a04v7s1.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    1/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007 S29

    NOTAS DE PESQUISA / RESEARCH NOTES

    Resultados preliminares de um estudoqualitativo sobre a interao entre me e

    criana desnutrida grave, no contexto dahospitalizao

    Preliminary results of a qualitative study ofinteraction between mothers and seriouslymalnourished hospitalized children

    Marisa Amorim Sampaio 1

    Ana Rodrigues Falbo 2

    Maria do Carmo Camarotti 3

    Maria Gorete Lucena de Vasconcelos 4

    1 Unidade de Neonatologia. Ps-Graduao. Instituto Materno

    Infantil Prof. Fernando Figueira-IMIP. Rua dos Coelhos, 300.

    Recife, PE, Brasi l. CEP 50.070-550. E-mai l:

    [email protected] Departamento de Pesquisa. Instituto Materno Infantil Prof.

    Fernando Figueira-IMIP, Recife, PE, Brasil3 Faculdade de Cincias Mdica. Joo Pessoa, PB, Brasil4 Departamento de Enfermagem. Universidade Federal de

    Pernambuco. Recife, PE, Brasil.

    Abstract

    Objectives: to analyze the features of the interac-

    tive psychodynamics of the interaction of mothers with

    seriously malnourished hospitalized children.

    Methods: qual itat ive research based on psycho-

    analysis, using semi-structured interviews, observations

    and video recordings. Content analysis was applied to

    representative topics.

    Resu lts: a study was conducted of eigh t pairs

    consisting of a biological mother and seriously

    malnourished child aged between six and 18 months of

    age hospitaized at the Instituto Materno Infantil Prof.Fernando Figueira-IMIP, in the city of Recife, State

    Pernambuco, Brazil. Three central topics were identi-

    fied, illus trating the process of becoming a parent, its

    importance for interactive psychodynamics, factors that

    interfere in the formation/rupture of the mother-child

    bond, its repercussions on the situation of malnutrition

    and the way it manifests itself in a context of hospita-

    lization.

    Conclusions: from the preliminary analysis, the

    mutual influence of the mother and the child on the

    construction of the interaction and the complexity of the

    functional disharmonies is reinforced, suggesting that

    extreme states of malnutrition may be associated tonutritional privation and/or errors, as well as the expe-

    riences of psycho-affective privation or excess. The

    observation of mother-child interaction at critical

    moments, such as malnutrition and hospitalization, may

    help family and health professionals to understand how

    the illness develops, and suggest the need for integrated

    health care.

    Key words Object attachment, Mother-child, rela-

    tions, Malnutrition, Child development, Psychoanlysis

    Resumo

    Objetivos: analisar elementos da psicodinmica

    interativa entre mes e crianas desnutridas graves

    hospitalizadas.

    Mtodos: mtodo qualitativo baseado no referen-

    cial psicanaltico, com entrevistas semi-estruturadas,

    observaes e filmagens. Empregou-se a anlise de

    contedo, elegendo-se temas representativos.

    Resultados: foram acompanhadas oito dades de

    crianas entre seis e 18 meses de idade e a me

    biolgica, internadas no Instituto Materno Infantil

    Prof. Fernando Figueira-IMIP, em Recife,Pernambuco. Identificaram-se trs temas, os quais

    ilustram o processo de parentalidade, sua impor-

    tncia na psicodinmica interativa da dade, fatores

    que podem ter interferido na construo/ruptura do

    vnculo, sua contribuio para a situao de desnu-

    trio e expresso na hospitalizao.

    Concluses: a partir da anlise preliminar,

    refora-se a influncia mtua de me e filho na

    construo da interao e a complexidade dos distr-

    bios funcionais, sugerindo que estados extremos de

    desnutrio podem estar associados a faltas e/ou

    falhas nut ric ion ais , bem como a vivnci as de

    pri va o ou exces so psi coa fet ivo . A observa o dainterao me-criana em momentos crticos, como

    desnutrio e hospitalizao, pode auxiliar a famlia

    e a equipe de sade na compreenso do processo de

    adoecimento e da necessidade do atendimento inte-

    gral.

    Palavras-chave Apego ao objeto, Relaes me-

    filho, Desnutrio, Desenvolvimento infantil ,

    Psicanlise

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    2/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007S30

    Sampaio, MA et al.

    Introduo

    Interao pode ser definida como a ao recprocaentre dois fenmenos,1 enfatizando a noo de reci-procidade e interdependncia, partindo-se doprincpio que a relao da criana com a me (oucuidador) se d em um processo bi-direcional,constitudo por um conjunto de fenmenosdinmicos que ocorrem ao longo do tempo entreme e criana.2,3

    O estudo da interao me-criana abrangeextensa gama de abordagens; a psicanlise trazcontribuio importante para o estudo desse fen-meno, uma vez que as interaes envolvem no scaractersticas manifestas dos envolvidos, comotambm elementos representacionais imaginrios efantasmticos.4 Por elementos representacionaisimaginrios e fantasmticos compreende-se os

    contedos psquicos inconscientes, como idealiza-es, representaes e valores transmitidos trans-geracional e intergeracionalmente, manifestadosatravs do corpo, da linguagem e dos afetos.5

    A interao est no fundamento da subjetivao;o sofrimento psquico na primeira infncia geral-mente est associado a dificuldades no processointerativo, resultando em desarmonias funcionaisnos registros de troca, ilustrados pela oralidade(incorporao pela via oral, como no caso daalimentao), invocao (relao com o outroatravs da comunicao) e especularidade (relaoatravs das trocas envolvendo o olhar).6

    Considerou-se interao como um processo noqual um conjunto de fenmenos dinmicos ocorreentre os atores envolvidos ou implicados, retrospec-tiva e prospectivamente.

    A desnutrio infantil um processo multicausalcom condicionantes biolgicos, emocionais esociais, includo o vnculo me-filho.7,8 Para acompreenso da situao nutricional da criana, aalimentao deve ser avaliada para alm das neces-sidades fisiolgicas,7,9 uma vez que os primeirosconflitos interacionais encontram expresso naesfera da alimentao.6,9,10

    Buscou-se abordar os aspectos da carncia

    (pobreza) no plano real (falta da comida, erroalimentar) e sua conseqncia biolgica (desnu-trio), investigando significados que ilustrassemcomo a falta real associada falta simblica podeter influenciado na interao da dade.

    A avaliao da interao me-criana uminstrumento importante no acompanhamento docrescimento e desenvolvimento infantil, principal-mente em situaes em que h risco e descon-tinuidade desse processo.6 A interao da dade foi

    estudada buscando-se compreender o papel desem-penhado por me e criana, focando-se no contextoda desnutrio e hospitalizao. A desnutrio foitomada como uma situao de risco no apenassocioeconmico, mas tambm emocional.

    Mtodos

    A pesquisa qualitativa apoiada na psicanlise deli-neou a abordagem terico/metodolgica do estudo,realizado no Instituto Materno Infantil Prof.Fernando Figueira-IMIP, regio metropolitanacentral do Recife, Pernambuco, entidade no-gover-namental, filantrpica, sem fins lucrativos.

    Os dados foram obtidos entre novembro de 2006e abril de 2007. Acompanharam-se oito dadesdurante a hospitalizao, atendendo ao critrio de

    saturao das respostas ou reincidncia das infor-maes.11

    A situao de internao evoca um despertar devivncias da me e da criana que podem informarsobre o passado da dade, bem como permiteobservar a importncia da interao me-crianacomo fator para a instalao e perpetuao da desnu-trio.

    A seleo foi intencional, de modo a incluirdades adequadas aquisio das informaespropostas nos objetivos do estudo. Tendo em vista arepresentatividade e a diversidade na investigao,refletindo a totalidade nas mltiplas dimenses,12,13

    buscou-se abordar o fenmeno da interao me-criana em dades com o mesmo pano de fundosocioeconmico, porm que pudessem ilustrar comriqueza as diversas nuances do processo interativo(dades com/sem dificuldades aparentes na inte-rao, dades com rede social vasta/precria, dadescom dificuldade/facilidade na aquisio de alimento,entre outros elementos).

    Foram includas crianas com desnutrio graveprimria (ndice peso/altura

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    3/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007 S31

    Interao entre me e criana desnutrida grave hospitalizada

    Priorizando aspectos do rigor tico emetodolgico da pesquisa qualitativa, como a trian-gulao, contextualizao e auditabilidade,15 foramutilizadas entrevistas individuais semi-estruturadas,observaes (filmadas ou no) e anotaes retiradasdo pronturio mdico da criana, permitindo a trian-gulao de tcnicas e teorias.

    Utilizou-se roteiro norteador, construdo combase em elementos maternos, familiares (incluindo opai), da criana e da dade, orientando a conduodas entrevistas, sem impedir o aprofundamento deaspectos relevantes ao entendimento do fenmeno.As entrevistas e observaes foram conduzidas,gravadas, filmadas e transcritas.

    Numa tentativa de aproximao entre pesquisaqualitativa e psicanlise, a "transferncia" e "contra-transferncia", fenmenos explicados pela ltima,foram considerados na relao intersubjetiva, sendo

    essa caracterstica central do mtodo qualitativo,considerada no como obstculo, mas instrumentoinevitvel e clareador.16

    Considera-se que os significados de cada meesto inseridos e se referem a um determinadocontexto, s podendo ser compreensveis medianteaproximao da realidade individual. A anlisecontextualizada e complexa desses significadosbuscou a articulao entre teoria, mtodo e criativi-dade diante do objeto, refletindo o critrio de objeti-vao.11

    Considerou-se a singularidade dos sujeitos(dade e pesquisadora), do contexto das entrevistas e

    observaes, e da transferncia desenvolvida, nopassveis de repetio em sua integralidade.A representatividade dos significados e a confia-

    bilidade interna foram buscadas atravs do debatecom as orientadoras e colaboradores da pesquisa,visando a troca de impresses e informaes. Aconfiabilidade visou tambm avaliaes crticas dasparticipantes, de modo que o produto final se aproxi-masse de um texto negociado, resultante de umprocesso interativo envolvendo tanto o entrevistadocomo o pesquisador na produo do conheci-mento.11,13,17

    Anlise dos dados

    O processo de anlise dos dados ocorreu desde otrabalho de campo, formatando a coleta e auxiliandona compreenso do papel exercido por pesquisadorae entrevistada.

    Buscou-se compreender o lugar que a crianaparecia ocupar no universo materno, bem como olugar em que a me parecia colocar a pesquisadora,caracterizando seu estilo interativo, fruto da

    repetio de experincias precoces, em funo dodiscurso materno, das demandas da criana, dapsicodinmica interativa da dade e da transfernciae contratransferncia.

    A conduo do fenmeno transferencial marca adiferena entre a tcnica como modalidade de trata-mento em psicanlise e o uso do mtodo de investi-gao orientado por essa. A transferncia no foipassvel de interpretao, no aspecto psicanaltico,uma vez que o objetivo foi compreender e notrabalhar o fenmeno transferencial, diferente datcnica interpretativa no tratamento psicanaltico,que busca pr em evidncia e modificar o curso dasmotivaes inconscientes das repeties transferen-ciais.18

    A anlise dos dados buscou a correlao doselementos obtidos no pronturio, nas entrevistas,observaes, filmagens e dirio de campo, reunidos

    em dossis.Foi utilizada a metodologia anlise de contedo,associada tcnica de anlise da enunciao, rea-lizando-se recortes transversais de falas e atos defala da dade, elegendo-se categorias ou temas repre-sentativos dos nveis de interao me-criana.19

    Ao longo do tratamento dos dados foi realizadotrabalho de descrio, anlise e interpretao, coe-xistindo e auxiliando na compreenso do materialobtido.12

    Aspectos ticos

    A pesquisa est de acordo com a Declarao deHelsinque e com as Normas da Resoluo 196/96 doConselho Nacional de tica em Pesquisa e ConselhoNacional de Sade. Obteve a aprovao prvia doComit de tica em Pesquisa em Seres Humanos doIMIP. A coleta de dados foi realizada com prviaassinatura do termo de consentimento livre e esclare-cido pelas mes das crianas participantes ou peloseu responsvel, quando a me era menor de idade.

    Nos casos em que foi observada importante difi-culdade na interao me-criana, a ponto de inter-ferir negativamente na evoluo da criana, foirecomendada consulta com a psicloga responsvel

    pela enfermaria. O mesmo procedimento foi vlidopara os casos em que a me solicitou consultapsicolgica (para si mesma e/ou criana) ou solici-tao vinda de qualquer outro membro da famlia ouda equipe hospitalar.

    Resultados

    Entre as 11 mes contatadas, trs foram excludas:

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    4/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007S32

    Sampaio, MA et al.

    uma por desistncia logo no incio da pesquisa; umaconsiderada inelegvel devido dificuldade nafluncia do discurso, e outra deixou o hospital antesda finalizao das entrevistas e filmagens.

    A idade das oito mes estudadas foi entre 15 e 47anos, e a escolaridade variou da primeira srie doensino fundamental ao segundo ano do ensino mdio.Apenas uma me era estudante e duas exerciam ativi-dade fora do lar, uma em trabalho informal e outracanavieira com carteira assinada. Uma era solteira eoutra separada, as demais mes coabitavam com omarido. Cinco dessas mulheres tinham um ou doisfilhos, enquanto as demais tinham quatro, sete equatorze filhos.

    A maioria das mes tinha condio socioe-conmica precria, caracterstica compatvel com operfil da clientela do hospital estudado. Quanto aosuporte social, apenas uma recebia o Bolsa Famlia,

    outra o Bolsa Escola, uma usufrua o benefcio doINSS de um irmo deficiente, e outra da aposenta-doria do marido. A maior parte dessas famlias noteve acesso a esses programas polticos de auxlio.

    Todas as mes referiram perodo(s) em quepassaram dificuldade financeira, algumas chegando apassar fome. Diante disso, a famlia imediata (avs etios das crianas) e vizinhos foram referidos como osresponsveis pelo apoio financeiro e emocional sdades.

    A descoberta da gravidez trouxe mudanas navida dos pais, em especial no aspecto financeiro esocial. Em cinco das oito dades o casal ou um dos

    pais mudou-se, tendo em vista a melhoria do sustentofinanceiro da famlia com a chegada do novomembro. Nos casos em que ocorreu a mudana docasal, houve a perda do apoio da famlia imediata(avs e tios da criana). Algumas mes associaram oadoecimento ou a piora da criana perda da proxim-idade geogrfica/apoio emocional da famlia e/oudiminuio da ateno dispensada pelo marido aps oincio deste novo emprego. Outro aspecto referido poralgumas dessas mes foi a necessidade de buscartrabalho fora do lar, comprometendo a ateno aofilho.

    Com relao as crianas, cinco eram do sexo

    feminino e trs do sexo masculino. Uma dessas foi abito ao longo do estudo. O tempo de internaovariou entre 10 e 40 dias. A maioria dessas dades erado interior do estado de Pernambuco e apenas uma daRegio Metropolitana do Recife. Todas haviam sidoencaminhadas de outros hospitais da rede pblica,aps insucesso no tratamento da doena, nem sempreidentificada pelo hospital de origem como desnu-trio, principalmente nos casos em que a crianaapresentava edema.

    Mudana geogrfica da famlia, sazonalidade dalavoura, desemprego, doena de um dos pais; essesaspectos parecem ter influenciado no desencadea-mento da doena, interferindo na leitura e resposta dame quanto aos sinais interacionais da criana.

    At o presente estgio da anlise dos dados foramidentificados trs temas, discriminados abaixo.

    Temtica 1. O processo de construo da

    parentalidade

    Construo da parentalidade ao longo da gestaopor meio da interao me-feto;

    Vivncia da parentalidade por meio da interaome-criana no domiclio, enfatizando os sinaisinteracionais e a alimentao.

    Esse tema ilustra a complexidade transgeracional

    familiar e a riqueza de e lementos que se conjugamnessa construo. Entre esses elementos, destacam-seexperincias familiares maternas, o relacionamentocom o companheiro, a descoberta e o desejo com agravidez, bem como os papis assumidos pelos paisna construo da maternidade/paternidade. As subca-tegorias ilustram particularidades das dimenses daparentalidade (exerccio, experincia e prtica daparentalidade)20 e seus reflexos na interao me-criana.

    Como exemplos de experincias pessoais oufamiliares maternas que pareceram marcar a parental-idade, destacam-se o fato de uma das mes e sua

    criana no serem registradas, bem como quatro mesque referiram perda significativa antes da gravidez dacriana do estudo (aborto espontneo ou provocado,morte de pai, morte da irm). Uma dessas meschegou a dar filha o nome da irm morta, semadicionar o sobrenome do pai da criana. Trs dasmes foram orientadas por suas prprias mes (avs)a abortar a criana, opo rejeitada pelo casal, apesarda incerteza financeira deles.

    Temtica 2. Vivncia e retomada da

    parentalidade: interao me-criana na

    hospitalizao

    Sinais interacionais percebidos pela me, vividosno hospital;

    Adaptao da criana ao hospital em funo dorelacionamento com a me;

    Interao da dade entre si e com a pesquisadora:a construo de uma terceira histria.

    Esse tema ilustra a percepo e vivncia dossinais interacionais e seu papel no auxlio dade na

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    5/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007 S33

    Interao entre me e criana desnutrida grave hospitalizada

    adaptao hospitalizao. Destaca tambm a narra-tividade, decorrente da hospitalizao e da pesquisaqualitativa, auxiliando na percepo de si e do outroe seu reflexo na retomada e resignificao da parenta-lidade. Ilustra tambm que o adoecimento e a hospi-talizao podem favorecer a interao me-filho,atuando como fatores teraputicos na retomada dovnculo e na experincia e prtica da parentalidade.

    Algumas dades pareciam compreender eresponder aos sinais interacionais do parceiro numacomunicao dilogica,3 onde a me se dirigia criana atribuindo-lhe um espao temporal durante oqual o filho podia se organizar, responder e serrespaldado. No entanto, outras dades pareciam"duelar angustiadamente" ao longo da alimentao,atividade tomada na maioria das vezes, apenas emseu sentido funcional (ganho de peso), reforadopela equipe de sade e tomado pelas mes como

    nico ou principal meio para sade/alta hospitalar.Curiosamente, algumas dades passaram a inte-ragir de modo diferente ao longo da hospitalizao,evidenciando-se a construo de novos significadoss manifestaes do parceiro, anteriormente nolidas ou sequer percebidas como sinais interacionais.Destaca-se o reflexo desse movimento na retomadade aspectos da parentalidade.

    Temtica 3. Desnutrio e interao me-

    criana: significados criados em relao

    doena e compreenso dessa a partir da

    interao com a criana e com o hospital

    Por fim, na temtica 3, observa-se a fala maternatrazendo tona significados criados ao complexoprocesso de adoecimento, ilustrando a influncia dainterao da me com o filho e com a equipe desade na produo de significados desnutrio.

    Nenhuma das mes pareceu ter identificado adesnutrio como doena, apenas considerandocomo processo mrbido as intercorrncias agudas einfecciosas (diarria, pneumonia). No pareciamassociar o edema desnutrio, uma vez que essa foiunanimemente referida como sinnimo de baixopeso ou perda de peso.

    Entre os significados criados ao adoecimento,destacam-se: transmisso intra-uterina; leite artificialoferecido precoce e inadequadamente como causadordos sintomas infecciosos; anemia; reumatismo,problema renal (devido ao edema); "tipo de cncer".

    Discusso

    A interao me-criana vastamente estudada

    mediante diferentes perspectivas terico-conceituaise metodolgicas, como constatado nas bases dedados pesquisadas. No entanto, pontua-se a carnciade trabalhos enfocando a compreenso da dinmicainterativa da dade me-criana desnutrida grave nocontexto da hospitalizao.

    O estudo buscou compreender, em uma realidadeparticular (desnutrio e hospitalizao), a influnciamtua de me e filho na construo da interao,observando esse fenmeno como uma associao defatores, no em uma relao de causa-e-efeito.

    Nas famlias acompanhadas, as quais tinhamcondio socioeconmica precria, a experincia e aprtica da parentalidade20 incluram a recorrentepreocupao com a alimentao da criana, temendoa repetio da experincia de fome. Esse fato foianalisado sob dois diferentes aspectos: obstculo criao do filho e/ou amamentao, ou, pelo

    contrrio, como incentivador do aleitamento. Emrelao a esse ltimo aspecto, o leite materno passoua figurar como nico alimento oferecido diante doreceio ou da falta real de comida, bem como daperspectiva do adoecimento infantil. O prolonga-mento do aleitamento materno, no entanto,considerando a dinmica psicoafetiva, representa umtransbordamento da funo materna e a provvelfalha da funo paterna, trazendo prejuzos estru-turao psquica infantil.6,21

    A experincia de falta real parecia balizar aconstituio dos vnculos afetivos da maioria dessasfamlias, marcados pela precariedade e fragilidade

    com que se iniciavam e se desfaziam, porm nosem prejuzos psquicos me, expressos na inte-rao com o seu filho.

    Outro fator que sugere ter influenciado negativa-mente na interao da dade foi a dificuldade de umdos pais ou de ambos em inserir o filho na linhagemde filiao, submetidos inconscientemente a umadeterminao simblica familiar que os ultrapassa,como nos casos da dade no registrada oficialmentee da criana que recebeu o nome da tia morta.Observa-se nesta dinmica uma repetio quedesloca os pais do lugar de interlocutores privile-giados da criana, resultando em obstculos exper-

    incia e prtica da parentalidade.20,22

    A parentalidade um processo que se constri,como um trabalho que pe em evidncia a complexi-dade e as caractersticas paradoxais do fenmenonatural do parentesco. Esse processo organiza apercepo dos pais em face deles mesmos e do filho,e organiza igualmente a percepo que a criana tema respeito dos pais. Desse modo, pais e filho tmpapel ativo na construo da parentalidade, na qual acriana inscrita e se inscreve.20

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    6/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007S34

    Sampaio, MA et al.

    Observou-se tambm que a desnutrio pareceter influenciado no investimento da me na criana,e vice-versa, uma vez que a doena tornava a crianamenos responsiva aos investimentos maternos,criando-se um ciclo vicioso bidirecional: diminuioda demanda infantil, com prejuzo ao investimentomaterno.

    A psicopatologia alimentar reflete uma dinmicainterativa complexa e conflitiva, representada pelosseguintes aspectos: insuficincia ou excesso deinvestimento libidinal, falta de estmulos, descon-tinuidade da relao, incoerncia na leitura e naresposta s solicitaes, interao cronicamentevazia ou bruscamente esvaziada, enf im, irregulari-dades quantitativas e/ou qualitativas do vnculo.10,21

    Nessas condies, a criana pode no se beneficiarda funo materna de pra-excitao.10

    Outro aspecto fundamental a ser considerado na

    compreenso dessa dinmica conflitiva a inade-quao da funo paterna enquanto terceiro funda-mental da dade me-criana.6,21

    Entre as dades estudadas, esses aspectos, asso-ciados ou isolados, parecem ter interferido negativa-mente no dilogo me-filho. A adequada interaoda dade pode se romper em determinadas situaes,tornando a criana menos responsiva aos investi-mentos maternos e vice-versa.3,22

    Ao se observar a interao da dade, deve-selevar em considerao ao mesmo tempo a situaoreal da criana, a realidade psquica dos parceiros daconstelao familiar e a dimenso simblica da

    parentalidade e da filiao.

    20,22

    A anlise preliminar dos dados refora ainfluncia mtua de me e filho na construo dainterao3 e a complexidade dos distrbios funcio-nais precoces,10 sugerindo que estados extremos dedesnutrio podem estar associados no apenas sfaltas e/ou falhas nutricionais, mas tambm a vivn-cias de privao ou excesso psicoafetivo.6

    O ato de alimentao da criana no apenasuma atividade com fins nutritivos; reflete a doaoafetiva da me, de seu imaginrio e simblico.3 O

    investimento libidinal materno transforma oalimento em atrativo simblico. Contrariamente,diante de trocas mecnicas e annimas, a alimen-tao torna-se puramente operacional, referindo-seto somente ao real do corpo infantil.3,6 precisoassegurar na nutrio a sobrevida fsica da criana,sem por isso negligenciar a dimenso simblica daalimentao e sua importncia estruturaopsquica e desenvolvimento infantil. Essa atividadeproporciona a me e filho a experincia de feedbackrecproco, com gratificaes para ambos: o bebrefora o narcisismo materno, enquanto a me dsuporte corporal e psquico ao filho.23

    A compreenso do lugar ocupado pela criana naproblemtica psquica da me, do casal e na histriatransgeracional da famlia fundamental no inter-

    jogo das interaes posteriores,24 principalmente nasvividas em momentos crticos dade, como diante

    da desnutrio e hospitalizao. A retomada dessaproblemtica no hospital pode auxiliar a dade e aequipe de sade na compreenso do processo deadoecimento.

    A observao dos registros de troca dadicosprecoces, possveis indicadores de risco/plasticidade,enquanto determinantes na constituio subjetiva dacriana e do futuro adulto,6,21,25 apontam a necessi-dade de cuidados integrais pela equipe de sade,onde o hospital pode exercer importante papel nacompreenso do adoecimento/desnutrio, naretomada do vnculo me-criana e na experincia eprtica da parentalidade.

    Agradecimentos

    s famlias participantes, equipe de sade daenfermaria "E" do IMIP, a Geisy Lima, AndraEcheverria, Luciana Dubeux e a Coordenao deAperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior(CAPES).

    Referncias

    1. Mazet P, Stoleru S. Manual de psicopatologia do recm-nascido. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1990.

    2. Pinto EB. Contribuio para a anlise das interaesprecoces na perspectiva psicanaltica. In: Piccinini CA,Moura MLS, Ribas AFP, Bosa CA, Oliveira EA, Pinto EB,Schermann L, Chahon VL. Diferentes perspectivas naanlise da interao pais-beb/criana. Psicol Reflex Crit.2001; 14: 478-80.

    3. Ferreira SMSO. A interao me-beb: primeiros passos[dissertao mestrado]. Recife: Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica, do Departamento deLetras da Universidade Federal de Pernambuco; 1990.

    4. Piccinini CA, Moura MLS, Ribas AFP, Bosa CA, OliveiraEA, Pinto EB, Schermann L, Chahon VL. Diferentesperspectivas na anlise da interao pais-beb/criana.Psicol Reflex Crit. 2001; 14: 469-85.

  • 7/25/2019 a04v7s1.pdf

    7/7

    Rev. Bras. Sade Matern. Infant., Recife, 7 (Supl. 1): S29-S36, nov., 2007 S35

    Interao entre me e criana desnutrida grave hospitalizada

    5. Wendland J. A abordagem clnica das interaes pais-beb:perspectivas tericas e metodolgicas. Psicol Reflex Crit.2001; 14: 45-56.

    6. Cullere-Crespin G. A clnica precoce: o nascimento dohumano. So Paulo: Casa do Psiclogo; 2004.

    7. Nbrega FJ. Vnculo me/filho. Rio de Janeiro: Revinter;

    2005.8. Temas Nutr. [Soc. Bras. Pediatr.] 2002; (2).

    9. Lemes SO, Moraes DEB, Vtolo MR. Bases psicossomticasdos distrbios nutricionais na infncia. R Nutr.[PUCCAMP] 1997; 10: 37-44.

    10. Brazelton T, Cramer B, Kreisler L, Schappi R, Soul M. Adinmica do beb. Porto Alegre: Artes Mdicas; 1987.

    11. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 9. ed. SoPaulo: Hucitec; 2006.

    12. Gomes R, Souza ER, Minayo MCS, Malaquias JV, SilvaCFR. Organizao, processamento, anlise e interpretaode dados: o desafio da triangulao. In: Minayo MCS, AssisSG e Souza ER, organizadores. Avaliao por triangulaode mtodos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2005. p. 185-221.

    13. Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos dopensamento: epistemologia e mtodo. Rio de Janeiro:FIOCRUZ; 2002.

    14. OMS (Organizao Mundial de Sade). Manejo da desnu-trio grave: um manual para profissionais de sade denvel superior e suas equipes de auxiliares, Braslia, DF;1999.

    15. Pinto EB. A pesquisa qualitativa em psicologia clnica.Psicol USP. 2004; 15: 71-80.

    16. Lowenkron TS. O objeto da investigao psicanaltica. In:Herrmann F, Lowenkron TS, organizadores. Pesquisandocom o mtodo psicanaltico. So Paulo: Casa do Psiclogo;2004. p. 21-31.

    17. Fraser MTD, Gondim SMG. Da fala do outro ao texto nego-ciado: discusses sobre a entrevista na pesquisa qualitativa.Paidia: Cad Psicol Educ. 2004; 14: 139-52.

    18. Thma H, Kchele H, organizadores. Teoria e prtica dapsicanlise. Porto Alegre: Artes Mdicas; 1992.

    19. Bardin L. Anlise de conedo. Lisboa Edies 70; 1977.

    20. Silva MCP, organizador. Ser pai, ser me, parentalidade:um desafio para o terceiro milnio. So Paulo: Casa doPsiclogo; 2004.

    21. Rohenkohl CMF. possvel formalizar os sinaispatolgicos na clnica com beb? In: Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanlise, 2001.Disponvel em URL: http://www.estadosgerais.org/encon-tro/formalizar_sinais_patologicos.shtml [2007 jun 10]

    22. Bernardino LMF. O que a psicanlise pode ensinar sobre acriana, sujeito em constituio. So Paulo: Escuta; 2006.

    23. Camarotti MC. De braos vazios: uma separao precoce.In: Rohenkohl CMF. A clnica com o beb. So Paulo: Casado Psiclogo; 2000. p. 50-62.

    24. Lebovici S. O beb, a me e o psicanalista. Porto Alegre:

    Artes Mdicas; 1987.

    25. Almeida MM. A clinical study of early feeding difficulties:risk and resilience in early mismatches within parent-infantrelashionship [master's dissertation]. Londres: TavistockClinic and University of East London; 1993.