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ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 40 (3): p. 1208-1217, set-dez 2011 1208 “Abraça essa Brasil”: a identidade brasileira (re)construída no discurso publicitário (“Abraça essa Brasil”: the Brazilian identity (re)built in the advertising discourse) Ana Lúcia Furquim Campos-Toscano 1 1 Uni-Facef Centro Universitário de Franca (UNI-FACEF) [email protected] Abstract: In this study, we aim to reflect upon the constitution of Brazilian identity in an advertisement that incorporates previous discourses about the same issue. Our study is based on studies conducted by Mikhail Bakhtin’s Circle on speech genres and dialogism. We analyze one of Malhas Malwee advertisements, which was published by Veja magazine in January 2010. In the advertisement, the Brazilian flag is modified due to the articulation between verbal and nonverbal language. The modification causes a new visual configuration and, consequently, another meaning effect. Therefore, other discourses are incorporated and/or reinterpreted such as the symbology in the flag colors, the conception of a rich and exuberant nature and its birds which connected to the idea of Brazil as the football country, creates a sense of conquering the world and “embracing happiness”. Keywords: speech genres; dialogism; style; Brazilian identity. Resumo: Por meio dos estudos do Círculo de Mikhail Bakhtin sobre gêneros do discurso e dialogismo, objetivamos, neste artigo, refletir sobre a constituição da identidade brasileira presente em um anúncio publicitário que retoma discursos anteriormente enunciados sobre a identidade nacional. Para tanto, analisamos uma propaganda das Malhas Malwee, veiculada na revista Veja, em janeiro de 2010, em que a bandeira do Brasil, na articulação entre as linguagens verbal e não- -verbal, é modificada, apresentando uma nova configuração visual e, por conseguinte, outro efeito de sentido. Assim, outros enunciados são retomados e/ou ressignificados, como a simbologia das cores da bandeira, a concepção da natureza rica e exuberante e dos pássaros da fauna brasileira, que, aliados à ideia de o Brasil ser o país do futebol, constrói-se o sentido de que é possível conquistar o mundo e “abraçar a felicidade”. Palavras-chave: gêneros do discurso; dialogismo; estilo; identidade brasileira. Introdução A identidade brasileira, em diferentes momentos, é marcada pela sagração da natureza, ou seja, desde o descobrimento do Brasil, já na carta de Pero Vaz de Caminha, a natureza, descrita como exuberante, rica e exótica, é vista como um paraíso terrestre e abençoada por Deus. Constituída no imaginário brasileiro, a natureza é retomada em discursos de épocas diversas, como, por exemplo, nos poemas patrióticos de Olavo Bilac, nas poesias românticas do século XIX, na letra do Hino Nacional e até nas cores da Bandeira Nacional. Aliada a essa concepção de uma terra paradisíaca e promissora, há ainda o mito do povo brasileiro ordeiro, pacífico, generoso, acolhedor e alegre, mesmo em face a problemas econômicos ou sociais. Esses mitos são retomados em forma de enunciados, narrativas, símbolos e figuras, construindo, dessa maneira, as representações da identidade brasileira.

Abraça Essa Brasil

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Artigo sobre a análise do discurso de linha francesa aplicada à publicidade.

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    Abraa essa Brasil: a identidade brasileira(re)construda no discurso publicitrio

    (Abraa essa Brasil: the Brazilian identity(re)built in the advertising discourse)

    Ana Lcia Furquim Campos-Toscano1

    1Uni-Facef Centro Universitrio de Franca (UNI-FACEF)

    [email protected]

    Abstract: In this study, we aim to reflect upon the constitution of Brazilian identity in an advertisement that incorporates previous discourses about the same issue. Our study is based on studies conducted by Mikhail Bakhtins Circle on speech genres and dialogism. We analyze one of Malhas Malwee advertisements, which was published by Veja magazine in January 2010. In the advertisement, the Brazilian flag is modified due to the articulation between verbal and nonverbal language. The modification causes a new visual configuration and, consequently, another meaning effect. Therefore, other discourses are incorporated and/or reinterpreted such as the symbology in the flag colors, the conception of a rich and exuberant nature and its birds which connected to the idea of Brazil as the football country, creates a sense of conquering the world and embracing happiness.

    Keywords: speech genres; dialogism; style; Brazilian identity.

    Resumo: Por meio dos estudos do Crculo de Mikhail Bakhtin sobre gneros do discurso e dialogismo, objetivamos, neste artigo, refletir sobre a constituio da identidade brasileira presente em um anncio publicitrio que retoma discursos anteriormente enunciados sobre a identidade nacional. Para tanto, analisamos uma propaganda das Malhas Malwee, veiculada na revista Veja, em janeiro de 2010, em que a bandeira do Brasil, na articulao entre as linguagens verbal e no--verbal, modificada, apresentando uma nova configurao visual e, por conseguinte, outro efeito de sentido. Assim, outros enunciados so retomados e/ou ressignificados, como a simbologia das cores da bandeira, a concepo da natureza rica e exuberante e dos pssaros da fauna brasileira, que, aliados ideia de o Brasil ser o pas do futebol, constri-se o sentido de que possvel conquistar o mundo e abraar a felicidade.

    Palavras-chave: gneros do discurso; dialogismo; estilo; identidade brasileira.

    Introduo A identidade brasileira, em diferentes momentos, marcada pela sagrao da natureza,

    ou seja, desde o descobrimento do Brasil, j na carta de Pero Vaz de Caminha, a natureza, descrita como exuberante, rica e extica, vista como um paraso terrestre e abenoada por Deus. Constituda no imaginrio brasileiro, a natureza retomada em discursos de pocas diversas, como, por exemplo, nos poemas patriticos de Olavo Bilac, nas poesias romnticas do sculo XIX, na letra do Hino Nacional e at nas cores da Bandeira Nacional. Aliada a essa concepo de uma terra paradisaca e promissora, h ainda o mito do povo brasileiro ordeiro, pacfico, generoso, acolhedor e alegre, mesmo em face a problemas econmicos ou sociais. Esses mitos so retomados em forma de enunciados, narrativas, smbolos e figuras, construindo, dessa maneira, as representaes da identidade brasileira.

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    A compreenso e a reflexo sobre a constituio da identidade brasileira , portanto, o objetivo deste trabalho. Para tanto, analisamos um anncio publicitrio que retoma discursos anteriormente enunciados sobre a identidade nacional, ou seja, uma propaganda das Malhas Malwee, veiculada na revista Veja em janeiro deste ano. Por se tratar de um enunciado verbo-visual, a anlise se pauta em dois planos: o verbal, constitudo pelo slogan Abraa essa Brasil e por dois outros enunciados que complementam o sentido do anncio publicitrio, e o visual, que, ao ocupar duas pginas da revista, apresenta uma bandeira do Brasil estilizada com folhagens, flores e pssaros.

    Para a anlise do anncio em questo, utilizamos os estudos do Crculo de Mikhail Bakhtin sobre dialogismo e gneros do discurso. Sabemos que cada esfera das atividades humanas elabora enunciados relativamente estveis para atender s finalidades comunicativas e, ao enunciar um determinado discurso, retoma outros enunciados num processo de reflexo mtua, determinando-lhes o carter, ou seja, dando-lhes caractersticas nicas, tornando-os singulares. O enunciado, portanto, apresenta marcas enunciativas que revelam a posio do sujeito enunciador inserido em um dado contexto scio-histrico.

    Gneros do discurso e dialogismo Os estudos de Mikhail Bakhtin1 enfatizam a relao entre lngua e prxis humanas,

    destacando a necessidade de conhecimento, por parte dos sujeitos da comunicao, dos enunciados que compem as diversas esferas das atividades humanas. A concepo de enunciado, nessa perspectiva, uma unidade de comunicao em oposio ideia de lngua como abstrao gramatical, ou seja, como uma sentena inscrita na gramtica. Assim, a lngua concebida como viva, concreta, em seu uso real.

    O conceito de gneros do discurso tipos relativamente estveis de enunciadoselaborados para atender as finalidades das diversas esferas de atividades humanas (BAKHTIN, 2000) traz em seu bojo o conceito de dialogismo que no deve ser entendido somente como o dilogo do cotidiano ou face a face, mas, sim, aquele que instaura a condio dialgica da linguagem.

    A heterogeneidade dos gneros do discurso, ou seja, a variedade de enunciados para o atendimento das diversas esferas de atividades humanas tambm evoca o dilogo entre gneros de discurso primrio (simples, do cotidiano) e os secundrios (mais complexos, geralmente escritos, como os gneros artsticos, cientficos, entre outros). A absoro dos gneros primrios pelos secundrios evidencia os problemas para a anlise dos enunciados, pois, como afirma Bakhtin (2000, p. 282), alm de esclarecer a natureza do enunciado, expe o difcil problema da correlao entre lngua, ideologias e vises do mundo.

    Bakhtin tambm salienta que, em cada poca e, de acordo com os valores sociais vigentes, h alteraes dos gneros do discurso, no s os gneros secundrios, mas tambm os primrios, acarretando, assim, uma modificao no estilo e na estrutura composicional.

    Nessa perspectiva, os gneros tm que estar abertos para a mudana, para a remodelao, pois a forma, na concepo bakhtiniana, passa a ser entendida, ao mesmo tempo, como 1 Apesar de nos referirmos, ao longo do artigo, aos estudos de Mikhail Bakhtin, trata-se das reflexes do Crculo de Bakhtin e no exclusivamente dos textos assinados por ele. No nos interessamos, neste trabalho, em discutir a autoria dos textos dos integrantes do crculo, composto por estudiosos e artistas como Bakhtin, Volochinov, Medvidiev e outros.

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    estabilidade e instabilidade, como reiterao e abertura para o novo, ou seja, um gnero novo traz recorrncias de gneros antigos, equilibrando-se entre o esttico e o dinmico.

    Nesse processo contnuo de mudanas, possvel reconhecer similaridades e recorrncias da forma, entendendo, portanto, que os enunciados so relativamente estveis, mas auxiliam na organizao das mais diversas atividades humanas, orientando nosso agir e permitindo que nos adaptemos a novas circunstncias que, porventura, possamos viver. H, desse modo, um estreito vnculo entre lngua e vida, pois a lngua penetra na vida atravs dos enunciados concretos que a realizam, e tambm atravs dos enunciados concretos que a vida penetra na lngua (BAKHTIN, 2000, p. 282).

    Bakhtin prope uma nova concepo de estudo da lngua, a translingustica,2 que tem por objetivo compreender as relaes dialgicas da lngua, ou seja, o funcionamento real, concreto da linguagem verbal. Desse modo, o filsofo russo ope-se ao estudo do sistema da lngua, de suas unidades (palavras e oraes). Tambm contrrio noo de funes do ouvinte ou receptor. Segundo ele, nos cursos de lingustica geral, o locutor ativo no processo e o ouvinte, quem recebe a fala, passivo. Pela perspectiva bakhtiniana, o ouvinte adota uma atitude responsiva ativa perante o enunciado, podendo discordar, complementar, adaptar, confrontar. O prprio locutor um respondente, pois ele tambm responde a enunciados dos outros.

    O acabamento de um enunciado sempre pressupe a compreenso responsiva ativa do outro. Desse modo, constitutivamente, o enunciado dialgico e, nele, esto presentes outros enunciados que, ideologicamente, so refletidos e refratados de acordo com os valores sociais vigentes no contexto em que est inserido.

    Como afirma Bakhtin (1999, p. 32), um signo no existe apenas como parte de uma realidade; ele tambm reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreend-la de um ponto de vista especfico, etc. Todo signo est sujeito aos critrios de avaliao ideolgica.

    O acabamento do enunciado deve proporcionar a possibilidade de resposta do outro e determinado por trs fatores elencados por Bakhtin (2000, p. 299): 1) o tratamento exaustivo do objeto de sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3) as formas tpicas de estruturao do gnero do acabamento.

    O primeiro item, o tratamento exaustivo do enunciado, relativizado pelo acabamento mnimo, de acordo com o contexto em que est inserido, da forma como o problema abordado, do material, isto , tudo depende do intuito discursivo do locutor. O intuito discursivo, em combinao com o objetivo da enunciao, forma uma unidade indissolvel que determina o todo do enunciado e possibilita uma atitude responsiva, visto que um enunciado considerado acabado quando permite a resposta do outro. O querer-dizer do locutor se realiza por meio da escolha do gnero, ou seja, deve-se selecionar um enunciado, composto pelo contedo temtico, pelo estilo verbal (entendido como escolhas dos recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais) e pela estrutura composicional, que atenda s necessidades comunicativas e esteja em acordo com a esfera da atividade humana em questo. 2 De acordo com Fiorin (2006), em algumas tradues das obras bakhtinianas, o termo translingustica aparece como metalingustica. Embora os prefixos meta- e trans- (o primeiro grego e o segundo latino) tenham o mesmo sentido de alm de, metalingustica acaba sendo relacionada aos discursos que descrevem e analisam a lngua.

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    O estilo determinado pelos problemas de execuo que o enunciado representa para o locutor. Desse modo, necessria a expressividade do locutor, que ocorre por meio de uma dada entonao, perante o objeto de sentido de seu enunciado para a enunciao de seus valores emotivo-valorativos. importante salientar que h a expressividade tpica do gnero, o que no desabona a possibilidade da expressividade individualizada dependendo do gnero utilizado permitir maior ou menor individualizao. Segundo Bakhtin (2000), a partir do momento em que uma palavra empregada pelo locutor em uma determinada situao discursiva e com uma inteno, j est impregnada de expressividade individual.

    Por exemplo, os enunciados que compem os gneros secundrios exigem maior criatividade e elaborao da linguagem, mesmo porque tambm esto vinculados ao querer--dizer do enunciador. Um romance, uma carta, uma propaganda, por exemplo, no tm como objetivo nico manter uma interao verbal, mas, muitas vezes, tm como princpio convencer, seduzir o outro, ou, at mesmo, proporcionar contemplao da esttica, visto que h a possibilidade, nas artes literrias, de manipular as palavras para a criao do belo.

    Assim, o intuito discursivo vincula-se forma do gnero escolhido, ou seja, ao todo do enunciado, sua estruturao. H a necessidade da relativa forma padro para que possamos nos orientar quanto nossa participao social.

    Em relao citao e utilizao de enunciados j existentes aliadas experincia individual do locutor, Bakhtin (2000, p. 313) afirma que

    A poca, o meio social, o micromundo o da famlia, dos amigos e conhecidos, dos colegas que v o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que servem de norma, do o tom; so obras cientficas, literrias, ideolgicas, nas quais as pessoas se apiam e s quais se referem, que so citadas, imitadas, servem de inspirao. Toda poca, em cada uma das esferas da vida e da realidade, tem tradies acatadas que se expressam e se preservam sob o invlucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locues, etc. H sempre um certo nmero de ideias diretrizes que emanam dos luminares da poca, certo nmero de objetivos que se perseguem, certo nmero de palavras de ordem, etc.

    Nessa ambincia, entendemos que nossos enunciados esto repletos das palavras dos outros e que podem sofrer, determinados por um juzo de valor, um processo de assimilao ou de reestruturao. Justamente por pressupor uma atitude responsiva ativa do ouvinte, ao produzir um enunciado, o locutor leva em conta o destinatrio e seus conhecimentos, objees, preconceitos e convices a respeito do objeto de sentido do enunciado. Assim sendo, o estilo e a expressividade, que do um tom emotivo-valorativo ao enunciado, dependem do modo como o locutor percebe e compreende seu destinatrio.

    Abraa essa Brasil: a retomada de smbolos brasileirosAtualmente, o Brasil vive um momento de euforia, pois, na esfera econmica, vem

    sendo considerado um pas promissor e, na esfera esportiva, o pas tambm experimenta um momento de celebrao e expectativa, visto que ser sede da Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e dos Jogos Olmpicos, em 2016.

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    Todos esses eventos contribuem para a retomada de smbolos, narrativas, mitos e figuras que constituem as representaes da identidade brasileira. Em poca de Copa do Mundo, as cores da bandeira nacional, por exemplo, no somente invadem as ruas, como tambm evocam um patriotismo, muitas vezes, adormecido. nesse contexto, que analisamos uma propaganda, veiculada na revista Veja, em janeiro de 2010, das malhas Malwee3 cuja campanha publicitria intitulada Um abrao brasileiro tem como tema central o Brasil e sua diversidade cultural (Disponvel em:< http://www.malwee.com.br/colecao>. Acesso em: 17 set. 2010).

    Figura 1. Abraa essa Brasil

    Copa 2010

    Abraa essa Brasil

    De braos abertos pra abraar a felicidade. Desfilando criatividade e muita moda, a Malwee faz um convite para voc. Saia nas ruas, mostre seu sorriso, esbanje verde, amarelo, azul. Misturando talento, temos raa para conquistar o mundo. O abrao j est garantido. A bandeira para torcer. Abraa Brasil!

    Malhas Malwee. Um abrao brasileiro. (VEJA, 20 de jan. 2010, p.15,16. )

    Marcado pelo contexto, ano de Copa do Mundo, e sob a influncia do destinatrio, o brasileiro apaixonado por futebol, o anncio publicitrio apresenta uma estrutura composicional e um estilo que evocam alguns smbolos brasileiros, entre eles, a bandeira nacional, a fauna e a flora brasileiras e a raa e o talento de nosso futebol.

    3 Transcrevemos o enunciado verbal a fim de possibilitar a leitura de todo o anncio publicitrio.

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    Em primeiro lugar, retomemos a simbologia da bandeira nacional: o retngulo verde simboliza as matas e florestas, o losango amarelo representa o ouro e as riquezas minerais, o crculo azul estrelado, o cu onde brilha o Cruzeiro do Sul. A faixa branca com a inscrio Ordem e Progresso herana do positivismo de Augusto Comte. De acordo com Carvalho (2000), Rui Barbosa solicitou a Teixeira Mendes,4 criador do projeto da bandeira nacional, que justificasse a divisa positivista. Teixeira Mendes alegou que o emblema nacional deve ser smbolo de fraternidade e ligar o passado ao presente e futuro. A ligao com o passado se dava na conservao de parte da bandeira imperial [...] (CARVALHO, 2000, p. 113), como as cores verde e amarelo, representaes da natureza e das riquezas do pas. Mas a bandeira tinha tambm que representar o presente, ou seja, o regime republicano, e o futuro. Nesse sentido, a divisa, segundo Teixeira Mendes, cumpria esse papel, pois de um mundo dividido em duas tendncias distintas excessos de ordem substitudos por excessos de progresso passava-se a uma concepo que unia os dois polos e era a base da nova dinmica de confraternizao universal, prenncio da fase final de evoluo da humanidade (CARVALHO, 2000, p. 113).

    Ainda sobre a bandeira brasileira, podemos citar Chau (2000, p. 62), ao afirmar que,

    desde a Revoluo Francesa, as bandeiras revolucionrias tendem a ser tricolores e so insgnias das lutas polticas por liberdade, igualdade e fraternidade. A bandeira brasileira quadricolor e no exprime o poltico, no narra a histria do pas. um smbolo da Natureza. o Brasil-jardim, o Brasil-paraso.

    A respeito da representao da natureza, desde o descobrimento do Brasil, com a Carta de Pero Vaz de Caminha, feita a descrio de uma terra prodigiosa, abundante. a descoberta do Novo Mundo, do paraso terrestre, como mencionam a Bblia e os escritos medievais. O paraso terrestre o jardim do den, perfeito, com vegetao bela e abundante, temperatura amena e uma profuso de pssaros e de outros animais. a viso do paraso denominada por Holanda (2000) e descrita por viajantes e cronistas dos perodos de conquista e de colonizao da Amrica, que, seguindo modelos literrios, delineiam, em seus textos, uma terra generosa, sob constante primavera, produtora de flores e frutos e habitada por homens isentos de cobia, pois obtinham tudo sem esforo.

    Da carta de Pero Vaz de Caminha, datada em 1 de maio de 1500, podemos citar alguns trechos que comprovam essa concepo de uma natureza bela e promissora, com pssaros, gua em abundncia e muitas matas:

    Enquanto andvamos nesta mata a cortar a lenha, atravessaram alguns papagaios por essas rvores, alguns verdes e outros pardos; grandes e pequenos de maneira que me parece que haver nesta terra muitos, mas eu no vi mais que at 9 ou 10. Outras aves, ento, no vimos; somente algumas pombas seixas e pareceram-me maiores, em boa quantidade, que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas, mas eu no as vi; mas, segundo os arvoredos so, muitos e muitos e grandes e de infindas maneiras, no duvido que por esse serto haja muitas aves. (CAMINHA, 1500, apud VALENTE, 1975, p. 170)

    4 A atual bandeira do Brasil, idealizada por Teixeira Mendes e desenho executado por Dcio Villares, foi criada como reao bandeira americanizada do Clube Republicano Lopes Trovo, que era composta por faixas horizontais, nas cores verde e amarela, e um quadriltero de fundo negro, com estrelas bordadas com miangas, a fim de homenagear a raa negra.

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    Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos, at a outra ponta que contra o norte vem, de que ns deste porto houvemos vista, ser tamanha que haver nela bem 20 ou 25 lguas por costa. Traz, ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, algumas vermelhas, algumas brancas; e a terra por cima toda plana e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta toda praia rasa, muito plana e bem formosa. Pelo serto, pareceu-nos do mar muito grande, porque a estender a vista no podamos ver seno terra e arvoredos, parecendo-nos terra muito longa. Nela, no pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem as vimos. Mas a terra em si muito boa de ares, to frios e temperados [...]. guas so muitas e infindas. De tal maneira graciosa que, querendo aproveit-la dar-se- nela tudo por bem das guas que tem. (CAMINHA, 1500, apud VALENTE, 1975, p. 191)

    Embora esteja evidenciado, nesses enunciados, o interesse do colonizador sobre as terras descobertas no pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro ou ainda querendo aproveit-la dar-se- nela tudo por bem das guas que tem a descrio demonstra a exuberncia e beleza da natureza brasileira, aproximando-se, dessa maneira, da viso ednica de outros cronistas e descobridores.

    J no perodo do Romantismo brasileiro, o poema Cano do exlio, de Gonalves Dias Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabi/As aves que aqui gorjeiam/ No gorjeiam como l (DIAS, 2001, p. 16), a oposio semntica entre o aqui (Portugal) e o l (Brasil), faz meno ao sabi e s palmeiras, contribuindo para reforar a ideia de um sentimento saudosista de uma ptria distante, bela e cheia de prazeres. Como afirma Candido (1981, p.15) sobre a relao entre o Romantismo brasileiro e o nacionalismo,

    sobretudo nos pases novos e nos que adquiriram ou tentaram adquirir independncia, o nacionalismo foi manifestao da vida, exaltao afetiva, tomada de conscincia, afirmao do prprio pelo imposto. Da a soberania do tema local e sua decisiva importncia [...]. Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentimento, era libertar-se do jugo da literatura clssica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado abstrata afirmando em contraposio a concreto, espontneo, caracterstico, particular.

    Nessa perspectiva, o patriotismo engloba tambm o nativismo, com predominncia do sentimento da natureza, alm da busca de uma literatura prpria, desvinculada da tradio clssica. O poema Cano do Exlio, e suas posteriores releituras, representam essa tentativa de construir uma identidade nacional.

    Atualmente, junto ao Hino Nacional (em que so citados dois versos do poema de Gonalves Dias), bandeira, ao braso e ao selo, o sabi-laranjeira considerado um smbolo oficial nacional por meio de um decreto de 03 de outubro de 2002, assinado pelo ex-presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso. Esse decreto dispe sobre o Dia da Ave e nomeia o sabi como smbolo representativo da fauna ornitolgica brasileira e considerada popularmente Ave Nacional do Brasil (Disponvel em:. Acesso em: 15 set. 2010).

    Retornemos, por ora, ao anncio em questo que, por se tratar de um enunciado verbo-visual, exige uma anlise dos recursos lingusticos, mas tambm da construo imagtica que compe o enunciado.5 Consideramos a bandeira inserida na propaganda

    5 Para a anlise dessa propaganda, por se tratar de um enunciado verbo-visual, seguimos os estudos de Brait a partir da concepo de Bakhtin sobre estilo e a possibilidade de estender essa concepo para alm dos

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    como um enunciado, tendo em vista que apresenta sentido e compreendida, em seu formato primeiro, como um smbolo nacional. Entretanto, verificamos alteraes em sua constituio, como: o retngulo verde, que simboliza as matas e florestas brasileiras, preenchido por folhas, possivelmente de palmeiras. Flores amarelas delimitam o campo outrora marcado pelo losango amarelo e o azul anil do cu est povoado de pssaros tambm azuis. H ainda papagaios verdes, amarelos ou mesclados com as cores brasileiras voando por toda a bandeira. J a divisa Ordem e Progresso substituda pela faixa Abraa essa Brasil.

    A alterao da composio da bandeira e, por conseguinte, do estilo empregado em todo o enunciado, pertencente aos gneros publicitrios, so delimitados pela expressividade revelada na nova divisa Abraa essa Brasil, que acaba por expor a relao valorativa do enunciador para com o todo do anncio. Seguindo a esteira dos estudos bakhtinianos, como um enunciado concreto um elo na cadeia da comunicao verbal de uma dada esfera (BAKHTIN, 2000, p. 316), a propaganda evoca outros enunciados, refletindo-os e refratando-os. Assim sendo, antigos valores so retomados, mas novos sentidos so construdos e outras posies de valor so evocadas.

    Os papagaios descritos por Caminha atravessaram alguns papagaios por essas rvores, alguns verdes e outros pardos; grandes e pequenos de maneira que me parece que haver nesta terra muitos, ou ainda a possibilidade de haver outros pssaros mas, segundo os arvoredos so, muitos e muitos e grandes e de infindas maneiras, no duvido que por esse serto haja muitas aves esto presentes na bandeira que compe a propaganda das malhas Malwee. Como um dos discursos fundadores da identidade brasileira, a carta endereada ao rei de Portugal, com o intuito de relatar a viagem e descrever as terras descobertas, est refletida nesse enunciado. No entanto, alm da exaltao das belezas e potencialidades das terras brasileiras, h tambm a refrao de acordo com novas categorias espao-temporais: o pas do futebol, abenoado por Deus e com uma natureza exuberante pode conquistar o mundo e ser hexacampeo. Por isso, o povo, considerado pacfico e alegre, deve sair s ruas para torcer pelo pas verde-amarelo.

    Assim, ao mesmo tempo em que so retomados os smbolos de um pas de natureza exuberante, com fauna e flora ricas e diversificadas, aproximando-se do jardim do den e, portanto, das bnos de Deus, tambm so evocados o talento e a garra dos jogadores brasileiros. Num processo dialgico, o enunciador introduz imagens e palavras de enunciados anteriores que constituem a identidade brasileira, mas, por meio de um tom alegre, revela a entonao e expressividade do enunciado, dando-lhe, portanto, novos sentidos. A escolha do verbo abraar, por exemplo, no uma mera escolha de recursos do sistema da lngua, visto que expressa sentidos diversos e expe a relao valorativa que o locutor mantm com o enunciado. Dessa maneira, abraar pode ser entendido como fuso entre as pessoas, em comemorao s possveis vitrias nos jogos da Seleo Brasileira durante a Copa do Mundo, o abrao taa, smbolo de vitria, ou ainda, na esfera do discurso publicitrio de uma marca de malhas, pode conotar uma demonstrao de afeto, de carinho da empresa a todos os brasileiros que podem, inclusive, vestir camisetas Malwee. Alis, a presena do destinatrio evidenciada pelo emprego do pronome voc em [...] a Malwee faz um

    textos verbais. Segundo a pesquisadora, o cuidado com a dimenso especfica da visualidade nos obriga, tambm, a reformular construtos tericos e metodolgicos, uma vez que no se trata de testar determinados conceitos ou determinada teoria, mas discutir a construo de sentidos, a produo de sentidos desses discursos (BRAIT, 2005, p. 97).

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    convite a voc e pelo uso do imperativo Saia nas ruas, mostre seu sorriso, esbanje verde, amarelo, azul.

    No contexto do anncio, o enunciado Ordem e Progresso e, portanto, a alteridade e o sentido construdo como uma divisa do futuro promissor da nao brasileira, ao ser trocado, revela uma nova posio avaliativa do enunciador: conquistar o mundo, ser patriota, vestir verde, amarelo, azul, abraar a felicidade, tudo pode ser obtido pela possvel vitria do Brasil na Copa do Mundo de Futebol.

    Finalizando, entendemos que o anncio publicitrio, determinado pelas caractersticas do gnero, reflete discursos j enunciados, reforando, desse modo, valores que constituem o imaginrio da identidade brasileira. Tambm escamoteia a funo principal do discurso publicitrio divulgar e/ou vender ideias e produtos, inclusive por se colocar como uma empresa nacional ao afirmar Malhas Malwee, um abrao brasileiro.

    Assim, ao analisar o anncio, possvel afirmar que, na conjuno entre enunciados diversos que revelam a construo do imaginrio da identidade nacional em discursos, por exemplo, histricos, literrios e sobre o futebol do Brasil, (re)constri-se a ideia de que o Brasil, alm de ser o pas do futebol, uma nao promissora cuja natureza, abenoada por Deus, rica, extica e bela.

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