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anorama P MÚSICA Porto Alegre, quinta-feira, 25 de outubro de 2012 - Nº 85 Caroline da Silva e Mariana Amaro, especial JC O palhaço sobe ao palco. Ao seu lado, estão a bailarina e uma tru- pe de bufões com instrumentos e caras pintadas. Mas, em vez de brinca- deiras e risadas, ele recita: “Ser indi- ferente ao ser diferente... é sem senso! Agoniza um povo estatisticamente, seu tempo!” A letra crítica de Esse mundo não vale o mundo, do Teatro Mágico, ganha vida na voz de Fernando Anitelli, o homem fantasiado e líder do grupo. No espetáculo, que mistura encena- ção, poesia e música, o protesto contra a guerra, a sociedade e as misérias do ser humano estão tão presentes quanto a aparência lúdica de seus intérpretes. É um cenário completamente diferente do fenômeno brasileiro que movimentou universitários, músicos e as maiores emissoras de televisão dos anos 1960, os festivais da canção. Com ternos e cabelos comportados, cantores e compositores como Chico Buarque e Edu Lobo transmitiram para tevês de todo o Brasil seus ideais (ainda que mais ou menos velados). Com seu cabelo bagunçado e camisa de gola rulê e blazer xadrez, o irreverente Caetano Ve- loso cantou os versos de Alegria, alegria. Apesar da distância de tempo e de estética entre os shows do Teatro Mágico e dos competidores do festival de 1967 da Record, todos desempenharam bem seus papéis no picadeiro: instigar e provocar as mentes do público. As canções de pro- testo mais diretas, feitas sob medida para os festivais, eram aclamadas com aplau- sos e gritos pelas “torcidas organizadas”, formadas por universitários. Porém, os compositores que optavam por canções mais codificadas ou não tão “revolucioná- rias” normalmente eram abafados pelas vaias. Após não conseguir executar Beto, bom de bola, Sérgio Ricardo quebrou seu violão: “Vocês venceram!”. Outros atingidos pelos gritos ululan- tes (desta vez acompanhados por ovos e vegetais) foram Gilberto Gil e os Mutan- tes, no Festival Internacional da Can- ção de 1968. O público achou que eles estavam “maculando” a verdadeira MPB ao utilizarem guitarras elétricas. Em defesa dos colegas da Tropicália, Caeta- no subiu ao palco, discursou e executou É proibido proibir. Hoje, o Teatro Mágico indaga sobre o papel da internet na Primavera Árabe e a possibilidade de seu amanhecer em Amanhã, será?. O público ovaciona o cantor que, entre letras de amor e amizade, como Ana e o mar e Você me bagunça, pronuncia palavras duras sobre a sociedade. Abrindo mão das gravadoras, Anitelli lança trabalhos pela internet, interme- diando e facilitando o acesso a suas obras. “Misturar teatro, música e poesia aproxi- ma o público. Acho que a arte tem que ser acessível. Por isso utilizamos todos esses conceitos no Teatro Mágico, nas letras e na distribuição”, diz um dos criadores do movimento Música para baixar. Porém, não é só na distribuição que Anitelli se distancia da nova geração da MPB. “Cada artista faz a música que lhe toca. Muitos evitam abordar o assunto, talvez por não terem interesse ou por achar que seu público não é para aquela mensagem. Os sentimentos são importantes, mas as composições sobre a sociedade são essenciais, ontem, hoje e amanhã.” A cantora Karina Buhr tem uma opi- nião alinhada a Anitelli. “Não acho que canções tenham que, necessariamente, abordar a política. Você pode falar só de amor e da sua vida. No entanto, pode participar ativamente, emitir opiniões políticas que farão refletir sobre muitos assuntos. E isso, sim, considero impor- tantíssimo”, diz. Karina também é conhecida pela performance artística no palco, além das composições que misturam temas pes- soais, guerra e morte, como The war’s dancing floor e Soldat. Porém, diferente- mente dos cantores que começaram suas carreiras nos grandes festivais durante a ditadura, a intérprete e Anitelli vivem em uma realidade em que a perseguição ideológica e a ameaça do pau-de-arara não os assombra. O gaúcho Raul Ellwanger, conhecido por ter se exilado durante a ditadura, comenta que “houve um momento em que se fazia qualquer coisa que falasse da ditadura, da miséria, da opressão, e era bom. Era bom, mas não ficou. Era utilitário no momento.” Sobre o contexto atual, ele acha que cada um deve criar o que quiser. “Se eu tivesse o poder de exigir alguma coisa, gostaria que se fizesse música bonita, linda, comovedo- ra, poética; comprometida com causas sociais, ou não”, opina. Indagada se não haveria espaço para a canção de protesto e, por isso, elas saíram da preferência do público, Karina discorda: “Existe muito espaço”. Ela ainda afirma que “tem gente boa e ruim também fazendo as chamadas can- ções de protesto no mundo todo. Mas o mundo hoje é totalmente diferente do de 1960, e também mudou completamente a maneira de se protestar”. Para a cantora, atualmente as pessoas encontram novas formas de se conectar e ter força. Karina avalia que não foi só o amor que se banalizou nas canções em busca de dinheiro. “Tudo vai se transformando em clichê, inclusive as canções de protesto. Logo, o que fica de bom nessa selva é a liberdade de se esco- lher o que se quer. Pulando os obstáculos sempre”, profere. Leia mais na página 3 A voz que manda no picadeiro VINÍCIUS CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC Fernando Anitelli é um representante da canção de protesto atual

A voz que manda no picadeiro

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Matéria sobre a canção de protesto nos dias atuais e no RS para o Panorama do Jornal do Comércio.

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Page 1: A voz que manda no picadeiro

anoramaPMÚSICA

Porto Alegre, quinta-feira, 25 de outubro de 2012 - Nº 85

Caroline da Silva e Mariana Amaro, especial JC

O palhaço sobe ao palco. Ao seu lado, estão a bailarina e uma tru-pe de bufões com instrumentos e

caras pintadas. Mas, em vez de brinca-deiras e risadas, ele recita: “Ser indi-ferente ao ser diferente... é sem senso! Agoniza um povo estatisticamente, seu tempo!” A letra crítica de Esse mundo não vale o mundo, do Teatro Mágico, ganha vida na voz de Fernando Anitelli, o homem fantasiado e líder do grupo.

No espetáculo, que mistura encena-ção, poesia e música, o protesto contra a guerra, a sociedade e as misérias do ser humano estão tão presentes quanto a aparência lúdica de seus intérpretes. É um cenário completamente diferente do fenômeno brasileiro que movimentou universitários, músicos e as maiores emissoras de televisão dos anos 1960, os festivais da canção.

Com ternos e cabelos comportados, cantores e compositores como Chico Buarque e Edu Lobo transmitiram para tevês de todo o Brasil seus ideais (ainda que mais ou menos velados). Com seu cabelo bagunçado e camisa de gola rulê e blazer xadrez, o irreverente Caetano Ve-loso cantou os versos de Alegria, alegria.

Apesar da distância de tempo e de estética entre os shows do Teatro Mágico e dos competidores do festival de 1967 da

Record, todos desempenharam bem seus papéis no picadeiro: instigar e provocar as mentes do público. As canções de pro-testo mais diretas, feitas sob medida para os festivais, eram aclamadas com aplau-sos e gritos pelas “torcidas organizadas”, formadas por universitários. Porém, os compositores que optavam por canções mais codificadas ou não tão “revolucioná-rias” normalmente eram abafados pelas vaias. Após não conseguir executar Beto, bom de bola, Sérgio Ricardo quebrou seu violão: “Vocês venceram!”.

Outros atingidos pelos gritos ululan-tes (desta vez acompanhados por ovos e vegetais) foram Gilberto Gil e os Mutan-tes, no Festival Internacional da Can-ção de 1968. O público achou que eles estavam “maculando” a verdadeira MPB ao utilizarem guitarras elétricas. Em defesa dos colegas da Tropicália, Caeta-no subiu ao palco, discursou e executou É proibido proibir.

Hoje, o Teatro Mágico indaga sobre o papel da internet na Primavera Árabe e a possibilidade de seu amanhecer em Amanhã, será?. O público ovaciona o cantor que, entre letras de amor e amizade, como Ana e o mar e Você me bagunça, pronuncia palavras duras sobre a sociedade.

Abrindo mão das gravadoras, Anitelli lança trabalhos pela internet, interme-diando e facilitando o acesso a suas obras. “Misturar teatro, música e poesia aproxi-

ma o público. Acho que a arte tem que ser acessível. Por isso utilizamos todos esses conceitos no Teatro Mágico, nas letras e na distribuição”, diz um dos criadores do movimento Música para baixar.

Porém, não é só na distribuição que Anitelli se distancia da nova geração da MPB. “Cada artista faz a música que lhe toca. Muitos evitam abordar o assunto, talvez por não terem interesse ou por achar que seu público não é para aquela mensagem. Os sentimentos são importantes, mas as composições sobre a sociedade são essenciais, ontem, hoje e amanhã.”

A cantora Karina Buhr tem uma opi-nião alinhada a Anitelli. “Não acho que canções tenham que, necessariamente, abordar a política. Você pode falar só de amor e da sua vida. No entanto, pode participar ativamente, emitir opiniões políticas que farão refletir sobre muitos assuntos. E isso, sim, considero impor-tantíssimo”, diz.

Karina também é conhecida pela performance artística no palco, além das composições que misturam temas pes-soais, guerra e morte, como The war’s dancing floor e Soldat. Porém, diferente-mente dos cantores que começaram suas carreiras nos grandes festivais durante a ditadura, a intérprete e Anitelli vivem em uma realidade em que a perseguição ideológica e a ameaça do pau-de-arara não os assombra.

O gaúcho Raul Ellwanger, conhecido por ter se exilado durante a ditadura, comenta que “houve um momento em que se fazia qualquer coisa que falasse da ditadura, da miséria, da opressão, e era bom. Era bom, mas não ficou. Era utilitário no momento.” Sobre o contexto atual, ele acha que cada um deve criar o que quiser. “Se eu tivesse o poder de exigir alguma coisa, gostaria que se fizesse música bonita, linda, comovedo-ra, poética; comprometida com causas sociais, ou não”, opina.

Indagada se não haveria espaço para a canção de protesto e, por isso, elas saíram da preferência do público, Karina discorda: “Existe muito espaço”. Ela ainda afirma que “tem gente boa e ruim também fazendo as chamadas can-ções de protesto no mundo todo. Mas o mundo hoje é totalmente diferente do de 1960, e também mudou completamente a maneira de se protestar”.

Para a cantora, atualmente as pessoas encontram novas formas de se conectar e ter força. Karina avalia que não foi só o amor que se banalizou nas canções em busca de dinheiro. “Tudo vai se transformando em clichê, inclusive as canções de protesto. Logo, o que fica de bom nessa selva é a liberdade de se esco-lher o que se quer. Pulando os obstáculos sempre”, profere.

Leia mais na página 3

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Fernando Anitelli é um representante da canção de protesto atual

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Jornal do Comércio - Porto Alegre 3MÚSICA

Quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Para o músico e publicitário Wanderlei Falkenberg, existia, sim, música de protesto no Rio Grande do Sul, como nos princi-pais centros culturais brasileiros. “As canções abordavam as temá-ticas rural e urbana (nas cidades litorâneas também se cantava muito a vida dura do pescador). O maior expoente no tema, aqui no Estado, sem dúvida foi Raul Ellwanger, e talvez seu maior destaque seja uma canção bonita e forte chamada O gaúcho.”

Falkenberg deixa claro não requerer para si bandeira de opositor: “Umas poucas músicas minhas faziam críticas sociais/políticas, embora de forma muito velada. O que mais me empolgava mesmo era a críti-ca à hipocrisia dos costumes vigentes, principalmente os tabus sexuais”. Ele relata ter

se sentido em vários momen-tos ameaçado pela repressão. “Graças aos deuses, nunca cheguei a ser atingido. Uma das coisas que nunca vou esquecer era a obrigatoriedade de portar um documento emitido pelo Dops, que me identificava como ‘compositor’! Pode? Guardo até hoje este papel idiota...”, conta, indignado. O então estudante de Arquitetura teve amigos e colegas de faculdade abordados diretamente pela repressão.

O pior baque para Raul Ellwanger ainda estava por vir. Em 1977, durante a forte violência argentina, seu pai conseguiu a sentença da prescri-ção da pena a que ele tinha sido condenado em janeiro de 1971 por “militar em grupo proibido” - sem nunca ter sido intimado ou interrogado. Em junho,

regressou à Capital, acompa-nhado da mulher grávida. Seus familiares lhe esperavam para um almoço - e também o dele-gado Pedro Seelig - na pista do aeroporto. “Ele nem olhou o do-cumento da prescrição da pena, disse que o (delegado Sérgio Paranhos) Fleury me esperava em São Paulo. Aí negociei que ia na segunda-feira, com advoga-do. Me comprometi.”

O estudante ficou preso por 15 dias, sofrendo a tortura psi-cológica de ser acordado de ma-drugada para ouvir a tortura dos comuns. “A pior ameaça era a do Fleury, porque em 1977 eles ainda mataram muita gente. Fiquei doente, tive crise renal. Ouvir a tortura te dá uma aflição, tu não respiras”, lembra, com voz embargada. (CS e MA)

Canções livres,

Quem se emocionou com as apresentações de Raul Ellwanger nos

shows de alusão aos 30 anos da Música Popular Gaúcha (MPG), aplaudindo-o de pé em plateias lotadas, talvez saiba de sua história. Os que não - sabendo que que sua carreira musical ficou interrompida por quase uma década em função da ditadura militar -, provavel-mente dobrassem o volume das palmas.

Em 1966, aos 17 anos, o compositor de Pealo de sangue ingressou no curso de Direi-to da Pucrs. “Com 18 anos, estava nas finais dos festivais, já militando”, conta o músico. Por isso, pouco tempo depois, o jovem precisou se desligar da cidade, para preservar a integridade da família, na

O hoje arquiteto Cesar Dorfman, estudante da Ufrgs na década de 1960 e composi-tor, comenta que a canção de protesto no Rio Grande do Sul antes do AI-5 (promulgado em 13 de setembro de 1968) não aparecia. “Minhas músicas não tratavam da questão social. Eu não tinha nenhu- Eu não tinha nenhu-ma pressão, embora fizesse e agisse sempre com muito tato e cuidado, pois, em 1964, fiquei quase um mês preso. A razão não tinha nada a ver com a música e, sim, com mi-nha atividade como estudante de Arquitetura.”

Ellwanger avalia que, na época dos festivais dos anos 1967, 1968 e 1969 (três da TV Gaúcha e dois da Faculdade de Arquitetura), a maioria das canções não era de protesto. “Cerca de 20% tinha protesto social, nada muito enfrentado com a ditadura, mas ‘por que tem pobre e por que tem rico?’. Havia também uma parcela que foi se acentuando em re-lação a 1969, de muita irreve-rência ligada ao Tropicalismo, já com pinceladas de Jovem Guarda e rock’n’roll”, explica o músico, militante até hoje.

Das quatro músicas que o então estudante de Direi-to colocou em festival, uma falava do bilheteiro pobre que se arrastava pela rua Dr. Flo-res. “Minhas outras canções

tinham também esses ele-mentos, mas muitas vezes não entravam nos festivais. Como ninguém gravava disco em Porto Alegre, isso se perdeu.”

Mesmo assim, foi a partir de uma canção apresentada - e televisionada - no Grêmio Náutico União lotado, que iniciou a pressão do Dops. Classificada em 2º lugar no 1º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, O gaúcho tinha um verso que chamou a atenção: Pros milicos, trago estrago, pro inimigo outro balaço. “Tem uma gravação ao vivo no Maracanãzinho, por-que ficamos entre os 12 fina-listas no Rio, em 1968. É uma música meio na linha que o Gil fazia, de misturar coisas regionais com modernas.”

Ellwanger diz que começa-ram a ligar para a sua casa com ameaças diretas, dizendo para parar de cantar. “Veio da mesma turma que tortu-rou o pessoal e matou gente depois. Em junho de 1968, eu já estava no terceiro ano de faculdade, já fazia audiência na Justiça do Trabalho e meu grupo atuava politicamente e enveredou à esquerda contes-tadora. Mas essa composição não teve censura, não havia antes do AI-5. Foi muito pior depois, cheguei a ter canção censurada em 1984 ainda”, compara.

Os anos 1960 no Estado

Perigo vestido de compositor

porém presas

metade de 1969. “Não dava mais para ficar aqui. Ainda vim em outubro, fiz uma reunião correndo dentro de um carro e tive que me mandar.” Segundo ele, havia um homem filmando na frente da casa dos pais e outros os seguiam quando eles saíam. “Inventaram a história de que eu estava morto, trou-xeram um caixão para Porto Alegre chumbado, dizendo que não poderiam abrir porque o corpo estava podre... Minha mãe teve uma sequela para o resto da vida.” Foram diversos

episódios de perseguição.Na mesma organização em

que militou Dilma Rousseff, a VAR-Palmares, Ellwanger era coordenador de grupos estu-dantis. Ele viveu três golpes de Estado: o de 1964, no Brasil, o do Chile - onde se exilou em 1970 - e na Argentina, para onde fugiu depois da queda do socialista Salvador Allende. Em Buenos Aires, a partir de 1973, presenciou momentos assusta-dores. “Antes mesmo do golpe de 1976, já tinham ocorrido 600 desaparecimentos”, ressalta.

“Pros milicos, trago estrago, pro inimigo outro balaço”Canção O gaúcho, de Raul Ellwanger (1968)

Raul Ellwanger lamenta lacuna de quase uma década

na carreira

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