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A voz e a música na literatura oral mirandesa José Francisco Meirinhos* Resumo Aporbeitando ls eisemplos de la tradiçon lhiterária oural i musical mirandesa, stúdan-se trés campos que le son própios: 1) la musicalidade de la lhéngua; 2) la boç cumo eimitaçon de la música; 3) la música cumo eilemento lhiterário. An ne fin puoden ancuntrar-se alguas cunclosones i sugestones pa la preserbaçon deste amportante património oural, lhiterário i musical. É com as palavras que se tece o que se conta, mas é a voz que dá corpo ao contar, que o torna 1 experiência partilhável . Para a sua transmissão, a literatura oral recorre apenas ao som verbalizado, encenação sonora que dispensa a escrita. As narrativas orais mirandesas, sejam romances ou o cantar de um lhaço, contos ou ditos do dia a dia, saudações ou impropérios, permitem-nos escutar a voz como música, arte de fazer música com a cultura e a língua mirandesas. É sobre os diferentes níveis da relação entre música e literatura oral que aqui se reflectirá. Recorrendo sempre que possível a 2 exemplos concretos (textos editados ou registos sonográficos ), e após algumas considerações prévias, serão tratados três temas: - a musicalidade da língua, que se exprime quer no uso da voz para produzir sons não verbais, quer nos rifões ou na intonação da fala; - a voz como imitação da música enquanto recurso expressivo, muito utilizado, por exemplo, nas narrações orais sem acompanhamento instrumental; - a música como elemento literário, que encontramos nas narrativas ou nas letras das músicas, onde aqui e ali aparecem referências à própria música e à dança, sua irmã gémea. procurar-se-á, assim, mostrar que a voz não é um simples suporte e que a música não é um mero escape lúdico. Os seus cruzamentos possuem (ou pelo menos possuíam) uma densa função social e um importante lugar no imaginário e na vida quotidiana dos mirandeses. No final serão ainda apresentadas algumas conclusões e sugestões. Usos da voz, literatura e identidades de grupo Há pouco mais de 100 anos José Leite de Vasconcelos, o grande etnólogo a quem o mirandês deve não só o ter sido “descoberto” para os meios académicos, mas também os primeiros estudos e 3 hipóteses consistentes sobre a sua natureza e origens , escrevia que * O autor é mirandês, professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e membro do Conselho Redactorial da Revista Tierra de Miranda ([email protected]). 1 Este texto foi apresentado nas I Jornadas de música tradicional mirandesa, Miranda do Douro 7 e 8 de Outubro de 2000.A organização destas Jornadas, que se anunciavam com periodicidade anual mas que, creio, não tiveram continuidade, foi uma iniciativa do Sr. Mário Correia, um mirandês de adopção que desde há alguns anos tem tido um notável trabalho de recolha, preservação e difusão da cultura musical mirandesa. Para a elaboração desta comunicação, onde me aventurei a organizar a minha experiência da lléngua, da literatura oral e da música mirandesas, contei com o auxílio, os (em)préstimos e as sugestões de trabalho do meu amigo Paulo Gusmão Guedes, a quem agradeço. 2 Para um panorama das edições discográficas, cfr. Paulo Gusmão Guedes, «Sonografia da música mirandesa», in J.F. Meirinhos (ed.), Estudos mirandeses: balanço e orientações. Homenagem a António Maria Mourinho (Actas do Colóquio Internacional: Porto, 26 e 27 de Março de 1999), Granito editores, Porto 2000, pp. 257-267. 3 José Leite deVasconcellos, Estudos de philologia mirandesa, 2 vol., Imprensa Nacional, Lisboa 1900-1901. Cfr. a parte I do vol. I, “História externa do mirandês», pp. 1-165. 56|57

A Voz e Música na Literatura Oral Mirandesa

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Estudo sobre a tradição oral e musical de Miranda do Douro, do autor José Francisco Meirinhos.

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  • A voz e a msica na literatura oral mirandesa

    Jos Francisco Meirinhos*

    ResumoAporbeitando ls eisemplos de la tradion lhiterria oural i musical mirandesa, stdan-se trs campos que le son prpios: 1) la musicalidade de la lhngua; 2) la bo cumo eimitaon de la msica; 3) la msica cumo eilemento lhiterrio. An ne fin puoden ancuntrar-se alguas cunclosones i sugestones pa la preserbaon deste amportante patrimnio oural, lhiterrio i musical.

    com as palavras que se tece o que se conta, mas a voz que d corpo ao contar, que o torna 1experincia partilhvel . Para a sua transmisso, a literatura oral recorre apenas ao som verbalizado,

    encenao sonora que dispensa a escrita. As narrativas orais mirandesas, sejam romances ou o cantar de um lhao, contos ou ditos do dia a dia, saudaes ou improprios, permitem-nos escutar a voz como msica, arte de fazer msica com a cultura e a lngua mirandesas. sobre os diferentes nveis da relao entre msica e literatura oral que aqui se reflectir. Recorrendo sempre que possvel a

    2exemplos concretos (textos editados ou registos sonogrficos ), e aps algumas consideraes prvias, sero tratados trs temas:- a musicalidade da lngua, que se exprime quer no uso da voz para produzir sons no verbais, quer nos rifes ou na intonao da fala;- a voz como imitao da msica enquanto recurso expressivo, muito utilizado, por exemplo, nas narraes orais sem acompanhamento instrumental;- a msica como elemento literrio, que encontramos nas narrativas ou nas letras das msicas, onde aqui e ali aparecem referncias prpria msica e dana, sua irm gmea.procurar-se-, assim, mostrar que a voz no um simples suporte e que a msica no um mero escape ldico. Os seus cruzamentos possuem (ou pelo menos possuam) uma densa funo social e um importante lugar no imaginrio e na vida quotidiana dos mirandeses.

    No final sero ainda apresentadas algumas concluses e sugestes.

    Usos da voz, literatura e identidades de grupo

    H pouco mais de 100 anos Jos Leite de Vasconcelos, o grande etnlogo a quem o mirands deve no s o ter sido descoberto para os meios acadmicos, mas tambm os primeiros estudos e

    3hipteses consistentes sobre a sua natureza e origens , escrevia que

    * O autor mirands, professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e membro do Conselho Redactorial da Revista Tierra de Miranda ([email protected]).1 Este texto foi apresentado nas I Jornadas de msica tradicional mirandesa, Miranda do Douro 7 e 8 de Outubro de 2000. A organizao destas Jornadas, que se anunciavam com periodicidade anual mas que, creio, no tiveram continuidade, foi uma iniciativa do Sr. Mrio Correia, um mirands de adopo que desde h alguns anos tem tido um notvel trabalho de recolha, preservao e difuso da cultura musical mirandesa. Para a elaborao desta comunicao, onde me aventurei a organizar a minha experincia da llngua, da literatura oral e da msica mirandesas, contei com o auxlio, os (em)prstimos e as sugestes de trabalho do meu amigo Paulo Gusmo Guedes, a quem agradeo.2 Para um panorama das edies discogrficas, cfr. Paulo Gusmo Guedes, Sonografia da msica mirandesa, in J.F. Meirinhos (ed.), Estudos mirandeses: balano e orientaes. Homenagem a Antnio Maria Mourinho (Actas do Colquio Internacional: Porto, 26 e 27 de Maro de 1999), Granito editores, Porto 2000, pp. 257-267.3 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia mirandesa, 2 vol., Imprensa Nacional, Lisboa 1900-1901. Cfr. a parte I do vol. I, Histria externa do mirands, pp. 1-165.

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  • o grau de vitalidade do mirands pequeno: de um lado, quasi lhe falta absolutamente litteratura, do outro, o povo que se serve delle vae-o desaprendendo, sob a influncia de

    4condies variadas .

    O prprio Leite de Vasconcelos daria um forte impulso para inverter a situao, fixando as regras da lngua mirandesa e sobretudo passando a escrito textos que ele prprio ouviu durante as suas

    5visitas s terras da Miranda . O que de facto Leite de Vasconcelos lamentava era a inexistncia de uma 6tradio escrita da lngua mirandesa . Porque literatura de facto existia, mas com transmisso quase

    7exclusivamente oral . So complexos os modos de circulao da literatura oral mirandesa e como 8contribui para a formao da identidade cultural dos falantes .

    Temos hoje nossa disposio inmeros textos, impressos ou gravados, mas est ainda longe, direi que j impossvel, a realizao de uma recolha satisfatria e com registo sonoro do rico

    9patrimnio de tradio oral do mirands que abrange rimances , contos, adgios, adivinhas, 10lengalengas, oraes, cantigas, relatos de feitos e outras formas menos estruturadas . Como o

    mirands foi at h bem pouco tempo uma lngua sem escrita, muita da criatividade narrativa local perdeu-se para sempre e esse facto impede tambm que se conhea um pouco melhor a prpria gnese destes textos, porque no existem registos que permitam refazer as suas variaes ao longo do tempo. No caso dos inmeros rimances publicados verificamos que, tal como as msicas, as narrativas se repetem de aldeia para aldeia, mas com pequenos ajustamento, variaes ou corruptelas. Subsistem, por isso, diversas interrogaes: trata-se de textos com origem local? ou trata-se de textos que na sua origem foram escritos e depois foram introduzidos nos processos de transmisso oral? ou trata-se de textos introduzidos a partir do portugus ou do castelhano e, a seguir, de algum modo adaptados e modificados pela transmisso oral adaptando-os lngua e s referncias culturais locais? O facto de muitos deles estarem disseminadas em regies exteriores a Miranda indica quase seguramente que a maior parte no autctone, mas que foram incorporados no tecido social local e nas suas prticas culturais. As mesmas melodias aparecem em outros locais, os mesmos rimances so cantados em reas que vo muito para l das Terras de Miranda. Por essa razo, se tomarmos mais uma vez como padro comparativo a msica e os rimances, constatamos que no possvel isolar a rea lingustica e cultural mirandesa das regies envolventes. Tambm por essa razo os fenmenos que a seguir sero tomados como fulcro de reflexo no ho-de ser vistos como exclusivos do mirands ou das suas tradies. Ainda hoje podemos escutar cantigas e contos que so ditos na lngua castelhana de

    origem, ou foram passados a mirands, ou j esto, por fim, em portugus. E, pese aos cultores de um purismo de lngua que, no meu entender, nunca existiu, nem raro encontrar casos de narrativas em que se sobrepem as trs lnguas. A riqueza desta circulao entre lnguas e a apropriao das suas expresses, mostra-nos a complexidade de um processo de aculturao aberto e de longa durao, criativo e enriquecedor no seu dinamismo. Tenhamos presente que esta circulao no apenas prpria do texto, tambm a encontramos na msica, ao ponto de uma mesma melodia poder acompanhar diferentes rimances, ou de um mesmo rimance poder ser acompanhado, em locais diferentes, por diferentes melodias.

    As narrativas populares assumem formas estruturais muito diversas e caracterizam-se por a sua transmisso ser exclusivamente oral (quando a escrita intervm estamos em outro nvel, tecnicamente letrado, da transmisso da narrativa), o que implica o apagamento de qualquer noo de autor. Desse simples facto resulta de imediato a possibilidade da sua apropriao colectiva e simblica muito mais profunda. Nas narrativas das Terras de Miranda, estamos no nvel mais nu da oralidade, pois aquilo que narrado no teve qualquer contacto com a escrita nem dela provm. o acto de

    11narrar que d a forma da transmisso, porque aquele ou aquela que escuta ser depois narrador/a. . Mas, se as coisas forem vistas mais de perto, devemos reconhecer, como acontece com os rimances, que muitas das narrativas mirandesas provm de facto de uma cultura letrada, como por exemplo o caso de alguns romances do ciclo carolngio e de cavalaria, embora tenham entrado no repertrio oral em tempos recuados, perdendo assim qualquer relao com o suporte escrito.

    Como sabemos, o conceito literatura popular de contedo impreciso e difcil de 12circunscrever . Se na origem constitua uma designao depreciativa (pois se opunha literatura

    erudita), ela deve hoje ser tomada naquilo que tem de positivo: de autor incerto, caracteriza-se pela transmisso oral e pela grande variedade de formas e verses em que circula, a sua difuso e momentos de transmisso esto em geral associados a actos mais ou menos ritualizados da vida quotidiana (trabalhos especficos, seres, festas, etc.).

    Usando a voz como suporte de transmisso, estes usos da palavra colocam-nos no interior de uma tradio de transmisso que assenta na repetio, que , simultaneamente, partilha e actualizao da memria do contador e dos ouvintes. A cada narrao este mesmo ciclo que se repete e assim se arquiva em memria colectiva atravs de uma cadeia de ouvintes-narradores-ouvintes. A memria parece constituir um suporte instvel, pois a inexistncia de um padro escrito que evite as alteraes, cortes ou deturpaes, pode contribuir para uma acelerada modificao da prpria histria ou poesia narrados. Deveramos at ter presente que, devido sua irrepetibilidade, de cada vez que o romance ou o conto so narrados estamos perante uma nova edio. Mas, o que vemos que ao lado de uma certa volatilidade quanto a certos elementos narrativos secundrios, existe uma relativa estabilidade quanto ao ncleo simblico e factual das narrativas, certamente porque: 1) o carcter ritual intrnseco a cada narrao exige do contador um auto-controlo e um esforo de fidelidade histria escutada; 2) o prprio auditrio, que em geral j conhece bem o enredo narrado, exerce um controle cerrado e mesmo uma censura sobre o contador quando ele no diz as coisas como elas so. A voz da narrao, no acto de tornar partilhvel e pblico o que diz, no pode fugir ao controle pblico, que quase sempre exige fidelidade narrao. Como diz Paul Zumthor, de facto o que reintegra a narrativa na tradio

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    5 Idem, vol. I, pp. 161-182; note-se que o prprio traduziu para mirands trechos de Cames (cfr. idem, vol. II pp. 79-138) e que j 16 anos antes havia publicado alguns poemas em mirands em Flores mirandezas, Livr. Clavel, Porto 1884.6 Hoje a situao inverteu-se e florescente a publicao literria em mirands, tendo ganho um decisivo flego aps a aprovao da Conveno ortogrfica da lngua mirandesa, Miranda do Douro Lisboa 1999. Esta literatura no ser aqui objecto de exemplificao.7 Como J.L. de Vasconcelos escreve nas citadas pp. 161-162 dos Estudos de philologia mirandesa e em outros locais da mesma obra, era muito reduzido ou quase inexistente o nmero de textos em mirands escrito. Para uma excepo, veja-se o entrems Sturiano e Marcolfa, composto por Francisco Garrido Brando (natural de Crcio), que o A. passou a escrito ouvindo-o do seu autor, publicando-o em Filologia mirandesa, vol. II, pp. 283-303.8 Cfr. estudo o duplamente fundamentado, na prtica da lngua e na teoria lingustica e literria, de Antnio Brbolo Alves, Palavras de identidade da Terra de Miranda. Uma abordagem estatstico-pragmtica de contos da literatura oral mirandesa, Ed. Pena Perfeita, s/l 2007. O volume inclui uma completa bibliografia onde se assinalam todos os estudos relevantes sobre o mirands e a sua literatura.9 O rimance romance pode assumir vrias formas, mesmo no aspecto musical. Como diz Anne Caufriez o romance cantado para o divertimento apresenta uma melodia de carcter silbico, enquanto que o das malhas apresenta uma melodia de caracterstica nitidamente ornamentado, mesmo melismtico, in Quelques aspects de la musique vocalique mirandaise, in J.F. Meirinhos (ed.), Estudos mirandeses, cit., pp. 141-150.10 No caso de certas narrativas as palavras so indissociveis da msica. O romance um canto a capella (sem acompanhamento musical), mas outras formas narrativas, como as contas, no so cantadas nem tm acompanhamento musical, enquanto outras, como os lhaos, so cantadas e tm acompanhamento musical.

    Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia mirandesa, cit., t. I, pp. 161-162.

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    19. Nesta obra encontram-se utilssimas anlises das literatura orais medievais, que com sentido crtico e das diferenas poderiam ser transpostas para compreender a literatura oral mirandesa no seu devir.12 Manuel Viegas Guerreiro, Littrature populaire. Autour d'un concept, in Litterature orale traditionnelle populaire. Actes du Colloque, Paris 20-22 Nov. 1986, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris 1987, pp. 11-19; verso portuguesa disponvel em http://www.attambur.com/Recolhas/literaturapopular.htm.13 Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la littrature mdivale, d. du Seuil, Paris, 1987, p. 14.

    Para os diferentes tipos de oralidade, cfr. Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la littrature mdivale, d. du Seuil, Paris, 1987, pp. 18-

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  • o grau de vitalidade do mirands pequeno: de um lado, quasi lhe falta absolutamente litteratura, do outro, o povo que se serve delle vae-o desaprendendo, sob a influncia de

    4condies variadas .

    O prprio Leite de Vasconcelos daria um forte impulso para inverter a situao, fixando as regras da lngua mirandesa e sobretudo passando a escrito textos que ele prprio ouviu durante as suas

    5visitas s terras da Miranda . O que de facto Leite de Vasconcelos lamentava era a inexistncia de uma 6tradio escrita da lngua mirandesa . Porque literatura de facto existia, mas com transmisso quase

    7exclusivamente oral . So complexos os modos de circulao da literatura oral mirandesa e como 8contribui para a formao da identidade cultural dos falantes .

    Temos hoje nossa disposio inmeros textos, impressos ou gravados, mas est ainda longe, direi que j impossvel, a realizao de uma recolha satisfatria e com registo sonoro do rico

    9patrimnio de tradio oral do mirands que abrange rimances , contos, adgios, adivinhas, 10lengalengas, oraes, cantigas, relatos de feitos e outras formas menos estruturadas . Como o

    mirands foi at h bem pouco tempo uma lngua sem escrita, muita da criatividade narrativa local perdeu-se para sempre e esse facto impede tambm que se conhea um pouco melhor a prpria gnese destes textos, porque no existem registos que permitam refazer as suas variaes ao longo do tempo. No caso dos inmeros rimances publicados verificamos que, tal como as msicas, as narrativas se repetem de aldeia para aldeia, mas com pequenos ajustamento, variaes ou corruptelas. Subsistem, por isso, diversas interrogaes: trata-se de textos com origem local? ou trata-se de textos que na sua origem foram escritos e depois foram introduzidos nos processos de transmisso oral? ou trata-se de textos introduzidos a partir do portugus ou do castelhano e, a seguir, de algum modo adaptados e modificados pela transmisso oral adaptando-os lngua e s referncias culturais locais? O facto de muitos deles estarem disseminadas em regies exteriores a Miranda indica quase seguramente que a maior parte no autctone, mas que foram incorporados no tecido social local e nas suas prticas culturais. As mesmas melodias aparecem em outros locais, os mesmos rimances so cantados em reas que vo muito para l das Terras de Miranda. Por essa razo, se tomarmos mais uma vez como padro comparativo a msica e os rimances, constatamos que no possvel isolar a rea lingustica e cultural mirandesa das regies envolventes. Tambm por essa razo os fenmenos que a seguir sero tomados como fulcro de reflexo no ho-de ser vistos como exclusivos do mirands ou das suas tradies. Ainda hoje podemos escutar cantigas e contos que so ditos na lngua castelhana de

    origem, ou foram passados a mirands, ou j esto, por fim, em portugus. E, pese aos cultores de um purismo de lngua que, no meu entender, nunca existiu, nem raro encontrar casos de narrativas em que se sobrepem as trs lnguas. A riqueza desta circulao entre lnguas e a apropriao das suas expresses, mostra-nos a complexidade de um processo de aculturao aberto e de longa durao, criativo e enriquecedor no seu dinamismo. Tenhamos presente que esta circulao no apenas prpria do texto, tambm a encontramos na msica, ao ponto de uma mesma melodia poder acompanhar diferentes rimances, ou de um mesmo rimance poder ser acompanhado, em locais diferentes, por diferentes melodias.

    As narrativas populares assumem formas estruturais muito diversas e caracterizam-se por a sua transmisso ser exclusivamente oral (quando a escrita intervm estamos em outro nvel, tecnicamente letrado, da transmisso da narrativa), o que implica o apagamento de qualquer noo de autor. Desse simples facto resulta de imediato a possibilidade da sua apropriao colectiva e simblica muito mais profunda. Nas narrativas das Terras de Miranda, estamos no nvel mais nu da oralidade, pois aquilo que narrado no teve qualquer contacto com a escrita nem dela provm. o acto de

    11narrar que d a forma da transmisso, porque aquele ou aquela que escuta ser depois narrador/a. . Mas, se as coisas forem vistas mais de perto, devemos reconhecer, como acontece com os rimances, que muitas das narrativas mirandesas provm de facto de uma cultura letrada, como por exemplo o caso de alguns romances do ciclo carolngio e de cavalaria, embora tenham entrado no repertrio oral em tempos recuados, perdendo assim qualquer relao com o suporte escrito.

    Como sabemos, o conceito literatura popular de contedo impreciso e difcil de 12circunscrever . Se na origem constitua uma designao depreciativa (pois se opunha literatura

    erudita), ela deve hoje ser tomada naquilo que tem de positivo: de autor incerto, caracteriza-se pela transmisso oral e pela grande variedade de formas e verses em que circula, a sua difuso e momentos de transmisso esto em geral associados a actos mais ou menos ritualizados da vida quotidiana (trabalhos especficos, seres, festas, etc.).

    Usando a voz como suporte de transmisso, estes usos da palavra colocam-nos no interior de uma tradio de transmisso que assenta na repetio, que , simultaneamente, partilha e actualizao da memria do contador e dos ouvintes. A cada narrao este mesmo ciclo que se repete e assim se arquiva em memria colectiva atravs de uma cadeia de ouvintes-narradores-ouvintes. A memria parece constituir um suporte instvel, pois a inexistncia de um padro escrito que evite as alteraes, cortes ou deturpaes, pode contribuir para uma acelerada modificao da prpria histria ou poesia narrados. Deveramos at ter presente que, devido sua irrepetibilidade, de cada vez que o romance ou o conto so narrados estamos perante uma nova edio. Mas, o que vemos que ao lado de uma certa volatilidade quanto a certos elementos narrativos secundrios, existe uma relativa estabilidade quanto ao ncleo simblico e factual das narrativas, certamente porque: 1) o carcter ritual intrnseco a cada narrao exige do contador um auto-controlo e um esforo de fidelidade histria escutada; 2) o prprio auditrio, que em geral j conhece bem o enredo narrado, exerce um controle cerrado e mesmo uma censura sobre o contador quando ele no diz as coisas como elas so. A voz da narrao, no acto de tornar partilhvel e pblico o que diz, no pode fugir ao controle pblico, que quase sempre exige fidelidade narrao. Como diz Paul Zumthor, de facto o que reintegra a narrativa na tradio

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    5 Idem, vol. I, pp. 161-182; note-se que o prprio traduziu para mirands trechos de Cames (cfr. idem, vol. II pp. 79-138) e que j 16 anos antes havia publicado alguns poemas em mirands em Flores mirandezas, Livr. Clavel, Porto 1884.6 Hoje a situao inverteu-se e florescente a publicao literria em mirands, tendo ganho um decisivo flego aps a aprovao da Conveno ortogrfica da lngua mirandesa, Miranda do Douro Lisboa 1999. Esta literatura no ser aqui objecto de exemplificao.7 Como J.L. de Vasconcelos escreve nas citadas pp. 161-162 dos Estudos de philologia mirandesa e em outros locais da mesma obra, era muito reduzido ou quase inexistente o nmero de textos em mirands escrito. Para uma excepo, veja-se o entrems Sturiano e Marcolfa, composto por Francisco Garrido Brando (natural de Crcio), que o A. passou a escrito ouvindo-o do seu autor, publicando-o em Filologia mirandesa, vol. II, pp. 283-303.8 Cfr. estudo o duplamente fundamentado, na prtica da lngua e na teoria lingustica e literria, de Antnio Brbolo Alves, Palavras de identidade da Terra de Miranda. Uma abordagem estatstico-pragmtica de contos da literatura oral mirandesa, Ed. Pena Perfeita, s/l 2007. O volume inclui uma completa bibliografia onde se assinalam todos os estudos relevantes sobre o mirands e a sua literatura.9 O rimance romance pode assumir vrias formas, mesmo no aspecto musical. Como diz Anne Caufriez o romance cantado para o divertimento apresenta uma melodia de carcter silbico, enquanto que o das malhas apresenta uma melodia de caracterstica nitidamente ornamentado, mesmo melismtico, in Quelques aspects de la musique vocalique mirandaise, in J.F. Meirinhos (ed.), Estudos mirandeses, cit., pp. 141-150.10 No caso de certas narrativas as palavras so indissociveis da msica. O romance um canto a capella (sem acompanhamento musical), mas outras formas narrativas, como as contas, no so cantadas nem tm acompanhamento musical, enquanto outras, como os lhaos, so cantadas e tm acompanhamento musical.

    Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia mirandesa, cit., t. I, pp. 161-162.

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    19. Nesta obra encontram-se utilssimas anlises das literatura orais medievais, que com sentido crtico e das diferenas poderiam ser transpostas para compreender a literatura oral mirandesa no seu devir.12 Manuel Viegas Guerreiro, Littrature populaire. Autour d'un concept, in Litterature orale traditionnelle populaire. Actes du Colloque, Paris 20-22 Nov. 1986, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris 1987, pp. 11-19; verso portuguesa disponvel em http://www.attambur.com/Recolhas/literaturapopular.htm.13 Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la littrature mdivale, d. du Seuil, Paris, 1987, p. 14.

    Para os diferentes tipos de oralidade, cfr. Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la littrature mdivale, d. du Seuil, Paris, 1987, pp. 18-

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  • a voz, que suporta e transmite . H aqui, pois, uma circularidade entre a narrao oral, a memria e o contedo narrado, que delimitam o patrimnio socialmente partilhado da chamada literatura popular. Este mesmo mecanismo de controlo e partilha pode explicar a existncia de variantes das narrativas, prprias de uma certa comunidade, com extenso varivel (aldeia, regio, lngua, etc.) e que dependem da intensidade dos contactos e partilha cultural entre os seus membros. Veja-se o exemplo do romance Gerinaldo do qual Antnio Maria Mourinho referiu estarem atestadas para cima

    14de 200 verses . H variaes de expresso e de motivos narrados, mas mantm-se o esteio fulcral do romance.

    A narrao oral, o contar, pe em acto os valores e o imaginrio de uma comunidade. Pe em acto, isto : pelo dizer recupera do passado, faz presente e legitima para o futuro a memria mesma do que transmitido e partilhado no acto de dizer e ouvir. D corpo moral e aos costumes que instituem a coeso do grupo social que os partilha. Na memria convergem as representaes sociais, o que coloca o acto de contar no centro do processo de construo e evocao de uma identidade de grupo, que tem na sua base textos, quase sempre de estrutura fixa e apropriada a cada fim e contexto (da as distines entre ditos, contas, lricas, romances, histrias, oraes, esconjuros, loas/lhonas). O contar

    15e o cantar so um elemento de comunicao e celebrao arreigado nas comunidades tradicionais . S a presena em sucessivas noites de sero (antes da televiso, claro) em torno de uma fogueira, em que se faziam alguns trabalhos ou se assavam castanhas para aconchegar a conversa, provavelmente com as mulheres fiando ou fazendo meia, permite compreender que contar contos e contas uma celebrao irrepetvel, atravessada por um sentimento de partilha e identidade entre os que nele participam, instiladora de coeso de grupo. No caso da cultura mirandesa estamos perante uma comunidade de mbito geograficamente delimitado, com poucos milhares de falantes, constituda por mltiplas comunidades locais, cuja clula principal eram as famlias alargadas e onde as relaes de parentesco se estabeleciam prevalentemente no interior da prpria aldeia. Em tempos pouco recuados a actividade econmica e de subsistncia era de tipo rural, dependendo exclusivamente de trabalhos ligados explorao da terra: agricultura e pastorcia, com alguma economia de troca, sobretudo em feiras de regularidade cclica. A literatura oral, seja ou no acompanhada por melodia vocal ou instrumental, atravessa todo o crculo do tempo, tal como vivido pelas sociedades de economia rural: desde o embalar, passando pelo balbuciar de ditos infantis, os jogos e rituais de iniciao, a festa, o trabalho, a morte. A sua presena constante preenche o quotidiano e os mais importantes momentos do ano: sobretudo as sementeiras e as colheitas e as respectivas festas. A distino no parece to ntida nas narrativas, mas Anne Caufriez tem insistido que h na msica do nordeste transmontano uma clara distino entre pastores e agricultores, apesar de viverem em simbiose social: a msica ligada ao mundo animal e aquela ligada ao mundo vegetal comportam-se como duas esferas independentes que esto lado a lado sem se reencontrarem. Distingue-se de um lado a gaita-de-fole que simboliza o essencial da msica pastoril e festiva e do outro a balada ou romance, um tipo de cano ligado cultura cerealcola, embora no se exclua a coexistncia de outros tipos de msica autctone ou de

    16importao recente .Mas, no devemos esquecer que a narrao oral pode ter tambm um efeito de provocao e

    de crtica social, como parece ser o caso na cultura mirandesa das muitas cuntas de natureza moral envolvendo facetas menos edificantes de eclesisticos e que por si ss mereceriam um estudo mais

    13 minucioso, tendo at em conta que a sua expresso, quase sempre jocosa e ldica, coexiste com uma cultura com mltiplos elementos de religiosidade muito interiorizados.

    O centro de interesse aqui, so os textos orais mesmos, mas no seria desinteressante uma 17reflexo que levasse mais longe a compreenso das relaes entre as palavras e a msica , Ficam de

    fora as histrias de contedo pessoal, em cuja transmisso estamos perante fins diversos dos das narrativas que fazem parte de uma tradio multi-geracional e de grupo. Hoje parece haver tambm algo de novo no espao mirands, com o aparecimento de uma certa criao literria em mirands, mas, no desta literatura que me ocuparei a seguir, nem mesmo dos poetas populares com repertrio prprio, como o caso bem conhecido do senhor Francisco dos Reis Domingues, de

    18Paradela, cujas criaes o tornaram bem conhecido .

    I. A musicalidade da lngua

    Por uma questo de mtodo comecemos ento pelos usos mais elementares da voz, fora de qualquer narrativa ou do uso articulado da linguagem, como acontece nos dilogos com o gado. Seja a pastorear, seja a lavrar uma terra ou a acarrear o po em carro de bois, era habitual que quem acompanhava os animais com eles comunicasse constantemente, estabelecendo assim uma comunho atravs da voz com os prprios animais, embora muitas vezes as palavras que lhes eram dirigidas fossem tambm acompanhadas de algumas pedradas para o gado ou de umas bordoadas nos animais. Os aboios so constitudos por uma mescla de exortaes e interjeies que orientam o gado em rebanho ou em trabalhos mais rduos, mas que exprimem uma ntima identificao entre

    19homem/mulher e animais . Nas Terras de Miranda no tm um nome, mas as gentes designam estes 20dilogos com expresses do gnero ansinar la burra, guiar le ganado ou las bacas . H mesmo certos

    trabalhos agrcolas e pastoris que so apenas acompanhados por estes ritmos (e no por baladas ou qualquer tipo de msica), a que os editores do disco Mirandun Mirandela chamam com propriedade paisagem musical.

    Ouam-se os dois exemplos seguintes:- o primeiro foi gravado na Pvoa e a escutamos os senhores Alpio Miguel e Maria Falco em Agosto

    21de 1993 plantando beras com o burro ;- o segundo foi gravado em Montalegre, mas no diferente no ritmo, na inteno e na musicalidade dos que as pastoras e os pastores mirandeses poderiam fazer em qualquer fim de tarde quando

    22recolhiam o gado .A interaco quase ritual com os animais evidencia como a vida quotidiana e os trabalhos mais

    correntes tambm so ritmados pela musicalidade imprimida ao uso da voz e da lngua. Se h aqui um

    14

    15 Uso aqui o conceito sociedades tradicionais para identificar os grupos no seio dos quais a transmisso do conhecimento se faz privilegiando o fundo comum de valores recebidos, com desprezo das tentativas de inovao social que ocorram no seu seio, ou da importao de valores exgenos.16 A. Caufriez, Agriculture et musique: pratiques collectives, em Ethnologie du Portugal: unit et diversit. Actes du colloque. Paris, 12-13 mars 1992, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris, 1994, pp. 189-198, cfr. p. 189.

    A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, vol. I, Escola tipogrfica, Bragana 1984, p. XXIV.

    17

    e a msica (pp. 77-111) plena de ideias que poderiam estimular novas leituras das funes antropo-sociais da msica na cultura mirandesa.18 De Francisco dos Reis Domingues vejam-se, como exemplo, as 36 quadras que fez para a Festa da Gala, publicadas no jornal Planalto Mirands, n 7, de 1983, p. 5.19 Sobre os aboios ver Anne Caufriez, Le chant du pain: Trs-os-Montes, Publications du Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris 1997, p. 168. Da autora ver tambm a obra Romances du Trs-os-Montes, Publications du Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris 1997.20 Veja-se o poema do Padre Manuel Preto, Hino a la vaca, onde o chamar as vacas reaparece: A cada carro,/ Ua junta de vacas a puxar./ E, adelantre, um home u mesmo um nino/ cula guelhada vai-las a chamar// Vaquianda!, Bersos mirandeses, Edies salesianas, Miranda do Douro Vila do Conde 1993, pp. 119-125, a citao da p. 126.21 Encontra-se na faixa 10 do disco Mirandun Mirandela, Chants et musiques du Concelho de Miranda do Douro (Trs-Os-Montes, Portugal), de Daniel Loddo , ed. GEMP/La Talvera, Mmoires Sonores, em CD ou cassete, com lbum, GEMP 48, 1995. 22 Faixa 1 de Trs os Montes de Jos Alberto Sardinha, vol. 2 da srie Portugal- Razes Musicais, editado pela Portugaliae Harmonia Mundi, CD, BMG, 1996, ano em que foi distribuda aos Domingos com o Jornal de Notcias.23 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia mirandesa, ed. citada, vol. II, pp. 331 e 332.

    O grande antroplogo Claude Lvi-Strauss em Olhar, ouvir, ler, trad. T. Meneses, Ed. Asa, Porto 1995, dedica uma seco a As palavras

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  • a voz, que suporta e transmite . H aqui, pois, uma circularidade entre a narrao oral, a memria e o contedo narrado, que delimitam o patrimnio socialmente partilhado da chamada literatura popular. Este mesmo mecanismo de controlo e partilha pode explicar a existncia de variantes das narrativas, prprias de uma certa comunidade, com extenso varivel (aldeia, regio, lngua, etc.) e que dependem da intensidade dos contactos e partilha cultural entre os seus membros. Veja-se o exemplo do romance Gerinaldo do qual Antnio Maria Mourinho referiu estarem atestadas para cima

    14de 200 verses . H variaes de expresso e de motivos narrados, mas mantm-se o esteio fulcral do romance.

    A narrao oral, o contar, pe em acto os valores e o imaginrio de uma comunidade. Pe em acto, isto : pelo dizer recupera do passado, faz presente e legitima para o futuro a memria mesma do que transmitido e partilhado no acto de dizer e ouvir. D corpo moral e aos costumes que instituem a coeso do grupo social que os partilha. Na memria convergem as representaes sociais, o que coloca o acto de contar no centro do processo de construo e evocao de uma identidade de grupo, que tem na sua base textos, quase sempre de estrutura fixa e apropriada a cada fim e contexto (da as distines entre ditos, contas, lricas, romances, histrias, oraes, esconjuros, loas/lhonas). O contar

    15e o cantar so um elemento de comunicao e celebrao arreigado nas comunidades tradicionais . S a presena em sucessivas noites de sero (antes da televiso, claro) em torno de uma fogueira, em que se faziam alguns trabalhos ou se assavam castanhas para aconchegar a conversa, provavelmente com as mulheres fiando ou fazendo meia, permite compreender que contar contos e contas uma celebrao irrepetvel, atravessada por um sentimento de partilha e identidade entre os que nele participam, instiladora de coeso de grupo. No caso da cultura mirandesa estamos perante uma comunidade de mbito geograficamente delimitado, com poucos milhares de falantes, constituda por mltiplas comunidades locais, cuja clula principal eram as famlias alargadas e onde as relaes de parentesco se estabeleciam prevalentemente no interior da prpria aldeia. Em tempos pouco recuados a actividade econmica e de subsistncia era de tipo rural, dependendo exclusivamente de trabalhos ligados explorao da terra: agricultura e pastorcia, com alguma economia de troca, sobretudo em feiras de regularidade cclica. A literatura oral, seja ou no acompanhada por melodia vocal ou instrumental, atravessa todo o crculo do tempo, tal como vivido pelas sociedades de economia rural: desde o embalar, passando pelo balbuciar de ditos infantis, os jogos e rituais de iniciao, a festa, o trabalho, a morte. A sua presena constante preenche o quotidiano e os mais importantes momentos do ano: sobretudo as sementeiras e as colheitas e as respectivas festas. A distino no parece to ntida nas narrativas, mas Anne Caufriez tem insistido que h na msica do nordeste transmontano uma clara distino entre pastores e agricultores, apesar de viverem em simbiose social: a msica ligada ao mundo animal e aquela ligada ao mundo vegetal comportam-se como duas esferas independentes que esto lado a lado sem se reencontrarem. Distingue-se de um lado a gaita-de-fole que simboliza o essencial da msica pastoril e festiva e do outro a balada ou romance, um tipo de cano ligado cultura cerealcola, embora no se exclua a coexistncia de outros tipos de msica autctone ou de

    16importao recente .Mas, no devemos esquecer que a narrao oral pode ter tambm um efeito de provocao e

    de crtica social, como parece ser o caso na cultura mirandesa das muitas cuntas de natureza moral envolvendo facetas menos edificantes de eclesisticos e que por si ss mereceriam um estudo mais

    13 minucioso, tendo at em conta que a sua expresso, quase sempre jocosa e ldica, coexiste com uma cultura com mltiplos elementos de religiosidade muito interiorizados.

    O centro de interesse aqui, so os textos orais mesmos, mas no seria desinteressante uma 17reflexo que levasse mais longe a compreenso das relaes entre as palavras e a msica , Ficam de

    fora as histrias de contedo pessoal, em cuja transmisso estamos perante fins diversos dos das narrativas que fazem parte de uma tradio multi-geracional e de grupo. Hoje parece haver tambm algo de novo no espao mirands, com o aparecimento de uma certa criao literria em mirands, mas, no desta literatura que me ocuparei a seguir, nem mesmo dos poetas populares com repertrio prprio, como o caso bem conhecido do senhor Francisco dos Reis Domingues, de

    18Paradela, cujas criaes o tornaram bem conhecido .

    I. A musicalidade da lngua

    Por uma questo de mtodo comecemos ento pelos usos mais elementares da voz, fora de qualquer narrativa ou do uso articulado da linguagem, como acontece nos dilogos com o gado. Seja a pastorear, seja a lavrar uma terra ou a acarrear o po em carro de bois, era habitual que quem acompanhava os animais com eles comunicasse constantemente, estabelecendo assim uma comunho atravs da voz com os prprios animais, embora muitas vezes as palavras que lhes eram dirigidas fossem tambm acompanhadas de algumas pedradas para o gado ou de umas bordoadas nos animais. Os aboios so constitudos por uma mescla de exortaes e interjeies que orientam o gado em rebanho ou em trabalhos mais rduos, mas que exprimem uma ntima identificao entre

    19homem/mulher e animais . Nas Terras de Miranda no tm um nome, mas as gentes designam estes 20dilogos com expresses do gnero ansinar la burra, guiar le ganado ou las bacas . H mesmo certos

    trabalhos agrcolas e pastoris que so apenas acompanhados por estes ritmos (e no por baladas ou qualquer tipo de msica), a que os editores do disco Mirandun Mirandela chamam com propriedade paisagem musical.

    Ouam-se os dois exemplos seguintes:- o primeiro foi gravado na Pvoa e a escutamos os senhores Alpio Miguel e Maria Falco em Agosto

    21de 1993 plantando beras com o burro ;- o segundo foi gravado em Montalegre, mas no diferente no ritmo, na inteno e na musicalidade dos que as pastoras e os pastores mirandeses poderiam fazer em qualquer fim de tarde quando

    22recolhiam o gado .A interaco quase ritual com os animais evidencia como a vida quotidiana e os trabalhos mais

    correntes tambm so ritmados pela musicalidade imprimida ao uso da voz e da lngua. Se h aqui um

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    15 Uso aqui o conceito sociedades tradicionais para identificar os grupos no seio dos quais a transmisso do conhecimento se faz privilegiando o fundo comum de valores recebidos, com desprezo das tentativas de inovao social que ocorram no seu seio, ou da importao de valores exgenos.16 A. Caufriez, Agriculture et musique: pratiques collectives, em Ethnologie du Portugal: unit et diversit. Actes du colloque. Paris, 12-13 mars 1992, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris, 1994, pp. 189-198, cfr. p. 189.

    A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, vol. I, Escola tipogrfica, Bragana 1984, p. XXIV.

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    e a msica (pp. 77-111) plena de ideias que poderiam estimular novas leituras das funes antropo-sociais da msica na cultura mirandesa.18 De Francisco dos Reis Domingues vejam-se, como exemplo, as 36 quadras que fez para a Festa da Gala, publicadas no jornal Planalto Mirands, n 7, de 1983, p. 5.19 Sobre os aboios ver Anne Caufriez, Le chant du pain: Trs-os-Montes, Publications du Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris 1997, p. 168. Da autora ver tambm a obra Romances du Trs-os-Montes, Publications du Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris 1997.20 Veja-se o poema do Padre Manuel Preto, Hino a la vaca, onde o chamar as vacas reaparece: A cada carro,/ Ua junta de vacas a puxar./ E, adelantre, um home u mesmo um nino/ cula guelhada vai-las a chamar// Vaquianda!, Bersos mirandeses, Edies salesianas, Miranda do Douro Vila do Conde 1993, pp. 119-125, a citao da p. 126.21 Encontra-se na faixa 10 do disco Mirandun Mirandela, Chants et musiques du Concelho de Miranda do Douro (Trs-Os-Montes, Portugal), de Daniel Loddo , ed. GEMP/La Talvera, Mmoires Sonores, em CD ou cassete, com lbum, GEMP 48, 1995. 22 Faixa 1 de Trs os Montes de Jos Alberto Sardinha, vol. 2 da srie Portugal- Razes Musicais, editado pela Portugaliae Harmonia Mundi, CD, BMG, 1996, ano em que foi distribuda aos Domingos com o Jornal de Notcias.23 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia mirandesa, ed. citada, vol. II, pp. 331 e 332.

    O grande antroplogo Claude Lvi-Strauss em Olhar, ouvir, ler, trad. T. Meneses, Ed. Asa, Porto 1995, dedica uma seco a As palavras

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  • uso espontneo e prprio de cada pastor ou lavrador, a grande difuso dos aboios, pode explicar-se pelas caractersticas do pastoreio e do trabalho agrcola dependente de animais, mas a existncias de certos sons que se repetem em zonas contguas, mostra que mesmo eles provm desse fundo colectivo de significados dados ao uso dos sons, que so espontaneamente compreendidos e partilhados pela comunidade e que fora dela ou das actividades onde so utilizados so praticamente destitudos de sentido (a no ser quando podem ter uma funo insultuosa ou cmica, como nos casos em que so dirigidas a pessoas).

    Estes usos da voz poderiam servir para uma anlise da musicalidade intrnseca da lngua mirandesa, que, suspeito, poder ser maior que a do portugus, embora menor que a de outras lnguas, como a do portugus do Brasil.

    Tambm os rifes possuem uma musicalidade prpria, que em geral facilita a sua memorizao e os torna adequadas a ser usados em qualquer contexto, por exemplo para rematar uma discusso ou sentenciar um qualquer caso. A rima e o ritmo do unidade ao rifo e tornam-no

    23significante por si mesmo. Trs exemplos publicados por Leite de Vasconcelos h 100 anos :

    Las forfalhicas de le cerrupa la tarde bunas su Pan i binoAnda camino Malo hia quien mal de mi diMalo hia quien mu l chega a l nari

    Os exemplos seriam inmeros e mesmo quando o rifo provm do portugus ou do 24castelhano, a adaptao que lhe dada mantm-lhe o ritmo e a musicalidade . Nos destrava-lnguas,

    nos jogos infantis, nas adivinhas e outros trocadilhos de palavras em mirands, a assonncia e a 25musicalidade das palavras tm um lugar central .

    A autonomia significante da voz tambm usada pelos contadores de histrias, sobretudo quando elas incluem vrios personagens (sejam humanos ou animais), construindo vozes diferentes para cada um. um uso da voz e da lngua com certa inteno ilustrativa e retrica, para bem cativar quem escuta as narrativas, mas tambm para caracterizar a psicologia dos personagens da narrativa, da dependendo o uso de tons graves ou agudos, com agressividade ou doura, etc. A voz tambm interpreta e parte do jogo narrativo.

    Um bom exemplo da sonoridade da lngua, associado ao trabalho especfico da ceifa e onde est presente um centro controle bem humorado sobre os que se ausentam momentaneamente do

    26trabalho na estaia de segadores , est bem ilustrado nos dsticos de Sada da Stalha que se diziam em 27Caarelhos :

    - Falta um segador!- E aonde foi?- A cagar para nun segar!- Oh! Maldito segador! Na boca traiga o que foi a pr.- Caga reilhas.- Caga arados.- Caga pontas dos diabos.- Ele inda num bem?- Nem bir!- Nem o diabo o c trar.Depois, quando ns bamos bir o segador outra beze pra stalha enquanto e no, endireitbamos os quadris e comebamos:- Chi, Chi, Chi, Chi,

    II. A voz como imitao da msica

    A voz ela tambm tomada como msica ou imitao de instrumento musical. Nestes casos ainda mais rduo saber se a msica que acompanha as palavras, ou se so as palavras que acompanham a msica. A voz parece viver sempre na tenso de querer ser a prpria msica.

    Como observou a etnomusicloga Anne Caufriez, os romances silbicos:

    apresentam-se como uma sequncia de versos entrecortada por frases meldicas curtas. No interior desta categoria de canto silbico encontram-se variantes formais que so determinadas pela funo prtica do canto. Por exemplo, o romance Frei Joo, que interpretado durante a fiao do linho, apresenta uma frmula de refro regular sem significao particular que no seja o simples jogo de palavras ("douna douna don don doina"). Alm disso, o recorte musical de certos cantos silbicos pode ser constitudo pela

    28repetio de cada hemistquio, como o caso no belo romance Dona Filomena.

    Em algumas melodias h sons voclicos que acentuam a repetitividade de um refro, estabelecem a continuidade entre as estrofes e introduzem outro nvel de musicalidade que no

    29possvel com as restantes palavras, como acontece no longo rimance Eu casei-me c pastor em cujas 29 estrofes (de 5 versos cada) os dois ltimos versos repetem um refro assonante para provvel imitao de ritmo musical.

    24

    recolha, com 3980 espcimes, encontra-se na obra publicada aps a redaco deste estudo: Antnio Maria Mourinho, Ditos dezideiros: refranes i provrbios mirandeses, ourganizaon, antradas i notas de Antnio Brbolo Alves, CEAMM, Miranda de l Douro 2007.25 Vejam-se diversos exemplos em A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, pp. 7-18 e em A.M. Mourinho, Ditos dezideiros, cit., pp. 109-115.26 Para uma anlise etnomusicolgica das baladas das ceifas e romances, ver as obras de Anne Caufriez citadas na nota 14.27 Faixa 10 do disco Cantigas da Segada Caarelhos Vimioso, vozes de Jos Garcia e Adlia Garcia, recolha de Domingos Raposo/Mrio Correia, Sons da Terra, Cantos Tradicionais 3, CD, STMC 9905, 1999.

    grande o acervo de ditos e provrbios na cultura mirandesa, em boa parte partilhados com o portugus e o castelhano. Uma extensa

    28

    145.29 A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesa, ed. cit., pp. 177-183, recolhido na Quinta do Cordeiro em 1965; o rimance XIII do artigo do mesmo autor: Contribuio para o Rimanceiro Mirands, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 21 (1969) 243-266, cfr. pp. 258-263; refira-se que o autor no se apercebe que este rimance tem uma verso mais curta e sem dilogo (mas com o desenlace mais explcito) e que est publicado no mesmo artigo com o nmero II (p. 245) sob outra forma literria.

    A. Caufriez, Quelques aspects de la musique vocalique mirandaise, em Estudos mirandeses: balano e orientaes, ed. citada, pp. 144-

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  • uso espontneo e prprio de cada pastor ou lavrador, a grande difuso dos aboios, pode explicar-se pelas caractersticas do pastoreio e do trabalho agrcola dependente de animais, mas a existncias de certos sons que se repetem em zonas contguas, mostra que mesmo eles provm desse fundo colectivo de significados dados ao uso dos sons, que so espontaneamente compreendidos e partilhados pela comunidade e que fora dela ou das actividades onde so utilizados so praticamente destitudos de sentido (a no ser quando podem ter uma funo insultuosa ou cmica, como nos casos em que so dirigidas a pessoas).

    Estes usos da voz poderiam servir para uma anlise da musicalidade intrnseca da lngua mirandesa, que, suspeito, poder ser maior que a do portugus, embora menor que a de outras lnguas, como a do portugus do Brasil.

    Tambm os rifes possuem uma musicalidade prpria, que em geral facilita a sua memorizao e os torna adequadas a ser usados em qualquer contexto, por exemplo para rematar uma discusso ou sentenciar um qualquer caso. A rima e o ritmo do unidade ao rifo e tornam-no

    23significante por si mesmo. Trs exemplos publicados por Leite de Vasconcelos h 100 anos :

    Las forfalhicas de le cerrupa la tarde bunas su Pan i binoAnda camino Malo hia quien mal de mi diMalo hia quien mu l chega a l nari

    Os exemplos seriam inmeros e mesmo quando o rifo provm do portugus ou do 24castelhano, a adaptao que lhe dada mantm-lhe o ritmo e a musicalidade . Nos destrava-lnguas,

    nos jogos infantis, nas adivinhas e outros trocadilhos de palavras em mirands, a assonncia e a 25musicalidade das palavras tm um lugar central .

    A autonomia significante da voz tambm usada pelos contadores de histrias, sobretudo quando elas incluem vrios personagens (sejam humanos ou animais), construindo vozes diferentes para cada um. um uso da voz e da lngua com certa inteno ilustrativa e retrica, para bem cativar quem escuta as narrativas, mas tambm para caracterizar a psicologia dos personagens da narrativa, da dependendo o uso de tons graves ou agudos, com agressividade ou doura, etc. A voz tambm interpreta e parte do jogo narrativo.

    Um bom exemplo da sonoridade da lngua, associado ao trabalho especfico da ceifa e onde est presente um centro controle bem humorado sobre os que se ausentam momentaneamente do

    26trabalho na estaia de segadores , est bem ilustrado nos dsticos de Sada da Stalha que se diziam em 27Caarelhos :

    - Falta um segador!- E aonde foi?- A cagar para nun segar!- Oh! Maldito segador! Na boca traiga o que foi a pr.- Caga reilhas.- Caga arados.- Caga pontas dos diabos.- Ele inda num bem?- Nem bir!- Nem o diabo o c trar.Depois, quando ns bamos bir o segador outra beze pra stalha enquanto e no, endireitbamos os quadris e comebamos:- Chi, Chi, Chi, Chi,

    II. A voz como imitao da msica

    A voz ela tambm tomada como msica ou imitao de instrumento musical. Nestes casos ainda mais rduo saber se a msica que acompanha as palavras, ou se so as palavras que acompanham a msica. A voz parece viver sempre na tenso de querer ser a prpria msica.

    Como observou a etnomusicloga Anne Caufriez, os romances silbicos:

    apresentam-se como uma sequncia de versos entrecortada por frases meldicas curtas. No interior desta categoria de canto silbico encontram-se variantes formais que so determinadas pela funo prtica do canto. Por exemplo, o romance Frei Joo, que interpretado durante a fiao do linho, apresenta uma frmula de refro regular sem significao particular que no seja o simples jogo de palavras ("douna douna don don doina"). Alm disso, o recorte musical de certos cantos silbicos pode ser constitudo pela

    28repetio de cada hemistquio, como o caso no belo romance Dona Filomena.

    Em algumas melodias h sons voclicos que acentuam a repetitividade de um refro, estabelecem a continuidade entre as estrofes e introduzem outro nvel de musicalidade que no

    29possvel com as restantes palavras, como acontece no longo rimance Eu casei-me c pastor em cujas 29 estrofes (de 5 versos cada) os dois ltimos versos repetem um refro assonante para provvel imitao de ritmo musical.

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    recolha, com 3980 espcimes, encontra-se na obra publicada aps a redaco deste estudo: Antnio Maria Mourinho, Ditos dezideiros: refranes i provrbios mirandeses, ourganizaon, antradas i notas de Antnio Brbolo Alves, CEAMM, Miranda de l Douro 2007.25 Vejam-se diversos exemplos em A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, pp. 7-18 e em A.M. Mourinho, Ditos dezideiros, cit., pp. 109-115.26 Para uma anlise etnomusicolgica das baladas das ceifas e romances, ver as obras de Anne Caufriez citadas na nota 14.27 Faixa 10 do disco Cantigas da Segada Caarelhos Vimioso, vozes de Jos Garcia e Adlia Garcia, recolha de Domingos Raposo/Mrio Correia, Sons da Terra, Cantos Tradicionais 3, CD, STMC 9905, 1999.

    grande o acervo de ditos e provrbios na cultura mirandesa, em boa parte partilhados com o portugus e o castelhano. Uma extensa

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    145.29 A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesa, ed. cit., pp. 177-183, recolhido na Quinta do Cordeiro em 1965; o rimance XIII do artigo do mesmo autor: Contribuio para o Rimanceiro Mirands, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 21 (1969) 243-266, cfr. pp. 258-263; refira-se que o autor no se apercebe que este rimance tem uma verso mais curta e sem dilogo (mas com o desenlace mais explcito) e que est publicado no mesmo artigo com o nmero II (p. 245) sob outra forma literria.

    A. Caufriez, Quelques aspects de la musique vocalique mirandaise, em Estudos mirandeses: balano e orientaes, ed. citada, pp. 144-

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  • Eu casei-me cun pastor, Eu casei-me cun pastor,Pensando de ser sinhora,Oh terrin de rin de rinaOh terrin de rin de r

    Soutor die pela manhana,Soutor die pela manhana,Pega no cerrn pastora,Oh terrin de rin de rinaOh terrin de rin de r

    30() .

    como reala o autor da recolha, este rimance era cantado por pastores no campo ao som de flauta tal 31 32como o Chinglindin e a Lhoba parda .

    Na extensa Cantiga da Segada interpretada por Domingos Esteves Afonso (442), esto presentes interpolaes de voz onde o refro feito com assonncias de imitao de instrumentos (Oh

    33tini, oh tini, oh tini, tion) . O mesmo acontece no De rus, trus, trus / De rs trs, trs, refro 34de La pastorica , ou no R-R (cantiga de embalar de sentido ambguo, porque evoca a infidelidade),

    que segundo alguns puramente mirandesa e que deve remontar ao sculo XVII, em virtude do 35ritmo que a anima .

    Nestas letras poticas, cantadas em ritmo indolente, incorporado o uso de termos no 36significantes que mimetizam sons e instrumentos . Num Canto dos reis, como em diversas outras

    melodias, existe um refro com palavras destitudas de sentido, mas que imitam sons musicais e de certa forma substituem o acompanhamento instrumental:

    Partiram do Ouriente, c cTrs reis que ban adorarZun tun tun, florin tin tin, ai li, ai l

    37() .

    30

    faixa 6 o lado B do LP Terra de Miranda (Portugal), vol. 6 da coleco Musica Tradicional, do Centro de Estudios de Folklore de Zamora, Saga, LP, SED-5052, 1987.31 O Chinglindin tambm possui um verso, vrias vezes repetido, deste gnero: cun el chin dilin glin dina; pode ouvir-se uma verso na faixa 9 o lado A do LP Terra de Miranda (Portugal), citado atrs.32 Cfr. p. 183 de A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, onde a pp. 174-177 e 147-148, se podem ler os dois ltimos rimances citados. A Lhoba parda de origem espanhola e no contm os tipos de versos que aqui se esto a analisar.33 Faixa 1 do disco Domingos Esteves Afonso - Paranjolas dAfonso, Palaoulo, Miranda de l Douro, recolha de Domingos Raposo, Sons da Terra, Cantos e Msicas Tradicionais 3, CD, STMC 0011, 2000.34 Faixa 2 de Cantos de la nussa tirra Malhadas, recolha de Mrio Correia e Domingos Raposo, Sons da Terra, Cantos Tradicionais 4, CD, STMC 0010, 2000.35 Cfr. A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, pp. 219-220.36 Sobre o refro na balada estrfica e a presena destes versos com sons silbicos, que em certas execues no eram proferidos, o que denotar uma funo social no explcita, ver A. Caufriez, Le chant du pain, ed. cit., pp. 224-226.37 Os reis, por Francisco Pires de Malhadas, faixa 31 do j citado CD Mirandum, Mirandela38 Gravado por Anne Caufriez em 1978, faixa 1 do CD Mirandum, Mirandela

    Oiam-se verses deste rimance na faixa 11 de Modas de Des igreijas, Cantos tradicionais 1, Sons da terra, 1998, STMC 9802; e na

    So de facto inmeras as melodias onde alguns sons no verbais so produzidos com a voz. Estes sons, repetidos a cada estrofe, parecem recriaes do som de instrumentos que, na sua ausncia, vincam o ritmo e, pela repetio, estruturam a histria cantada/narrada.Mais notvel ainda o uso da prpria voz como treino para o uso da gaita de fole, como ouvimos o senhor Paulino Pereira Joo, da Pvoa, que ao seguir o seu gado fazia os apoios da gaita e imitava o ritmo da alvorada. Os sons so impossveis de transcrever e nada pode substituir a audio do prprio

    38ou da sua gravao em disco . O mesmo senhor Paulino conta que tambm ensaiava o passa calhos, que tocado seguindo os pauliteiros no pedido da esmola para as festas, imitando o gesto de tocar a

    39gaita e usando a voz como instrumento .Neste mesmo colquio (cfr. acima nota 1) Domingos Raposo, na sua comunicao, recitou

    uma bem humorada pardia escutada numa aldeia, em que o narrador/gaiteiro com a voz imita ele prprio a caixa e o bombo, servindo-lhe esta acumulao para disfarar no enredo e nos sons imitados bvias aluses sexuais.

    A voz torna-se ela prprio jogo e toma o lugar do instrumento musical para fazer msica. Arte do som e simulacro.

    III. A msica como elemento literrio

    A importncia do lugar da msica e de actos e sentimentos que lhe esto associados so bem exemplificados nos rifes, poesias, rimances, ou contas onde ela prpria ocupa lugar central.

    H um instrumento de sopro muito ignorado e que era motivo de grande brincadeira e at competio entre as crianas no fim do inverno e incio da primavera, quando o centeio j est crescido mas ainda verde. So as pipas, feitas, por volta de Maro, com o caule do centeio ainda verde, cuidadosamente espipado e que, depois de cortado a com uns 5 a 10 centmetros de comprimento ligeiramente esmagado na ponta mais tenra com um toque na testa de quem a faz. Como nem sempre toca, o rapaz vai dizendo ao experiment-la e antes de ouvir se assobia ou no:

    Toca, toca, Meu silbote;Chigando a casa

    40Dou-te un doce !

    palavras encantatrias, repetidas e ditas para exprimir o desejo de fazer a pipa tocar.A msica tambm aparece referida em narrativas mais longas, sejam contos, rimances ou

    cantigas, embora no se encontrem muitas onde a msica seja tema central. Geralmente essas referncias so discretas, apesar de possurem uma funo simblica ou metafrica bem evidente.

    Fica fora desta abordagem uma anlise do papel da msica nos colquios/teatro, onde certamente se encontraro mais elementos sobre a vivncia da msica e a sua funo festiva, com a

    41particularidade de ocorrer num contexto encenado e exclusivamente ritualizado .

    39

    40 A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, p. 9.Faixa 17 do CD Mirandum, Mirandela

    64|65

  • Eu casei-me cun pastor, Eu casei-me cun pastor,Pensando de ser sinhora,Oh terrin de rin de rinaOh terrin de rin de r

    Soutor die pela manhana,Soutor die pela manhana,Pega no cerrn pastora,Oh terrin de rin de rinaOh terrin de rin de r

    30() .

    como reala o autor da recolha, este rimance era cantado por pastores no campo ao som de flauta tal 31 32como o Chinglindin e a Lhoba parda .

    Na extensa Cantiga da Segada interpretada por Domingos Esteves Afonso (442), esto presentes interpolaes de voz onde o refro feito com assonncias de imitao de instrumentos (Oh

    33tini, oh tini, oh tini, tion) . O mesmo acontece no De rus, trus, trus / De rs trs, trs, refro 34de La pastorica , ou no R-R (cantiga de embalar de sentido ambguo, porque evoca a infidelidade),

    que segundo alguns puramente mirandesa e que deve remontar ao sculo XVII, em virtude do 35ritmo que a anima .

    Nestas letras poticas, cantadas em ritmo indolente, incorporado o uso de termos no 36significantes que mimetizam sons e instrumentos . Num Canto dos reis, como em diversas outras

    melodias, existe um refro com palavras destitudas de sentido, mas que imitam sons musicais e de certa forma substituem o acompanhamento instrumental:

    Partiram do Ouriente, c cTrs reis que ban adorarZun tun tun, florin tin tin, ai li, ai l

    37() .

    30

    faixa 6 o lado B do LP Terra de Miranda (Portugal), vol. 6 da coleco Musica Tradicional, do Centro de Estudios de Folklore de Zamora, Saga, LP, SED-5052, 1987.31 O Chinglindin tambm possui um verso, vrias vezes repetido, deste gnero: cun el chin dilin glin dina; pode ouvir-se uma verso na faixa 9 o lado A do LP Terra de Miranda (Portugal), citado atrs.32 Cfr. p. 183 de A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, onde a pp. 174-177 e 147-148, se podem ler os dois ltimos rimances citados. A Lhoba parda de origem espanhola e no contm os tipos de versos que aqui se esto a analisar.33 Faixa 1 do disco Domingos Esteves Afonso - Paranjolas dAfonso, Palaoulo, Miranda de l Douro, recolha de Domingos Raposo, Sons da Terra, Cantos e Msicas Tradicionais 3, CD, STMC 0011, 2000.34 Faixa 2 de Cantos de la nussa tirra Malhadas, recolha de Mrio Correia e Domingos Raposo, Sons da Terra, Cantos Tradicionais 4, CD, STMC 0010, 2000.35 Cfr. A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, pp. 219-220.36 Sobre o refro na balada estrfica e a presena destes versos com sons silbicos, que em certas execues no eram proferidos, o que denotar uma funo social no explcita, ver A. Caufriez, Le chant du pain, ed. cit., pp. 224-226.37 Os reis, por Francisco Pires de Malhadas, faixa 31 do j citado CD Mirandum, Mirandela38 Gravado por Anne Caufriez em 1978, faixa 1 do CD Mirandum, Mirandela

    Oiam-se verses deste rimance na faixa 11 de Modas de Des igreijas, Cantos tradicionais 1, Sons da terra, 1998, STMC 9802; e na

    So de facto inmeras as melodias onde alguns sons no verbais so produzidos com a voz. Estes sons, repetidos a cada estrofe, parecem recriaes do som de instrumentos que, na sua ausncia, vincam o ritmo e, pela repetio, estruturam a histria cantada/narrada.Mais notvel ainda o uso da prpria voz como treino para o uso da gaita de fole, como ouvimos o senhor Paulino Pereira Joo, da Pvoa, que ao seguir o seu gado fazia os apoios da gaita e imitava o ritmo da alvorada. Os sons so impossveis de transcrever e nada pode substituir a audio do prprio

    38ou da sua gravao em disco . O mesmo senhor Paulino conta que tambm ensaiava o passa calhos, que tocado seguindo os pauliteiros no pedido da esmola para as festas, imitando o gesto de tocar a

    39gaita e usando a voz como instrumento .Neste mesmo colquio (cfr. acima nota 1) Domingos Raposo, na sua comunicao, recitou

    uma bem humorada pardia escutada numa aldeia, em que o narrador/gaiteiro com a voz imita ele prprio a caixa e o bombo, servindo-lhe esta acumulao para disfarar no enredo e nos sons imitados bvias aluses sexuais.

    A voz torna-se ela prprio jogo e toma o lugar do instrumento musical para fazer msica. Arte do som e simulacro.

    III. A msica como elemento literrio

    A importncia do lugar da msica e de actos e sentimentos que lhe esto associados so bem exemplificados nos rifes, poesias, rimances, ou contas onde ela prpria ocupa lugar central.

    H um instrumento de sopro muito ignorado e que era motivo de grande brincadeira e at competio entre as crianas no fim do inverno e incio da primavera, quando o centeio j est crescido mas ainda verde. So as pipas, feitas, por volta de Maro, com o caule do centeio ainda verde, cuidadosamente espipado e que, depois de cortado a com uns 5 a 10 centmetros de comprimento ligeiramente esmagado na ponta mais tenra com um toque na testa de quem a faz. Como nem sempre toca, o rapaz vai dizendo ao experiment-la e antes de ouvir se assobia ou no:

    Toca, toca, Meu silbote;Chigando a casa

    40Dou-te un doce !

    palavras encantatrias, repetidas e ditas para exprimir o desejo de fazer a pipa tocar.A msica tambm aparece referida em narrativas mais longas, sejam contos, rimances ou

    cantigas, embora no se encontrem muitas onde a msica seja tema central. Geralmente essas referncias so discretas, apesar de possurem uma funo simblica ou metafrica bem evidente.

    Fica fora desta abordagem uma anlise do papel da msica nos colquios/teatro, onde certamente se encontraro mais elementos sobre a vivncia da msica e a sua funo festiva, com a

    41particularidade de ocorrer num contexto encenado e exclusivamente ritualizado .

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    40 A.M. Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, p. 9.Faixa 17 do CD Mirandum, Mirandela

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  • O conto popular um gnero muito apreciado, de que Antnio Maria Mourinho recenseou nas Terras de Miranda 50 espcimes de 4 tipos diferentes, tendo publicado uma seleco de 8 contos

    42onde a msica ou a dana ocupam um lugar apenas marginal . H, na cunta , uma verso local da flauta mgica cuja msica encantatria obriga a danar todos os que a escutam, menos o

    43tocador . Numa outra narrativa, recentemente publicada, a msica constitui o elo de ligao entre o humano e o maravilhoso, evocando a funo sagrada do som cantado. Trata-se da Lhinda de l po de Miranda de l Douro, onde uma pastora cantaba remanses dancantar para aproveitar o tempo, cantares esses que acabam por atrair um rapaz. Depois de a pastora desaparecer ao descer s profundezas do poo do castelo, ele lembra-se de cantar las mismas modas que la moa cantaba no fundo do poo onde ela tinha desaparecido, o que tem por efeito fazer a rapariga reaparecer o que causar o desaparecimento do prprio rapaz.

    Lhinda de l poo (Miranda de l Douro)Era ua be ua rapazica que guardaba cabras. Questumaba ir cun eilhas pa las arribas

    de l riu Douro. Para aprobeitar l timpo filaba manilhos de lhana i cantaba remanses d'ancantar.Nun die selumbriu, ancuntrando-se mui triste, sentou-se nua peinha. Al lhebantar

    dou de frente cun un rapa de sous dezuito anhos tamien sentado na mesma peinha.Chena de mido, quijo fugir mas l moo atrabe de alguns sinales sossegou-la i, assi,

    cuntinuou a tomar cunta de las chibicas.Deilhi por lantre, la nina cuntinuou a ir pa las arribas cun la sue cabriada i l moo para

    junto deilha, acumpanhando-la simpre at riba, junto de la cidade. Mas, nun dado die, acunteciu, alhi al fondo de la rue de la Costanilha, que l rapa se picou nun crabo i ampeou a burrelhar mui alto i a falar spanholo. La nina anchiu-se de mido i scapou-se a bun fugir. L rapa fui atrs deilha. Passou la purta de la traion, antrou no lhargo de l castilho i zaparciu pul buraco duas scaleiras qu'eilhi habie.

    Ls dies i semanas ban passando i la cabreira nunca mais apareciu cun las sues cabras nas arribas. L rapa acomodado, resolbiu benir a ber se la ancuntraba. Chebou a la borda de las scaleiras i abeixou-las ua a ua. S stancou quando abistou auga, auga i nada mais que un poo. Triste i pensatibo, lhembrou-se de cantar, naquel lhugar, las mesmas modas que la moa cantaba quando guardaba las cabras i cuntemplaba l riu.

    An seguida, cumo que nun relhmpago, la rapaza aparece i el cul susto deixou-se chimpar para drento de l poo.

    La cabreira chorou, chorou mas l rapa nunca mais apareciu.Di-se hoije, inda, que ls sous ais son oubidos, nas nuites de lhuna chena, na outra

    punta de la cidade, onde hai outro poo, atrs de la S. Dende dezir-se, tamien, que estes dous 44poos stan ligados un cul outro.

    Temos aqui uma narrativa, muito complexa nos sentidos e smbolos que a constituem (e cuja anlise minuciosa ultrapassaria o que aqui se pretende ilustrar), em que o canto expresso de

    L sobrino i l tiu

    encantamento e que atrai e faz aparecer a quem se deseja, enquanto o choro, uma espcie de canto triste, j no consegue fazer reaparecer o rapaz. margem, chame-se a ateno para a interessante adaptao local da lenda, onde so explcitas as referncias a diversos pontos da geografia da cidade de Miranda.

    A oposio que surge no final da lenda entre canto e choro, reaparece sob outras formas quando evocada a msica e a dana que, muitas vezes, so sentidas como o contraponto social e colectivo da tristeza ou da infelicidade individuais. Veja-se o incio do rimance D. Fernando (que, diga-se, no exclusivo das terras de Miranda):

    Todos cantam, todos danamDesde que chega a PrimaveraE s tu, D. Fernando,Que to triste andas na guerraOu te lembras pai ou meOu gente da tua terra

    45(, etc.) .

    Canto e dana exprimem aqui uma vivncia colectiva (todos) de regozijo pela renovao da vida trazida pela Primavera, oposta experincia individual (D. Fernando) do sofrimento e tristeza, com duas causas possveis: a guerra, ou a lembrana de algum ausente. O contraponto entre a alegria e a tristeza fornecem a chave para a narrao das desventuras de amor de D. Fernando.

    No h rimances (que boa parte das ocasies so cantados e no apenas narrados) onde a msica, o canto ou a dana sejam tpicos centrais, mas as referncias msica so comuns servindo

    46para acentuar certos sentimentos , ou para descrever o clima psicolgico em que os factos narrados se 47desenrolam .

    48A msica e dana so componentes indispensveis da festa , e a alegria que naquelas se expressa esconjura ou faz esquecer a infelicidade. Esta experincia encontramo-la transposta para diversos rimances ou letras. Aparecendo em negativo, as referncias musicais pem a nu a dureza da prpria vida e apresentam-se como fuga a agruras dispensveis. Outras vezes, alm de contraponto penria, a msica apresentada como substituto psicolgico do prprio alimento, sendo mesmo comuns as referncias msica em relao com a comida e o comer, o que denota um certo carcter precrio e de subsistncia difcil da vida quotidiana. Por exemplo, no rifo

    49Madalena tripa chena / Por beilar perdiu la cena ,

    ou o tocar de guitarra de Silvana que leva o pai a interpel-la (n 334), etc.47 Ver exemplos em Serrano Baptista, apresentao e notas de Antnio Maria Mourinho, Miranda do Douro 1987: Heilena no canta porque o pai morreu e o marido est na guerra e assim ser objecto de tentao (p. 21); o pastor que baila e canta por ver o prespio (p. 48), etc.48 No este o lugar para o fazer, mas seria tambm muito apropriada uma reflexo sobre as relaes entre a festa, a dana, a msica e o canto; algumas ideias orientadoras poderiam encontrar-se em Roger Caillois, O homem e o sagrado, trad. G.C. Franco, Ed. 70, Lisboa 1979, cap. 5.49 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia, ed. cit., vol. II, p. 331.50 Serrano Baptista, Cancioneiro Tradicional Mirands, ed. cit., p. 36.51 A. Caufriez, Le chant du pain, ed. cit., pp. 224 e 226; na p. 306 classifica-a como cano narrativa entre os romances ambguos.

    Cancioneiro Tradicional Mirands,

    52

    53 A. Caufriez, Romances du Trs-os-Montes, Paris 1997, pp. 48-49; a ortografia foi aqui adaptada ao mirands, uma vez que, aparentemente, foi cantada por Maria Helena Ventura de Duas Igrejas em portugus; o primeiro verso da ltima quadra erradamente transcrito como Viva la gaita; a Autora tambm no inclui a ltima estrofe completa. Outras verses, incompletas, encontram-se em A.M. Mourinho, A poesia popular mirandesa, cantada ou falada na linguagem quotidiana, em Brigantia, 1, fasc. 1 (1981) pp. 5-15, cfr. p. 11 e em Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, p. 357 e pp. 565-566 onde est a verso mais completa, mas onde me parece que falta o verso: Y ou lhiebo la manta.54 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia, ed. citada, vol. II, pp. 330-331. Parece-me curiosa a designao da gaita de fole como gaita galhega, talvez porque nesta poca a gaita era aqui de introduo recente e era assim associada a uma cultura estranha?55 Editado como Lenga lenga da mulher que viu o gaiteiro, em A.M. Mourinho, Cancioneiro tradicional, cit., p. 195 (manteve-se a diferente grafia).56 Em A.M. Mourinho, Cancioneiro tradicional, cit., pp. 561-2.57 Em A. M. Mourinho, A poesia popular mirandesa, cantada ou falada na linguagem quotidiana, em Brigantia, 1, fasc. 1 (1981) pp. 5-1, cfr. p. 15, tambm em Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, cit.

    A. Caufriez, Le chant du pain, ed. cit. p. 175.

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  • O conto popular um gnero muito apreciado, de que Antnio Maria Mourinho recenseou nas Terras de Miranda 50 espcimes de 4 tipos diferentes, tendo publicado uma seleco de 8 contos

    42onde a msica ou a dana ocupam um lugar apenas marginal . H, na cunta , uma verso local da flauta mgica cuja msica encantatria obriga a danar todos os que a escutam, menos o

    43tocador . Numa outra narrativa, recentemente publicada, a msica constitui o elo de ligao entre o humano e o maravilhoso, evocando a funo sagrada do som cantado. Trata-se da Lhinda de l po de Miranda de l Douro, onde uma pastora cantaba remanses dancantar para aproveitar o tempo, cantares esses que acabam por atrair um rapaz. Depois de a pastora desaparecer ao descer s profundezas do poo do castelo, ele lembra-se de cantar las mismas modas que la moa cantaba no fundo do poo onde ela tinha desaparecido, o que tem por efeito fazer a rapariga reaparecer o que causar o desaparecimento do prprio rapaz.

    Lhinda de l poo (Miranda de l Douro)Era ua be ua rapazica que guardaba cabras. Questumaba ir cun eilhas pa las arribas

    de l riu Douro. Para aprobeitar l timpo filaba manilhos de lhana i cantaba remanses d'ancantar.Nun die selumbriu, ancuntrando-se mui triste, sentou-se nua peinha. Al lhebantar

    dou de frente cun un rapa de sous dezuito anhos tamien sentado na mesma peinha.Chena de mido, quijo fugir mas l moo atrabe de alguns sinales sossegou-la i, assi,

    cuntinuou a tomar cunta de las chibicas.Deilhi por lantre, la nina cuntinuou a ir pa las arribas cun la sue cabriada i l moo para

    junto deilha, acumpanhando-la simpre at riba, junto de la cidade. Mas, nun dado die, acunteciu, alhi al fondo de la rue de la Costanilha, que l rapa se picou nun crabo i ampeou a burrelhar mui alto i a falar spanholo. La nina anchiu-se de mido i scapou-se a bun fugir. L rapa fui atrs deilha. Passou la purta de la traion, antrou no lhargo de l castilho i zaparciu pul buraco duas scaleiras qu'eilhi habie.

    Ls dies i semanas ban passando i la cabreira nunca mais apareciu cun las sues cabras nas arribas. L rapa acomodado, resolbiu benir a ber se la ancuntraba. Chebou a la borda de las scaleiras i abeixou-las ua a ua. S stancou quando abistou auga, auga i nada mais que un poo. Triste i pensatibo, lhembrou-se de cantar, naquel lhugar, las mesmas modas que la moa cantaba quando guardaba las cabras i cuntemplaba l riu.

    An seguida, cumo que nun relhmpago, la rapaza aparece i el cul susto deixou-se chimpar para drento de l poo.

    La cabreira chorou, chorou mas l rapa nunca mais apareciu.Di-se hoije, inda, que ls sous ais son oubidos, nas nuites de lhuna chena, na outra

    punta de la cidade, onde hai outro poo, atrs de la S. Dende dezir-se, tamien, que estes dous 44poos stan ligados un cul outro.

    Temos aqui uma narrativa, muito complexa nos sentidos e smbolos que a constituem (e cuja anlise minuciosa ultrapassaria o que aqui se pretende ilustrar), em que o canto expresso de

    L sobrino i l tiu

    encantamento e que atrai e faz aparecer a quem se deseja, enquanto o choro, uma espcie de canto triste, j no consegue fazer reaparecer o rapaz. margem, chame-se a ateno para a interessante adaptao local da lenda, onde so explcitas as referncias a diversos pontos da geografia da cidade de Miranda.

    A oposio que surge no final da lenda entre canto e choro, reaparece sob outras formas quando evocada a msica e a dana que, muitas vezes, so sentidas como o contraponto social e colectivo da tristeza ou da infelicidade individuais. Veja-se o incio do rimance D. Fernando (que, diga-se, no exclusivo das terras de Miranda):

    Todos cantam, todos danamDesde que chega a PrimaveraE s tu, D. Fernando,Que to triste andas na guerraOu te lembras pai ou meOu gente da tua terra

    45(, etc.) .

    Canto e dana exprimem aqui uma vivncia colectiva (todos) de regozijo pela renovao da vida trazida pela Primavera, oposta experincia individual (D. Fernando) do sofrimento e tristeza, com duas causas possveis: a guerra, ou a lembrana de algum ausente. O contraponto entre a alegria e a tristeza fornecem a chave para a narrao das desventuras de amor de D. Fernando.

    No h rimances (que boa parte das ocasies so cantados e no apenas narrados) onde a msica, o canto ou a dana sejam tpicos centrais, mas as referncias msica so comuns servindo

    46para acentuar certos sentimentos , ou para descrever o clima psicolgico em que os factos narrados se 47desenrolam .

    48A msica e dana so componentes indispensveis da festa , e a alegria que naquelas se expressa esconjura ou faz esquecer a infelicidade. Esta experincia encontramo-la transposta para diversos rimances ou letras. Aparecendo em negativo, as referncias musicais pem a nu a dureza da prpria vida e apresentam-se como fuga a agruras dispensveis. Outras vezes, alm de contraponto penria, a msica apresentada como substituto psicolgico do prprio alimento, sendo mesmo comuns as referncias msica em relao com a comida e o comer, o que denota um certo carcter precrio e de subsistncia difcil da vida quotidiana. Por exemplo, no rifo

    49Madalena tripa chena / Por beilar perdiu la cena ,

    ou o tocar de guitarra de Silvana que leva o pai a interpel-la (n 334), etc.47 Ver exemplos em Serrano Baptista, apresentao e notas de Antnio Maria Mourinho, Miranda do Douro 1987: Heilena no canta porque o pai morreu e o marido est na guerra e assim ser objecto de tentao (p. 21); o pastor que baila e canta por ver o prespio (p. 48), etc.48 No este o lugar para o fazer, mas seria tambm muito apropriada uma reflexo sobre as relaes entre a festa, a dana, a msica e o canto; algumas ideias orientadoras poderiam encontrar-se em Roger Caillois, O homem e o sagrado, trad. G.C. Franco, Ed. 70, Lisboa 1979, cap. 5.49 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia, ed. cit., vol. II, p. 331.50 Serrano Baptista, Cancioneiro Tradicional Mirands, ed. cit., p. 36.51 A. Caufriez, Le chant du pain, ed. cit., pp. 224 e 226; na p. 306 classifica-a como cano narrativa entre os romances ambguos.

    Cancioneiro Tradicional Mirands,

    52

    53 A. Caufriez, Romances du Trs-os-Montes, Paris 1997, pp. 48-49; a ortografia foi aqui adaptada ao mirands, uma vez que, aparentemente, foi cantada por Maria Helena Ventura de Duas Igrejas em portugus; o primeiro verso da ltima quadra erradamente transcrito como Viva la gaita; a Autora tambm no inclui a ltima estrofe completa. Outras verses, incompletas, encontram-se em A.M. Mourinho, A poesia popular mirandesa, cantada ou falada na linguagem quotidiana, em Brigantia, 1, fasc. 1 (1981) pp. 5-15, cfr. p. 11 e em Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, ed. citada, p. 357 e pp. 565-566 onde est a verso mais completa, mas onde me parece que falta o verso: Y ou lhiebo la manta.54 Jos Leite de Vasconcellos, Estudos de philologia, ed. citada, vol. II, pp. 330-331. Parece-me curiosa a designao da gaita de fole como gaita galhega, talvez porque nesta poca a gaita era aqui de introduo recente e era assim associada a uma cultura estranha?55 Editado como Lenga lenga da mulher que viu o gaiteiro, em A.M. Mourinho, Cancioneiro tradicional, cit., p. 195 (manteve-se a diferente grafia).56 Em A.M. Mourinho, Cancioneiro tradicional, cit., pp. 561-2.57 Em A. M. Mourinho, A poesia popular mirandesa, cantada ou falada na linguagem quotidiana, em Brigantia, 1, fasc. 1 (1981) pp. 5-1, cfr. p. 15, tambm em Cancioneiro Tradicional e Danas Populares Mirandesas, cit.

    A. Caufriez, Le chant du pain, ed. cit. p. 175.

    66|67

  • encerra-se a crtica de quem exagera o tempo que dedica dana. Notem-se tambm os casos, em que o cantar apela e justifica o receber iguarias, como o momento do cantar dos reis .

    Um bom exemplo da trade alimento, penria, msica o Mira-me Miguel, que no encontrei em nenhum disco, mas que a Brigada Victor Jara gravou em tempos. Esta balada estrfica

    51com refro repetido era em Duas Igrejas ritmada pelo pandeiro e danada junto fonte para festejar o regresso do pastor aldeia. Na sua execuo alterna o canto em grupo e em dilogo entre homem e mulher

    Mira-me Miguelcum stou de bonitica,Saia de burel, camisica d estopica.Tengo trs meninas,num tengo quei les darPongo-me a cantar,e a ansin-las a beilarMira-me MiguelBeila, Pedro, beila,- Senhora quiero pan !- Baila mais um pouco,que lhougo te l daranMira-me MiguelTengo trs oubeilhas,mais ua cordeira,Quiero-me casare num acho quien me queiraMira-me MiguelBi benir la gaital gaiteiro nanQue pena tengo n l miu coraan Bamos a la camaBamos a dormir-Y ou lhiebo la manta-Y ou lhiebo al candilMira-me Miguel

    53

    50

    58 Na faixa 43 de Mirandum, Mirandela, CD j citado, cantado por Flora Augusta Garcia, de Ifanes.

    Na cantiga A gaita, recolhida por Leite de Vasconcelos, sai bem realada a relao entre a msica e a dana (que se ope ao trabalho do corpo no fiar da l), entre a dana e o alimento, entre a dana e o enamoramento pela msica:

    Bi benir la gaitaAl cimo de l lhugarPousei la mie rocaI pusma beilarI tanto beileiA la porta de l fornoTanto beileiQue me dorum un bolhoTanto beileiCula gaita gallega,Tanto beilei,

    54Que me namorei deilha

    Estes versos, que foram recolhidos em Duas Igrejas no final do sculo XIX, eram ditos s crianas quando comeam a andar. Mas, ou a edio de Leite de Vasconcelos est incompleta (talvez por pudor devido ao desenlace que se ver duas estrofes abaixo), ou ento a letra ter mesmo evoludo nos anos seguintes, com contaminao de uma quadra do Mira-me Miguel (cujos versos parecem aqui um pouco descontextualizados) e a integrao de uma ltima quadra que traz as consequncias do enamoramento pelo gaiteiro, dando tambm um segundo sentido ao beilar cula gaita galhega. So estas as duas quadras finais:

    ()Bi benir la gaitaI l gaiteiro nuOh que pena tengo No miu corau Beila l beilaricoBeila-lo bien beiladoDe hoije en nobe meses

    55Hemos de faz l baptizado!

    68|69

  • encerra-se a crtica de quem exagera o tempo que dedica dana. Notem-se tambm os casos, em que o cantar apela e justifica o receber iguarias, como o momento do cantar dos reis .

    Um bom exemplo da trade alimento, penria, msica o Mira-me Miguel, que no encontrei em nenhum disco, mas que a Brigada Victor Jara gravou em tempos. Esta balada estrfica

    51com refro repetido era em Duas Igrejas ritmada pelo pandeiro e danada junto fonte para festejar o regresso do pastor aldeia. Na sua execuo alterna o canto em grupo e em dilogo entre homem e mulher

    Mira-me Miguelcum stou de bonitica,Saia de burel, camisica d estopica.Tengo trs meninas,num tengo quei les darPongo-me a cantar,e a ansin-las a beilarMira-me MiguelBeila, Pedro, beila,- Senhora quiero pan !- Baila mais um pouco,que lhougo te l daranMira-me MiguelTengo trs oubeilhas,mais ua cordeira,Quiero-me casare num acho quien me queiraMira-me MiguelBi benir la gaital gaiteiro nanQue pena tengo n l miu coraan Bamos a la camaBamos a dormir-Y ou lhiebo la manta-Y ou lhiebo al candilMira-me Miguel

    53

    50

    58 Na faixa 43 de Mirandum, Mirandela, CD j citado, cantado por Flora Augusta Garcia, de Ifanes.

    Na cantiga A gaita, recolhida por Leite de Vasconcelos, sai bem realada a relao entre a msica e a dana (que se ope ao trabalho do corpo no fiar da l), entre a dana e o alimento, entre a dana e o enamoramento pela msica:

    Bi benir la gaitaAl cimo de l lhugarPousei la mie rocaI pusma beilarI tanto beileiA la porta de l fornoTanto beileiQue me dorum un bolhoTanto beileiCula gaita gallega,Tanto beilei,

    54Que me namorei deilha

    Estes versos, que foram recolhidos em Duas Igrejas no final do sculo XIX, eram ditos s crianas quando comeam a andar. Mas, ou a edio de Leite de Vasconcelos est incompleta (talvez por pudor devido ao desenlace que se ver duas estrofes abaixo), ou ento a letra ter mesmo evoludo nos anos seguintes, com contaminao de uma quadra do Mira-me Miguel (cujos versos parecem aqui um pouco descontextualizados) e a integrao de uma ltima quadra que traz as consequncias do enamoramento pelo gaiteiro, dando tambm um segundo sentido ao beilar cula gaita galhega. So estas as duas quadras finais:

    ()Bi benir la gaitaI l gaiteiro nuOh que pena tengo No miu corau Beila l beilaricoBeila-lo bien beiladoDe hoije en nobe meses

    55Hemos de faz l baptizado!

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  • J na jota Este pandeiro mostra-se a continuidade entre o berrear da ovelha e o som que o pandeiro faz:

    ()Este pandeiro qyou toco,Dua amarra doubeilha;Inda onte comu irba,Hoije toca que berreia

    56() de facto uma bela evocao do sentimento de continuidade entre a vida animal e o som de um instrumento, com o som musical a ser apresentado como uma continuao do som animal.

    Uma quadra colocada em voz feminina, algo provocadora e com segundo sentido, evoca a msica e a dana como fazendo parte do desafio lanado aos acompanhantes de festejo:

    Sei cantar e sei beilarSei tocar la pandeiretaQuien quejir beilar comigo

    57Traia musica completa

    A dana cantada L pingacho tem um ritmo e uma melodia mais alegres que o habitual e o seu tema precisamente o bem bailar:

    Pur beilar l PingachoMe dan un rialMas num me dan nadaSe lo beilar mal

    Beila-lo, beila-lo picorcitoBeila-lo que te quiero un pouquitoBeila-loBeila-lo de lhadoDe loutr ancustadoTamien delantreiratamien de traseiraOra si te quiro morenaOra si te quiro salada

    Pur beilar l pingachoMe dan un testanSe los beilares bien

    58You sei quales san

    interessante cantiga cujo tema a prpria dana de que a cantiga fala. A msica e a dana funcionam como metfora da alegria, e servem para sublimar a ausncia de algo (o/a amado/a, o alimento, etc.), ou para celebrar a abundncia (de felicidade, de alegria, da colheita, etc.).

    Em todos estes ltimos exemplos vemos uma estreita ligao entre a msica e a dana. E, afinal, a dana no seno apropriao corporal do som musical. Com a dana uma outra linguagem, gestual e de exibio ou partilha visual e tctil do corpo, que se vem acrescentar j rica conjugao das palavras e dos sons musicais. A dana traz o corpo que faltava ao par voz/msica, dando ao olhar aquilo que as palavras e a msica do ao ouvido. Celebrao dos sentidos que completa o percurso iniciado com a voz como esteio de sociabilidade por exteriorizar em palavras da memria colectiva.

    Algumas concluses

    Todos os exemplos aqui trazidos tm como caracterstica comum a repetio (repetio em certas tarefas, em certos momentos quotidianos, em certas actividades, em certas pocas do ano). Na densidade semntica dos contos e ditos, das msicas, dos cantos e das danas, a pluralidade de sentidos apenas vivida pelos que partilham a sua repetio, a qual celebra uma comunidade de sentimentos e atitudes.

    A presena de referncias msica e dana em todo o tipo de expresses verbais e literrias mirandesas permite compreender algo da funo social destas na vida quotidiana desta comunidade. Os exemplos usados so quase todos narrativas codificadas e de tradio, que aparentando espontaneidade de facto evocam no ouvinte, logo que proferidas, um conhecimento partilhado por todos o que, assim, restabelece a identidade de grupo no prprio acto de contar-tocar/ouvir. Mas, as mesmas referncias no deixariam de ocorrer em ditos espontneos e pessoais que a memria colectiva no conservou. A narrao e a msica contribuem de facto para a formao e reforo de uma identidade social que, no caso do mirands, o uso de uma lngua sentida como prpria ainda mais refora.

    A msica e os instrumentos surgem muito mais vezes referidos nas letras associadas msica pastoril e menos nas narrativas cantadas ligadas s actividades agrcolas (como por exemplo nas cuntas de l serano ou nos rimances da segada). constante a associao metafrica da msica alegria, festa, ao encantamento. Por alegrar, sobretudo se prolongada no frenesim da dana, a msica passa a smbolo da alegria e da fruio da alegria. Mereceriam ainda um detido exame as associaes, por vezes subtis outras vezes explcitas, entre a msica e o acto sexual, ou entre os instrumentos musicais e a sexualidade, o que faz subentender e aponta para o papel inicitico do lugar da msica em certos ritos e festas, ou pelo menos a existncia de uma rede de subentendidos e aluses, por vezes bem humoradas, que ligam entre si a msica e a sexualidade.

    Em geral, nas referncias literrias a msica aparece associada dana e em contextos sociais bem determinados. A msica est no s directamente associada a um seu uso encantatrio ou mgico, mas sobretudo ao acto de danar. A dana faz o corpo partilhar das palavras e dos sons que o ouvido escuta e que o esprito estrutura em experincia individual mas, quando a msica passa para os movimentos do corpo, torna-se tambm experincia sensorial de partilha e festa.

    e sugestes

    Se muitas das narrativas orais mirandesas se perderam para sempre, porque j no h quem as conte e nunca foram gravadas ou passadas a escrito, ainda estamos a tempo de reunir os milhares de registos escritos, sonoros, flmicos, videogrficos ou mesmo fotogrficos realizados nas ltimas dcadas. Disperso em arquivos individuais e institucionais h muito material que interessaria

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  • J na jota Este pandeiro mostra-se a continuidade entre o berrear da ovelha e o som que o pandeiro faz:

    ()Este pandeiro qyou toco,Dua amarra doubeilha;Inda onte comu irba,Hoije toca que berreia

    56() de facto uma bela evocao do sentimento de continuidade entre a vida animal e o som de um instrumento, com o som musical a ser apresentado como uma continuao do som animal.

    Uma quadra colocada em voz feminina, algo provocadora e com segundo sentido, evoca a msica e a dana como fazendo parte do desafio lanado aos acompanhantes de festejo:

    Sei cantar e sei beilarSei tocar la pandeiretaQuien quejir beilar comigo

    57Traia musica completa

    A dana cantada L pingacho tem um ritmo e uma melodia mais alegres que o habitual e o seu tema precisamente o bem bailar:

    Pur beilar l PingachoMe dan un rialMas num me dan nadaSe lo beilar mal

    Beila-lo, beila-lo picorcitoBeila-lo que te quiero un pouquitoBeila-loBeila-lo de lhadoDe loutr ancustadoTamien delantreiratamien de traseiraOra si te quiro morenaOra si te quiro salada

    Pur beilar l pingachoMe dan un testanSe los beilares bien

    58You sei quales san

    interessante cantiga cujo tema a prpria dana de que a cantiga fala. A msica e a dana funcionam como metfora da alegria, e servem para sublimar a ausncia de algo (o/a amado/a, o alimento, etc.), ou para celebrar a abundncia (de felicidade, de alegria, da colheita, etc.).

    Em todos estes ltimos exemplos vemos uma estreita ligao entre a msica e a dana. E, afinal, a dana no seno apropriao corporal do som musical. Com a dana uma outra linguagem, gestual e de exibio ou partilha visual e tctil do corpo, que se vem acrescentar j rica conjugao das palavras e dos sons musicais. A dana traz o corpo que faltava ao par voz/msica, dando ao olhar aquilo que as palavras e a msica do ao ouvido. Celebrao dos sentidos que completa o percurso iniciado com a voz como esteio de sociabilidade por exteriorizar em palavras da memria colectiva.

    Algumas concluses

    Todos os exemplos aqui trazidos tm como caracterstica comum a repetio (repetio em certas tarefas, em certos momentos quotidianos, em certas actividades, em certas pocas do ano). Na densidade semntica d