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AS CLÁUSULAS PÉTREAS Fernando Machado da Silva Lima. O Mestre Otávio Mendonça publicou, no Liberal de hoje, 02.03.99, sob o título "Tirar do roto para o esfarrapado?", brilhante estudo pertinente à reforma da previdência, no qual critica o desrespeito às garantias individuais consagradas constitucionalmente e protegidas como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º.), isto é, cláusulas imutáveis, que não admitem sua reforma, e resolvi contribuir para o debate jurídico da matéria, embora reconheça ser muita pretensão de minha parte. Há cinqüenta anos, o Professor Pinto Ferreira estudava o princípio da supremacia constitucional (Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, Saraiva) como um dos grandes princípios, que servem de base à estruturação do Estado. Há uma tendência universal para a supremacia da Constituição, embora exista um País que faz, como em tantas outras coisas, exceção: a Inglaterra, onde não tem sentido a supremacia constitucional. Lá, existe a supremacia do Parlamento e por isso disse Disraeli : "England is not governed by logic, but by parliament". Por essa mesma razão, Sir Ivor Jennings (The British Constitution, Cambridge) dizia que se um dia a Constituição Britânica fosse escrita, ela teria apenas um artigo: o Parlamento inglês é supremo. No Brasil, porém, de acordo com a tendência universal de supremacia da Constituição, sempre adotamos regras, desde a Constituição do Império, tendentes a dificultar a reforma do texto constitucional e a estabelecer, mesmo, limites intransponíveis para essa reforma, como por exemplo no § 6o. do art. 217 da Constituição de 1946: "Não serão admitidos como objeto de deliberação projetos tendentes a abolir a Federação ou a República". A Constituição é, portanto, a Lei Suprema, o que significa que deve ser obedecida pelos governantes e pelos governados. Ela é o metro, o padrão da regularidade jurídica e um Estado somente poderá ser considerado democrático, na medida em que prevaleça a vontade legal (rule of law) e desde que haja possibilidade de efetivação das leis regulares em face dessa Constituição e de nulificação daquelas que a contrariem. A Constituição resulta do Poder Constituinte, que desde Sieyès (Qu'est-ce que le Tiers État?) é atribuído ao povo, de modo que é esse o Poder Originário responsável pela criação

Aas Cláusulas Pétreas

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AS CLUSULAS PTREAS

AS CLUSULAS PTREAS

Fernando Machado da Silva Lima.

O Mestre Otvio Mendona publicou, no Liberal de hoje, 02.03.99, sob o ttulo "Tirar do roto para o esfarrapado?", brilhante estudo pertinente reforma da previdncia, no qual critica o desrespeito s garantias individuais consagradas constitucionalmente e protegidas como clusulas ptreas (art. 60, 4.), isto , clusulas imutveis, que no admitem sua reforma, e resolvi contribuir para o debate jurdico da matria, embora reconhea ser muita pretenso de minha parte. H cinqenta anos, o Professor Pinto Ferreira estudava o princpio da supremacia constitucional (Princpios Gerais do Direito Constitucional Moderno, Saraiva) como um dos grandes princpios, que servem de base estruturao do Estado.

H uma tendncia universal para a supremacia da Constituio, embora exista um Pas que faz, como em tantas outras coisas, exceo: a Inglaterra, onde no tem sentido a supremacia constitucional. L, existe a supremacia do Parlamento e por isso disse Disraeli : "England is not governed by logic, but by parliament". Por essa mesma razo, Sir Ivor Jennings (The British Constitution, Cambridge) dizia que se um dia a Constituio Britnica fosse escrita, ela teria apenas um artigo: o Parlamento ingls supremo.

No Brasil, porm, de acordo com a tendncia universal de supremacia da Constituio, sempre adotamos regras, desde a Constituio do Imprio, tendentes a dificultar a reforma do texto constitucional e a estabelecer, mesmo, limites intransponveis para essa reforma, como por exemplo no 6o. do art. 217 da Constituio de 1946: "No sero admitidos como objeto de deliberao projetos tendentes a abolir a Federao ou a Repblica".

A Constituio , portanto, a Lei Suprema, o que significa que deve ser obedecida pelos governantes e pelos governados. Ela o metro, o padro da regularidade jurdica e um Estado somente poder ser considerado democrtico, na medida em que prevalea a vontade legal (rule of law) e desde que haja possibilidade de efetivao das leis regulares em face dessa Constituio e de nulificao daquelas que a contrariem.

A Constituio resulta do Poder Constituinte, que desde Sieys (Qu'est-ce que le Tiers tat?) atribudo ao povo, de modo que esse o Poder Originrio responsvel pela criao do Poder Constituinte Derivado, ou Poder de Reforma Constitucional, na denominao do Prof. Nelson Sampaio. E o Poder Constituinte Originrio estabelece, no prprio texto da Constituio, os limites atividade reformadora.

Afirma o Prof. Pinto Ferreira (Curso de Direito Constitucional, Saraiva), que "no podem ser mudadas pelo poder de emenda ou reviso as seguintes matrias:I- as matrias concernentes ao titular do poder constituinte, porque a reviso no pode mudar o titular do poder que criou o poder reformador; II- as matrias alusivas ao prprio titular do poder reformador, pois seria inconseqente que o legislador ordinrio institusse novo titular a substituir o constituinte originrio; III- as matrias relativas ao processo da prpria emenda, que no pode ser facilitada; (acrescentaramos: nem dificultada) IV- os dispositivos concernentes s decises jurdicas e polticas fundamentais, especialmente os direitos humanos e as garantias do homem e do cidado, o esprito da Constituio".

A prpria consulta ao povo perigosa, conforme Pinto Ferreira: "O plebiscito de certa forma uma ameaa para o Estado democrtico de direito em um pas onde impera a crise, como o Brasil, em que a propaganda poltica dominada pela mdia eletrnica, em poder de autnticos monoplios de fato. O plebiscito sempre foi uma arma perigosa nas mos do Estado autoritrio nas pocas de Hitler e Mussolini, que conseguiram cerca de 90% de aprovao eleitoral. menos perigoso democracia avanada e consciente, porm uma ameaa mortal liberdade do povo nas falsas democracias dos pases de economia dominada".

Lembra o Mestre Otvio Mendona que " antiga a insistncia de impor novo nus aos aposentados e pensionistas,..... apesar da existncia de dois limites intransponveis: um jurdico, o resguardo dos direitos adquiridos; outro humano, o de no condenar misria quem se encontra na fronteira da mesma e cujo sacrifcio pouco influir na soluo perseguida".

Esse limite jurdico, consubstanciado na irretroatividade da lei, e sem o qual o Direito perderia completamente sua finalidade, consagrado na vigente Constituio: "Art. 5, XXXVI - A lei no prejudicar o direito adquirido, o ato jurdico perfeito e a coisa julgada". E mais: esse um dos princpios considerados clusulas ptreas pelo Constituinte Originrio, haja vista a proibio absoluta constante do 4o. do art. 60 da Constituio Federal: "No ser objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir:

I- a forma federativa de Estado; II- o voto direto, secreto, universal e peridico; III- a separao dos Poderes; IV- os direitos e garantias individuais".

Observe-se que no preciso que a reforma diga: fica abolido o direito, mas basta que seja tendente a isso, e evidente que a Emenda Constitucional n 20/98 e a Lei n 9783/99 atingem frontalmente o princpio da irretroatividade da lei, especialmente ao imporem o pagamento de contribuies sociais aos funcionrios pblicos aposentados e aos pensionistas.

Infelizmente, no existe no Brasil uma tradio de respeito Constituio e s leis, e tem sido notria a determinao pessoal do Sr. Presidente no sentido da aprovao dessas reformas, embora o compromisso prestado e reiterado perante o Congresso Nacional (art. 78 da Constituio Federal ), .."de manter, defender e cumprir a Constituio, observar as leis, etc..."

Assim, a Emenda Constitucional no. 20, de 15.12.98, abriu o caminho- ou pretendeu faz-lo, por sua flagrante inconstitucionalidade - para a tributao de todo o funcionalismo ativo ou inativo, pela edio da Lei no.9783, de 28.01.99, "uma das mais perversas leis que hoje empobrecem o nosso vasto acervo normativo", no dizer do Mestre Otvio Mendona.

E como fecho de ouro, essa Emenda brindou os aposentados e pensionistas com a regra de seu art. 17, o ltimo, posterior at mesmo ao artigo que determina: esta emenda entra em vigor na data de sua publicao, e que tradicionalmente o ltimo, em qualquer diploma legal. Reza esse artigo 17: "Revoga-se o inciso II do 2o. do art. 153 da Constituio Federal ". Esse dispositivo era exatamente aquele que isentava da tributao do imposto de renda os rendimentos provenientes de aposentadoria e penso, pagos pela previdncia social da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, a pessoa com idade superior a sessenta e cinco anos, cuja renda total seja constituda, exclusivamente, de rendimentos do trabalho.

Assim, depois da queda o coice: alm de passarem a pagar as contribuies sociais, aposentados e pensionistas pagaro o imposto de renda at o dia em que exalarem o ltimo suspiro.

Resta-nos confiar nos juzes e Tribunais, ltimos baluartes na defesa do Direito, porque se a reforma da Constituio pode vulnerar as clusulas ptreas, os direitos e garantias individuais, se ela pode atingir as liberdades pblicas, o sistema de garantia da pessoa humana, e conseqentemente a democracia, poder tambm destruir o Estado de Direito, como ocorreu com Hitler e Mussolini, suprimindo assim a Constituio, e transformando uma democracia em uma ditadura, ou um governo de leis em um governo do arbtrio.