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Perfil do toureiro espanhol Juan José Padilla para a revista Piauí, outubro de 2012

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A volta do Ciclone

por RICARDO VIEL

Edição 73 > _figuras da tauromaquia > Outubro de 2012

A vida acidentada e os dias de glória de Juan José Padilla, o toureiro-pirata

No último dia 10 de agosto, uma sexta-feira, por volta do meio-dia, um homem esguio e com largas costeletasdesenhadas no rosto entrou na praça de touros da cidade de Zaragoza, na Espanha. Não era dia de espetáculo,não havia uma única pessoa nas arquibancadas. Usando um tapa-olho, o solitário recorreu a arena toda emsilêncio. Passou pelo portão dos toureiros e caminhou devagar até quase o centro do círculo. Com o bico do

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sapato vermelho, fez uma marca no chão de terra batida e ali permaneceu por alguns minutos. Era o lugarexato onde, dez meses antes, um touro o havia cegado da vista esquerda.

“Repeti o caminho que fiz naquela tarde, pisei de novo no lugar da chifrada. Eu me lembrava deabsolutamente tudo. Desde o momento em que telefonei para minha família, instantes antes de entrar naarena, até quando fui sedado. Fui andando e repassando o que aconteceu, e depois fui até a enfermaria. Fiqueipor quase duas horas ali e te digo: não foi uma sensação desagradável. Eu estava feliz e muito seguro”, relatouo toureiro Juan José Padilla.

No dia 7 de outubro de 2011, ele enfrentava um animal de mais de 500 quilos. Marqués já havia sidoenganado diversas vezes pelo movimento da capa vermelha. Tinha fincadas no dorso negro quatro lançasadornadas de azul e branco. Sangrava e dava sinais de exaustão. Mas ainda impunha respeito. Apesar da largaexperiência, Padilla havia falhado duas vezes na tentativa de lhe cravar o último par de hastes. O toureiro, arigor, nem precisaria fazê-lo. Podia saltar aquela fase do rito e avançar para a seguinte: a execução do touro.Mas a arena naquela tarde recebia um bom público e a tourada era exibida ao vivo pela tevê a cabo. Queimaruma etapa seria interpretado como sinal de pouca valentia.

Vestido todo de rosa, com lantejoulas bordadas com fios de ouro e usando uma gravata negra, Padilla partiupara a tentativa derradeira. Estudou a posição de Marqués e decidiu atraí-lo correndo à sua frente numa linhaperpendicular. O touro avançou e ele conseguiu lhe espetar as lanças, mas, na fuga, perdeu o equilíbrio e caiude bruços no chão. Com uma das patas, Marqués pisou o pé do matador – deixando sua sapatilha pretaperdida na arena. Quase ao mesmo tempo, abaixou a cabeça e cravou o chifre esquerdo na altura do maxilarde Padilla. Depois de rasgar a pele e romper músculos, nervos e ossos, o corno saiu pelo globo ocular dotoureiro. A investida não durou mais de três segundos. Com o olho solto na palma da mão e o rostoensanguentado, Padilla ficou de pé e logo foi socorrido pelos auxiliares. “Não vejo nada, não vejo nada”,gritava enquanto era carregado para a enfermaria.

A chifrada que cegou Padilla foi descrita como “escandalosa” pelo doutor Carlos Val-Carreres, o primeiro aatendê-lo. Além de lhe arrancar um olho, provocou traumatismo craniofacial e lesões no aparelho auditivo.“Por enquanto só posso dizer que o prognóstico é muito grave”, disse o médico enquanto o toureiro eratransferido para o hospital. A rapidez do primeiro socorro, que consistiu em fazer com que o paciente voltassea respirar e deixasse de perder tanto sangue, foi fundamental para que Padilla esteja vivo hoje.

iego Robles, um senhor elegante e pequenino de 60 anos, é quem cuida da carreira do toureiro há maisde dez anos. No dia do acidente, acompanhou tudo de perto. “Fiquei das oito da noite às seis da manhã

no hospital, sentado, esperando. Primeiro veio o plantonista e disse que tinha uma notícia boa e outra ruim.A boa era que tinham feito tomografia e o cérebro não havia sido afetado. A ruim: a lesão era mais grave doque imaginavam.O rosto estava estraçalhado. Parecia que ele tinha caído de moto com a cara no chão.” Complacas de titânio, os cirurgiões tentaram reconstruir o lado esquerdo da face do toureiro. “A cada um que saíaeu pedia notícias, e a resposta era: minha parte saiu bem, mas ainda falta tal coisa.”

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Quando acordou, depois de 48 horas – e ainda sob efeito dos sedativos –, Padilla viu Lídia, sua mulher, nabeira da cama. “O que aconteceu com meu olho?”, perguntou. Em seguida, pediu que ela chamasse DiegoRobles. Segurou a mão do empresário com uma força incomum para alguém que horas antes estava quasemorto e ordenou que não cancelasse as touradas no Peru no final do mês. “Eu estava ainda com muitoremédio no corpo e não sentia tanta dor. Só depois de sair da UTI tive consciência da gravidade do golpe e dotempo que levaria para me recuperar. Mas nunca duvidei que fosse voltar”, conta o toureiro.

No dia 19 de outubro, menos de duas semanas depois do acidente, Padilla recebeu alta do hospital. Saiunumacadeira de rodas. Tinha a região do olho esquerdo muito inchada e falava com dificuldade por causa daparalisia de metade do rosto, visivelmente deformado. Ainda assim, quis conversar com os jornalistas que oaguardavam na saída. Agradeceu primeiro a Deus e à Virgem do Pilar, sua protetora e também de Zaragoza (achifrada aconteceu justamente durante a Feira de Pilar). Em seguida, agradeceu aos médicos e aos fãs eamigos. Terminou a entrevista dizendo:“Não tenho nenhum rancor do touro, nem da minha profissão. O queaconteceu foi um acidente. Voltarei a me vestir de toureiro.” Dez dias mais tarde, após uma consulta nohospital, concedeu uma nova entrevista coletiva: “Peço que não sintam pena deste toureiro. Vou lutar oindizível para me recuperar e voltar.” Tentou prosseguir, mas não pôde. “Muito obrigado. A emoção não medeixa falar mais.”

O ataque de Marqués foi o mais grave, mas não o único que Padilla recebeu durante os dezenove anos deprofissão. Aos 39 anos, ele guarda dezenas de cicatrizes no corpo, fruto de 38 cornadas. Diz que formam ummapa:cada uma tem o nome de um lugar. Até aquela tarde em Zaragoza, a piorhavia sido na cidade dePamplo-na, em 2001. Sureño, um touro de 670 qui-los,acertou seu pescoço com o chifre, rompendo duasvértebras cervicais e passando muito perto da jugular. “Atravessou o pescoço, de lado a lado, com suanavalha”, escreveu um cronista. No chão, o toureiro ainda foi atingido no peito. “Chifrada na região cervicalque disseca em sua totalidade em sentido transversal o pescoço. Apresenta fratura da segunda e terceiravértebras cervicais. Há também uma contusão no esôfago. Prognóstico muito grave”, dizia o boletim médico.Após duas semanas, Padilla estava novamente toureando. Levaria ainda no mesmo ano uma nova chifrada nopescoço, semelhante e quase tão grave quanto a primeira. Os jornalistas especializados já se sentiam mal emescrever que o “Ciclone de Jerez” (de la Frontera, sua terra natal) havia nascido de novo. Ainda teriam derepetir a máxima.

uan José é o terceiro dos sete filhos do casal José Padilla e Ana Bernal. Os três varões se inclinaram parao mundo das touradas – seus dois irmãos são auxiliares de toureiro (um deles abandonou a profissão há

quase um ano, logo depois da chifrada de Zaragoza). Na infância, Padilla ajudava o pai, ele próprio umtoureiro frustrado, que trabalhava como padeiro. Conheceu Lídia, também natural de Jerez, no Sul daEspanha, quando começava a aprender os primeiros movimentos com a capa. O “padeirinho” ia diariamente àcasa da futura mulher entregar os pães. Quando era ela quem abria a porta, deixava um ou dois a mais que opedido. Agarre antes que vire toureiro e fique famoso, aconselharam as amigas. Começaram a namorar e seisanos depois se casaram – ela com 20 anos e ele, 23. O casal tem dois filhos – Paloma, de 8 anos, e Martín, de6. “Meu tapa-olho virou brinquedo em casa. Eles adoram usar”, conta Padilla, tentando suavizar a dimensão

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da tragédia no ambiente doméstico.

O início de sua carreira foi complicado. Padilla não tinha um empresário influente e também não eraapontado como grande promessa. Em 1994, aos 21 anos, recebeu sua alternativa, o que, no universo datauromaquia, significa estrear oficialmente, ou passar de novilheiro – justiceiro de novilhos – a matador detouros. Foi construindo seu nome na base da força de vontade, valendo-se de recursos pouco ortodoxos. Emsua primeira temporada, que tem a duração de um semestre, participou de sessenta touradas. Em todas elas,recebeu os animais na arena de joelhos, em uma posição conhecida como “porta gaiola”. É extremamentearriscado, porque o touro sai do curral cheio de energia, assustado com as luzes e o barulho, e o toureiro aindanão teve tempo de estudar as reações do animal que terá pela frente.

A prática, que exige mais coragem do que técnica, é vista com reservas pelos especialistas, mas costumalevantar o público nas arquibancadas. Pouco a pouco – e depois de diversas cornadas –, Padilla foiabandonando o artifício. Mas em 2007, na tradicional Feira de Sevilha, resolveu novamente receber o touro à“porta gaiola”. O responsável pela abertura do portão o alertou que o animal estava muito próximo, já no finaldo corredor, a escassos metros de distância. Padilla então se benzeu, bateu no peito e avançou, de joelhos,ficando ainda mais perto do perigo. Aberto o portão, o touro investiu contra o obstáculo à sua frente. Era umexemplar da tradicional família Miura – os mesmos criadores do animal que, em 1947, tirou a vida de ManuelLaureano Rodríguez Sánchez, o Manolete, lembrado como o maior de todos os toureiros. Na corrida, o animalquase atropelou Padilla, derrubando-o com uma das pernas. No chão, o toureiro sentiu o chifre lhe roçar anuca e levar pelos ares sua montera (um chapéu estilo Mickey Mouse, mas de orelhas menores). Entregue, viua fera se afastar, atraída pelos auxiliares. Foi erguido pelos braços e pelas pernas e pediu para ser colocado nochão. Agarrou a capa e começou a tourear. Foi ovacionado.

Cenas como essa levaram os críticos a dizer que o Ciclone é um valente, mas carente de arte e graça. Seusdefensores alegam que ele não é um artista porque quase sempre precisou medir-se com touros ruins. Paraefeitos da tourada, costuma-se distinguir dois grandes tipos de animais: os nobres e os duros. Um touro duro,destrambelhado, que ataque de qualquer maneira, não contribui muito para o espetáculo. Um touro nobre éaquele que não ataca sem avisar (para, empina a orelha, abaixa a cabeça), mas, ao mesmo tempo, não se cansade investir. São poucos os toureiros quepodem escolher as feiras onde se apre-sentam. Padilla fez sua carreiramatando animais considerados pouco “nobres”. “Ele é um matador que se en-trega muito. É muito arrojado eco-loca o triunfo na arena acima da arte. Mas Padilla não é um toureiro plástico e está longe de ser umartista”, define Jaime Hita, empresário do ramo e comentarista de touradas. E qual seria a razão para teratingido o status que tem hoje? “Em um mundo onde não há mais herói, ele é o que restou”, responde Hita,sem entusiasmo.

o dia 22 de novembro, semanas após a alta do hospital, Padilla foi submetido a uma nova cirurgia paratentar recuperar a movimentação de metade do rosto. Ficou na mesa de operação mais de onze horas.

“Essa foi talvez pior do que a primeira, porque ele já estava muito fraco. A recuperação foi terrível. Dava pena.Ele precisava se escorar para caminhar. Fiquei impressionado de ver como uma pessoa tão forte definha em

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tão pouco tempo”, relatou Diego Robles. “Quando o vi daquele jeito, pensei: vai demorar para ele voltar.” Otoureiro concorda que aquele foi o momento mais delicado. “Vi amigos entrarem em casa para me dar apoio esaírem derrotados.”

Se tudo corresse bem, previam os médicos, Padilla ficaria pelo menos um ano longe das arenas. O toureiro seesforçou muito para encurtar esse tempo. Criou uma rotina severa de exercícios, passou por centenas desessões de fisioterapia e de fonoaudiologia (ainda hoje faz uma média de vinte horas semanais). Em janeiro jáestava treinando no campo com animais menores.

O teste decisivo para sua volta foi em Cádiz, a poucos quilômetros de sua casa. Naquele dia, Padilla matoudois touros justamente na fazenda onde Marqués havia passado seus cinco anos de vida – os animais,naturalmente ferozes, são criados soltos, sem tratamento específico para atacar na arena. Lucas CarrascoRomero, o dono do lugar, recordou a cena: “Ele fez questão de vestir o mesmo traje do dia em que foi atingidoem Zaragoza. Foi muito emocionante.” Padilla conta que fez isso para acabar com a superstição de pessoaspróximas. “Você sabe que a grande maioria dos toureiros é supersticiosa. Diziam que a culpa era da roupa queeu usava naquele dia.” Ele já havia levado uma chifradacom o mesmo traje antes do inciden-te com Marqués.“Queria provar que não tinha nada a ver”, disse. Depois da exibição na fazenda, Romero estava certo de que,mesmo sem um olho, Juan José Padilla continuava sendo um matador de touros.

Após convencer os médicos e a família (os pais e um dos irmãos eram contra), o toureiro convocou umaentrevista para anunciar seu regresso. Era 20 de janeiro de 2012. “Já decidi data e lugar da minha volta. Seráno dia 4 de março, em Olivenza. Sempre disse que o sofrimento é parte da glória. E agora começo a recebê-la.Voltarei a ser o Ciclone de Jerez.” Foi sua primeira aparição usando um tapa-olho. Era menos impressionantedo que ver a cicatriz, mas a imagem era estranha. O adereço era muito grande e, somado às costeletas, odeixava com cara de vilão de peça infantil.

Foi nessa época que conheceu a jornalista colombiana Adriana Eslava. Em 1987, quando tinha 23 anos, elaperdeu uma das vistas por causa de um tiro. Filha de um toureiro com uma miss colombiana, Adriana é umamulher que até hoje chama atenção pela beleza. Desde o acidente, começou a confeccionar seus próprios tapa-olhos para adaptá-los a seu gosto. Um amigo em comum a colocou em contato com Padilla. Da Colômbia,começou a desenhar modelos para ele. Faziam conferências por computador e iam tes-tando, com a ajuda damulher do toureiro, réplicas feitas em papel e enviadas por fax. Meses depois, eles se conhecerampessoalmente, na Feira de Sevilha. Padilla lhe “ofereceu” um dos touros que matou. “É um ser humanoextraordinário, de uma calidez e força interior tremendas. Um homem amoroso, valente e de princípios”,afirmou Adriana.

“Meu pai debutou na Espanha naquela praça. Foi o primeiro toureiro colombiano a se apresentar em Sevilha.Eu nunca tinha estado ali. Foi tudo muito forte.” O pai de Adriana foi morto por um touro, o que não lhe tirouo gosto pelas touradas. “Continuo sendo defensora. Tenho verdadeira paixão.”

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o dia 4 de março, Padilla voltou à arena na Feira Taurina de Olivenza. Cada vez mais raro no mundo dastouradas, o cartaz anunciando “Não há entradas” estava pendurado na bilheteria. O toureiro deixou a

praça nos ombros de seus auxiliares e fãs – o que se chama “sair pela porta grande” – depois de ser agraciadocom duas orelhas (as cartilagens são extirpadas do animal morto e entregues como prêmio, a critério dopresidente da tourada, após uma boa exibição). Descontado o desmaio do pai de Padilla quando o primeirotouro entrou na arena, tudo o mais saiu perfeito em seu retorno. De lá para cá, o toureiro tem acumuladovitórias. Até o final da temporada deve superar a marca de setenta exibições (média de uma a cada três dias) ejá assinou contrato para, no outono e inverno espanhol (quando não há festas), se apresentar nas Américas –México, Colômbia, Venezuela e Peru estão confirmados.

Em 2012, o Ciclone cortou orelhas como nunca na vida. “Ele nunca ganhou tanto dinheiro como agora. Mas aquestão não é só essa, pela primeira vez pode se medir com osmelhores, figurar nos cartazes das grandesfeiras. O que buscou durante toda a carreira chegou agora”, diz o comentarista Jaime Hita. Não é raro que fãsusem tapa-olhos durante as corridas e levem bandeiras com uma caveira. Padilla agora também é cha-madode “Pirata”.

Numa quinta-feira de setembro, em Valladolid (noroeste do país), havia corrida de touros com três dosprincipais nomes da atualidade. Um deles era Padilla. Os ingressos variavam entre 16 e 131 euros (de 40 aquase 300 reais).

São quatro da tarde e a movimentação na arena ainda é pequena. Pouco a pouco os bares começam a encher.A maior parte do público é de pessoas que parecem ter passado dos 50 anos, mas também há muitos jovens.

Num dos bares da arena há um jornal com uma entrevista de Padilla. Traz a seguinte manchete: “Nãoimaginam o que vejo só com um olho, e muito mais claro que antes.” Tento puxar assunto com um homemque já parece ter mais de 60 anos e ele, seco e direto, me corta: “Se você veio ver o Padilla não vamos nosentender.” Estava lá por José María Manzanares. “Como esse nascem dois ou três a cada cinquenta anos”, diz,em tom professoral. Sobre o Ciclone, sentencia: “Acho louvável a sua recuperação. É um lutador. Mas, se nãoaprendeu até agora, não vai ser com um olho só que vai aprender.”

Praça de Touros de Valladolid é uma construção circular de tijolo à vista com capacidade para 10 500espectadores. Foi inaugurada em 1890 e é considerada uma das mais importantes do país, embora não

esteja no nível das de Madri, Sevilha, Bilbao e da agora fechada praça de Barcelona (uma lei aprovada peloParlamento catalão aboliu as touradas na comunidade autônoma a partir do dia 1º de janeiro deste ano).

Faltando meia hora para o início da corrida, um grupo de militantes contra as touradas chega à arena – cenaque se tornou habitual na Espanha. Estão em dez. Quatro deles têm os corpos pintados de negro com algumasmanchas em vermelho e chifres de papel na cabeça. Pertencem ao Dignidade Animal e exibem cartazesdizendo “Tauromáfia, não com meus impostos” e “Bom trato ao animal = progresso”. Nos últimos anos, omovimento contra as touradas vem ganhando força. O fechamento da praça na Catalunha teve origem numa

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iniciativa popular que recolheu assinaturas para apresentar um projeto de lei. Em 2003 foi fundado o Pacma,Partido Animalista Contra o Maltrato Animal, que tem como principal bandeira o fim das touradas. Porenquanto, é uma legenda pequena, sem representantes no Parlamento.

Os manifestantes mostram aos policiais a autorização concedida para que protestem. “Essa é a nossa casa eeles vêm aqui colocar o dedo no nosso olho”, diz, exaltado, Jesus Pedroso, 66 anos, membro da FederaçãoTaurina de Valladolid. “Querem acabar com tudo o que seja Espanha. São os mesmos que defendem o aborto.Preferem que matem uma criança a um animal”, esbraveja.

Durante o governo do Partido Socialista Operário Espanhol, que foi de 2004 e 2011,as corridas deixaram deser transmitidas pela tevê pública – agora, seis anos depois da proibição, o governo do Partido Popular astrouxe de volta, o que gerou muita polêmica. Não é à toa que em regiões onde há um forte movimentoseparatista – como a Catalunha e o País Basco –, as touradas tenham sido abolidas. Uma pesquisaencomendada pelo jornal El País em 2010 apontou que 60% dos espanhóis diziam não gostar das touradas,enquanto 37% afirmavam segui-las. No entanto, 57% eram contrários à sua proibição.

Os representantes do Dignidade Animal leem uma carta escrita por “um toureiro arrependido” enquantoescutam provocações. “É sempre assim. E nos povoados, quando não há polícia, chegam a nos agredir”, dizAlexander Rol, 21 anos, fantasiado de touro. Estudante universitário, ele integra o grupo de Valladolid desde oano passado. Quando começa a bater boca com um homem mais velho que passa ofendendo os manifestantes,um amigo também fantasiado o contém: “Não se desgaste à toa, não vale a pena.”

ois terços da arena estão ocupados. Meu assento é uma estrutura de metal que foi aquecida pelo soldurante o dia todo. Entendo o motivo pelo qual alugam almofadas por 1,50 euro na entrada. O espaço

destinado a cada espectador é apertado. Ao esticar as pernas, chuto sem querer o casal à minha frente. Umamulher toca constantemente minhas costas com o joelho. Do meu lado, cotovelo com cotovelo, está ÓscarSánchez, 36 anos, segurança de carro-forte. Durante a corrida ele me oferece vinho em uma bota – umaespécie de bolsa térmica que, quando apertada, ejeta o líquido – e se preocupa em fazer comentários didáticossobre o espetáculo. Como num estádio de futebol, fala-se o tempo todo na plateia.

Quando o relógio marca seis em ponto soam os clarins e entram dois cavaleiros vestidos de negro. Cruzam os50 metros de diâmetro da arena até chegarem à tribuna. O presidente da cerimônia lhes entrega a chave docurral para que o portão seja aberto. Entram os toureiros, acompanhados de seus auxiliares, dos picadores(cavaleiros que sangram o touro) e dos responsáveis pela limpeza. É um desfile, conhecido como paseíllo, emque os matadores são apresentados ao público.

Desde 1796, quando o toureiro Pepe-Hillo escreveu o primeiro tratado sobre a tauromaquia, pouquíssimacoisa mudou nas regras e rituais do espetáculo. Ele é dividido em três partes. Ao longo delas, onde osaficionados veem uma exibição de coragem e destreza, os críticos enxergam uma escalada de crueldades. Noprimeiro terço,o toureiro e seus auxiliares enfrentam o animal com grandes capas de dupla face – uma

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amarela e outra grená. É o momento em que o toureiro estuda o touro e ensaia os primeiros passos e fintas.Em seguida entram os picadores, que são cavaleiros armados de lanças pontiagudas. Eles chamam o touro. Aoatacar o cavalo – protegido por uma capa grossa e acolchoada, que pesa cerca de 30 quilos –, vai sendosangrado pelo homem. O objetivo é tirar a força e testar a bravura do touro (o ideal é que, espetado, ele nãofuja e continue tentando ferir o cavalo). Assim termina a primeira parte.

Vem, então, o momento das banderillas, quando são cravados no dorso do animal três pares de hastes decerca de meio metro de comprimento. Foi nessa etapa que Marqués cegou Padilla (diferentemente da maioriados matadores, que transfere a tarefa aos auxiliares, é ele quem coloca as lanças no animal). Com o touro jábastante ferido e as energias exauridas, chega-se à parte derradeira. O toureiro vai, enfim, tourear com amuleta (capa menor que a do primeiro terço e de cor vermelha) e a espada. Com a muleta em uma das mãos,incita o animal, tenta dominá-lo, fazer com que lhe obedeça. Com a espada na outra, irá desferir o golpe demisericórdia.

adilla é quem abre os festejos. Nem o toureiro nem o touro – com 532 quilos, cor de caramelo – brilham.Mesmo cravando com perfeição as três hastes, o matador não empolga o público, que ainda parece meio

disperso. No terço final, o touro dobra os joelhos em uma das investidas – sinal de que não tem mais força. Abanda começa a tocar o passo doble, música típica das touradas, mas nem isso levanta as arquibancadas.

Chega a hora da sorte final. É quando a maioria das chifradas costuma acontecer. Com a mão que segura acapa, o toureiro tem que atrair a atenção do animal, fazê-lo abaixar a cabeça, enquanto, com a outra, deve dara estocada certeira. Padilla empunha a espada e penetra o corpo do touro. A lâmina deveria entrar pelo dorsoe atingir o coração, mas o movimento não foi perfeitamente executado e o touro não morre de imediato. Umauxiliar se aproxima e, com um pequeno punhal, “descabela” o animal, matando-o com um golpe na nuca. Aprimeira morte da tarde, ocorrida depois de vinte minutos de espetáculo, provoca apenas aplausos chochos dopúblico – e o corpo do touro é arrastado da arena com as duas orelhas intactas.

O segundo toureiro é o sevilhano Morante de la Puebla, motivo pelo qual meu vizinho Óscar veio à praça. Atourada começa e o matador parece ausente. Deixa cair duas vezes a capa no chão. O público se impacienta.Pouco a pouco se recupera e ganha os primeiros olés. No momento final, no entanto, sua execução édesastrosa. A espada não só não penetra como acaba no solo. Na segunda tentativa acontece o mesmo. Naterceira, a espada entra só até a metade no corpo do animal. O público vaia quando o touro, finalmente, émorto.

Chega a vez de José María Manzanares, que levanta o público. A música soa mais alto, os gritos de “olé” serepetem e o toureiro engata uma sequência de “muletaços” (movimentos com a capa menor) que inflamam aarena. O touro está entregue, demonstra cansaço, respira com dificuldade. O matador se sente confiante, faz oanimal passar a milímetros de seu corpo, chega a tocá-lo. Surgem os primeiros gritos de “Toureiro!Toureiro!”. Mais aplausos e o momento da verdade. “Ele não costuma falhar”, diz uma senhora. E Óscarcompleta: “De 100 vezes, 98 ele mata bem.” Era o dia do improvável. A espada entrou só até a metade. “Uma

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pena, uma pena”, se escuta. O animal baba, muge, se contorce, mas não cai. É pre-ciso tentar matá-lo de novo.E novamente o toureiro falha. O público, benévolo, continua a aplaudir. Mas a paciência não resiste à quartatentativa. “Foi uma carnificina”, comenta alguém da fila de cima. O touro está morto, mas o trabalho foiperdido. O ma-tador se despede sem nenhuma orelha, sob vaias discretas.

Terminadas as três primeiras apresentações, a arena é limpa, varrida, e os dois círculos que contornam ocentro são novamente pintados. Na abertura da segunda rodada, Padilla já no primeiro terço se esmera paraagradar. Coloca-se de joelhos, faz a capa girar sobre a cabeça, exagera nos movimentos. Seu estilo provocareações díspares. Mas, no momento das banderillas, o público se rende, e o toureiro chega à parte finalconfiante. Tem o touro nas mãos. Para muito próximo e o instiga; a seguir lhe dá as costas, desafiando-o, etoureia olhando para as arquibancadas. “Bien, bien”, exulta Óscar. Os gritos de “olé” reaparecem. Quando opúblico e a música silenciam, é possível escutar o som das patas do animal escorregando na terra batida.Escuta-se também a voz de Padilla chamando-o: “Toro! Toro!”.

O Ciclone crava a espada no animal, que agoniza, demora a cair e, numa demonstração de força, terminachifrando a cerca de madeira no ato final. “Esse era bravo”, diz o vizinho de Óscar, visivelmente satisfeito.

O público aplaude e sacode o que tem nas mãos à espera de que o presidente conceda uma orelha. Ela éconcedida – do balcão, o chefe da festa exibe um lenço branco. Os aplausos, agora em menor número,continuam. Mas o presidente não concede mais prêmios. “Não era lida para duas orelhas”, diz, resignada,Fuencisla Miguel, uma senhora de 50 anos que justamente pedia mais uma.Ela tem esperanças de queMorante, pressionado, agora brilhe. Mas acontece o contrário. Burocrático, o toureiro encurta a prática e matarapidamente o animal. É vaiado. “Ele é assim, tem dias que está com vontade e faz coisas tremendas, e temdias que faz isso”, me diz Fuencisla, que viajou de Segóvia – a uma hora de carro – só para ver o espetáculo.

A última tourada, com Manzanares, é a que mais excita o público. “É para duas orelhas”, diz Óscar. “Se matarbem”, completa. Manzanares agarra a espada, para, estuda e estoca. O animal salta e deixa a plateia emdúvida: o golpe foi bem desferido ou não? Aparentemente, sim. Mas o touro agoniza durante mais de trêsminutos. Solta sangue pela boca, balança a cabeça, sofre, mas resiste a cair. Até que encurta as patas de trás,as aproxima das posteriores – quase numa posição fetal – e se dobra. O público vibra, e o toureiro vai aocentro da arena receber as graças. Mas de repente o touro se levanta. Fuencisla diz no meu ouvido: “Olhacomo ele está agonizando. Não gosto de ver isso.” São minutos intermináveis de luta contra a morte, numapeleja inútil. O público aplaude. Quem? O touro, me explicam. E também o toureiro, pela estocada de mortelenta. Por fim, depois que o aviso já soou duas vezes (sinal de que se passaram mais de quinze minutos doinício do último terço), o bicho se rende: cai de barriga para cima, com as patas enrijecidas. Como demoroudemais para morrer, os aplausos são pouco entusiasmados. E assim Manzanares vai para casa com uma sóorelha, como Padilla. Ninguém sai pela porta grande. “Valeu a pena?”, pergunto a Fuencisla. “Sim, sim, foibom”, diz.Os toureiros desfilam rumo à porta pequena. Padilla e Manzanares saem aplaudidos. Morante éfortemente vaiado e algumas almofadas são atiradas em sua direção. Duas horas e meia depois e com seistouros mortos (sem nenhuma cornada), a corrida estava encerrada.

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ma semana depois da corrida de Valladolid, Padilla está em um hotel em Salamanca, algumas horasantes de uma nova tourada. No dia anterior, saíra pela porta grande da Praça de Baza, uma cidadezinha

perto de Granada, no outro extremo da Espanha. E uma semana antes disso o triunfo fora em Melilha (cidadeautônoma espanhola que está no norte da África) onde, além de três orelhas, cortou um rabo – prêmiomáximo e raramente concedido. Havia chegado ao hotel às quatro da manhã, após cruzar meio país no furgão.Ao meio-dia já havia tomado seu café e feito uma hora de exercícios em frente ao espelho para recuperar amusculatura do rosto e da língua. Enquanto espero para entrar no quarto, um de seus auxiliares pergunta sehá muitos aficionados no Brasil. Que eu conheça, só João Cabral de Melo Neto, e já morreu há um tempo,penso. Digo apenas que não, que não há nenhuma tradição de touradas no Brasil. Ele me olha com certacomiseração, como se dissesse: deve ser terrível morar num país sem touros.

Além do tapa-olho e das cicatrizes espalhadas pelo pescoço e pelo rosto, Padilla impressiona pela magreza.“Perdi 18 quilos, mas já recuperei bastante. Estou com 64 quilos e me sinto bem”, conta o toureiro, de 1,80metro. Vestindo camisa jeans e calça escura bem justa, comenta que não se sente cansado com a maratona deviagens. “Não imaginava que seria assim. Foram aparecendo convites e, como me sentia bem, fui aceitando. Éum novo momento da minha vida, novas sensações, estou sentido uma felicidade enorme.”

Os toureiros costumam usar a expressão “chifrada de espelho” para designar o momento em que se mirampela primeira vez, após uma exibição traumática. Padilla não precisa do espelho. Ao acordar, antes de abrir oolho, ouve o zumbido contínuo no ouvido esquerdo. Os médicos ainda não sabem como eliminar o ruídoprovocado pela cornada. Apesar disso, ele diz não ter traumas daquele dia. “É página virada. Sou conscientede que foi um acidente – acidente trágico –, mas com um final feliz. Tenho sorte de ter voltado.” A seguir,comenta: “Imagina que quase não fiz essa corrida porque tinha outro convite. Há tantas circunstâncias...Imagina quantas pessoas estavam nos trens do 11M e por algum motivo poderiam não estar ali [no dia 11 demarço de 2004, uma série de atentados nos trens de Madri provocaram 191 mortes]. E nas Torres Gêmeas?Não se pode viver pensando nisso.” Faz uma pausa e continua: “Sobretudo nós, toureiros, que vivemos umrisco constante, não podemos pensar no que teria se passado se... Não deveria ter ido a essa corrida, nãodeveria ter matado daquele jeito! Assim não se vive.”

Pergunto a Padilla se não sente pena ao matar um touro. “Há corridas em que o touro nos presenteia commomentos gloriosos, de arte e emoção. É penoso matar um touro que te ofereceu essa oportunidade. Sim, dámuita pena de matar um touro que merecia ser indultado, que colaborou com você.” Faz uma pausa eprossegue: “Mas há vezes em que a única coisa que você pensa é em dar uma boa estocada e sair vitorioso.”

s mãos de Padilla parecem excessivamente grandes, desproporcionais em relação ao corpo. No pulso,ele carrega meia dúzia de escapuláriose, no pescoço, imagens católicas. Enquan-to era levado para a

enfermaria da Praça de Touros de Zaragoza, Padilla foi perdendo o ar e sentiu como se estivesse apagando.Achou que ia morrer, pensou nos filhos e na mulher, e sentiu revolta contra Deus: “Ele, que havia me dadotanto, de repente ia me tirar tudo.” Quando estava sendo operado, diz ter visto “cinco anjinhos descerem docéu”.

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O golpe de Marqués deslocou seu maxilar em centímetros, o que lhe dificulta a mastigação. Como não sente alíngua, ele a morde com frequência. Deve passar em breve por uma nova cirurgia para implantar uma prótesedentária.

Padilla levanta a barra da calça e mostra, um pouco acima do mocassim sem meia, o lugar de onde foi tirado onervo enxertado na face. Toca o tapa-olho, o que permite notar um osso saltado, perto da bochecha, e umburaco um pouco acima, na têmpora. Não sabe ainda se colocará uma prótese no lugar da vista perdida. Asobrancelha esquerda está morta, não se move, e médicos dos Estados Unidos devem avaliar em novembro oque fazer. É possível que Padilla siga com o presente de Adriana Eslava.

E foi difícil se adaptar com um olho só? “A minha adaptação foi milagrosamente rápida. Os médicos dizemque leva cerca de um ano para se adaptar à profundidade, à velocidade, mas eu vi que ia muito rápido,dirigindo, jogando paddle. Não teria saído a tourear se sentisse que não estava completamente preparado.”

Seu empresário, porém, aponta diferenças entre o toureiro antes e depois de Marqués. “Preste atenção:quando o touro passa pelo lado esquerdo dele, há um ponto cego, às vezes dá para perceber que ele estáprocurando, até se assusta quando acha o bicho. A questão é que ele também não escuta desse lado. Seescutasse, ajudaria. Mas acho que ele mudou para melhor, está mais centrado, mais moderado. Era meiolouco, muito impulsivo”, diz Diego Robles. Ele conta que o toureiro diz aos amigos que, se soubesse quedepois da chifrada as coisas sairiam tão bem, a teria tomado dez anos antes. Na história há casos de toureirosque perderam a vista e voltaram – nenhum, no entanto, chegou perto do triunfo de Padilla.

Pergunto a Padilla o que aconteceria caso fosse obrigado a se aposentar. Ele escuta e sorri um sorriso meiotorto. Algumas palavras saem de sua boca com um leve assobio: “Quando os doutores me disseram que serialonga a recuperação, porque não era só física, mas psicológica também, percebi que teria que me agarrar àminha profissão. Estava obrigado a lutar para voltar a tourear. Não conseguiria ir cuidar do jardim, levar ascrianças ao colégio, sair para fazer mercado com minha senhora. Isso não seria vida para mim. Tenho umamor-próprio enorme. No meu caso, o toureiro salvou o homem.”

á quem diga que Padilla está agora nas principais feiras justamente pelo que não tem, que está sendoajudado pelos toureiros de maior calibre. É a opinião do ex-matador Ángel Pascual Mezquita, de 64

anos, que ainda vai a campo treinar pelo menos duas vezes por semana. “Não tenho nada contra ele e achoincrível seu esforço. Mas não o vejo como um toureiro”, diz. “Os toureiros sempre foram vistos pela sociedadecomo super-homens. São seres modelares. Foram retratados por pintores, escultores, homenageados compoesias e canções. Um toureiro é sempre mais, nunca menos. Não pode ser um homem diminuído, e JuanJosé Padilla hoje é um homem diminuído”, finaliza.

Diminuída está, também, a fiesta nacional. Assim como o país, o universo das touradas enfrenta uma gravecrise. Segundo estimativas, nos últimos dois anos caiu em 40% o número de festejos – cerca de 500 eventos amenos. O governo central e as prefeituras costumavam subvencionar os espetáculos, mas agora esses recursos

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encolheram ou foram cortados, enquanto o imposto subiu. A audiência nas praças de touros caiusignificativamente e muita gente associa isso à presença crescente de torcedores nos estádios de futebol. A fimde conquistar o público mais jovem, alguns toureiros chegam a abrir mão de parte de seus ganhos parasubsidiar metade do ingresso dos menores de 30 anos.

Mas, apesar de toda a crise, este ainda é um universo gigantesco: gera cerca de 200 mil trabalhos diretos emovimenta o equivalente a 1,5% do PIB da Espanha (seis vezes mais que a indústria do cinema no país), alémde atrair anualmente 10 milhões de espectadores. Existem mais de mil criadores de touros e cerca de 700toureiros – a profissão é reconhecida por lei e eles contribuem para a previdência social. Desses, menos de100 estão em atividade regular e menos de dez conseguem alcançar a fama e fazer fortuna. “Nos sentimosmuito atacados nos últimos tempos”, diz Padilla. “Porque, além da Catalunha, agora é o País Basco. Claro queme preocupa e sofro com isso. Imagina que triste: na arena monumental de Barcelona não teve uma corridaeste ano.”

Junto com o declínio das touradas vem uma escassez de toureiros fora de série. O mais reputado, capaz decausar frisson por onde passa, é José Tomás. Rompido com a televisão, ele proíbe que suas apresentaçõessejam transmitidas. Nunca concede entrevistas e é ateu (algo muito incomum no universo das touradas). Em2010, sofreu um grave acidente no México, quando um touro lhe chifrou a coxa, atingindo a artéria femoral.Na atual temporada, Tomás fez apenas três aparições. Duas em praças pequenas e a última na França, quandoenfrentou, sozinho, seis touros: cortou onze orelhas, um rabo e teve um touro indultado, coisa raríssima – oindulto aos touros cabe ao presidente da corrida. A Praça de Las Ventas, em Madri, por exemplo, foi palco deapenas um indulto em sua história.

Como Tomás é avis rara, depois de seu acidente Padilla se tornou a grande atração das touradas na Espanha.Sua figura – que chega ao apogeu exatamente por ter sido diminuída – é, talvez, a que melhor retrate a situa-ção atual desse espetáculo em de-clínio e cada vez menos tolerado, mas ainda profundamente arraigado nacultura espanhola.

Neste mês de outubro, às seis da tarde do dia 10, um ano e três dias depois que Marqués lhe deixou cego deum olho, Juan José Padilla voltará a enfrentar um touro na Praça de Zaragoza.