A Visão de Nietzsche Sobre o Direito Franklin

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Um belo trabalho de doutoramento sobre Nietzsche

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  • CENTRO UNIVERSITRIO SALESIANO DE SO PAULO U.E. DE LORENA

    Flanklin Gabriel de Novais

    A viso de Nietzsche sobre o Direito o desafio do Direito tornar-se o que ou deveria ser

    Lorena, So Paulo 2011

  • CENTRO UNIVERSITRIO SALESIANO DE SO PAULO U.E. DE LORENA

    Flanklin Gabriel de Novais

    A viso de Nietzsche sobre o Direito o desafio do Direito tornar-se o que ou deveria ser

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado como exigncia parcial para obteno do grau de Bacharel em Direito do Centro Universitrio Salesiano de So Paulo, sob orientao da Profa. Dra. Regina Vera Villas Bas.

    Lorena, So Paulo 2011

  • Dedico esse trabalho ao esforo de meus queridos pais, Elizabeth e Antnio, que apesar de todas as dificuldades nunca me desampararam ou deixaram de

    acreditar que sou capaz. Que eu jamais me esquea do carinho e da simplicidade de vocs.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao curso de Direito do Centro Unisal Lorena por ter contribudo significativamente para o que sou hoje, na medida em que fortaleceu minha vontade de lutar e me possibilitou amizades que se tornaram inesquecveis.

    A todos os professores, mas em especial a cinco deles que de fato marcaram essa inicial trajetria acadmica: Prof Luiza Sodero pela ateno mpar que sempre dispensa a seus alunos; Prof Luiz Rebello por quem tive a honra de atuar como monitor durante os anos de faculdade imenso aprendizado; Prof Eduardo Cabette, o fantstico doutrinador que tive a sorte de ter como mestre; Prof Antnio Svio por ter sido meu exemplo desde quando apenas colegas de van; e por fim, ao grande Prof Marcius Nahur cuja sapincia e genialidade s se comparam com a bondade transbordante de seu corao;

    A minha orientadora, a querida Prof Dra Regina Vera Villas Bas, pela gigantesca pacincia e pela habilidade de em singelas palavras resgatar toda uma confiana abalada. Poucos, mas cruciais momentos.

    Aos meus amigos que sempre me estimaram, s vezes, acreditando em mim mais do que eu mesmo. Eternamente um compromisso de lealdade com vocs.

  • RESUMO

    Essa monografia versa sobre o pensamento nietzscheano direcionado para as bases do Estado Democrtico de Direito. Atravs da perspectiva de Nietzsche possvel estabelecer um necessrio contraponto a temas comumente reproduzidos e carentes de reflexo sria. So objetos de severas crticas a concepo de Justia, de Estado, de democracia, de crime e castigo bem como outros elementos da matriz jurdica moderna. Embora Nietzsche no tenha se enveredado diretamente a dissertar sobre a filosofia do Direito, o fez magistralmente de forma indireta. Ele essencial para quem objetiva suplantar o simples operador de Direito e atingir o grau de efetivo pensador do Direito.

    Palavras-chave:

    NIETZSCHE. DIREITO. GENEALOGIA.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ............................................................................................................ 7 2. QUEM NIETZSCHE? .............................................................................................. 9

    2.1. A Vida de Nietzsche - nascimento e formao .............................................. 11 2.2.Nietzsche x Schopenhauer ............................................................................. 14 2.3 Nietzsche x Wagner ........................................................................................ 17 2.4 A doena e o artifcio da autoconservao......................................................19 2.5 O episdio final e as principais obras ............................................................. 21

    3.A IMPORTNCIA DO PENSAMENTO NIETZSCHEANO..........................................24 3.1 Introduo ao pensamento Nietzscheano as principais teses .................... 25 3.2 A Fora do pensamento Nietzscheano na sociedade e no Direito ................. 29

    4. A VISO DE NIETZSCHE SOBRE O DIREITO ........................................................ 31 4.1. Do Direito e da Justia .................................................................................. 36 4.2 Da Livre Vontade: Livre-arbtrio, Responsabilidade e Culpa ......................... 41 4.3 Do Crime e do Castigo ...............................................................................46

    5. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 51 6. REFERNCIAS ........................................................................................................ 54

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    1. INTRODUO

    Nessas linhas introdutrias insta delinear, sem qualquer tergiversao ftil, o que de fato ilustra o ttulo deste trabalho e com que profundidade tal tema ser discutido. Afinal, o que se pretende apresentar com A viso de Nietzsche sobre o Direito: o Desafio do Direito tornar-se o que ou deveria ser? O que possvel depreender de tal ttulo?

    No obstante a extenso do nome da obra e alguns conceitos nele incutidos possam ensejar certo impacto ou at mesmo estranheza, a ideia central simples, sendo possvel contemplar seu escopo em trs aspectos principais.

    O primeiro aspecto a anlise do pensamento de um autor cujo cerne nunca fora a jusfilosofia na verdade, afirmava que nem sequer almejava constituir uma filosofia mas que tratou de assuntos pertinentes cincia do Direito, ao passo que discutiu as relaes de poder, liberdade, livre-arbtrio e a transmutao dos valores vigentes, dos quais a prpria concepo de Justia, na forma que comumente difundida, no escapa de crticas.

    Justamente por seu pensamento tanger esse campo axiolgico do Direito que no se pode descartar as contribuies de Nietzsche, mesmo que elas tenham sido concebidas a essa rea do saber de forma indireta. Outrossim, vislumbrar-se- no presente trabalho que h at mesmo quem defenda a incluso de Nietzsche nos contedos de Filosofia do Direito ministrados nos cursos, ao lado de famigerados pensadores como Kant, Hegel, Kelsen e Reale, rechaando, de vez, posies adversas que refutam a ligao entre Nietzsche e o Direito.

    De tal feita, conhecer-se-, portanto, a biografia bsica do aludido filosofo, bem como as razes de seu pensamento, principais teses e sua importncia para a comunidade acadmica e a sociedade em geral.

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    Aps conhecer as caractersticas deste brilhante pensador, ser possvel traar um panorama da viso de Nietzsche sobre o Direito. Esse o segundo aspecto contido no fito desta monografia.

    Como Nietzsche contempla alguns elementos do Direito como Justia, crime, castigo, livre-arbtrio, responsabilidade e culpa? E de que forma tal suscitao genealgica influi ou deveria influir numa caracterizao do Direito em si? So problemticas deveras complexas que sero trazidas baila, sem, todavia, fugir do carter substancialmente introdutrio.

    O terceiro aspecto que contribui para dar contornos ao objetivo da pesquisa est pautado na indagao da finalidade do Direito, visando refletir qual sua real identidade. Qual sua funo numa sociedade que precisa se superar? Em que ponto a viso de Nietzsche corrobora esse mister evolutivo?

    Os trs prismas conjugados, conforme exposto anteriormente, do vida ao significado deste trabalho e o revestem de importncia, na medida em que o traduzem. Ademais, salutar ressaltar que a abordagem feita na vertente monografia impotente para esgotar ou at mesmo aprofundar a problemtica suscitada. Tem, pois, um carter muito mais expositivo do que conclusivo. No h ganas de encerrar o contedo nas pginas a seguir, mas to somente de fomentar ao ilustre leitor reflexes atinentes ao assunto proposto e agora, devidamente delineado.

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    2. QUEM NIETZSCHE?

    possvel afirmar que Nietzsche um filsofo conhecido, todavia incoeso afirmar que suas ideias so compreendidas no mesmo grau que seu nome citado. Em respaldo a tal premissa, o culto CARNIO em sua excelente dissertao conclui que Muitas das interpretaes sobre sua filosofia, so estreis, falseadas. Algumas, inclusive, desonestas intelectualmente, o que possibilita a afirmao de que a filosofia de Nietzsche resta ainda pouco compreendida (2008, p. 102).

    Em linhas gerais, Nietzsche

    considerado pelos escritores de histria da filosofia, como um filsofo de estilo aforstico e potico, crtico da moral e religio crist, opositor temtica metafsica socrtico-platnica e um pensador da cultura. Em alguns casos, no entanto, por esse seu estilo aforstico, em outros por sua maneira irnica e encantadora de escrever, acabou sendo exposto ao mau entendimento, principalmente no que concerne aos temas sociais e polticos, diferente do que aconteceu com outros filsofos considerados como construtores de sistemas, como, por exemplo, Aristteles, Kant, Leibniz ou Hegel. (FINK, 1988, p. 09)

    Tal incompreenso pode estar calcada no entendimento de que praticamente paradoxal o empenho de sistematizar o pensamento de um autor que sempre abominou temas filosficos lineares. Sua obra, como um todo, resplandece tal averso. Nesse sentido, o bigrafo LAVRIN, declina em sua pesquisa o seguinte dizer de Nietzsche: No tenho a mente suficientemente estreita para um sistema; nem mesmo para o meu prprio sistema. (1974, p.11).

    Os conceitos do pensamento filosfico nietzscheano, conforme alude CARNIO, no so sistematizados, mas encontram ordem, uma vez que orbitam um fio condutor intencional que desestimula uma entabulada sistematicidade (2008).

    Por isso, apresenta-se to dificultosa a exegese das ideias de Nietzsche. Para entend-lo, mister ter uma viso holstica de sua obra. Abdicar de uma

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    interpretao reducionista ou esteriotipadora, sem olvidar, todavia, de uma necessria e crtica conjugao de sua vida e de seu pensamento. Ademais, no se pode perder de vista que sua filosofia tem forte teor emprico. Praticamente uma filosofia de resistncia e transmutao.

    Em face destas importantes asseveraes, que em suma alertam a respeito do prejuzo de uma viso estritamente simplificadora, proceder-se- a uma anlise da vida e das principais caractersticas do pensamento desse grande filsofo.

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    2.1 A vida de Nietzsche nascimento e formao

    Os paradoxos presentes em sua vida j apontavam de seu nascimento. Ocorre que Friedrich Wilhelm Nietzsche, nascido em 15 de Outubro de 1844 em Rcken Prssia, e que mais tarde despontaria como um dos maiores pensadores antirreligiosos, veio ao mundo como filho de Karl Ludwig, um respeitado e piedoso pastor luterano. No obstante tal evento j ser deveras curioso, tal fato ainda agravado por serem os avs de Nietzsche, de pelo menos trs geraes, tanto no tronco paterno como no materno, tambm sacerdotes protestantes. Inclusive, o prprio Nietzsche, que teve muito desse esprito religioso na infncia, pensou em seguir a mesma carreira de seus ascendentes. (LEBRUN, 1991).

    A famlia de Nietzsche era constituda por seus pais, sua irm Elisabeth que no decorrer de sua vida atuou como importante refgio e tambm como grande censuradora, e um irmo, cuja existncia breve impediu maiores relatos. Na marca de 1849, ou seja, quando Nietzsche tinha apenas cinco anos, seu pai e seu irmo faleceram. Esse evento impulsionou a mudana da famlia para Naumburg, onde o menino cresceu na companhia de sua irm e de sua me carecendo da presena de uma figura paterna.

    Desde tenra idade seu brilhantismo j era explcito. Obteve uma bolsa de estudos na festejada escola de Pforta, na qual cones como o poeta Novalis, o filsofo Fichte e o historiador Ranke estudaram. Em tal fase, se inclinou aos estudos sobre teologia, cultura grega, latim, poesia e msica. Na sequncia, rumou para a faculdade de Bonn a fim de dedicar-se teologia, todavia, influenciado por seu querido professor Ritschl, abandonou tal fito e seguiu para Leipzig onde se aprofundou em filologia.

    Logrou xito e, gabaritado por originais produes acerca de pensadores clssicos, fora convidado, com apenas 25 anos, para assumir a ctedra de

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    filologia clssica na Universidade da Basilia, fator este que lhe proporcionou, tambm, a nacionalidade sua.

    Ainda no que tange a sua formao, importante citar duas passagens que influenciaram sobremaneira o pensamento nietzscheano. Elas versam sobre alguns acidentes que prejudicaram a sade do filosofo e em tal deteriorao ou fragilidade fsica que se plasmou uma filosofia de resistncia e fora. Nesse sentido, [...] Nietzsche reduziu amplamente a filosofia a uma arma - e uma arma sofisticada em sua luta pela autopreservao. (LAVRIN, 1974, p.35). Daqui tambm possvel destacar nova controvrsia.

    Nietzsche vivia uma relao extrema de odi et amo com a Alemanha. LAVRIN informa que numa carta destinada a seu amigo Overbeck, o aludido pensador referiu-se ao povo alemo como: raa irresponsvel, que guarda em sua conscincia todos os grandes desastres da civilizao em todos os momentos decisivos da histria. (1974, p. 112), sendo que nem sequer imaginava os horrores porvir da primeira e segunda guerras mundiais. Em Consideraes Intempestivas, considera a Alemanha como o poro da Europa e no Crepsculo dos dolos infere desprezo aos alemes por sempre embrulharem e confundirem tudo o que lhes chega mo (LAVRIN, 1974, p.112).

    O dio ficou bem demonstrado e pode ter sido motivado, conforme se dessume dos fragmentos acima, da dissimulao da cultura geral feita por seus compatriotas, ou ainda, implicitamente, da no aceitao de seus escritos no territrio germnico.

    O amor por sua nao apresenta-se quando Nietzsche se orgulha do servio militar, auxiliando seu pas em dois eventos blicos, que para o fillogo terminaram de forma trgica, precoce e marcante.

    O primeiro momento foi no servio militar obrigatrio em 1867 no qual o pensador feriu-se gravemente em um exerccio de montaria que acarretou

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    permanentes sequelas. O segundo evento consegue evidenciar de forma ainda mais ntida essa paixo, uma vez que Nietzsche j gozava da dupla nacionalidade e do cargo de professor de filologia clssica na Basilia e mesmo assim ingressou no exrcito alemo como voluntrio para desenvolver as funes de enfermeiro.

    A imagem do cenrio de guerra o excitava, pois via naquele horizonte a demonstrao de fora e orgulho dos soldados. Passado o momento inicial de exaltao e inserido realmente no contexto da desmedida violncia, constatou que estava perdendo gradualmente toda a sua simpatia pela atual guerra alem de conquista (LAVRIN, 1974).

    Sua experincia no campo de batalha foi abreviada pelo contgio de difteria e disenteria. Tragicamente os sintomas desta patologia o acompanharam pelo restante da vida, acrescidos de uma debilitao na viso e de intensas cefalias.

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    2.2 Nietzsche x Schopenhauer

    Arthur Schopenhauer foi um filosofo alemo do sculo XIX e introduziu o Budismo e o pensamento indiano na metafsica alem. Ficou conhecido por seu pessimismo e entendia o Budismo como uma confirmao dessa viso. (WIKIPEDIA, 2011).

    Possui demasiada importncia para a formao do pensamento de Nietzsche ao passo que foi atravs de sua obra principal, O mundo como Vontade e Representao, que Nietzsche passou a interessar-se pela filosofia. Friedrich foi atrado pelo atesmo de Schopenhauer, assim como pela posio essencial que a experincia esttica ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado metafsico que atribui msica. (LEBRUN, 1991, p. 03).

    Esse contato redundou na transformao da viso que o religioso filologo tinha a respeito do mundo. Importou, como obtempera LAVRIN, na viso de que

    No existia Deus, nem Providncia, nem tampouco nenhum sentido na vida ou no Universo. Por trs de tudo, havia apenas a cega vontade de existir, com toda dor e sofrimento que isso implicava. Essa Vontade irracional universal a busca da coisa em si, a quintessncia de todos os fenomenos; ela se torna consciente atravs do intelecto humano. E, desse modo, to somente o homem consciente da grande dor que atua atravs dessa fora csmica irracional. Mas ele pode derrot-la, ou mesmo suprimi-la, pelo menos em si mesmo, atravs de atos de autonegao e de resignao, que atingem seu estgio final no Nirvana oriental. (1974, p. 15)

    No demora a romper com Schopenhauer. Posteriormente, aduz que o que move as aes das pessoas no uma vontade de representao, mas sim uma vontade de potncia.

    Em suma, tal preceito reflete a necessidade de se construir um credo firme o suficiente para que se torne possvel encarar a efemeridade da vida e os sofrimentos correlatos existncia sem subjulgar-se. Alicera seu pensamento na premissa de que o indivduo precisa ser forte e abominar toda

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    ideia que redunde em decadncia. Dessarte, O que lhe interessa, agora, uma viso cientfica positivista, anlises agudas e ataques impiedosos sobre todos os aspectos da decadncia, tanto sociais quanto individuais. (LAVRIN, 1974, p.23).

    Assim como Schopenhauer, Nietzsche um niilista. Todavia o niilismo de Nietzsche de uma espcie que preconiza otimismo. Um niilismo que no se contm na mera negao e destruio de dogmas sem propositura de nada, na afirmao de pequeneza. Acima de tudo, ele deseja transmutar valores e no simplesmente neg-los. Estimula o guerreiro e no a vtima.

    ilustrando esse niilismo que Nietzsche repele, no prefcio de sua primeira obra, o Nascimento da Tragdia, que a posteriori foi rebatizada como Helenismo e Pessimismo, declarando o seguinte:

    O pessimismo necessariamente um sinal de declnio, de decadncia, de fracasso, a prova de que os instintos esto fatigados e enfraquecidos, como foi o caso entre os hindus e como o caso, ao que tudo indica, entre ns, europeus modernos? H um pessimismo na fora? Uma predileo intelectual pelos aspectos mais duros, terrveis, cruis e problemticos da existncia, predileo que nasce do vigor, da exuberncia da sade, da plenitude da existncia? (NIETZSCHE, 2007)

    Para o autor de O Mundo como Vontade e Representao, a partir de sua viso acerca da fora motriz que movimenta a vida, a felicidade plena s poderia ser atingida pela anulao da vontade e conseguinte aniquilao das prprias representaes, em outras palavras, extirpando a prpria vida, haja vista o praticante de tal tese atingir, ou melhor, regredir, verdadeiramente, a um estado vegetativo.

    Essa propositura de Nirvana no de um tipo que visa uma evoluo, transcendncia do sujeito, mas sim a de uma regresso para um status nulo. Essa ataraxia em Nietzsche mostra-se diametralmente oposta. Dessume-se esse pressuposto na idia do alm-do-homem, que diferente deste escopo de passividade, requer ao para transvalorao da vida. Combate decadncia e subservincia.

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    Nesse diapaso, Sua prpria tendncia no sentido do enobrecimento (Veadlung) da vida e do homem foi encorajada, sobretudo, por dois fatores: uma reao contra a mediocridade e a vulgaridade dos filisteus da poca; e sua crena na possibilidade de fazer surgir um tipo mais alto da espcie humana, quaisquer que fossem as dificuldades. Com seu tdio aristocrtico, ele foi e permaneceu um virtuoso em seu dio a uma poca comercializada, onde tudo era rebaixado ao nvel mais ntimo. (LAVRIN, 1974, p.25).

    Como constatar-se-, tal postura altiva est intimamente ligada necessidade de luta pela prpria vida. Contra as prprias fraquezas fsicas. uma afirmao de fora lastreada na tese de vontade como potncia.

    Leciona o aludido filsofo que as tidas verdades podem ser meramente equvocos a que a vontade resolve revistir com tal valor. (LAVRIN, 1974). Mais uma vez uma questo de credo que no se traduz em simples representao ou iluso.

    A contribuio de Schopenhauer se mostra importante no por ter norteado diretamente o pensamento de Nietzsche, embora o tenha feito em um primeiro momento, mas sim no estabelecimento de premissas que outrora o filologo alemo se fundamentaria para criar ou reconhecer algo oposto. Arthur suscitou no referido autor um mecanismo de reflexo e abominao de algumas idias preconizadas, de tal forma que o induziu a uma tomada de posio crucial ante a vida. Schopenhauer atuou como um paradigma inverso ou anti-paradigma.

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    2.3 Nietzsche x Wagner

    Wilhelm Richard Wagner foi um fantstico msico cujo talento musical apeteceu figuras emblemticas como o Rei Luis II, o imperador Dom Pedro I e o anarquista Mikhail Bakunin. Foi em sua terra natal, Leipzig, que conheceu Friedrich Nietzsche estabelecendo um marco na vida do jovem professor de filologia. Outrossim, sua esposa, Csima, tambm revolucionou a vida de Nietzsche, na medida em que despertou-lhe um forte e insensato amor que restou disfarado o quanto pode.

    Desde o primeiro contato e com fulcro na concepo que Nietzsche possua da msica como promulgadora da emancipao do homem, a figura de Wagner resplandeceu como a de um Messias. Seria Wagner quem salvaria a Europa da decadncia atravs de sua divina msica.

    Ele conseguia envolver harmoniosamente os elementos dionisacos e os apolneos ocasionando uma fuso que antes somente fora vista nas clssicas tragdias gregas. Comenta Nietzsche em relao a Wagner:

    Sua concepo da tragdia grega, tal como essa se expressava em squilo, por exemplo, consiste em v-la como tentativa de superar aquela atitude pessimista, que rejeita a vida, atravs de atitude trgica, que est alm do pessimismo e do otimismo que afirma corajosamente a vida a despeito de sua dores e dos seus males. (LAVRIN, 1974, p.18)

    Todavia, toda essa proficincia musical o envaideceu e, por conseguinte, afastou o amigo filsofo. A respeito, Cnscio da prpria grandeza, tornou-se orgulhoso, intolerante e ciumento. (LAVRIN, 1974, p.20).

    Ademais, outro crucial motivo que levou Nietzsche a um abrupto rompimento com Wagner estaria fundamentado na aproximao do msico a dogmas cristos e budistas de compaixo, subservincia e exaltao da moral do escravo. Wagner abdicar daquela originalidade que tanto atraa o fillogo

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    para ser ainda mais conhecido no meio musical, pois a explorao desta temtica favorecia uma maior aceitao.

    Diz Nietzsche a respeito do ex-amigo em sua obra, O caso Wagner, lisonjeia todo instinto niilista (-budista) e o camufla com a msica, bajulando toda cristandade [...]. Wagner est une nvrose. (REALE et ANTISERI, 2006, p.04).

    Esse distanciamento tanto com Schopenhauer como com Wagner comporta, tambm, o afastamento de Nietzsche em relao ao idealismo (que cria um antimundo), ao positivismo (com sua louca pretenso de dominar a vida com pobres redes tericas), aos redentores socialistas, e ao evolucionismo (mais afirmado que provado). (REALE et ANTISERI, 2006, p.05). Nietzsche resolve ento desmascarar a moral e travar uma guerra subterrnea contra tudo o que a humanidade honrou e amou at agora. (LAVRIN, 1974,).

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    2.4 A doena e o artifcio da autoconservao

    Crucial ponto do pensamento Nietzscheano. Aqui reside a justificativa da fora dos dizeres de Nietzsche e sem essa ideia, trabalhada excepcionalmente por Janko Lavrin, seria muito simples ceder aos encantos das linhas desse filsofo. Daqui, tambm se depreende fundamento para algumas pretensas contradies encontradas na obra de Friedrich.

    Como cedio ele foi acometido por diversos males que o transformaram numa espcie de cigano. Migrava de cidade a cidade em decorrncia da busca por um clima agradvel. As condies climticas eram verdadeiros paliativos para seu debilitado estado fsico. Tais patologias, inclusive, acrescidas de outros fatores, impulsionaram Nietzsche a se aposentar de suas atividades docentes. H relatos de que sua voz se tornou inaudvel e com isso os alunos deixaram de frequentar seus cursos.

    Nos assuntos debatidos pelo filsofo, sensvel a imputao de futilidade a toda empreitada que visa apreender a essncia das coisas, assim como entendia Kant. De tal sorte que, segundo LAVRIN, chegou a seguinte concluso: Se a busca de verdades abstratas no leva a parte alguma, ento nosso dever dirigir os prprios esforos no sentido do que mais especfico e concreto, ou seja, no sentido da defesa e afirmao da prpria vida. ( 1974, p.33).

    Nietzsche era um fraco fsicamente e em virtude disso transformou a filosofia numa arma sofisticada, numa espcie de vacina a seus males. Numa filosofia da fora que necessitava. E atravs de sua fragilidade constatou a decadncia e identificou a trade que fomentava tal depresso: o pensamento socrtico-platnico-cristo. Friedrich se prosternou como um guerreiro que confrontaria no apenas os seus males, mas tambm os da sociedade.

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    Em razo de seu pensamento vigorar como um verdadeiro tratamento, Nietzsche, adotou ou refutou certas pensamentos e pontos de vista de acordo com a necessidades de seu prprio fsico. Alude LAVRIN a respeito da tcnica: A serpente que no pode mudar de pele morre. O mesmo ocorre com aquelas mentes que se impedem de mudar de opinio: deixam de ser mentes. (1974, p.35).

    Inclusive, vrios de seus rompimentos podem ter fulcro nessa idia de estabelecer desafios para superar. De bastar-se. A prpria morte de Deus e irreligiosidade podem estar incrustadas nesse pressuposto. Portanto, h de se ter cautela na leitura para atentar-se a possveis mscaras.

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    2.5 O episdio final e as principais obras

    A doena que ocasionou a morte do renomado filsofo Friedrich Wilhem Nietzsche e o levou a insanidade mental ainda uma incgnita. Vislumbram-se algumas causas para tal fato, mas o argumento que prepondera o do doutor. Gaston Vorberg, em seu livro a Doena e o Colapso de Nietzsche (Ueber Nietzches Kranhheit und Zusammenbruch,1993), que atribui tanto as mazelas como a catstrofe final de Nietzsche a sfilis.

    Desde sua infncia ele j sofria com diversas patologias, tais como a grave miopia que o afligia e continuas dores de cabea que o acompanharam por praticamente toda a sua existncia.

    As enfermidades acabaram por influenciar Nietzsche no desempenho de sua funo de professor acadmico. Teve que renunciar sua ctedra no instituto de ensino superior da Basilia em 1879, conforme breve exposio j feita.

    A corroborar com o exposto acima, insta transcrever, um dos momentos de externao do sofrimento de Nietzsche em virtude de sua doena.

    o sofrimento est destruindo minha vida e minha vontade. Oh que meses, que vero atravessei! Experimentei tantos tomentos fsicos quantas nuvens h no cu. Por cinco vez invoquei a morte como meu nico medico. esperei que ontem fosse meu ltimo dia mas esperei em vo. (LAVRIN, 1974, p.37).

    Diante dos dissabores que a doena lhe proporcionou, Nietzsche, decidira ter uma relao atpica com a doena, resolveu traz-la para fazer parte do seu eu, de sua essncia. Em um dos seus livros o fillogo aduz

    Um filsofo que passou por muitos estados de sade, e que esta sempre fazendo isso de novo, passou tambm atravs de muitas filosofias; e ele na verdade no pode fazer outra coisa seno transformar suas condies, em cada oportunidade, na posio e na postura mais engenhosa. (LAVRIN, 1974, p.32).

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    O ltimo escrito de Nietzsche foi em 1888, Ecce Homo. Foi um relato autobiogrfico.

    Sua sade se debilitara rapidamente. A doena acometeu o renomado filsofo que durante os ltimos nove anos de sua vida foi entorpecido pela insanidade mental.

    O episdio marcante de sua loucura, pela narrativa de REALE et ANTISERI, se deu em 3 de Janeiro de 1889 quando ele lanou-se ao pescoo de um cavalo que o dono estava espancando diante de sua casa em Turim. (2006).

    Nesse estado, foi confiado aos cuidados de sua me que logo falecera, recaindo os paliativos sua irm. Durante essa fase encaminhou diversas cartas a seus amigos e at para renomados desconhecidos. Assinava, s vezes, como O crucificado e Dionsio. Faleceu em 1900 em Weimar.

    Sua primeira obra foi o Nascimento da Tragdia lanado em 1872 no qual Nietzsche, de forma indita, vislumbra o embate entre Apolneo e Dionsio e acusa o povo grego (considera-se aqui os ps-socrticos) de pessimistas e decadentes. A enfadonha tentativa de justificar tudo atravs da razo.

    Aps o nterim do rompimento de Nietzsche com Wagner e a dissociao com o pensamento de Schopenhauer, por volta de 1878, ele lana Humano, demasiado humano que retrata a decadncia da sociedade numa crtica ao idealismo, ao evolucionismo, ao positivismo e ao romantismo. Verdades tidas como absolutas que precisavam ser desmascaradas.

    Em 1881 publica Aurora no qual muitas de suas teses comeam a ter contornos mais ntidos. No ano seguinte surge Gaia Cincia. O ponto alto dessa obra a tomada de posio positiva ante o porvir e o anncio da morte de Deus;

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    Ento, em 1883, ele concebe sua obra prima: Assim falava Zaratustra. Sobre tal obra, destaca-se o anncio do bermensch (Alm do homem). Ainda, no auge de seu estilo aforstico, tece uma srie de crticas a sociedade e seus costumes que so facilmente contextualizadas. De fato, Nietzsche um autor extemporneo.

    Aps a edio de seu principal livro, dois outros merecem realce. So eles a Genealogia da Moral e Ecce Homo. No primeiro submete a concepo de moral, sobretudo a atrelada ao cristianismo, a impactantes crticas. Aduz REALE et ANTISERI, a compreenso da gnese psicolgica dos valores, em si mesma, ser suficiente para pr em dvida sua pretensa absolutez e indubitabilidade. (2006, p.12). Sobre Ecce Homo, h diversas polmicas. Trata-se de uma obra autobiogrfica na qual Nietzsche exalta suas prprias caractersticas e estabelece a problemtica de como se tornar quem realmente . Imputa-se essa obra como a ltima, pois Vontade de Potncia no fora acabada e publicada em vida.

    Prximo ao seu colapso, finalmente o valor de suas obras foi compreendido. Os livros que lanara em vida foram substancialmente as suas prprias expensas e agora, faziam sucesso por toda a Europa. Fazem sucesso at hoje.

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    3. A IMPORTNCIA DO PENSAMENTO NIETZSCHEANO

    Analisar-se- nesse captulo a repercusso do pensamento Nietzscheano na sociedade em geral e no meio jurdico. Bem como sero traadas as principais teses e caractersticas desse festejado filsofo.

    Com o rotineiro cuidado, destaca-se que o contedo a seguir meramente ilustrativo. No h o devido aprofundamento nas teses e repercusses. Todavia, no tem, tambm, o escopo de simplificar por completo os dizeres Nietzscheanos. No se deve mutilar a complexidade de um pensamento, sob pena de verter uma idia totalmente dspar da original.

    Outrossim, indubitvel que o pensamento Nietzscheano sofrera diversas interpretaes tendenciosas, sendo exemplo a utilizada pelos nazistas para respaldarem seu antissemitismo. Ora, Nietzsche por vezes demonstrou certo repdio ao comportamento alemo, como inclusive j demonstrado nesse trabalho acadmico. No h cabimento para albergar a conduta nazista no iderio do alm-do-homem, por exemplo.

    Assim, seguem algumas breves consideraes.

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    3.1 Introduo ao pensamento Nietzscheano as principais teses

    Para se compreender o estilo de Nietzsche necessrio ter vivo o seguinte pensamento do filsofo: De todo o escrito s me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenders que o sangue esprito. (NIETZSCHE, 1999, p.48). preciso sentir as palavras de Nietzsche e no permitir que preconceitos impeam a fruio da ideia.

    Aprecie-se o seguinte comentrio: Mesmo quando Nietzsche escreve filosoficamente, ele costuma nos confundir, porque nos fala de uma maneira pessoal, avessa quela rigidez impessoal e neutra dos filsofos. E, justamente esta suposta neutralidade e desinteresse do filsofo que Nietzsche questiona. Ele no acha que o filsofo seja neutro e desinteressado, considera essa pretensa neutralidade uma dissimulao, uma abstinncia fingida. (AZEVEDO, 2006).

    Nietzsche consegue justapor um estilo potico e a literatura, consolidando um estilo nico. Ademais, apresenta seus dizeres na forma de aforismos. Pondera STERN a respeito da escrita nietzscheana e seu objetivo: O que Nietzsche nos ensina no ler filosofia como literatura, nem muito menos literatura como filosofia, mas ambas como formas intimamente relacionadas de vida. (1978, p.94). Ainda nessa esteira, elogia LAVRIN

    A brilhante malcia de seus sarcasmos para no falar da magia esquiva de seu estilo, no qual pensamento, emoo e intuio colaboram de tal maneira que cada um parece reforar o outro, ganhando com isso, ao mesmo tempo, sua prpria fora. (1974, p.12).

    Paralelo ao seu estilo tem-se somente o prprio contedo retratado. O trao crucial do pensamento nietzscheano a filosofia da Fora, de transmutao de verdadeira guerrilha. E diferencia os indivduos de acordo com sua postura ante as adversidades da vida. Daqui depreende-se a Moral do Escravo e a Moral do Senhor.

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    Em relao Moral do Escravo, A libertao do homem exige um combate sem trguas contra a moral dos escravos. Em primeiro lugar critica a moral socrtica, que subordina tudo razo. A seguir condena a religio e a moral crist que enaltece os fracos, apela compaixo e resignao dos homens, promete recompensas num mundo no alm que no existe, estimulando a inveja pelos poderosos. Condena igualmente a moral do dever de Kant, e a tica utilitarista. Nesta crtica, Nietzsche realiza uma minuciosa anlise lingustica, histrica e psicolgica dos conceitos e das prticas que suportam estas concepes morais. (COSTA, 2011).

    Esse complexo de pensamentos ilustra coesamente as razes da ideia da Moral do Escravo. A Moral do Senhor, contrario sensu, est pautada numa evoluo, num desprendimento do homem em relao a subservincia e a moral do rebanho.

    Aquele que consegue desenvolver a moral do senhor em detrimento dessa moral do ressentimento pregada pelo cristianismo pode ascender ao bermensch Alm do Homem. Um indivduo que consegue se situar alm do bem e do mal e que possui profundo conhecimento acerca de quem realmente . Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche apresenta as trs etapas necessrias para tanger esse mister, que por sua importncia ter partes transcritas a seguir:

    Trs transformaes do esprito vos menciono: como o esprito se muda em camelo, e o camelo em leo, e o leo, finalmente, em criana. H muitas coisas pesadas para o esprito forte e slido, respeitvel. A fora deste esprito est bradando por coisas pesadas, e das mais pesadas. [...]. O esprito slido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadssimas; e semelhana do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto. No deserto mais solitrio, porm, se efetua a segunda transformao: o esprito torna-se leo; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu prprio deserto. [...] quer lutar pela vitria com o grande drago. [...] Tu deves, assim se chama o grande drago, mas o esprito do leo diz: Eu quero. [...] Criar valores novos coisa que o leo ainda no pode; mas criar uma liberdade para a nova criao, isso pode-o o poder do leo. [...] Dizei-me, porm, irmos: que poder a criana fazer que no haja podido fazer o leo? Para que ser preciso que o altivo leo se mude em criana? A criana a inocncia, e o esquecimento, um novo comear, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmao. (NIETZSCHE, 2011, p.37).

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    Do presente postulado sobre o caminho a ser percorrido para o surgimento do Alm-do-homem, podemos aferir na fase do leo outra importante tese do pensamento nietzscheano. Quando esse guerreiro afirma o eu quero ele expressa a Vontade de Potncia que guarda similitude com a conduta permeada pela moral do senhor. Uma Vontade retumbante, capaz de ruir os dogmas sociais.

    Para Nietzsche, interpretado por REALE et ANTISERI: No h uma ordem, no h um sentido. Mas h uma necessidade: o mundo tem em si a necessidade da vontade. Desde a eternidade, o mundo dominado pela vontade de aceitar a si prprio e de repetir-se. (2006, p.14). Esse autoconhecimento representado por Ecce Homo no qual o famoso imperativo nietzscheano est presente: Tornar-se quem tu s.

    O drago retratado pode ser til, tambm, para ilustrar o pensamento apolneo-socrtico-cristo que est calcado nos elementos da razo exacerbada, ou seja, naquilo que visa estreitamente a uma racionalidade. a viso de demasiada organizao e de certa forma transcendentalismo em detrimento dos elementos dionisacos primados por Nietzsche. Elementos consagradores da Tragdia, do caos organizado que a essncia da vida.

    Ademais, esse Alm-do-homem que possui esprito dionisaco aceita a vida entusiasticamente em todos os seus aspectos, at nos cruis. Ele no apenas suporta aquilo que necessrio, mas o aceita e o ama.. (REALE et ANTISERI, 2006, p.13). Esse amor incondicional a idia do Amor Fati.

    Para Nietzsche, uma das maiores dores, um dos maiores traumas e, por conseguinte, um dos maiores desafios ao Amor Fati, reside na aceitao do Eterno Retorno. Resumidamente, tem-se o tempo que representa um valor infinito e um nmero finito de aes e escolhas, logo, considerando a infinitude temporal, as aes praticadas no presente necessariamente aconteceriam novamente, perpetuando a tragdia humana. Reproduzindo todo o sofrimento experimentado.

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    Outra caracterstica muito conhecida a do Anticristianismo. Conhecida, porm mal interpretada. De fato, Nietzsche no seria um anticristo, ele seria um antirreligioso. Fundamenta-se tal premissa em duas colocaes. A primeira tem lastro na extenso de suas crticas ao budismo que tambm prega resignao. A secunda pode ser aferida da opinio de Nietzsche sobre Jesus Cristo que entende como distinto do Cristianismo, perceba-se:

    Cristo o homem mais nobre; o smbolo da cruz o smbolo mais sublime que jamais existiu. Cristo foi um esprito livre, mas com Cristo morreu o Evangelho: tambm o Evangelho ficou suspenso na cruz, ou melhor, transformou-se em Igreja, em cristianismo, isto , em dio e ressentimento contra tudo o que aristocrtico. (REALE et ANTISERI, 2006, p.11).

    Em linhas gerais, so esses os principais aspectos do pensamento nietzscheano, que no sero aprofundados em virtude do escopo da monografia ser outro. Retomados sero medida que essenciais para a desenvoltura da viso de Nietzsche sobre o Direito.

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    3.2 A fora do pensamento nietzscheano na sociedade e no Direito.

    Em suas reflexes, Nietzsche conseguiu abarcar diversas reas do saber como Educao, Histria, Poltica e Psicologia, por exemplo. Influenciou diversos autores como Heidegger e Deleuze. E atraiu diversos leitores descompromissados que, de uma forma ou de outra, acabaram por ouvir falar de Nietzsche. Ante essa grande difuso e o turbulento cenrio hodierno, e adjetivado assim em face da banalizao de valores , o filsofo alemo recebe destaque. O que no significa, necessariamente, aceitao.

    Fato que pela fora de sua filosofia, conseguiu afastar e ao mesmo tempo aproximar. Interessante a concluso de STERN, por exemplo,

    Nenhum homem consegue a liberdade absoluta das restries que lhe so impostas pelo tempo e pelo lugar em que vive: a soberba compreenso de Nietzsche do esprito da Grcia clssica no faz dele um pensador grego; sua rejeio de todos os aspectos de dogma e da f crist ainda fazem dele um apstata cristo; e o projeto de uma autocriao total de valores quimrica. Somente bem sucedido ante a seus fracassos. (1978, p.95).

    Certamente, objees mais rspidas ao pensamento de Nietzsche advem das prprias construes axiolgicas pessoais. Do ataque abrupto idiossincrasia. Qualquer crtica vlida deve preocupar-se, antes, com a maneira de ler o aludido pensador. preciso abnegar-se dos preconceitos.

    Ainda no corriqueiro o estudo de Nietzsche nos cursos de Direito, e no curso de filosofia no comum a abordagem sobre a viso nietzscheana acerca de elementos da matriz jurdica moderna. E de fato o filsofo no enveredou-se diretamente ao Direito.

    Todavia, sua contribuio de sensvel importncia, haja vista ser o necessrio e muitas vezes ausente contraponto determinadas dogmticas jurdicas. Diria-se, at mesmo, vcios de um discurso repetido. o outro lado que falta para compor a dialtica.

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    Nietzsche procura despir o Direito. Investigar a origem de certos elementos e averiguar os pressupostos de legitimidade para a aplicao das leis e at mesmo os autorizadores para a atuao do Estado. guisa de ilustrao, tem-se:

    O Estado tem uma origem terrvel, sendo criao da violncia e da conquista e, como consequncia, seus alicerces encontram-se na mxima que diz: o poder d o primeiro direito e no h direito que no fundo no seja arrogncia, usurpao e violncia. O Estado, diz Nietzsche, est sempre interessado na formao de cidados obedientes e tem, portanto, tendncia a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a esttica e estereotipada. Ao contrrio disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a realizao da cultura e para fazer nascer o alm-do-homem, assim como deveria o ser o Direito. (LEBRUN, 1991, p.06).

    Dessarte, o mpeto de transmutao de valores presente no pensamento nietzscheano capaz, no mnimo, de fomentar discusses. Reflexes atinentes ao que se mostra imutvel e certo, ao passo que fundadas na consecuo do alm-do-homem, ou pelo menos na autoafirmao do indivduo ante o gregrio rebanho.

    Quanto importncia para o Direito ela certa, independentemente de sua aceitao ou de filiao. Devendo figurar nos cursos de Direito como necessria anttese aos autores comumente lecionados a fim de que o estudante de Direito possa proceder a uma sntese, necessrio procedimento do sistema de aprendizagem.

    Vencidos os aspectos introdutrios, adentrar-se- na problemtica crucial do trabalho. Qual a viso de Nietzsche sobre o Direito? A real demonstrao do vnculo entre Nietzsche e o Direito matria que passa a ser tratada agora.

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    4. A VISO DE NIETZSCHE SOBRE O DIREITO

    As afirmaes a seguir sobre alguns elementos do Direito baseiam-se nos aforismos de Nietzsche espalhados por toda a sua obra. O doutor Noli Correia de Melo Sobrinho de forma indita, como ele mesmo informa, reuniu todos esses pensamentos que permeiam a Cincia Jurdica em um nico livro, intitulado Escritos Sobre Direito Friedrich Nietzsche.

    Assim, os dizeres infra encontram norte fundamental nessa coletnea dos textos de Nietzsche, bem como na apresentao e notas que esse fascinante pesquisador elaborou.

    Confessada a fonte matriz e antes de iniciar a discusso sobre os elementos, insta trazer a comento algumas ideias introdutrias a respeito da Viso de Nietzsche sobre o Direito.

    Nietzsche acumulou um grande conhecimento a respeito da civilizao grega atravs de seus estudos de filologia clssica. Possua grande apreo pelos elementos dionisacos e apolneos que vigoravam, concomitantemente, na sociedade pr-socrtica. Frise-se que esse apetecimento diz respeito ao momento histrico anterior a Scrates.

    Scrates foi uma espcie de cncer, segundo Nietzsche, pois na tentativa de eliminar o elemento dionisaco em favor dos elementos morais e intelectualistas fulminou aquilo que era luminosidade na vida para primar por uma superficialidade silogstica. Completa REALE et ANTISERI: Scrates surge com sua louca presuno de compreender e dominar a vida com a razo e, com isso, temos a verdadeira decadncia.(2006, p. 07). De tal feita, Nietzsche v Scrates como o avatar da decadncia, um pseudogrego.

    Ainda, os autores supracitados informam:

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    Scrates - escreve Nietzsche- foi um equvoco: toda a moral do aperfeioamento, inclusive a crist, foi um equvoco [...]. A mais crua luz diurna, a racionalidade a qualquer custo, a vida clara, prudente, consciente e sem instintos, isso era apenas doena diferente e de modo nenhum retorno sade, felicidade. Scrates apenas esteve longamente doente. Disse no vida; abriu uma poca de decadncia que esmaga tambm a ns. Ele combateu e destruiu o fascnio dionsiaco que liga homem a homem e homem a natureza, e desvela o mistrio do uno primignio. (REALE et ANTISERI, 2006, p.07)

    Logo, quando se refere aos gregos na verdade est fazendo meno apenas aos pr-scrticos. Exclu os pseudrogregos.

    Nietzsche entende que os modernos levam certa vantagem em relao aos gregos quanto aos meios de consolidao e enfrentamento da vida. Essa vantagem a mesma presente nas bases ideolgicas que justificam as instituies jurdico-polticas, id est, a crena nos conceitos de dignidade do homem e dignidade do trabalho.

    Na Grcia no existia tal artficio, pois todos estavam submetidos Moira. Em face disso no se podia afirmar que existia uma dignidade prpria, algo divorciado das prprias foras naturais e divinas. A condio de existncia era a de uma no-liberdade.

    Ademais, o trabalho no era motivo para regorzijo. Era tarefa destinada ao escravo. Sua valorao era similar a de uma humilhao e como a origem do Direito era a fora, no havia qualquer bice para a escravido.

    Dessarte, os modernos tiram concluses totalmente diferentes dos clssicos quanto determinao da origem e da natureza, assim como do Direito e do Estado, haja vista a doutrina jurdica moderna estar plasmada nos conceitos de dignidade do homem e dignidade do trabalho totalmente inconcebveis para os clssicos.

    NOLI, acrescenta com preciso: Diferente dos gregos, que tinham um instinto e uma vocao polticos preponderantes, os modernos apoiam suas

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    certezas no indivduo isolado [...], como sujeito de Direito o burgus. (2009, p. 12).

    Nietzsche aduz que a vontade do burgus marcada por uma voracidade sem freios e uma vulgaridade sem limites. Outra caracterscia que difere os modernos dos clssicos o credo dos primeiros em ideias de igualdade universal e direitos dos homens que seriam aptos a conduzirem festejada Justia. So conceitos totalmente vagos, mas que medida que foram repetidos inexoravelmente permearam o (in)consciente coletivo e foram albergados como dogmas. Questiona-se se todos os reprodutores desse discurso deveras enfadonho j se enveredaram a refletir suas palavras e inclinaram-se a resgatar do banalismo tais premissas.

    Outrossim, como assevera NOLI, as sociedades modernas proclamaram um guardio a fim de proteger sua sedenta ordem e atuar como instrumento dos homens vidos por dinheiro. Esse guardio, verdadeiro constructo, foi batizado como Estado e recebe guarida de argumentos pr vida pacfica em sociedade e pr dignidade do homem e dignidade do trabalho. Essa utilizao acaba atribuindo ao Estado uma origem ilusria e reflete uma finalidade contestvel. Com seriedade, a vacuidade desse discurso de fundo retira a prpria validade do Estado. ( 2009)

    Curioso notar que o Estado se originou com a burguesia, todavia a burguesia no se originou com o Estado. De tal premissa possvel depreender que os interesses reais dessa camada social de fato no esto incutidos nele. O Estado somente serve como instrumento garantidor de negcios e de incolumidade poltica. Afinal, necessria a paz interna para a consecuo de suas atividades e para exercer sua dominao silenciosa.

    Avocando as premissas expostas, salutar a concluso que NOLI apresenta, com base no pensamento nietzscheano, acerca da dignidade do homem e da dignidade do trabalho:

    No se pode arbitrar com a dignidade do homem e a dignidade do trabalho, como faziam os liberais e os socialistas, por exemplo [ Acrescente-se demagogos polticos]. Em primeiro lugar, porque a condio do homem no mundo trgica: a natureza d existncia,

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    mas no d dignidade, porquer esta no sua tarefa; assim, no sendo o homem o centro do mundo, no poderia ser tambm portador de direitos ou deveres imanentes ou trascendentes e a sua condio real na prpria modernidade mesmo a escravido. [...] (2009, p.13)

    O indigitado postulado remete retumbante concluso de que ilusria tambm a conscincia de liberdade do homem moderno, falsa a afirmao de que existem direitos naturais do homem, falso que eles sejam iguais, falsa enfim a sua crena na dignidade do homem e do trabalho, crena que , nas palavras de Nietzsche, o grito de guerra dos escravos. ( NOLI, 2009, p.13).

    Nesse sentido, h de se apontar tambm a falsidade do Estado Democrtico de Direito, a falsidade do argumento liberal de que o Estado tem origem num contrato celebrado entre homens livres e iguais, uma vez que no h igualdade e a origem dos Estados est atrelada ao poder e violncia. Bases do Direito.

    So pensamentos fortes. Chocantes. Diria-se que at intragveis prima face. Mas de modo algum descontextualizados e desprovidos de sentido. Nietzsche identifica que reinam na sociedade moderna a idia do eremita das finanas, o sufrgio universal, a mediocridade e o pessimismo da ao. um cenrio temerrio, porm privilegiado para que se acontea a guerra.

    Mas o que seria essa guerra em Nietzsche? Entende-se como a luta interna que culmina nas trs fases da transmutao do homem para o alm-do-homem expostas no Assim Falou Zaratustra. um palco suficiente para a revitalizao do instinto poltico dos povos.

    Ainda em carter introdutrio, mister retomar a concepo de ao moral e democracia em Nietzsche.

    Na interpretao de LAVRIN no existe aes morais em si mesmas, essas aes s se tornam tais quando as interpretamos. (1974, p. 90). Fundamentalmente, o fillogo contempla dois tipos de moral: a do senhor e a do escravo. Diferem-se na medida da fora do indivduo em aceitar as diversidades da vida e prostrar-se firme ante elas. A moral do senhor tem

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    guarida na posio firme, na fora e na dominao ao passo que a moral do escravo na subservincia, na aceitao, passividade. Usa a moral como escudo a justificar sua fraqueza e o que sabe fazer reclamar. Com a corriqueira habilidade, LAVRIN, ilustra esse arqutipo:

    Mascara-se com a moralidade porque se tornou um animal doente; doentio e aleijado, que tem boas razes para ser manso, j que quase um aborto, uma coisa imperfeita, dbil e deformada. No o feroz animal de presa que considera necessrio o disfarce moral, mas sim o animal gregrio, com sua mediocridade, ansiedade e tdios profundos. ( 1974, p.81).

    Quanto democracia, rotineiras dvidas pairam sobre a perspectiva de Nietzsche. Elucidar-se-o esses comuns mal entendidos. Ele abominava a idia de um futuro monopolizado pelas massas, pela quantidade e pela mediocridade, haja vista desejar um porvir povoado por um alm-do-homem uma idia aristocrtica.

    Mas essa ideia que lhe causava repdio em nada tem a ver com o que de fato deveria se entender por democracia. O conceito que designa essa noo que Nietzsche repudia o plebesmo. Em suma, tem-se que o nivelamento na democracia se d por alto ao passo que o nivelamento no plebesmo se d por baixo. Esse controle feito pela mediocracia preocupava Nietzsche, pois, em suas palavras, as massas no estariam maduras para a cultura; estariam no mximo para a educao geral, o que reflete mais uma questo estatstica do que efetiva preocupao. Entretanto de tal premissa no se deve concluir por uma simpatia de Nietzsche a democracia no-plebia. Em momento algum de sua obra a democracia lhe apraz.

    Estabelecidos esses parmetros sobre a viso de Nietzsche, adentrar-se- em temticas mais especficas do Direito.

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    4.1 Do Direito e da Justia

    inconcebvel de um ponto de vista genealgico uma Justia Eterna como fora preconizada por Schopenhauer. Esclarece a respeito do que seja Justia Eterna o pesquisador DURANTE em sua monografia:

    Justia Eterna independe das instituies humanas e no est submetida ao acaso e ao engano, no sendo, dessa forma, incerta nem oscilante, mas infalvel, firme e certa. Ela no requer a mediao do tempo, do espao, e da causalidade para compensar um ato maldoso, atravs de conseqncias ruins. Dessa forma, ela independe da experincia. Ademais, apesar dela reger o mundo, isso no significa que ela balanceia uma injustia cometida (ausgebten Unrechts) em um lugar com um sofrimento em outro lugar: nela, a punio tem de ser to ligada injria que ambas se tornam unas. (2010, p.116).

    Segundo Nietzsche, no h qualquer fundamento sobre o qual essa idia possa prosperar, haja vista no existir uma Justia imanente provida pela natureza, nem uma Justia providencial provida por Deus e nem uma Justia transcendente provida pela razo. Justia Eterna, sentencia, um conceito totalmente vago, cuja inspirao e fundamentao s poderiam ser onricas. A acepo de Justia depende de um carter histrico, adquirindo diversos sentidos no decorrer das pocas. No se deve valorizar um carter transcendental com fulcro no alm.

    De imutvel, o que se pode conceber so dois conceitos nucleares de Justia, que so totalmente incompatveis entre si, como obtempera NOLI, por um lado a Justia dos ricos e dos poderosos e do outro a Justia dos pobres e dependentes. A Justia dos dominados e a dos dominadores. A Justia dos senhores e a Justia dos escravos. (2009, p. 14).

    Cada qual apelida o que lhe convm de Justia e imputa como Injustia a outra perspectiva. Essa dualidade est incrustada na dicotomia da moral em Nietzsche: Moral do Escravo e Moral do Senhor.

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    A Justia dos subjugados, plasmada na moral do escravo, parte de uma premissa de que h uma igualdade de sentimentos em todos os homens, quem quer que sejam. Oras, aponta Nietzsche, como possvel crer que aquele que ofende sente o mesmo que aquele que fora ofendido? No possvel ater-se a um pressuposto genrico sem conseguir destacar uma resposta a esse questionamento.

    Em outra esteira h a Justia do dinheiro, oriunda da acepo da moral do senhor. Tambm lastreada em uma premissa equivocada a da equivalncia financeira. Indubitvel que a moeda no tem o mesmo valor nas mos do pobre e do abastado, no h uma medida comum para avaliar esses casos. Inclusive, o trabalho no remunerado com equivalncia. Afirmar essa pseudoequidade somente serve para resguardar a ordem imposta pelo poder da classe dominante e garantida pelas pequenas concesses. Esmolas sociais.

    Na verdade, como assevera NOLI A idia de Justia no pode repousar num conceito abstrato do homem; a origem radical da Justia repousa na autodefesa, um pressuposto que jamais perdeu a sua validade. ( 2009, p.15).

    H dois tipos de autodefesa, a vendetta privada que consiste na defesa do indivduo em face de seu agressor e a autodefesa social que reflete a reao da sociedade contra o transgressor dos costumes e das leis. Essa ltima tida como a Justia oficial; aparato do Estado que exala intimidao para se prevenir. O Direito uma decorrncia direta desta organizao defensiva, na medida em que regulamenta seu uso. In extremis Justia nada mais do que o aprimoramento do instinto de vingana.

    Sobre o surgimento desse instinto de vingana, Nietzsche acusa as bases do cristianismo que versam sobre um Deus que executa a vingana e o castigo no pretenso julgamento final. Essa ideologia de culpa, redeno e punio permearam a percepo dos homens de forma a incutirem neles um

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    medo inafastvel. Tais valores e a acepo da Justia Divina provenientes do cristianismo, influenciaram sobremaneira as construes jurdicas ocidentais.

    Assim, de acordo com Nietzsche a fonte da Justia o prprio poder, ou melhor, a Justia nasce de uma relativa igualdade de poder, de equilbrio, de uma troca exigida por uma situao de impasse entre os contendores e, nesse sentido, envolve ao mesmo tempo vingana e reconhecimento de ambas as partes. (NOLI, 2009, p. 16).

    O conceito romano que procura representar o que ser justo, suum cuique tribuera -dar a cada um o que seu no fundo um princpio que admite uma desigualdade entre os homens, j que se trata de uma entrega individual e no coletiva. Contudo, onde est a igualdade nisso? Justamente para que haja Direito preciso que exista desigualdade. Nietzsche salutar em afirmar que Igualdade e Direito so termos que se excluem mutuamente.

    Em que pese essa rspida posio, o filsofo alemo acredita numa Justia Secular que seria aquela alm do bem e do mal, para o homem extramoral. Um padro de conduta que no estivesse adstrito a noo de satisfao do sistema, algo alm do limiar de Justia como responsabilidade e irresponsabilidade.

    Sobre o Direito propriamente dito, stricto sensu, entendido como os direitos e deveres inscritos. O Direito positivado. Nietzsche aponta trs aspectos cruciais: as regras do Direito so determinadas pela convenincia dos mais fortes, a conscincia do Direito surge exatamente da luta que os homens travam e por fim s h direitos iguais para foras iguais. (NOLI, 2009).

    Quando um poder derrotado, as partes so levadas a celebrarem um acordo. O teor de tal ajuste versa sobre a concesso de direitos e deveres entre os envolvidos. Enaltea-se que de forma alguma tal pacto revela igualdade entre as partes. As foras, supostamente, podem ser equilibradas, mas isso no demonstra igualdade. At porque se fossem iguais, no haveria de se pensar, ainda, em equilbrio. Dessarte,

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    O contrato o resultado de uma luta entre foras antagnicas e assimtricas, e os direitos so assim emanaes de um poder que institui o mando e a obedincia; os governantes e os governados. Objetiva uma srie de processos que culminaro na conservao da comunidade e na estabilidade do poder assim constitudo. (NOLI, 2009, p.18)

    As leis possibilitam que os homens sejam ao mesmo tempo submetidos, integrados, assimilados e adaptados. O compromisso firmado no exclui a prpria possibilidade, no mais das vezes tcita, de dominao. Diz respeito no ao homem em si, mas no poder que ele exerce. Uma dominao do poder pelo poder.

    Nesse diapaso, o Direito vigente o equilbrio de egosmos. O respeito s leis advm no puramente do contrato entre vencedor e perdedor, mas sim do espontneo clculo sobre o efeito de suas aes e a dor que pode ser ocasionada em virtude delas. No se trata de uma questo de moralidade. No se trata de uma questo de culpa. (NOLI, 2009).

    Genealogicamente, o Direito remonta da relao entre credores e devedores, na qual aquele que detinha o crdito possua poderes para subjugar o devedor, exercendo, verdadeiramente, um ato de violncia. Nas sociedades primitivas a fonte desses ditames era o chefe do cl que, aclamado pela platia, exercia o mister punitivo. O nascimento do Direito est ligado violncia de reposio. A violncia da comunidade contra os indivduos.

    Os homens que concentravam o poder decisrio das punies, aqueles que concentravam a fora, fundaram o Estado. E no ato de sua fundao, preleciona NOLI com respaldo em Nietzsche:

    eles fincaram os seus valores, as suas regras e a sua ordem por meios coercitivos e arbitrrios. Se as leis foram inicialmente impostas por meios violentos, ao longo do tempo elas viraram hbito e tradio, at que com o esquecimento progressivo de sua origem violenta, as leis viraram uma necessidade. (NOLI, 2009, p.19)

    De tal sorte, a esfera jurdica se torna um palco e o instrumento dos complexos de poder que lutam pela supremacia. A necessidade de estar correto.

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    Outra asseverao importante que Nietzsche faz sobre os pressupostos de legitimidade do Direito. Antes o Direito se pautava muito mais na moral dos costumes incrustando nos homens padres de conduta almejados, todavia h um ntido enfraquecimento desta moral dos costumes e dos venerados valores.

    Menciona NOLI, as prticas coercitivas e violentas arraigadas no intelecto dos povos influenciaram os costumes at que estes se tornassem verdadeiros instintos. Inclusive o instinto de liberdade apenas uma reao fora. (2009, p.21)

    Em razo disso, o Direito elege novos pressupostos de legitimidade com fulcro no livre-arbtrio e no conforto ocasionado pelo cumprimento da lei, na concepo de Moral e Justia. Obstante, em Nietzsche, nem o livre-arbtrio ou esse pseudoconforto so pressupostos de legitimidade indiscutveis, pois nenhum deles representa condies comprovadas e plenas do homem. No h certeza sobre sua essencialidade ou mesmo existncia na vida como se examinar em tpico subsequente. O fundamento real do Direito continua residindo na Fora e no compromisso das Foras.

    Na avaliao de Nietzsche, ento, o Direito e a sociedade vivem uma contradio inegvel, na medida em que

    Evidentemente, toda lei e todo direito fazem necessariamente referncia a um tipo determinado de homem. As pocas e os povos tiveram concepes diferentes a respeito dos homens. [...] Assim, ao mesmo tempo que a sociedade diz promover o individualismo, o prprio indivduo que nela se apaga e ainda a gregaridade do rebanho que se impe cada vez mais profundamente. As regras igualitrias que dominam as relaes sociais na era moderna eliminam e tentam solapar a possibilidade de afirmao do indivduo. (NOLI, 2009, p.22)

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    4.2 Da Livre Vontade: Livre-arbtrio, Responsabilidade e Culpa

    A origem de tais conceitos cristalinamente religiosa e aparecem frequentemente na literatura jurdica como alicerces da aplicao da lei e parmetros de justificao do Direito e da Justia.

    Interessante que malgrado esses conceitos estejam divorciados de uma moderada vacuidade lgica so, mesmo assim, frequentemente esculpidos como verdadeiros, indiscutveis e representantes de uma viso humanista. Certamente recebem esse status por conta de sua evidente funcionalidade social e poltica.

    Porm, atravs de Nietzsche, a pacificidade desse assunto pode ser refutada,

    A liberdade da vontade , nos termos de Nietzsche, a potncia da iluso necessria, incontornvel, intransponvel, ela um erro originrio que se impe efetivamente aos homens quando eles agem, uma mentira da sua natureza. Contudo, segundo ele, a maioria das aes que os homens praticam de fato mecnica e sub-reptcia; elas no passam realmente pela conscincia e esta a razo pela qual as representaes no podem ser a sua verdadeira origem. (NOLI, 2009, p.41).

    No se pode perder de vista que com base no pensamento nietzscheano a concepo de verdade est calcada numa escolha. Logo, toda verdade pode ser apenas um erro que fora valorizado em face de sua essencialidade. O oposto da verdade no , necessariamente, a mentira.

    Dessa forma, a liberdade de vontade apenas a representao do motivo que se interpe entre o instinto e a ao. (NOLI, 2009, p.41). Somente um pressuposto erguido pela razo e pela pretensa moral. Sendo conciso, nada mais do que um subterfgio.

    Se o que prevalece nas aes, no mais das vezes, a forma automtica, ou seja, a desgarrada da conscincia, incoeso afirmar que as

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    representaes remontam verdadeiras reflexes permeadas pela razo. No se depreende liberdade.

    O julgamento da liberdade de vontade lastreado na crena da separao do sujeito e da coisa para depois examinar a relao entre eles totalmente impreciso. Desconsiderar a recproca fora exercida entre sujeito e coisa sob uma pretensa liberdade de escolha deveras descabido. Esse encadeamento arbitrrio no considera a fora da interao entre sujeito e objeto.

    Assim, a sensao do livre-arbtrio no inerente a essa pseudoliberdade de escolha. Ela oriunda de um conflito interno secreto de duas motivaes. E quando uma destas motivaes irrompe e acredita ter vencido um adverso motivo, essa sensao de livre-arbtrio surge. Tal sensao de poder de direo sobre a vida libera endorfina que resulta na felicidade momentnea. O livre-arbtrio no pode ser comprovado logicamente, ainda que se acredite nele, porque esse processo dualstico, esse conflito, no tangvel.

    Essa concepo de livre-arbtrio por um lado proveniente da necessidade do homem de se colocar para alm de um animal irracional. Chama-se essa escolha de livre ao invs de instintiva. Trata-se aqui to somente de uma iluso da conscincia arrogante que pretende estar de posse da identificao dos motivos reais das aes. (NOLI, 2009, p.42).

    Desta feita, responsabilidade no pode estar atrelada ao conhecimento do efeito da ao, pois eles so desconhecidos e, como exposto, desfalcados de liberdade no agir.

    Todavia, tal tese no induz ao raciocnio da total irresponsabilidade. medida que o livre-arbtrio combatido no se d azo a criao de um cativo-arbtrio, nas palavras de Nietzsche. Entenda-se tal postulado como uma espcie de no-liberdade ou, ainda, determinismo biolgico. No h um

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    estado de total irresponsabilidade, o que se quer inferir que h, simplesmente, vontades fortes e vontades fracas que se digladiam secretamente e que medida que o indivduo no evolui, se torna refm do automatismo proposto pela moral de rebanho.

    Explicita-se, A vontade um conjunto formado por sentimentos que decorrem do desenrolar dos fatos, da atividade cerebral, da excitao muscular, do pensamento que comanda e ainda, proveniente de um movimento passional, cujo valor e sentidos so dados pela paixo do comando. Acreditar que a vontade comanda a ao um erro. A peculiaridade da vontade reside no fato da dualidade secreta que envolve o conflito de paixes que comandam e paixes que obedecem. (NOLI, 2009, p.44).

    Assim, o sentimento de liberdade maior quanto mais forte for o sentimento de vida presente nas aes e nos efeitos que elas acarretam. O sentimento de liberdade nada mais do que um sentimento de poder porque ela depende da fora e da determinao do seu querer com o objetivo da dominao. (NOLI, 2009, p.44). Nada mais do que Vontade de Potncia.

    Em outra esteira, pode ainda o livre-arbtrio ser concebido como mero artfico teolgico para culpar os homens. Se entende assim, pois quando essa autonomia de vontade se torna concreta, ela esbarra nos ditames absolutos da humildade crist redundando em culpa pelo fortalecimento de si. Em interessante monografia a respeito do dilema entre liberdade e subservincia apresentada a seguinte idia: Nada mais oposto do criador do que o carregador Criar aligeirar-se e descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida. O criador legislador danarino. (COSTA, 1992, p.90).

    Por qual razo o criador faria sua cria contorcer-se de remorso por esta ter desenvolvido habilidades acima da mdia?

    Esse modelo de oferecer uma no-liberdade e identific-la como livre-arbtrio utilizando tal mecanismo como instrumento de controle extremamente temerrio, de forma que deve ser profligado. Mister relembrar que justamente em face dessa perigosa trade procriadora e propulgadora da decadncia,

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    Nietzsche prope a imediata guerra para a emancipao do homem. Para seu alforriamento. Essa trade o pensamento socrtico-platnico-cristo fomentado pela burguesia, que em Nietzsche extrapola o mero sentido econmico tangendo, verdadeiramente, o sentido daquele que exerce o poder como um todo.

    Em suma, a vontade no a causa do movimento, no ela que supera as resistncias, ela no livre, nem soberana e a sua origem desconhecida. (NOLI, 2009, p.47). Tudo que h deriva do sentimento de poder que redunda numa sensao de liberdade quando se age sem coao. Apenas uma sensao; e disso se afirmar total liberdade de escolha, grotesco equvoco. mpeto de poder, porque o que se visa subjugar uma fora resistente. A dominar. Qualquer que seja a origem desta fora.

    Noutro giro, a responsabilizao moral e jurdica dos homens atravessou uma trajetria de vrias fases considerando o perodo pr-moral at o banal-moral de hoje. Os homens, no nicio, foram responsabilizados pelos efeitos das aes; depois pelas aes em si; em certo momento suas aes foram medidas por suas causas e, paralelamente, uma corrente apontava para a inteno ( que segundo Nietzsche termo equivocado, melhor seria no-inteno). O homem foi a seguir responsabilizado por seus motivos e, finalmente, por seu carter. Hodiernamente, no se admite mais a punio pelo carter porque se reconhece que tal trao da personalidade produto de contingncias incontrolveis e irrecorrveis. (NOLI, 2009).

    Com base nas teorias expostas, h de se chegar a concluso que o homem no deveria ser responsabilizado por nada, tendo em vista responsabilidade como pressuposto para a aplicao da lei. A liberdade da vontade um erro e, por conseguinte, todas as aes humanas so filhas da necessidade so invevitveis. Quando o mstico operador do Direito reconhece a natureza plmbea da vida, percebe essa total irresponsabilidade humana nas aes e no carter, precisa admitir, mesmo que a contragosto, a idia de inocncia, pois no poderia haver aqui o pressuposto do dever.

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    Com cautela, j se explanou que no h ganas de constituir um estado de total irresponsabilidade arraigado na idia de que uma vontade estranha controla a vida do homem. Longe disso. O que se pretende explicitar que muita da pretensa liberdade de escolha que rege os ditames ps-modernos no existe, e que o pastor desse animal gregrio tambm deveria ser responsabilizado... necessrio, afirma Nietzsche em sua obra, proteger os fortes dos fracos.

    Vrios moralistas plasmam sua idia de livre-arbtrio e responsabilidade no sentimento de culpa que pode surgir na conscincia. Um sentimento de dor atinente ao arrependimento. Em face disso, a culpa, que uma inveno da moral, foi apropriada pelo Direito. Entretanto, j se elucidou que no h verdadeiro controle e nem sequer conhecimento pormenorizado do processamento da vontade. O que se faz preencher com qualquer contedo esses frascos conceituais vazios.

    A crtica est no reverenciamento excessivo desses pressupostos legitimadores da violncia exercida pelo Direito. Nietzsche reconhe que

    No obstante a falsidade destas noes, isto no culmina o fato de que foram elas que refinaram a humanidade e que sem esses erros a prpria humanidade no teria sido criada. A crena na irresponsabilidade total tiraria o encanto da vida que se manifesta nas aes nobres e generosas. (NOLI, 2009, p.49).

    So pressupostos que cominam ideias falsas, mas que so teis para a consecuo do Estado e do Direito. Todavia, a teoria da vontade das intenes e do livre-arbtrio foi produzida para justificar a vingana e, na medida em que esta vingana era til, adquiriu o estatuto de verdade. (NOLI, 2009, p.50).

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    4.3 Do Crime e do Castigo

    Em diferentes pocas cada sociedade, a partir dos seus costumes e valores, escolheu quais aes seriam rechaadas e o modo como seriam punidas. Como seriam as retaliaes das aes proibidas e quem executaria. Pois bem, era um ato de escolha que nunca guardou proporcionalidade entre ao e retribuio, ou quando surge uma pretensa equivalncia ela se mostra falseada. No mais, o que sempre esteve presente a idia da vingana e do espetculo.

    Aduz Nietzsche inferindo a idia do medo como pressuposto de validade do Direito Penal,

    Sob a vigncia da tirania dos costumes, vigora uma economia do medo: cultivar o medo e o terror que podem assegurar a sobrevivncia da comunidade e, nesse sentido, punir mais severamente aqueles que tem menos medo e que se apresentam assim como maus exemplos. (NOLI, 2009, p.23).

    A manuteno da paz interna depende do equilbrio (jamais igualdade) dos sujeitos de Direito, seja no plano externo ou no plano interno da comunidade. Essa a base de toda a moral, Justia, Estado e Direito. Assim so celebrados acordos. O pacto que expressa cristalinamente esse pseudoequilbrio albergado pelo Direito justamente o disposto na lei de Talio: olho por olho, dente por dente.

    uma busca pura por equivalncia. Equivalncia que no existe no execessivo direito penal da comunidade. (NOLI, 2009, p.24). Ainda, elucida o citado autor:

    Neste Direito, contra todos aqueles que infringem as leis e os costumes, os castigos e as penas significam o restabelecimento violento do equilibrio rompido pelos delitos cometidos, a contrapartida vitoriosa da comunidade sobre o criminoso que jamais deve vencer. (NOLI, 2009, p.24).

    A Justia aqui claramente puro instinto de vingana domesticado. A viso do castigo como retribuio um mal que precisa ser evitado, pois

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    reflete, to somente, o produto da moral do medo gregrio. A punio no tem nada a ver com o livre-arbtrio; ela simplesmente responde um dano com um dano. Uma violncia com outra Violncia, s que essa ltima revestida de oficialidade. A equivalncia que se busca na esfera penal a de dano e dor. A retribuio dor.

    O espetculo da crueldade nas punies sempre se fez presente nas relaes jurdicas. Desnecessria seria a aluso s formas de punio presentes, verbi gratia, no Cdigo de Manu, mas imprescindvel apontar que mesmo na era moderna vigoram certos resqucios de crueldade.

    Nos contemporneos rituais jurdicos toda a pompa e descaso com a pessoa do infrator so flagrantes exemplos, embora, hoje, de uma forma espiritualizada, tcnica. A sincero modo, dissimulada e enrustida. No se trata mais de um indivduo, se trata de uma conduta e uma ameaa credibilidade do judicirio.

    O criminoso um devedor. Um terrvel inadimplente; um recalcitrante. E os credores, a comunidade lesada, se arma com todo o poder que dispe e ataca o infrator de forma com que ele retorne ao estado selvagem de que estava protegido anteriormente. (NOLI, 2009, p.26). Equivalncia?

    Ao passo que a comunidade se fortalece e que o Estado no precisa destacar-se tanto para ser notado/temido, as penas se tornam mais brandas. J no h riscos potenciais para desestabilizar a ordem ou suscitar alguma revolta poltica que reconhecesse a fragilidade estatal.

    Dessarte, hodiernamente, o Direito Penal protege tanto a sociedade atingida pelo crime como o prprio criminoso que alvo da ira coletiva. E a partir disso surgem as incongruncias mais selvagens.

    Inicialmente, a origem e a finalidade do castigo no podem se confundir, conforme alerta Nietzsche. A origem do castigo no sua finalidade; no sua

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    utilidade. A origem est no sentimento de Justia ( autodefesa para ento vingana) na obscura equivalncia. A finalidade depende da poca, totalmente mutvel. Podem ser, por exemplo,

    evitar e prevenir o ato lesivo, ompensar aquele que foi lesado, cultivar o medo perante as instncias punitivas, eliminar os infames, ultrajar o inimigo, criar uma memria nos transgressores e nos espectadores, declarar guerra contra o inimigo interno ou externo, etc. (NOLI, 2009, p.27).

    Agora, promover sentimento de culpa no criminoso como aduz a conscincia popular uma finalidade cmica. No o cometimento do crime que imputa ao infrator grave a sensao de arrependimento, muito mais o fato de ter sido pego, a revelao de seu fracasso. Afinal, todos os homens tm dentro de si impulsos e motivaes capazes de lev-los ao cometimento de crimes e se o medo que impede os homens de delinquir, o criminoso o arqutipo de um valente. No haveria porque sentir culpa.

    Nesse sentido, h algo de sublime no ato do criminoso, mas o seu arrependimento e a imagem do seu prrpio cometimento apagam a grandiosidade do horror de seu ato. (NOLI, 2009, p.29). apenas um decadente como muitos outros, que sucumbiu em virtude do desgaste da luta travada entre seus instintos, sua fraqueza e sobretudo suas dvidas.

    Pela idia da equivalncia, vislumbra-se como no equnime aferir a intensidade do castigo apenas tendo em vista a estria do crime. Assim,

    preciso considerar que, se o criminoso tivesse plena conscincia do processo que o levou a praticar o delito, como pressuposto pelo juiz, ele no veria ento irracionalidade no seu ato, mas o veria como plenamente explicvel; assim tambm, se o advogado tivesse plena conscincia das circunstncias que levaram seu cliente ao cometimento do crime, ele atenuaria ou mesmo eximiria sua culpa, e com isso aboliria tambm a estranheza que levou o juiz a condenar este ato e punir seu autor. (NOLI, 2009, p.31).

    Em sua obra prima, Assim falava Zaratustra, Nietzsche afirma que o criminoso um tipo que precisa ser suplantado, mas essa destruio no pode recair numa vingana, mas sim numa conquista, uma beno o ato para a construo de um futuro. Deve-se abdicar da encenao de espectadores

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    vingados ou de espectadores compensados. A sociedade que se volta contra o criminoso no o pune propiamente, apenas o reprime. (NOLI, 2009, p. 35).

    Quem estabeleceu essa relao entre o crime e o castigo fora a Justia criminal moderna, segundo Nietzsche. Com fulcro na matriz crist, o suplcio que se busca no o do corpo em si, mas o da conscincia. O cristianismo assimilou a infelicidade culpa, a culpa condenao e por conseguinte o crime ao castigo. (NOLI, 2009, p.32).

    Como j dito, pune-se no para incutir o sentimento de culpa. O fillogo alemo claro em elencar como principal escopo a intimidao da platia. No culpa, mera utilidade, conservao dos costumes e dos poderes estabelecidos. No se busca resignao do criminoso. apenas a manuteno.

    A problemtica ento que o conceito de Justia, sempre vinculado ao castigo, no deveria estar plasmado numa simples idia de utilidade. A equivalncia no pode reproduzir a dicotomia dano e dor. A Justia no poderia resplandecer uma natureza punitiva, mas sobretudo uma natureza pedaggica. Esse mister pedaggico seria hbil para refinar o hbito dos homens. Nisso h um carter retributivo real. Nisso se contempla evoluo.

    Agora, o que vige no Direito Penal Moderno a idia de que o castigo equivalente a um ajuste de contas, cujo resultado o aprofundamento do rancor do criminoso em relao

    sociedade. Punindo-o no apenas resgata para si o poder do criminoso, mas tambm o fabrica e o sofistica, atravs de um intenso trabalho coercitivo pedaggico. (NOLI, 2009, p.36).

    A punio continua afastada da finalidade anunciada pelo Estado. apenas uma arma para atacar os subversivos. Aqueles que extrapolam o limiar do medo e da sano. E curiosamente, essa entidade esquizofrnica que afirma o Poder de Punir, aformoseado como Jus Puniendi, como o prprio Direito e a prpria Justia equitativa. Agora, a vingana do Estado. E em

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    Nietzsche, no se percebe nenhum dos pressupostos autorizadores desta autodefesa oficial, pois totalmente descabida de finalidade evolutiva.

    Para atingir essa meta ser preciso eliminar a punio como vingana. Quanto mais segura uma sociedade, mais ela capaz de absorver uma quantidade de crimes sem desvirtuar-se; No ser necessrio um Direito Penal excessivo, porque haver formas diferentes de compensao. Formas verdadeiramente equnimes.

    essa a viso de Nietzsche sobre o Direito.

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    5. CONSIDERAES FINAIS

    A vida de Nietzsche e sobretudo sua debilidade fsica so fundamentais para a compreenso do pensamento nietzscheano, ao passo que atravs de sua doena que o fillogo faz a derradeira afirmao da vida em detrimento de qualquer coisa que vise a sua diminuio ou submisso. Adota a postura de um guerreiro que escolhe os alvos mais difceis para atacar.

    Na medida em que travou essa guerra contra sua prpria decadncia, consegiu vislumbrar na sociedade o apodrecimento dos valores e da cultura, identificando no pensamento apolneo-socrtico-cristo a matriz da depresso da vida.

    Acusa o cristianismo de ser o promulgador da moral do escravo que se contrape a moral do senhor. A moral do escravo direciona subservincia e se pauta na resignao e em um transcendentalismo que nega a prpria existncia.

    Atravs deste claudicante cenrio possvel estabelecer a guerra necessria para a suplantao do homem, quando as trs fases forem concretizadas esprito livre em camelo, camelo em leo e finalmente leo em criana.

    O pensamento de Nietzsche predominantemente aristocrtico, calcado na vontade de potncia autorizadora da emancipao da moral do rebanho. E diante dessa tomada cristalina de posio assume importncia na construo do conhecimento da sociedade em geral. Incluindo a seara jurdica.

    Por intermedio da viso de Nietzsche sobre o Direito, possvel desconstruir diversas premissas tidas como irrefutveis na sociedade hodierna. O pensamento nietzscheano subsumido aos elementos jurdicos comentados, independentemente de uma posio adotada a respeito de sua validade,

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    representa um interessantsimo contraponto. Na verdade, mais do que apenas interessante, ele realmente necessrio.

    Nietzsche aduz que a Justia nada mais do que um instinto de vingana aprimorado cuja origem est lastreada no conceito de autodefesa. Quando essa vingana exercida pelo Estado recebe o status de oficial, e por conseguinte, permitida.

    A Justia conquanto elemento do Direito est divorciada da ideia de Igualdade, haja vista a total contradio entre Direito e Igualdade. Se existe Igualdade, no se faz necessrio o Direito.

    Pressupostos autorizadores da aplicao das leis como a dignidade do homem e a dignidade do trabalho so tambm falsos, bem como a prpria concepo de Justia Eterna. E no h parmetros para se aferir a vontade livre, uma vez que que os processos formadores da vontade so totalmente desconhecidos. Assim, falece tambm razo aos conceitos de responsabilidade e culpa.

    Outrossim, em Nietzsche, a equivalncia primada pela pretensa igualdade inexiste em se tratando de Direito Penal crime e castigo. Se o pseudomister da sociedade a recuperao do indivduo, a retribuio do crime com a mesma conduta impotente para a consecuo desse escopo ressocializatrio.

    O que se constata, uma vez mais, apenas o exerccio de uma vingana. Poder e vingana so o cerne do Direito. Direito um contrato secreto de subjugao entre vitoriosos e vencidos que redunda em pequenas concesses ao derrotado com o nico fito de assegurar o controle conquistado.

    Essas so algumas das teses j debatidas nessa monografia, mas conforme alertado nas linhas introdutrias o tema possui trs aspectos. E este ltimo prisma versa sobre a finalidade e identidade do Direito. No obstante

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    vrias consideraes j tenham sido traadas, fundamental expor outras sobre essa temtica sugerida.

    Ante a profligadora posio de Nietzsche, em face dessa atitude de despir o Direito de seus adornos conceituais repoduzidos sem qualquer meditao por seus pseudo pensadores, resta saber qual a finalidade, ento, do Direito. Qual a finalidade desses apontamentos?

    Dessume-se que a primeira finalidade justamente estabelecer uma viso diametralmente oposta para fomentar discusses aptas a ressuscitar boa parte do que se perdeu na vacuidade dos discursos.

    Outra finalidade reside na necessidade de se investigar as origens do Direito, descartando a viso espetaculista e mistca que repousa no referido ramo do saber. Raciocinar qual a real identidade do Direito. necessrio retirar a mscara do Direito que fora artesanalmente confeccionada pela Sociedade do Espetculo em que o artista pensador jurdico com mos trmulas arquitetou com maior esmero na aparncia de sua obra em detrimento de sua utilidade.

    Objetivo menos explicto est no credo de Nietzsche a respeito de uma Justia Secular para o alm do homem. De fato se tal ideal for concretizado o Direito perde sua utilidade e , automaticamente, se extingue. Seria, pois, esse um dos escopos primordiais do Direito? Conduzir a sociedade para um estado de verdadeira igualdade, o que difere de homogeneidade, a fim de dissipar-se com seu mister atingido. Afinal, reafirma-se, Direito e Igualdade so termos que se excluem mutuamente.

    Tal posio reflete a corrente atual do Direito Pedaggico. Aquele apto a alforriar a sociedade de si, haja vista antecipar o prprio fato social.

    Esse o desafio do Direito tornar-se o que ou deveria ser.

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    6. REFERNCIAS

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