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A VIDA NARRADA COMO PARTE DA CULTURA HISTÓRICA: A BIOGRAFIA NO JORNALISMO MANOEL MESSIAS ALVES DE OLIVEIRA * Resumo: Este trabalho pretende discutir aspectos da produção de biografias feita por jornalistas no que diz respeito ao trabalho metodológico de pesquisa e escrita diante da cultura histórica e levando em conta a presença do jornalismo no cotidiano do público como forma de propiciar uma imaginação histórica. Assim, este trabalho pretende tratar dos usos e abusos do passado, discutindo temas como o do testemunho, da verdade e da veracidade dos relatos históricos. Para isso, é preciso compreendermos a construção do ethos jornalístico na narrativa e como esses escritores se promovem adquirindo credibilidade e legitimação no discurso do texto biográfico por meio dos diversos campos da Literatura, da História e do Jornalismo. Palavras-Chave: Jornalismo; Biografias; Cultura Histórica INTRODUÇÃO O gênero biográfico emerge na história e no jornalismo em um processo de aproximação destas áreas com a literatura, o que resulta em uma adoção de estilos e técnicas ficcionais da narrativa. Assim, cada área tem procurado se legitimar diante do texto biográfico de tal modo que o autor adquira credibilidade na execução de escrita do seu texto e procure se diferenciar ou igualar a outra em relação a sua posição social. Como resultado, podemos verificar que o historiador questiona o jornalista por não estar preocupado com a maneira com que as fontes são apresentadas ou como ocorre a referencialidade no texto, e o jornalista, por sua vez, aponta a falta de envolvimento do historiador com a narrativa. Entretanto, para adentrarmos nos usos públicos e políticos da história e visualizarmos a sua historicidade e respondermos a questão para de que forma a história é utilizada?, este texto pretende apontar algumas implicações que podem ser geradas com o trabalho do falsário e como é possível, a partir dos temas como o do testemunho, da verdade e da veracidade dos * Graduado em História pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis (2015 - 2018). É integrante do MEMENTO Grupo de pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias, registrado no CNPq. Atualmente é bolsista de Mestrado Acadêmico Capes pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - FCL/UNESP/Assis (2019-2021), se comprometendo a estudar as narrativas lítero-musicais do jornalista, biógrafo e escritor Ruy Castro enquanto produções de memória. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9169853982812360; E-mail: [email protected]

A VIDA NARRADA COMO PARTE DA CULTURA HISTÓRICA: A ... · Samba-Canção (2015) e Chega de Saudade: a história e as histórias sobre a Bossa Nova (2016). Na obra sobre a intérprete

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  • A VIDA NARRADA COMO PARTE DA CULTURA HISTÓRICA: A BIOGRAFIA

    NO JORNALISMO

    MANOEL MESSIAS ALVES DE OLIVEIRA*

    Resumo: Este trabalho pretende discutir aspectos da produção de biografias feita por

    jornalistas no que diz respeito ao trabalho metodológico de pesquisa e escrita diante da cultura

    histórica e levando em conta a presença do jornalismo no cotidiano do público como forma de

    propiciar uma imaginação histórica. Assim, este trabalho pretende tratar dos usos e abusos do

    passado, discutindo temas como o do testemunho, da verdade e da veracidade dos relatos

    históricos. Para isso, é preciso compreendermos a construção do ethos jornalístico na

    narrativa e como esses escritores se promovem adquirindo credibilidade e legitimação no

    discurso do texto biográfico por meio dos diversos campos da Literatura, da História e do

    Jornalismo.

    Palavras-Chave: Jornalismo; Biografias; Cultura Histórica

    INTRODUÇÃO

    O gênero biográfico emerge na história e no jornalismo em um processo de

    aproximação destas áreas com a literatura, o que resulta em uma adoção de estilos e técnicas

    ficcionais da narrativa. Assim, cada área tem procurado se legitimar diante do texto biográfico

    de tal modo que o autor adquira credibilidade na execução de escrita do seu texto e procure se

    diferenciar ou igualar a outra em relação a sua posição social.

    Como resultado, podemos verificar que o historiador questiona o jornalista por não

    estar preocupado com a maneira com que as fontes são apresentadas ou como ocorre a

    referencialidade no texto, e o jornalista, por sua vez, aponta a falta de envolvimento do

    historiador com a narrativa.

    Entretanto, para adentrarmos nos usos públicos e políticos da história e visualizarmos

    a sua historicidade e respondermos a questão para de que forma a história é utilizada?, este

    texto pretende apontar algumas implicações que podem ser geradas com o trabalho do falsário

    e como é possível, a partir dos temas como o do testemunho, da verdade e da veracidade dos

    * Graduado em História pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis (2015 - 2018). É integrante do MEMENTO

    – Grupo de pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias, registrado no CNPq. Atualmente é bolsista de

    Mestrado Acadêmico Capes pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras de

    Assis - FCL/UNESP/Assis (2019-2021), se comprometendo a estudar as narrativas lítero-musicais do jornalista,

    biógrafo e escritor Ruy Castro enquanto produções de memória. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9169853982812360;

    E-mail: [email protected]

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    relatos históricos, depreendermos sobre a importância que tem a construção do ethos para a

    formação da consciência histórica e a forma com que a sociedade pensa a si mesma no tempo,

    articulando passado, presente e futuro.

    Desse modo, pretendemos explanar aspectos e apontar considerações a respeito da

    metodologia de pesquisa e escrita do jornalista ao produzir biografias, procurando,

    posteriormente e através das questões referentes aos impasses e embates em torno da

    memória, adentrar no campo do saber histórico.

    O ETHOS JORNALÍSTICO COMO LEGITIMAÇÃO DO DISCURSO: VERDADE E

    VERACIDADE NO RELATO HISTÓRICO

    Conforme Alberto Dines, em entrevista citada e produzida por Karine Vieira (2018),

    Raimundo Magalhães Júnior foi quem, a partir da atuação no jornalismo, começou a produzir

    biografias. Sua extensa pesquisa documental se insere em um contexto de valorização pelo

    equilíbrio entre história e ficção, no qual a sobreposição do literário ao histórico foi diluída de

    tal modo a ser possibilitada confiabilidade da narrativa e legitimação do trabalho biográfico.

    Por isso que Raimundo Magalhães Júnior se opõe à biografia romanceada e busca afirmar-se

    pela sua historicidade diante das fontes e da sua metodologia de pesquisa e análise

    (OLIVEIRA; SILVA, 2020: 47).

    Em relação a Álvaro Lins, este associava a biografia à história no que se refere aos

    seus compromissos com a constante busca pela verdade, exatidão e justiça. Assim, o escritor

    também se opunha às narrativas biográficas romanceadas, “fruto de uma fusão antinatural

    entre biografia e romance, rotulando-as de mera literatura industrial”. Já Luís Viana, nesse

    sentido, era menos categórico, afirmando que apesar da biografia moderna ter sido mais

    ousada no uso de elementos da narrativa do romance como o humor e a linguagem clara e

    concisa, esta continuava ligada às limitações impostas pela investigação histórica, tal qual

    podemos visualizar em Strachey, Ludwig e Maurois. Para Viana Filho, apesar de tais

    escritores terem buscado novos elementos na construção de suas narrativas, estes não

    pretendiam afastar a biografia da história, o que os colocava como comprometidos com a

    verdade e a exatidão (GONÇALVES, 2009: 191).

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    Desse modo, biografar tem sido colocado como um trabalho jornalístico dentro do

    campo de produção do jornalismo tal qual o trabalho em redações. Afinal, biografar envolve

    um lugar de fala cujo discurso arquétipo sobre a percepção de si no contexto do grupo é

    colocado diante de uma delimitação de identidade. Entretanto, podemos dizer que os

    discursos dos jornalistas permeiam a posição de autoria e adentram temas transversais cuja

    história, literatura e jornalismo se interseccionam (VIEIRA, 2018: 426).

    A afirmação como repórter/jornalista parece ter disponibilizado a autores como Mário

    Magalhães e Lira Neto “um suporte para atuarem como biógrafos: do jornalismo, de um

    campo plenamente estabelecido, detentor de um ethos1 definidor da sua representação social,

    da sua noção de sujeito e grupo”. A denominação de repórter parece assegurar credibilidade,

    verdade, objetividade, entre outros valores que estão relacionados ao ethos jornalístico.

    “Dizer-se repórter determina o seu lugar de produção e ainda rearticula o significado do status

    biógrafo quando este é assumido por um jornalista. Também diferencia a sua posição em

    relação aos historiadores e literatos quando biógrafos” (VIEIRA, 2018: 428).

    Nesse sentido, ao narrar uma vida os jornalistas adquirem uma autorização que está

    relacionada ao lugar de fala, devendo se levar em conta a instituição que estão vinculados e as

    marcas discursivas e o estilo de escrita que permeiam o trabalho biográfico desses

    profissionais. Além disso, é preciso mencionar também que essa autorização passa a ser

    impulsionada por biógrafos-jornalistas quando estes deixam de falar de seus personagens e

    abrem espaço para a autoconstrução, legitimando suas abordagens de pesquisa e investigação

    ao narrar uma vida.

    Se os historiadores se preocupam com o seu estatuto social de historiadores,

    demarcando seus arcabouços profissionais com texto hermético a fim de preservar a

    cientificidade ao utilizarem uma rigorosa metodologia, terem cuidado com a apresentação das

    fontes e disporem de regras de referencialidade, os jornalistas, por sua vez, procuram ancorar

    seus trabalhos a um campo diferente do acadêmico da História (PROCÓPIO, 2016).

    1 O Ethos utilizado neste trabalho remete a um “comportamento verbal e não verbal dos envolvidos em um

    processo de interação social e que se traduzem como modos de enunciação (maneiras de dizer e de se apresentar)

    com base em indícios de tom, caráter e corporalidade [...], e na qual a manifestação discursiva possui uma

    especificidade que desenha uma imagem de si, que será (ou não) incorporada pelo auditório, ou seja, o possível

    público-leitor” (SILVA, 2020: 4, no prelo).

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    Por isso, ao invés de construírem um ethos de erudição, informando que a obra é fruto

    de uma dissertação de mestrado ou que estão ligados a um determinado grupo de estudo ou

    departamento, como fazem os historiadores na tentativa de legitimarem seus compromissos

    com a verdade e adquirirem credibilidade de suas narrativas biográficas - em detrimento de

    outras áreas -, os jornalistas se preocupam com a construção de uma narrativa envolvente

    juntamente de qualidade estética, no qual a literalidade e a preocupação com a verdade

    pertencem ao enredo da narrativa (PROCÓPIO, 2016).

    Para compreendermos como o ethos do jornalista, pesquisador e escritor é construído

    nos elementos constitutivos do paratexto de um livro biográfico, visualizamos os alicerces do

    ethos jornalístico em um fragmento de texto disponível na contracapa de Olga, de Fernando

    Morais, atribuído a Jorge Amado:

    nos últimos anos, poucas obras alcançaram no Brasil sucesso tão estrondoso

    quanto esta biografia de Olga Benário Prestes. Jornalista renomado, Fernando

    Morais revelou-se também um pesquisador competente, e escritor dotado de

    sensibilidade e talento. Com simplicidade, sabedoria e grandeza, ele soube recriar

    um drama profundamente humano de nossa época. (MORAIS apud PROCÓPIO,

    2016: 54).

    Desse modo, percebemos que o estatuto social ocupado pelo biógrafo é o de

    “jornalista renomado”, tornando-se com essa obra um “pesquisador competente” e “escritor

    sensível e talentoso”, utilizando de uma “simplicidade, sabedoria e grandeza” para recriar o

    cenário, visto que é sabido que os jornalistas possuem a função social de facilitar o acesso à

    informação através de uma linguagem clara, precisa e simples. Percebemos, portanto, que

    Jorge Amado diferencia jornalista, pesquisador e escritor, apontando, com isso, que a

    narrativa compõe traços de um notório profissional com a autenticidade de um historiador e

    com a projeção de emoções por meio de sua narrativa assim como faz um literato

    (PROCÓPIO, 2016: 55).

    Essa mesma exemplificação também é possível ser verificada em Ruy Castro nas

    obras Carmen: uma biografia (2005); A noite do meu bem: a história e as histórias do

    Samba-Canção (2015) e Chega de Saudade: a história e as histórias sobre a Bossa Nova

    (2016). Na obra sobre a intérprete está escrito na orelha do livro que se trata de “uma história

    profundamente humana – temperada pelo humor e pelo estilo inconfundível de Ruy Castro”, o

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    que denota uma narrativa que traz sensibilidade e que não está embebida de palavras eruditas

    com vocabulário denso, mas sim um estilo narrativo único que procura envolver o leitor com

    o seu humor. Em relação às outras duas obras podemos notar a preocupação com a

    credibilidade e notoriedade do jornalista. Desse modo, na obra sobre a Bossa Nova procura-se

    afirmar o sufoco gerado com o desgastante trabalho com as entrevistas:

    para contar a história da Bossa Nova, Ruy Castro penetrou nos seus bastidores e

    ouviu dezenas de seus participantes – compositores, músicos e cantores, além dos

    amigos e dos inimigos deles. Todo o Rio da Bossa Nova foi reconstituído, boate por

    boate, tiete por tiete, história por história (CASTRO, 2016).

    Assim, pretende-se dizer que teremos uma narrativa descritiva e imparcial acerca da

    história da Bossa Nova de igual modo a atuação do repórter no jornalismo, enquanto a obra

    sobre o Samba-Canção parece legitimar o prestígio, a importância, e as honrarias que Ruy

    Castro possui ao ser apresentado como cidadão benemérito do Rio de Janeiro.

    Logo, Ruy Castro é visto como um memorialista que por detrás do seu discurso existe

    um resguardo do discurso jornalístico, cumprindo protocolos e regras específicas. Com isso,

    podemos dizer que além da sua autoridade no relato se encontra não apenas um cidadão

    benemérito do Rio de Janeiro, mas também alguém que possui “bagagem” e um ofício que

    está vinculado a ética do trabalho jornalístico.

    Esses procedimentos utilizados pelos jornalistas se caracterizam, portanto, em conferir

    credibilidade às narrativas. Podemos ressaltar também, quanto a esse compromisso com a

    verdade, o detalhamento que os jornalistas fazem ao mencionar seus processos de

    investigação com as entrevistas, visto que estas são tidas como um momento de partilha, de

    construção entre o entrevistado e o entrevistador.

    Diante disso, tratando a respeito de Mário Magalhães, Regina Zappa e Lira Neto,

    Karine Vieira (2018: 433) apontou que

    a posição desses jornalistas na autoria está condicionada a sua posição de repórter

    que, na ambiência, do gênero biográfico, se coloca, em determinados momentos,

    como pesquisador - no trabalho com entrevista em profundidade, revisão

    bibliográfica, uso de notas de referências de fontes -, e como escritor ao explorar

    uma narrativa criativa, mas que precisa se sedutora. É o repórter quem articula

    esses outros sujeitos. É a cabeça de um repórter que constrói a identidade narrativa

    dos biografados na biografia. A reportagem é a expressão do texto biográfico.

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    Essa preocupação com a verdade que tanto aflige os jornalistas (e também os

    historiadores) é criticada por Vilas-Boas (2014) ao se referir a Fernando Morais, Ruy Castro,

    Bojunga e Claudia Furiati. Para o autor, tais jornalistas-biógrafos parecem condicionados a

    uma ideia de que a verdade pode ser atingida em sua totalidade ao se apresentar grande

    volume de informações, como pudemos visualizar na orelha do livro de Ruy Castro que a

    narrativa reconstituiu “todo” o Rio da Bossa Nova, “boate por boate”, “tiete por tiete”,

    “história por história”. Dessa forma, quando se constrói um personagem as fronteiras do real e

    do imaginário acabam sendo diluídas, já que o biógrafo na biografia não ficcional deve buscar

    a coerência,

    fazendo com que esse quebra-cabeças existencial tenha ordem e sentido instituídos

    pela linearidade. E se assim enxerga o biógrafo o seu trabalho - ou seja, um puzzle

    (...) – o tipo de contratação que norteará o seu trabalho já está definido: a crença

    de que a narrativa tem verdadeira possibilidade de reconstituir uma trajetória de

    vida e que esta se dá a partir de uma linearidade de coerência e um todo-sentido

    (BRUCK, 2008: 123).

    Para Vilas-Boas (2014: 159), “biografias revelam tanto quanto ocultam. Podem nos

    parecer superconsistentes sob o disfarce da historiografia, da psicologia, do ensaio literário e

    da linguagem jornalística ágil, às vezes criativa e instigante”, mas não reproduzem o humano

    e seus contornos. Apesar dessas palavras um tanto quanto exageradas no que se refere aos

    seus sentidos, o autor pretende afirmar que a trajetória de um personagem da história é

    imensurável, incalculável, indecomponível. Mas, produzir uma trajetória desse personagem é

    possível diante da objetividade, e por isso o autor estabelece alternativas para que a escrita

    biográfica seja mais coerente e reflexiva.

    Dentre tais alternativas, Vilas-Boas (2014) cita a transparência, cuja narrativa deve

    expor as dúvidas, escolhas, conflitos, impasses e caminhos, incluindo o making of,

    percorridos para o jornalista concluir sua biografia. Com isso, podemos dizer que a

    metodologia de pesquisa e escrita dos jornalistas passam a adentrar o campo dos historiadores

    - apesar de não disporem em seus textos de linguagem acadêmica - e, por isso, a necessidade

    de se afirmar (ou ser caracterizado) como jornalista, pesquisador e escritor.

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    Desse modo, podemos afirmar que o jornalista passa a ser considerado um autodidata

    no sentido de que deve ser “possuidor de bagagem” a respeito das diversas áreas do

    conhecimento, o que é uma informação relevante para adentrarmos na função social e política

    do jornalista, visto que na biografia do Barão de Mauá, escrita por Jorge Caldeira (Jornalista,

    Mestre em Sociologia e Doutor em Ciência Política), podemos verificar em um paratexto de

    apresentação da obra o que o motivou para escrevê-la: a curiosidade pela “figura de Mauá”:

    aos poucos, o que era apenas curiosidade foi se tornando problema. Trabalhando

    como jornalista de economia – na Folha de S. Paulo, IstoÉ e Exame – num país em

    convulsão monetária permanente, comecei a perceber que muitos problemas atuais

    não o eram tanto assim, e me senti tentado a olhar mais para a figura de Mauá,

    buscando futuro no conhecimento do passado (CALDEIRA apud PROCÓPIO,

    2016: 58)

    Desse modo, a curiosidade de Jorge Caldeira demonstra que o escritor está cumprindo

    a sua função de jornalista, no que tange o imaginário da profissão, já que o jornalismo

    demanda atuação nas mais diversas áreas. Além disso, podemos apontar também que o trecho

    compõe a experiência e a credibilidade adquirida por Jorge Caldeira ao citar os veículos de

    comunicação que trabalhou e sua especialidade enquanto jornalista de economia, podendo

    falar sobre a vida de seu personagem e a história do país (PROCÓPIO, 2016: 58).

    O resultado disso é que temos uma narrativa que pertence a um instrumento político

    cuja função é abastecer a população de informações visando formar a opinião pública. Assim,

    a imprensa age como um quarto poder2 e atua como um singular-coletivo3, o que nos remete

    a pensar a respeito das implicações relacionadas a memória na construção de biografias

    produzidas por jornalistas, visto que a vida narrada pertence a uma cultura histórica4 cujo

    2 A expressão provém de um discurso de um deputado do Parlamento inglês, Lorde MacCaulay, em que apontou

    os repórteres como o “quarto poder”. Essa imprensa surge da vontade de emancipação da sociedade civil, o que a

    colocou como agente social responsável pelo funcionamento da sociedade. Como resultado, temos uma

    metalinguística de discurso único possibilitado pela função institucional atribuída à imprensa através da nova

    sociedade civil, formada também na nova esfera pública da modernidade (CORREIA, 2017: 70). 3 Conforme Correia (2017: 64), o singular-coletivo está presente em Koselleck e “aponta para uma situação em que diversas singularidades centram-se sobre um mesmo eixo semântico definidor resultando em uma única

    expressão, reconfigurada, a representar aquele novo coletivo”, como podemos depreender da ideia de que das

    várias revoluções na História criou-se a Revolução. 4 Diante das questões levantadas a respeito da função social do jornalismo, podemos afirmar que a expressão

    cultura histórica utilizada nesse texto condiz com aquela emprestada por Le Goff (1990) de Bernard Guenée,

    para caracterizar como os homens constroem e reconstroem o seu passado, ou seja, o lugar que o passado ocupa

    nas sociedades e qual a relação que as sociedades mantém com ele, remetendo “para as formas pelas quais

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    ethos jornalístico busca credibilidade ao se construir a narrativa e legitimação para o seu

    conteúdo. Afinal, a memória está condicionada a afirmação de identidades e pode ser mantida

    entre grupos em relação à sustentação de memórias marginalizadas.

    Dessa forma, podemos citar os personagens venerados pela história oficial como

    símbolos cívicos, no qual através de um processo de afirmação de valores e referências,

    grandes feitos e datas, tais homens extraordinários acabam sendo relacionados a essa

    construção identitária que visa “ao passado legitimar o presente, em um processo de

    construção da memória que na maioria das vezes se distancia da vigilância crítica e fidelidade

    ao passado” (SILVA, 2009: 155).

    Assim, no texto biográfico, é possível analisar a atitude dominante de algumas

    sociedades históricas perante o seu passado e a sua história e, no qual o jornalista na produção

    de biografias pode acabar atuando como detentor da veracidade dos relatos históricos e,

    portanto, como dissipador da mentalidade coletiva. Afinal, é preciso reconhecer a crescente

    demanda sócio-cultural existente pelas publicações biográficas a respeito de poetas, cientistas,

    políticos, escritores, artistas que através do voyeurismo e da bisbilhotice passaram a ser alvo

    da curiosidade pública.

    Com isso, podemos afirmar que a memória é uma possível

    forma de manutenção de mitos, mas que desenvolvem uma característica dinâmica,

    de manutenção e transformação que permite a presença do passado a partir do

    presente, que seleciona e representa em termos individuais e coletivos [a]

    experiência vivida e seu significado em processos de construção de identidades e

    alteridades, do contraste do eu e do outro, de nós e eles (SILVA, 2009: 156).

    Esse aparato narrativo confirma, portanto, que a memória coletiva é apropriada pelo

    indivíduo ao se identificar com os acontecimentos públicos e representativos do seu grupo.

    determinada sociedade pensa a si mesma no tempo, articulando as categorias de passado, presente e futuro e

    constituindo modalidades variadas de representação desta mesma experiência temporal. A historiografia seria

    apenas uma destas modalidades que, em uma cultura histórica específica, insere-se em um contexto de tensões e

    disputas discursivas com outras modalidades distintas, tais como os registros testemunhais, os relatos de

    memória, as narrativas elaboradas por não historiadores entre outros. Considera-se ainda que estas modalidades

    de representação são também formas de tornar utilizável o passado representado em função das demandas

    colocadas pelo presente e em função das perspectivas de futuro elaboradas” (BAUER; NICOLAZZI, 2016: 814).

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    Para ilustrar essa questão, podemos trazer o caso Marco Bettle que relatou

    emocionadamente no ano de 2005 sobre o dissabor sofrido por ele e por outros nos campos de

    concentração nazista:

    Quando chegávamos aos campos de concentração nos trens infectos feitos para o

    gado, nos desnudavam completamente, retiravam nossos pertences; não apenas

    como um ato de rapina, mas sim para nos deixar completamente nus e

    desprotegidos: a aliança, a pulseira, a corrente de ouro, as fotos. Sozinhos,

    desassistidos, sem nada. Nada que lhe pudesse recordar o exterior, nada que lhe

    pudesse recordar a ternura de alguém que lhe permitiria seguir vivendo com a

    esperança de que voltaria a recuperá-la. Nós éramos pessoas normais, como vocês,

    mas eles nos desnudavam e logo seus cachorros nos mordiam, nos cegavam suas

    luzes de lanterna, nos gritavam em alemão ‘esquerda, direita’. Nós não

    entendíamos nada e não entender uma ordem poderia lhe custar a vida (BAUER;

    NICOLAZZI, 2016: 812).

    Desse modo, Marco Bettle apresentava “as lembranças coletivas ocultadas pelo trauma

    ou pela conivência, transformava sua própria memória em uma espécie de trabalho de luto

    para aquela sociedade, assumindo com o seu testemunho uma função cívica importante” que

    lhe garantiu a cruz de Sant Jordi (máxima condecoração cívica do governo catalão). Essa

    credibilidade adquirida pelo autor certamente recebeu força com o fato de Marco ter se

    matriculado na faculdade de história em meados dos anos 70 (com mais de cinquenta anos de

    idade), atribuindo autoridade ética ao seu testemunho, mas colocando-o em uma posição

    “amparada pelos fundamentos que sustentam a história enquanto saber, fazendo dela algo

    distinto e, por vezes, antagônico à memória” (BAUER; NICOLAZZI, 2016: 814).

    Quanto a isso, podemos visualizar o que adverte Nora (2009: 9) ao tratar de nossa

    cultura histórica

    Entretanto, boa parte do que Marco narrara era falso, conforme provara o historiador

    Benito Bernejo, levantando questionamentos acerca das atribuições que a mentira pode ser

    assumida pela história. Apesar da narrativa possuir veracidade, Marco não informara ao

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    ouvinte tal particularidade do seu relato, mas usara em defesa que “mentiu para ressaltar a

    verdade”, visando explicar com veemência e eloquência aquilo “que eles não eram capazes de

    explicar” (BAUER; NICOLAZZI, 2016: 815-817).

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Com isso, ficamos diante do questionamento a respeito da função da história e suas

    próprias modalidades de uso do passado, no qual podemos problematizar questões que

    envolvem a cultura histórica e seu uso e abuso na confecção de biografias jornalísticas e

    históricas ao tratarmos da credibilidade e legitimação da narrativas que estes profissionais

    pretendem ao saturarem seus textos na busca de receberem notoriedade frente a construção de

    intelectuais, escritores, jornalistas, artistas e demais personagens que podem ser venerados,

    monumentalizados, e até se tornarem símbolos cívicos de uma época.

    Essa constatação nos aponta, portanto, que o saber histórico não é uma virtude apenas

    dos historiadores e que, portanto, no que diz respeito a função social da história esta pode ser

    “objeto de uso de vários indivíduos ou grupos de indivíduos que nem sempre se reconhecem

    ou são reconhecidos social, institucional e epistemologicamente como historiadores”. Desse

    modo, podemos dizer que “a história enquanto tal é atravessada por múltiplos discursos que

    vão desde a literatura até o jornalismo, passando por campos como o direito, a educação, a

    teologia, a filosofia e, por que não, o mundo dos falsários” (BAUER; NICOLAZZI, 2016:

    819).

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BAUER, Caroline; NICOLAZZI, Fernando. O historiador e o falsário. Varia Historia, Belo

    Horizonte, vol. 32, n. 60, p. 807-835, set/dez. 2016

    BRUCK, Mozahir Salomão. A denúncia da ilusão biográfica e a crença na reposição do real:

    o literário e o biográfico em Mário Cláudio e Ruy Castro. Tese (Doutorado em Literaturas de

    Língua Portuguesa), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG,

    2008.

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    CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 4. ed. São Paulo:

    Companhia das Letras: 2016.

    CASTRO, Ruy. Carmem: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

    CASTRO, Ruy. A noite do meu bem: a história e as histórias do Samba-Canção. São Paulo:

    Companhia das letras, 2015.

    CORREIA, Eduardo Luiz. Imprensa como singular-coletivo na modernidade. In: SOSTER,

    Demétrio de Azevedo; PICCININ, Fabiana Quatrin (Orgs). Narrativas midiáticas

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