aqui a doutrina hesicasta está de perfeito acordo com o ensinamento de todas as outras tradições iniciáticas. É notório o que o hesicasmo fornece ensinamentos acerca do meio de realizar a participação natural do micrososmo humano no Metacosmo Divino, transmutando-a emparticipação sobrenatural e, finalmente, em união e identidade: esse meioé a *oração interior+ ou *oração de Jesus+. Essa *oração+ ultrapassa emprincípio todas as virtudes, pois é um acto divino em nós e, como tal,o melhor acto possível. Só através dessa oração a criatura se pode unirrealmente ao Criador. O fim dessa oração é por consequência o estado espiritual supremo, em que o homem ultrapassa tudo o que pertence à criatura e, unindo-se intimamente à Divindade, é iluminado pela Luz Divina.Esse estado é o *santo silêncio+, simbolizado aliás pela cor negra de certas imagens da Virgem'. Aos que julgam que a *oração espiritual+ é coisa fácil e mesmo gratuita, o palamismo responde que ela constitui pelo contrário a via mais es Citemos igualmente a seguinte passagem do último capítulo do livro intitulado: *Quea prática da justiça não está toda contida nesta regra+: *Oual é com efeito a página,qual a palavra de autoridade divina no Antigo e no Novo Testamento, que não sejauma regra muito segura para a conduta do hornem9 Ou ainda, qual o livro dos SantosPadres católicos que não nos ensina elevadamente o caminho recto para chegar ao nosso Criador? Além disso, as Conferências dos Padres (do Deserto), as suas Instituições eVidas, a Regra do Nosso Pai São Basílio, que outra coisa são senão o exemplar dosmonges que vivem na obediência,e documentos autênticos de virtudes? Para nós, relaxados, de má vida, cheios de negligência, existe aí matéria para corarmos de vergonha.Tu, que apressas o teu passo para a pátria celeste, cumpre primeiro, com a ajuda

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deCristo, este fraco esboço da regra que traçámos. Chegarás, enfim, sob a protecção deDeus, às mais sublimes alturas da doutrina e das virtudes, que acabámos de recordaras' Este *silêncio+ é o equivalente exacto do nirvâna hindu e budista e do fanâ sufita.Ao mesmo simbolismo se refere a *pobreza+ (faqr) em que se realiza a *união+(tawhid). Mencione-se igualmente, a propósito desta união real ou reintegração dofinito no Infinito, o título de um livro de São Gregório Palamas: *Testeinunhos dossantos, mostrando que os que participam na Graça divina se tornam, conforme aGraça, sem origem e infinitos.+ Recorde-se aqui o adágio do esoterismo muçulmano: *O sufi não é criado+. 139 Frithjof Schwn

treita que existe, conduzindo aos mais altos cumes da perfeição, na condição essencial de o acto de oração se achar de acordo com os restantesactos humanos! Por outras palavras, as virtudes - a conformidade à LeiDivina - são a condição sine qua non para a oração espiritual ter qualquer eficácia. Estamos portanto bem longe da ilusão ingénua dos que pensam poder chegar a Deus através de práticas simplesmente maquinais esem qualquer outro empenhamento ou obrigação. *A virtude - ensinaa doutrina palamita - dispõe-nos para a união com Deus, mas a Graçarealiza esta união inexprimível.+ Se as virtudes desempenham o papeldos modos de conhecimento é porque representam, por analogia, *atitudes divinas+. Não há na verdade virtudes que não derivem de umProtótipo Divino, sendo esse o sentido mais profundo das mesmas.*Ser+ é *conhecer+. Chamaremos enfim a atenção para o alcance fundamental e universalda invocação do Nome Divino. Este é no cristianismo - como no budismo e em certas linhagens iniciáticas do hinduísmo - o Nome do VerboEncarnado', portanto, o Nome de *Jesus+ que, como todo o Nome Divino revelado e ritualmente pronunciado, se identifica misteriosamente coma Divindade. É no Nome Divino que ocorre o misterioso encontro entre ocriado e o Incriado, o contingente e o Absoluto, o finito e o Infinito.O Nome Divino é assim uma manifestar ão do Princípio Supremo que semanifesta. Não é, primeiramente, manifestação, mas o próprio princípio'.*O Sol mudar-se-á em trevas e a Lua em sangue antes de chegar o grandee terrível Dia do Senhor+ - diz o profeta Joel -, *mas todo o que invocar o Nome do Senhor será salvo'. Recordemos igualmente o começo daPrimeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, dirigida *a todos os que invocam, onde quer que seja, o Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo+ e,também, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, a exortação nestes termos: *Há

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que aprender a invocar o Nome de Deus mais do que se respi' Queremos referir-nos aqui à invocação de Amida Buddha e à fórmula Om mani padmê hum e, no que respeita ao hinduísmo, às invocações de Râma e de Krishna.1 Do mesmo modo, Cristo, segundo a perspectiva cristã, não é primeiramente homem,mas Deus.Os Salmos contêm várias referências à invocação do Nome de Deus: *Invoco o Se 140

A Unidade Transcendente das Religiões

ra, a todo o momento, em todo o lugar e durante qualquer ocupação.O Apóstolo diz: Orai sem cessar; ou seja, ele ensina que nos devemoslembrar de Deus a todo o momento, em todo o lugar e durante qualquerocupação'. Não é portanto sem razão que os hesicastas consideram a invocação do Nome de Jesus como herança deste aos seus Apóstolos: *É assim - afirma a Centúria dos monges Calisto e Inácio - que o nosso misericordioso e bem-amado Senhor Jesus Cristo, ao chegar a hora da SuaPaixão, livremente aceite por nós, e depois da Sua Ressurreição ao mostrar-Se visivelmente aos Apóstolos, preparando-Se para ascender junto doPai... legou aos seus estas três coisas (a invocação do Seu Nome, a Paz eo Amor, que correspondem respectivamente à Fé, à Esperança e à Caridade)... O começo de todo o acto de amor divino é a invocação confiantedo Nome salvífico de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como ele próprio odisse (Jo.,15:5): Sem mim, nada podeis fazer... Pela invocação confiantedo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, esperemos firmemente obter aSua Misericórdia e a verdadeira Vida oculta nele. Esta assemelha-se àFonte Divina inesgotável (Jo.,4:14), que jorra os seus dons sempre que oNome do Nosso Senhor Jesus Cristo é invocado, sem imperfeições, no coração.+ Citemos ainda esta passagem de uma epístola (Epistola ad Monachos) de São João Crisóstomo: *Ouvi dizer aos Padres: quem é este monge que abandona a regra, e a negligencia? Quando come, bebe, se senta

nhor com a minha voz e Ele ouve-me desde a Sua montanha santa.+ - *Mas eu invoquei o Nome do Senhor: Senhor, salva a minha alma!+ - *O Senhor está perto de todos os que O invocam, dos que O invocam em verdade.+ - Duas passagens se referemainda ao modo eucarístico: *Abre a tua boca, quero enchê-la.+ - *O que faz feliz atua boca para que voltes a ser jovem como a águia.+ - E Isaías: *Não temas, pois tesalvei, chamei-te pelo teu nome, 'tu pertences-Me.+ - *Buscai ao Senhor, pois podeser encontrado. Invocai-o, porque está próximo.+ - E Salornão, no Livro da Sabedoria: *Invoquei, e o Espírito da Sabedoria veio a mim.+ Neste comentário de São João Damasceno, os termos *invocar+ e *recordar-se+ aparecem

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para descrever ou ilustrar uma mesma ideia. Ora, sabe-se que o termo árabedhikr significa ao mesmo tempo *invocação+ e *lembrança+. Igualmente no budismo*pensar em Buddha+ e *Invocar+ a Buddha exprime-se com uma só palavra (buddhânusmriti; o nienfo chinês e o nembutsu 'aponês). Por outro lado, é de notar que os hesicastas e os dervixes designam a invocação pelo mesmo termo: os primeiros chamam*trabalho+ à recitação da *Oração de Jesus+, enquanto os segundos chamam *ocupação+ ou *tarefa+ (Augh0 a qualquer invocação. @I 141 Frithjof Schuon

ou serve os outros, quando caminha ou faz o que fizer, deve invocar semcessar: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim'... Persevera sem cessar no Nome de Nosso Senhor Jesus, para que o teu coraçãobeba o Senhor e o Senhor beba o teu coração, e assim os dois se tornemUm!+

Esta fórmula reduz-se frequentemente, sobretudo em homens mais espiritualizados,ao simples Nome de Jesus. - *O meio mais importante na vida de oração é o Nome deDeus, invocado na oração. Os ascetas e todos os que levam uma vida de oração, desdeos anacoretas da Tebalda e os hesicastas do monte Atos... insistem sobretudo nesta importância do Nome de Deus. Fora dos Ofícios, existe para todos os ortodoxos uma regra de oração, composta por salmos e diferentes rezas. Para os monges é muito maisconsiderável. Mas o que mais importa na oração, o que constitui o coração da oração,é aquilo a que se chama a oração de Jesus: *Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus Vivotem piedade de mim, pecador! Esta oração, repetida centenas de vezes ou indefinidamente, forma o elemento essencial de qualquer regra de oração monástica. Pode, emcaso de necessidade, substituir os Ofícios e demais orações, pois o seu valor é universal. A força desta oração não está no seu conteúdo, que é simples e claro (é a oraçãodo caminheiro), mas no Nome duIcíssimo de Jesus. Os ascetas dão testemunho de queeste Nome encerra a força da presença de Deus. Não é apenas Deus que é invocadopor este Nome: está sim presente na invocação. Podemos afirmá-lo certamente de

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todoo Nome de Deus. Mas há que dizê-lo sobretudo do Nome divino e humano de Jesus,que é o Nome próprio de Deus e do homem. Em suma, o Nome de Jesus, presente nocoração humano, comunica-lhe a força da deificarão que o Redentor nos concedeu+(S. Boulgakoff, L'Orthodoxie). *O Nome de Jesus+ - diz São Bernardo - *não é apenas luz. É também alimento.Qualquer alimento é demasiado seco para ser assimilado pela alma se não for suavizado por este condimento. É demasiado insípido, se este sal não lhe der sabor. Não gostodos teus escritos, se não puder ler neles este Nome. Não gosto dos teus discursos, senão o ouvir ressoar. É mel para a minha boca, melodia para o meu ouvido, alegria para o meu coração, mas também um remédio. Algum de vós se sente oprimido pela tristeza? Que experimente Jesus com a boca e com o coração, e eis que à luz do Seu Nome toda a nuvem se dissipa e o céu fica sereno. Alguém se deixou levar pelo erro ousente a tentação do desespero? Que invoque o Nome da Vida e a Vida o reanimarás(Sermão 15 sobre o Cântico dos Cânticos). 142 IX

SER HOMEM CONHECER

evidência da unidade transcendentedas religiões deriva não só da unidade da Verdade, mas também da unidade do gênero humano. A razão suficiente da criatura humana é saber pensar. Não pensar ao acaso, mas pensar no que importa e, no fundo, na única coisa que importa. O homem é o único ser sobre a Terra capaz deprever a morte e desejar sobreviver. É quem deseja e quem pode saber oporquê do mundo, da alma e da existência. Ninguém pode negar que é danatureza humana pôr essas perguntas, ter direito a respostas e acesso àsmesmas, seja por Revelação ou por Intelecção, agindo cada uma dessasfontes segundo leis próprias e no quadro de condições correspondentes. Queríamos talvez desculpar-nos por parecer que *arrombamos portasabertas+, não vivêssemos nós num mundo em que as portas habitualmenteabertas são sabiamente fechadas. Isso, cada vez mais, graças aos cuidadosde um relativismo psicologistà, subjectivista, biologista, que ainda ousadesignar-se por *filosofia+. Com efeito, vivemos numa época em que a inteligência é metodicamente arruinada nos seus próprios fundamentos e emque se torna cada vez mais oportuno falar da natureza do espírito. Nemque fosse a título de *consolação+ ou para fornecer argumentos+ para osdevidos efeitos+. Dizendo isto, recordamo-nos de uma passagem do Alcorão em

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queAbraão pede a Deus para lhe mostrar de que maneira ressuscita os mortos. Deus responde-lhe, pondo a questão: *Não crês ainda?+ Abraão res 143 Frithiof Schuon

ponde: *Sim, mas peço-o para que o meu coração fique tranquilo. + É nesse sentido que sempre é permitido recordar verdades evidentes,conhecidas de todos, tanto mais que as verdades conhecidas são muitasvezes as mais desconhecidas.

O sinal distintivo do homem é a inteligência total, objectiva, capaz deconceber o absoluto. Dizer que possui tal capacidade equivale a dizer queé objectiva ou total. A objectividade, pela qual a inteligência humana sedistingue da inteligência animal, seria desprovida de razão suficiente nãofosse a capacidade de conceber o absoluto ou o infinito ou o sentido daperfeição. Afirmou-se que o homem é um animal racional, já que a razão é o seusinal distintivo. Mas essa não poderia existir sem a inteligência supra-racional, que é o Intelecto, que a prolonga no mundo dos fenômenossensoriais. Do mesmo modo, a linguagem é o sinal distintivo do homem,pois prova a presença da razão e, a fortiori, a do Intelecto. A linguagem,como a razão, é a prova do Intelecto, tendo tanto uma como a outra a suamotivação profunda no conhecimento das realidades transcendentes e dosnossos fins últimos. A inteligência como tal prolonga-se na vontade e no sentimento: se ainteligência é objectiva, a vontade e o sentimento sê-lo-ão igualmente.O homem distingue-se do animal por uma vontade livre e um sentimentogeneroso porque se distingue dele por uma inteligência total: a totalidadeda inteligência dá lugar, extensivamente, à liberdade da vontade e à generosidade do sentimento e do carácter. Pois só o homem pode querer o queé contrário aos seus instintos ou aos seus interesses imediatos. Só ele sepode colocar no lugar dos outros, sentindo com eles e neles. E só ele é capaz de sacrifício e piedade. A vontade está presente para realizar, mas a sua realização é determinada pela inteligência. O sentimento está presente para amar - quanto àsua natureza intrínseca e positiva -, mas o seu amor é tambénI determinado pela inteligência, tanto racional como intelectual, sem o que seriacego. O homem é a inteligência, a objectividade, e tal inteligência objectiva determina tudo o que ele é e fez. 144 A Unidade Transcendente das Religiões É lógico que os que se reclamam da Revelação e não da Intelecção tendam a desacreditar a inteligência, donde a noção de *orgulho intelectual+.Têm razão se se trata da *nossa+ inteligência *por si só+, mas não quandose trata da inteligência em si e inspirada pelo Intelecto que, afinal, é divino. Pois o pecado dos filósofos consiste não em fiar-se na inteligência enquanto tal, mas em fiar-se na sua inteligência. E em fiar-se apenas na inteligência

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desligada das suas raízes sobrenaturais. Há que entender duas coisas: primeiro, que a inteligência não- nos pertence e que o que nos pertence não é toda a inteligência. Segundo, que ainteligência, se nos pertence, não se basta a si mesma, precisa da nobrezade alma, da piedade e da virtude para poder ultrapassar a sua particularidade humana, unindo-se à Inteligência em si. A inteligência, não acompanhada da virtude, carece de sinceridade e a falta de sinceridade limita forçosamente o seu horizonte. É preciso sermos aquilo em que nos queremostornar ou, dito de outra maneira, é preciso antecipar moralmente - *esteticamente+ - a ordem transcendente que queremos conhecer, poisDeus é perfeito em todos os sentidos. A integridade moral intrínseca nãoé certamente uma garantia de conhecimento metafísico, mas e uma condição de funcionamento integral da inteligência com base em dados doutrinais suficientes. O orgulho intelectual - ou, mais propriamente, intelectualista - estáexcluído da inteligência em si e da inteligência acompanhada da virtude.Esta faz supor o sentido da nossa pequenez, assim como o sentido do sagrado. Seria necessário acrescentar que, se existe uma inteligência conceptualou doutrinal, existe outra existencial ou moral: é preciso ser inteligente nãoapenas no pensamento, mas também no ser, que é fundamentalmente umaadequação à Realidade Divifia. A inteligência é tanto individual como universal. Ela é razão ou Intelecto. A individual deve inspirar-se na sua raiz universal se pretende ultrapassar a ordem das evidências materiais. Mas é também conceptual e existencial, devendo ligar-se ao seu complemento moral, de modo a serplenamente conforme àquilo de que pretende dar-se conta. A vontade doBem e o amor do Belo são as concomitâncias necessárias às repercussõesincalculáveis do conhecimento do Verdadeiro. Em princípio, a inteligência é infalível. Mas é-o por Deus, não por nós. 145 Frithjof Schuon

Por Deus: pela sua raiz transcendente, sem a qual é fragmentária; e pelassuas modalidades volitivas e afectavas, sem as quais se condena a não sermais do que um jogo do espírito. Inversamente e a fortiori jamais se podedissociar a vontade ou o sentimento da inteligência que os ilumina, determinando as suas aplicações e operações.

Disse-se que a razão é uma enfermidade, o que é justo se a compararmos à visão directa que é a Intelecção. A razão é uma enfermidade, mas acontingência também o é, embora não sob o seu aspecto positivo de adequação. A adequação discursava é necessária ao homem, desde que situada entre o exterior e o interior, entre o contingente e o absoluto. Toda adiscussão sobre a capacidade ou incapacidade do espírito humano em conhecer a Deus resolve-se no seguinte: a nossa inteligência só pode conhecer a Deus *por Deus+, é portanto Deus que Se conhece em nós. A razãopode participar, instrumental ou provisoriamente, nesse conhecimento sepermanecer unida a Deus. Pode participar na Revelação por um lado e na

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Intelecção por outro, derivando a primeira de Deus *acima de nós+ e asegunda de Deus *em nós+. Se entendermos por *espírito humano+ a razão cortada da Intelecção ou da Revelação - sendo esta em princípio necessária para actualizar aquela -, é óbvio que este espírito não é capaznem de nos iluminar nem a fortiori de nos salvar.. Para o fideísta, só a Revelação é *sobrenatural+. A Intelecção, cuja natureza ele ignora, reduzindo-a à simples lógica, é para ele *natural+. Parao gnóstico, pelo contrário, tanto a Revelação como a Intelecção são sobrenaturais, dado que Deus - ou o Espírito Santo - opera em uma como em outra. O fideísta tem todo o interesse em crer que as convicçõesdo gnóstico resultam de silogismos e crê-o tanto mais quanto de facto umaoperação lógica, como um qualquer simbolismo, pode provocar a centelhada Intelecção e levantar o véu do espírito. De resto, o fideísta não podenegar totalmente o fenômeno da intuição intelectual, mas evitará associá-lo a essa Revelação *naturalmente sobrenatural+ e imanente, que é o Intelecto. Atribuí-lo-á à *inspiração+ e ao Espírito Santo, que no fundo é omesmo, salvaguardando porém o axioma da incapacidade do *espírito humano+. 146 A Unidade Transcendente das Religiões O tomismo distingue o conhecimento *obtido pela razão natural+ do*obtido pela graça+, o que sugere que as certezas metafisicas seriam donspontualmente concedidos', embora haja também no homem aquilo a queparadoxalmente chamaríamos uma *graça naturalmente sobrenatural+,que é o Intelecto. Pois uma coisa é uma luz que nos vem por inspiraçãosubtil e outra coisa é uma luz a que temos acesso pela nossa *natureza sobrenatural+. Todavia, poderíamos designar essa natureza como *imanência divina+, dissociando-a assim do humano, como fazemos ao afirmarmosque só Deus pode conhecer a Deus, seja em nós ou fora de nós. Em qualquer dos casos, o receptáculo *natural+ que é concedido ao *sobrenatural+ tem já algo de sobrenatural ou de divino'.

A essência da epistemologia constitui a razão de ser e a própria possibilidade de inteligência, a saber: a adequação, o *conhecimento+, por muitoque isso desagrade aos agnósticos. E quem diz adequação, diz prefiguração e mesmo imanência do cognoscível no sujeito cognoscente ou chamado a conhecer. O motivo da polarização do real em sujeito e objecto acha-se no Ser.Não no puro Absoluto, o Sobre-Ser, mas na sua primeira autodeterminação. A Maya divina é a *confrontação+ de Deus enquanto Sujeito ouConsciência e de Deus enquanto Objecto ou Ser. É o conhecimento queDeus tem de si mesmo, da sua perfeição e das suas possibilidades.Tal polarização principal refracta-se inumeravelmente no universo, mas Do ponto de vista gnosiológico São Tomás é sensualista, portanto quase nacionalistae empirista. Todavia, segundo ele, os princípios da lógica situam-se em Deus, embora

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uma contradição entre o nosso conhecimento e a Verdade Divina seja impossível. E esse um dos axiomas de toda a metafísica e de toda a epistemologia. Por analogia, poderíamos dizer que Maria é *divina+ não apenas por Jesus, mas também e a priori pela sua receptividade na Encarnação, donde a sua *linaculada Conceição+, que é uma qualidade intrínseca da Virgem. Assim sendo, o Logos *encarnou+nela ainda antes do nascimento de Cristo, o que é indicado pelas expressões cheia degraça e o Senhor está consigo e que explica que ela tenha podido ser apresentadatanto pelos cristãos como pelos,muçulmanos - como a *Mãe de todos os Profetas+.O Lotus (Padma) não poderia trazer a Jóia (Mani) se não fosse ele mesmo uma teofania. 147 Frithjof Schuon

de modo desigual - segundo o que exige a Possibilidade manifestantee por isso as subjectividades não são epistemologicamente equivalentes.Mas dizer que o homem é *feito à imagem de Deus+ significa precisamente que ele representa uma subjectividade central, não periférica e por consequência um sujeito que, emanando directamente do Intelecto Divino,participa em princípio no poder deste. O homem pode conhecer tudo oque é real, portanto cognoscível, sem o que não seria essa divindade terrestre que de facto é. O conhecimento relativo é limitado subjectivamente por um ponto devista e objectivamente por um aspecto. Sendo o homem relativo, o seu conhecimento também o é, pois é humano. E é-o na razão, não no Intelectointrínseco. É-O'no *cérebro+, não no *coração+ unido ao Absoluto. E énesse sentido que, segundo um hadfth, *o Céu e a Terra não se podemconter (diz Deus), mas o coração do crente, esse contém-me+ - esse coração que, graças ao prodígio da Imanência, desemboca sobre o *Si+ Divino e sobre a infinidade extintiva e unitiva do cognoscivel, portanto doReal. Poderíamos perguntar: porquê este desvio pela inteligência humana?Por que motivo Deus, que Se conhece a Si mesmo, Se quer ainda conhecer no homem? Como nos ensina um hadith, *Eu era um tesouro oculto equis ser conhecido. Por isso, criei o mundo.+ O que significa que o Absoluto quer ser conhecido a partir do relativo. Porquê? Porque isso é umpossibilidade que deriva da ilimit ação do Possível Divino. Uma possibilidade, portanto algo que jamais pode não ser, e cujo porquê reside noInfinito.

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59 FRITHJOF SCHUON

DADOS BIOGRAFICOS

thjof Schuori nasceu em BâIe, noano de 1907, e é filho de um alemão do Estado de Wurtemberg e de umafrancesa natural da Alsácia. Obteve a nacionalidade francesa graças aoTratado de Versailles; trinta anos mais tarde, depois de haver-se casadocom a filha de um diplomata suíço, recebeu a nacionalidade helvética.'De1930 a 1932, trabalhou como desenhador de arte em Paris, sem com issohaver negligenciado os estudos orientalistas, incluindo a aprendizagem doárabe; pouco depois esteve no Norte de Africa para aprofundar o conhecimento do Sufismo. Fez em seguida toda uma série de viagens a diversos países do Oriente.Visitou Renê Guénon, por duas vezes, no Cairo; e encontrava-se na índia, quando teve início a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, em 1959 eem 1963, Schuon viveu bastante tempo junto dos índios da América doNorte, tendo inclusivamente sido adoptado pela tribo Sioux. Durante cerca de vinte anos colaborou com Guénon na revista Études Traditionnelles.Enfim, após ter vivido durante quatro décadas junto do lago Leman, retirou-se para os Estados Unidos da América.

149 OUTRAS OBRAS DE FRITHJOF SCHUON

L'ffil du cxur, Dervy-LivresPerspectives spirituelles et Faits humains, Les Cahiers du SudSentions de Gnose, La Colombe

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Castes et Races, Dervy-LivresLes Stations de la Ságesse, Buchet-ChastelImages de 1'Esprit: Shintô, Bouddhisme, Yoga, FlammarionRegard sur les Mondes anciens, Éditions traditionellesLogique et Transcendence, Éditions traditionellesForme et Substance dans les religions, Dervy-LivresL'Esotérisme comme Principe et comme Voie, Dervy-Livres

(fim do livro)